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DADOS DE ODINRIGHT

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(C) 1966 – LOU CARRIGAN
Título original: NOSSO AGENTE EM PEQUIM
Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Digitalizado
400610
Revisado: 400723
CAPÍTULO 1
Para onde, desta vez?
Nosso homem de Pequim.
Uma mensagem em russo.
Nunca fugir a um desafio.

— Parece, tio Charlie, que você está passando da raia.


— Que raia? — espantou-se Charles Pitzer.
— A raia... Essa que separa o lógico do ilógico, o normal
do anormal, o comum do incomum e assim por diante.
Poder-se-ia concluir de suas palavras que a CIA não dispõe
de nenhuma outra agente além de Brigitte Montfort.
— Ou seja: “Baby” — especificou Pitzer, sorrindo
inesperadamente.
— Exato. Você me conhece e sabe que...
— Conheço-a muito bem. Por isso vim vê-la. E não sou a
única pessoa na CIA que a conhece tão bem quanto eu. Na
verdade, estou aqui cumprindo instruções de Mr. Cavanagh.
— Que tem Mr. Cavanagh contra mim? Pensei que
fôssemos amigos...
— Mr. Cavanagh e você?
— Claro.
— Bem... Com efeito, Mr. Cavanagh é um grande amigo
da agente “Baby”. O que... às vezes, causa certas... certos
inconvenientes. Por exemplo: quando Mr. Cavanagh, lá no
Quartel-General, vê-se numa entaladela, limita-se a chamar
o subchefe Pitzer, em Nova York. E dar ordens. Ordens que o
pobre Pitzer tem que transmitir, gentilmente com a máxima
urgência, à espiã mais eficiente de todo o sistema de
Inteligência americano.
— Está me adulando. E não é seu costume, tio Charlie.
— Sempre reconheço seus méritos — justificou-se Pitzer
— você não me pode acusar do contrário, Brigitte.
Desde o início, sempre sustentei que a agente “Baby” é a
mais capacitada para qualquer missão.
— Esta bem, está bem... Mr. Cavanagh chamou-o pelo
rádio particular, deu-lhe instruções ou ordens e você tem
que transmiti-las a mim. Que devo fazer?
— Tomar um avião.
— Como sempre — suspirou “Baby” Montfort. — Passo
minha vida mudando de avião, dando voltas ao mundo e
conhecendo apenas o que ele tem de pior: espiões,
assassinos, traidores, sabotadores, criminosos de guerra,
loucos que sonham com dominar o planeta por meio de
espionagem e política... E enquanto isso, o tempo passa,
passam os anos...
— Não para você — atalhou Pitzer, risonho.
— Também para mim. Sabe de uma coisa, tio
Charlie? Tenho vontade de viajar por puro prazer, como
autêntica turista. Chegar a um lugar qualquer do mundo e
conhecer sua gente, saber como vive, como sorri, como se
diverte, como ama... Tudo isto, de um ponto de vista
estritamente humano, comum, normal, sem mentiras. E
sem revólveres, nem venenos, nem bombas-relógio, nem
punhais... Sem pessoas que, em dado momento, se revelem
espiões, ou contra-espiões, ou assassinos a sólido de
qualquer espécie de Serviço Secreto. Gostaria de encontrar
um rapaz alto, esbelto, de ingênuos olhos azuis, que
sorrisse por sorrir, por estar convencido de que a vida é
bela... Que sorrisse porque fazia sol, o mar parecia recém-
criado e não havia nenhuma nuvem no céu e porque ele
gostasse de nadar, de pescar, de sorrir... Gostaria de, uma
vez na vida, conhecer um desses rapazes sorridentes que
não sabem o que quer dizer espionagem... Acha que estou
maluca?
A conversa tinha lugar no salão azul do apartamento de
Brigitte, na Quinta Avenida, em Nova Iorque. Pela grande
janela, via-se o opaco sol do meio-dia. Fora, no vasto
terraço, as águas da piscina estavam quase geladas e o
trampolim parecia petrificado sob o frio hibernal. Já algumas
vezes Brigitte tinha pensado em mudar de residência. Afinal
de contas, uma pessoa que ganha a vida escrevendo ou
espionando, não necessita de morada fixa; e se a tem, por
que há de ser na trepidante e asfixiante Nova York, com
suas enormes avenidas sempre atulhadas de carros, suas
aglomerações, sua inquietação eterna, o ruído infernal que
não cessa um momento?
Charles Pitzer esteve uns segundos contemplando os
adoráveis joelhos da melhor espiã do mundo. Depois,
aquela fina mão que segurava o cigarro fumegante; por fim,
os lábios maravilhosos, suavemente rosados, ao mesmo
tempo sensuais e infantis, que pareciam feitos para dar e
receber toda espécie de beijos.
— Não — disse ele, por fim —, não acho que você esteja
maluca, Brigitte.
— Pois acabarei ficando. Bem sabe que não tenho medo
de nada, que gosto de trabalhar, que procuro sempre
exercer essa nossa... estranha justiça em benefício de
todos. Mas chega o momento em que os nervos de qualquer
espião se ressentem. É uma coisa sutil, um pouco difícil de
explicar a quem não está permanentemente numa situação
em que a menor falha em seu trabalho pode custar-lhe a
vida. Gosto da vida, gosto de tudo e de todos. Faria
qualquer coisa para que tudo fosse bom para todos. Mas há
ocasiões em que anseio por uma grande tranquilidade, um
grande silêncio, uma grande paz... É pedir muito?
— Não.
— Você diz que não. Mas a CIA pensa de outro
modo. Dispõe de uma boa agente e parece que está sempre
à procura do menor pretexto para mobilizá-la. “Baby” deve
ir a San Nataniel, a Moscou, a Nova Granada, a Marrocos, a
Miami, ao Egito, ao Canadá, a Hong-Kong, a Buenos Aires, a
Nice, a Roma, ao Trópico do Capricórnio... Pelo amor de
Deus, tio Charlie, não há na CIA alguma garota espertinha
para de quando em quando fazer algum trabalho e deixar-
me descansar?
— Há. Temos mais de cento e cinquenta em todo o
mundo.
— E...?
— Brigitte, quando recorremos a você não é para pedir-
lhe trabalhos que pudessem ser feitos por qualquer outra
agente feminina. Quando chamamos “Baby” é porque
somente “Baby” nos pode servir. Os grandes vinhos, só para
as grandes ocasiões.
— Parece-me que essas grandes ocasiões se sucedem
com demasiada frequência na CIA.
— Este é um conturbado mundo... — murmurou Pitzer. —
Especialmente na Ásia.
— Oh, a Ásia... Não me diga que devo ir outra vez ao
Vietnã!
— Não precisamente.
— Mas, à Ásia?
— Exato.
— Bem. Qual é meu exótico destino? Tóquio, Bangcoc,
Macau talvez, Cingapura...?
— Benares. Na Índia. Já ouviu falar dessa cidade?
— Não foi onde Gautama Buda (567-483 AC) —
perguntou Brigitte, o ar mais ingênuo do mundo — deu
inicio à sua pregação?
— Desculpe — disse Pitzer. — Esqueci que você é tão
bela quanto culta.
— Benares, ou Varanasi — murmurou ela. — A cidade
santa da índia... É um dos lugares mais exóticos da Ásia. E
um lugar bastante perigoso para os estrangeiros, não é
verdade, tio Charlie?
— Se é...!
— Tenho que ir lá?
— Por meu gosto, deixaria você descansar. Mas sucede
que Benares é uma cidade... exótica, como você disse. Tem
uns costumes que podemos considerar raros. Creio que para
cumprir alguma missão lá se fazem necessários talentos
muito especiais. Diz-se que, de um modo geral, a cidade
está cheia de fanáticos. Costumam ser inofensivos, mas vez
por outra um estrangeiro paga muito caro seu
desconhecimento das usanças locais. E... Bem, Brigitte, não
é fácil conseguir um agente que fale vários idiomas, que
seja experiente, que saiba respeitar os costumes do
próximo e adaptar-se a eles... Tenho noticia de que Mr.
Cavanagh tentou de todas as maneiras conceder a você
uma temporada de descanso. Mas, depois de avaliar uma
dúzia de agentes femininas por meio dos computadores,
chegou a um resultado quase catastrófico. Finalmente, os
computadores aceitaram sem vacilar as qualificações de
uma bonita moça de olhos azuis...
— Deixe-me adivinhar — interrompeu Brigitte, sorrindo.
— Os computadores deram como capaz para o desempenho
da missão a agente “Baby”. Máquinas inteligentes!
— Bom — gracejou Pitzer —, é possível que tenham
cometido algum erro de apreciação, dado que tudo foi feito
com a máxima rapidez. Três horas apenas. E faz uma hora
que recebi todos os dados, informações e ordens para
mobilizar você. O caso é da maior urgência.
Brigitte esteve alguns segundos contemplando a fumaça
de seu cigarro. Por fim, encolheu os ombros e suspirou.
— Está bem, irei a Benares. Que devo fazer lá?
— Não sabemos.
— Como é?
— Não sabemos... Absurdo, não é mesmo?
— Absurdo? É a coisa mais disparatada que já ouvi!
Não se pode despachar para as margens do Ganges uma
espia de minha categoria sem saber para quê!
— Pois é o caso — desculpou-se Pitzer. — Lamento.
— Mas... mas... mas...
— É inútil que me faça perguntas, Brigitte. Eu não sei
nada. Apenas que você deve partir imediatamente e,
segundo nos parece, estabelecer um contato em Benares.
— Contato com quem?
— Com nosso agente em Pequim.
— Mandam-me a Benares para entrevistar-me com nosso
agente de Pequim?
— Isso mesmo.
— Mas é absurdo... Se nosso agente é de Pequim, por
que entrevistar-nos em Benares, em plena Índia?
— Não sei. São essas as instruções.
— Isso não são instruções! Pretender que eu me
apresente em Benares, sem mais aquela, e que espere lá
um contato com nosso agente de Pequim!
— É o que ele pede.
— Ele quem?
— Nap.
— Nap?
— “N” de nosso, ‘‘A” de agente, “P” de Pequim: Nap. É
simples.
— Muito simples, muito fácil... Quem é ele, como é, que
tem a tratar comigo em Benares? É homem, mulher, velho
ou moço, europeu ou asiático?
— É um homem.
— Vai entregar-me alguma coisa, ou eu é que entregarei
alguma coisa a ele, ou trata-se apenas de uma troca de
instruções, ou detalhes...?
— Não sabemos. A mensagem recebida pelo rádio é de
uma simplicidade desoladora. Nap é, com efeito, nosso
agente em Pequim. Até agora, tem revelado uma eficiência
espantosa. Parece saber tudo, move-se com absoluta
liberdade por toda a China, trabalha sem descanso. Por seu
intermédio, a CIA tem recebido sempre, com quatro ou
cinco dias de antecedência, informações sobre as provas
nucleares chinesas, ou os movimentos da Guarda Vermelha.
Isso, entre outras coisas de menor importância. Nap é
um dos melhores agentes mundiais a serviço da CIA.
— Mas a CIA não sabe quem é ele, ou como é?
— Não.
— Absurdo, repito!
— Também acho. Mas é assim. Agora, tudo quanto
sabemos é que Nap está esperando por você em Benares...
Você, ou outro agente que enviemos para entrar em
contato com ele. Sei o que vai dizer: que podíamos enviar
um agente... Não é certo, Brigitte?
— Claro.
— Mas, não. Precisa-se de um agente secretíssimo. O que
chamamos um top secret agent em nossa gíria. E chegou-se
à conclusão de que é mais conveniente uma mulher que um
homem.
— Bem, mas... Estou ainda perplexa, tio Charlie...
— Compreendo. Eu também.
— Que devo fazer em Benares? É uma cidade grande,
com uma população fixa de duzentos e cinquenta mil e um
número ainda maior de visitantes: peregrinos, homens
santos, mendigos, enfermos que se vão banhar no Ganges,
estrangeiros de todas as raças e nacionalidades, turistas,
faquires... Qual deles é Nap?
— Ele encontrará você. Sua mensagem pelo rádio parece
indicá-lo com toda a clareza.
— Qual é essa mensagem?
— Transcrevemo-la para você, em letras maiúsculas, de
modo que poderá estudá-la bem, procurar talvez algum
significado oculto... Devo mencionar que nossos
especialistas em códigos não encontraram nenhum
significado além do que está claramente expresso por
palavras.
— Foi enviada em inglês, em chinês, em hindu...?
— Em russo.
— Em russo! — assombrou-se Brigitte. — Acaso é russo
esse agente chamado Nap?
— Não sabemos.
— Mas se enviou a mensagem em russo...
Charles Pitzer sorriu, talvez para tentar esconder seu
embaraço.
— Também já recebemos mensagens dele em inglês...
— Ah...
— E em francês, em japonês, em português e em
alemão, coreano, espanhol, italiano, holandês... Seu único
distintivo tem sido sempre o nome que o identifica na Ásia:
Nap. Sempre envia com esse nome qualquer mensagem ou
informação. Nap, simplesmente.
— Tem sido leal até agora?
— Leal, eficiente, seguro, metódico, audaz... É um grande
agente, Brigitte. Não creio que a CIA possa jamais encontrar
outro como ele em toda a Ásia.
— Teme que possamos perdê-lo?
— Parece estar em dificuldades. É pelo menos o que
opinam os técnicos de Situações da CIA, em Washington.
Geralmente, os informes de Nap têm sido enviados de
Pequim, e de Pequim têm saído seus microfilmes, suas fitas
gravadas, suas provas diversas de material bélico:
estilhaços de granada contendo terra da Mongólia,
cartuchos de metralhadora... Garanto-lhe que é o espião
mais completo e consciencioso de que já. tivemos noticia
em toda a Ásia.
— Entretanto, pediu contato. Ou seja, à maneira como
interpreto essas coisas, pediu auxilio.
Charles Pitzer hesitou.
— Bem... Nap jamais pediu auxilio, nem contato.
Sempre foi ele quem prestou auxilio a agentes em
dificuldades, sempre foi ele quem procurou os contatos por
sua conta e risco.
— Isso quer dizer que conhece vários de nossos agentes
na Ásia?
— Evidentemente, querida.
— Por que não recorreu a um deles? Tem direito a isso,
ao menos por uma vez, já que parece encontrar-se em
dificuldades.
— O fato é que não o fez. Na opinião da CIA, ele terá
considerado perigosos tais contatos. Seja como for, e
tomando em conta que pede o envio de um agente a
Benares, parece claro que precisou sair a toda pressa de
Pequim. Para a CIA, Nap está convencido de que qualquer
passo seu poderia colocar em grande perigo o nosso agente
na Ásia que fosse designado para entrar em contato com
ele.
Por isso, a fim de não comprometer nenhum e evitar ele
mesmo um risco pessoal, deslocou-se a Benares e lã espera
um agente desconhecido na Ásia... Não quer ler sua
mensagem enviada pelo rádio clandestino de que dispõe?
Estendeu um papel a Brigitte. Um papel no qual, escrito
em russo e com letras maiúsculas, ela leu o seguinte:
ESTAREI ESPERANDO EM BENARES.
CONTATO COM AGENTE DESCONHECIDO NA ÁSIA.
MÁXIMA URGÊNCIA.
NÃO ACEITAREI CONTATOS COM AGENTES JÁ
RESIDENTES.
O ENVIADO DEVERÁ HOSPEDAR-SE NO ‘BENGALA
HOTEL”DE BENARES E, MESMO QUE NÃO A CONCEDAM,
SOLICITAR A “SUÍTE 17” (DEZESSETE).
REPITO: MÁXIMA URGÊNCIA.
— Que acha da mensagem? — perguntou Pitzer, quando
Brigitte ergueu a cabeça.
— Que ele escreve ou transmite muito bem em russo.
Bem demais, talvez.
— Não seja tão desconfiada. Você é capaz de enviar unia
mensagem semelhante, com a mesma fidelidade ao idioma
russo. E não é russa. Isto não quer dizer que Nap o seja.
Mmmm... Se ele fosse russo...
— Se fosse russo — intercalou Brigitte, sorrindo —, a
brincadeira poderia ter consequências muito desagradáveis
para nós. Para mim, especificamente.
— Você tem... amizades no serviço de espionagem russo.
Não me parece que deva preocupar-se muito.
— Amizades eu tenho em diversos sistemas de
espionagem mundiais — disse Brigitte, novamente sorrindo.
— Apesar disso, tio Charlie, você sabe muito bem que em
diversas ocasiões escapei com vida por verdadeiro milagre.
E quem me queria matar eram esses... amigos pertencentes
a outros serviços secretos.
— É dura a vida do espião, como você sempre diz. Mas
se está pensando que Nap quer um agente da CIA em
Benares para dar-lhe um golpe baixo, esqueça-o. Ele já teve
ocasiões melhores para capturar um dos nossos, em
diversos pontos da Ásia. E não o fez.
— Talvez por não considerar esses agentes
suficientemente importantes.
— Sim... — sussurrou Pitzer. — Também pensamos nisso.
Sempre existe a possibilidade de que ele considere chegado
o momento de dar um grande golpe. Sem dúvida, conhece
muitos agentes da CIA na Ásia e... podemos pensar que
deseja algo mais. Algo muito mais importante. Por exemplo:
nosso melhor agente internacional. Esse agente que a CIA
tem sempre em reserva, disposto a partir para qualquer
parte do mundo num dado momento. Um agente que,
possivelmente, conhece muito da espionagem norte-
americana: sistemas de ligação em todo o mundo; nomes,
domicílios, profissões visíveis de muitos agentes... Poder-se-
ia pensar que Nap deseja entrevistar-se... ou atrair a
Benares esse agente extra-especial, que seria, na realidade,
como que... um fichário vivo.
— Eu sou esse fichário vivo — murmurou “Baby” —
conheço mais segredos da CIA que qualquer de nossos
chefes em Washington, possivelmente. Sei coisas de todo o
mundo, de centenas de agentes, elementos de ligação,
amigos, inimigos que estão sob vigilância... Sem a menor
dúvida, haverá em toda a CIA apenas uns seis agentes que
saibam tanto quanto eu, tio Charlie.
— Isso é verdade, Brigitte.
Ela permaneceu pensativa alguns segundos. Por fim,
sorriu suavemente.
— Sabe, tio Charlie? Tudo isto me parece quase um
desafio de Nap. Esse homem é de uma audácia incrível.
Ignoro se seu comportamento é honesto, ou suas
intenções para com a CIA, mas, no fundo, asseguro-lhe que
estou considerando esta mensagem como um desafio.
— E...?
— Bem... De uma coisa meus inimigos nunca me poderão
censurar: em nenhum momento, e em hipótese alguma,
“Baby” da CIA deixou de aceitar um desafio, irei a Benares.

CAPÍTULO 2
Um rio sagrado.
O templo da deusa Kali.
Caminho difícil com os pés descalços.
As faixas de seda dos estranguladores tugues.
Nova York-Madri-Istambul-Banares... Foi esse o voo que a
CIA preparou para sua melhor agente feminina, sem um
momento de descanso. Os técnicos de viagens tinham-no
estudado de tal modo, que um avião ajustava-se ao
seguinte com poucos minutos de intervalo.Deste modo,
num dia, a agente “Baby” fez quase a metade da volta ao
mundo, e chegou a Benares. Um carro da companhia de
aviação levou-a do aeroporto ao centro da cidade, onde ela
tomou um táxi para transportar-se ao “Bengala Hotel”. Tão
logo chegou a este, percebeu que os hóspedes eram
estrangeiros, na maioria, o que inevitávelmente lhe causou
uma sensação de alívio. Além disso, estava claramente
estabelecido que Nap conhecia o hotel, pois de outro modo
não teria podido indicá-lo à CIA na sua breve mensagem
irradiada em morse. Portanto, deveria pensar que não era a
primeira vez que ele punha os pés em Benares.
O encarregado da portaria era hindu e, embora vestido à
européia, usava um imaculado turbante branco. Tinha uns
olhos negríssimos, de pálpebras um tanto obliquas, que
bateram ligeiramente quando a bela viajante parou diante
dele. Seu inglês, naturalmente, era perfeito. Parte do que a
Inglaterra tinha deixado à Índia antes de abandoná-la.
— Brigitte Montfort — anunciou ela, sorrindo.
— De Nova Iorque, foi pedida uma suíte para mim. A
dezessete. Um amigo que aqui esteve faz algum tempo a
recomendou, e ele mesmo se incumbiu de solicitá-la.
O hindu inclinou a cabeça. Abriu uma pasta vermelha e
dela sacou um telegrama.
— Recebemos o pedido, miss Montfort. Mas,
lamentavelmente, a suíte 17 está ocupada. Entretanto,
qualquer das outras oferece o maior conforto. Posso
recomendar-lhe a 12?
— Sem dúvida. Eu não compartilho as manias do meu
amigo, de modo que qualquer suíte será boa para mim.
O homem tornou a inclinar a cabeça, voltou-se, apanhou
uma chave e fez sinal a um jovem moreno, que aguardava
na ponta do balcão. Entregou-lhe a chave, e o jovem se
incumbiu das maletas de Brigitte. Esta, após entregar seu
passaporte ao hindu do turbante, para efeito de registro, foi
atrás dele.
Não havia elevador. As escadas eram de mármore
branco, suntuosas. Atrás e em baixo, foi ficando o amplo
vestíbulo com ventiladores pendentes do teto, grandes
vasos com plantas, uma fonte central e, em lugar de
destaque, um enorme tigre de bengala autêntico,
empalhado, com as fauces abertas. E como sempre, alguns
hóspedes ociosos, todos eles olhando incredulamente para
o mais maravilhoso par de pernas que tinham visto na vida.
A suíte 12 ficava no primeiro andar, num largo corredor
com outras escadas também brancas, que pareciam descer
para todos os lados. Havia janelas duplas, em arco, com
uma fina coluna repartindo-as ao meio. Por uma delas, ao
passar, Brigitte viu a alta torre vermelha de um dos
numerosos templos da cidade. Uma cidade que, por força,
tinha que ser interessante. Mas, como sempre, ela estaria
envolta em aventuras que lhe impediriam desfrutar os
prazeres de uma simples turista. Conheceria algumas
coisas, teria que lutar, fugir, esconder-se, escapar
finalmente a toda pressa... E adeus, Benares.
Qualquer dia... Qualquer dia pediria seis meses de férias.
Férias totais. E então daria a volta ao mundo, detendo-se
como verdadeira turista em todos os lugares por onde
passara precipitadamente, sempre com o perigo nos
calcanhares.
O jovem moreno abriu a porta, deixou Brigitte passar e
entrou em seguida. A suíte era ampla e tinha uma coloração
variada, isto devido aos vidros policrômicos das bonitas
janelas em duplo arco. Ventiladores no teto. Na primeira
peça, plantas, poltronas européias e uma reprodução, a
cores, daquele soberbo tigre que vira no vestíbulo.
Possivelmente, reprodução idêntica existiria em todas as
outras suítes, como distintivo do hotel. Claro que, se a coisa
era levada tão a sério, este devia chamar-se “Tiger of
Bengal Hotel”. Mas seria comprido demais. Então, “Tiger
Hotel”. Não. Seria um pouco assustador, pensou Brigitte. O
melhor mesmo era “Bengala Hotel”...
O jovem hindu tinha depositado as maletas e estava
esperando, com a chave na mão estendida. Ela apanhou a
chave, sorriu e deu-lhe cinco dólares, que o rapaz ficou
olhando incredulamente. Fez uma profunda inclinação de
cabeça.
— A mensahib deseja mais alguma coisa?
— Não, obrigada. Pode ir.
Outra inclinação profunda e o hinduzinho abandonou a
suíte. Levando as maletas para o quarto, Brigitte colocou-as
sobre a cama. E como sempre, por pura rotina, dedicou dez
minutos a esquadrinhar os dois aposentos. Uma tarefa que
sempre empreendia rotineiramente, mas que desta vez era
mais justificável: tinha sido chamada a Benares e não ia
confiar em nada, nem em ninguém.
Mas não encontrou microfones ou outro qualquer truque
em sua suíte. Pôs-se a desfazer as maletas e foi colocando
suas roupas no armário. O mau dos grandes hotéis
internacionais era que, no fundo, todos se pareciam: móveis
convencionais, o inglês como idioma básico, comidas que se
podiam encontrar em qualquer restaurante de Nova Iorque.
Sim, qualquer dia punha-se a dar a volta ao mundo, por sua
própria conta. Então, se hospedaria em lugares pitorescos,
comeria coisas realmente esquisitas.
Olhou para fora, através da vasta janela. Sob um céu
azul profundo, o cenário acentuadamente típico de Benares,
a cidade santa dos hindus, às margens do Ganges, o rio
sagrado. Aqui e ali, destacando-se do casario baixo, as
pontiagudas e coloridas torres dos templos.
Sobre uma mesinha, havia um jornal impresso em
caracteres desconhecidos. Bengali, marati, hinodustani?
Brigitte apanhou-o e, sentada de lado no largo peitoril da
janela, as belas pernas espetacularmente à mostra, pôs-se a
folheá-lo. Não entendia nada. Mas tanto melhor. Devia ser
maravilhoso o que ali estava escrito em letras tão lindas!
Súbito, dirigiu o olhar para a porta do quarto. Mas as
leves batidas não tinham soado ali e sim na porta da suíte,
que não era visível de onde ela estava. Abriu rapidamente a
pequena maleta vermelha, que trouxera dentro de uma das
maiores, e sacou a pistolinha de coronha de madrepérola.
Chegou à sala, olhou para a porta... e viu o papel, no
chão. Durante dois segundos aguardou diante da porta,
pistola na mão. Mas nada aconteceu. Aproximou-se do
papel, olhou-o, moveu-o com a ponta do sapato e
finalmente apanhou-o.
O conteúdo era lacônico:
TEMPLO DE KALI, HORA DA ORAÇÃO
NAP
Estava escrito em inglês, num papel comum. Brigitte leu-o
mais uma vez, voltou ao quarto, ateou fogo ao papel e, com
a chama, acendeu um cigarro. Depois, tranquilamente,
como se nada houvesse acontecido, acabou de arrumar sua
roupa no armário.
Claro que, à hora da oração, estaria no templo da deusa
Kali.

À hora da oração é ao pôr-do-sol. Brigitte Montfort já se


encontrava à margem esquerda do Ganges, contemplando
um dos espetáculos mais fascinantes que jamais se
ofereceriam a seus olhos.

De ambos os lados do rio havia escadarias de granito,


que desciam até a água. Uma água marrom-escura, turva,
suja, pestilenta: o rio era a grande cloaca ao ar livre da
cidade, o que se tornava evidente ao primeiro golpe de
vista. Dificilmente se poderia encontrar outro curso de água
mais infecto que aquele em todo o mundo, nem mais
tenebroso. Mas isto apenas aos olhos dos ocidentais. Para
os crentes hindus, o Ganges era o rio sagrado, a grande
panacéia da Índia. De todas as partes chegavam
diariamente milhares de peregrinos de diferentes raças e
castas; mongóis, tamis, hindus puros, sikhs. E à hora do
crepúsculo todas as amplas escadas enchiam-se de crentes
que vinham para fazer suas orações: mendigos, cegos,
portadores de úlceras, paralíticos carregados por amigos ou
familiares, homens santos... Até elefantes eram trazidos ao
Ganges. E ali, numa água poluída por toda espécie de
imundícies, os crentes efetuavam suas abluções rituais.
Mergulhavam na água, rezavam, imploravam. Os cegos
queriam ver, os enfermos sarar, os paralíticos readquirir
seus movimentos.
Lançavam água em seus olhos cegos, banhavam suas
feridas, bebiam com verdadeira unção aquele líquido
pútrido na esperança de encontrar alivio para seus males.
Era a hora da oração.
O clamor da turba se elevava aos ares, enquanto do alto
das torres dos templos cala a voz plangente dos sacerdotes.
Algo afastada das escadarias, a agente “Baby”
presenciava o estranho espetáculo. Ela era capaz de
suportar qualquer coisa, mas aquilo a deprimia. Às suas
costas, ouviu que se intensificavam as orações. Voltou-se:
eram três vacas aproximando-se mansamente, rodeadas de
homens e mulheres que passavam as mãos por seus
flancos, levando-as depois à testa. Um coxo coberto de
chagas, emitindo um canto dolente, saltava sobre seu único
pé atrás de uma das vacas, cuja cauda segurava com uma
das mãos. A outra ele passava pelo corpo do animal, depois
pelas suas pústulas.
Brigitte estremeceu. De boa vontade teria gritado que
aquilo era monstruoso, bárbaro... Mas se fizesse semelhante
coisa, isto possivelmente seria morta a pancada pelos
revoltados hindus. Estava absorta nestes pensamentos,
quando percebeu que uma das vacas se detinha diante
dela.
Centenas de olhos negros cravaram-se na estrangeira,
expectantes. Talvez aquela gente desejasse um motivo
“justificado” para afastá-la dali.
Mas a espia Brigitte “Baby” Montfort era
verdadeiramente internacional, por sua cultura, sua
personalidade, sua fácil adaptação a todas as coisas deste
variado mundo. De modo que, com grande respeito,
inclinou-se e recuou, dando livre passagem ao animal
sagrado. Os cânticos que se tinham interrompido um
instante continuaram e os crentes se esqueceram da
estrangeira. O rumor das orações parecia ir crescendo sem
cessar.
No céu, o sol adquiria o tom vermelho que precedeu seu
brusco desaparecimento.
Afastou-se dali caminhando rapidamente. Informara-se
sobre o lugar onde se situava o templo de Kali. Estivera
apenas passeando por suas imediações. Súbito, numa
praça, surgiu diante dela o templo, com sua cúpula
agudíssima pintada de vermelho vivo, cor de sangue. Uma
multidão dirigia-se para lá, empurrando-a, ignorando-a,
murmurando preces que não tinham fim. Uma zoeira
ensurdecedora, que saturava todo o ambiente.
Brigitte afastou-se para uma das estreitas vielas. E ali,
metida num portal, abriu sua bolsa de viagem e tirou um
grande manto branco, que lançou sobre a cabeça e deixou
cair ao longo de todo o corpo. Bem envolta nele, como mais
uma mulher hindu no meio de toda aquela gente que a
nada prestava atenção, entrou no templo da deusa. No
interior, o burburinho era infernal. O chão estava cheio de
gente prostrada de joelhos, que levantava e abaixava os
braços, incessantemente. Brigitte prosternou-se ao
encontrar a primeira vaga, imitando os modos e gestos dos
que via ao seu redor. Perto dela, três homens efetuavam
suas devoções com tal energia, que suas cabeças
chocavam-se contra o chão e filetes de sangue escorriam
por suas testas. O grito “Kali” era repetido
ininterruptamente, com um ruído continuo de ressaca.
A gritaria tornou-se maior ainda quando apareceu o
sacerdote encarregado dos sacrifícios. Uma cabra foi
conduzida perante ele e colocada sobre um cepo. O homem
ergueu uma enorme espada, deixou-a cair, e a cabeça do
animal saltou. O sangue salpicou os mais próximos, que
rugiram de prazer devoto. Kali distinguia-os com o sangue
de um sacrifício que lhe ofereciam. Foi trazida outra cabra, e
os que tinham sido favorecidos com o sangue da primeira
deram lugar a outros, que esperavam obter privilégio
idêntico. Havia uns quantos homens vestidos de branco
dando voltas em torno da estátua de Kali e tocando,
freneticamente, címbalos cujo som misturava-se às sonoras
pancadas rítmicas do gongo do templo.
E no centro de todo este frenesi de adoração, a deusa
Kali, uma estátua de dez metros de altura, dourada, mas
com uma cruel cabeça negra, fauces de loba e agudos
dentes manchados de sangue. O corpo era rodeado de
serpentes, de corpos decapitados e de crânios. A língua
pendia-lhe da boca, numa expressão de desprezo. Em uma
de suas mãos, uma faca; na outra, a cabeça do gigante que
ela degolou. As outras quatro mãos incitavam os fiéis à
oração. Outra cabra, a terceira, foi levada ao sacerdote,
decapitada e, mais uma vez, o vozeio aumentou.
— Não se mova. Não se volte. Está sendo seguida!
As palavras, em inglês, chegaram assombrosamente
nítidas até ela, que ficou petrificada de espanto. Sentia-se
aturdida, horrorizada...
— Saia daqui o quanto antes, despiste seus seguidores e
vá mais tarde À praça do templo de Vixnu. Encotrará lá um
faquir chamado Mohamat Panduj.
— Quem é você? — murmurou Brigitte.
— Nap.
Olhou de través, mas só pôde ver um vulto branco,
encolhido a seu lado, imóvel, colorido de vermelho e azul-
violáceo pelas luzes das tochas. Apenas um vulto, sem cara,
sem mãos. Um vulto, tão-somente.
— Quem está me seguindo? — sussurrou Brigitte.
— É melhor que não saiba. Saia daqui e veja se os
despista. Do contrario, considere-se morta. Estão
procurando a mim, mas você pode ser uma boa presa. Vá
agora, entre um sacrifício e outro. Depressa!
Brigitte foi retrocedendo, lentamente, sem levantar-se.
Ao passar, viu os pés de Nap. Pelo menos, supôs que
deviam ser dele. Estavam completamente envoltos em
panos. Isso foi tudo o que pôde ver.
Por fim, achou que era o momento de pôr-se de pé e
dirigir-se para a saída do templo, em cujo interior Kali
continuava recebendo orações e sacrifícios sangrentos, no
meio de um clamor espantoso. Estava abrindo caminho
entre mais gente que entrava, quando viu o primeiro dos
homens. Era mais alto que os demais, usava turbante e
seus olhos pareciam ter uma luz fosforescente no recinto
iluminado por tochas. Eram como duas brasas negras e
vermelhas, perversamente acesas. À direita, viu
subitamente o outro, ainda mais perto dela, também
afastando gente para se aproximar. Parecia idêntico ao
primeiro que vira, também muito alto, de turbante, com
olhos que refulgiam como brasas. No momento em que
Brigitte saía para a grande praça, aquele hindu estava
também a ponto de consegui-lo. “Baby” voltou-se um pouco
e viu-o terminando de romper a multidão. Sentiu-se
percorrida por um arrepio de frio ao simples aspecto do
individuo. Era escuro, magro e musculoso, tinha apenas
uma tanga e estava descalço. O outro se reuniu logo a ele, e
ambos dirigiram-se resolutamente para Brigitte, que
começou a correr assim que dobrou a esquina da primeira
viela, justamente no momento em que aparecia o terceiro
hindu e juntava-se aos dois; sem dúvida, ele estivera
esperando do lado de fora e, ao avistar seus companheiros,
correu-lhes ao encontro. Um deles fez-lhe um sinal
indicando outra viela, O terceiro precipitou-se para lá,
enquanto os outros dois lançavam-se em perseguição de
Brigitte.
E esta, após percorrer escassos cinquenta metros,
chegou ao fim do beco, que não tinha salda. Restava
apenas um finzinho de luz e, voltando-se, ela percebeu os
dois homens que avançavam para ela, devagar, esticando
entre as mãos uma corda, ou algo parecido.
A revelação quase fez com que seus joelhos dobrassem,
de puro tenor. Uma revelação brutal, que durante um longo
segundo deixou-a paralisada do espanto, de medo terrível:
aqueles homens eram tugues, os estranguladores da deusa
Kali...
E o que tinham entre as mãos eram as clássicas faixas
de seda, curtas e estreitas, para estrangular suas vitimas.
Aquilo era... era absurdo! E não existiam mais tugues; já
não havia estranguladores na Índia, segundo se dizia.
Mas os dois homens ali estavam, diante dela. Lembrou-se
de pronto que trazia sua pistolinha, colada à coxa com as
tiras de esparadrapo cor-de-rosa, como sempre. Mas,
também de pronto, compreendeu que não podia dispará-la
duas vezes, pelo menos com eficiência, antes que aqueles
dois homens caíssem sobre ela.
Ergueu a cabeça para o tapume que fechava o beco, deu
o salto, seus dedos se crisparam na borda e ela içou o corpo
rapidamente, com todas as suas forças, ouvindo atrás as
ágeis pisadas dos pés descalços. Estava a ponto de pular
para o outro lado, quando sentiu que lhe seguravam o pé. O
medo já a abandonara completamente, deixando em seu
lugar, absoluto, um forte espírito de luta. Encolheu
bruscamente a perna, o sapato ficou na mão que o
segurava, porém ela estava livre para deixar-se cair do
outro lado, justamente quando outra mão tentava agarrá-la
por um braço.
O longo manto branco ficou atrás, numa daquelas mãos,
quando “Baby” caiu do outro lado do tapume. Encontrou-se
num pequeno pátio malcheiroso, estreito. Diante dela, outro
tapume. Correu até lá, escalou-o, olhou para o outro lado e
viu um novo beco. Quase gritando de alegria, saltou,
lançando-se a toda pressa pelo beco, rumo à saída.
E deteve-se de chofre ao ver surgir o terceiro tugue na
ponta daquele beco. Tornou a estremecer, mas agora sacou
a pequena pistola com silenciador já adaptado de origem.
Decidiu que era melhor ir ao encontro do homem, pois
deste modo estaria mais perto da entrada do beco quando o
matasse, e, portanto, com mais possibilidade de escapar, lá
que sem dúvida os outros dois vinham atrás dela, pelo
mesmo caminho que acabava de percorrer.
Ao adiantar-se, viu outro beco, estreitíssimo, e meteu-se
prontamente por ele, correndo descalça, pois tinha resolvido
prescindir do único sapato que lhe restava. Com o terceiro
tugue perseguindo-a, correu a toda a velocidade,
escorregando algumas vezes no chão resvaladiço. E saiu
daquele beco, dobrou por outro, por outro, por outro...
Parou de repente, ofegante, mas procurando não fazer
ruído nem sequer com sua respiração descompassada. No
silêncio do lugar, chegavam até ela os cânticos dos crentes,
o rumor das frenéticas devoções no templo de Kali. Esteve
alguns segundos abrigada num portal, recuperando seu
fôlego. Olhou para ambos os lados da viela, não viu
ninguém, saiu do portal e começou a caminhar
cautelosamente para uma das extremidades. As sombras
espessavam-se e ela já quase nada distinguia, mas súbito
lobrigou o turbante branco, aqueles olhos de fogo,
justamente diante dela, a menos de sete metros, na ponta
da viela.
Estendeu o braço e disparou duas vezes.
Estava certa de que não poderia errar aquele alvo.
Entretanto, o homem caminhou para ela, erguendo as
mãos com a faixa de seda preta dos estranguladores,
fortemente esticada.
Quase tremendo, Brigitte disparou pela terceira vez, ao
mesmo tempo em que recuava um passo. Agora estava
segura de ter atingido o alvo, porque o tugue estremeceu.
Mas continuou avançando, sempre com a faixa de seda,
tensa, entre as mãos estendidas.
Brigitte tornou a disparar, agora na cabeça. Não
cometeria mais erros.
Viu romper-se a testa do tugue, e só então este se
deteve, para cair imediatamente no sujo e escorregadio
chão de terra. Ele deu meia volta e pôs-se a correr para o
outro extremo da viela. Estava já quase a chegar lá quando
apareceram os outros dois tugues, subitamente, a menos de
três passos, com as faixas de seda entre as mãos.
Quase gritando, “Baby” fez fogo contra um deles, na
cabeça, duas vezes. O homem caiu.
E então, a faixa de seda do terceiro tugue enlaçou-lhe o
pulso, apertando-o de tal modo que ela teve a sensação de
que sua mão direita estava sendo amputada. Quis disparar,
mas a mão se abria, inerte, sem força nem sensibilidade. A
pistola caiu no chão e o tugue puxou a faixa de seda,
lançando Brigitte contra a parede. Então, quis passar-lhe a
faixa pelo pescoço, mas, sem dúvida, estava habituado a
lutas menos difíceis.
A faixa de seda estalou ao ser esticada após o brusco
puxão, sem encontrar o delicado pescoço de “Baby”. Ao
mesmo tempo, o tugue recebia uma cotovelada na boca do
estômago que, mais que doer-lhe realmente, o surpreendeu;
ficou um instante imóvel, em postura propícia para o
tremendo golpe de judô aplicado em sua espádua direita
pela mão esquerda de Brigitte, a qual quis aproveitar a
ocasião para passar por baixo de seus hercúleos braços
reluzentes de óleo.
Quando passava, a faixa de seda caiu, por fim, sobre seu
pescoço. Mas nem sequer deu tempo ao tugue para apertar.
Inclinou-se, agarrando com a canhota o pulso direito do
homem, tentando puxá-lo por cima de seu ombro e lançá-lo
contra a parede. Encontrou uma dificuldade inicial, devido à
tensão exercida pelo tugue, mas relaxou essa tensão,
arremessando para trás o cotovelo direito, novamente no
estômago. Depois, deu o puxão definitivo e o hindu passou
por cima dela, mas pesadamente, achatando-a com seu
peso.
Com uma só mão, era difícil aplicar semelhante golpe
num adversário de tamanha corpulência. A faixa de seda
estava frouxa em seu pescoço, mas novamente começou a
ser apertada, no momento em que a mão esquerda de
Brigitte, num testemunho de sua fabulosa sorte, caia sobre
a pistola de coronha de madrepérola.
Não precisou utilizá-la.
Após o primeiro apertão na verdade não muito forte,
ouviu um abafado “plop”, e algo liquido e quente escorreu
sobre sua nuca. Ao mesmo tempo, o peso do tugue parecia
aumentar em cima dela.
Só um instante, porque o tugue foi removido, atirado
para um lado e Brigitte revirou-se rapidamente, pronta a
pistola, o rosto pálido, fria de terror, mas disposta a
disparar.
— Espere! — ouviu, em inglês. — Não seja mal-
agradecida.
Ficou com a mão erguida, sentada no chão, olhando
incredulamente para o homem alto, de branco, vestido à
européia.
— Nap? — perguntou ela.
— Como? Oh, não me parece que seja um momento
apropriado para conversar. Vamo-nos daqui!
Inclinou-se para ela, estendendo a mão direita. Na
esquerda tinha um possante revólver com silenciador.
Brigitte pôs-se de pé, ajudada peio desconhecido, e
estremeceu quando seu olhar passou pelo cadáver do
tugue.
— Quem é você — insistiu Brigitte.
— Uma pessoa normal. Não lhe basta isto? Venha
comigo: tenho um carro esperando perto daqui.
Brigitte não fez mais perguntas. Na verdade, não era o
momento adequado. Além disso, aquele homem parecia
realmente uma pessoa normal. E depois da peleja com os
três fanáticos tugues, o encontro não podia ser mais
simpático.

CAPÍTULO 3
Homem ruivo, de olhos verdes.
Nap não aparece.
Um mendigo original.

— Cigarro? — ofereceu o desconhecido.


— Aceito. Obrigada... Estava mesmo precisando.
— Não é bom ter vícios — disse ele, sorrindo, enquanto
acendia o isqueiro. — Mas, em geral, os vícios são uma
espécie de... calmante. E o vicio de fumar é dos mais
inofensivos. Verdade que, ultimamente, tem-se dito que o
fumo produz câncer, mas devemos considerar...
— Diga-me — interrompeu Brigitte, expelindo fumaça
pelo nariz —, já que se mostra tão conversador: quem é
você, afinal?
Estavam dentro do carro, já longe das vielas que se
enroscavam ao redor da praça do templo de Kali. Tinham-se
aproximado do centro de Benares, onde fulgiam as luzes
das residências de luxo, mansões de menor importância,
avenidas aceitavelmente tranquilas. O homem que salvara
Brigitte de uma situação que talvez tivesse resultado
definitivamente desagradável era bastante alto, com efeito.
De porte varonil, possuía uma elegância natural, de
modo algum rebuscada. Ruivo, olhos verdes, sua expressão
era afável, sorridente. Ao olhar experimentado de Brigitte,
estava claro que sob a axila esquerda daquele homem havia
um revólver, o que ele utilizara para rebentar a cabeça do
terceiro tugue.
Ele sorriu mais acentuadamente.
— Eu? Insiste em perguntar quem sou? Já lhe disse: um
homem normal.
— Um homem normal não anda armado de revólver, nem
é capaz de matar um tugue com um só tiro. Um homem
normal não sabe que para liquidar um desses fanáticos é
preciso rebentar-lhe a cabeça.
— Minha cara amiga, um homem que usa revólver na
Índia, especialmente em Benares, é uma pessoa normal. E a
prova disso temos em você mesma, que também trazia... e
novamente traz sua pistolinha.
— Meu nome é Brigitte Montfort — informou ela. — E o
seu?
— Smith — disse ele. — Roger Smith.
— Smith... Não lhe parece um nome demasiado comum?
— Bem... Mas também eu sou um homem comum.
— De que nacionalidade?
— Inglês — surpreendeu-se ele. — Não se nota?
— Não.
— Oh... Talvez isso seja devido à minha longa
permanência na Ásia... Na Índia, mais exatamente. Suponho
seja do seu conhecimento que, até alguns anos atrás, a
Índia era uma colônia inglesa.
— É do meu conhecimento. Mas tornou-se independente
há dezenove anos, e estranho que tenha permanecido por
tanto tempo aqui, em vez de regressar à Inglaterra. Consta-
me que, para os ingleses, não há nada no mundo melhor
que as suas Ilhas. E a perda de uma colônia tão importante
parece-me o melhor dos motivos para determinar o regresso
de um inglês.
— Regressei. Estive lá alguns meses. E um belo dia,
compreendi que não podia viver mais na Inglaterra. Talvez
seja um pouco absurdo, mas resolvi ficar para sempre na
Índia. Um homem é... como uma planta: difícil de se adaptar
a um outro solo.
— Não estou de acordo com você: um homem é capaz de
adaptar-se em qualquer ambiente. Sobretudo, ao ambiente
de sua pátria.
— Mas não ao clima. Eu sou... uma planta tropical. A
Inglaterra não é o lugar mais adequado para as plantas
tropicais. Se eu lá estivesse agora, não poderia usar um
trajo branco, cômodo e fresco. Teria que me vestir de
cinzento-escuro, usar um guarda-chuva e uma capa de
gabardina...
Sobretudo, um guarda-chuva. E eu detesto os guarda-
chuvas.
— Na índia também chove.
— Decerto. Mas... ainda não reparou? Aqui, quando
chove, chove. Não há engano possível. Chove durante
semanas. Ninguém pode dizer que foi enganado. Na
Inglaterra, sai o sol pela manhã, o londrino põe um cravo na
lapela e vai trabalhar. Pois bem: a qualquer momento,
começa a chover. E eu, que sempre esqueço o guarda-
chuva, cansei-me depressa daquele jogo meteorológico.
Disse para mim mesmo que a Índia tinha suas épocas de
chuva, mas também suas épocas de sol radioso, sem
surpresas desagradáveis... E aqui estou. E você?
— Eu também estou aqui — disse Brigitte, sorrindo.
— Certo. — Ele riu. — Você está aqui, sem sombra de
dúvida... Turismo?
— É evidente.
— Americana?
— Claro.
— Ótimo. Americana e turista. Conhece a história da
deusa Kali?
— Um pouco.
— Pena. Ia contá-la.
— Pode contar. Gostaria de ouvir sua versão.
— Agradeço. Em geral, as pessoas não gostam de
escutar os demais. Todo o mundo tem pressa, ou não tem
interesse... Kali? Bem, é a deusa da destruição. E, por
contraste, também a deusa da fecundação. Esposa de Xiva,
que, no princípio foi o deus da destruição. Entretanto, numa
luta que Xiva travou com certos demônios de não sei que
categoria, ele abandonou o campo. Kali, sua esposa, não
gostou disso e decidiu ela mesma lutar contra os demônios.
Teve êxito. Conta-se que, com gotas de seu próprio
sangue, era capaz de destruir milhares de seres infernais.
Ao mesmo tempo, ela bebia o sangue de seus inimigos,
deixando-os incapacitados para reproduzir-se. Kali
entusiasmou-se tanto com sua vitória, que prosseguiu a
luta, apesar dos rogos de outros deuses. Por fim, estes
pediram a Xiva que tranquilizasse sua mulher. Mas Kali
zombou do marido, derrubou-o e pôs-lhe o pé no peito,
depois lhe arrancou a língua... Entre outras coisas, convém
assinalar que Kali é geralmente mais conhecida com o nome
de Kali Ma, ou seja “mãe negra”. É uma curiosa
personalidade da mitologia hindu. Sabia de tudo isto?
— Sabia. Mas seu relato foi interessante, embora tenha
omitido a parte referente aos “meriahs”: os meninos
destinados ao sacrifício em exaltação a Kali. Meninos
inocentes que eram esquartejados vivos, queimados, ou
estrangulados simplesmente com faixas de seda em
holocausto à simpática deusa.
— Oh, é verdade... Mas tal prática não está mais em uso.
Os sacerdotes se conformam com degolar algumas
cabras.
Foi o que viu no templo, não? Eu poderia contar-lhe...
— Conte-me, antes, como foi possível que aparecesse
tão oportunamente perto de mim.
— Casualidade.
— Não, não... Por favor, não me julgue uma tola.
Acreditaria em casualidade se nos tivéssemos
encontrado num hotel, um salão de festas, um teatro... ou
num templo tranquilo, ao meio-dia. Mas sua presença numa
viela da qual eu talvez não soubesse sair, deve ter uma
explicação mais lógica; uma explicação que minha mente
ocidental seja capaz de compreender.
— De acordo. Você tem razão: não estava ali por
casualidade, mas para ajudá-la. Vi quando saiu do templo
perseguida pelos três tugues e pensei que devia lhe prestar
auxilio.
— Por quê?
— Por humanidade.
— Você é realmente inglês?
— Já sei que duvida disso, mas posso mostrar-lhe
documentos, passaporte... Atribua o meu inglês tão peculiar
a uma longa permanência na Índia, como lhe disse.
— Aceito. Agora: a que serviço você pertence?
— A que serviço...? Não compreendo...
— A que serviço secreto, Smith?
Roger Smith sorriu levemente. Depois, acendeu um
cigarro, olhou um momento para frente, através do para-
brisa. Súbito, tornou a sorrir.
— Ao MI 5 inglês. E você?
— À CIA norte-americana.
— Bem — suspirou Smith: — isto deixa as coisas mais
claras. Perdemos um bocado de tempo com bobagens, não
foi?
— O tempo, enquanto se está vivo, não tem importância.
Que faz você aqui perto de mim, Smith?
— Perto de você? — repetiu o inglês, levantando as
sobrancelhas. — Vejo que não entende... Pensa que eu a
vigiava?
— É evidente.
— Evidência falsa. Estava vigiando os três tugues.
— Por quê?
— Não me agradavam.
— O que muito estimo. Realmente não significa nada
para você o nome Nap?
— Nap? Não... Que deveria sugerir-me?
— Conhece algum faquir?
— Alguns. É uma gente curiosa. Que significa Nap, afinal?
— Nada... Nada de importante. Poderia deixar-me no
meu hotel?
— Mas... Eu pensei que poderíamos jantar juntos...
— Por que não? Mas ainda é cedo. Antes, gostaria de ir
ao meu hotel trocar de roupa, pôr uns sapatos...
— Claro... Claro! — concordou ele, rindo. — E, de
passagem, pode ser que encontre tempo para cumprir
alguns encargos da CIA.
— É possível. Compreenda que a CIA não me mandou
aqui para jantar com um agente do MI 5.
Roger Smith soltou uma gargalhada.
— Eu o mereci! Entretanto, talvez às oito possamos
encontrar-nos para jantar juntos. Será uma experiência
agradável... e nova para ambos.
— Para mim não será nova em absoluto. Costumo ter
boas relações com meus rivais, Smith.
— Formidável! Passo para apanhá-la às oito?
— Melhor às... Não. Eu irei buscá-lo. Em que hotel está?
— Pode rir: no “Ganges”.
— Muito típico. Qual a suíte?
— Dezenove. Qual é o seu hotel?
— O “Bengala”.
O ruivo lançou um assobio de admiração.
Evidentemente, a CIA era mais rica que o MI 5.
— Estou pensando numa coisa — disse ele: — já que
estamos em tão bons termos, talvez você me possa dizer o
que veio procurar em Benares.
— Não quero dizer.
— Oh... Está bem. Em represália, tampouco lhe direi o
que vim fazer aqui. Assim ficamos quites, não é mesmo?
— Não senhor: eu lhe devo a vida. Logo, o jogo não está
empatado.
— Esqueça isso.
— Não penso esquecer. Leva-me ao meu hotel?
— Sem dúvida.

Mudara de vestido, pusera outros sapatos e certificara-se de


que a pistolinha, já substituídos os cartuchos gastos, estava
firmemente aderida à sua coxa esquerda.
Decididamente, Benares não era a cidade mais
apropriada para se sair & rua sem armas. Além disso, ela
devia estar pronta para atirar logo de saída.
Levantou o telefone, pediu um carro e, enquanto
esperava, acendeu um cigarro, pensativa. Sobretudo,
pensava em Nap, que não parecia ter participado em nada,
exceto para dar-lhe instruções sobre o próximo contato, isto
é, sobre como encontrar o faquir chamado Mohamat Panduj,
na praça do templo de Vixnu. A menos...
Sim. A menos que Nap fosse um homem capaz de
aparecer como um ruivo de olhos verdes, dizer que
pertencia ao MI 5 inglês e, durante a conversa, empenhar-se
em estudar a agente que lhe tinham enviado dos Estados
Unidos. Claro que Nap tinha ficado no templo de Kali...
Bem, isso era o que ela pensava, mas tinha suas dúvidas
com respeito a Roger Smith. Em primeiro lugar, seria capaz
de jurar que ele não era inglês. Verdade que uma
permanência de muitos anos na Índia poderia emprestar à
fala de alguém um matiz especial, que ela não identificaria
exatamente, mas...
A batida na porta arrancou-a de suas elucubrações. Uma
batida idêntica à anterior, quando tinha recebido aquela
nota passada por baixo da porta. Levantou-se, foi até a
porta e, com efeito, a primeira coisa que viu foi o papel, no
chão.
Como na vez anterior, não se deu o trabalho de abrir
para investigar. Nap já demonstrara que era muito rápido de
movimentos. E teria estabelecido que ela, no momento, não
entrasse em contato direto com ele.
Apanhou o papel. A letra era a mesma. E também a
assinatura.
NÃO SE ESQUEÇA DE MOHAMAT PANDUJ. SINTO MUITO
NÃO TER PODIDO INTERVIR PARA AJUDÁ-LA. QUANTO AO
RUIVO DE OLHOS VERDES, NÃO SE CHAMA ROGER
SMITH, MAS YLLYA SOMAKYN, É RUSSO E AGENTE DA MVD
NA ÁSIA. É DOS MELHORES. CUIDADO COM ELE. PARABÉNS
POR SUA CORAGEM FRENTE AOS TUGUES.
NAP
Sem saber por que exatamente, Brigitte sentiu-se um pouco
irritada. Que estava pensando Nap? Em primeiro lugar,
solicitava um agente à CIA. Em segundo, fazia-a vir a
Benares. Em terceiro, deixava-a sozinha diante de três
estranguladores, nada menos. Em quarto, permitia-se supor
que ela pudesse esquecer o encontro com Mohamat Panduj.
Em quinto, recusava todo Contato pessoal, quando o que
devia ter feito era notificá-la de tudo quanto fosse
importante. Em sexto, tomava a liberdade de recomendar-
me que tivesse cuidado com Roger Smith, como se ela fosse
a espiã mais idiota do mundo. Em sétimo lugar...
— Estúpido! — xingou “Baby”, realmente irritada. —
Quem ou o que pensa ele que é? Se ele é Nap, eu sou
“Baby”. Veremos quem é mais importante na CIA.
O telefone tocou. Anunciavam-lhe que o carro solicitado
a esperava. Agradeceu, desligou, queimou a mensagem e
desceu ao vestíbulo. Entregou a chave ao encarregado da
portaria, apanhou seu passaporte, que com ele deixara para
efeito de registro, e saiu à rua pensando que se teria visto
em séria dificuldade se naquela primeira saída, à tarde,
houvesse precisado do passaporte, que ficara no hotel.
— Uma esmola... Uma esmola em nome de Brama... O
peregrino rogará a Brama pelo...
— Fora! — ameaçou o porteiro do “Bengala”. — Fora
daqui!
O mendigo que surgira diante de Brigitte recuou uns
passos. Só uns passos. Ficou quieto, em atitude implorativa,
curvado, arrimando-se em seu grande bastão, envolto de tal
modo em seu manto escuro que parecia uma simples
sombra trêmula.
O porteiro do hotel tinha aberto a porta do carro. Brigitte
sacou da bolsa uma nota de vinte dólares. Mas não a
entregou ao porteiro: avançou uns passos para o mendigo,
estendeu-lhe a nota.
— Tome... É para você.
— Jogue-a no chão — advertiu rapidamente o porteiro: —
é um intocável, mensahib!
Mas o mendigo não ousava aproximar-se, e ela deixou
cair o dinheiro no chão. Imediatamente, o intocável lançou-
se sobre a esmola, apanhou-a e começou a reverenciar
Brigitte, pedindo ao seu deus demência para a estrangeira
e, ao mesmo tempo, intercalando algumas palavras em
russo: — Tenha cuidado: Yllya Somakyn aguarda num carro
sua saída do hotel. Deve querer segui-la. Não comprometa
Mohamat Panduj.
“Baby” dominou prontamente sua surpresa. Entrou no
carro, que logo se pôs em marcha. Ao passar, viu ainda o
mendigo, inclinando-se repetidamente em direção a ela,
movendo seu grande manto imundo e andrajoso. Mas nem o
menor sinal de seu rosto, de suas mãos, de seus olhos ao
menos...
“Nosso agente em Pequim” estava-se revelando um
homem de suma eficiência, realmente. Vigilante, precavido,
dominando a situação... Um mendigo muito original,
decerto.

CAPÍTULO 4
Na praça do templo de Vixnu.
Um menino de olhos luminosos.
Mohamat Panduj conversa com os espíritos Nap negocia.

Saltou do carro, não sem uma certa desconfiança, na


praça do templo de Vixnu. De modo algum lhe agradaria
tornar a encontrar-se com mais alguns tugues dispostos a
estrangulá-la... ainda que com faixas de seda.
Também desta vez ia prevenida para disfarçar-se,
embora de um modo elementar. A praça estava abarrotada
de gente, especialmente de mendigos, que se precipitaram
para ela com as mãos estendidas. Havia mendigos de todas
as espécies e de todas as idades, desde o menino raquítico
até o mais decrépito e esquelético ancião de longas barbas
que se pudesse encontrar. Compreendeu que se desse
alguma esmola não a deixariam em paz, e resolveu afastar-
se rapidamente dali, deixando atrás a coorte gemebunda e
implorante.
Numa ruela próxima, abriu o embrulho que trouxera, o
qual continha um manto azul e umas sandálias. Tirou os
sapatos, envolveu-os no papel e deixou-os num canto.
Depois, colocou o manto sobre a cabeça, ao estilo da
mulher hindu. Enfiou as sandálias. Voltou à praça,
constatando com satisfação que seu disfarce tão simples
nem por isso era menos eficiente: nenhum mendigo
aproximou-se dela com a mesma avidez de antes. Alguns,
ao passar, estendiam-lhe a mão, imploravam, mas de
maneira normal.
Esteve vinte minutos caminhando pela praça,
examinando tudo. Havia bancas em que se vendiam coisas
as mais variadas: sandálias, aguardente de arroz, amuletos
diversos com cabeças de tigres, de elefante, de serpente,
de macaco, lenços para a cabeça, saris coloridos, vasilhas
de barro e cobre, flautas, cigarros, enormes cachimbos,
coca-cola... Alguns bazares eram bastante iluminados;
outros, ao contrário, pareciam antros sinistros. O templo de
Vixnu refulgia e alguns estrangeiros o contemplavam de
todos os lados da praça.
Num desses lados, um ancião hindu magérrimo, de longa
barba branca e turbante, O resto de sua indumentária
consistia numa simples tanga. Estava sentado sobre uma
tábua cheia de pregos pontiagudos, que se cravavam em
sua carne sem que ele, aparentemente, o sentisse. Tinha os
olhos fechados, em êxtase, os magros braços cruzados
sobre o peito ossudo. Não havia truque nos pregos, que
perfuravam realmente sua carne. Mas não escorria sangue,
nem o velho hindu parecia sentir a menor dor. Era o
processo iogue de separar o espírito da matéria; o espírito
abandonava o corpo e este, simples matéria, ficava
desamparado, insensível. Esta era a explicação, em poucas
palavras, mas Brigitte ficou pensando no modo de consegui-
lo. Sem dúvida, não seria fácil controlar a mente e de tal
maneira apartá-la da matéria, que esta não poderia
experimentar nenhuma espécie de sensação. Sim: muito
simples de explicar, mas...
O faquir, que na realidade parecia um iogue, estava
rodeado de gente, especialmente de estrangeiros, que o
contemplavam com expressão de assombro, ali sentado
sobre grandes pregos pontudos como se estivesse no mais
cômodo dos coxins, imperturbável, ausente. Um menino
passava um prato de cobre por diante de todos os
presentes, em silêncio; um menino de enormes olhos
negros, muito sérios, pensativos, que depois começou a
entoar uma espécie de cantilena em vários dialetos hindus
e em inglês: — Uma esmola para o santo peregrino... Um
auxílio para o grande iogue das montanhas, que veio a
Benares para orar e predicar... Siga-me... Uma esmola
grande para que Mohamat Panduj possa fazer esmolas
pequenas que reconfortam sua alma.
O menino deteve-se diante de Brigitte, agitando
levemente o prato de cobre.
— Uma esmola para... não se afaste. .. o grande iogue
das montanhas, que veio a Benares para orar e predicar...
Acompanhe-me... Uma esmola grande para que
Mohamat Panduj possa fazer esmolas pequenas...
Brigitte depositou umas quantas rupias no prato, sem
demonstrar espanto ou embaraço. O menino hindu
continuou passando o prato durante alguns minutos, sem
tornar a olhá-la uma vez sequer, incansável em sua
cantilena referente ao grande jogue das montanhas. O qual,
pouco depois, abria os olhos e ficava, imperturbável,
olhando para frente.
Permaneceu assim durante alguns segundos. Em
seguida, levantou-se lentamente, pisando sobre os pregos
pontiagudos como se formassem um macio tapete. Com
uma naturalidade quase majestosa, abandonou a tábua,
sem olhar para ninguém, e começou a caminhar, afastando-
se do grande círculo de curiosos em direção à viela mais
próxima.
— Mohamat Panduj retira-se para orar na solidão —
recitava o menino hindu. — Mohamat Panduj voltará
amanhã para oferecer seu sacrifício a todos os fiéis.
Soaram murmúrios de desencanto perto de Brigitte. Os
nativos e os estrangeiros começaram a circular, enquanto o
menino ia recolhendo a tábua de pregos, as moedas caídas
no chão. Brigitte o contemplava de uma distância prudente,
esperando o momento em que deveria segui-lo. Não
esperou muito; levando a tábua e as moedas, o menino
afastou-se em direção diversa da que fora tomada por
Mohamat Panduj. Tinha um passo vivo, rápido, decidido.
Mas “Baby” precisava de muito mais que o simples passo de
um menino para perder uma pista daquela importância.
Uma pista proporcionada pelo próprio Nap, o que, sem dar
lugar a dúvidas, indicava que Mohamat Panduj e o menino
dos grandes olhos negros eram seus amigos ou aliados
seguros.
Envolta em seu manto azul, caminhando a passos ágeis,
durante mais de meia hora Brigitte seguiu o menino, cujo
itinerário era realmente desconcertante. Pouco a pouco, a
direção de sua marcha se foi definindo, em direção à parte
oeste de Benares, perto da margem do Ganges, já quase
fora da cidade. Havia muitas choças, em sua maioria às
escuras.
Em algumas delas brilhava a luz de uma tocha; em
outras, no escuro, ouviam-se vozes que pareciam estranhos
cantos monótonos. Era como se a noite fosse mais densa
naquela zona da cidade. Alguns mendigos passavam como
sombras na sombra, perto de Brigitte, roçando às vezes o
menino dos grandes olhos negros.
Quase cinquenta minutos depois de ter abandonado a
praça do templo de Vixnu, ela viu o menino deter-se diante
de uma choça feita de barro e bambu, idêntica a tantas
outras. Súbito, o menino entrou na choça.
E tudo ficou em silêncio. Um silêncio espesso,
ameaçador, estranho, penetrado por vozes longínquas,
amortecidas.
“Baby” aproximou-se da choça, que não tinha porta, mas
uma simples esteira tapando a entrada. Afastou-a com a
mão, devagar, um tanto inquieta.
— Entre, agente “Baby”.
Era uma voz profunda, quase rouca. Uma voz velha,
lenta, sábia. O menino apareceu diante dela, a um lado da
entrada, e acabou de afastar a esteira.
— Venha, mensahib — murmurou: — Mohamat Panduj
está esperando.
Brigitte entrou. A cabana consistia numa única peça.
Havia uma tocha acesa a um canto. Em outro canto,
duas pequenas esteiras estendidas no chão. Uma vasilha de
barro que parecia conter água. Na verdade, não se poderia
dizer que ali houvesse mais nada. À exceção de Mohamat
Panduj, que estava sentado diante da porta, suas magras
pernas cruzadas, com os joelhos tocando o solo. Era uma
postura muito difícil de conseguir, mas o ancião hindu
parecia sentir-se a cômodo. Seu rosto fino, de pele
amarelenta, estava avermelhado pelo reflexo da tocha. Ele
era como uma planta já seca que milagrosamente,
permanecesse viva.
— Um homem chamado Nap me disse para entrar em
contato com o senhor — murmurou Brigitte.
— Ainda não está ouvindo — disse, com um leve sorriso,
o menino hindu. — Eu sou Tarab e sempre vou com
Mohamat Panduj. Nós dois somos amigos do homem que se
chama Nap. Não quer sentar?
“Baby” tornou a olhar para o velho faquir, sorriu, e
sentou-se numa das esteiras, tratando de fazê-lo à maneira
nativa, o que curiosamente ressaltou sua natural elegância.
Os odores não eram nada agradáveis ali, mas o gracioso
narizinho não se franziu por isso.
— Quem lhe disse que sou a agente “Baby”? —
perguntou, sem deixar de sorrir. — Nap, talvez? A verdade é
que não esperava resposta, pelo menos de Mohamat
Panduj. Por isso, surpreendeu-se um pouco ao ouvir
novamente a voz deste:
— Nap não sabe o nome da agente que viria encontrar-se
com ele em Benares.
— Mas o senhor sim... Quem lhe disse?
— Ninguém: eu sei. E sei mais... muito mais.
Ele ficou novamente em silêncio, imóvel, como se fosse
de pedra. Brigitte aguçou o ouvido e, com efeito, captou o
som levíssimo de um mecanismo: um som deslizante...
Contraiu as sobrancelhas. Pôs-se de pé e aproximou-se
de Mohamat Panduj. Certo: junto ao joelho direito do hindu,
viu um pequeno gravador em movimento, registrando o que
se falava na malcheirosa cabana. Olhou para Tarab e
encontrou os olhos luminosos do menino fixos nos seus.
Não parecia ter medo, mas estar à espera de alguma
coisa, vigilante.
Brigitte tornou a sentar-se sobre a esteira, ajeitando suas
roupas de modo a poder sacar com facilidade a pistola
colada à coxa esquerda.
— Seu verdadeiro nome é Brigitte Montfort — fez-se
novamente ouvir a voz pausada e sábia do velho hindu. —
Trabalha para um jornal chamado “Morning News”, da
cidade de Nova Iorque e o seu chefe chama-se Miky
Grogan... Frank Minello, um grande amigo... Charles Pitzer, a
quem chama “tio Charlie”... Chefe direto da agente “Baby”
em Nova Iorque... Johnny... Johnny... Muitos homens
chamados assim... Trabalha para a CIA com o nome de
agente “Baby” e sua carreira de espiã é cheia de êxitos...
Um homem chamado Cavanagh ama a agente “Baby”, mas
não o dirá nunca... A agente “Baby” tem fama de
indisciplinada, mas sempre cumpre suas missões... Às vezes
age por sua própria conta, em momentos decisivos, e já foi
julgada em estado de rebeldia por um tribunal que não a
puniu por admitir como legítimos os motivos humanos que a
levaram a contrariar ordens emanadas de seus superiores...
— Que brincadeira é esta? — interrompeu Brigitte. —
Como pôde saber...?
Tarab colocou-se diante dela e pediu-lhe silêncio com um
gesto. Mohamat Panduj parecia ter-se sobressaltado.
Levou quase um minuto para reassumir sua pétrea
imobilidade. E sua voz demorou ainda mais a fazer-se
novamente ouvir: — Brigitte Montfort, agente “Baby”...
Nascida em Paris em mil novecentos e trinta e nove... Mãe:
Giselle Montfort, solteira, fuzilada na prisão de Cherche Midi
pelos alemães... Pai: Fritz Bierrenbach, estrategista alemão,
desaparecido ao ter inicio a Segunda Guerra Mundial... A
menina foi levada para os Estados Unidos e criada por
parentes ricos de seu pai... Naturalizada americana...
Estudos na Universidade de Colúmbia...
— Quero que termine esta farsa — disse Brigitte. — E vai
ser agora mesmo.
Tarab inclinou-se junto dela, os olhos mais brilhantes do
que nunca.
— Não é uma farsa. Mohamat Panduj está recebendo o
fluido dos espíritos... Eles sabem tudo...
Brigitte, um pouco pálida ante aquelas revelações do
velho hindu, conteve-se, assentindo sombriamente com a
cabeça.
— Mas não quero que ele fale mais disso. Por que o faz?
— Nap quer que seja assim. É para saber se pode confiar
na mensahib.
— Então, eu também quero saber se posso confiar nele.
— Mohamat Panduj está agora em pleno transe. Pode
perguntar-lhe o que quiser. Mas Nap me mandou que antes
eu lhe fizesse perguntas, para saber se ele pode confiar...
— Faça as perguntas.
Tarab incorporou-se, olhando para Panduj.
— Pede nosso amigo Nap confiar na agente “Baby”?
— A agente “Baby” — informou Panduj — sempre
cumpriu sua palavra... Ela nunca traiu seus amigos...
— A CIA tem confiança na agente “Baby”?
— Absoluta.
— Ela foi encarregada de se encontrar em Benares com
nosso amigo Nap?
— Foi.
— Não há traição na mente da agente “Baby”?
— Nenhuma... Mas sua mente é muito livre... Toma suas
decisões no momento oportuno, nunca decide nada de
antemão... Mas se o que lhe pedem é justo, ela o fará, por
muito que lhe custe...
Tarab olhou para Brigitte.
— Foram essas perguntas que Nap me mandou fazer.
Mohamat Panduj vai acordar logo e...
— Um momento. Eu também quero saber se isto não é
uma fraude, ou uma armadilha. Quero perguntar alguma
coisa a Mohamat Panduj.
— Pergunte diretamente a ele, olhando para sua testa.
Brigitte obedeceu, perguntando: — Como e com quem
vivo eu em Nova Iorque?
— Quinta Avenida... Apartamento de luxo, com piscina...
Dois carros... Cento e cinquenta mil dólares anuais de
salário no “Morning News”... Ganhos nunca exatos na CIA...
Cem, duzentos, trezentos mil dólares por ano... No
apartamento há um homem, uma mulher, um cão muito
pequeno chamado “Cícero”... A mulher chama-se Peggy...
O homem chama-se... Não é possível saber seu nome...
Está dizendo que avisem Brigitte de sua visita... Diz que se
chama Número Um... Número Um, é esse o seu nome...
— Número Um está na Europa — murmurou Brigitte.
— Número Um está em Nova Iorque, agora... Deixa um
ramo de flores com a mulher chamada Peggy... Está triste...
Retira-se...
— Está bem, poderei certificar-me disso. Agora, quero
saber quem é Nap.
— Nap é...
— Não! — exclamou Tarab. — Nap não quer que isso seja
dito! Não deixe que os espíritos respondam, Mohamat
Panduj! Acorde!
Mohamat Panduj pareceu receber uma descarga elétrica.
Ergueu pesadamente as pálpebras. Pouco a pouco, o
brilho normal foi aparecendo em suas negríssimas pupilas.
Por fim, fixou o olhar em Brigitte. Depois em Tarab, o qual
assentiu com a cabeça.
Então, o velho hindu indicou a saída.
— Pode ir, mensahib.
— Está terminado?
— Está. Nap irá ao seu encontro.
— Mas... que espécie de tolice é esta? — reclamou
Brigitte. — Não gosto de perder meu tempo, Mohamat
Panduj!
— O tempo não se perde nem se acha. O tempo é
imutável e inalterável. Nossas vidas passam através dele,
sem modificá-lo. Pode retirar-se. Nap irá à sua presença.
Ela é de confiança, Tarab?
— Como? — estranhou Brigitte. — O senhor, com seus
truques de vidente, sabe muito bem que se pode confiar em
mim!
— Eu não sei nada. Por isso pergunto.
— Mas se acaba de demonstrar que sabe a meu respeito
muito mais que uma porção de gente a quem conheço há
anos...!
— Eu não sei nada. Servi apenas de intermediário aos
espíritos de luz. Por isso, Nap quis este aparelho perto de
nós. Ele ouvirá e decidirá.
Brigitte levantou-se, a testa franzida.
— Diga ao seu amigo Nap que ele me está parecendo
demasiado presumido, Panduj. Quem ele pensa que é? E
diga-lhe também que não estou acostumada a que os
agentes que me chamam para ser ajudados por mim
alimentem suspeitas a meu respeito. Quero um contato com
ele o mais breve possível. Um contato pessoal, direto. E
muitas explicações. Esperarei somente até amanhã ao
meio-dia. Se até então Nap não se dignar aproximar-se de
mim com as informações devidas, tomarei um aviso de
regresso aos Estados Unidos.
— Eu só lhe posso transmitir o que ele disse: deve agora
voltar ao hotel e esperar.
— Diga-lhe também que não tenho o hábito de obedecer
ordens de quem se comporta como ele...
— Nap tem seus motivos.
— Motivos? Que espécie de motivos?
— Seus motivos.
— Está bem. Não vamos discutir nós dois, Panduj. Não
pense que me engana: você é um velho astuto, um espião
como eu mesma e como Nap. Não é simplesmente um
hindu que se dedica a coisas raras.
— Também o Tarab é um espião?
— Por que não? Afinal de contas, todos estamos
trabalhando para a espionagem, não é assim?
Os ombros descarnados de Mohamat Panduj ergueram-se
levemente.
— Volte para o hotel e espere. É tudo quanto lhe posso
dizer. E não se preocupe: transmitirei a Nap suas palavras.
— Assim espero.
— Quer que Tarab a acompanhe? Este lugar, além de
estar longe do centro da cidade, não é nada seguro.
— Há muitos anos que cuido de mim mesma. E se não
me perdi no mundo, acho que não me perderei numa
cidade.
Estarei esperando notícias de Nap, em meu hotel, até
amanhã ao meio-dia. E para que se convençam de que não
estou brincando, poderão certificar-se, caso queiram, de
que vou pedir minha conta esta mesma noite. Adeus.
Saiu vivamente da choça, ainda irritada com Nap. Nunca
lhe havia sucedido que um agente trabalhando para a CIA,
da mesma forma que ela, evitasse o contato franco e direto
para esclarecer a situação e explicar os motivos pelos quais
pedira auxílio. Até o momento, Nap tinha-se limitado a
enviá-la de um lugar a outro, a interrogá-la por intermédio
de um farsante que “conversava com os espíritos”...
Evidentemente, Nap estava-se atribuindo demasiada
importância.
E, afinal de contas, quem ele pensava que era?

CAPÍTULO 5
Uma perigosa visita
Procura-se um microfilme
A faca na garganta

Última chance dada ao agente de Pequim Com efeito, a


agente “Baby” pediu sua conta tão logo chegou ao hotel,
encomendando além disso uma passagem de avião que
sairia de Benares no dia seguinte, às treze e vinte, com
destino ao Cairo.
— Mas vai retirar-se agora mesmo? — estranhou o
encarregado da portaria.
— Não, não. Quero apenas que me providenciem a
passagem e tenham minha conta preparada para amanhã.
— Está bem, miss Montfort.
Subiu à sua suíte, fechou a porta e dirigiu-se ao quarto.
Não tinha esquecido o compromisso com Roger Smith...
Quer dizer, o homem que, segundo Nap, chamava-se na
realidade Yllya Somakyn e era um dos melhores agentes da
russa MVD na Ásia. Evidentemente, Roger Smith, se era
certo que a estivera esperando à saída do hotel, não teria
podido segui-la até a praça do templo de Vixnu e, muito
menos, depois, até a choça onde Mohamat Panduj a
obsequiara com uma demonstração de seus poderes
sobrenaturais.
Brigitte ficou pensativa, diante do armário, olhando para
seus vestidos de noite, mas sem vê-los. Certamente,
Mohamat Panduj era um farsante, mas... Como teria sabido
tudo aquilo a seu respeito? Inclusive o nome de seu pai,
Fritz Bierrenbach, o homem que tinha sido o primeiro amor
de Giselle Montfort, a espiã francesa que lutara até sua
morte contra os alemães, a seu modo? Como soubera
também o nome do simpático cãozinho chihuahua,
“Cícero”? E o de Peggy... Porém o mais assombroso fora ele
dizer que, naquele mesmo instante, Número Um estava em
seu apartamento, perguntando por ela, e que lá havia
deixado um ramo de flores... Dispondo de boas informações,
qualquer pessoa poderia saber muitas coisas sobre Brigitte
Montfort. Mas era realmente difícil que Mohamat Panduj, e
Nap inclusive, com toda a sua eficiência, tivessem podido
saber algo sobre Número Um, o melhor espião americano na
Europa, o homem que jamais fora descoberto, mas sim
traído uma vez pela própria CIA, para a qual estivera
trabalhando lealmente3.
Era estranho. Mais que estranho, extraordinário!
— Tapeação! — pensou Brigitte. — Nada mais do que
isto. Acontece é que Nap deve ter informações
completíssimas a meu respeito...
Mas novamente assaltaram-na as dúvidas. Ninguém
poderia estar tão bem informado assim.
Encolheu os ombros e fixou sua atenção nos vestidos.
Escolheu um, deixou em cima da cama acompanhado da
adequada roupa interior e tirou o que usara aquela tarde.
Estava ainda um pouco impregnado daquele odor
desagradável que notara na choça de Mohamat Panduj. E
agora sim, torceu o narizinho. Acabou de despir-se,
entrou no quarto de banho e, após colocar-se sob o
chuveiro, dentro da banheira, fez jorrar a água fria. Soltou
um pequeno grito quando esta a envolveu como uma
cortina transparente, mas resistiu com galhardia,
friccionando-se 3 ver novamente: OPERAÇÃO: ESTRELAS
com o seu mais perfumado “gel” líquido. Livre já do
desagradável odor, permaneceu mais alguns minutos
expondo seu corpo maravilhoso à água fria, até desaparecer
o último vestígio de espuma. Saiu da banheira, enrolou-se
numa grande toalha e foi para o quarto, esfregando-se com
energia.
Acabava de secar-se, quando bateram na porta. Voltou-
se bruscamente, apanhou a pistola e colou-a, a toda pressa,
na coxa esquerda, como sempre. Depois, sempre envolta na
grande toalha, encaminhou-se para a sala. Deteve-se junto
à porta.
— Quem é?
— Abra — sussurrou uma voz. — É importante.
— Quero saber quem é.
— Abra. Tenho um recado do agente de Pequim.
Brigitte contraiu as sobrancelhas. Escondeu a mão direita
sob a toalha, simulando que a segurava para mantê-la
fechada sobre o peito, e abriu a porta com a esquerda,
apenas duas polegadas. Viu o rosto de um homem hindu,
plantado diante da porta; os olhos negros fixaram-se nos
dela, sorridentes.
— Podemos entrar?
Havia outro homem junto dele, também hindu. Ambos
estavam vestidos à européia, com trajos brancos bem
talhados. Abriu completamente a porta. Eles não se
moveram até que ela assentiu com a cabeça e, afastando-
se os deixou entrar. Fechou novamente a porta, sempre sem
perdê-los de vista, e ficou em expectativa.
— Então?
— Sabe de quem lhe falei? Refiro-me ao agente de
Pequim...
— Que desejam?
— O microfilme.
E dizendo isto, o hindu que tinha falado sacou uma faca,
avançando para Brigitte e apoiando a ponta em sua
garganta, enquanto com a outra mão segurava a toalha
sobre seu ombro.
Brigitte ficou em silêncio, aparentemente sem se alterar
muito. Olhou para o homem que a estava ameaçando,
depois para o outro, depois novamente para o primeiro.
— Espero que nos tenha entendido — disse este. —
Nosso inglês é muito bom, miss Montfort.
— Mas não sei de que estão falando.
— Não sabe quem é o agente de Pequim?
— Não.
— Mate-a — intrometeu-se o hindu que até então nada
havia dito. — Nós encontraremos o microfilme.
— Ela vai dizer onde está. Será muito menos incômodo
para todos... Então, miss Montfort?..
— Não sei de nenhum microfilme.
— Ora vamos, seja razoável. Pediu a conta do hotel,
encomendou passagem de avião... Isso quer dizer que
tenciona partir. Para o Cairo, no momento, mas supomos
que seu destino seja um pouco mais além, do outro lado do
Atlântico. E se deseja partir é que o agente de Pequim já lhe
entregou o microfilme.
— Garanto-lhes que não tenho microfilme nenhum.
— Noto que é muito serena e valente... E muito
mentirosa. Mas isso de nada lhe servirá. Também não
conhecia o faquir chamado Mohamat Panduj? Foi vê-lo hoje
mesmo na praça do templo de Vixnu, esteve presenciando
suas orações, depois foi atrás dele, guiada pelo menino que
o servia. Entrou na choça em que ele estava, demorou-se lá
algum tempo, saiu e voltou ao hotel.
Ao chegar aqui, pediu sua conta e uma passagem de
avião.
Isso quer dizer que já tem o que veio buscar em Benares.
E, portanto, vai-se embora. Mas se não nos entregar o
microfilme, ficará aqui para sempre.
— Estiveram os dois na choça de Mohamat Panduj?
— Uns amigos foram lã. Nós dois nos incumbimos de
segui-la e vigiá-la. Tínhamos que permanecer longe,
vigiando-a somente. Mas, claro, já que pediu a conta do
hotel e encomendou passagem, é que já está de posse do
microfilme e pretende levá-lo para os Estados Unidos. Não é
assim?
— Não.
— Olhe, miss Montfort...
— Não tenho o microfilme.
— Dou-lhe quinze segundos para entregá-lo, se não
quiser morrer.
Brigitte olhou para os olhos do hindu que mantinha a
ponta da faca apoiada em sua garganta. E compreendeu
que se nos próximos quinze segundos não encontrasse uma
solução, aquele homem a degolaria.
— Bem — disse, sorrindo. — Parece que Mr. Smith não
perdeu minha pista, afinal.
— Mr. Smith?
— Oh, quero dizer Yllya Somakyn... Sabem ser espertos
os homens da MVD. Mas: mas por que não veio o próprio Mr.
Smith pedir-me o microfilme?
O hindu franziu a testa.
— Está muito ocupado. Admite que tem o microfilme?
— Sem dúvida.
— Vai entregá-lo?
— Só se afastar a faca de minha garganta.
O hindu baixou a faca, mas não se afastou mais de meio
passo.
— Onde está?
— No quarto. Eu vinha do banheiro... Não posso vestir-
me? Estou apenas com esta toalha, e sinto-me um pouco...
constrangida, compreendem...
— Dê-nos o microfilme agora mesmo. E não se preocupe
com detalhes dessa espécie. Quando sairmos daqui, nada
terá a lamentar.
— Porque estarei morta? — murmurou Brigitte.
— Talvez. O agente de Pequim é escorregadio demais
para nós, de modo que podemos desejar ir à forra. Ele
esteve ao alcance de nossas mãos em várias ocasiões, aqui
em Benares. Mas parece capaz de dissolver-se como
fumaça. E como receio que você nos possa fazer o mesmo...
— Pagarei pelos vexames que o agente de Pequim lhes
fez passar. Não é isso?
— Outros já pagaram pelo agente de Pequim. Por que
não pagará também você? E estamos falando demais:
entregue-nos o microfilme e acabemos com isto; será
melhor para todos. Vamos.
Indicou o quarto com a faca, que não afastava muito da
garganta de Brigitte, a qual dirigiu-se para ali, seguida pelos
dois homens.
Uma vez lá, Brigitte indicou o armário.
— Está ali dentro, numa maleta vermelha com flores
azuis. Vou buscá-la...
— Já fez quanto era preciso. Agora...
A mão esquerda do hindu caiu sobre seu ombro, com
força, puxando-a para ele, ao mesmo tempo em que a
direita avançava rapidamente à altura de seus rins. A coisa
devia ter sido fácil: puxar Brigitte para trás e,
simultaneamente, adiantar a outra mão, cravando
profundamente a faca em suas costas.
Um golpe mortal... se tivesse chegado a seu destino.
Mas o hindu nem sequer teve tempo de surpreender-se
de que uma jovem de aspecto tão frágil e encantador
pudesse soltar-se de sua garra com tanta facilidade,
deixando-lhe na mão esquerda a toalha, simplesmente,
enquanto a direita desfaria um golpe no ar, já que “Baby”
dera um salto para frente, voltando-se no mesmo instante
em que apontava a pistola, a qual mantivera bem firme na
mão, à espera do momento propício para usá-la.
Plop!
O hindu, ainda desequilibrado, recebeu a bala entre as
sobrancelhas, caindo morto antes que pudesse recuperar o
equilíbrio.
E Brigitte também teria caído morta, com uma lâmina
cravada no peito, se não tombasse de joelhos
imediatamente, esquivando-se assim da faca arremessada
pelo outro hindu, que passou zunindo por cima de sua
cabeça e foi cravar-se no armário, com um golpe seco.
— Não se mova! — advertiu ela, ameaçando-o com a
pistola.
O hindu tinha suas próprias idéias a respeito. Após lançar
a faca e compreender que falhara, saltou imediatamente
sobre Brigitte, quando a ameaça desta ainda vibrava no ar.
Foi um gesto tão rápido, tão suicida, que desta vez quem se
surpreendeu foi ela ao vê-lo crescer à sua frente no instante
exato em que tornava a apertar o gatilho da pistola. Mas o
choque do corpo do hindu desviou a arma, e a bala foi
alojar-se no teto. Em seguida, um violento tapa do hindu
arrebatou-lhe a pistola, enquanto com a outra mão ele
agarrava-a pelo pescoço, apertando-a brutalmente contra o
chão. Tão brutalmente, que lhe teriam bastado poucos
segundos para a estrangular, se com um hábil golpe de
cotovelo contra o cotovelo do estrangulador, ela não tivesse
podido dobrar-lhe o braço, com o que todo o peso dele caiu
sobre seu corpo.
Mas Brigitte Montfort tinha saído de maiores apertos.
De modo que quando o hindu caia sobre ela, já tinha
colocado a mão direita entre ambos, com a palma para
cima. Seus finos dedos afundaram sob as falsas costelas do
homem, e deram um puxão para fora. Um golpe pouco
perigoso, mas dolorosíssimo... Tanto, que o hindu soltou um
grito de dor, relaxou a tensão que exercia sobre Brigitte e
esta, contorcendo-se violentamente, lançou-o para um lado
e levantou-se de salto, procurando açodadamente a pistola.
Estava bem atrás dele, a um canto, perto da porta que
dava para o quarto. O hindu também a viu, naquele mesmo
momento. Estava de joelhos no chão e precipitou-se para a
arma, enquanto Brigitte o fazia em direção ao armário.
Ele apanhou a pistola, voltou-se, ouviu o zunir, a
campainha do telefone... E nada mais, porque sua própria
faca, que antes havia lançado contra Brigitte, cravou-se em
seu coração. Seus olhos giraram velozmente, sua boca se
abriu, e súbito caiu de bruços, cravando mais a lâmina no
peito, soltando a pistola.
Enquanto isto, a campainha do telefone continuava
tocando.
Brigitte suspirou profundamente, foi ao aparelho,
levantou-o com a mão ainda trêmula, clareou a voz o
melhor que pôde e respondeu ao chamado.
— Alô...
— Foi tudo bem? — ouviu.
— Como?
—Refiro-me aos dois homens... Que aconteceu?
— É você, Nap?
— Claro. Pôde livrar-se deles?
— Oh, sim... Agradeço seu interesse, querido. Continue
bem escondido, desfazendo-se em fumaça cada vez que
algo não vai bem. Já sabe que deixarei Benares amanhã ao
meio-dia?
— Saia do hotel dentro de dez minutos. Deixarei que
você me veja. Então, siga-me de longe. E não se preocupe
com esses homens.
— Oh, não tenha receio, não o importunarei com meus
problemas.
Clic.
Brigitte ficou olhando para o telefone, cada vez mais
irritada com o agente de Pequim. De acordo: ia segui-lo,
pela última vez, obedeceria a suas instruções. Desligou,
começou a vestir-se rapidamente, enquanto pensava na
perigosa visita que vinha de receber. Poderia Nap dar-lhe
alguma solução a respeito dos cadáveres?
CAPITULO 6
O esquivo agente de Pequim
Perigo na fronteira sino-siberiana!
Uma pequena cápsula de plástico vermelho À luz de um
isqueiro

Viu-o quase que imediatamente, ao sair para a rua.


Havia outros mendigos ousados, que se atreviam a
pedinchar pelo centro de Benares, mas uma espiã deve
sempre saber distinguir uma banana de outra, por difícil que
pareça. E assim, identificar o mendigo que horas antes a
advertira de que Yllya Somakyn estava à espreita não foi
difícil para Brigitte.
O porteiro do “Bengala Hotel” apressou-se, obsequioso, a
oferecer-se para chamar um táxi, mas “Baby” recusou,
sorrindo. E para não desgostá-lo, deu-lhe uma nota de cinco
dólares, em autêntica moeda americana.
Depois, começou a caminhar, lentamente, olhos fixos no
fugidio Nap, oculto sob os andrajos de um mendigo. Um
entre tantos mendigos... Sem dúvida, Nap também tinha um
grande poder de percepção: captou que Brigitte estava
pronta para segui-lo e pôs-se a caminho, afastando-se dali,
coxeando lastimosamente, todo curvado. “Baby” seguiu-o
durante mais de meia hora. A princípio, sorrindo, porque via
naquele mendigo claudicante um astuto espião que
antepunha sua segurança a qualquer outra coisa do mundo.
Depois, pouco a pouco, assumindo uma expressão de
aborrecimento, porque Nap ia-se afastando sempre mais do
centro da cidade, em busca de lugares isolados e escuros.
Ainda precisou de outros dez minutos para compreender
que a direção em que iam podia muito bem levá-los
diretamente à choça onde tivera lugar sua curiosa
entrevista com Mohamat Panduj e o menino de grandes
olhos negros chamado Tarab.
Entretanto, não chegaram até lá. Pouco antes, o mendigo
desviou-se, seguindo diretamente para o rio. E “Baby”
Montfort, que novamente recorrera ao seu manto azul,
esforçava-se por não perdê-lo de vista, coisa na verdade
difícil, para ela inclusive, que possuía não pouca experiência
de casos semelhantes. Indiscutivelmente, Nap pertencia a
essa classe de homens capazes de escapar do mais cerrado
cerco. Ela chegou a esta conclusão quando já estava muito
perto da beira do rio e deixara completamente de ver o
mendigo. Se ele conseguia isso com uma pessoa
experimentada e pela qual desejava ser seguido, o que não
conseguiria em outras quaisquer circunstâncias?
— Por aqui, agente “Baby”.
Ela sobressaltou-se, apesar de reconhecer
imediatamente à voz como pertencente a Nap. Era uma voz
inconfundível: muito clara como se o espião de Pequim
tivesse o maior esforço para não deixar dúvidas a respeito
do que dizia.
Uma voz clara, mas forçada, tensa.
— Onde você está? — perguntou Brigitte.
— Siga em frente. Isso mesmo... Cuidado, há um pouco
de lama aqui. Para a direita... Exato. Passe para o outro lado
das árvores... Agora.
Brigitte encontrou-se num lugar escuro, rodeado de
árvores. Diante dela, a corrente escura das águas do
Ganges, que faziam um rumor surdo, opressivo, quase
tétrico. Havia lua, mas sua luz mal chegava até ali.
E perto dela, a silhueta do mendigo, agora já não
curvada, mas ereta, alta e forte.
— Você é uma agente de grande eficiência, “Baby” —
tornou a ouvir a voz. — Não é fácil vencer dois homens
como os que subiram para visitá-la.
— Teria sido mais fácil se você me tivesse telefonado
antes, avisando-me de que eles iam subir, em vez de
telefonar depois para saber se eu ainda vivia.
— Tem razão. Mereço a censura. Mas não me foi possível.
— Não? Bem... Podia ter subido para ajudar-me
pessoalmente, não lhe parece, Nap?
— Não é fácil entrar num hotel.
— Está gracejando?
— Não gracejo nunca. Menos ainda quando está em jogo
a vida de um companheiro da CIA.
— Nap... ou seja, Nosso Agente cm Pequim: você
trabalha realmente em beneficio da CIA? Garanto-lhe que
tenho minhas dúvidas a este respeito. E faça o favor de sair
da sombra. Gosto de ver a cara das pessoas com quem
estou falando.
— Lamento, mas terá que ser assim. Você aí, tranquila.
Eu aqui, oculto de seus olhares... Suponho que possa
distinguir minha presença.
— Gosto de ver a cara de meus amigos... ou de meus
inimigos, Nap.
— A minha não poderá ver.
— Receia alguma coisa?
— Em absoluto, “Baby”. Não tenho receio de nada, nem
de ninguém.
— Tal como eu, querido. Para inspirar-me um medo forte,
seria necessário muito mais que um homem envolto em
farrapos. Não nego que já senti medo em muitas ocasiões...
Não faz muito, por exemplo, quando surgiram dois homens
dispostos a matar-me sem motivo suficiente.
Mas é um medo normal, passageiro, fugaz. O medo
lógico da morte que qualquer pessoa pode sentir. Mas não é
um medo aterrador, paralisante... Por que haveria de ter
medo de nada?
— Muitas pessoas têm medo de nada. Ou talvez de algo
intangível, ou invisível. Mas deixemos esta questão.
Compreendo muito bem que dois agentes da CIA não
sejam as pessoas mais adequadas para permitir-se o luxo
de ter medo.
— Por que se esconde tanto de mim? Teme alguma
indiscrição?
— Talvez.
— Nap, em frequentes viagens por todo o mundo, tenho
conhecido dezenas de agentes da CIA. Nem um só deles
viu-se em apuros posteriormente devido a qualquer
indiscrição minha. Se me conhecesse bem, saberia que
nada é mais precioso para mim que aquele ou aqueles que
colaboram comigo. Nem sequer fazendo-me em pedaços
conseguiriam que eu traísse um de meus companheiros.
Portanto, venha cá, deixe-me ver sua cara e sejamos
amigos... Acabemos isto como amigos. Não quisera deixar
Benares com a idéia de que Nap é um estúpido.
— Pode pensar de mim o que quiser. Mas permanecerá ai
onde está e eu aqui. Ou isso, ou a entrevista está
terminada, “Baby”.
Brigitte suspirou, decepcionada e aborrecida.
— Está bem, Nap. Terminemos o assunto. Mas você não
me conhece o bastante: saiba que quando tiver cumprido
minha missão, a voltarei à Ásia. E o encontrarei, não tenha
dúvida. E saberei como e quem você é. Agora, como a coisa
deve ser urgente, e nós somos inteligentes e meticulosos
em nossos empreendimentos, diga-me o que tem a dizer-
me e separemo-nos. Correto?
— Correto, “Baby”. Foram pedir-lhe o microfilme?
— Pedir? Bem, não é essa a palavra exata. Puseram-me
uma faca na garganta, querido; deram-me pancada,
estiveram a ponto de me estrangular, atiraram-me uma
faca, quiseram disparar contra mim minha própria pistola...
Não foi divertido, asseguro-lhe. E já que tocamos no
assunto: que faremos com os cadáveres?
— Esqueça-os. Uns amigos meus já os devem ter retirado
do hotel. Dentro em pouco, o Ganges levará os seus
visitantes. Vou entregar-lhe um microfilme que você...
— Espere, Nap, pelo amor de Deus: você é norte-
americano, é uma pessoa consciente e inteligente... Diga-
me o que é que está acontecendo.
— Não há tempo. Limite-se a aceitar o microfilme.
Depois, regresse ao hotel, prepare sua bagagem e volte
aos Estados Unidos no primeiro avião. A Washington.
Entregue o microfilme à CIA e esta tomará todas as
providências que correspondem ao caso.
— Que sucederá com você?
— Não se preocupe por mim. O microfilme está...
— Nap, você está em perigo. Em grave perigo, eu sei.
Foi localizado, identificado. Em Benares não poderá
sobreviver mais que dois ou três dias. Diga-me como posso
ajudá-lo.
— Partindo imediatamente, o mais depressa possível,
para os Estados Unidos.
— Isso eu farei quando achar oportuno, não antes. Que
está acontecendo, Nap? Permita-me que o ajude.
Houve uns segundos de silêncio. Por fim, ouviu-se
novamente a voz do agente de Pequim: — Quer realmente
ajudar-me?
— Sempre que posso ajudo meus companheiros. Você,
para mim, não é mais que um desses rapazes que arriscam
a vida fazendo coisas que, em geral, beneficiam o mundo...
Em primeiro lugar, aos Estados Unidos, eu sei. Mas, de
um modo geral, você, eu, outros como você e como eu, isto
é, os espiões humanos, lutamos mais que por benefício
próprio ou de nosso país: pela manutenção da paz mundial.
Nap, que posso fazer por você?
— Você fala de um modo muito... solidário “Baby”. Não é
fácil acreditar que exista uma mulher de sua categoria.
— Bem — disse ela, sorrindo — eu estou aqui, é um fato
indiscutível. Portanto, existo. De que se trata, Nap?
Diga-me o que tenho que fazer, e prometo ajudar a você,
a Tarab, a Mohamat Panduj... Tentarei retirá-los de Benares.
Da Índia, se preciso.
— Mohamat e Tarab não sairão mais da Índia, “Baby”.
Brigitte mordeu os lábios. Estava certa de que
compreendera perfeitamente o significado das palavras de
Nap, mas resistiu à idéia de aceitar como definitivo tal
significado.
— Que quer dizer, Nap?
— Estão mortos.
— Mohamat Panduj? E... e o menino chamado Tarab?
— Os dois.
— Mas... Mataram um menino?
— Cravaram-no contra a parede de bambu, “Baby”.
Com uma faca quase tão grande como ele. Pude vê-lo
antes de escapar.
— Antes de escapar...! — quase gritou Brigitte. — Que
quer dizer com isso, Nap? Acaso estava lá?
— Estava. Foi buscar o gravador em que ficou registrada
sua conversa com Mohamat Panduj. Por meio da gravação,
fiquei sabendo que você pertence e é leal à CIA. E,
portanto...
— Deixe isso! Está-me dizendo que viu quando
assassinavam um ancião sem forças e um menino de
grandes olhos inteligentes, Nap?
— É o que estou dizendo. Quando você saiu da choça, eu
fui lá. Mohamat Panduj e Tarab deram-me as informações
que eu desejava. Mas não pude fazer funcionar o gravador,
pois fomos atacados. Eram três homens, “Baby”. Entraram
subitamente na choça e um deles degolou Mohamat Panduj.
Outro agarrou Tarab pelo pescoço, levantou-o e cravou-o
com sua laca na parede, pelo ventre. Creio que o deixou
ficar assim... Deve ainda estar lá.
— Que fez você?
— Escapei por uma das janelas da choça. Tudo foi
demasiado rápido. Deduzo que você foi seguida por alguns
homens. Três deles foram os que mataram Mohamat e
Tarab. Os outros dois seguiram-na até o hotel... Devem ter
sido estes os seus visitantes.
— Mas... Mas isto é inacreditável, Nap! Você não ajudou
Tarab e Mohamat, deixou que seus assassinos
escapassem... Limitou-se a fugir! E depois, convencido de
que outros dois homens iam subir para matar-me, deixou
que eu me arranjasse sozinha... E agora aqui está,
conversando tranquilamente comigo... Você procedeu como
um miserável covarde, Nap!
— É possível. Escute, “Baby”: primeiro, mandei um
amigo ao seu hotel, para que passasse a primeira nota por
baixo da porta. Esse amigo foi localizado... Eles seguiam a
mim, despistei-os, então se puseram a seguir o meu amigo.
Por meio dele, ao vê-lo entrar no “Bengala Hotel” e
passar a nota por baixo de uma porta, localizaram você.
Então, mandaram os três tugues para matá-la. Queriam
deixar-me só em Benares, encurralar-me. Esse primeiro
amigo eles mataram depois que lhes serviu para localizar
você, quer dizer, a outro dos amigos do agente de Pequim.
Você, ao sair do templo de Kali, conseguiu livrar-se dos
tugues. Mas de qualquer modo já a tinham localizado. Por
isso, quando tornou a sair do hotel, seguiram-na, viram-na
entrar em contato com Mohamat e Tarab, continuaram
seguindo-a e terminaram por matar outros dois amigos
meus. Também quiseram matar você. Chega, “Baby”. Não
quero que outros amigos meus morram por ajudar-me.
Assim, arrisquei-me a utilizar um telefone para dizer-lhe que
saísse do hotel e me seguisse...
— Arriscou-se? — interrompeu-o acremente Brigitte. —
Eu penso que devia ter subido para ajudar-me, Nap, pois
sabia que dois dos cinco homens que me tinham seguido
desde o templo de Vixnu iam à minha suíte.
— Já foi difícil conseguir telefonar para você, “Baby”.
Teria sido impossível entrar em seu hotel. Mandei a
primeira nota pelo primeiro amigo, que já está morto. A
segunda, por Tarab... Os dois morreram. Já não quis arriscar
meus amigos, por isso arrisquei-me eu a usar um telefone.
Não podia entrar no hotel, compreenda.
— Não podia? Por quê? Se seu primeiro amigo e o
menino chamado Tarab entraram, creio que você o faria
ainda mais facilmente. Mas tudo o que sabe fazer é ir de um
lado para outro, mostrando quais são os seus amigos... para
que sejam mortos. Por meio de você, descobrem seu
primeiro amigo; você escapa, mas ele não. Depois, além de
matarem seu primeiro amigo, sabem onde estou eu e, por
meu intermédio, sabem como encontrar Mohamat e Tarab.
Matam os dois, estão a ponto de matar-me... E você diz
que não podia arriscar-se a entrar no hotel. E diz também
que quando invadiram a choça e mataram Mohamat e
Tarab, você escapou por uma janela, apesar de ter visto
Tarab ser cravado com uma faca na parede de bambu...!
Você... você está louco, Nap! Vai deixando atrás de si um
rasto de amigos e agentes da CIA, que são os que ficam em
perigo enquanto você se evapora. Ou está louco, ou é um
traidor, ou é a pessoa mais covarde que já encontrei na
vida! Sabe o que penso que deveríamos fazer agora, Nap?
Nosso Agente em Pequim demorou mais de dez
segundos para falar, roucamente: — Que deveríamos fazer?
— Ir buscar Roger Smith... ou Yllya Somakyn, o homem
que segundo você pertence à MVD, e fazê-lo arrepender-se
de seus assassinatos.
— Não estou certo de que Yllya seja culpado de tudo isto,
“Baby”.
— Como...? Não compreendo, Nap. Está sugerindo que
não foi Yllya Somakyn quem organizou esta ofensiva contra
nós é contra seus amigos pessoais?
— Não estou certo de que tenha sido ele. Na verdade,
creio que não foi.
— Quem foi, então? Quem matou seu primeiro amigo,
quem mandou que os tugues me assassinassem, quem
massacrou Mohamat Panduj e Tarab, quem enviou dois
homens para liquidar-me depois de tirar de mim um
microfilme que desconheço? Quem, Nap?
— Penso que se chama Andrio Padjan.
— Andrio Padjan? É hindu?
— É.
— Mas quem é, onde vive, a que se dedica, que papel
desempenha em todo este assunto?
— Está trabalhando para a espionagem chinesa.
Brigitte pareceu receber um golpe em pleno peito. Deu
um passo para trás e olhou incredulamente aquele montão
de farrapos, esforçando-se por ver ao menos o brilho dos
olhos de Nap, mas sem o conseguir.
— Para a espionagem chinesa... Não compreendo, Nap.
Que tem a ver a espionagem chinesa com tudo isto?
Espere... Espionagem chinesa... A MVD... Em que entaladela
está você metido, Nap?
— Vejo que vai compreendendo, “Baby”.
— Não tanto quanto quisera. Que acontece, afinal?
— Tentarei explicar em poucas palavras. Alguns dias
atrás, em Pequim, um chinês ao qual eu estava vigiando
partiu para a fronteira da Sibéria. Segui-o. Em determinado
lugar da fronteira, ele pôs-se em contato com outro chinês,
que lhe entregou um microfilme. Sei disso muito bem
porque matei os dois e fiquei com o microfilme.
— É o que vieram exigir de mim?
— Exato.
— Que contém?
— Espere... Eu matei o chinês da fronteira e o que tinha
saído de Pequim. E escapei com o microfilme, mas seguido
muito de perto por agentes da MVD, que estavam
precisamente vigiando o chinês que apareceu na fronteira
da Sibéria para entrevistar-se com o que viera de Pequim...
Está-me acompanhando?
— Naturalmente.
— Bem. Depois de matar os dois chineses, regressei a
toda pressa para Pequim. Um trajeto longo, pesado,
perigoso... Ao chegar a Pequim, compreendi que tanto a
espionagem chinesa como a MVD estavam no meu encalço.
A primeira porque queria o microfilme que seu agente
havia conseguido na fronteira sino-siberiana; a segunda
porque, logicamente, também queria aquele microfilme, o
qual, sem dúvida, continha informação valiosa para os
chineses e, portanto, tinha que ser recuperado. Agora,
pense nisto: um agente como eu, encurralado em Pequim,
com um microfilme que interessava tanto aos chineses
como aos russos. Fiz a única coisa que me pareceu
prudente: chamar pelo meu rádio de longo alcance um
agente a Benares, a fim de entregar-me o microfilme. E vim
para Benares. E se lhe interessa saber, não foi fácil chegar
até aqui, agente “Baby”. Leve em conta que tenho em meus
calcanhares a MVD...
— E a espionagem chinesa, claro.
— Não creio... Foram menos espertos. Mas a MVD tem
muito bons olhos e ouvidos cobrindo toda a Ásia. Sabe que
o agente de Pequim que trabalha para a CIA está agora em
Benares.
— E os chineses não sabem?
— Também. Mas são mais... cautos. Não querem fricções.
A todo custo, desejam manter, no momento, boas relações
de vizinhanças, dentro do possível, é lógico. Portanto,
mobilizaram seus agentes na Índia, dos quais se não estou
enganado, Andrio Padjan é o chefe absoluto. Isso eu vim a
saber na fronteira sino-siberiana.
— Creio que estou entendendo tudo, Nap: você
conseguiu o microfilme matando dois chineses, soube da
existência de Andrio Padjan e veio a Benares, que é onde
ele tem sua residência. E embora se sabendo perseguido
pela MVD e possivelmente pelo serviço secreto chinês,
deteve-se aqui, pedindo que fosse enviado um agente de
primeira classe da CIA para entregar-lhe o microfilme.
— Exato.
— Muito bem. Agora, suponhamos que eu me encarregue
do microfilme e regresse aos Estados Unidos.
Que acontecerá?
— Não sei.
— Não? Pois é bastante claro, Nap: você está em
Benares, rodeado de agentes da MVD que querem o
microfilme, e de agentes hindus que trabalham para a China
e que também querem o microfilme. Se eu me retiro com
este, você ficará praticamente sozinho aqui... Não
compreende o que isto significa?
— Perfeitamente. E isso mesmo é o que eu queria.
Quando o microfilme estiver a caminho de Washington,
as coisas vão mudar. Para isso vim a Benares.
— Pensei que tinha vindo a Benares porque aqui não
correríamos perigo, nem você nem eu, Nap.
— Você já correu o seu. Quando se for, eu farei o que vim
fazer em Benares. Não a chamei aqui porque não houvesse
perigo, mas por motivo diametralmente oposto.
Em primeiro lugar, queria entregar o microfilme a um
agente da CIA. Em segundo, quando esse agente estivesse
de regresso aos Estados Unidos, atacar Andrio Padjan e
destruí-lo. Não me agradam os hindus que trabalham para a
espionagem chinesa. E Andrio Padjan é o chefe da
organização de espionagem pró-China na Índia.
— E você quer matá-lo?
— Quando você estiver a salvo, a caminho de
Washington.
— Que me diz da MVD?
— Isso é outra coisa. Por pouco que possa, me limitarei a
esquivar-me. Compreendo muito bem que os russos
trabalhem para a Rússia. Mas não gosto dos hindus que
estão trabalhando para a China. Você concorda comigo, sem
dúvida.
— Sem dúvida — repetiu Brigitte. — Quer dizer que você,
além de esquivar a MVD em Benares, e de entregar-me o
microfilme que a MVD, os chineses e os espiões hindus pró-
China desejam, pensa liquidar Andrio Padjan, que é,
conforme diz, o chefe da espionagem a favor da China em
toda a Índia.
— Perfeitamente correto — confirmou Nap.
— Você está louco. Quer fazer tudo isso sozinho, Nap?
— Tentarei.
— Mas... é absurdo. Já tem o microfilme, não? Pois me
entregue, eu o levo a Washington e você regressa a Pequim,
ou escapa para onde quiser. Por que se arriscar?
Entregando-me o microfilme, você já deixa concluído um
trabalho meritório, Nap.
— Eu sei. Mas quero que minha última missão seja
bastante celebrada. Quero que a CIA nunca se esqueça de
mim.
— Sua última missão? Pensa afastar-se depois disto?
— Exato.
— Compreendo.
— Não. Você não compreende nada, “Baby”.
Absolutamente nada.
— Bem. Quando um espião se retira, Nap, é fácil
compreender seus motivos.
— Não os meus.
— Se os explicasse...
— Não vou explicar nada a você, ‘Baby”.
— Vejo que volta a ser estúpido e presunçoso, Nap —
resmungou Brigitte. — Que pensa você de si mesmo?
Acredita talvez que seja o único, o melhor de todos, o mais
esperto e valente, o mais qualificado de toda a CIA?
— Nossa conversa está terminada, “Baby”. Fui
demasiado explícito com você, demasiado benévolo, na
realidade. Suponho que a admire um pouco, e que isso me
fez falar mais do que desejava.
— O que acontece é que você faz questão que na CIA
todos saibam quem vai liquidar Andrio Padjan e pôr termo a
seus trabalhos em favor da espionagem chinesa.
— Talvez. Pode ser que você comunique isso à CIA.
Pode ser que não. Mas eu o farei. E sozinho. Agora,
tratemos do microfilme que você deve levar, com absoluta
prioridade sobre qualquer outro empreendimento ou desejo,
a Washington. Creio que está bem claro.
— Está bem claro, Nap. Posso saber o que contém esse
microfilme?
— Lógico. Contém nem mais nem menos que a situação
das tropas russas em toda a fronteira sino-siberiana. São
mais que trinta divisões soviéticas. Você naturalmente sabe
o que está acontecendo no momento: os chineses querem
certas zonas da Sibéria, reclamam-nas. Um milhão e meio
de quilômetros quadrados, aproximadamente. A reclamação
foi feita oficialmente a Moscou. Enquanto isso, tropas
chinesas, assim como milhares de camponeses chineses,
estão rondando a fronteira. Alguns camponeses têm entrado
na Sibéria, apoiados pelas tropas. Por sua vez, as tropas
russas permanecem na expectativa ao longo de uma linha
de oito mil quilômetros. Pois bem, o microfilme que vou
entregar a você dá a posição dessas trinta divisões russas,
assim como a tática que utilizariam para rechaçar uma
possível invasão chinesa. O serviço secreto da China
pagaria dezenas de milhões por este microfilme. Por sua
vez, os russos fariam qualquer coisa para recuperá-lo, pois
isso significaria que seus planos táticos ao longo da
fronteira sino-siberiana não teriam que ser modificados. Se
esses planos não forem alterados, tudo irá bem, porque,
assim como estão as coisas, a China jamais poderá invadir a
Sibéria. Mas se os russos tivessem que alterar esses planos,
tudo ficaria desequilibrado e a China poderia tentar lima
penetração. Isso, contemplado com um certo pessimismo,
poderia significar...
— A Terceira Guerra Mundial — murmurou Brigitte.
— Com todas as suas consequências — admitiu
sombriamente Nap.
— Santo Deus! Você está percebendo, Nap? Nós dois
podemos impedir a deflagração dessa Terceira Guerra!
— Assim é. Bastará que o microfilme chegue a
Washington sem ter passados pelas mãos dos chineses ou
dos agentes que para eles trabalham. Leve-os aos Estados
Unidos. Eu, aqui, farei o possível para liquidar os que dele
estiverem mais próximos.
— De acordo. Completamente de acordo, Nap. Por minha
parte, asseguro-lhe que ninguém conseguirá esse
microfilme. Entretanto...
— Quê?
— Conviria avisar os russos que o microfilme não está
em poder dos chineses. Isso manteria as coisas num estado
estacionário. Em contraposição, se os russos suspeitam que
a China tem o microfilme com os planos de vigilância e
táticas a serem empregadas, talvez modifiquem seus
dispositivos militares. E se tal fizerem, talvez a China
proceda à invasão dos territórios que reclama na Sibéria.
— Bem, não sei... Talvez conviesse mesmo dizer-lhes que
o microfilme, simplesmente, acha-se em poder da CIA e não
da espionagem chinesa.
— Eu me encarregarei disso... após certificar-me de que
ninguém poderá tirar-me o microfilme.
— Avisará a Rússia, a MVD?
— Por que não? — disse Brigitte, sorrindo. — Encontrarei
o meio, acredite.
— Suponho que antes consultará a CIA. Acha que é
preciso?
— Naturalmente: para ela trabalhamos, não?
— Claro. Claro, Nap: estamos trabalhando para a CIA. E o
microfilme?
— Tem isqueiro, ou fósforos?
— Isqueiro.
— Cinco passos à sua frente verá um montão de papéis
velhos. Ponha-lhes fogo. Quando só restarem cinzas,
revolva-os: encontrará o microfilme dentro de uma cápsula
não inflamável, um pouco maior que um grão de arroz. É
vermelha. Creio que poderá distingui-la facilmente. Em
seguida, terá apenas que voar para os Estados Unidos. E
consulte a CIA sobre isso de avisar a MVD.
— Bem. E que me diz de você, Nap?
— De mim?
— Claro... Não posso vê-lo?
— Não!
— Não seja absurdo: pode confiar plenamente em mim,
Nap.
— Estou convencido disto. Mas não tenho interesse em
estreitar relações, ou em que nos conheçamos melhor em
qualquer sentido; temos um trabalho comum, você parece
capaz de cumprir sua parte... Cumpra-a. E tudo.
— Vejo que torna a ser intratável, Nap — reclamou
Brigitte.
— Lamento. Ah: tenho aqui o gravador que registrou sua
conversa com Mohamat Panduj. Sua história pessoal e
profissional é muito interessante, mas creio que seria
melhor aproveitar o fogo para queimar a fita. Incendeie os
papéis e afaste-se. Eu mesmo a lançarei ao fogo.
Brigitte adiantou-se dois passos, acendeu o isqueiro e, à
luz da pequena chama, viu o montão de papéis. Ao mesmo
tempo, ouvia algo que deslizava pelo chão. Inclinou-se e
lobrigou o pequeno gravador, sem a fita magnética.
Ouviu a voz de Nap.
— Incendeie os papéis e afaste-se um pouco.
Obedeceu, um tanto irritada. Quando se ergueram as
primeiras chamas, a sombra andrajosa do mendigo
apareceu um instante junto ao fogo, e a fita caiu sobre as
chamas.
Imediatamente, Nap regressou às sombras, apenas
vislumbrado por Brigitte. Logo, as chamas foram crescendo,
rapidamente, consumindo tudo. Quando se apagaram, ela
aproximou-se, revolveu as cinzas e em seguida, à luz do
isqueiro, viu a pequena cápsula vermelha.
Colocou-a na palma da mão esquerda, sentindo-lhe o
forte calor, mas resistindo imperturbável.
— Nap — murmurou — é certo que Mohamat Panduj
pôde saber tudo a meu respeito por meio de comunicação
com alguns espíritos? É um velho truque que nunca me
convenceu... Por que não me diz a verdade?
Ninguém respondeu. Brigitte apagou o isqueiro, pôs-se
de pé e olhou ao redor: sombras, escuridão; um pouco mais
longe, o rumor do Ganges. E um certo odor penetrante,
espesso, desagradável... O brilho da lua...
— Nap, você está aí?
Silêncio.
— Onde você está, Nap?
Novamente o silêncio.
Irritada mais uma vez com o exótico e desconcertante
agente de Pequim, “Baby” compreendeu que tudo tinha
terminado. Pois Nap que fosse para o diabo! Ela só tinha
que fazer duas coisas: entregar o microfilme em Washington
e avisar a MVD russa, a fim de evitar uma possível e
definitivamente catastrófica Terceira Guerra Mundial.

CAPITULO 7
Dois pares de olhos arregalados
“Você vai precisar de toda a sua coragem”
Uma proposta absurda
O chicote

Deteve-se diante do “Hotel Ganges”, no qual Roger


Smith lhe havia dito que estava hospedado. Possivelmente,
o falso cidadão britânico já não a esperava mais, pois já ia
longe a hora de um jantar normal. Entretanto, “Baby” tinha
dois pontos a esclarecer com Roger Smith, ou Yllya
Somakyn. Primeiro: saber se tinha sido ele quem mandara
matar Mohamat Panduj e o menino chamado Tarab e.
consequentemente, se também fora o responsável pelo
ataque por ela sofrido no hotel. Segundo: saber se na
verdade Roger Smith era russo, se pertencia à MVD e,
portanto, estava capacitado para fazer chegar a Moscou a
mensagem relacionada com o microfilme, elucidando que os
chineses não tinham conseguido se apoderar dele. Este
último ponto era importante, já que, pelo menos em teoria,
constituía-se na única forma de evitar a Terceira Guerra
Mundial.
Na portaria do “Hotel Ganges”, muito menos luxuoso e
europeizado que o “Bengala”, havia um hindu de maneiras
rudes, que olhou quase com animosidade para a formosa
norte-americana. Moveu negativamente a cabeça à sua
pergunta: não, Mr. Smith não tinha abandonado o hotel, ao
que parecia; não o tinham visto sair e a chave de sua suíte
não estava no compartimento correspondente. Portanto,
não devia ter-se ausentado. Naturalmente: a meinsahib
podia subir. Apartamento A-9. Queria que o avisasse por
telefone?
— Não, obrigada — disse secamente Brigitte. — Já o
fatiguei demasiado.
O hindu tinha pretendido ser amável, no fim, mas “Baby”
já o catalogara entre as pessoas “pouco agradáveis”.
Encaminhou-se para a escada, subiu ao apartamento A-9
e parou diante da porta. Estava fechada. Bateu três vezes,
sem obter resposta. O que, decerto, tendo em conta que
ninguém tinha visto Mr. Smith sair, era surpreendente... e
um pouco inquietante.
Brigitte sacou sua gazua do sapato, passou o embrulho
que continha as sandálias e o manto azul para a mão
esquerda e começou a mexer na fechadura. Não lhe custou
meio minuto sequer abrir a porta.
Empurrou-a lentamente. Dentro não havia nenhuma luz e
tudo estava no mais completo silêncio.
— Smith — Chamou. — Roger Smith!
A escuridão era total. Parte da luz do corredor penetrava
ali, mas tão obliquamente que não permitia ver nada.
“Baby” tirou então da bolsa sua pequena lanterna,
apontou-a para o interior e lançou um fino raio de luz.
Imediatamente, viu o primeiro cadáver. Primeiro, os pés.
Depois, as pernas, o corpo, a cabeça... E a garganta,
sobretudo. Em torno desta, aquele homem tinha uma faixa
de seda tão apertada que parecia embutida na carne. Um
pouco mais além, outro homem, igualmente branco e com
os olhos igualmente esbugalhados, a língua de fora,
inchada, enegrecida, numa terrível careta de espanto, de
terror sem limite.
Ela mordeu os lábios. Hesitou alguns segundos, mas por
fim entrou no apartamento. Fechou a porta com um pé, sem
deixar de dirigir o facho da lanterna para os dois cadáveres,
alternadamente. Depois, fez circular a luz ao redor.
Aproximou-se dos dois homens estrangulados e olhou
atentamente para seus rostos. Não os conhecia. Nenhum
deles era Roger Smith ou Yllya Somakyn.
E enquanto pensava isto, dava-se conta de que fazia
alguns segundos que estava sentindo um cheiro
desagradável. Um cheiro que já sentira antes e que lhe
causava aquela sensação enervante de horror.
Compreendeu de imediato, como se um clarão iluminasse
sua mente: era o cheiro do óleo espesso e rançoso com que
os tugues untavam o corpo quando se dispunham a atacar,
a fim de não poderem ser agarrados, a fim de escorregarem
das mãos que os quisessem apresar.
Como num pesadelo, pareceu-lhe ver de pronto, à sua
frente, um par de olhos coruscantes. Quis baixar a mão
direita à coxa esquerda, instintivamente, em busca da
pistola.
Mas já era demasiado tarde. Algo passou diante de seu
rosto, levemente iluminado pela luz indireta da pequena
lanterna elétrica. Imediatamente, a fina faixa de seda
rodeou-lhe o pescoço; sentiu uma pressão violenta, um
zumbido ensurdecedor nas têmporas, vertigem, náuseas...
E, súbito, mergulhou em completa escuridão.
A primeira sensação que teve foi de um recrudescimento
das náuseas. Depois, quando abriu os olhos, até a luz da lua
a molestou. Fechou novamente os olhos e esteve assim
alguns segundos, até que as náuseas cederam e sentiu-se
com forças para fazer frente ao luar. Então, tornou a abrir os
olhos.

Ergueu a cabeça e viu a janela, protegida por barras


disformes.
— São feitas de troncos — disse uma voz conhecida. —
Não sei de que espécie, mas fortíssimos... Tão eficazes
como se fossem de ferro, ou de aço.
Estava estendida de lado, no chão. Um chão úmido,
malcheiroso, mole, como barro... Sentou-se e levou as mãos
ao pescoço. Ao que parecia, não tinham pretendido
estrangulá-la, apenas fazer-lhe perder os sentidos com uma
pressão violenta e breve, aplicada por consumado
especialista no manejo das faixas de seda.
— É você, Smith? — perguntou.
— Roger Smith, para servi-la. Está passando bem?
— Não sei... Isto aqui o que é?
— Creio que alguma casa nos arredores de Benares.
Parece uma granja, ou qualquer coisa assim. Ouvi
mugidos de vacas... é verdade que isso não quer dizer nada.
Como sabe, em qualquer lugar da Índia pode-se encontrar
uma vaca “sagrada”. Não sei onde estamos, eis a verdade.
— Que faz você aqui?
— Oh, estou veraneando...
— Em janeiro?
— Na Índia o clima é excelente em janeiro.
Brigitte levantou-se e caminhou para a janela. Podia
facilmente alcançá-la com as mãos, mas uma vez
comprovada a resistência daqueles três barrotes
compreendeu que, com efeito, não seria fácil quebrá-los.
Agarrou-se a eles com força e içou o corpo. Pôde ver o
chão diante dela. Simples terra. Algumas árvores. E as
estrelas, a lua...
— Sim, estamos num porão, eis a triste e nauseabunda
realidade — informou Roger Smith. —Já revistei você, mas
não consegui encontrar cigarros... Não terá algum
excepcionalmente bem escondido?
— Onde? — quase sorriu Brigitte. — Meu corpo já não
deve ter segredos para você. Ou supõe que sou um robô,
com compartimentos secretos?
— Pude verificar que não é um robô. Desculpe, mas sinto
uma vontade tremenda de fumar.
— Está perdoado, Yllya Somakyn.
Houve um breve silêncio. Depois, novamente a voz do
agente soviético, quase irônica: — Então já sabe?
— A CIA dispõe de bons informantes, inclusive na Ásia,
Yllya.
— Estou vendo. Suponho que se refere ao agente de
Pequim. É, na verdade, um homem extraordinário. Devo
admiti-lo... Tirou-nos a presa diante de nossos narizes.
Penso que saiba da existência de um certo microfilme...
— Sei.
— Estivemos alguns dias perseguindo o agente chinês,
até a fronteira. E... Bem, nem sequer poderia explicar como
se passaram as coisas. Subitamente, encontramos morto o
chinês. Um pouco mais adiante, outro chinês morto. Imagino
que fosse um elemento de ligação, vindo à fronteira para
receber o microfilme. Mas o agente de Pequim matou os
dois e...
— Como fez?
— Degolou-os. Uma coisa simples e decisiva. Cada um
deles tinha um enorme talho na garganta. Só um. Creio que
nem tomaram conhecimento do que acontecia.
Evidentemente, o agente de Pequim andava atrás do que
de lá saíra rumo à fronteira. Esperou que os dois se
juntassem degolou-os e se foi com o microfilme.
— Talvez não o tenha podido levar.
— Levou sim. Os cadáveres dos dois chineses foram...
como diria eu?... convenientemente revistados, é isso.
— Não tenha receio de impressionar-me, Yllya. Foram
esquartejados?
— Bem... Digamos que foram examinados. O
microfilme não foi encontrado em nenhum deles. Então,
era óbvio que estava com o agente de Pequim. Fui
designado para seguir a este e recuperá-lo.
— O microfilme não chegará às mãos dos chineses —
informou Brigitte.
— Não? Como sabe?
— O agente de Pequim trabalha para a CIA. Você não vai
pensar que ele entregue o microfilme ao serviço secreto da
China, não é mesmo?
— Parece que não o deveria fazer. Entretanto, há um
homem que quer obter o microfilme a todo custo. Chama-
se...
— Andrio Padjan?
— Você está bem informada. Andrio Padjan convenceu-se
de que nós temos o microfilme, eu ou o agente de Pequim.
E no momento, receio que deseje... interrogar-nos a
respeito. Você deve ter compreendido que Padjan está
trabalhando para a China.
— É evidente. Você tem o microfilme, Yllya ?
— Eu? Oh, seu senso de humor é maravilhoso. Se o
tivesse, neste momento estaria a caminho da Sibéria, ou de
Moscou, talvez.
— Claro. De qualquer forma, tentou consegui-lo, não é
verdade?
— Naturalmente. Mas não compreendo. Que está
pretendendo dizer?
— Você mandou alguém contra mim?
— Esqueça esses incidentes. Nenhum foi provocado por
mim. Quando a ajudei contra aquele tugue, estava agindo
em meu próprio interesse, é verdade, mas além disso,
achei-a pessoalmente simpática, apesar de saber que
estava trabalhando com o agente de Pequim. Nada tive a
ver com aquele ataque. Pelo contrário, como bem pode
compreender, interessava-me que você estivesse viva.
— Isso parece lógico, Yllya. E depois?
— Depois? Tudo o que fiz foi tentar segui-la quando saiu
do hotel. Perdi-a de vista. Achei que o melhor a fazer era
voltar ao meu hotel e esperar que viesse buscar-me para
jantarmos juntos. Uma atitude ingênua, se quiser, mas
pareceu-me a que mais resultado podia dar. Quando
cheguei ao hotel, encontrei meus dois companheiros
estrangulados, fui capturado... E aqui estamos os dois.
— Então, todos esses ataques, essas mortes, foram obra
de Andrio Padjan.
— Suponho que sim. Os chineses, quando querem
alguma coisa, são muito... tenazes. Não hesitam diante de
nada. Mas você não tem, mesmo o microfilme?
— Já me revistou, não?
— Um microfilme é tão pequeno... Você deve
compreender, Brigitte, que se ele cair nas mãos dos
chineses a coisa pode acabar francamente mal... para
todos.
— Eu sei.
— Nesse caso, uma boa idéia seria destruí-lo. Parece que
é o único meio de impedir que os chineses o consigam.
— Ainda não o conseguiram. E como não está com você
nem comigo, é provável que esteja com Nap.
— Nap? Já a ouvi mencionar esse nome antes...
— São as iniciais de: Nosso Agente em Pequim.
— Entendo... Bem, pois se está com Nap, nós dois vamos
passar por maus momentos sem necessidade.
Evidentemente, Andrio Padjan não vai acreditar que você
não o tem. Do mesmo modo que não quis acreditar que eu
não o tinha. Isso deixou-o muito aborrecido comigo.
— Aborrecido...?
Brigitte aproximou-se mais de Yllya Somakyn. Seus olhos
tinham-se adaptado à vaga claridade do luar, que entrava
pela janela, e pôde ver então que o russo estava nu da
cintura para cima. Listras escuras cruzavam-lhe o peito e as
costas, em todas as direções, e seu rosto parecia inchado,
deformado, cheio de crostas, cortes, hematomas.
— Isto não é nada — garantiu ele, serenamente. — Foi só
para servir de amostra do que vai acontecer se eu não lhes
entregar o microfilme. E como não o tenho...
Brigitte apertou os lábios. Na verdade, o aspecto de Yllya
Somakyn tinha mudado notávelmente. E isso naquela
penumbra: Em plena luz, sua aparência devia ser
espantosa, com todo o peito, as costas, a cabeça cheios de
sangue, equimoses e vergões.
— Uma coisa lhe garanto, Yllya: façam o que fizerem,
eles não terão o microfilme. Se conseguir escapar, notifique
a MVD a este respeito.
— Seria um verdadeiro prazer. Mas temo que não
conseguirei escapar. Você tampouco, é evidente. Portanto, a
MVD informará os comandos estratégicos de meu país que
os dispositivos táticos em toda a fronteira da Sibéria com a
China “podem” estar em mãos dos chineses.
— Se fosse possível...
— Ssst!... Aí vem gente. Buscar você, suponho. A mim,
consideram-me pouco menos que moribundo. Não os
desengane. E aguente firme, Brigitte: vai precisar de toda a
sua coragem.
— Qualquer um diria que somos amigos — disse ela,
sorrindo.
— Coisas da vida.
Ouviram-se passos mais fortes, um golpe seco, rude.
Diante deles abriu-se uma porta, justamente quando
Yllya Somakyn jogava-se para trás, fingindo estar
desmaiado.
Dois tugues munidos de tochas ficaram no limiar,
enquanto um hindu vestido à européia, muito parecido com
os que tinham querido matar Brigitte no hotel, entrava no
porão, empunhando um revólver. Apontou-o um instante
para ela, depois indicou a porta.
— Saia.
Brigitte obedeceu em silêncio. Encontrou-se num curto
corredor, que percorreu seguindo as indicações do hindu
vestido à européia. Chegaram a um pequeno recinto, após
afastar uma pele que tapava a entrada. Havia ali quatro
homens. Um deles era chinês. Os outros, hindus. E dentre
estes destacava-se o mais volumoso, de barba cerrada, com
um grande nariz aquilino e uns olhos negríssimos, muito
pequenos. Usava um turbante vermelho, com uma pluma
valiosa e uma esmeralda no centro. A situação era tão clara,
que “Baby” imediatamente compreendeu: tudo estava
perdido. Andrio Padjan era o do turbante vermelho. O chinês
era seu chefe, com certeza recém-chegado da China para
tratar do importantíssimo assunto do microfilme. Os dois
restantes eram homens de Andrio Padjan. Qualquer dos que
ali estavam seria capaz de cortá-la em pedaços para obter o
microfilme. Bastava olhar atentamente o rosto dos quatro
para compreender isto.
— Miss Montfort — falou o do turbante vermelho — já nos
causou grandes prejuízos. Estamos convencidos de que se
não tivesse vindo dos Estados Unidos, o agente de Pequim,
outros vários elementos e, sobretudo o microfilme, estariam
em nosso poder.
— Concede-me excessiva importância, Andrio Padjan.
— Não, não. Creio realmente que não a tem. Mas é como
essa pequena pedra que provoca uma avalancha ao cair. A
pequena pedra desloca outra algo maior, a qual por sua vez
desloca uma outra maior ainda... E assim se provoca uma
avalancha. Sua chegada a Benares não podia ser mais...
mais...
— Inoportuna?
— É isso. Está claro que se o agente de Pequim não
contasse com sua presença em Benares, teria sido menos
cauto, mover-se-ia mais... abertamente, procurando uma
saída, um meio de enviar o microfilme. Mas, devido à sua
presença aqui, ele agiu com muita prudência, muita
astúcia...
— Então, eu não posso lamentar ter vindo a Benares.
— Por enquanto. Logo lamentará... e muito. A menos que
me entregue o microfilme, ou me facilite o modo de
consegui-lo.
— Deverá pedi-lo ao agente de Pequim. Ele só me
utilizou para lhes causar transtornos.
— Nega estar de posse do microfilme?
— Claro que sim. Mas tenho uma proposta a fazer-lhe,
Padjan.
— Que proposta? — perguntou ele, contraindo as
sobrancelhas.
— Sua vida em troca da minha e a do homem que está
no outro porão.
— Minha vida?
— E a de todos os presentes — indicou-os com um dedo.
— O chinês inclusive, Andrio Padjan.
— Está-me oferecendo minha vida em troca da sua e a
de Roger Smith? Como poderia matar-me, miss Montfort?
— Aceita o trato?
— Primeiro teria que demonstrar-me que poderia me tirar
a vida. Porque, segundo parece, as coisas estão
completamente ao inverso. Entretanto, se me der provas de
que posso salvar minha vida e a de meus companheiros
mediante esse trato, é possível que o aceite... Repito: como
poderia matar-me, miss Montfort?
— Eu, não. Mas falaria com Nosso Agente em Pequim e
conseguiria convencê-lo de que não o matasse.
— Está louca? — falou repentinamente o chinês. —
Ameaça-nos com algo que não passa de simples presunção?
O agente de Pequim está fugindo de nós, não está
atacando, nem se atreverá a fazê-lo.
— Até agora, ele esteve fugindo — especificou Brigitte.
— Agora lhe toca a vez de atacar. E creiam-me que o fará
com uma eficiência absoluta. Aceitam o trato?
Um sorriso zombeteiro, ao mesmo tempo impiedoso,
torceu os lábios de Andrio Padjan.
— Miss Montfort, a moeda que está utilizando para
comprar sua vida não tem... curso legal. No fundo, acho que
tenta apenas ludibriar-nos. Possivelmente, considera-nos
pouco inteligentes, incivilizados talvez... Por que
desenganá-la? Pelo menos, vamos dar-lhe motivos para
continuar pensando que não somos totalmente civilizados...
Pandit, o chicote!

CAPÍTULO 8
Coragem, não: insensatez
A metralhadora do agente de Pequim 
Eddie, o Boa Pinta
Uma fogueira ilumina a noite 

Brigitte nem sequer teve tempo de saber quem era


Pandit.
Ouviu atrás dela um sibilar ameaçador e recebeu a
tremenda chicotada nas costas, caindo de joelhos, impelida
pelo impacto que a apanhara de surpresa.
Mas se aqueles homens esperavam vê-la fraquejar,
estavam muito enganados. Ficou de joelhos, o rosto tornado
lívido pela dor, mas sem que suas formosas feições se
alterassem por um milésimo de segundo. Depois, os olhos
azuis fixaram-se em Andrio Padjan.
— Admirável! — deixou escapar este. — Devo admitir
que a CIA treina bem seus agentes. E para uma mulher, sua
coragem e resistência são verdadeiramente incríveis. Vai
entregar-nos o microfilme?
— Não.
— Miss Montfort, isto é tão-somente o princípio... É
possível que, a esta altura, já saiba que estou trabalhando
para a espionagem chinesa na Índia. Ao meu lado, como vê,
está um chinês. É um dos homens mais importantes do
serviço secreto de seu país. Compreenda a minha
necessidade de demonstrar-lhe que, pelo menos, faço
quanto é possível para satisfazer suas exigências, já que
eles me pagam, bem entendido. Está ou não de posse do
microfilme?
— Sei onde está — disse friamente Brigitte. — Poderia ir
buscá-lo se eu lhe dissesse o lugar, Padjan. Mas não vou
dizer.
— Isso veremos. O seu caso, miss Montfort, já não e de
coragem, mas de insensatez. Vamos desintegrá-la, parte
por parte, se não nos disser onde podemos encontrar o
microfilme. Primeiro será uma orelha, depois um olho, uma
mão, um pé... Asseguro-lhe que vamos fazer isso com sua
bonita pessoa se não nos entregar o microfilme.
— Não o entregarei, Padjan.
Andrio Padjan moveu uma de suas mãos gorduchas e o
tugue chamado Pandit tornou a vibrar o chicote contra as
costas de Brigitte... Ou melhor, quis vibrá-lo. O certo é que o
látego cortou o ar, o vazio, enquanto “Baby” Montfort
saltava sobre o tugue e, antes que alguém tivesse tempo de
impedir, lançava a mão direita à altura de seu rosto untado
de óleo. Pandit soltou um grito de dor quando um dos dedos
de Brigitte cravou-se em seu olho esquerdo e quase o
arrancou; a dor foi tão grande, que o tugue deixou cair o
chicote e levou ambas as mãos ao olho, gritando.
“Baby” inclinou-se, apanhou o chicote e, incorporando-
se, encarou Andrio Padjan. Este se imobilizara em sua
almofada vermelha, colocada sobre o chão. Quis erguer o
bravo para chicotear o hindu, mas o outro já estava atrás
dela e, passando-lhe a ponta do látego pelo pescoço, pôs-se
a apertar brutalmente.
— Não a mate! — ordenou Padjan. — É o que ela quer!
Mas vai arrepender-se de...!
Súbito, a pele que tapava a entrada daquele recinto foi
empurrada para dentro com violência, arrancada e, envoltos
nela, os dois tugues que vigiavam o corredor irromperam,
de cabeça, rolando pelo chão.
Atrás deles, o mais andrajoso mendigo do mundo,
completamente embrulhado num manto sórdido, que lhe
ocultava a cabeça, as mãos, tudo... exceto uma
ultramoderna metralhadora.
— Quietos — ordenou. — E diga a esse estrangulador que
solte a mulher, Padjan. Agora mesmo!
Andrio Padjan, as feições transtornadas, fez um sinal ao
homem que apertava a ponta do chicote ao redor do
pescoço de Brigitte. Ela sentiu-se livre imediatamente e
colocou-se rápida ao lado do mendigo, que com um brusco
movimento da metralhadora indicou um canto do porão.
— Todos para lá!... Todos!
— Quem é você? — balbuciou Padjan.
— Não adivinha? Pense um pouco... Mas faça-o enquanto
se dirige para o canto, como os outros.
— Você é o agente de Pequim?
— Adivinhou. E não olhe para trás de mim, Padjan. O
último de seus homens, o que estava de vigia lá em cima,
não virá. Os mortos não andam. Para o canto!
— Que pensa fazer?
— É óbvio: matar todos vocês. É o último serviço do
agente de Pequim... e quero que tenha repercussão. Grande
trabalho o meu Padjan, não está de acordo? Este será um
digno remate.
— Espere... Podemos fazer um pacto, agente de
Pequim... Algo de vantajoso para você. Daremos-lhe...
— Não seja estúpido, Padjan! E, pela última vez, vá para
o canto.
Andrio Padjan olhou para Brigitte.
— Fale com ele, convença-o...
— Por que, Padjan? — perguntou ela, friamente. —
Propus fazê-lo há pouco, mas você riu. Disse que minha
moeda não tinha curso legal... Era tão difícil compreender
que o meu amigo viria à sua procura? Pois estava bastante
claro. Você, em busca do agente de Pequim; ele, em busca
de você. Por isso veio a Benares: para encontrar o chefe da
espionagem chinesa na Índia. E encontrou. Não seria justo
que eu o privasse de completar sua última missão. Você não
aceitou o trato, Padjan. Agora, arque com as consequências.
— E já que não quer ir para o canto, como os outros...
Dizendo estas palavras, Nap apertou o gatilho da
metralhadora. Um jorro de balas partiu em direção a Andrio
Padjan, acertando-lhe em cheio no peito, arrancando-o da
almofada, atirando-o contra a parede às suas costas como
uma folha sob a força de um furacão.
Foi uma rajada mortal, mas curta, pois Nap desviou
imediatamente a arma para os homens reunidos no canto
por ele indicado. Entre estes, o chinês estava sacando um
revólver.
Desta vez a rajada foi muito mais longa. A metralhadora
quase esgotou sua carga de cinquenta cartuchos. Quando o
terrível matraquear cessou, apenas Brigitte e Nap
continuavam vivos, de pé, envoltos na nuvem espessa e
acre de pólvora queimada.
— Vamos — disse tranquilamente ele.
Brigitte foi até onde jazia o cadáver de Andrio Padjan,
apalpou-o cuidadosamente até localizar sua pistola de
coronha de madrepérola e recuperou-a, voltando-se para
Nap.
— É uma pistolinha de estimação — explicou com um
sorriso. — Tem sido minha fiel companheira em muitas
viagens, Nap.
— Está bem, não percamos mais tempo. Você já perdeu
demasiado. A estas horas deveria estar longe daqui!
— Meu avião só sai amanhã.
— Não importa! O microfilme vinha em primeiro lugar!
Poderiam tê-lo tirado de você!
— Duvido.
— Já o enviou?
— Não, não. Mas eles nunca o teriam encontrado.
— Onde o guardou?
— Segredo profissional, querido.
— Segredo prof...? Oh, está bem, contanto que ele
chegue a Washington. Vamos.
— Receia alguma coisa, Nap?
— Não. Mas não vejo motivo para permanecermos aqui.
— Espere um momento...
Brigitte passou pela abertura antes tapada por uma pele.
Percorreu o corredor, chegou à grossa porta de madeira
do outro porão e levantou a barra que a mantinha
solidamente fechada. Atirou-a para o lado e abriu a porta.
— Yllya! — chamou. — Pode sair. Vamos para casa.
— Por quê? — grunhiu Nap. — Que nos importa ele?
Deixe-o aí dentro!
— Saio ou não saio? — ouviram a voz do russo.
— Saia — disse Brigitte. — Não faça caso de Nap; parece-
lhe difícil admitir a idéia de ajudar um agente da MVD.
Vamos, vamos, não devemos perder tanto tempo, Yllya...
Acaso não pode caminhar?
O russo apareceu na porta, não muito firme sobre as
pernas. À luz da tocha que iluminava o corredor, seu
aspecto era realmente impressionante. Tinha um tórax
amplo, de atleta bem treinado. E todo ele, assim como a
cara e a cabeça pareciam em carne viva. Mas os olhos
claros do soviético brilhavam de determinação.
— Posso caminhar — afirmou.
— Então, para cima... Por onde, Nap?
O agente de Pequim afastou-se para o fundo do corredor
e abriu uma porta feitas de velhas tábuas. Viram então os
degraus, e Brigitte os indicou.
— A caminho, Yllya.
Nap colocou-se mais ao fundo, sempre envolto
completamente no manto andrajoso, do qual sobressaía a
ponta da metralhadora, O russo olhou o brilhante tubo de
aço, mas nada comentou. Brigitte subiu em primeiro lugar,
depois Yllya e, por último, Nap. Encontraram-se num amplo
recinto que cheirava a cabras, a vacas, a esterco, a velha, a
terra úmida. Nap abriu outra porta e colocou-se de um lado,
agora pouco menos que invisível devido à escuridão.
Novamente saiu Brigitte em primeiro, depois Somakyn,
depois Nap. Quando este apareceu no exterior, estava
Brigitte inclinada sobre um tugue, examinando-o à claridade
do luar. Tinha uma faca cravada na garganta e não cabia
dúvida de que sua morte não fora instantânea apenas, mas
silenciosa.
— Bom trabalho, Nap.
— Que fazemos com Yllya Somakyn?
— O enviaremos a Moscou... ou aonde ele quiser, para
que explique à MVD que os chineses não conseguiram o
microfilme.
— Está com vocês? — perguntou o espião soviético. —
Verdade?
— Assim é, Yllya.
— Bem. Suponho que seria pueril de minha parte pedir-
lhes que mo entregassem.
— Completamente pueril.
— Mas a vocês ele não serve de nada...
— Ora, Yllya, não nos julgue tão inocentes! — protestou
Brigitte. — Compreenda que de maneira alguma vamos
permitir que os chineses dele se apoderem, já que, segundo
parece, este é um meio de evitar uma possível guerra
mundial. Mas permita que nós, americanos, demos uma
olhadela aos dispositivos estratégicos da Rússia ao longo da
fronteira sino-siberiana. Será de grande interesse para nós,
não acha você?
— Bem, devo admitir que eu faria o mesmo... E, de
qualquer modo, tenho muito que agradecer a vocês. Isto é,
suponho... Quero dizer: Suponho que me deixarão partir
livremente...
— Claro que sim, Yllya.
— Isto não é costumeiro, mas... Obrigado. Agradeço aos
dois.
Fez meia volta, aparentando estar muito cansado... E
logo outra meia volta rapidíssima, que o colocou frente a
frente com Nap. Com fulminante agilidade, o espião
soviético levou ambas as mãos ao cano da metralhadora
empunhada pelo parcialmente desprevenido agente de
Pequim, arrancando-a com um golpe seco. Foi tão rápida a
ação de Yllya Somakyn, tão bem medida e calculada, e tão
bem simulado seu abatimento físico, que por força teria
iludido qualquer um.
Nap saltou imediatamente sobre ele, mas o russo
golpeou-o na cabeça com a culatra da arma, derrubando-o.
Numa fração de segundo, virou o cano para ele, pôs o
dedo no gatilho e apertou. Um chorrilho de balas caiu sobre
o falso mendigo, atingindo-o no ventre e impelindo-o para
trás, como lançado por uma catapulta. Nap caiu de costas,
chocou-se violentamente contra o chão e ficou inerte.
Yllya Somakyn voltou-se para Brigitte e apontou-lhe a
metralhadora.
— E agora vai entregar-me esse micr...!
Não teve tempo de completar a palavra. Nem sequer de
voltar-se completamente. Nem, muito menos, de acionar o
gatilho.
“Baby” se afastara, recuando dois passos. Sua mão
direita estava erguida, empunhando a pistola, que apontava
para a cabeça do russo.
Plop. Plop.
Yllya Somakyn lançou a cabeça para trás, pareceu que
seus pés iam para frente, e ele caiu de costas. Em seu
cérebro tinham-se alojado duas pequenas balas.
“Baby” Montfort nem sequer olhou para ele. Correu para
o agente de Pequim, ajoelhou-se a seu lado, avançando as
mãos para ajudá-lo o mais possível.
— Nap, eu...
— Não me toque! — gritou ele. — Não me toque, suplico-
lhe... Deixe-me só, vá-se embora, leve esse microfilme à
CIA!
— Calma... Tudo se arranjará... Onde você foi ferido?
— No ventre... Não vou durar muito... Vá-se embora.
— Não posso deixá-lo aqui enquanto estiver vivo, Nap.
Não posso fazer isso com um amigo, com um companheiro!
— Pode sim! Exijo que se retire! Deixe-me só!
Brigitte pôs-se de pé, mordendo os lábios. No escuro, não
podia ver os ferimentos do agente de Pequim, e isso
significava que nada podia fazer por ele. Mas, se houvesse a
menor possibilidade de salvá-lo, deveria tentar... Em outras
circunstâncias, talvez se a segurança do microfilme
dependesse de sua fuga precipitada, então fugiria, já que,
tanto quanto o próprio Nap, ela mesma estaria disposta a
dar a vida para cumprir sua missão até o fim. Mas, no
momento, não havia por que deixá-lo sozinho.
Voltou-se rapidamente e correu para a granja. Entrou,
desceu ao porão, percorreu o corredor iluminado pela tocha
e ingressou no recinto em que jaziam os cadáveres de
Andrio Padjan e os outros. Aproximou-se da almofada
vermelha moveu o corpo de Padjan, levantou a almofada...
Lógico: lá estava sua bolsa, com a lanterna c algumas
outras coisas. Era natural que a tivessem levado ao chefe
da espionagem chinesa na índia.
Apanhou a bolsa e regressou ao exterior, a toda pressa.
Quando saiu da granja, não encontrou Nap onde o havia
deixado. Surpreendida, acercou-se do lugar. Lá estava Yllya
Somakyn, morto. Mas não via Nap...
— Nap! — chamou. — Nap!
Avistou-o subitamente, arrastando-se para a mais
próxima esquina da granja. Correu para junto dele, inclinou-
se.
— Nap, não seja louco. Podemos tentar...
O cano da metralhadora surgiu diante de seus olhos.
— Vá-se embora! Vá! Se não quiser morrer, “Baby”...
— Você está louco!
— Juro que a matarei, se não for embora...
— E como o microfilme chegaria a Washington? Quem
avisaria a MVD que os Chineses não o conseguiram?
Lembre-se da Terceira Guerra Mundial, Nap!
— Você... você já enviou... o microfilme...
— Não. Está aqui, comigo.
— Onde? Não acredito...
— Está no meu estômago, Nap. É um velho truque ao
qual já tive que recorrer uma vez, só que então foi o meu
cãozinho “Cícero” quem passou por esse transe... Dê-me
essa metralhadora, Nap.
Tirou-a suavemente dele, sem encontrar resistência.
— Suplico-lhe... — gemeu Nap. — Vá-se embora, “Baby”.
Pelo amor de Deus!
— Vou ajudá-lo, embora você não queira.
— É perder tempo... Sinto que vou morrer... Quer
realmente fazer alguma coisa por mim?
— Claro.
— Então, deixe-me chegar à granja... e dê-me uma das
tochas. Depois, afaste-se daqui. É tudo quanto peço.
— Quer morrer queimado, Nap?
— Quero... queimar-me depois de morrer. Quero que
fiquem apenas... minhas cinzas. Só isso, “Baby”. Deixe-me
consegui-lo e... se é certo que existe esse mundo de
Mohamat Panduj, eu virei sempre de lá para ajudar você... A
carne não é nada; o espírito é tudo... A carne sem valor
deve ser consumida... E nenhuma carne vale nada.
— Você está delirando, Nap. Deixe-me ver seus
ferimentos.
— Não me toque! Quero ser queimado! Não me toque!
Brigitte não lhe fez caso. Acendeu a pequena lanterna e,
em primeiro lugar, quis ver o rosto do agente de Pequim.
Este lançou um soluço, ergueu ambas as mãos para
ocultar o rosto... Mas então suas mãos ficaram visíveis.
Brigitte Montfort pareceu encolher-se. Teve a sensação
de receber uma punhalada em pleno peito. Durante uns
segundos permaneceu imóvel, como aturdida, aniquilada...
— Santo Deus! — murmurou por fim. — Santo Deus...
— Deixe-me... Deixe-me agora...
— Nap, eu sinto muito... Sinto com toda a minha alma!
Se soubesse que era isso... Agora compreendo tudo... Por
isso você não podia entrar no hotel, por isso custou-lhe um
grande trabalho chegar a um telefone para avisar-me... Por
isso não quis que eu visse seu rosto, mm suas mãos, em
nenhum momento... Oh, como eu compreendo tudo, agora...
Imagino com que dificuldade você veio da fronteira sino-
siberiana a Benares, com que dificuldade conseguiu o
microfilme, viajou, deslocou-se, atuou, fugiu, escondeu-se...
Nada podia ser fácil para você, meu amigo, nada... Ninguém
quer bem aos leprosos.
O agente de Pequim tornou a soluçar. Baixou as mãos e
seu rosto ofereceu-se à luz da pequena lanterna. Faltavam-
lhe alguns pedaços de carne, parte dos lábios, tinha o nariz
parcialmente descarnado, não havia cabelo algum em sua
cabeça. Era uma visão terrível.
— Você não grita de terror? — perguntou ele.
— Por quê? Posso ver mais além da carne putrefata, Nap.
E em você, vejo um coração grande, forte, ardente,
generoso... Sim, posso ver você, Nap... Há quanto tempo
isso começou?
— Há quase... quase dois anos... E desde então...
— Compreendo. Desde então, teve que se esconder
sempre. Trabalhou sempre na sombra, sempre escondido,
sempre entre os miseráveis, sofrendo sozinho, em silêncio...
E apesar de tudo isso, seu trabalho foi sempre magnífico.
Está vendo, Nap? Eu estou certa; é seu coração o que vale.
E seu coração é todo você.
— Na verdade... não se horroriza?
Brigitte sorriu docemente.
— Imagino você, Nap, há dois anos, e tudo se torna
muito fácil. Aposto que há dois ou três anos você era um
tipo formidável, aguerrido, um pouco arrogante mesmo,
desses que encantam as mulheres. Aposto que sim, meu
amigo. Alto, forte, varonil, atlético... Aposto minha
reputação de espiã que você era um tipo pelo qual eu
estaria agora apaixonada.
— Você é uma espiã... singular, “Baby”. Creio que... seu
coração é muito melhor que o mel.
— Querido amigo, nós os espiões, ainda que seja muito
escondido, devemos ter um coração enorme. E agora,
vamos ver essas feridas...
— Não me toque!
— A lepra, hanseníase ou mal de Lázaro, como quer que
a chame, não é contagiosa, Nap.
— Não me toque, por Deus, “Baby”... Por que acha que
lhe fiz queimar aqueles papéis, quando lhe entreguei o
microfilme? Não queria que minha moléstia...
— Não seja infantil. A lepra não é contagiosa. E, além
disso, hoje em dia é possível tratá-la adequadamente. E
curá-la, na maioria dos casos. Você ainda poderá viver
muitos anos, convenientemente atendido. Eu me
encarregarei disso.
— Não, não... Por Deus, não...
Sem se preocupar com seus protestos, Brigitte baixou a
luz da lanterna de maneira a iluminar-lhe o ventre, afastou
os farrapos... e estremeceu, sem que o pudesse evitar: na
carne putrefata, as feridas eram absolutamente mortais. Só
por milagre ele ainda conservava os sentidos, ainda podia
falar, tinha podido arrastar-se... Era um milagre que ainda
estivesse vivo.
— Quê...? — gemeu o agente de Pequim.
— Você vai morrer, Nap. Em pouco tempo.
— Louvado seja Deus... Não podia mais resistir a... este
tipo de vida... Vou morrer logo, “Baby”?
— Sim, Nap. Sinto muito.
— Eu não. Juro. Sabe, “Baby”...? Você disse a verdade: eu
era um sujeito de boa aparência... Sim, as garotas sorriam
sempre para mim. Tinha tudo com elas. Gostavam de andar
com o simpático Eddie... Ah, eu era bem simpático, tinha
olhos azuis, cabelos um pouco ruivos, algumas sardas... E as
garotas diziam que meus lábios eram gulosos, porque
estavam sempre com vontade de beijar... Não é engraçado?
— Conte mais, Nap. Gosto de ouvi-lo. Qual é seu
verdadeiro nome?
— Edward Compton... Todos me chamavam Eddie... o
Eddie “Boa Pinta”... Tanto me chamaram assim, que
cansei... e disse para mim que ia acabar ficando um
presumido, um intolerável idiota, se não fizesse qualquer
coisa de útil. Então, saí de meu pais, viajei muito... e um dia
encontrei-me envolvido num assunto de espionagem, em
Macau, involuntariamente... Ajudei um elemento da CIA,
mas creio que não o fiz muito bem... Ele foi morto. Apanhei
uma câmara fotográfica que ele levava e consegui fazê-la
chegar onde me pediu, a uma residência em Hong-Kong...
Você esteve em...
— Conheço Hong-Kong.
— Entreguei lá a câmara. E voltei a Macau... Não sabia
por que tinha voltado, no momento... Mas logo compreendi
o motivo, instintivamente: ali poderia viver outra aventura
de espionagem... Mas essa aventura não tinha pressa em
chegar...
— E como era o que mais lhe agradava, como a
espionagem não foi a você, você foi à espionagem.
— Sim, sim... Comecei a fazer pequenas coisas. Pouco a
pouco, compreendi que já sabia trabalhar, que era um bom
espião... E como é natural, ajudei a CIA. Há anos que o
faço... Mas morrerei sem saber que... que opinião têm de
mim...
— Foi-me informado que você era o melhor agente na
Ásia.
— Na Ásia? É verdade, “Baby”?
— Nunca minto, Eddie.
— Ah... O melhor agente na Ásia! Não é bonito...? Gostei
de Pequim. É uma cidade tão perigosa, tão exótica, tão
inquietante... E lá existe muita espionagem... O agente de
Pequim...
— Nosso Agente em Pequim — enunciou “Baby”,
sorrindo.
— Nosso... De você... também?
— Meu, principalmente, Eddie.
— O... o mi... microfilme... Não falhe...
— Não falharei. Não haverá uma terceira guerra por isto.
— Obrigado... A guerra é... estúpida... Meu pai morreu...
em Guadalcanal... Eu tinha... sete anos... Um dia vi minha
mãe lendo uma carta... e chorando... Tínhamos um jardim...
pequeno... Eu era...
O súbito silêncio caiu como uma lápide sobre os ombros
abatidos de Brigitte. Durante mais de um minuto,
permaneceu imóvel, contemplando aquele rosto torturado,
descarnado. Depois, lentamente, levantou-se, guardou a
lanterna e a pistola na bolsa, passou a alça desta pelo pulso
e tornou a inclinar-se. Agarrou o cadáver do agente de
Pequim pelas axilas e começou a puxá-lo para a granja. Não
lhe custou demasiado esforço transportá-lo para dentro.
Tampouco lhe custou esforço reunir todos os objetos de
madeira que pôde encontrar. Depois, foi ao porão buscar
um dos archotes.
Quando “Baby” Montfort afastou-se dali, as chamas,
vermelhas, amarelas, azuis, elevavam-se para os céus, cada
vez mais altas e crepitantes.
Quadro de honra
— Um microfilme muito interessante — informou Charles
Pitzer, deixando seu chapéu nas mãos de Peggy. — Foi um
bom trabalho de Nap e de você, Brigitte.
— De Nap, principalmente. Ele foi quem conseguiu o
microfilme, não eu, tio Charlie.
Pitzer acomodou-se no macio sofá, junto de “Baby”,
suspirando. Fora, via-se o tom cinzento de um nebuloso dia
de inverno nova-iorquino. As vezes, quando estava no
apartamento de Brigitte, Charles Pitzer surpreendia-se
sentindo grandes desejos de que chegasse o verão. Nesta
época, Brigitte costumava Convidá-lo para nadar na
pequena piscina do terraço, depois lhe oferecia uma taça de
champanha e os dois batiam um gostoso papo sob os pára-
sóis coloridos... No inverno, tudo continuava alegre e feliz ali
dentro. Mas o tio Charlie e “Baby” gostavam mais do verão.
Muito mais. E esta preferência era partilhada por “Cícero”, o
cãozinho chihuahua, que no inverno passava o tempo que
podia aninhado na saia de sua formosa dona. No verão,
estendia-se no terraço, refrescando a barriga em contato
com os ladrilhos, e olhava para Brigitte com seus olhinhos
alegres, como pedindo perdão por desdenhar seu colo.
— O trabalho foi excelentemente realizado por vocês
dois, esta é a verdade afirmou Charles Pitzer. —
Investigamos o nome que nos deu: Edward D. Compton era
filho de um capitão dos “marines” que morreu em
Guadalcanal... Viviam em Santa Mônica, na Califórnia. A
mãe faleceu há dez anos. O rapaz ficou ainda algum tempo
ali. Prestou serviço militar no Corpo de Fuzileiros Navais.
Depois voltou a Santa Mônica, passou lá outra temporada e,
subitamente, desapareceu.
Nenhuma fotografia sua que possa mostrar-nos como era
nos últimos anos, Brigitte... Mmm... Vejo aqui umas flores
que já estavam há dois dias. Este não é seu costume. Você
sempre faz questão de rosas vermelhas, frescas e
perfumadas...
— Teme que eu agora seja cliente de outra floricultura,
tio Charlie?
— Bem... Estou certo de que essas flores não vieram da
minha.
— Trouxe-as um amigo... Você acredita no poder dos
espíritos?
— Refere-se ao que me contou sobre o hindu chamado
Mohamat Panduj?
— Exatamente. Mas você acredita?
— Creio que não.
— Faz muito bem — disse ela com um sorriso irônico.
— Essas flores foram-me trazidas há quatro dias por um
amigo, quando eu estava em Benares.
— Que amigo?
— Chama-se Número Um.
— O grande espião que nos deixou... Ele está em Nova
Iorque?
— Esteve. Tinha que seguir viagem para o Havaí.
Deixou-me um bilhete, com as flores, convidando-me a
passar uns dias com ele naquelas ilhas deliciosas.
— Você vai?
— Não sei... E voltando a Edward Compton, tio Charlie: já
que não temos nenhuma fotografia dele para colocar no
quadro-de-honra da CIA, eu poderei descrevê-lo a um de
nossos desenhistas. Acha que bastaria um retrato
conseguido assim?
— Por que não? Nosso agente de Pequim deve figurar no
quadro de honra.
— Então, qualquer dia destes voarei a Washington para
dar as indicações a um desenhista Escolherei o melhor.
— Você sempre escolhe o melhor — comentou Pitzer.
— Bem: como era ele?
Um doce sorriso apareceu nos lábios de Brigitte.
— Oh... Era alto, atlético, elegante. Muito sim Tinha olhos
azuis, cabelos um tanto ruivos, algumas sardas... E
uns lábios que, francamente qualquer mulher gostaria de
beijar...
— Camarada de sorte! Foi uma lástima que morresse
queimado depois que o mataram traição, Brigitte. Um
lamentável acidente.
— Sim... Um lamentável acidente, tio Mas estou certa de
que isso não causou desgosto a Nosso Agente era Pequim.
.ePub

2014

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