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DADOS DE ODINRIGHT

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Hélio do Soveral
Adeus, Mr. Grogan
© 1969 – Hélio do Soveral
Publicado no Brasil pela Editora Monterrey
Ilustração: Benício
Prelúdio

Morte em Nova Orleans

Ainda com os olhos fechados, ela tentou mover um


braço.–
Não conseguiu. Suas coxas estavam também
horrivelmente doloridas e como que paralisa das. Então,
abriu os olhos, um tanto a medo, e olhou em torno. O sol
batia-lhe diretamente no rosto pálido, cintilando em seus
grandes olhos azuis.
Impressionante! O solo, de terra calcária, ficava a quinze
metros abaixo do lugar onde ela estava! E, ao redor só se
viam as copas do arvoredo. Ela se encontrava enganchada,
pendurada no alto de um pinheiro, segura por dois de seus
ramos mais frondosos. Naquela incômoda posição, apoiada
numa forquilha natural da árvore, sentia-se entre a terra e o
céu. Estava ferida e dolorida. Sua cabeça latejava. Seria
aquilo possível? Ou tudo não passaria de um pesadelo?
Olhou para cima. Além dos galhos mais altos do pinheiro
(alguns quebrados e lascados) havia uma pequena
montanha rochosa, escarpada, cujo cimo se debruçava,
acerca de trinta metros, sobre a copa do pinheiro onde ela
se achava entalada. Evidentemente, havia caído lá de cima
e, por milagre, ficara presa nos ramos daquela árvore
providencial.
Passou a língua pelos lábios e sentiu o gosto amargo do
sangue. Também havia sangue (seco) nas suas mãozinhas
delicadas. Que lhe teria acontecido? Teria ela caído, mesmo,
lá de cima, sobre a floresta de pinheiros onde se
encontrava?
Ou teria sido empurrada por alguém?
Mas, antes de tudo, era preciso saber quem era ela. Sim,
ela não se lembrava, nem por sombra; de quem era! Não se
lembrava de seu nome, de sua profissão, de sua
nacionalidade, do lugar onde vivia! Nada! Um branco total!
Amnésia das mais completas e terríveis! Absoluta
ausência do mundo! Ela devia ter sofrido um impacto muito
grande, com a queda, e perdera a memória. Uma parede
branca, limpa, compacta, obturava o seu espírito. Sabia,
apenas, que estava viva, que respirava, que era uma
mulher. E que estava só, isolada do mundo, enganchada no
alto de um pinheiro gigantesco! Escapara, por milagre, de
uma queda acidental...
ou de uma tentativa de assassínio. Mas, por quê? Que
tipo de vida teria sido a sua, para determinar tal acidente? E
onde estaria ela? Que floresta seria aquela? Em que lugar,
em que cidade, em que país? Não sabia de nada! Não podia
se lembrar de coisa alguma!
Fez outro esforço para se movimentar, lentamente,
cautelosamente. Seus músculos doíam muito; cada
centímetro de seu corpo parecia ter levado uma surra
monstruosa! Mas viu que podia se mexer, afinal. Pelo
menos, não estava paralítica. Contudo, era preciso mover-se
com extrema cautela, para não cair daquele galho.
O pinheiro, dos mais altos que já vira, tomava soa tarefa
muito difícil. E o tronco era liso, impossível de usar como
escada.
Um salto daquela altura, ainda mesmo em cima das
folhas secas, poderia significar a morte! Ela não estava em
condições de saltar! Resolveu gritar por socorro, Mas em
que língua?
Sua memória não estava totalmente perdida, afinal.
Lembrou-se de que conhecia vários idiomas. Também se
lembrou dos altos pinheiros da Floresta Negra, no sudoeste
da Alemanha. Resolveu tentar o pedido de socorro em
alemão: — Helfen! Bitte, helfen!
Sua voz angustiada reverberou por entre os pinheiros e
perdeu-se na distância, engolida pela solidão. Não houve
resposta. Tentou em inglês: — Help! Help!
Nada, ainda. Em francês: — Au secours!
Em francês: — Aiuto!
Em espanhol: — Socorro!
E esperou. Esperou minutos, horas talvez. O sol subia no
alto do céu; imaginou que já fosse meio-dia. Meio-dia, em
alguma parte do mundo. Um meio-dia de terão, em algum
bosque de pinheiros do planeta Terra... Voltou a gritar, outra
vez, nos cinco idiomas que dominava com perfeição. Nada!
Não apareceu ninguém. A floresta continuava quieta e
silenciosa como um tumulto. Esperou mais um pouco.
Afinal, ouvia um tiro. Sim, não havia dúvida: alguém
disparara uma espingarda, por entre o arvoredo! Pássaros
esvoaçaram, assustados, e um grupo de três homens surgiu
por entre os pinheiros. A avaliar pelos seus trajas
característicos, eram caçadores. Traziam rifles debaixo do
braço e cartucheiras a tiracolo. Suas botas rangiam nas
folhas secas.
— Você errou — disse um dos homens, dando uma
risada. — Hoje estamos sem sorte!
Falava em francês, embora com sotaque germânico. A
moça, no alto da árvore, pôs-se a bater palmas e a gritar
nervosamente: — Au secours! Au secours!
Os três caçadores olharam para cima e soltaram
exclamações de espanto. Um deles falava em alemão e
parecia o mais prático de todos; num minuto, subiu pelo
pinheiro (cravando uma escada de corda, pouco a pouco, no
tronco esguio) e alcançou a bela garota ali enganchada.
— Was ist geschehen, Fraulein?
Ela respondeu, também em alemão: — Que aconteceu?
Não sei! Desça-me daqui, por favor!
Estou muito dolorida! Mas creio que não quebrei nenhum
osso.
Outro minuto se passou, enquanto os três homens (que
eram, todos, jovens e bem-humorados) a ajudavam a
descer pela escadinha de corda. Estenderam-na na relva e
deram-lhe um gole de conhaque para beber. A mochila de
um dos caçadores parecia um arsenal de campanha; além
do cantil (com o conhaque) tinha algodão e mercurocromo.
A moça foi pensada e, pouco a pouco, recuperou todas as
suas faculdades. Menos a memória. Continuava sem saber
quem era, onde estava, o que lhe tinha acontecido. Um dos
caçadores, que parecia ser o mais jovem, era um belo
rapaz, alto e louro, de penetrantes olhos verdes.
— Sou Lucien Weber — apresentou-te, falando em
francês e olhando com admiração para o corpo escultural da
garota. — Eu não acreditava nas tendas da Suíça... nem
sequer na história de Guilherme Tell... até que isto
aconteceu! Dizem as crônicas que há muitas fadas
escondidas nas belas paisagens deste país; se isso for
verdade, mademoiselle deve ser a rainha de todas elas!
Como se explica...?
— Não sei — respondeu ela, ajeitando pudicamente a
saia sobre as pernas longas e bem torneadas. — Não sei de
nada! Perdi completamente a memória!
— Ach! — fez outro caçador, com ar de desconfiança. —
Sprechen Sie Ernst, Mädchen?*

*“Está falando sério, moça?

A garota respondeu, também em alemão, procurando ser


o mais sincera possível. Realmente, sua aventura, seguida
por um ataque de amnésia, parecia inverossímil. Mas tudo
quanto ela afirmava era a expressão da verdade. Lucien
Weber encerrou o assunto: 
— Acredito no que me diz, mademoiselle. E, eu
creditando, meus amigos acreditam também! Vejo que
mademoiselle sofreu um tremendo choque, ao cair em cima
dessa árvore, e perdeu parte de sua memória. Essas coisas
acontecem... Estamos prontos para ajudá-la em tudo quanto
estiver ao nosso alcance. Meus companheiros, Erwin Krause
e Nills Burg, são suíços e moram em Zurique, como
eu. Estamos aqui a passeio. Pode confiar em nós,
mademoiselle. Provavelmente, mademoiselle veio de
Lausanne, não é?
— Lausanne... — murmurou ela, pondo-se de pé. — Não
sei! Onde estamos, exatamente? Já sei que é a Suíça, mas...
que parte da Suíça?
Lucien respondeu gravemente: 
— Estamos na região de Caux, nos bosques de pinheiros,
sob a extremidade setentrional dos rochedos de Naye. Este
é um lugar privilegiado, uma estação climática de verão e
inverno. As localidades mais próximas são Glion, ao norte, e
Montreux, ao sul, à beira do Lago Léman. Lausanne fica
mais a oeste, depois de Clarens e Vevey, pela estrada de
rodagem. De onde teria vindo mademoiselle?
— Não sei — repetiu a moça, impaciente. — Nunca
esperei acordar na Suíça! Por que, a Suíça? Será que eu caí
de algum avião e...?
— Não acho provável — retrucou o rapaz, sorrindo
levemente. — Mademoiselle caiu, com toda a certeza, de
cima daquele rochedo. Mas, por que teria subido até lá
acima? E como veio parar em Caux? Deve ter utilizado
alguma condução... Seus sapatinhos estão perfeitamente
limpos... Talvez tenha vindo em algum automóvel...
— Sim, talvez — admitiu ela, preocupada. — Não quero
lhes dar mais trabalhos, messieurs. Eu própria investigarei
os meus passos, até aqui.
— Por favor — protestou Lucien, envolvendo-a no seu
olhar afável. — Não nos negue o prazer de lhe sermos úteis!
Investigaremos, todos juntos, o seu passado. Só me
sentirei tranquilo depois de vê-la completamente refeita,
entregue aos parentes. E com a memória funcionando outra
vez...
A moça encarou-o com seus grandes olhos azuis, e
sentiu o calor que emanava de seu olhar verde. Era uma
perfeita coincidência: os dois olhares se penetravam, se
misturavam, na mesma esperança de entendimento e
afeição. E havia muita pureza nos desejos de suas almas.
— Lucien — murmurou a moça, entregando a mãozinha
magoada ao seu galante salvador. — Lamento não poder lhe
dizer meu nome, pois não me lembro dele. Mas confio em
você e sinto que acabei de encontrar um amigo leal! Serei
muito feliz, aceitando-o como aliado, na tarefa de descobrir
o meu passado! Você e seus amigos me salvaram a vida!
Ser-lhes-ei eternamente grata!
O rapaz, emocionado, beijou-lhe impulsivamente a mão.
— Você será Happy — decidiu ele. — Eu a batizarei
assim, até que conheçamos seu verdadeiro nome. Existe, na
mitologia suíça, uma fada que se chamava Happy.
— Happy, em inglês? — duvidou a moça.
— Escolhi o inglês porque você tem tipo de americana. E
eu sempre gostei desse nome.
O caçador chamado Nills comentou: — Mademoiselle me
parece, antes, francesa. Mas não é assim, por suposições,
que chegaremos à verdade. É preciso encontrar uma pista,
para desvendar o mistério. Sugiro que comecemos subindo
ao alto das rochas de Naye!
Antes da excursão a moça ainda rebuscou os bolsos de
seu tailleur sujo e rasgado, mas não encontrou nada.
Nenhum papel, nenhum objeto, nada! Todavia, Lucien
chamou-lhe a atenção para a etiqueta do casaquinho. A
roupa fora confeccionada por um célebre atelier de moda de
Paris.
Infelizmente, no caso, essa loja se democratizara e
passara a fabricar roupas em série.
— Não adiantaria nada seguir a pista do tailleur —
comentou a moça. — Não foi feito sob medida. Isso quer
dizer que não sou uma dama da alta sociedade...
Subiram às rochas, mas não encontraram nada de
anormal. Todo o platô estava deserto. Também não havia
sinais de nenhum veículo. Mas, ao descerem, acharam
marcas de pneus, na estradinha que corria por trás do
rochedo, ao fundo do bosque de pinheiros.
— Você veio de carro — decidiu Lucien.
— Mas os amigos que a trouxeram foram embora depois
de sua queda, acidental ou não. Suponho que o desastre
tenha ocorrido ontem à noite, ou hoje de madrugada. Agora,
vamos para Lausanne!
Deram volta às rochas e tomaram a se internar no
bosque.
— Lausanne? — fez a moça, confusa. — Não é muito
longe? Vocês não disseram que Montreux fica mais perto?
— Estamos morando em Lausanne — explicou Lucien,
olhando-a profundamente. — Sempre que caçamos em
Caux, ocupamos os mesmos aposentos num hotel de
Ouchy, à beira do lago. Meus amigos são negociantes de
Zurique e eu sou banqueiro. Herdei de meu pai a maioria
das ações do Royal Bank mit Zurich, que tem sede na
Bahnhofstrasse. Também sou aquilo que se chama,
pejorativamente, um playboy... Você aparenta vinte e cinco
anos e eu já fiz vinte e oito; estamos, pois, em boa idade
para trocar confidências...
— Solteiro? — inquiriu ela, apoiando-se em seu braço.
Uma sombra desceu sobre o semblante do rapaz.
— Não. Casado.
— Ah!
— Mas separado da mulher. Ela mora em Zurique, em
minha mansão da cidade velha, à beira do Limmat. Há dois
anos que nos separamos, por incompatibilidade de gênios, e
eu me tornei um playboy...
— Compreendo — murmurou a moça. — Lamento muito,
Lucien. Quanto a mim, não sei se sou casada ou solteira.
— Você é solteira, Happy, e não tem nenhum
compromisso. Todas as fadas são livres para poderem levar
a felicidade aos pobres mortais...
A moça sorriu e não disse mais nada. Chegaram à aldeia
de Glion, onde dois automóveis particulares esperavam por
eles. Um dos carros era um sedã Saurer-6, preto, e o outro,
um Alfa Romeu Giulia SS, branco, de dois lugares, que logo
encantou a bela desmemoriada.
— Que beleza! — exclamou ela, afagando o capô do
carro. — Carroceria de Bertone!
Lucien assentiu, contente com a alegria dela.
— Este é o meu carrinho, Happy. Eu tinha um Mercedes,
mas preferi o novo lançamento da Alfa. Você gosta dele?
Ela examinava o carro por todos os lados, maravilhada.
— Adorei! Estou pedindo a Deus para que eu seja
bastante rica e tenha uma bólide como esta! Mas não creio
muito nisso... Eu devo ser pobre.
— Se você gosta do carro — disse Lucien, sorrindo — ele
é seu!
— Como? — fez ela, alarmada.
— Empresto-lhe o meu carrinho, até que você encontre o
seu. Não há nada mais fascinante do que a alegria nos olhos
de uma mulher bonita... O carro é seu, Happy! Você o
conquistou com o seu charme!
— Oh, não! É um absurdo, Lucien! Você está falando
sério?
— Sempre falo sério.
Entraram no Alfa e o rapaz sentou-se ao lado do assento
do motorista. A moça apanhou as chaves, na mão dele, e
tomou o volante. Agia com extrema segurança, como se sua
profissão sempre tivesse sido a de chauffeuse.
— Será que você sabe dirigir? — perguntou Lucien,
olhando-a de soslaio. — Quero dizer, será que você não se
esqueceu?
Como resposta, ela ligou o motor e deu partida ao
carrinho. O Alfa tinha cinco marchas e um potente motor
que lhe dava uma velocidade de cento e vinte cinco milhas
por hora. O outro veículo, pesadão, foi atrás deles. Lucien,
mal contendo a alegria, indicou a estrada para Montreux,
que dominava o Castelo de Chillon. Passaram pela
cidadezinha, à beira do Lago Léman, e seguiram, pela
corniche, para Clarens. As aldeias eram rústicas, mas as
rodovias excelentes. Pelo caminho, o rapaz falava, falava
sem parar, contando sua vida e queixando-se de sua
solidão. Muito rico, mas infeliz, ele nunca se detinha em
nenhum dos lugares por onde passava, em busca de um
bálsamo para a sua alma solitária. Aqueles dois anos tinham
sido bastante desagradáveis.
— Infelizmente — disse a garota, dando maior velocidade
ao Alfa — não posso lhe dizer se sou feliz ou infeliz. Não
conheço a mim mesma. Mas nesse momento, Lucien, sinto-
me a mais feliz das criaturas!
— Por causa do carro? — perguntou ele, desviando a
vista para a paisagem.
— Não. Você sabe que não. Por sua causa!
Ele virou o rosto, para encará-la. Estava emocionado.
— Eu também a agradei, Happy?
— Muito! Você é culto, simpático, elegante, e... e
também tem charme! Não entendo como um bonitão
desses pode ser solitário!
Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos lábios.
— Happy, você pode não acreditar, mas eu já estou
fascinado por você!
— Nesse caso — retorquiu ela, sorrindo — vou parar o
carrinho. Corremos muito, nestes últimos minutos, e
deixamos os seus amigos para trás. Sou como você, Lucien,
e também gosto de correr... Há certas coisas que se devem
fazer sem refletir muito, para que não percam o sabor...
Freou o Alfa, na entrada de Clarens, e virou-se no
assento. Sua saia subiu até acima, pondo à mostra as
pernas maravilhosas. Lucien abraçou-a e puxou-a para si.
Seus lábios se uniram, num beijo longo. Ele também sabia
beijar muito bem.
— Você é uma deusa, Happy — murmurou o rapaz,
recuperando a respiração e lhe afagando o corpo trêmulo de
desejo. — Seremos muito felizes juntos, enquanto durar
esse nosso sonho!
Ela segurou-lhe a mão, que se tornara audaciosa demais.
— Meu Deus! — suspirou. — Que revelação! Não sei
quem sou, mas, pelo visto, devo ser uma garota muito sem-
vergonha! Você não acha?
— Não — respondeu ele, abrindo-lhe o decote, para
beijá-la na cova dos seios. — Acho que você é honesta e
decente. Foi o amor que nos tomou apressados...
Nesse momento, ela sentiu que alguma coisa estralejava,
no forro de seu casaquinho bege. Rasgou uma beirada do
pano e tirou um envelope em branco. Lucien separou-se
dela e desviou discretamente os olhos para trás, a fim de
ver se aparecia o sedã Saurer de seus companheiros de
caçada. A moça tirou do envelope um bilhete, escrito em
francês, que dizia:

  “Mademoiselle Estou pronto para lhe falar sobre a


Casa de Saúde e as doenças mentais. Encontre-se
comigo no hotel, na Rua des Beaux Arts, esta noite sem
falta.
Paul Provence.”

Lucien viu-a dobrar o papel e enfiá-lo outra vez no


envelope.
— E então? — inquiriu ele, com voz alegre. — Encontrou
alguma pista do seu passado?
— Não — respondeu ela, desabotoando o casaquinho. —
Não é nada importante, meu amor.
E voltou a entregar-lhe os lábios de coral. Mas Lucien
percebeu que ela estava ainda mais confusa e preocupada
do que antes.
1

A nova Sra. Weber


Visita à clínica do Prof. Saint-Autel
Diversão em alta escala
Um telegrama de Zurique
A mensagem de Paul Provence

Lausanne, a quinta cidade da Suíça, fica sobre três


colinas, que dominam a margem norte do Lago de Léman,
do lado oposto a Genebra, no cantão de Vaud. É uma das
cidades mais francesas do país. Seu porto fluvial, Ouchy, ao
qual está ligada por uma estrada de ferro funicular, ostenta
a residência histórica dos bispos de Lausanne — o Chateau
d’Ouchy — hoje transformado em botei. Era nesse hotel que
Lucien Weber e seus dois amigos tinham alugado duas
suítes, com vista para o lago.
Os carros chegaram a Ouchy às duas e meia da tarde,
depois de atravessarem o Chemin de Longeraie, em
Lausanne. Só então o rico banqueiro de Zurique se lembrou
de que ainda não oferecera almoço à sua encantadora
companheira.
— Happy — disse ele, quando a moça freou o Alfa — não
é só você que sofre de amnésia. Foi tão emocionante o
nosso encontro que eu até me olvidei dos meus deveres de
anfitrião! Você deve estar morrendo de fome!
Ela fez-lhe um afago no rosto.
— Tem razão, querido. Desconfio que não me alimento há
uma semana!
— Que exagero! — riu ele. — Você não esteve pendurada
no pinheiro por mais de doze horas. Por falar nisso: como se
sente agora?
Ela se sentia muito bem. As dores musculares tinham
desaparecido. Apenas certa região da cabeça ainda se
mostrava dolorida. Era como se ela tivesse sido golpeada,
violentamente, na base do crânio. Mas não havia fratura
externa.
— Amanhã iremos a Paris — decidiu Lucien.
— Ora essa! Por quê?
— Por causa de sua amnésia. Vamos consultar um
especialista. Como lhe disse, quero que você me pertença,
mas na plena posse de todas as suas faculdades. Assim,
Happy, tenho a impressão de que... não sei... de que estou
abusando de você.
Ela deu uma risadinha.
— Não se preocupe, meu bem. Eu perdi a memória, mas
não perdi o entendimento. Gosto de você e, por isso, sou
sua.
Você não está me forçando. Eu seria sua, mesmo que a
memória me voltasse, — Isso — retrucou ele com voz grave
— é o que não sabemos. Quero que você volte a lembrar-se
do passado, que você volte a saber quem é e como se
chama... mas, ao mesmo tempo, tenho medo da revelação.
Eu não queria perdê-la, Happy!
— Descanse. Você não me perderá. Seja eu quem for,
continuam a ser a sua Happy... a Happy de Lucien...
Ele puxou-a para si e beijou-a ardentemente nos lábios.
Os outros dois rapazes tinham saltado do Sauer e
chamavam por eles. Eles também saltaram do Alfa e
caminharam, de mãos dadas, para o prédio do hotel. O
Chateau d’Ouchy era quase um castelo, amplo e pitoresco.
Na portaria, foram atendidos por um funcionário amável,
que já conhecia o poder do dinheiro do playboy de Zurique.
Os olhos aguados do recepcionista mediram, de alto a
baixo, o corpo escultural da moça que acompanhava Lucien.
— Às suas ordens, monsieur.
— Uma surpresa — disse o jovem banqueiro, com um
sorriso cínico. — Minha mulher acaba de chegar de Zurique.
— Mas isso é extraordinário! — exclamou o rapaz,
encantado. — Monsieur prefere mudar de suíte? Não creio.
Madame Weber ficará bem instalada nos aposentos que
monsieur ocupa atualmente.
— Happy Weber — esclareceu Lucien, sorrindo para o
olhar espantado da garota. — Minha esposa chama-se
Happy...,

A suíte compunha-se de uma saleta, um living alegre e


acolhedor, um quarto amplo e confortável (com cama de
casal) e um banheiro privativo, em mosaicos azuis, onde
não faltava água quente. Todas as janelas abriam para o
lago.

Depois do almoço, Lucien e Happy saíram no carrinho


esporte e foram até o centro de Lausanne, para comprar
uma mala e novas toilettes para a moça. Também
aproveitaram o passeio para fazer indagações, por toda
parte, procurando uma pista que os levasse à
desmemoriada de Caux. Os dois amigos de Lucien, Erwin
Krause e Nills Burg, ajudaram-nos nesse trabalho. Mas foi
tudo inútil. Ninguém conhecia a nova Sra. Weber.
Aparentemente, a bela garota, de cabelos negros e olhos
azuis, não estivera em nenhum hotel de Lausanne. E não
pertencia a nenhuma família da localidade.
Ninguém a conhecia.
— Não foi daqui que você partiu — disse Lucien.
— Mas também não podemos esquadrinhar todas as
aldeias da vizinhança!
As visitas às lojas de modas foram alegres e cheias de
surpresas. A nova Sra. Weber (que não se sentia uma
intrusa dentro desse nome, pois não conhecia o seu próprio)
escolheu meia dúzia de trajos para diversas ocasiões,
sapatos, lingerie, tudo da melhor qualidade. Lucien não
economizava as alegrias que proporcionava à garota; só por
um minuto ele a deixou sozinha, para ir aos Correios e
Telégrafos. Depois, voltaram a se encontrar, no centro
comercial, e ele instou para que ela tirasse alguns retratos.
A garota não se fez de rogada. Alguns desses retratos eram
artísticos, mas outros pareciam destinados a documentos
oficiais.
Por volta das oito horas da noite, regressaram ao hotel,
cansados e satisfeitos. As encomendas já tinham sido
entregues e colocadas na suíte. A moça mudou de roupa,
envergando um dos vestidos mais elegantes. Jantaram, em
companhia dos outros dois amigos do rapaz, e fizeram seus
projetos para a viagem a Paris.
— Só uma coisa me preocupa — disse a garota, em voz
baixa. — Não tenho documentos de identidade!
E olhou, com expressão ingênua, para o seu
companheiro.
— Tudo se arranja — replicou ele, com ar misterioso. —
Amanhã de manhã, você receberá o seu passaporte. E a sua
nova carteira de identidade.
— Mas, como?
— Telegrafei para Zurique — explicou o rapaz. — Tenho
muitos amigos influentes na Suíça. Você receberá os
documentos em nome de Happy Weber, natural de
Neuchâtel. Meus amigos trabalham ligeiro...
A garota ficou desconfiada, mas calou-se. Aquilo era
muito estranho! Lembrou-se dos retratos que tirara, nessa
tarde, em Lausanne, e compreendeu tudo. Seu novo amigo
devia estar ligado a alguma quadrilha de falsificadores de
documentos! Ou não? Também podia ser que ele obtivesse
o passaporte por via diplomática... Mas, seria isso possível,
no espaço de doze horas? Talvez... Com dinheiro e amigos
influentes tudo se consegue neste mundo.
Desistiu de quebrar a cabeça e entregou-se, de corpo e
alma, à aventura. Lucien lhe agradava e mostrava-se muito
carinhoso; só isso bastia para fazê-la feliz. Quanto ao seu
passado...
Não era capaz de se lembrar de nada! Às vezes, isso
deprimia-a e tornava-a melancólica. Gostaria de saber quem
era, qual o seu verdadeiro nome, sua profissão. Moça de
boa família ou mulher aventureira? Era inteligente, culta,
elegante, mas não sabia de mais nada a seu respeito! No
fundo, tinha medo! Era isso: tinha medo!
Depois do jantar, quando voltou à suíte com Lucien e
fechou a porta da alcova, pôs-se a olhar pensativamente
para a chave.
— Que foi? — indagou o rapaz, encarando-a.
— Não sei! Esta chave... Tenho a impressão de que eu
lidava com chaves...
Ele deu uma risada. Mas era uma risada sem alegria.
— Pelo amor de Deus, Happy! Você não tem tipo de
fabricante de chaves! Suas mãozinhas são delicadas demais
para isso. Esqueça-se dessa bobagem!
Ela estava muito séria.
— Não é uma bobagem, Lucien! Ao ver esta chave, senti
um arrepio! Aconteceu-me o mesmo quando você me
passou as chaves do carro. É como... não sei... como se eu
já tivesse lidado com gazuas!
— Gazuas? Essa não, Happy! Você também não tem tipo
de “rato de hotel”! Esqueça-se disso e venha me fazer
feliz! Estou esperando você!
Ela acenou vagamente e começou a tirar a roupa. Sentiu
outro estremecimento: ela se despia (até ficar
completamente nua) com muita facilidade... Seu
pensamento estava longe, muito longe dali. Pensava na
mais velha das profissões. Mas, não! Não era possível! Ela
era muito fina e educada para isso!
No dia seguinte, às oito da manhã, chegou um grande
envelope, ao Hotel Château d’Ouchy. Tinha vindo de
Zurique, por via aérea, expresso e registrado. Lucien levou-o
para a suíte onde Happy ainda tomava café, e abriu-o à
vista da garota. Continha todos os documentos necessários
à nova existência civil de Happy Weber, de Neuchâtel. O
passaporte era perfeito. Ela deu gritinhos de alegria.

— Você é maravilhoso, Lucien! Como conseguiu isso


tudo?
— Tenho amigos influentes — respondeu o rapaz,
evasivamente.
Ela encolheu os ombros e acabou de tomar o café. Seu
peignoir estava aberto e seus belos seios, redondos e duros,
apontavam arrogantemente para frente.
O rapaz contemplava-a embevecido.
— Quando você estiver pronta — volveu ele, sorrindo
outra vez — seguiremos para Paris. Já preveni os nossos
amigos. Erwin e Nills ficarão em Lausanne.
— Vamos de carro?
— Claro. É uma bela viagem. Almoçaremos no meio do
caminho e jantaremos em Paris. A estrada de rodagem é
excelente. Quando quer partir?
— Agora mesmo — respondeu ela, despindo o peignoir.
— Estou ansiosa por conhecer a opinião do especialista
sobre a minha amnésia.
— Não é só isso — retorquiu o playboy, enlaçando-a pela
cintura. — Seu costume foi feito em Paris. Isso dá a
entender que, se você não é francesa, pelo menos passou
pela capital da França. Talvez tenhamos mais sorte, lá, e
encontremos o seu passado. Eu a ajudarei com o maior
interesse.
Puseram-se a caminho às nove e meia, no veloz Alfa
esporte. A mala da garota seguiu no banco suplementar.
Dentro dessa mala, ia o seu tailleur antigo, ainda sujo e
rasgado (ela mão queria destruir nenhum indício) e o bilhete
do misterioso Paul Provence. Aliás, devido à sucessão de
visitas e passeios, que a distraíam e encantavam, ela se
esquecera completamente da mensagem encontrada no
forro do costume bege. De qualquer maneira, iam para
Paris. E havia uma Rue des Deaux Arts naquela cidade...
Não houve nenhum contratempo na travessia da
fronteira; os guardas deixaram-nos passar. Depois de uma
encantadora excursão automobilística pelo Condado da
França e pela Borgonha (com almoço em Dijon) entraram
em Paris às seis horas de uma tarde fresca e agradável.
Lucien tinha tomado o volante do Alfa e dirigiu o carro
diretamente para o oeste da capital. Atravessaram uma
ponte e passaram para a margem direita do Sena, seguindo
pelos Grandes Boulevards. Uma hora depois, estavam
entrando no pátio de um pequeno hotel da Rue de La
Fontaine, a cinco minutos do Bois de Boulogne. Aí, já havia
um quarto reservado em nome de Monsieur e Madame
Lucien Weber.
— Eles adivinharam? — perguntou a moça, espantada.
— Não vi você telefonar para Paris!
— Também tenho amigos por aqui... Escolhi um hotel
discreto, fora da cidade, para que possamos ficar mais à
vontade. O passadio é excelente. Comida alemã.
Um boy louro e sardento levou as duas malas para o
quarto número 13. Nem Lucien nem sua nova “esposa"
eram supersticiosos. Jantaram no grill e assistiram um
pequeno show musical, com uma orquestra bávara. Depois
da refeição, Lucien pediu licença e foi para o telefone da
Recepção. Disfarçadamente, a garota foi atrás dele e
postou-se num lugar onde não seria vista e de onde podia
ouvir tudo o que ele falava. O rapaz tinha ligado para uma
espécie de seu procurador, em Paris, e falava em alemão,
marcando uma consulta com um especialista em doenças
da memória, chamado Saint-Autel. A moça subiu para o
quarto e procurou a lista telefônica. Tudo combinava. O Prof.
Jerome de Saint-Autel era um famoso clínico da Praça de
Strasburgo.
Nessa noite, o casal divertiu-se bastante, assistindo a um
espetáculo imoral do Crazy Cat Saloon, e voltou para o hotel
altas horas da noite. Lucien estava eufórico e sua jovem
companheira também tinha bebido além da conta. Isso não
impediu que passassem uma madrugada de alta voltagem
erótica, na qual a moça pôs à prova todas as seduções
femininas adormecidas em sua memória. Lucien chegou,
mesmo, a desconfiar que ela fosse uma feiticeira.
Às oito da manhã foram acordados pela campainha do
telefone. O rapaz atendeu com voz pastosa. Sentia-se
esgotado.
— Pardon, monsieur — disse a voz da telefonista. — Sua
consulta com o Prof. Saint-Autel está marcada para as nove
horas. Danke sehr, monsieur.
Eles se beijaram e saltaram da cama, correndo para o
chuveiro. Meia hora depois, já tinham comido o pequeno
almoço e corriam, no Alfa esporte, para a Gare do Leste. A
clínica do Prof. Saint-Autel ficava em frente à estação, num
prédio grande e velho, recentemente pintado de branco.
O médico era um homem de meia-idade, calvo, gordo, de
pince-nez de ouro. A nova Happy Weber lhe narrou a sua
história, submetendo-se aos exames exigidos pelo famoso
lente da Sorbonne.
— Não há nenhuma fratura — declarou o médico,
olhando profundamente para o rosto de sua paciente. —
Acho desnecessária uma radiografia. Ainda há vestígios de
contusões leves, generalizadas, nos braços e nas pernas,
mas nenhuma delas tem qualquer gravidade. O tratamento
com mercurocromo foi providencial. Houve um corte
superficial, nos lábios, e outro na espádua, também sem
gravidade. As pequenas manchas roxas nos seios...
— Não se preocupe com as manchas roxas — rosnou
Lucien, que assistiu ao exame, sentado numa cadeira do
consultório.
O médico piscou os olhos, por trás do pince-nez.
— Sim, claro. Compreendo... O mais sério, monsieur, é o
cérebro.
— O que há com o cérebro? — assustou-se a moça.
— Não tema, madame. Sua cabeça foi duramente
castigada na queda. Encontrei, realmente, uma forte
contusão no occipital, mas está superada. O que me
preocupa é o traumatismo interno.
— Coisa grave, doutor? — perguntou Lucien.
— Podia ser grave se houvesse ruptura de vasos e
hemorragia. Mas, embora não haja indícios de dilaceração
dos tecidos, houve um traumatismo no cérebro. Isso é
evidente. Daí, a amnésia de que madame se queixa. Uma
amnésia parcial, como é comum. As amnésias gerais só
existem nos romances de ficção.
— Não há amnésia geral? — espantou-se a moça.
Ela estava sentada na mesa de exames, vestida apenas
com uma camisola. O Prof. Saint-Autel bateu-lhe levemente
num joelho.
— Não, madame. Todas as amnésias são parciais, pois
nenhuma função intelectual pode existir sem a memória.
Seu caso, pelo que vejo, é sem gravidade. Um acidente
amnésico típico, diria eu. Houve uma compressão
momentânea de um setor do córtex cerebral, onde reside a
memória. Então, essa faculdade foi afetada em parte e o
fenômeno persistiu, mesmo depois da volta à
consciência. Madame esqueceu seu nome e sua origem,
embora não tenha esquecido do que aprendeu em seus
vinte e poucos anos de vida. Continua, pois, senhora da
faculdade de raciocinar e de viver normalmente. Os tecidos
do cérebro reagiram, depois da pancada, pois não houve
propriamente uma lesão, mas ainda não se recuperaram
inteiramente, voltando à normalidade funcional. O córtex
cerebral...
Lucien interrompeu-o, ansioso: — E a amnésia pode ser
definitiva, doutor?
— Nada disso, monsieur. Não há nenhum fenômeno
definitivo na vida. A memória voltará, aos poucos, ou
repentinamente, conforme o caso. A amnésia pode, e deve
ser, periódica.
— E se não for?
— Nesse caso, como o fenômeno não incide sobre
palavras... pois madame não perdeu a faculdade de se
expressar corretamente... temos que aguardar a volta
progressiva da memória, à medida que os fatos
armazenados no cérebro voltem ao seu lugar. Nos casos de
amnésia com privação da faculdade de recordar palavras,
costuma-se proceder a uma nova educação do paciente,
que pode dar bons resultados. Mas não é este o caso. A
memória de madame pode voltar repentinamente, por uma
associação de ideias, ou pela contemplação de um objeto
familiar, desde que se repita, no presente, algo fundamental
que tenha ocorrido no passado. Não há nenhuma droga
química, específica, para isto, mas apenas uma grande
força de vontade. Aconselho madame a procurar o seu
passado, visitando os lugares onde supõe que tenha vivido.
— Mas eu não sei — queixou-se a moça. — Não sei onde
foi que vivi até agora!
— Neste caso — concluiu o médico — saia muito de casa
e divirta-se. Não se preocupe com coisa alguma, pois
madame não está doente. Isso não é uma doença. Divirta-
se, ria, goze a vida... e, quando menos esperar, a memória
lhe voltará integralmente. Paris tem muitos e soberbos
lugares de distração...
Lucien agradeceu e esperou que sua bela companheira
se vestisse; depois, pegou-a por um braço e carregou-a para
fora da clínica. Foram almoçar na Avenida Hoche, num dos
jardins do restaurante “Le Royal Monceau”, um dos mais
elegantes de Paris, onde comeram “aiguillettes de Charolais
à 1’Armagnac” e “soufflé à Royal-Monceau”. Depois, saíram
para passear pela cidade, detendo-se em vários bairros.
Lucien dirigia o Alfa e não perdia de vista o rosto de sua
Happy, à espera de uma expressão de reconhecimento, um
olhar de compreensão ou de saudade. Nada. A moça olhava
para todos os lugares com se os visse pela primeira vez.
Não demonstrou nenhuma emoção, nem mesmo em Saint-
Germain, por onde desfilavam os pops da “nouvelle vague”.
— Em Londres também há beatnicks — foi o comentário
que ela fez.
— Então, você conhece Londres — suspirou o rapaz,
abatido. — Mas, você esteve em Paris! Sim, você comprou
aquele tailleur na Rive Gaúche. É desanimador!
A moça não estava menos acabrunhada. Apesar de
serem felizes, juntos, tinham aquela sombra entre eles! Não
adiantava se divertirem, beberem, assistirem às grandes
atrações de Paris; sempre haveria aquela sombra toldando
os seus espíritos! Quem seria a bela desmemoriada de
Caux?
Por que teria ido parar na Suíça? Ela falava várias
línguas, mas isso ainda tornava o mistério maior. Qual seria
a sua nacionalidade? Tanto podia ser francesa como inglesa!
Ou, talvez, americana, pois o seu sotaque era yankee. Mas
também podia ser alemã, pois falava o idioma germânico
com uma segurança absoluta.
— Meu Deus! — gemeu ela, quando regressavam ao
hotel da Rue de La Fontaine. — O médico não quis dizer a
verdade, Lucien! Eu estou condenada a nunca mais
recuperar a memória! Nunca mais saberei quem sou, de
onde vim, como me chamo!
— Você se chama Happy — tranquilizou-a o rapaz. — Não
se preocupe. Você nasceu outra vez, querida. E, às vezes,
talvez seja melhor não conhecer o seu passado. Sua vida
pode ser feia, má, desagradável... e, ao regressar a ela,
você voltará para os problemas angustiantes de que se
livrou! Talvez seja melhor que você continue a ser a Happy
de Lucien...
Ela o beijou desesperadamente, com lágrimas nos olhos.
— Aliás — continuou ele, retribuindo o beijo, com o
mesmo ardor — estou pensando numa coisa... Mais tarde,
talvez você possa me ajudar, em meu trabalho de agente
bancário... Tanto quanto de uma esposa fiel, também
preciso de uma secretária bonita... Mas isso fica para
depois.
Eles se acalmaram e resolveram seguir o conselho do
Prof. Saint-Autel: foram jantar numa boite elegante e
reservada da Rue Berton, no bairro de Passy, e dançaram
até à meia-noite. Daí, seguiram para outro night-club, e
outro, e outro. Mas à série de diversões em alta escala
acabava sempre num transe de dúvida c melancolia. A
moça queria sabei quem era.
Dois dias depois de sua chegada à Paris, Lucien recebeu
um telegrama urgente, no hotel. Era uma tarde de terça-
feira e eles tinham combinado passar o dia visitando o
bairro rico de Autell e, depois de atravessarem a Ponte
Mirabeau, passear pelas ruas pobres de Grenette. Ainda não
tinham ido para aqueles lados e Lucien esperava que algum
detalhe, na topografia daqueles bairros díspares, fizesse
voltar a memória à sua bela companheira. Contudo, a
chegada do telegrama fez gorar os seus projetos.
— Happy? — disse ele, entrando no quarto, onde a moça
se vestia. — Perdoe-me, querida, mas não posso levá-la a
Autell! Tenho que embarcar urgentemente para Zurique!
Ela arregalou os grandes olhos azuis.
— Para Zurique? Por quê?
— Minha mulher pediu o divórcio — respondeu ele, com
voz grave. — Não sei como, soube das nossas relações e... É
muito desagradável! Agora, a justiça me chama a
Zurique! Tenho que estar lá amanhã de manhã, sem falta!
— Quando é que você vai?
— Agora mesmo, lá consegui uma passagem no voo
723 da Swissair. O jato Caravelle sai de Orly às cinco
horas. Você quer ir comigo ao aeroporto?
— Claro que sim, querido! Mas... como é que eu
fico? Gostaria de acompanhá-lo à Suíça, mas...
— Não. Nada disso. Você não pode aparecer em
Zurique! Fique com o meu carro e divirta-se. Conforme for,
sexta ou sábado estarei de volta. Espero que a Justiça não
me aborreça muito. Agora, tenho que tomar um banho.
Enquanto ele esteve no banheiro, ela escolheu
cuidadosamente um novo terno, entre aqueles que estavam
na mala, e transferiu para os seus bolsos os objetos
pessoais.
Entre os papéis estava o telegrama recém-chegado.
Quase sem refletir, ela desdobrou-o e leu: 

“Herr Goltz precisa de você com urgência ponto


perigo para organização comercial assinado Spinne”

A moça empalideceu. Lucien dissera que era banqueiro e


não comerciante! Além disso, o telegrama não falava em
divórcio, em nenhum problema familiar! E a assinatura —
Aranha — sugeria qualquer coisa tenebrosa! Onde é que ela
já ouvira falar em “Aranha”?
Não deu a entender nada. Meteu o telegrama no bolso
de um terno de Lucien e esperou que ele saísse do
banheiro. Às cinco horas, no Aeroporto de Orly, o jato da
Swissair carregou o playboy para Zurique. E a bela Happy
Weber ficou livre, em Paris...
Regressou ao hotel, dirigindo o Alfa pelo meio do tráfego
emaranhado, e foi jantar no hotel, em seu quarto. Mas, de
repente, lembrou-se de algo — algo de que nunca deveria
ter-se esquecido! Correu a abrir a sua mala e retirou o velho
costume bege sujo e amarrotado. O envelope ainda estava
dentro dele.
Sozinha no meio do quarto, ela desdobrou o papel (que
continha a mensagem assinada por Paul Provence) e pôs-se
a examiná-lo por todos os lados. Não havia nenhuma escrita
secreta. O mistério era aquele mesmo. E sua solução talvez
estivesse num hotel qualquer da Rue des Beaux Arts, do
outro lado do Sena... Agora, que Lucien tinha partido, ela
poderia ir a esse hotel e descobrir, sozinha, o seu passado.
O seu passado e, talvez, a razão do atentado que sofrerá
nos rochedos de Naye. Por motivos óbvios, preferia fazer a
descoberta sem testemunhas.
2

L’Hôtel
Ciumadas
Happy conhece o famoso Simone des Boulevard
O marroquino do Café Dupont
Uma cilada no alto de Montmartre

Devia haver mais de um hotel na Rue des Beaux Arts.


Contudo, a nova Happy Weber releu a mensagem de Paul
Provence compreendeu por que ali não havia o número da
casa. Não era necessário, uma vez que a palavra
“Hotel” estava escrita com "H” maiúsculo. Só havia um
l'Hôtel, “tout-court”. Ficava no n° 13 da Rue des Beaux Arts
e era a mesma casa de hóspedes onde morrera Oscar
Wilde, em 1900. L’Hôtel mudara bastante, nesses últimos
anos, tomando-se um estabelecimento de luxo,
especializado em hospedar os mais refinados homossexuais
do mundo inteiro; era para ali que ia Amt Von Krause, o
herdeiro das indústrias petroquímicas alemãs em suas
estadas em Paris.
Happy escolheu um de seus vestidos mais ornados, com
decote em “U”, tomou o Alfa o partiu para a margem
esquerda do Sena. Eram seis horas da tarde quando
estacionou o carrinho num parque próximo da Rue des
Beaux Arts. Saltou, balançando uma bolsinha dourada no
pulso esquerdo, e caminhou pelo passeio, sem dar atenção
aos olhares cúpidos dos homens que passavam. L’Hôtel era
pequeno e luxuoso, mas alguns de seus quartos (cujas
janelas abertas deixavam ver o interior) mantinham a sua
tradição romântica do Século XIX. Até o papel amarelo das
paredes (de evidente mau gosto) parecia o mesmo do
tempo de Wilde. A garota entrou no hall, rebolando os
quadris generosos, e dirigiu-se à portaria. Havia algumas
figuras esquisitas, no living, conversando com voz aflautada
e fazendo gestos comprometedores, mas nenhuma delas
prestou atenção à recém-chegada. Apenas um velhote
risonho, simpático, de vasta cabeleira branca e nariz de
tomate, levantou-se de uma chaise-long e também se
aproximou do balcão. Seus olhos aguados devoravam
ardentemente o corpo enxuto de Happy.
— Pardon — disse, dirigindo-se ao recepcionista. —
Procuro Monsieur Paul Provence. Ele está hospedado aqui?
Houve um grande silêncio no living. Todos os olhares
convergiram para o balcão. O recepcionista era um rapaz
magro, de grandes olheiras, com tipo de efeminado.
— Quem? — perguntou ele, num sopro.
— Paul Provence. É meu freguês e ficou me devendo uma
noite de amor!
— Mademoiselle está enganada — retrucou o rapaz, com
voz de falsete. — Não temos nenhum hóspede com esse
nome! Monsieur Provence não mora aqui!
— E também não está? — insistiu a moça.
— Não, mademoiselle! Não conheço ninguém com esse
nome!
Ela olhou ao redor, impaciente, batendo com o pezinho
no tapete.
— Um tratante, então? Me enganou! E logo a mim! Onde
posso encontrá-lo?
O recepcionista encolheu os ombros. Nesse momento, o
velhote da cabeleira branca adiantou-se e interferiu,
sorrindo amavelmente: 
— Talvez eu lhe possa ser útil, mademoiselle. Conheço
todo mundo em Paris. E esse nome não me é estranho... Se
mademoiselle me desse alguns esclarecimentos...
Ela já percebera tudo: aquelas criaturas conheciam o
nome de Paul Provence, mas não queriam se ver envolvidas
no caso! Era misterioso. E prometia muito...
— Os únicos esclarecimentos que posso dar — volveu
ela, correspondendo ao sorriso gentil do velhote — dizem
respeito a minha pessoa e não a Monsieur
Provence. Chamo-me Happy Weber e sou de Zurique. Meu
marido me abandonou em Paris e tenho que me virar para
ganhar a vida. Sem dinheiro, não é fácil viver nesta cidade,
tão cheia de seduções. Conheci Monsieur Provence na rua e
aceitei seus galanteios. Malheur à moi! Ele não me pagou o
combinado! E, agora, como é que eu fico? Estou “dura”,
monsieur!
— C’est une tragedie — exalou o velhote. — Se quer a
minha opinião, madame, volte para a Suíça! Este não é um
bom lugar para uma moça tão bonita. Se me permite, eu a
ajudarei. Madame pode passar esta noite no Hotel, às
minhas expensas... sem nenhum compromisso, é claro... e
embarcar, amanhã, de volta para junto de sua família. Uma
bela mulher, em doze horas, arranjará facilmente o dinheiro
da passagem...
— Agradeço-lhe, monsieur. Não tenho onde dormir.
— Meu nome é Gillet — apresentou-se o velhote,
beijando-lhe a mão. — Gustave Gillet, vendedor itinerante
da Casa Stabile, de Nápoles. Fabricamos material
eletrônico. Serve-lhe o quarto número oito? Está
desocupado e fica justamente em frente ao meu... eu lhe
farei companhia, madame, e lhe direi onde encontrar
Monsieur Provence...
A moça concordou, encantada. Atendendo a um gesto de
Mr. Gillet, o recepcionista trouxe o livro de registros de
hóspedes. Um livro enorme, de capa vermelha. Não havia
nenhum Paul Provence na última página escrita. Happy
assinou o seu nome de guerra e deu, como procedência,
uma pensão barata do Quartier Latin não muito longe dali.
O recepcionista olhava para ela com cara feia.
— Seus documentos, por favor.
Mr. Gillet inclinou-se para frente, atento, e também
examinou a carteira de identidade que a moça exibiu.
Conferia perfeitamente com as suas declarações.
— Tem bagagem? — inquiriu o velhote, encarando-a, com
expressão amável. — Eu providenciarei para que tragam as
suas malas a l'Hôtel.
— Não — respondeu ela, baixando os olhos. — Meu
marido levou todas as minhas roupas para a Suíça! Ele é
muito ciumento. Estou sozinha, e quase nua, em Paris!
— É uma maneira de viver nesta cidade — sentenciou
Mr. Gillet, agarrando-a por um braço. — Venha, ma
chèrie. Eu a levarei aos seus aposentos. Ali ficaremos à
vontade, para falar de Monsieur Provence... Você é linda,
Happy!
Ela sentiu um estremecimento.
— Pardon! Monsieur não é um desses...?
O velhote lambeu os beiços.
— Não, ma petite. Minha cabeleira comprida engana
muito... Eu sou dos outros.
Não havia como escapar! Ela respirou fundo e seguiu-o
pelo corredor. Entraram no quarto número oito e Mr. Gillet
fechou a porta a chave. O aposento era dos antigos; uma
sala dividida em duas, living e alcova, adornada com móveis
de mogno do século passado; tinha, até, um relógio
dourado, estilo rococó, em cima da lareira.
— Muito bem — disse Mr. Gillet, sentando-se na beira da
cama e deixando de sorrir. — Agora, vamos conhecer toda a
verdade. Quem é você?
A garota piscou os olhos azuis.
— Já lhe disse, monsieur. Sou Happy Weber e meu
marido...
— Mentira! — Os olhos aguados do velhote pareciam
verrumas. — Pode confiar em mim. Como conseguiu esses
documentos de identidade? E por que está à procura de
Paul Provence?
— Já lhe expliquei. Conheci Monsieur Provence na rua e...
— Mentira! Tudo mentira! — O velhote estava se
tornando irritado e ameaçador. — Você veio sozinha da
Suíça? Ou tem amigos aí fora? Está se arriscando muito,
menina! O nome de Paul Provence não dá saúde a ninguém!
— Quero apenas cobrar uma dívida — retruca, ela,
formalizada. — Por favor, monsieur, não me bata! Seja
carinhoso para mim! Eu preciso tanto de carinho! Perdi a
memória, sabe? E estou procurando o meu passado!
— Ah! — exalou o velhote, aliviado. — Isso é mais
verossímil. Compreendo. Você perdeu a memoria,
coitadinha! E seu marido a abandonou em Paris.
— É verdade, monsieur. Ele me trouxe da Suíça.
— Sim, talvez seja verdade. Pois teve sorte em me
encontrar aqui. Já ouvi falar em Paul Provence. Mas todos
nós, hóspedes de l'Hôtel, recebemos ordens para calar o
bico. Você não deve comentar isso com ninguém. Paul
Provence é um vendedor, como eu, e trabalha para um
laboratório de Genebra. Ele esteve hospedado aqui,
realmente, mas mudou-se. Ninguém conhece seu novo
endereço. mas é habitué do Café Dupont, na Butte
Montmartre. Quer um conselho, ma petite? Procure-o na
Place du Tertre, depois do cair da noite. Há algum mistério
com esse homem! Ninguém deve falar no seu nome!
— Eu imaginava que houvesse um mistério — confessou
a moça. — Ele me pareceu muito esquivo. Mas tem que me
pagar o preço do prazer!
— Claro — disse Mr, Gillet, sorrindo, outra vez, com
expressão de alívio. — O preço do prazer... Tire a roupa, ma
chèrie. Quero ver se você é mesmo tão bonita de corpo
como parece... Aposto que você tem os seios caídos.
Irritada, a garota desabotoou o vestido e exibiu os seios
duros e empinados. Nem sequer usava sutiã. Mr. Gillet
aproximou-se dela, trêmulo, os olhos vesgos. Mas foram
interrompidos por violentas pancadas na porta.
— Abra! — gritou uma voz esganiçada. — Abra
imediatamente, seu sem-vergonha.
— Parbleu! — rosnou o velhote. — É a minha Lili
d’Anvers! Péssimo momento para cenas de ciúmes!
Happy tornou a abotoar o vestido e correu para a porta,
abrindo-a. No corredor estava um homem magro, cabeludo,
com a cara rebocada de pó de arroz, vestido com um trajo
de soirée feminino.
— Que significa isso? — protestou a moça. — Quem é
você? Por que atrapalha o meu negócio?
O homem avançou para dentro do quarto, dizendo
palavrões. E enclavinhou as unhas, ameaçando arranhar o
rosto mimoso de sua concorrente. Mas o velhote interferiu,
aplicando uma violenta bofetada na cara do agressor.
— Quieta, Lili! Sua idiota!
Sob o impacto do golpe, o outro cambaleou e foi cair em
cima de uma cadeira. Ai, continuou a esbravejar: — Não
admito! Com que direito vocês me passam para trás? Eu lhe
faço todas as vontades, Gustave! Você é um velho sórdido,
infiel! De onde desencavou esta mulher horrível! Quero que
vocês morram, seus...
O velhote, furioso, pulou em cima dele e continuou a
esbofeteá-lo. Tap-tap-tap. Mas o outro reagiu, mordendo-o
no queixo, e a agressão degenerou numa luta selvagem. Os
dois homens, engalfinhados, rolaram pelo chão, trocando
dentadas e joelhadas. A moça aproveitou a ocasião para
sair do quarto. Estava desorientada. E foi cair nos braços de
outro rapaz (vestido com uma roupa masculina, muito justa
nas nádegas) que a arrastou para um quarto próximo. A
porta se fechou sobre eles e o rapaz deu-lhe duas voltas
com a chave.
— Pardon — disse ele; fazendo um ademane gracioso.
— Simpatizei com você, queridinha. Por isso, resolvi
arrancá-la das garras de Lili e Monsieur Gillet. Você
provocou os ciúmes daquela “bicha”, dando atenções ao
velho. Eu assisti a tudo, queridinha. Monsieur Gillet,
realmente, dava-se com Paul Provence, pois eu os vi juntos
uma noite. O velho usa todas as armas.
A moça passou a mão pelos olhos. Seu salvador era alto,
musculoso, mas tinha cara de boneca. E usava uma peruca
de cabelos louros, cuidadosamente frisados.
— Estou tonta! — queixou-se Happy. — Nunca esperei me
meter numa aventura destas! Conheci Monsieur Provence
por acaso e...
— Eu sei. Uma singular coincidência. Você é nova em
Paris, não é? Vê-se logo. Quer ficar minha amiga? Conheço
alguns homens ricos que também gostam de meninas com
pouca prática. Sob minha orientação, você pode chegar até
aos Champs Elysées... e alugar um apartamento discreto
em Passy...
— Quem é você?
— Meu nome de família já está esquecido,
queridinha. Sou Simone des Boulevards, não lhe diz nada?
— Nada.
O rapaz não se mostrou ofendido.
— Vê-se que você não conhece Paris, queridinha. Só o
Marechal De Gaulle tem mais fama do que eu. Gostei de
você, queridinha. Tenho olho clínico e sei quando uma
corista pode se transformar em vedeta... Você prefere os
ministros ou os novos ricos?
— Nem uma coisa nem outra, Simone. Não quero
continuar nesta vida! Quero encontrar Paul Provence, cobrar
o que ele me deve e voltar para a Suíça! Meu verdadeiro
nome não é Happy Weber... e tenho a impressão de que sou
uma moça de família!
— Você nasceu mesmo na Suíça? — perguntou ele,
desconfiado.
— Perdi a memória — esclareceu ela, encarando-o. —
Não sei quem sou.
— Ah! — fez ele, com expressão de simpatia.
— Monsieur Lucien Weber, um bonito rapaz de Zurique,
tomou-me sob sua proteção. Mas teve que embarcar para a
Suíça. Você conheceu Paul Provence? Talvez ele seja a
chave do enigma! Por intermédio de Paul Provence talvez eu
encontre o meu passado!
— Sim, talvez... Vou ajudá-la, queridinha. Em mim, você
pode confiar. Depois, se quiser, eu a apresentarei aos meus
amigos. Costumo cobrar apenas vinte por cento de
comissão.
A garota assentiu, preocupada, e voltou a falar no
misterioso Paul Provence. Tinha uma pista: o velho Gillet lhe
indicara um café da Place du Tertre, em Montmartre, como
ponto de referência para o encontro com Provence.
— Sim — disse Simone, pensativamente. — Pode ser
verdade. Ninguém viu direito esse indivíduo, quando ele
veio ao hotel. Mas o velho já o conhecia. É possível que
você encontre o homem nesse café. Eu a acompanharei,
para desfilar com você. Adoro exibicionismo! E, ao lado de
uma mulher tão bonita, certamente aumentarei a minha
roda de admiradores! Mas não é só por isso, queridinha.
Você corre perigo!
— Eu? Por quê? Só porque falei em Paul Provence?
— Sim. Como lhe disse, esse nome é veneno! Ainda não
descobri o mistério, mas tenho as minhas desconfianças.
— Drogas!
— Drogas?
— Sim. Fale baixo. Detesto paraísos artificiais, entende?
E odeio os traficantes de heroína e LSD! Meus prazeres são
todos normais, de homem para homem! Desconfio que esse
Paul Provence está ligado a uma quadrilha de
contrabandistas de drogas! Você não me parece viciada,
queridinha. Logo, acredito na sua história. Refiro-me à
amnésia. Mas não acredito no resto. Você ainda não teve
relações com Paul Provence. Nunca o viu mais gordo! Certo?
— Certo — suspirou a moça. — Também simpatizei com
você, Simone. Vou confiar em você. Eu nunca vi Paul
Provence. Mas ele pode ser a chave do enigma.
E mostrou-lhe a mensagem encontrada no forro do seu
tailleur bege. O rapaz leu e soltou uma exclamação de
surpresa.
— Viu? Ele fala em Casa de Saúde e doenças mentais! A
maior parte dos viciados acaba no manicômio! Tudo se
ajusta, queridinha! O seu Paul Provence é um negociante da
loucura! Agora, prepare-se para escapar de Mr. Gillet!
Vamos fazer uma visita ao Café Dupont, no alto de
Montmartre!
Tiveram sorte. Simone trocou de roupa, envergando um
vestido feminino, e espiou o corredor. Estava deserto.
Saíram pelos fundos de l'Hôtel e deram volta ao
quarteirão, regressando à Rue des Beaux Arts.
— Vamos de táxi? — propôs Simone, endireitando os
folhos do vestido.
— Não. Tenho carro. Um Alfa branco, último tipo, que
você vai adorar. É um produto típico do exibicionismo
italiano.
— C’est mirabolant! Simone des Boulevards vai esnobar!
Minutos depois, rodavam para a Butte Montmartre, no
18° arrondissement. A noite caía sobre Paris. Atravessaram
a Place Pigalle (que a moça achou ridiculamente pequena e
feia em relação à sua fama) e subiram até a Place du Tertre.
Entre os cafés, com suas mesinhas na calçada, sob os
toldos coloridos, o Café Dupont quase passava
despercebido.
Happy deixou o Alfa num ângulo da praça e entrou no
bar, acompanhada por Simone, que se refrescava com um
leque.
Na rua desfilava uma multidão de gente estranha e viam-
se pintores, trabalhando à vista do público, criando
paisagens e retratos de fregueses ocasionais.
— Você chegou a ver Paul Provence — sussurrou Happy
ao ouvido de seu companheiro. — Eu nunca o vi. Ou, pelo
menos, não me lembro de tê-lo visto. Diga-me se ele está
aqui.
— Não — respondeu Simone, depois de encarar, um por
um, os fregueses do café. — Que homens feios, mon Dieu!
Ainda é cedo, queridinha. Vamos nos sentar e comer alguma
coisa, como duas moças bem comportadas. Se você não
tem dinheiro, alguém pagará. Só espero que não seja
aquele velho baboso, ali no fundo...
— Seja mais discreto — admoestou a moça. — Eu ainda
tenho alguns francos, que meu marido me deixou.
— Discreto, não, queridinha. Aprenda a falar comigo. Eu
sou indiscreta!
Sentaram-se e pediram salada russa, com frios sortidos e
“croissants”. Simone escolheu um vinho branco. A noite foi
passando e não apareceu ninguém com a cara de Paul
Provence. Por volta das dez e meia, Happy sentiu-se
desanimada. Simone tinha afugentado alguns homens mais
impulsivos, que queriam pagar a despesa das duas
beldades — sujeitos macilentos que demonstravam a maior
grossura.
De repente, um homenzinho pequeno e esquivo, escuro
como um marroquino, aproximou-se da mesa e inclinou-se
para eles.
— Salut! Madame Weber?
Happy disse que sim. O sujeito falava em voz baixa e
abafada: — Sou Yussuf, de Marrakech. Monsieur Paul
Provence espera-a no Moulin de La Galette. À tout à l’heure,
madame!
A moça encarou-o e teve a impressão de que já vira o
seu focinho noutro lugar. Onde? Quando? Tudo eram
brumas, na sua memória! Logo depois de falar, o africano
desapareceu.
— Cuidado — alertou Simone, abrindo e fechando o
leque. — Mas não podemos deixar de subir. O Moulin de La
Galette já não é o que era; está em franca decadência e
abandono. Um bom lugar para um atentado contra uma
mulher que quer saber demais... Todo o cuidado é pouco,
queridinha!
Pagaram a despesa e puseram-se a caminho, a pé,
afastando-se dos locais mais concorridos. Para chegarem ao
Moulin, tinham que atravessar uma ruela escura e lúgubre,
calçada com grandes pedras irregulares.
— Deve ser aqui — sussurrou Simone, abanando-se com
o leque. — Preste atenção nos portais das casas. Não há
ninguém na calçada. Pode ser que o nosso Paul Provence
esteja no Moulin, mas também pode ser que não esteja.
Mal acabara de falar e quatro sombras negras saltaram
dos portais das casas velhas, cercando-os
ameaçadoramente.
Dois árabes na frente e outros dois atrás, agachados
como panteras! E todos quatro brandiam punhais cintilantes
nas mãos escuras e nervosas.
— Mon Dieu! — exclamou Happy, parando no meio da
calçada deserta. — Eles querem nos matar!
— Não há a menor dúvida — admitiu Simone,
arregaçando as mangas do vestido. — Mr. Gillet deu-lhe
uma pista falsa, atraindo-a a uma cilada! Mas eu sou
bailarina e faixa preta de judô! Ajude-me, queridinha! Você
pode usar as unhas e os dentes!
E começou o rififi.
3

Vitória do sexo frágil


Monsieur Gillet desaparece
Nada em Saint-Germain
Jantar no Maxim’s
Uma porta que se abre na escuridão

O primeiro a atacar foi o marroquino mais baixo, o


mesmo que se apresentara como Yussuf, de Marrakech. Ele
estava na frente de Happy e avançou, o punhal erguido,
pronto para desferir um golpe. Subitamente, a moça teve
consciência de que também conhecia judô, ou, ainda
melhor, karatê. Furtou o corpo ao assalto e, quando a mão
armada do agressor passou rente de seu peito, empolgou-a
pelo pulso.
Ao mesmo tempo, deixava-se cair, de costas, com um
joelho dobrado e o pé sobre o estômago do árabe, e
aplicava-lhe um “balão”. O sujeito voou e foi cair de cabeça
no meio da rua, perdendo os sentidos. E outro marroquino,
atrás de Happy, avançou correndo, para apunhalá-la pelas
costas.
Simone também estava em dificuldades. O segundo
assaltante da frente acabara de pular em cima dele,
brandindo o punhal. O rapaz encolheu a barriga, para não
ser atingido, e a lâmina apenas lhe cortou metade das
saias.
Simultaneamente, ele desviou a mão do homem, com
um cotovelo, e agarrou-o pelas abas do casaco, dando-lhe
uma rasteira. Quando o sujeito caiu, Simone soltou um grito
em japonês e subiu em cima de seu peito, lhe imprensando
o braço armado com o joelho.
— Atenção para as costas! — gritou Happy, enquanto
gritava na calçada, para escapar à punhalada de seu
segundo agressor.
Simone virou-se, como um felino, a tempo de bloquear
um golpe de punhal desferido pelo quarto árabe. Bateu no
pulso do inimigo, desviando a lâmina, e puxou-o pelos
cabelos crespos. O marroquino despencou, de bruços, por
cima de seu ombro, e foi estatelar-se na calçada, ao lado do
cúmplice imobilizado. O punhal tilintou nas pedras da rua,
aos pés de Simone; rapidamente, o rapaz apanhou-o e
encostou a ponta à garganta do adversário, que jazia
debaixo dele. Sentindo a picada, o árabe abriu a mão e
deixou cair o outro punhal. Entretanto, Happy rolava pela
sarjeta e punha-se de pé, para enfrentar o seu segundo
assaltante, que procurava espetar-lhe a lâmina afiada. O
homem avançou e deu um golpe. Ela recuou e respondeu
com um pontapé. Ele avançou de novo e repetiu o bote; ela
repetiu o pontapé.
Pareciam dançar um ballet, um “pas-de-deux”. O árabe
insistiu, com outro golpe; a garota furtou o corpo e agarrou-
o pelo pulso, com a mão esquerda, torcendo-o. Mas a arma
não caiu. Então, ela uniu os dedos da mão direita e aplicou
uma cutilada demolidora no pescoço do marroquino. Ele fez
“Omph” e dobrou os joelhos, estonteado. Outra cutilada de
karatê na nuca acabou de aniquilá-lo, derrubando-o como
uma árvore ferida por um raio.
— Só restam os seus dois — disse Happy, correndo a
ajudar Simone. — Vamos acabar com eles, filhinha!
Mas Yussuf tinha-se recuperado da queda e voltava ao
ataque. Brandindo o punhal contra as costas de Simone, ele
soltou um grito de triunfo, Happy interceptou-o, no meio do
caminho; seu corpo flexível voou e foi explodir, de pés
juntos, sobre o estômago do marroquino. Um perfeito yoko-
geri. Yussuf recuou, aos tropeções, e caiu sentado na beira
da calçada.
— Arrebente a cara dele — pediu Simone, por cima do
ombro, mantendo os outros dois árabes sob a ameaça do
punhal. — Amasse-lhe as ventas, queridinha!
Obediente, Happy aplicou um tremendo coice no nariz de
Yussuf, estourando-lhe as cartilagens. O sangue espirrou. Os
olhos negros do africano vidraram e ele tombou de costas,
gemendo, sem forças para reagir.
Súbito, o marroquino que atacara Simone pelas costas (e
que parecia ter desmaiado com a queda) deu um pulo e
fugiu, numa disparada, pela ruazinha estreita,
desaparecendo nas sombras. Simone saiu de cima do outro
árabe, mantendo-o sob a ponta do punhal. Happy ajudou-o
a pôr o homem de pé. Era o único que estava em condições
de falar.
— Très bien — disse a garota, agarrando o prisioneiro por
um braço. — Quem mandou vocês nos atacarem?
Comece a vomitar a história toda!
Ela própria se admirava de sua atitude decidida; agia
como se já estivesse habituada àquele tipo de rififi. Mas o
árabe permaneceu mudo.
— Enfie-lhe o punhal na garganta — ordenou Happy a
Simone, piscando-lhe um olho. — Ele falará pelo buraco da
laringe.
O rapaz colaborou na farsa, espetando, de leve, o
pescoço do homem. Este recuou, apavorado, mas Happy
torceu-lhe um braço, obrigando-o a ficar de joelhos.
— Não vai falar? — rugiu a moça, fingindo-se furiosa. —
Então, eu mesma lhe cortarei a garganta, de lado a lado!
Sou boa cozinheira e sei matar galinhas!
Desesperado, o árabe pôs-se a chorar. As lágrimas
escorreram, pateticamente, pelo seu rosto encardido.
— Yussuf nos contratou — gemeu ele. — Não temos nada
contra vocês! Por favor, não me maltratem! Nunca esperei
que duas mulheres fizessem um estrago destes!
— Vocês queriam nos matar — acusou Simone. —
Homens violentos, tarados!
— Só tínhamos ordens para matar mademoiselle.
— Você quer dizer madame!
— Quero dizer mademoiselle, como disse Yussuf. O
Prof. Clochet pagou a Yussuf e ele ia pagar a nós. A ordem
era matar mademoiselle, fingindo um assalto. Tudo o que
roubássemos seria nosso, mas mademoiselle não devia
escapar. Nunca esperei que duas mulheres nos dessem
tanto trabalho!
— Quem é o Prof. Clochet? — quis saber Happy.
— Ignoro. Só o conheço de nome. Ele pagou a Yussuf, na
Rue Damrémont. Nós trabalhamos para Yussuf, na favela de
Montmartre. Só Yussuf sabe quem é o Prof. Clochet.
Happy foi se ajoelhar ao lado de Yussuf e deu-lhe
algumas bofetadas, para que ele recuperasse a consciência.
O pequeno marroquino não era difícil de manobrar. Quando
sentiu um punhal lhe rasgar o peito, pôs-se a falar pelos
cotovelos: — Mais oui, mais oui! Monsieur le professeur me
contratou, pagando-me com uma boa partida de heroína,
que pode render até mil francos! Não sei quem é ele, nem
onde mora. Juro que não sei! Ele sempre aparece do outro
lado da cidade, em Montparnasse, fiscalizando a venda das
drogas. Queria que eu e meus amigos neutralizássemos
mademoiselle.
— Madame — emendou Simone, irritado. —
Mademoiselle, foi o que disse le professeur. Ele planejou
tudo. Eu devia atrair mademoiselle ao Moulin de La Galette
e enfiar-lhe a faca. Mas...
— Mas venceu o sexo fraco — disse Happy, sorrindo. —
Então, esse Prof. Clochet aparece em Montparnasse,
hem? Em que lugar, exatamente?
— Por ali. No Faubourg Saint-Germain, aqui e ali. Não tem
um pouso certo, compreendem? Ele não é vendedor, é
fiscal. Os vendedores são outros. Não sei de mais nada,
mademoiselle. Sou muito ignorante.
Nisso, os outros dois árabes voltaram a si e também
saíram disparados, pela viela, desaparecendo. Happy ainda
deu um peteleco no nariz ensanguentado de Yussuf e
mandou-o embora.
— Não queremos complicações com a polícia. Dê o fora,
Yussuf! E diga ao Prof. Clochet que eu ainda o encontrarei!
Como é o tipo dele?
— Um velhote risonho, de grande cabeleira
branca. Merci, madame. De qualquer maneira, recebi o
pagamento adiantado...
E, antes que mudassem de opinião, desvencilhou-se e
fugiu correndo. Simone recolheu os quatro punhais e meteu-
os no decote e nas ligas, sorrindo para Happy.
— Sempre podem render alguns francos no “Mercado das
Pulgas”...
A moça estava séria e preocupada.
— Vamos embora, Simone! Já é quase meia-noite e estou
cansada da briga! Vamos voltar a l'Hôtel! Monsieur Gillet
também precisa falar!
Não havia a menor dúvida de que era ele o Prof. Clochet.

Mas, quando chegaram ao hotel, não encontraram Mr.


Gillet, nem Lili d’Anvers; o casal tinha saído e ainda não
regressara. Happy e Simone foram para o quarto do
segundo, onde se sentiam em mais segurança.

— Você dormirá comigo — decidiu o rapaz, despindo o


vestido rasgado. — Sabe que não precisa ter medo, pois não
a molestarei. Vocês, mulheres, não são o meu tipo.
A garota sorriu e deu-lhe um beijo. Ele retirou os lábios,
cheio de nojo, evitando um contato direto.
— Não faça assim, queridinha! Não quero confianças
comigo! Você é tão bonita que tenho medo de me
regenerar! E isso seria horrível, para o amor-próprio de
Simone des Boulevards! Deite-se na cama; eu vou dormir no
sofá.
Passaram uma noite tranquila, sem contratempos.
Ninguém tentou entrar no quarto. Pela manhã, quando
acordou, Happy deu por falta do companheiro. Mas o rapaz
apareceu logo depois, sobraçando um imenso livro de capa
vermelha. Entrou e fechou cautelosamente a porta.
— Bonjour, queridinha. Aqui está o registro dos
hóspedes. Veja na página anterior à última com anotações.
Há uma rasura.
Happy abriu o livro e constatou o fato. Olhando a página
contra a luz. O nome de Paul Provence ali estava, riscado
várias vezes. O local de procedência do hóspede era uma
casa de cômodos de Montparnasse.
— Ele esteve aqui dois dias apenas — informou Simone.
— E desapareceu misteriosamente! Desconfio que só
veio a l'Hôtel com o propósito de se encontrar com você.
Mas deu azar. Não sabia que Mr. Gillet... aliás, Prof.
Clochet... já aqui estava hospedado. Seu sumiço pode ser
atribuído ao velho amigo de Lili.
Happy acenou, mordendo o lábio.
— E onde estará, agora, Monsieur Gillet-Clochet?
Simone suspirou.
— Só Deus sabe! Estive no quarto deles. Lili d’Anvers, a
grande sem-vergonha, está sozinha, desfeita em prantos.
Seu amiguinho mudou-se, ontem à noite, e não deixou o
novo endereço. Por outras palavras: Mr. Gillet também
desapareceu, tal como Paul Provence! Todo mundo
desaparece, quando você chega!
A moça anuiu, desgostosa. Depois: — Lili não sabe de
nada?
— De nada. É uma idiota, essa Lili! Nunca vi uma “bicha”
tão estúpida! E dizer-se que era um ótimo estudante, na
Bélgica! Apaixonou-se pelo velho porque ele lhe fornecia
drogas. Quando não toma uma “prise", Lili fica possessa.
Agora mesmo, está gritando e oferecendo cem francos
por uma picada de morfina. Tenho nojo desses viciados, eles
desmoralizam o nosso modo de vida!
— Já que perdemos a pista de Mr. Gillet — refletiu Happy
— temos que tentar o Prof. Clochet! Paul Provence também
dá, como sua procedência, o bairro de Montparnasse. Você
quer almoçar comigo no Faubourg Saint-Germain?
— Com o maior prazer — sorriu Simone. — Lá, entre os
“pops”, encontrarei muitos colegas em atividade. Adoro
roubar os namorados dessas “bichas”!
Às onze e meia daquela manhã, eles já estavam
entrando num dos restaurantes mais conhecidos e honestos
do bairro boêmio: “La Coupole”, no próprio Faubourg.
Almoçaram as especialidades da casa e, duas horas depois,
saíram para um passeio pela avenida. Não havia sinais do
velhote da cabeleira branca. Nem de Paul Provence, que
Simone afirmava ser um sujeito magro, nervoso e “olhudo”.
Todos os beatnicks que lhes queriam vender objetos de arte
(ou cápsulas de narcóticos) tinham os olhos pequenos.
Happy olhava para todos os lados, tentando reconhecer
alguma casa, alguma rua. Nada! Era como se andasse por
ali pela primeira vez!
Simone manteve contato com alguns artistas excêntricos
e cabeludos, seus amigos íntimos, mas nenhum deles
conhecia Paul Provence, nem lhes deu notícias do Prof.
Clochet. Uma garota hippie, de cabelos soltos com foulards
amarrados na testa em linha reta, informou-os de que o
velhote risonho não era visto no bairro havia uma semana.
Happy e Simone fizeram várias investigações, nas casas
de cômodos, nas lojas e nos hotéis, mas não foram mais
felizes.
Só um sujeitinho trêmulo, com cara de morfinômano,
lhes deu uma pista: — À noite, no Rêve d’Or, costuma haver
transação de haxixe. O Prof. Clochet, às vezes, aparece por
lá, embora o haxixe tenha baixa cotação. O velhote tem
andado sumido.
Sua especialidade é a heroína e o ácido lisérgico. Quanto
a esse Paul Provence, é a primeira vez que ouço falar nele.
Eu comprava a mercadoria das mãos de Julien Salout que
agora está nas grades. Vocês têm heroína?
— Nós somos duas heroínas — replicou Simone, fazendo
uma careta. — Mas não comerciamos com porcarias! Suma-
se daqui, seu nojento! Tomara que você vá acabar no
hospício, com os seus vícios extravagantes! Por que não
toma juízo e não leva uma vida normal, familiar, ao lado de
um atleta que o faça feliz?
O homenzinho soltou um queixume e foi-se embora,
cambaleando como um bêbado. Eram sete horas da noite e
a vida ainda não começara a esquentar, em Montparnasse.
Happy sugeriu a Simone irem jantar no Rêve d‘Or; podia
ser que desencavassem Paul Provence, vendendo cocaína
num dos mictórios...
— Nada disso — retrucou Simone, compondo a peruca
morena que adotara para a aventura. — Hoje, sinto-me uma
duquesa... e você tem um carro esporte branquinho que faz
gosto! Vamos esnobar no centro! Sugiro um belo jantar,
regado a champanhe, o Maxim's! Que tal?
Happy disse que não conhecia o famoso restaurante da
Rue Royale e adoraria jantar lá; depois, então, regressariam
a Montparnasse. Mas tinha uma dúvida: o máitre do
Maxim's permitiria a entrada de um travesti? Simone deu
uma risada e respondeu que, de passagem, iriam até
l'Hôtel, onde ele mudaria de roupa.
— Vou esnobar como um duque, queridinha! E a duquesa
será você! Já reparou como nós dois podemos formar um
casal encantador?
— Pardon — alarmou-se Happy. — Você também gosta...?
— Não. Pode ficar tranquila. Eu não sou Monsieur Gillet.
Só serei um gentleman na aparência; no fundo,
continuarei a ser uma louca demoiselle...
Passaram pelo hotel da Rue des Beaux Arts e
encontraram Lili d’Anvers no living, fazendo um escândalo.
O homem estava descabelado, com o vestido rasgado,
implorando para que lhe dessem uma ampola de morfina.
Mr. Gillet não aparecera. O recepcionista já tinha telefonado
para a polícia, pedindo que viessem buscar o viciado. Eram
horríveis, os sofrimentos causados pelo “estado de
carência”! Happy, penalizada, seguiu Simone até o quarto.
— Lili vai ficar de molho mais alguns meses — disse o
rapaz, enquanto trocava de roupa. — Mr. Gillet é um
criminoso! Ele só obtém a submissão desses infelizes
oferecendo-lhes drogas! Vicia-os e, depois, faz deles o que
quer! Mas não há provas de suas atividades. Nós duas
havemos de metê-lo na cadeia, queridinha!
Saíram (Simone elegantemente trajado de homem) e
tomaram o Alfa. Happy olhou para o seu relógio de pulso,
comprado por Lucien em Lausanne: oito horas. Ainda era
cedo.
— Vamos até a Rue de La Fontaine — resolveu ela,
engrenando o carro. — Também quero esnobar, num belo
vestido de soirée. Foi o único que comprei na Suíça.
Perderam mais uma hora e meia, na ida para o décimo
sexto arrondissement, e já eram dez e meia quando
chegaram à Rue Royale. Os salões do Maxim's regurgitavam
de comensais. Simone portava-se como um perfeito
cavalheiro, gozando também o sucesso causado pela
figurinha graciosa de sua companheira. Happy estava
encantadora, num vestido de seda branca, que parecia feito
sob medida. Quando eles entraram, todo o salão emudeceu
— e, depois que se sentaram, recomeçaram as conversas.
Mas todos os olhares se voltavam, insistentemente, para
a bela Sra. Happy Weber. O maître, que tinha ido recebê-los
à porta, desmanchava-se em salamaleques, sorrindo de
maneira pouco convencional. A moça escolheu o jantar —
“fillets de sole Albert” e “noisette d’agueau Edouard VII” —
e confabulou com Simone a respeito dos vinhos; queria
alguma coisa leve e fresca.
— Creio que champanhe ficaria bem — disse o rapaz. —
Você prefere Cristal ou Don Perignon? Há caviar nos “hors-
d’ouvre”. Também pedi cerejas frescas.
— Prefiro Perignon 55 — respondeu a moça, sem refletir.
Pouco depois, um garçom trouxe a bebida, num balde de
prata cheio de cubos de gelo. Enquanto ele girava a garrafa,
Happy pôs-se a pensar, procurando descobrir o motivo por
que escolhera, impulsivamente, aquela marca de
champanhe, da safra daquele ano. Era a melhor safra,
realmente, mas como é que ela sabia?
— Engraçado — murmurou, os olhos pousados na garrafa
que o garçom agitava levemente. — Onde foi que eu já bebi
Perignon 55? Tenho a impressão de que isso faz parte do
meu passado!
Simone olhou para ela, perplexo, batendo as pestanas
postiças. Mas, nesse momento, o garçom abriu a garrafa e
encheu as duas taças. Simone escolheu duas cerejas
maduras e deixou-as cair nas taças cheias do líquido
dourado e espumejante. Simultaneamente, o maître se
aproximou, a espinha dobrada como um caracol.
— Santé! — disse ele, a meia voz, sorrindo com ar
cúmplice. — É um prazer recebê-la outra vez, Mademoiselle
Montfort!
Foi como se alguma coisa estalasse no cérebro da
garota, como se uma porta se abrisse na escuridão de sua
memória, deixando entrar o som e a claridade. O Prof. Saint-
Autel tinha razão: sua memória poderia voltar, de repente,
por uma associação de ideias ou pela contemplação de um
objeto familiar. A prova disso é que acabara de voltar! No
mesmo momento em que viu a taça de champanhe com a
cereja no fundo, ela se recordou de todo o passado,
inclusive do motivo por que sofrera aquela agressão nos
bosques de Caux. Ela não era Happy Weber; sabia que não
era, mas desconhecia seu verdadeiro nome. Agora, sabia!
Ela era Brigitte Montfort, repórter do “Morning News” de
Nova Iorque e agente secreto da CIA! 
E o maître do Maxim’s sabia disso!
4

Retrospecto
Uma pista em Genebra
A clínica Mon Repos
Paul Provence
Um depósito à beira do rio
O ataque

Ao notar a expressão de sua companheira, Simone


perguntou a meia voz: — Lembrou-se de alguma coisa
importante?
— Sim — respondeu ela. — Eu sou Brigitte Montfort!
O gordo maître do Maxim’s assentiu, sorrindo.
— Certamente, mademoiselle. Ainda na segunda-feira
passada tive a honra de servi-la, ao almoço. Mademoiselle
nos disse até que chegara a Paris no sábado, para fazer
outra de suas extraordinárias reportagens. Espero que o filé
de linguado esteja ao gosto de seu exigente paladar.
Brigitte dispensou-o e ficou a sós com Simone. O rapaz
parecia aturdido. Também ele conhecia Brigitte Montfort de
nome.
— Mon Dieu, queridinha! O que você não dirá a nosso
respeito no seu jornal americano! Por favor, não diga que
todos os parisienses são iguais a mim!
A garota sorriu.
— Não direi, Simone, porque sei que não são. Minha mãe
era francesa. Você já ouviu falar de mim?
— Quem não ouviu? Você é famosa! Tão famosa como
sua mãe, Giselle, a espiã nua que abalou Paris! Agora, mais
do que nunca, eu me orgulho de ser sua amiga! Recorda-se
de toda a sua vida?
— De toda. Não há mais nenhum claro a preencher na
minha memória. É um verdadeiro milagre!
— E o que é que você está fazendo em Paris? Por que foi
atacada nos arredores de Lausanne?
— Estou aqui fazendo uma reportagem sobre drogas
para o “Morning News” de Nova Iorque. Meu chefe, Mike
Grogan, disse que a tiragem do jornal diminuiu desde que
eu me tomei muito local. Por isso me mandou vir a Paris,
que é um dos centros de distribuição de drogas no
Ocidente.
Era verdade, mas nem toda a verdade. Além de trabalhar
no “Morning News”, Brigitte tinha ido à Europa com uma
incumbência de seu chefe na CIA, o inspetor Charles Pitzer.
Dessa vez, não se tratava de espionagem, mas de
tóxicos. A Interpol queria conhecer os chefes de uma
quadrilha de traficantes, ligados à Máfia, que colocavam
heroína nos Estados Unidos, via Paris. E a CIA encarregara a
sua agente especial, Brigitte Montfort, de descobrir o nome
do chefão.
Brigitte lembrava-se agora de tudo. A história começara
no sábado, 15 de julho, quando ela desembarcara em Paris,
chegada de Nova Iorque. Levava no bolso uma carta do
diretor do “Morning News” apresentando-a ao seu
correspondente na capital francesa, Fédor Ralov, um russo
branco que se dizia sobrinho do Tzar. Fédor era um viciado
em morfina e um profundo conhecedor do assunto. Brigitte
falara com ele, no próprio sábado, num café da Rue Oswald,
em Passy, e ouvira de seus lábios esta explicação: 
— A droga chega a Paris pronta para o consumo e é
vendida pelos “irmãos” da Máfia. Entre eles, estão os
homens que você procura para a sua reportagem. A
ramificação da quadrilha que embarca a heroína para os
Estados Unidos é a mais escorregadia, pois trabalha sob as
ordens de um sujeito muito vivo, um médico de longos
cabelos brancos, cujo nome muda todas as semanas. As
vezes, ele é Monsieur Gillet, às vezes Prof. Clochet, e às
vezes, Dr. Sioux. A figura desse cidadão é mitológica. Ele
tanto pode aparecer em Montparnasse como em
Montmartre, ou no Bois de Boulogne. Escorregadio e atento,
prefere liquidar os seus cúmplices a entregá-los à polícia.
Mas o caso não é esse. O caso é que a droga sai da Itália em
bruto... papoulas, coca, fungo de centeio... e chega à França
transformada em morfina, heroína, cocaína e ácido
lisérgico. Agora eu lhe pergunto: onde se dá o milagre de
transformação? Não é na Itália, como antigamente, porque
as autoridades nunca mais o permitiram.
— Então, é na própria França.
— Também não. Já não há ópio em lágrimas, na França,
há morfina pura. Suspeitamos que as drogas entrem aqui
através da Suíça.
— Ah!
— Só pode ser isso. A fronteira com a Suíça é a única
onde a polícia não pode ter >um controle efetivo. E um
agente da Interpol foi assassinado, há poucos meses, em
Besançon, que não fica muito longe da fronteira. Por isso,
desconfiamos da Suíça.
— Diga, Fédor, você tem algum suíço entre os seus
fornecedores? — quis saber Brigitte.
— Não conheço nenhum. Aliás, estou em tratamento,
para abandonar o vício. Mas o tal doutor fala fluentemente o
francês, o alemão, o italiano e o romanche. É uma língua
neolatina, usada na suíça. Além disso, ele age como fiscal
da quadrilha e viaja muito. Faz-se passar por caixeiro de
uma firma italiana. Será muito difícil você ter uma
entrevista com ele. Eu próprio não o conheço.
— Que é que você me aconselha?
— Diz um provérbio japonês que, para se vencer um
general o melhor é derrubar o seu cavalo...
— Devo, então, começar pelos vendedores? Você acha
que a arraia-miúda me levará ao chefão?
— Claro. Você tem prática, Brigitte. Meta-se no bas-fond
parisiense e separe o joio do trigo... ou o esporão do
centeio. Dou uma sugestão: Montparnasse. Vende-se muito
LSD por ali. Também se vende algum no Quartier Latin. Você
sabe o que deve fazer. Mas tome cuidado! Esses homens
não são para brincadeiras! Até a própria Máfia respeita o
território deles!

Brigitte agradecera os conselhos de seu colega e metera-


se na aventura, armada apenas com a sua câmara
fotográfica.
Passara a noite de sábado (e todo o dia de domingo) no
Faubourg Saint-Germain, batendo chapas e entrevistando
hippies, mas não obtivera nenhuma outra pista do
misterioso médico cabeludo. Os vendedores da quadrilha
que ela encontrou trabalhavam apenas em Paris e não
conheciam os outros, que contrabandeavam a droga para a
América. Eram estes que a Interpol queria apanhar.
Na segunda-feira pela manhã, Brigitte tinha sido
acordada por um telefonema anônimo, no seu hotel da Rue
de Ponthieu. Uma voz baixa e rouca aconselhara-a a
interromper a sua reportagem sobre as drogas e voltar para
o seu lar. Enquanto ouvia o seu interlocutor, a garota
identificou um ruído, em background: a voz inconfundível de
um mendigo que vendia pentes à porta do Rêve d’Or,
pequeno restaurante de Montparnasse. Meia hora depois,
ela estava entrando no estabelecimento e ainda tinha
tempo de encontrar um grupo de três homens suspeitos,
jogando cartas numa das mesas do fundo. Brigitte levava
óculos escuros e marcara o rosto com maquilagem,
imitando uma cicatriz.
Aproximou-se dos sujeitos e implorou uma picada.
Mostrou-lhes algumas notas de cem francos. Dois dos
contraventores fugiram correndo, mas o terceiro foi
apanhado na porta.
Brigitte aplicou-lhe uma “gravata” e levou-o para o
mictório do restaurante, onde deu início a uma violenta aula
de “lavagem cerebral”. O homem era duro, mas acabou
amolecendo e revelando o que sabia. Falou em voz baixa e
rouca: — Recebi ordens do professor para assustar a
jornalista americana. Ele não está em Paris, mas foi avisado
de sua entrevista com Fédor Ralov. Eu são vendo a droga;
sou estivador do cais do porto. Não sei quem são os
vendedores, em Paris, e muito menos os chefes do bando.
Mas sei que há um tal Paul Provence metido no negócio.
Paul vende uma parte da droga na cidade e embarca o
excedente para os Estados Unidos. Pode-se dizer que ele é o
lugar-tenente do professor.
— E quem é o professor?
— Não sei. Só o conhecem assim. Já lhe disse que eu
trabalho noutra zona! Recebo as mercadorias e mando para
bordo, nos fundos falsos dos caixotes de champanhe. Dou-
lhe um conselho, mademoiselle: ouça o que eu lhe disse
pelo telefone e dê o fora daqui! Mademoiselle não está
segura em Paris!
— De onde vem a droga?
— Não posso dizer.
Brigitte recomeçou a aula de persuasão, aplicando um
golpe de karatê na barriga do sujeito.
— A droga vem de Genebra — confessou o infeliz,
vomitando tudo o que tinha no estômago. — Genebra, na
Suíça. Entra pela fronteira despoliciada, em carros e
caminhões, e segue a rota de Dijon. Mas o laboratório, onde
eles refinam o ópio em lágrimas, deve ficar em Genebra.
— Em que parte de Genebra? A cidade é muito grande.
— Não sei. Procure o Dr. Lémont, na Clínica Mon Repos.
Um dos caixotes que eu recebi tinha o nome dessa clínica.
Eram ampolas de vitaminas, mas havia alguns frascos de
morfina.
Depois, antes que Brigitte o impedisse, o homem
escapara de suas mãos e correra para a rua. A repórter foi
atrás dele, mas chegou tarde. Um enorme caminhão de
transportes, que descia pela avenida, passou por cima do
desgraçado. Tudo não fora além de um acidente; ao fugir, o
sujeito não vira o caminhão na disparada. Mas Brigitte tinha
uma pista.
Então, ela telefonara para o escritório da CIA, no
Boulevard Diderot, e relatara tudo, comunicando que seguia
para Genebra. Em resposta, o agente residencial, Pierre
Charbreuse, desejou-lhe boa viagem. Essa tinha sido a
última vez em que a CIA tivera contato com a sua agente
secreta; depois desse dia, Brigitte Montfort desaparecera da
face da Terra.
Na verdade, ela chegara bem a Genebra, viajando num
Caravelle da Air France que aterrissou no aeroporto de
Cointrin (setor suíço) às duas horas da tarde, Antes de
procurar a Clínica Mon Repos, fora almoçar num restaurante
pitoresco, num bourg, próximo da cidade (“L’Olivier de
Provence) onde apreciara uma excelente “fondue à Ia
bourguignone”. Por volta quatro e meia, regressara ao
centro de Genebra, numa inspeção turística. Um táxi levou-
a, pelas belas avenidas, ao longo da orla do lago Léman, de
volta à Gare de Cornavin. Daí, seguiu pela Rue de Lausanne,
que costeava o bairro de Paquis, e desembocava diante do
Parque Mon Repos, debruçado sobre o lago. Ali ficava a
Clinica, no meio de um quintal bonito e sonolento. O Dr.
François Lémont era o diretor do pequeno sanatório. Um
suíço alto o forte, de rosto corado e voz de trovão. Brigitte
apresentou-se como correspondente do “Morning News” e
ele ficou encantado ao saber que sua fotografia sairia na
primeira página do famoso matutino. Sua entrevista foi
completamente inócua, até quo a entrevistadora aludiu ao
tráfico das drogas. Aí o Dr, Lémont tornou-se reticente, Mas
a repórter insistiu e ele resolveu ser franco, Tinha um peso
na consciência.
— Bem, mademoiselle... Nós, da direção administrativa
do hospital, não podemos controlar detalhadamente a
entrada o saída de drogas, pois trabalhamos com elas.
Umas são inofensivas, outras não. Usamos boas
quantidades de morfina, é claro, mas nunca houve
nenhuma denúncia contra a minha clínica. E um enfermeiro
que tínhamos, e que utilizava embalagens da casa para
contrabandear heroína, foi despedido no mês passado.
— Como era o nome dele?
— Paul Provence. Mas mademoiselle não o encontrará,
mais, na Suíça. Ele tinha família em Paris e é possível que
tenha voltado à sua terra. Só trabalhou na clínica pelo
espaço de um mês e meio. E foi posto na rua!
— Como é que ele contrabandeava a droga?
— Não sei. Só sei que demos por falta de algumas caixas
de medicamentos... vitaminas, para ser exato. Ele as
utilizava para acondicionar os frascos de morfina. Logo que
recebi a denúncia, tentei prendê-lo, mas ele escapou.
— O senhor não tentou prendê-lo, doutor. Não comunicou
nada à Interpol.
— Sim, talvez eu não tenha agido certo, mas... O fato é
que pus o homem no olho da rua! Achei preferível manter o
caso em sigilo, para salvaguardar o bom nome da
clínica. Nossa missão é curar os viciados e um escândalo
desses... Enfim, acabou-se! Agora, mademoiselle, não há
mais contrabando de drogas por aqui! Não passa um grama
de heroína, pela enfermaria, sem que eu tome
conhecimento! Os estoques passaram a ser controlados por
mim mesmo e pelo velho professor.
— Velho professor? — perguntou Brigitte, sentindo um
baque no coração.
— Sim, mademoiselle. Meu mestre. Tem oitenta anos e é
preto como o carvão. O Prof. Gwanda Okapi nasceu na
Nigéria.
Ao sair da clínica, Brigitte voltara ao táxi, que esperava
por ela. Nisso, notou que estava sendo seguida. Outro carro
ia atrás dela, a uma distância constante. Regressou ao
centro de Genebra, passeou, pelo Chemin de Florissant até
o portão do Parque Alfred Bertrand (onde também havia
uma clínica psiquiátrica) e foi se hospedar no Hotel
d’Angleterre, em frente ao lago. Esperava que acontecesse
alguma coisa, nessa noite cálida de verão, mas não
aconteceu nada. Tomou alguns drinks, no terraço do hotel,
enquanto apreciava a iluminação do “sei d’eau” no Lago
Léman. Ninguém a procurou. Talvez não tivesse sido
seguida, afinal de contas...
No dia seguinte, voltara a Paris, num jato Coronado de
Swissair. Precisava descobrir o tal Paul Provence, ex-
enfermeiro da Clínica Mon Repos! Esteve novamente em
Montparnasse, fazendo perguntas e tirando fotografias, e
acabou por encontrar uma velha Sra. Provence, moradora
num “cul-de-sac”, que confessou ser a mãe de Paul. Seu
filho lhe batia e era uma peste.
— Tomara que o prendam — disse a pobre viúva.
— Ele se meteu com gente muito ruim, que vende drogas
aos estudantes! Acho isso um pecado! Paul me falou num
tal Prof. Clochet, que deve ser o chefe da quadrilha. Meu
filho esteve em Genebra realmente, trabalhando como
enfermeiro... ele é enfermeiro diplomado... mas cansou-se
de ser honesto. Agora, não sei onde está morando. Chegou
de Genebra, pediu-me algum dinheiro emprestado e sumiu.
Já me deve meio milhão de francos! E eu trabalho para
viver!
Quando Brigitte ia saindo, apareceu à porta um homem
magro e nervoso, de olhos redondos como os de uma
coruja.
Tinha uma pistola na mão.
— Voilà, mademoiselle — disse ele, dando um empurrão
na velha Sra. Provence. — Sente-se, por favor. Vamos
conversar. Fui prevenido de que uma jornalista americana
andava atrás de mim... Quanto a você, mamãe, arrume as
suas coisas e dê o fora, para casa de tio Pinot!
Imediatamente! Não quero a senhora em Paris!
A viúva resmungara, mas desapareceu no interior da
casa. Então, Brigitte tinha lançado mão da verba de cem mil
francos, que a CIA pusera à sua disposição. Pelo que ouvira,
Paul Provence andava sempre precisando de dinheiro...
— O caso é o seguinte, Paul — disse ela, fitando o
homem nos olhos. — A Interpol está muito Interessada em
apanhar um homem chamado Gillet, ou Clochet. Apenas
esse homem, entende? E a cabeça dele vale cem mil
francos novos! É uma transação que pode ser feita entre
nós, sem que ninguém saiba... Você já está meio
“queimado”, depois do incidente na Clínica Mon Repos, e
não irá muito longe, sem dinheiro. A qualquer momento
pode cair nas malhas da Interpol. Ofereço-lhe a liberdade,
em troca do paradeiro do velho da cabeleira branca.
O contraventor ficou silencioso, um minuto, lambendo os
beiços. Depois: — Ele não está em Paris. E eu não sou um
traidor! Os traidores, na Máfia, têm os dias contados! Prefiro
me livrar de mademoiselle e...
Seu dedo estava pousado no gatilho da arma. Brigitte
atalhou, tão nervosa quanto ele: — De nada lhe servirá
matar-me, Paul. Pense bem. São cem mil francos, sem
impostos. E só nos interessa o Prof. Clochet. Você não
precisa dar uma resposta agora. Eu espero dois ou três dias.
— Você não pode ficar viva — retorquiu o mafioso,
irresoluto. — Você esteve em Genebra, seguiu a minha pista
e...
— A Interpol já conhece as suas andanças, Paul. Se você
me matar, vai para a guilhotina! Não se complique mais.
Nós só queremos o chefão. Ele está na Suíça, não é?
Sabemos que a refinaria de drogas funciona em Genebra.
O bandido empalideceu.
— Vocês não sabem de nada! Descobriram a minha pista
na clínica... e talvez no depósito, à beira do rio... mas eu
escapei! Ninguém vai me botar a mão!
— Claro que não, Paul. Você tem uma chance de
escapar. Entregue-nos o velho cabeludo. Se você concordar
com a proposta, pode recomeçar a vida. noutro lugar, com
cem mil francos no bolso. Vou lhe dar o meu endereço.
E, sem prestar atenção à pistola que o outro lhe
apontava, tirou um cartão da bolsa e rabiscou o endereço
de seu hotel, na Rue de Ponthieu. Depois, voltou a sorrir
para o homem indeciso.
— São cem mil francos, Paul! Pense bem! Cem mil
francos, sem taxas!
Paul Provence não disse nada. Ela fechou a bolsinha e foi
saindo, encolhida, com medo de levar um tiro pelas costas.
Mas não aconteceu nada. O contraventor ficou no meio
da sala, hirto como uma estátua. Chegando à rua principal,
Brigitte correu até o primeiro telefone público e ligou para a
sede da Interpol. Não acreditava muito na possibilidade do
mafioso trair os seus irmãos... E só lançara mão da verba de
cem mil francos para salvar a vida.
Meia hora depois, dois carros cheios de gendarmes
cercaram o “cul-de-sac" de Montparnasse. Mas a casa
estava vazia. Nem Paul Provence, nem sua velha mãe! E
Brigitte não tinha mais nenhuma pista dos dois. O tio Pinot
podia morar até na Espanha.

O dia seguinte se passou, sem notícias do traficante.


Brigitte teve a impressão de que ele não se comunicaria
com ela. Raramente um mafioso, por mais fraco que seja,
rompe o seu juramento para com a “omertà”. Restava-lhe
outra pista: um depósito de mercadorias, em Genebra, à
beira de um rio... Que rio? Só podia ser o Ródano, a oeste de
Genebra! Ela achou que valia a pena voltar à cidade suíça e
dar uma espiada em todos os armazéns, desde o lago
Léman até à fronteira da França. Era uma tarefa penosa,
mas talvez a levasse até o laboratório clandestino da
quadrilha.
Na manhã de quarta-feira, foi ao aeroporto de Orly, a fim
de viajar para Genebra. Seu avião acabara de abrir a porta
quando um garoto apareceu, correndo, e lhe entregou um
envelope em branco. Ela subiu a bordo, com o papel, na
mão, e só o abriu depois da decolagem. Era uma mensagem
de Paul Provence, dizendo-se disposto a lhe falar sobre uma
Casa de Saúde e doenças mentais... Brigitte enfiou a carta
no forro de seu tailleur bege, comprado em Paris. Tinha que
voltar o mais depressa possível! Paul Provence ia falar!
Uma hora depois, já em Genebra alugou outro quarto, no
Hotel d’Angleterre. A paisagem era belíssima: de um lado o
lago Léman; do outro, as serras nevadas dos Alpes. Almoçou
e saiu para um giro, a pé, pela beira da água. Seus passos a
levaram até à extremidade ocidental do lago. Passou pela
Gare de Cornavin e tomou a Rue Mont Blanc, até a ponte
onde o lago se transformava no Ródano e este fio retomava
o seu curso normal, antes de entrar na França. Seguiu pela
esquerda, vagarosamente, beirando o rio, até o Grande
Cassino. Diante do cais, viam-se duas barcas de rodas,
usadas para passeios pelo lago. E também se viam algumas
barcaças de cargas, desembarcando mercadorias vindas de
Lausanne. Então, ela teve uma intuição. Seu talento
detetivesco, suas extraordinária capacidade de raciocínio
lógico, deu-lhe a resposta da charada: A droga chegava a
Genebra, através do Lago Léman, e era armazenada em
algum daqueles depósitos! E, dali, seguia para a França!
Ora, se os tóxicos, já refinados, vinham pelo lago, só podiam
partir de Lausanne! O QG dos contrabandistas ficava em
Lausanne!
Nesse momento, sentiu que já não estava sozinha,
debruçada na amurada do cais. Dois homens tinham-se
aproximado sorrateiramente, um de cada lado, e sorriam
para ela. Pareciam muito amistosos.
— Mademoiselle Montfort, do “Morning News”? —
perguntou um deles.
Brigitte recuou, alarmada. Não havia mais ninguém por
ali E os dois homens — um, louro, alto e espadaúdo; o outro,
moreno, baixo e quadrado — observavam fixamente as suas
mãos.
— Sim. Que desejam?
O sujeito alto e louro falava em francês: — Venha
conosco, por obséquio. Mister Grogan quer falar com
mademoiselle. Ele também gosta de ser entrevistado...
Mister Grogan? Brigitte sentiu um arrepio na espinha.
O único Mr. Grogan que ela conhecia era Miky, o gordo Miky,
seu chefe no “Morning News”!
— Que Mr. Grogan é esse? — perguntou, num fio de voz.
— Mademoiselle o conhecerá em seguida. Ele acaba de
chegar de Nova Iorque.
Havia um carro estacionado ali perto. Seguiram para ele,
lado a lado. Mas, de repente, Brigitte teve a percepção da
cilada. Esperou que o homem moreno se adiantasse, para
abrir a portinhola do carro, e meteu a mão na bolsa, à
procura da pistola. Mas não contava com um terceiro
personagem, que se aproximara silenciosamente pelas suas
costas. Era um velho risonho, de vasta cabeleira branca.
Brigitte apenas o viu de relance. Na mesma hora, sentiu
uma tremenda dor na nuca e tudo ficou vermelho diante de
seus olhos. Ainda tentou reagir, empunhando a pistola, mas
os outros dois homens se voltaram para ela e começaram a
bater-lhe, impiedosamente, com dois cassetetes. Sua arma
caiu. E a bela agente da CIA também não tardou a cair, sob
a saraivada de golpes, afundando na inconsciência. Quando
voltou a si, estava pendurada num pinheiro, nos bosques de
Caux. E tinha perdido a memória.
Mas, agora, lembrava-se de tudo! O QG dos
contrabandistas ficava em Lausanne!
— Brigitte? — disse Simone, inclinando-se para ela, por
cima da mesa. — Em que está pensando, queridinha? Você
se esqueceu do jantar...
5

Contato com a CIA


Lili d’Anvers colabora
A casa de campo de Enghien
Monsieur Santuzzi toma a sua dose de esquecimento

Depois do jantar, Brigitte lembrou-se da visita ao Reve


d’Or, onde talvez encontrassem o velho cabeludo. Foram
até Montparnasse e misturaram-se aos artistas e boêmios,
mas não viram sinais de nenhum traficante de tóxicos.
Debalde Simone interrogou os seus amigos hippies; o Prof.
Clochet não aparecia por ali desde a semana anterior. E
nenhum dos “avançados” conhecia Paul Provence.
— Tenho uma ideia — disse Brigitte, quando regressavam
à Rue des Beaux Arts. — Ainda não testamos os
conhecimentos do recepcionista de l'Hôtel...
— Rafaela? — fez Simone, franzindo o nariz.
— É esse o nome dele?
— Agora é. Ele é Gèrard de dia e Rafaela depois das dez
da noite. Mas você não o encontrará na portaria a esta hora.
Rafaela costuma passar as noites fora, caçando vagabundos
nos cais do Sena. Temos que esperar até amanhã de
manhã. Ele dorme até ao meio-dia.
Seguiram para l'Hôtel e, uma vez chegados, souberam
(pelo porteiro noturno) que Mr. Gillet mandara buscar a sua
mala e não aparecera mais. Quanto a Lili, inconsolável, fora
internada num sanatório do Estado, em Saint-Denys.
— A mala do velho — informou Simone, depois de trocar
algumas palavras, em voz baixa, com o porteiro — foi
levada para o aeroporto de Orly. Não é preciso ser muito
perspicaz para se perceber que o seu destino é a Suíça...
Mas, que cidade da Suíça? Foi uma pena não termos
seguido essa mala!
Brigitte sorriu para o rapaz.
— Escute, Simone. Por que você está tão interessada em
encontrar o velho?
— Porque detesto viciados — retrucou ele, fechando a
cara. — E odeio vendedores de drogas! Você caiu do céu,
queridinha! Você vai me ajudar a meter o velho na
cadeia! Eu estava sozinha e não tinha coragem de lutar
contra a Máfia. Mas, agora, com você ao meu lado, estou
disposta a desafiar o próprio Satanás!
Brigitte sentiu ímpetos de lhe dar outro beijo, mas
resistiu ao impulso; não convinha pôr à prova os
sentimentos daquele rapaz bonito, alto e musculoso, que
ela ainda não conhecia muito bem...
Deitaram-se e dormiram em paz. A bela repórter acordou
primeiro, às nove horas da manhã, e contemplou o seu
companheiro de quarto, que ressonava no sofá. Sem a
peruca e os artifícios da maquilagem, Simone des
Boulevards não era tão bela como antes; tinha a pele
macilenta, cheia de sardas, e os olhos encovados pela vida
desregrada. Será que ele também não tomava cocaína?
Não. Não tinha as cartilagens do nariz congestionadas, nem
sinais de picadas no braço.
Brigitte vestiu-se, em silêncio, fez o desjejum no
refeitório e saiu. O Alfa estava num estacionamento
próximo. Antes de ir ao encontro do contato da CIA em
Paris, ela queria passar pelo pequeno hotel da Rue de
Ponthieu, onde se achava hospedada como Brigitte Montfort
e de onde desaparecera, nove dias antes. Foi até lá e
conversou com o recepcionista, que ficou muito contente
em vê-la.
— Mademoiselle nos deu muitas preocupações —
confessou ele. — Por duas vezes, esteve aqui um senhor de
meia-idade, muito nervoso, à sua procura. Ele não quis
deixar o nome; disse, apenas, que era um
amigo. Pensávamos que mademoiselle tivesse sido engolida
pela terra!
— Esse senhor de meia-idade — perguntou Brigitte —
tinha uma cabeleira branca e comprida?
— Não, mademoiselle. Era alto, magro, e tinha olhos
cinzentos e argutos. Exprimia-se em inglês. Eu diria que ele
veio dos Estados Unidos.
A moça sorriu encantada. Depois, correu a seu quarto e
mudou de roupa. Voltou ao Alfa e partiu para o Boulevard
Diderot. O escritório da CIA ficava num prédio de quatro
andares, próximo da Gare de Lyon; era a sucursal de uma
firma americana de aparelhos eletrodomésticos. O gerente
da casa, Pierre Charbreuse, ficou tão encantado, ao rever a
sua colega, que deixou cair uma lâmpada que tinha na mão.
— Parbleu! Nós pensávamos que mademoiselle tivesse
virado fumaça! Chegou a propósito, sabe? Entre para o meu
gabinete e veja quem está lá dentro!
Ela já sabia (pela descrição do recepcionista do hotel da
Rue de Ponthieu) que o inspetor Pitzer tinha chegado a
Paris.
Ao vê-la, também ele arregalou os olhos. E levantou-se
rapidamente da secretária.
— Brigitte! Até que enfim! Eu já ia voltar para Nova
Iorque e dar baixa no seu nome, nos arquivos da agência!
Que houve com você, Baby?
Abraçaram-se, emocionados. Em poucos minutos, ela lhe
revelou todas as suas aventuras, antes e depois de ter
perdido a memória. Pitzer meneava a cabeça, fumando
nervosamente um de seus cigarros Kent.
— Imagine! Estou em Paris desde sábado passado,
procurando por você! Pierre esperou dois dias, sem notícias,
e procurou-a no hotel. Nada! Então, ele me telegrafou na
quinta-feira, dia 20, comunicando o seu sumiço da face da
Terra. Embarquei para Paris no dia seguinte e, desde então,
tenho andado por todos os lados, sem encontrar seu
paradeiro! Estive em Genebra e no Hotel d’Angleterre
encontrei a sua valise. O porteiro me disse que você estava
desaparecida desde quarta-feira retrasada, ou seja, dois
dias depois de ter telefonado para Pierre! Pensei que os
mafiosos tivessem conseguido neutralizá-la! E quase
acertei! Você, então, ainda não recebeu uma resposta desse
Paul Provence?
— Não consegui encontrá-lo, tio Charlie! Mas sei que ele
ficou impressionado com a oferta dos cem mil
francos. Agora, estou pensando em algo melhor, e mais
econômico. Quero ter uma entrevista com Lili d’Anvers, que
está internada num sanatório do Estado, onde são proibidas
as visitas. Lili era a amiga de Mr. Gillet, que também usa os
nomes de Clochet e Grogan.
— Grogan? — fez Pitzer, piscando os olhos.
— Pois é — sorriu Brigitte. — O tal velhote da cabeleira
branca deve ser um “gozador”. Adotou o nome do nosso
bom Miky Grogan! Imagine se o gordo sabe disso! Ia
estourar de raiva!
Pitzer deu uma risada. Mas logo ficou sério.
— Essa Lili d’Anvers é alguma mariposa?
— Não. É um gafanhoto. Viciado em morfina. Foi
internado depois de uma crise de carência, complicada com
um abandono conjugal. Preciso falar com ele.
— Isso não será difícil de conseguir, através da
Interpol. Volte ao escritório dentro de duas ou três horas e
procure, com Pierre, a permissão para a visita ao sanatório.
E essa Simone des Boulevards? Você confia nela?
Brigitte sorriu.
— Simone também é homem, tio Charlie. Sim, confio
nele. Simone já me ajudou muito. Até me salvou a vida, no
alto de Montmartre! Ele também está interessado em
desbaratar a quadrilha de vendedores de tóxicos. Simone
além da “delicadeza”, não tem vícios secretos. É de uma
pureza encantadora!
— Levantaremos a ficha dele — rosnou Pitzer. — Não
quero que você se arrisque outra vez! De agora em diante,
porei um dos meus homens no seu carro! Eles podem tentar
matá-la, outra vez. antes que você encontre o chefão!
— Não, tio Charlie. Deixe-me agir sozinha, por favor! Os
seus guarda-costas são de confiança, mas andam muito
devagar. Eu preciso correr! Em vez de me dar cobertura,
faça-me outro favor. Confidencial.
Pitzer acendeu um novo cigarro na ponta do anterior.
— Vá dizendo, Baby.
— Quero saber quem é Lucien Weber.
— O seu salvador, nos bosques de Caux? O dono do
carrinho branco?
— Sim. Ele me disse que é um playboy. Quero saber
quem é, em Zurique. Se tem esposa e se é acionista do
Royal Bank mit Zurich, na Bahnhofstrasse. Seus dois
companheiros nas caçadas em Caux e no hotel em
Lausanne chamam-se Erwin Krause e Nills Burgs. Tome
nota. Também quero saber quais as ligações de Lucien com
um missivista, em Zurique, que se assina “Aranha”.
Pitzer empalideceu.
— Você está falando sério? A “Aranha” não existe mais!
— Quero saber se não existe mesmo, ou se voltou a
existir na Suíça. Mas o senhor terá que me prometer uma
coisa: não tome nenhuma iniciativa sem me consultar! Eu
devo a vida a Lucien. Entende?
— Entendo — disse o homem da CIA, gravemente. — A
agência lhe dará um relatório confidencial, por intermédio
de Pierre. Você continua hospedada na Rua de Ponthieu?
Estive lá duas vezes, à sua procura.
— Sim, continuo no mesmo hotel. Posso receber a
resposta lá, ou no Chateau d’Ouchy, em Lausanne. Tenho a
impressão de que a chave do mistério está em Lausanne.
Entretanto, ficarei em contato com este escritório. O
senhor pode voltar para Nova Iorque e dizer a Miky que eu
já estou bem.
Pitzer ainda estava à espera de alguma coisa. Então, ela
pôs-se nas pontas dos pés e beijou-o, rapidamente, nos
lábios. Depois, antes que ele a abraçasse, escapou
correndo.
Os dois tinham lágrimas nos olhos; mas eram lágrimas
de felicidade.

Simone pensava que sua amiguinha tivesse abandonado


l'Hôtel para sempre. Tudo se podia esperar dessas
jornalistas americanas... Mas, às onze horas da manhã,
Brigitte apareceu, de volta, convidando o rapaz para uma
nova missão.

— Vou entrevistar Lili d’Anvers, no sanatório. Quer ir


comigo?
— Com o maior prazer, queridinha! Desistiu de falar com
Rafaela? Ela está dormindo, com um marinheiro, nos fundos
do hotel.
— Tenho a impressão de que sua amiga Lili poderá nos
ser mais útil. Afinal, era a companheira fiel de Monsieur
Gillet... e deve ter ouvido muitas confidências sobre o
tráfico de tóxicos. Já consegui uma permissão para visitar
Lili, mas pode ser que ela se sinta mais à vontade na sua
presença. Vista-se de homem, Simone, e venha! Você será o
meu guarda-costas! Fique de olho nos outros carros!
Dessa vez, Brigitte enganava-se. Foram ao sanatório de
Saint-Denys e não lhes aconteceu nada pelo caminho. Lili
d’Anvers estava internada numa dos enfermarias,
esperando o início de um tratamento de desintoxicação. Os
médicos tinham permitido que o homem tomasse uma
injeção de morfina e ele se mostrava mais calmo. Simone
foi o primeiro a falar com ele, preparando a entrada da
repórter.
— A pequena prostituta — disse Lili, surpreendentemente
— não teve culpa. Gustave é que não vale nada e, quando
sente coceiras, atira-se em cima de qualquer sexo! Foi ele
que me iniciou na droga e, agora, me deixou na mão! Nem
um pingo de heroína! Ele vai me pagar, aquele velho
seboso! Estou pronta para revelar tudo o que sei sobre Paul
Provence!
Brigitte entrou, então, sentou-se na beira da cama e pôs-
se a tomar notas num caderninho. Seus olhos azuis não
perdiam nenhuma das expressões fisionômicas do viciado.
— Simone não lhe disse tudo, Lili. Nós duas estamos
interessadas, em acabar com a quadrilha de vendedores de
tóxicos, comandada pelo seu amigo Gillet. O velho é o chefe
do bando que fornece Nova Iorque, não é?
O homem, deitado na cama, estreitou os olhos negros,
numa expressão de ódio. Vestido com a camisola parda do
sanatório ele não se parecia mais com uma mulher bonita;
era um verdadeiro farrapo humano, — Sim, ma petite.
Gustave é o chefe. Quero que ele morra! Depois de fazer o
que fez comigo, embarcou de volta para a Suíça e me
deixou a nenhum! Até uma dose de coca ele me negou! E
eu lhe arranjei muitos fregueses, em Paris! Era eu que
introduzia o haxixe, nas Universidades, por um preço
acessível! E não cobrava um cêntimo por isso!
— Você não precisa dizer nada que a comprometa —
lembrou Brigitte. — Só quero conhecer a personalidade
mórbida de Mr. Gillet. A sua, fica para depois.
— Às vezes — disse Lili pensativamente — ele também
asa o nome de Prof. Clochet. Paul Provence era o seu braço
direito, na venda das drogas, em Paris. Também era Paul
quem se encarregava dos embarques de heroína para os
Estados Unidos. O haxixe não vai, porque é barato e não dá
bom lucro.
— E Paul Provence não existe mais?
— Não. Ele se foi.
Houve um minuto de silêncio.
— Você tem certeza? — interrogou Brigitte, com voz
tensa.
— Claro. Assisti à morte dele. E se me calei até agora foi
porque tive medo de Gustave. Paul foi assassinado na noite
de quinta-feira, dia 20, quando estava em l'Hôtel à espera
de uma amiguinha.
— A amiguinha era eu — disse Brigitte. — Ele ia
denunciar o velho, em troca de cem mil francos.
— Eu sei. Foi por isso que houve a discussão. Não sei
como, Gustave suspeitou das intenções de Paul. O velho é
muito esperto! Tinha estado em Genebra, nos dois dias
anteriores, e voltara nessa tarde. Eu estava no nosso
quarto, perfumando o meu belo corpo nu, quando ele
entrou, acompanhado por Paul. Eu já conhecia Paul de vista,
mas não tinha intimidade com ele. Fiquei
envergonhadíssima e fui me esconder no banheiro! Os dois
discutiram aludindo a uma agente da Interpol que andaria
atrás de Paul...
— Essa agente — disse Brigitte — também era eu. Mr.
Gillet acabara de atentar contra a minha vida, na Suíça. Ele
pensava que eu tinha morrido. Imagine a sua surpresa,
quando me viu em l'Hôtel, transformada em Sra. Weber.
— Paul estava nervoso — continuou Lili — e deixou
escapar uma observação sobre a sua vontade de largar o
bando e mudar de vida. Gustave virou fera! Gritou que
nenhum mafioso abandonaria a “família” se não se tornasse
alcaguete. E acusou Paul de querer vendê-lo à polícia. Nesse
momento, Paul cometeu um erro: puxou de uma
pistola! Gustave tinha nas mãos um dardo envenenado com
curare, que ele usa como “souvenir”...
— E matou o cúmplice?
— Voilà! Só vi o dardo voar das mãos de Gustave e
cravar-se no peito de Paul! Foi tudo muito rápido. Paul não
teve tempo de usar a pistola; caiu em cima da cama,
estrebuchou e foi embora! Uma coisa pavorosa!
— Onde está o cadáver?
Lili d’Anvers lambeu os lábios finos.
— Tenho medo de uma vingança, meninas. Gustave
ainda está solto e...
— Ele não atingirá você neste sanatório. O tempo dos
gângsteres já passou.
— Bem... O corpo de Paul foi levado para a casa de
campo de um amigo de Gustave, em Enghien, uma aldeia a
treze quilômetros de Paris, no caminho de Pontoise. O amigo
de Gustave, Mr. Sèverin, também é viciado e trabalha para
a quadrilha, no setor do ácido lisérgico. A casa de campo de
Enghien é um depósito de LSD. Mr. Sèverin ficou
encarregado de fazer desaparecer o corpo de Paul,
enterrando-o na floresta de Montmorency. É um belo lugar
para se morrer.
Brigitte tomava nota de tudo, enchendo o caderninho
com sua letra fina e floreada. Depois preparou a câmara e
tirou um retrato de Lili.
— Mr. Sèverin deve saber onde se encontra Gustave —
concluiu o doente. — Descubra onde se meteu aquele velho
libidinoso e meta-o no xadrez! Ele me usou, sempre que
precisou de mim, e, agora, fugiu como um rato! Não teve
nem a decência de me levar para a Suíça! Aposto que tem
outra amante, aquele porco!
Era evidente que o viciado não conhecia o paradeiro de
seu amigo na Suíça. Mas a pista da casa de campo já
ajudava muito. Brigitte agradeceu as informações de Lili e
desceu, acompanhada por Simone, até a portaria do
sanatório.
— Brigitte — sussurrou Simone, na saída do elevador —
conte-me a verdade, queridinha! Você é mesmo uma agente
da Interpol?
— Não, meu bem. Mas estou colaborando com ela.
E você colabora comigo. Não é?
— É — suspirou o rapaz. — Isso não altera
nada. Continuamos boas amiguinhas.
Na portaria, Brigitte pediu licença para usar o telefone e
ligou para a sede da Interpol e para a Sureté Nationale, no
Ministério do Interior. Uma hora depois, uma brigada de
gendarmes foi ao sanatório de Sant-Denys e deu voz de
prisão a Lili d’Anvers; seu tratamento de desintoxicação
seria feito na enfermaria de uma penitenciária.

Entretanto, Brigitte e Simone não perdiam tempo.

Tomaram o Alfa e partiram para Enghien, pela estrada de


rodagem que terminava em Pontoise, trinta quilômetros a
noroeste de Paris. A antiga Enghien-les-Bains (hoje,
Montmorency) era uma aldeia célebre pelas suas águas
sulfurosas, com um pequeno lago, junto à floresta dominada
pelo Forte de Montmorency, na linha de defesa exterior de
Paris. Fora nesse recanto bucólico que Rousseau escrevera a
sua “Nova Heloisa”, quando habitava l’Ermitage. Havia
diversas casas de campo espalhadas pelo vale, de maneira
que Brigitte e Simone tiveram que passar a noite numa
hospedaria da aldeia, sem encontrar a residência de Mr.
Sèverin. Só no dia seguinte, ao meio-dia, um aldeão
lembrou-se de que vira um automóvel chegar de Paris,
trazendo um homem adormecido, que fora desembarcado
na casa de campo de Mr. Santuzzi, junto à Estrada de Ferro
do Norte. Mr. Santuzzi era um italiano muito rico, que pouco
parava na terra. Contudo, nesse dia, por coincidência,
estava lá.
— É meu vizinho — acrescentou o aldeão. — Se
mademoiselle e monsieur não têm pressa, vou tomar um
gole de vinho e, depois, os levarei a casa dele. Sempre ando
a pé, pelos campos, mas hoje voltarei de automóvel! É
muito bonito esse carrinho branco! Os parisienses é que
sabem viver! E, às vezes, nem sequer são casados...
Depois que o homem bebeu duas garrafas de vinho, à
saúde do casal parisiense, Brigitte enfiou-o no assento
suplementar do Alfa e rodou, por uma estrada de terra
batida, seguindo as indicações do cicerone. Meia hora
depois, chegaram a uma casa baixa, de telhado vermelho,
no meio de um pomar de cerejeiras.
— É aqui — disse o aldeão, saltando do carro.
— Demoramos um pouco porque eu quis dar um
passeio... Moro do outro lado da estrada de ferro. Espero
que Mr. Santuzzi tenha prazer com a visita, mas não
acredito nisso. Cuidado, porque a casa tem cachorros!
E desapareceu, cantarolando. Brigitte e Simone bateram
palmas, diante do portão da cerca que os separava da casa,
e foram atendidos por uma velha cega de um olho. A
mulher trazia um forcado na mão.
— Salut! Que desejam?
— Somos de Paris — disse Simone, engrossando a voz. —
Viemos pegar uma encomenda com Monsieur Sèverin. Foi
Mr. Gillet quem nos mandou.
— Sèverin? — resmungou a mulher. — Aqui não há
nenhum Sèverin!
Mas, nesse momento, abriu-se a porta principal da casa e
apareceu um homem gordo e cabeludo, com um
guardanapo entalado no colarinho. Vestia um robe e parecia
pacífico e bonachão.
— Deixe-os entrar, Mamãe Michelet! São meus
amigos! Agora, vá prender os cães! Presto! Ho fame, non ho
ancora fato collazione!*

*“Depressa! Estou com fome, ainda não almocei!”

Seu sotaque era napolitano. Brigitte pescou a pistola


dentro da bolsa.
— Monsieur Santuzzi? — perguntou, atravessando o
portão e caminhando para os dois degraus que conduziam
ao pórtico.
— Si — respondeu o italiano, desconfiado. — Mas vocês
procuram Sèverin... Que Sèverin? Quem foi que os mandou?
— A polícia — respondeu a bela repórter, apontando-lhe
a pistola. — Acabou-se a comédia, Monsieur Santuzzi!
O senhor está preso!

Não havia mais ninguém, na casa de campo, a não ser a


velha cegueta e outra empregadinha, que se trancou,
chorando, num quarto dos fundos. Enquanto Simone
mantinha o italiano sob a mira da pistola, Brigitte deu uma
busca no porão, onde encontrou um monte de caixotes,
cheios de frascos de ácido lisérgico. À vista das provas, Mr.
Santuzzi resolveu confessar.
— Certo. Mr. Gillet usava esta casa como depósito para o
ácido. Mas não sei de onde vem a droga, nem estou
disposto a trair o meu patrão! Sou um camponês, ingênuo e
simples, que alugou o porão a um homem esperto da
cidade!
— Desconfio que não, Monsieur Santuzzi — replicou
Brigitte, recuperando a arma das mãos de Simone. —
Desconfio que o senhor é um sócio de Monsieur Gillet!
O senhor sabe de muito... e vai nos contar tudo!
Estavam na sala, sob a vigilância silenciosa (de olho
arregalado) da velha empregada. O italiano abriu os braços.
— Alla fine, é passato! Quero um advogado!
— Creio que não me expressei bem — retorquiu Brigitte.
— Não somos, exatamente, da polícia. Somos duas
cidadãs parisienses, interessadas em acabar com os
infames traficantes de tóxicos que estão corrompendo a
juventude!
— Duas cidadãs? — gemeu o gordo, contemplando
Simone com um olhar fixo. — Mas, então, talvez possamos
entrar num acordo... Se é dinheiro que vocês querem,
minhas belas ragazzas...
— Não, não é dinheiro. Queremos descobrir o paradeiro
que Monsieur Gillet, que é o maior responsável pela venda
das drogas em Paris e nos Estados Unidos! O senhor vai nos
ajudar, Monsieur Santuzzi! Sabemos que o senhor é boa
gente...
— Não contem comigo! Não direi nada! Niente!
— Nem mesmo depois que minha amiga lhe arrancar os
pelos do corpo? Veremos!
— Vocês não ousarão! — O homem eslava lívido.
— Veremos! De qualquer maneira, o senhor está
“queimado”, pois a polícia já sabe que Paul Provence foi
morto em l'Hôtel e seu cadáver trazido para esta casa. Um
vizinho viu o corpo, sendo transportado num automóvel, e
está pronto para testemunhar. Onde enterrou Paul Provence,
Monsieur Santuzzi?
— Se alguém morreu, não fui eu quem o matou! Eu não
mato ninguém!
— Sei disso. Monsieur Gillet o matou e o senhor o
enterrou! Onde está o corpo?
— Na floresta — respondeu o italiano, contrariado. —
Recebi ordens para enterrá-lo discretamente. Se eu não
fizesse isso, seria castigado pelo meu patrão. Ele não tolera
desobediências. Mas, não sei onde vocês poderão encontrar
Mr. Gillet! Ele saiu de Paris!
— Se o senhor sabe disso — tomou Brigitte — é porque
seu patrão esteve aqui nestes dois dias mais chegados! Há
três dias apenas, que Mr. Gillet desapareceu de l'Hôtel.
— Si — confessou o gordo. — Mr. Gillet estive aqui
ontem. Queria saber se Paul Provence fora enterrado. Mas,
depois, voltou para Paris e...
— E foi para a Suíça?
— Não posso dizer mais nada! Paul Provence era um
traidor! Queria entregar o chefe! Não tenho pena dele!
Todos os traidores merecem a morte! Por isso, eu nunca me
tornarei um traidor! Desidero il mio avvocato! Io non parlo
niente!
— É o que veremos, Mr. Santuzzi!
Atendendo a um sinal de Brigitte, Simone começou a
despir o robe e a camisa do homem. À vista de seu peito
cabeludo, o rapaz sorriu.
— Que maravilha! Quantos pelinhos para arrancar!
— Aspeta! — implorou o italiano, lívido de pavor. — Per
favore, deixem-me respirar! Eu... eu não suporto tortura!
Per favore, signorinas! Posso... posso tomar uma dose de
esquecimento?
— Depende do tipo de esquecimento. Não queremos que
o senhor adormeça.
— LSD. Apenas duzentas microgramas, num copo
d’água. É o bastante para me acalmar os nervos e me fazer
falar.
Brigitte acenou afirmativamente. O homem correu para a
cristaleira e preparou uma poção, num copo de pé alto.
Simone vigiava-o, alerta. Mas ele limitou-se a ingerir o
líquido, respirando aliviado. Na mesma hora, porém, fez
uma careta e largou o copo, que se espatifou no chão.
— Non é possibile! — gemeu, levando as mãos ao
estômago. — Mr. Gillet trocou os frascos!
Agora havia na sala um pronunciado cheiro a amêndoas
amargas.
— Ácido cianídrico! — gritou Brigitte, alarmada.
A velha cegueta correu a amparar o patrão, mas este
arregalou os olhos e caiu, de borco, no assoalho. Brigitte
ajoelhou-se ao lado dele.
— Depressa! Fale!
— Non parlo niente! — teimou ele, abanando a mão
mole.
— Fala, sim! Não compreende que o velho quis matá-
lo? O senhor sabia que ele matara Paul Provence e ele não
queria testemunhas! Esperou que o senhor enterrasse o
corpo e trocou a sua dose de esquecimento! Uma ampola
de ácido cianídrico, Mr. Santuzzi, é um esquecimento
definitivo!
— Si — gemeu o italiano, quase sem voz. — Ele me
matou! Mr. Grogan... Lausanne... A clínica da casa... uma
casa de doidos! Ecco! Uma casa de doidos!
E não conseguiu dizer mais nada. Estava morto.
6

Lucien volta de Zurique


O Chateau de Clarens
A refinaria da morte
Mr. Grogan revela o roteiro das drogas
Tratamento especializado com eletrochoques

Ainda ficaram o resto daquele dia em Enghien, enquanto


a polícia varejava a casa de campo, e passaram a noite na
hospedaria da vila, regressando a Paris na manhã de
domingo. Não havia novidades, em l'Hôtel. Brigitte teve
uma inspiração e deu um telefonema para o hotel alemão
da Rue de La Fontaine, onde continuava hospedada como
Mrs.
Weber. Perguntou se havia algum recado para ela.
— Jawoh! — respondeu a telefonista. — Herr Weber ligou
ontem à noite, de Lausanne, pedindo para que madame vá
ao seu encontro, no Hotel Chateau d’Ouchy. Ele acaba de
voltar de Zurique.
Brigitte desligou e encarou o rosto bonito de Simone, que
a contemplava, apoiado nas mãos, por cima do balcão da
portaria.
— Meu marido voltou e está à minha espera, em
Lausanne. Desculpe, Simone, mas temos que nos separar.
— Por quê?
— Estou lhe dizendo. Meu marido voltou. E ele não
gostará que eu ande ao lado de um efeminado... Afinal, não
sou nenhuma vedeta.
O rapaz baixou os olhos e ela sentiu remorsos.
— Desculpe, meu bem. Vou a Lausanne, procurar a casa
de doidos de que nos falou Mr. Santuzzi. Mas voltarei a Paris
logo que puder. Espere por mim.
— Eu gostaria de continuar trabalhando com você —
disse Simone, timidamente. — Pelo menos, até à conclusão
do caso. Por que não posso ir a Lausanne?
— Está bem — suspirou a moça. — Encontre-se comigo
no estacionamento do Hotel Chateau d’Ouchy, logo mais à
meia-noite. Você conhece o meu carro. Tem dinheiro para a
passagem?
— Tenho passaporte, mas não tenho dinheiro. Já gastei
toda a mesada que meus pais me mandaram.
Brigitte deu-lhe cinco notas de cem francos e despediu-
se dele. Eram dez horas da manhã quando partiu de Paris,
no Alfa esporte, chegando a Dijon a tempo de almoçar. O
resto da viagem foi feito em quatro horas; às oito horas já
tinha atravessado a fronteira (em Vallorbe) e chegado a
Lausanne entrando em Ouchy. Deixou o carro no
estacionamento do hotel e apareceu no hall.
— Madame Weber — anunciou o amável recepcionista —
seu marido chegou, ontem, a Zurique e está na suíte, à sua
espera. Desejo ardentemente que ele saiba que madame
estava em Paris. Nossos telefonemas não a localizaram em
parte alguma. Brigitte sorriu.
— E os dois amigos de meu marido? Continuam na
segunda suíte?
— Lamento, madame. Monsieur Krause e Monsieur Burg
deixaram o hotel.
— Que estranho! Eles não se encontraram aqui?
— Oui, madame. Monsieur Weber conversou, na noite
passada, com seus companheiros de caçadas. Foi depois
disso que eles deixaram o hotel. Pode subir, madame.
O porteur levará a sua maleta.
Lucien estava na suíte, em mangas de camisa. Não
parecia o mesmo rapaz alegre e despreocupado de antes;
seu rosto anguloso tinha dois vincos de ansiedade.
— Happy! Finalmente, aí está você!
Abraçaram-se e se beijaram. Brigitte não podia negar
que o playboy sabia beijar muito bem.
— Tive que me ausentar do nosso hotel em Paris —
explicou ela. — Lucien, trago uma notícia que talvez não lhe
seja muito agradável.
Ele ficou pálido e tenso.
— Mais aborrecimentos? Você me assusta, Happy! Que
aconteceu?
— Eu não sou mais a Happy de Lucien...
— Que está dizendo?
— Recuperei a memória. Sou Brigitte Montfort,
correspondente do “Morning News” de Nova Iorque. E estou
empenhada numa reportagem sobre contrabando de
tóxicos.
— Ah! Então, foi por isso...?
— Sim. Foi por isso que quiseram se livrar de mim nos
rochedos de Naye.
— Drogas — murmurou Lucien, mordendo o lábio. —
É um assunto fascinante. Para os seus leitores, quero dizer.
— Sei que você não entende disso — tornou a moça,
esquadrinhando-lhe as feições. — Mas deve compreender a
minha situação. Sou uma jornalista que ama a sua
profissão. Por isso lhe digo que não sou mais a Happy de
Lucien. Meu único compromisso é com o jornal.
O rapaz respirou fundo, para se acalmar. Depois: — Não
creio que o seu trabalho impeça nosso amor, Brigitte. Eu lhe
darei liberdade para servir o seu jornal. Talvez seja melhor,
assim. Sempre desejei me casar com uma jornalista
internacional.
— Você já é casado.
— Acabei de me divorciar, Happy... digo, Brigitte. Estou
livre para me casar com você. Nós dois, juntos, ainda
poderemos conquistar o mundo! Tenho uma proposta a
fazer.
— Vou pensar, Lucien. Você sabe que eu gosto de você;
sabe que nos entendemos muito bem, no capítulo
amoroso. Além disso, devo-lhe a vida. E ainda estou usando
os documentos de identidade que você me deu.
— Depende de você tornar esses documentos
verdadeiros. Pelo menos, a certidão de casamento.
— Vou pensar na sua proposta, querido. Amanhã lhe direi
se quero ser sua companheira. Agora, vamos nos divertir
um pouco. Eu estava com muita saudade de você!
— E eu de você! — disse ele, abraçando-a com vigor.
Ela percebeu os seus músculos retesados e sentiu-se
frágil e pequenina nos seus braços. Episódio fora do
comum: momentos de prazer à beira do abismo. Porque
Brigitte, graças à sua extrema argúcia, pressentia que muito
breve haveria um abismo entre eles. Mas a hora sombria
estava no futuro. Aquele era o momento do amor.
Não houve jantar naquela noite, Às onze e meia,
exaustos, eles ficaram imóveis, na larga cama de casal.
Lucien adormeceu logo em seguida. Então, ela se
levantou, tomou um banho, vestiu-se no escuro, apanhou a
bolsa com a pistola e saiu silenciosamente do quarto. Cinco
minutos depois, estava no estacionamento do hotel. Simone
des Boulevards, vestido elegantemente como um playboy,
esperava por ela, encostado ao Alfa esporte. Tinha um
cigarro fumegante entre os lábios.
— Pensei que você não viesse. Já passa um minuto da
meia-noite. Seu marido criou dificuldade?
— Não, meu bem. Ele foi até muito
carinhoso... Estivemos nos braços um do outro até agora.
— Imagino — rosnou Simone.
— Agora, vamos ver se localizamos a casa de doidos de
que nos falou o italiano. Talvez não seja difícil. Por motivos
óbvios, ela não deve se encontrar no perímetro urbano de
Lausanne.
Entraram no carro e acenderam a luz interna. Brigitte
abriu, em cima dos joelhos, um mapa de Lausanne e seus
arredores.
— Uma casa de doidos — disse Simone — é uma clínica
psiquiátrica. Existirá mais de uma por aqui?
— Só em Lausanne existem três. A Suíça é um dos países
que tem o maior índice de estabelecimentos hospitalares.
Mas estou pensando no que disse Monsieur Santuzzi,
antes de morrer. Quando ele disse “casa”, em francês, não
disse “maison”, Ao falar em “chateau”, podia querer se
referir a um castelo... Há dois mil castelos, na Suíça;
praticamente, um de cinco em cinco quilômetros. Nos
arredores de Lausanne temos, por exemplo, os castelos de
Oron, Morges, La Sarraz, Gruyère e Chillon. Este último, o
famoso Castelo de Chillon, perto de Montreux, não é uma
clinica psiquiátrica, é um museu. Mas sei que existe outra
antiga construção da Idade Média, também é beira do lago,
a vinte e cinco quilômetros daqui. E o Chateau de Clarens
construído pelos Senhores de Vaud. Tal como o Castelo de
Saint-Denys, ele não consta dos guias turísticas, pois não
está aberto ao público.
— Precisamos nos informar, queridinha. Mas você quer
visitar a casa de doidos à noite?
— É o melhor. De noite todos os gatos são pardos. Não se
esqueça, Simone, que essa casa pode ser o QG dos
contrabandistas de tóxicos! E eles devem estar armados,
sob o comando de Monsieur Gillet Tomaram a rodovia de
Lausanne e pararam numa cervejaria do Chamin de
Longeraie, onde cearam. Aí, foram informados de que,
realmente, o antigo Chateau de Clarens fora transformado
numa Clínica Psiquiátrica Popular, doada à comunidade por
um rico senhor americano. Era a informação que Brigitte
mais desejava. O senhor americano talvez se chamasse Mr.
Grogan... E Clarens ficava a dois passos dos rochedos de
Naye e dos bosques de pinheiros de Caux.
Partiram pela auto-route, beirando o lago e a Estrada de
Ferro, e passaram por várias aldeias pitorescas, formadas
por casas velhas, edificadas no curioso estilo arquitetônico
suíço.
Pully, Lutry, Cully; depois, Chexbres e Vevey. Vinte
minutos depois de terem deixado Lausanne, estava na
entrada de Clarens e avistavam o pequeno castelo dos
antigos Senhores de Vaud. Era uma casa rústica, de pedra,
com uma ponte levadiça enferrujada (que não subia mais),
cercada por um fosso, onde a água fora substituída pela
vegetação. Duas torres gêmeas, uma ao norte e outra ao sul
(esta última sobre o lago) encimavam a pitoresca
construção do Século XIV.
Brigitte deixou o carro à beira da estrada que seguia para
Montreux, e saltou, seguida por Simone. Estavam ainda
muito longe do castelo, embuçados na escuridão da noite;
mesmo que houvesse algum vigia, no alto de uma torre,
não poderia percebê-los.
— Vamos dar uma espiada ao redor disse a bela repórter.
— Desconfio que encontraremos um cais, nos fundos da
casa.
Não se enganava. Depois de observar as altas paredes
de cantaria, coroadas pelas ameias das barbacãs,
caminharam rente ao castelo e foram dar numa cerca de
arame farpado, além da qual se via um cais de madeira,
evidentemente improvisado. Encostado ao molhe, havia um
lanchão de doze metros, com motor central.
— Aposto que é um motor diesel suíço — sussurrou
Brigitte. — Leve e muito potente. Uma lancha dessas,
carregada de LSD, morfina e cocaína, pode atravessar o
lago em menos de uma hora! Só as barcas de rodas levam
duas horas e meia na viagem; Genebra fica logo ali em
frente.
Confundidos com os arbustos que marginavam a cerca,
eles ainda não podiam ser pressentidos por nenhuma
sentinela.
— Como vamos entrar na casa? — tornou Simone, com
ar apreensivo. — Você está especulando, queridinha. Ainda
não temos certeza de nada.
— Silêncio! — soprou a moça. — Olhe para cima!
Simone obedeceu e viu um homem, armado com uma
espingarda (ou uma submetralhadora), debruçado numa
das ameias do castelo. Apenas uma cabeça escura, que se
movia lentamente, perscrutando a escuridão. Ficaram
quietos e em silêncio. Mas Brigitte não perdeu tempo e pôs-
se a mexer na sua famosa frasqueira, buscando
instrumentos. Tirou um alicate.
— Entraremos pelo cais — sussurrou ela.
Rastejou pela grama, atingiu o ponto mais vulnerável da
cerca de arame farpado e cortou meia dúzia de fios, abrindo
um buraco. Simone foi atrás dela. Passaram pela abertura
(rasgando as roupas nas pontas aguçadas do arame) e
viram-se do lado de dentro do cais. Uma larga porta de
carvalho, fechada, comunicava com o interior do castelo. No
alto, numa das ameias da Torre Sul, via-se a cabeça escura
de outro guarda. Era preciso cuidado, para não serem
pressentidos.
— Não há maneira de entrar — sussurrou Simone. — Já
sabemos que esta casa está muito bem guardada, para ser
uma simples clínica psiquiátrica. Não será melhor prevenir a
Chefatura de Polícia, em Lausanne, pedindo alguns
gendarmes?
— Farei isso depois — respondeu Brigitte. — Em primeiro
lugar, quero ter a certeza de que as drogas passam por
aqui. Deve haver um laboratório clandestino, em alguma
parte.
No cais, não havia nada suspeito, além do moderno
lanchão, a óleo cru, que estava vazio. Saíram de dentro dele
e voltaram ao cais, contemplando a porta dos fundos da
fortaleza. Nisso, ela se abriu e apareceu uma figura branca,
dando uma risada. Brigitte e Simone esconderam-se numa
quina da parede, trocando um olhar de entendimento. A
mulher que desceu para o cais usava um uniforme de
enfermeira, com uma touca e um quadrado de pano,
pendurado ao peito por dois cadarços. Ninguém mais
apareceu. Silenciosamente, Brigitte seguiu a enfermeira e
desapareceu, atrás dela, nas sombras da noite. Simone
esperou, vigiando a porta traseira do castelo, que ficara
aberta. Cinco minutos depois, Brigitte voltou, vestida de
branco, ocultando os cabelos negros sob a touca justa.
— Matou-a? — murmurou Simone, horrorizado.
— Não. Apenas mandei-a dormir com um golpe de
“atemi-waza”. Dentro de uma ou duas horas, ela voltará a
si. Espere-me no cais. Logo que obtiver provas contra os
contrabandistas, voltarei, para irmos buscar a polícia!
Simone acenou, contrariado; sua vontade era também
participar da visita ao chateau... Brigitte transferiu a pistola
para o interior do uniforme e deixou a sua temível
frasqueira com seu amiguinho; em seguida, respirou fundo,
como se fosse mergulhar em águas turvas, colocou o
quadrado de pano sobre a parte inferior do rosto e entrou,
resolutamente, pela porta do castelo. Sua compleição física
era muito semelhante à da enfermeira, cuja identidade
acabara de assumir.
Havia um sujeito, armado com uma submetralhadora, no
corredor dos fundos da casa. Era alto, louro, tinha olhos de
cobra. Brigitte baixou a cabeça e passou por ele, em
silêncio.
— Angenehme Ruhe, Liebchen!* — sussurrou o guarda,
aplicando-lhe uma palmada no traseiro.

*“Durma bem, amorzinho!”

A garota deu uma gargalhada, procurando imitar o riso


alvar da enfermeira, e seguiu em frente.
O corredor dobrava para a esquerda. Desembocou num
pátio, onde se viam três pavilhões fechados, de onde
partiam lamentações. As portas tinham rótulas; espiando
por elas, Brigitte verificou que os pavilhões abrigavam cerca
de trinta prisioneiros, pobremente uniformizados de
cinzento, que repousavam em camas de ferro. Loucos!
Alguns deles riam ou cantarolavam para si mesmos; a
maioria, porém, chorava e pedia uma picada... Até aí não
havia nada de anormal; era muito lógico encontrar doidos
mima clínica psiquiátrica.
Brigitte atravessou o pátio e entrou por uma porta, à
direita, que dava para um largo aposento, cheio de armários
com medicamentos. Ali devia ser o Salão dos Cavalheiros,
no tempo dos Senhores de Vaud, mas a peça fora
transformada no almoxarifado de um hospital. Outra porta,
ainda à direita, abria para os Aposentos do Norte, onde
tinham instalado o dormitório dos guardas, médicos e
enfermeiros. Havia, ali, diversas camas e dois médicos, com
batas brancas, conversando à luz de um abajur. Algumas
das camas estavam ocupadas por outras pessoas.
— Silêncio — ordenou um dos médicos, falando em
francês. — Pode se deitar, mein Fraulein. Você já ganhou o
dia.
Brigitte acenou e voltou a sair para o Salão dos
Cavalheiros. Outra porta, à direita, abria para um patamar,
onde ficava o poço das escadas. O cérebro da repórter pôs-
se a funcionar metodicamente. Não seria um suicídio descer
ao subterrâneo? Provavelmente, nenhuma enfermeira da
clinica costumava fazer isso.
Mas era preciso arriscar. Normalmente, nos castelos da
Suíça, as escadas davam para o celeiro e a armaria;
nenhum outro lugar melhor do que um celeiro para instalar
uma refinaria de tóxicos! Brigitte começou a descer.
Não havia portas fechadas, no fim da escadaria de pedra.
A moça penetrou num amplo salão subterrâneo, atulhado
de caixotes e volumes de lona. Havia apenas uma lâmpada
acesa, iluminando debilmente o recinto. Mas também havia
um sujeito, baixo e moreno, sentado numa cadeira, com
uma submetralhadora no colo, logo adiante do patamar das
escadas. Ao vê-lo, Brigitte teve uma revelação. Lembrava-se
da agressão que sofrerá, no cais de Genebra; aquele
homem era o companheiro do gigante louro, na cena de seu
rapto!
— Volte para cima — rosnou ele, sem se fixar muito no
seu rosto. — Mr. Grogan não quer que as enfermeiras
desçam ao laboratório de análises!
Brigitte anuiu e deu meia volta. Mas a curiosidade foi
mais forte. De repente, deu volta à pilha de caixotes, que
bloqueavam a passagem, e espiou para o outro lado. Não se
enganara. Ali estava a destilaria clandestina! Pairava no ar
um cheiro enjoativo, originado por complexo de retortas e
tubos de ensaio, enfileirado num balcão. Ao fundo, via-se
uma espécie de alambique, de onde pingava um líquido
incolor. Sacos de ervas e bolotas negras (de ópio) juncavam
o solo. Esse material dava origem a uma grande quantidade
de LSD, cocaína, morfina e heroína, que, em ácidos e
cristais rômbicos, tinha sido depositada no canto oposto do
laboratório. Brigitte arregalou os olhos.
— Suba! — ordenou o homem da submetralhadora,
agarrando-a por um braço — Mr. Grogan não vai gostar
disto! Vou levá-la à Residência do Governador!
Então, a garota agiu com rapidez. Enquanto afastava a
arma, com uma das mãos, com a outra atingia o guarda, no
meio da testa, com uma cutilada violenta de shuto. O
homem recuou, deixando cair a metralhadora. Brigitte
apressou-se a apanhá-la. Agora, tinha que sair dali — sair
de qualquer maneira!
Mas, nesse momento, todas as luzes se acenderam e
meia dúzia de mafiosos armados invadiu a destilaria.
— Largue essa arma — guinchou uma voz, num alto
falante da parede. — Eu a segui desde o cais,
mademoiselle! Está em minhas mãos!
Era a voz alegre de Monsieur Gillet-Clochet, aliás, Mr.
Grogan. Ele devia ter usado um sistema de TV em circuito
fechado; havia muito tempo que sabia que ela estava ali!
O gabinete do velho risonho e cabeludo ficava na ala
nordeste do Château de Clarens, onde existira a Residência
do Governador. Brigitte foi agarrada pelas mãos grosseiras
dos guardas e despojada da metralhadora e da pistola, que
ocultara sob as vestes de enfermeira; depois, os seis
mafiosos fizeram-na subir as escadas, levando-a à presença
do chefão.

O velhote amável de l'Hôtel estava sentado a uma


secretária, brincando com um dardo de aço, pouco maior do
que um lápis.
— Tenho muito prazer em revê-la, Mademoiselle Montfort
— disse ele, indicando uma poltrona. — Gosto das pessoas
inteligentes e curiosas, que sempre querem saber mais...
Mademoiselle demonstrou uma extrema vitalidade, e um
desejo louvável de cultura, no terreno da toxicologia...
Posso acabar de instruí-la sobre o assunto? Sou um
mestre nessa especialidade terapêutica...
Brigitte tirou o pano que lhe mascarava as feições e
deixou-se cair sentada numa poltrona. Não via qualquer
possibilidade de fuga. Os guardas, que a tinham levado,
esperavam, de pé, encostados às paredes. E todos tinham
armas na mão. Quanto aMr. Grogan, brincava
ameaçadoramente com o dardo envenenado.
— Também tenho muito prazer em revê-lo — retrucou
Brigitte, com o mesmo cinismo. — Eu já esperava que o
senhor também fosse Mr. Grogan...
O velho traficante deu uma risada.
— Adotei esse nome recentemente, depois que soube do
interesse de uma repórter do “Morning News” em conhecer
o roteiro das drogas. É uma homenagem ao diretor do jornal
americano. Na verdade, mademoiselle, uso vários
nomes... de Gustave Gillet a Léon Clochet... e tenho uma
infinidade de carteiras de identidade. Isso é sempre útil, no
nosso ramo de negócios... Normalmente, fiscalizo as
vendas, como caixeiro-viajante da Casa Stabile, mas, às
vezes, também sou umbon vivant. Quando comprei este
castelo, fiz-me passar por Monsieur Shapiro, milionário
americano dedicado a obras filantrópicas. E meus médicos,
doublé de químicos especializados no tratamento do ópio,
têm servido à comunidade, tratando alguns doentes
mentais, levados à loucura pelo abuso das drogas que eu
próprio lhes vendi... Meu sonho é ir morar nos Estados
Unidos, sabe? Tenho algum dinheiro, nos bancos da Suíça, e
talvez realize esse desejo, depois que me livrar desta
desagradável perseguição... Mademoiselle também trabalha
para a Interpol?
Brigitte ficou em silêncio.
— Sim, claro — continuou ele. — A CIA e a Interpol,
unidas, sempre criaram dificuldades à Máfia. Mas nós somos
muito bem organizados, mademoiselle. É uma pena que a
sua reportagem não possa ser publicada em Nova
Iorque. Mas quero que saiba que vai ser difícil combater
todos os negociantes de tóxicos da Máfia. Temos agentes
em Beirute, na Itália, em Marselha e Paris; por toda parte
existem representantes nossos. Também temos associados,
como os Corsicans e aHong-Kong Triads, muito poderosos. E
onde corre o dinheiro, mademoiselle Montfort, a polícia
fecha os olhos... Vocês, da CIA e da Interpol, estão agindo
como Dom Quixotes...
— Se nós temos o idealismo de Dom Quixote — retrucou
Brigitte — o senhor tem a ingenuidade de Sancho Pança! Eu
nunca viria aqui desacompanhada, Mr. Grogan.
Ela pensava, desesperadamente, num meio de avisar a
polícia. Será que Simone tomaria a iniciativa de correr a
Lausanne e voltar com um batalhão de gendarmes?
— Não sou assim tão ingênuo — continuou o velhote,
sem deixar de sorrir. — A prova é que meus guardas suíços
estão, neste momento, caçando Simone des Boulevards no
cais do chateau... Aquele efeminado também não me
escapará. Fui informado de que vocês trabalham juntas... e
devo reconhecer que formam uma dupla encantadora. Mas
eu prefiro os travestis morenos, como Lili d’Anvers... A
propósito: Lili será fuzilada, no dia em que comparecer ao
tribunal.
Brigitte reagiu com um sorriso tão falso como o de seu
interlocutor.
— Não nego que vocês sejam fortes — admitiu. — Basta
pertencerem a uma ala da Máfia. Mas é possível que eu
ainda acabe com o império de Mr. Grogan... Seu melhor
cavalo, general, já morreu e está enterrado na floresta de
Montmorency!
— Eu matei Paul Provence — disse o velhote, mostrando
o dardo de aço. — Ele já não me era útil e ameaçava a
minha segurança. Outro “irmão” tomará o seu lugar. Paul
pretendia entregar-me à polícia, a troco de dinheiro. Não é
verdade?
— É a sua dedução. Isso demonstra que não há muita
lealdade entre os mafiosos...
Mr. Grogan deixou de sorrir.
— Paul era uma exceção, mademoiselle. Tenho muitos
colaboradores fiéis. Entre eles, o louro Franz e o moreno
François, aos quais mademoiselle deve algumas das
pancadas que sofreu, em Genebra e nos Rochedos de
Naye. Foi uma pena que eles tivessem falhado... Também foi
uma pena que aqueles quatro marroquinos tivessem
falhado, naButte Montmartre. Mas prometo-lhe que Franz e
François não falharão, outra vez. Agora, eu estarei mais
atento.
— O senhor teve medo de mim — acusou Brigitte. —
E continua apavorado. Sabe que não irá longe, agora que
descobrimos o laboratório da quadrilha.
— Mademoiselle descobriu tudo sozinha. Nem Simone
sabe disto. Logo, não há perigo. Estamos tão seguros, aqui
dentro, como numa fortaleza medieval. Tenho oito guardas
fiéis, todos membros da Máfia, quatro médicos e seis
enfermeiras. E trabalhamos, todos juntos, com a segurança
de um computador eletrônico... Meu império é maravilhoso,
mademoiselle! Tão maravilhoso que vou sentir saudades
dele, quando me aposentar e for morar na Flórida...
— Vai tentar me matar outra vez? — inquiriu Brigitte,
para ganhar tempo.
— Perdoe-me a insistência... Mademoiselle sabe muito e
não pode publicar a sua reportagem. Mas eu lhe rendo as
minhas homenagens. Respeito os adversários valentes e
teimosos. E é sempre com desgosto que me livro deles. Não
leu os jornais de Lausanne, mademoiselle? Há quinze dias,
morreu misteriosamente um químico, na Rue du Beau
Rivage, filho de um ajudante do Dr. Alberto Hoffmann, o
descobridor do LSD. Diga-se, de passagem, que o LSD é um
produto que tem pouca procura e não aos interessa
muito... Esse químico era um rapaz muito ambicioso e teve
a petulância de querer afastar Mr. Grogan da chefia do
grupo... Franz e François acabaram com ele. Dessa vez,
esses dois excelentes rapazes não falharam... Mais oui —
acrescentou ele, suspirando. — De vez em quando, aparece
um ou outro traidor entre nós... mas é logo neutralizado. Há
muito dinheiro em jogo e as tentações humanas são muito
fortes...
"Sabe quanto um importador americano tem que
depositar, adiantadamente, num banco da Suíça, para
receber a sua cota? No mínimo, quarenta mil dólares! Dez
quilos de morfina custam-nos, no mercado negro do Oriente
Médio, cerca de seis mil dólares; transformada num quilo de
heroína, essa droga pode ser revendida, nos Estados
Unidos, por mais de quatrocentos mil dólares! É um lucro
fabuloso, não acha? Por isso, cada associado da Máfia é um
traidor em potencial, que sonha controlar o mercado...
Nossos choferes, por exemplo, precisam estar sempre sob
vigilância, ao longo da rota da felicidade... É uma estrada
muito comprida, mademoiselle!"
— Eu sei. O ópio vem da Turquia e da China,
principalmente de Yunnan. É uma longa jornada para a
morte e a loucura! Mas os traficantes sempre conseguem
chegar à Itália...
O velhote contemplava-a pensativamente.
— Tem razão. Mademoiselle é ainda mais esperta do que
eu pensava... Suponho que pertença, há muito tempo, ao
Serviço Secreto. Será um alívio, para nós, ficarmos livres de
uma inimiga tão astuta. Não sou egoísta, mademoiselle, e
não vou tratar da sua saúde pensando apenas em minha
segurança; sou forçado a isso para proteger a Máfia. Sim, a
droga vem do Oriente, mas só fica sob nosso controle a
partir da Itália. Agora, é fácil reconstituir o roteiro da
felicidade. Mademoiselle já deve conhecê-lo. O produto
bruto, inclusive o ópio em lágrimas, vem da Itália, pelo
Grande Túnel de São Bernardo, a única passagem de
automóveis sob os Alpes, e segue pelo bourg Saint-Pierre,
Liddes, Orsieres e Martigny, até à beira do Ródano. Em
Vernayes, a mercadoria passa para bordo de nosso lanchão
e vem para o Chateau de Clarens. Antigamente, havia um
grande laboratório químico em Nápoles, mas a polícia o
fechou; agora, nossa principal destilaria fica aqui, no
coração da Suíça. Depois de destilado, o produto segue para
Genebra e Paris. Mademoiselle não chegou a ver o nosso
armazém, junto ao Grande Cassino de Genebra, mas sabe
que ele existe, devido a uma estúpida denúncia de Paul
Provence.Mademoiselle sempre foi seguida por Franz e
François, em suas investigações na Suíça, mas só pudemos
apanhá-la muito tarde. Volto a dizer que foi uma pena que
mademoiselle não tivesse morrido, quando eu a atirei de
cima dos Rochedos de Maye; agora, reservo-lhe outra morte
mais original.
Brigitte piscou os olhos.
— O senhor não está pensando em me tornar viciada,
está? Eu não suporto injeções! E meu nariz é alérgico a
cocaína!
— Oh, não! Eu poderia eliminá-la, facilmente, injetando-
lhe uma dose maciça de heroína... mas isso seria muito
agradável. O LSD também provoca uma morte
colorida. Prefiro tratar dos seus nervos de outra maneira.
— Eu não tenho nervos, Mr. Grogan!
A voz de Brigitte estava rouca pela tensão. O velhote
sorriu.
— Sou eu o seu médico, mademoiselle. E meu
diagnóstico é este: esquizofrenia! Não passa de uma
loucura, o quemademoiselle andou fazendo! Esta é uma
clínica especializada no tratamento das enfermidades
mentais. Usamos processos modernos, como a sonoterapia
e a psicoterapia, mas ainda não excluímos os
eletrochoques. São simples alfinetadas, nos lugares mais
sensíveis do corpo, a menos que se aumente a voltagem...
Mademoiselle será tratada por eletrochoques!
Brigitte levantou-se, pronta para lutar. Mas dois guardas
saltaram em cima dela e logo a reduziram à impotência. A
garota esperneou inutilmente; os dois homens (que eram o
louro Franz e o moreno François) mantiveram-na firme,
suspensa no ar. Mr. Grogan protegeu-se atrás da secretária,
para não ser atingido por um pontapé.
— Levem-na para a Sala de Cirurgia — ordenou ele, com
voz menos amável. — Vocês sabem qual a quantidade de
corrente elétrica que deve passar pelos eléctrodos, para que
ela não morra eletrocutada. Deixem-na gritar, entre as
paredes à prova de som. E, depois, quando ela estiver bem
castigada, soltem-na no cais. Completamente nua, mas com
um barrete vermelho. Eu estarei numa das ameias do
castelo, armado com o meu arco e flecha...
Brigitte pôs-se a gritar em quatro línguas, mas o velhote
cabeludo não se alterou; sua voz concluiu, secamente: 
— Sou campeão de arco e flecha, Mademoiselle Montfort.
Desde Guilherme Tell que o arco e flecha é o esporte
nacional suíço... Eu a caçarei, do alto da Torre Sul, se
mademoiselle escapar com vida do tratamento
especializado. Au revoir!
7

Representação teatral na Sala de Cirurgia


A revolução dos doidos
Tragédia na Torre Sul
Adeus, Mr. Grogan

Simone também tinha sido apanhado, no cais e fora


metido numa das celas do Pavilhão dos Desesperados, que
era como Mr. Grogan chamava o dormitório dos loucos
furiosos. Gretchen, a enfermeira cujo uniforme Brigitte
tomara (e que voltara a si do golpe de karatê) foi
encarregada de cuidar da nova hóspede. Mr. Grogan sabia
que podia contar com a sua crueldade.
Brigitte era levada aos empurrões, para uma barbacã do
andar superior, onde antigamente existia a Casa de Vaud.
Era ali a Sala de Cirurgia. Também era ali que a equipe
médica se dedicava a experiências terapêuticas com
tratamentos especializados. O louro Franz e o moreno
François despiram a prisioneira e arrastaram-na para uma
das mesas de exames, onde a deitaram à força. A mesa era
de ferro esmaltado e tinha rodas de borracha. Ao mesmo
tempo em que lutava com os seus captores, Brigitte
observava o ambiente, à procura de um buraco para
escapulir. Não havia nenhum. E François tratou de amarrá-la
à cama, utilizando duas grossas correias.
— Você está tendo um de seus ataques — rosnou o
moreno, aplicando-lhe uma bofetada. — Quietinha! Nós
temos prática em tratar com loucos!
A face esquerda da moça ficou vermelha como um
tomate. Contudo, o louro Franz não parecia tão ameaçador.
Embora também a segurasse com energia, suas mãos
não a machucavam. Pelo contrário. Brigitte tinha a
impressão de que ele procurava lhe afagar as partes mais
macias do corpo... A descoberta deu-lhe uma grande
esperança. O gigantesco mafioso tinha-se rendido aos seus
encantos! Isso, às vezes, também acontecia, ao longo de
sua carreira... Seus belos olhos azuis procuraram os de
Franz e transmitiram-lhe uma mensagem lúbrica e
alvissareira. O louro compreendeu a insinuação, pois ficou
um pouco mais pálido e sua respiração tomou-se curta e
sibilante.
— Franz — murmurou a garota, com voz quebrada. — O
que você quiser! Mas não deixe que eles me matem!
François estava escolhendo os eléctrodos, num aparelho
elétrico erguido ao fundo da sala, e não podia ouvi-los. Não
havia mais ninguém ali. O louro fez uma careta.
— Cuidado — soprou ele, enquanto uma de suas mãos
acariciava os seios da bela paciente. — Há uma câmara de
televisão em frente à mesa! Ele está vendo tudo! E também
pode nos ouvir!
Brigitte compreendeu que tinha ali um aliado. Ou, pelo
menos, um bom ladrão... Voltou a murmurar, com a voz
mais sensual que pôde encontrar: 
— Não deixe que me matem! Você é um
cavalheiro! Livre-me desta, Franz, e eu serei sua...
inteiramente sua!
Franz estava muito nervoso. Seus dedos trêmulos
percorriam o corpo da moça, lhe alisando os cabelos. O
mafioso lutava entre o desejo e o dever, a voz do amor e o
juramento da “omertà”. O corpo desnudo da bela garota,
que se oferecia tentadoramente aos seus olhos e às suas
mãos, perturbava-o por demais. Mas ele sabia que a Máfia
não perdoava! E Mr. Grogan, muito menos.
— Você merece uma chance — voltou a sussurrar o
gigante, mergulhando o rosto nos cabelos sedosos e
perfumados da prisioneira. — Você escapou da morte, em
Caux e Montmartre. Para que fazê-la sofrer? Vou desligar
um dos eléctrodos, para que não se complete o circuito.
Grite e esperneie como se estivesse sendo eletrocutada. De
qualquer maneira, o chefe vai caçar você lá fora... Boa
sorte, menina louca! Ich wünsche Ihnen guten Erfolg!*

*“Eu te desejo boa sorte!”

E deu-lhe uma bofetada. No seu gabinete, diante de uma


tela de TV (circuito fechado) Mr. Grogan aprovou
silenciosamente a violência do golpe. Pôde ver
perfeitamente a cabeça de Brigitte ser sacudida, sob o
impacto da mão de seu cúmplice.
François já tinha escolhido os cinco eléctrodos que
seriam aplicados às têmporas, aos seios e ao ventre da
garota; quando ele se aproximou da mesa, Franz tomou o
seu lugar, junto ao painel do transformador, e cortou
disfarçadamente um dos fios embutidos na máquina. A
corrente elétrica positiva, quando ligada, passaria pelo
manômetro, mas se perderia no espaço, antes de atingir os
eléctrodos.
— Depressa! — soou a voz do velho risonho, num alto-
falante da parede. — Vocês estão demorando muito!
Schnell! Gehen Sie schnell!*

*“Rápido! Mais depressa!”

François adaptou os eléctrodos nas partes mais sensíveis


do corpo de Brigitte e acenou para. Franz. Este ligou a
máquina. Ouviu-se um zumbido e o manômetro acusou um
nível de eletricidade igual a cem volts.
— Cem volts! — anunciou o louro.
E Brigitte pôs-se a representar o mais impressionante
papel de sua carreira. Gritou, esperneou, retorceu-se como
uma lagosta, e acabou virando a mesa e tombando no chão,
presa de convulsões horripilantes. Até o moreno François
estava sensibilizado com a cena.
A agulha, no manômetro, continuou a subir lentamente.
— Quinhentos volts! — gritou Franz.
Na parede, uma telescópica de TV virou para o
manômetro e captou, em close, a imagem da agulha,
marcando o número quinhentos. Deitada de bruços no solo,
com a cama em cima das costas, Brigitte recomeçou a
espernear, espasmodicamente, como uma presa em agonia.
Seus dentes cerrados deixavam passar o ar represado,
que sibilava sinistramente. Afinal, soltou um gemido cavo e
ficou imóvel.
— Chega! — ordenou a voz, no alto-falante. — Levem-na
para a enfermaria e deem-lhe uma injeção estimulante!
Consultem o Dr. Martius! Dentro de quinze minutos soltem-
na no cais, nua como está, e com um barrete vermelho!
François desligou os fios elétricos e tirou as correias do
corpo encolhido da vítima. Brigitte não dava acordo de si
Depois que eles retiraram a cama, permaneceu imóvel, de
bruços, com as pernas dobradas.
— Desconfio que ela não aguentou — disse o mafioso
moreno.
Em silêncio, Franz inclinou-se para a garota, a fim de
levantá-la nos braços.
— Não — murmurou ela, sem abrir os olhos. — Você,
não! Deixe que François me carregue!
Perturbado à vista daquelas lindas nádegas, expostas à
luz crua, Franz balbuciou uma desculpa e esperou pelo
cúmplice. François também estava impressionado com a
posição de Brigitte.
— É uma bela menina — disse ele, respirando fundo. —
Deixe que eu a levo para a enfermaria. Também quero lhe
aplicar a injeção.
Inclinou-se, agarrou no belo corpo inerte e ergueu-o
facilmente, estreitando-o contra o peito. Os braços macios
da moça recaíram, molemente, em torno de seu pescoço. O
mafioso sorriu e caminhou para a porta. Franz foi atrás dele.
Não havia ninguém no corredor, que ligava a Casa de
Vaud à escada do Great Hall, no andar térreo. Súbito,
François arregalou os olhos e abriu a boca, pondo a língua
de fora.
Asfixiado pela “gravata” daqueles braços magros, mas
fortes, o homem cambaleou e largou seu fardo. Brigitte caiu
de pé e manteve o estrangulamento, fazendo o mafioso
tombar de joelhos, agarrado aos seus punhos.
— O que está fazendo? — bradou Franz, acudindo.
— Não vou servir de alvo para as flechas de seu chefe —
respondeu a garota, acabando de esganar o primeiro
carrasco. — Você está comigo ou contra mim?
O corpo de François rolou e ficou estirado no corredor.
Brigitte enfrentava o outro homem, nua, de pernas
abertas, as mãos na cintura, como uma estátua de marfim
dourado.
Franz hesitou, pensando mil coisas ao mesmo tempo.
Depois, vencido pela voz da “omertà”, meteu a mão na
cintura para apanhar a pistola.
— Contra você — respondeu. — Eu não devia ter feito o
que fiz! As mulheres sempre foram a minha perdição!
Brigitte saltou em cima dele, como uma gata selvagem,
e agarrou-lhe o pulso, antes que ele lhe apontasse a arma.
Uma torção no braço fez a pistola cair das mãos do gigante.
— Maldita!
Foi só o que pôde dizer. A mão esquerda de Brigitte
atingiu-o, sucessivamente, em três pontos vitais do corpo —
na carótida (murasamé), sobre o coração (kyo-ei) e no
baixo-ventre (kintéki) — provocando-lhe uma sincope
mortal.
Pouco a pouco, o corpo robusto do mafioso foi-se
encolhendo e acabou por desmoronar no meio do corredor.
“Que pena — pensou Brigitte. — Era um belo rapaz!”
Não tinha tempo a perder. Agarrou na pistola e desceu,
correndo, a escada. Havia dois guardas armados embaixo,
no grande hall, mas a moça passou por eles com tanta
rapidez (como uma visão de sonho) que ficaram na dúvida
sobre a sua existência. Era difícil conceber uma mulher,
bela e nua, esvoaçando pelo Chateau de Clarens... Quando
os mafiosos voltaram a si do espanto, a garota já tinha
entrado pela porta da Sala dos Cavalheiros (transformada
em almoxarifado) e corrido para a porta dos Aposentos do
Sul. Junto desta, encontrou duas enfermeiras alarmadas.
— De onde vem você? — perguntou uma delas. —
Worum handelt es sich?*

*“De que se trata?”

Era Gretchen. E tinha nas mãos as chaves do Pavilhão


dos Desesperados. Brigitte ergueu a pistola, ao mesmo
tempo em que a mulher lhe jogava o molho de chaves. O
tiro partiu, desviado pela pancada, e foi a segunda
enfermeira que tombou, com uma bala no ombro. Gretchen
soltou um grito e correu para o pátio. Brigitte agarrou nas
chaves e foi atrás dela. Já da porta, tomou a atirar. Dessa
vez, a bala alcançou a mulher, derrubando-a. Mas o alarme
já fora dado!
Médicos e enfermeiros surgiram na entrada dos
Aposentos do Norte, berrando como alucinados.
— É a polícia! Atirem para matar!
Brigitte atravessou o pátio numa carreira, e foi
experimentar as chaves nas portas dos pavilhões. Já
soavam tiros e imprecações nos Aposentos do Sul, cada vez
mais próximos. A moça conseguiu abrir as três portas, uma
atrás da outra, soltando os loucos alegres e lamurientos.
— Salve-se quem puder! — gritou ela, indicando os
médicos e as enfermeiras que acorriam. — Livrem-se deles
e fujam deste inferno!
Ao abrir o terceiro pavilhão, sua surpresa foi imensa. Ali
estava Simone des Boulevards, com o terninho rasgado e
um olho negro, maior do que o outro!
— Simone!
— Brigitte!
— Que fizeram com você, meu bem?
— Foi aquela enfermeira! Vingou-se, em mim, do golpe
que você lhe aplicou! Me pegaram! Agora, a enfermeira foi
para o beleléu! Junte-se aos internados e comande a
revolução! Não temos outro jeito senão lançar mão dos
doidos, para destruir este ninho de traficantes de tóxicos!
Oriente-os... e acabe com esses bandidos! Há muitos
frascos de remédios no depósito da clínica! Certos ácidos,
bem agitados, podem servir como Bombas Molotov!
Simone compreendeu a situação e tomou a si a tarefa de
sublevar os loucos. Alguns deles estavam acorrentados à
parede, como na Idade Média, mas o rapaz rompeu as
correntes com um pedaço de ferro. Encantados, os
dementes seguiram-no, como um batalhão ululante.
— Arrebentem tudo! — berrou um esquizofrênico, a boca
cheia de baba.
Os médicos e as enfermeiras viram-se envolvidos pela
turbamulta e recuaram, em busca de armas. Mas os loucos,
com Simone à frente, invadiram a Sala dos Cavalheiros e
apropriaram-se de facas, bisturis e vidros de éter, atirando-
os contra os inimigos. A desordem se estendeu aos
Aposentos do Norte e ao poço das escadas. Ouviram-se
rajadas de metralhadoras (quando os guardas acudiram),
mas a gritaria dos insanos acabou por triunfar. Envolvidos
pelos loucos, os mafiosos foram dominados. Dentro em
pouco, os pacientes eram senhores da situação, no andar
térreo, e divertiam-se quebrando a cabeça dos guardas,
desarmados na luta.
Enquanto isso, Brigitte corria para a Residência do
Governador, onde ainda reinava a ordem. Um mafioso
montava guarda à porta do escritório de Mr. Grogan. Tinha
uma metralhadora na mão.
— Que foi que houve? — perguntou, olhando espantado
para a garota nua.
— Aconteceu o diabo — respondeu Brigitte.
E deu-lhe um tiro à queima-roupa. O guarda caiu, sem
um protesto. Brigitte apanhou a submetralhadora, jogou
fora a pistola e arrombou a porta do gabinete. Estava vazio.
O velhote risonho não se encontrava lá dentro.
Então, ela se lembrou de que Mr. Grogan pretendia caçá-
la com arco e flecha de uma das ameias da Torre Sul.
Voltou ao corredor, atravessou o grande hall (onde
alguns loucos e enfermeiras trocavam bofetões) e alcançou
a escada em caracol que conduzia ao alto da torre. Subiu
rapidamente.
No alto, passou para o estreito corredor, ladeado pelas
seteiras do castelo. Encostado a uma delas, estava o velho
da cabeleira branca.
— Alô, Mr. Grogan! — saudou Brigitte, ferozmente.
O contrabandista virou-se vivamente, pestanejando. Na
sua frente, sobre uma das ameias, estava o dardo
envenenado e, sobre outra, uma arco e flecha de grandes
proporções.
Indeciso, o velhote não sabia qual das duas armas devia
apanhar primeiro. Brigitte valeu-se disso para não permitir
que ele apanhasse nenhuma. Correu para cima do
adversário e agarrou-o pelos cabelos.
— Está preso, Mr. Grogan!
Mas o homem soltou um urro e escapou por entre suas
mãos, deixando a cabeleira em seus dedos. Era uma
peruca! Por baixo dela, o crânio do traficante era
completamente calvo!
— Maldição! — rugiu Brigitte, deixando cair a
submetralhadora.
O velhote era muito ágil para a idade. Quando a garota o
alcançou, ele já ia descendo as escadas. Brigitte puxou-o
pelos fundilhos das calças e arremessou-o contra a parede.
Então ele se acocorou e meteu a mão no bolso. Ao retirá-
la, tinha um canivete de mola espetado entre os dedos. E
agia como um autêntico apache.
— Voilà! — E deu um golpe em profundidade.
Brigitte saltou para um lado na passagem estreita, e
aplicou um pontapé no pulso do homem. Mas este não
largou o canivete. Outro golpe, cuja plenitude a garota
evitou, e seu braço começou a sangrar. Mr. Grogan sorriu
ferozmente, à vista do sangue.
— Vou cortá-la em pedaços, mademoiselle!
A garota cambaleou até à beira de uma das ameias,
onde se apoiou, pronta para se defender a pontapés. Outra
punhalada do velho fez-lhe um novo talho, no tornozelo. Era
um massacre! Ela sentiu que as forças lhe faltavam. E o
inimigo arremetia, outra vez, decidido a dar o golpe de
misericórdia.
— No pescoço, mademoiselle!
Nisso, alguém gritou, no cais, e uma labareda quente
subiu pela parede externa do castelo, lambendo a base da
torre. O Chateau de Clarens estava pegando fogo! Mr.
Grogan hesitou, com o canivete ensanguentado no ar. E
Brigitte, lançando mão de suas derradeiras forças, agarrou-
lhe o pulso armado. O velhote, porém, era muito forte.
Paulatinamente, ele foi erguendo o corpo nu da garota,
tentando atirá-lo por cima das ameias. O cais ficava a mais
de trinta metros abaixo. Súbito, Brigitte amoleceu o corpo,
entalando-o na ameia, e puxou o braço de seu antagonista,
obrigando-o a ficar sobre ela.
— Olho por olho, dente por dente — disse a moça,
erguendo os joelhos. — Se você tiver sorte, ficará, como eu,
balançando na copa de um pinheiro! Adeus, Mr. Grogan!
Perdendo o equilíbrio, o velho voou por cima de ameia e
despencou no vácuo, soltando um grito prolongado. Mas lá
embaixo não havia pinheiros.
Epílogo

O milagre

O incêndio no Chateau de Clarens foi debelado pelos


bombeiros às cinco da manhã. Um inspetor de polícia, vindo
de Lausanne com alguns gendarmes, conseguiu prender
todos os loucos fugidos e restabelecer a ordem.
Nenhum mafioso escapou, tampouco. Havia oito mortos
e vinte e três feridos, que foram medicados no próprio
sanatório. Brigitte também foi pensada; seus ferimentos
eram superficiais e não exigiram mais do que uma assepsia
e duas tiras de esparadrapo. A surpresa do inspetor foi
enorme, quando desceu ao subterrâneo e encontrou o
laboratório químico parcialmente destruído. Estavam
faltando alguns frascos, com heroína pura, mas nenhum dos
loucos quis dizer onde as tinha escondido. Mais tarde, a
polícia recuperou o novo contrabando.
Simone e Brigitte prestaram as primeiras declarações às
autoridades e foram dispensados, depois que a bela
repórter mostrou ao inspetor os seus verdadeiros
documentos de identidade, encontrados no gabinete de Mr.
Grogan.
— Brigitte Montfort! — exclamou o inspetor, encantado.
— Já a conhecia de nome, como repórter, mas não sabia
que mademoiselle era tão bonita!
Brigitte já estava convenientemente vestida (com um
trajo típico suíço que encontrara no vestiário das
enfermeiras), mas não deixava de ser uma bela mulher; o
inspetor lamentava, apenas, não tê-la encontrado nua.
— O corpo do velho careca foi examinado? — perguntou
ela. — Eu não esperava que ele morresse da queda, pois há
uma espessa vegetação no fundo do fosso. Queria, apenas,
dar-lhe uma lição.
— Na verdade — retrucou o inspetor — ele não morreu
da queda, mademoiselle. Aquele patife era cardíaco e
morreu do susto. Tem certeza de que era ele o chefe?
— O senhor saberá de tudo quando interrogar os presos.
Ou, então, quando ler a minha próxima reportagem, no
“Morning News”. Dispense-me, por favor. Preciso ir ao
encontro de meu quase marido, Lucien Weber.
Eram oito horas da manhã de segunda-feira. O caso
terminava justamente quinze dias depois da chegada de
Brigitte a Paris. Ela fez um sinal a Simone e saiu do castelo.
Tomaram o Alfa esporte e partiram para Lausanne.
— Espere-me no hall do hotel — disse Brigitte, fazendo
um afago no rosto contundido do rapaz.
— Não poderemos usar mais este carrinho. Vou me
separar de Lucien.
Atravessaram Lausanne e chegaram à beira do lago.
Brigitte deixou Simone e entrou no Hotel Chateou
d’Ouchy.
O amável recepcionista tinha um telegrama para ela. Um
telegrama em nome de Brigitte Happy Weber.
— Chegou hoje cedo, madame. Seu marido ainda não se
levantou.
A garota abriu o telegrama e pôs-se a ler, com os olhos
arregalados. Era uma mensagem da CIA, assinada por Pierre
Charbreuse, contando uma longa história sobre Lucien
Weber e seus companheiros de caçadas. Justamente aquilo
de que Brigitte suspeitara. Suspirando, ela dobrou o
telegrama e subiu à suíte de Lucien.
O rapaz alto e louro tinha acabado de se levantar e
estava fazendo o desjejum. Ao ver a garota, correu para
abraçá-la.
Mas, logo, sentiu a sua frieza.
— Que houve, Happy? Onde esteve? Por que voltou toda
machucada?
— O problema não é esse, Lucien. Já lhe disse que não
sou mais a sua Happy. E, agora, não posso enganá-lo mais.
Eu sou uma agente secreta da CIA!
E atirou-lhe o telegrama e os documentos em nome de
Happy Weber. Lucien, pálido como um morto, leu a
mensagem. Depois, sacudiu a cabeça e deixou-se cair numa
poltrona. Estava completamente arrasado.
— Gostei de você, Lucien — continuou a garota, sorrindo
tristemente. — Você me agradou em todos os sentidos,
menos em um. Não podemos nos unir da forma que você
quer. Eu jamais seria a “isca” de um inimigo da Democracia.
Era esse o seu plano para mim, não era?
Ele assentiu gravemente.
— Sim, era essa a ideia. Quando a salvei nos bosques de
Caux e vi que você era tão bonita... pensei em convencê-la
a aderir à nossa causa. Você poderia me ser útil,
arregimentando os oficiais suíços para as hostes do
nacional-socialismo. Foi uma tolice, mas... eu não sabia
quem era você...
— Nem eu mesma sabia quem era eu. Desculpe, querido,
mas nossas vidas se separam neste ponto. Eu poderia
prendê-lo, e acusá-lo de ser um espião nazista, mas vou
deixá-lo em liberdade. Você tem vinte e quatro horas para
fazer suas malas e alcançar a fronteira, passando para a
Baviera; depois disso, mandarei a polícia atrás de você.
— Obrigado — disse ele, com voz fosca. — Foi um mal-
entendido. Mas volto a dizer que você é muito linda!
— Você também é bonitão, Lucien. Lamento que
tenhamos pontos de vista semelhantes, no amor, e
diferentes, na política. Seus companheiros da nova “Spinne”
Erwin Krause e Nills Burg, foram apanhados, no Lago
Constanza, quando tentavam fugir da Suíça. Creio que você
também leu isso, no telegrama.
— Eu os avisei — disse Lucien. — Alguém nos denunciou,
em Zurique, e a organização deu ordens para que nos
dispersássemos. Você acha que tenho chances de escapar
do Serviço Secreto suíço? Andei distribuindo panfletos entre
os camponeses de origem germânica e...
— Se você pegar seu Alfa e partir agora mesmo, tem
chance de escapar. Mas talvez seja preso na Alemanha,
onde o povo continua fiel à Democracia. Cuidado, Lucien!
Você é alemão?
— Sim, de Zurique.
— E é casado?
— Não. E agora você já sabe que também não sou
acionista de nenhum banco. Todo o meu dinheiro vem da
“Spinne”*. Dinheiro que nossos pais depositaram há tempos
nos bancos da Suíça...

*Aranha em alemão. Organização secreta que ajudou


os nazistas a fugir para a Suíça em 1945, ao término da
Segunda Guerra Mundial.

— Não precisa dizer nada que o comprometa, Lucien.


Somos inimigos. Vá embora, antes que a polícia o agarre
também! Depois dos momentos de prazer que você me
proporcionou, eu sofreria muito se você fosse preso! Pense
bem, meu querido... e, se algum dia quiser deixar de ser
neonazista, sabe onde me encontrar...
O rapaz acenou, perturbado, e foi fazer as malas. Meia
hora depois, deixou o hotel, com lágrimas nos olhos, e
embarcou no Alfa, desaparecendo na direção de Lausanne.
Deitada na cama da suíte, relembrando os bons
momentos, Brigitte também chorava. Por que a maldita
política tinha sempre que separar os seres humanos?
Depois do almoço, apanhou alguns papéis e pôs-se a
escrever a reportagem para o “Morning News”. Também
redigiu um relatório para a CIA (com cópia para a Interpol),
no qual revelava todos os detalhes do caso que acabara de
resolver. Não se esqueceu de informar a Sureté sobre a
ameaça que pairava sobre Lili d’Anvers, pedindo para que o
travesti fosse bem protegido, em sua ida ao tribunal. Mas
era duvidoso que os elementos da quadrilha de Mr. Grogan
pudessem fazer alguma coisa, pois a destruição de seu QG
levaria a polícia a agarrar todos os remanescentes, na Suíça
e na França. Aquele ramo da Máfia, pelo menos, estava
liquidado.
Só depois de entregar a reportagem e o relatório cifrado
na portaria do hotel, para que os mandassem pelo correio, é
que ela se lembrou de Simone. Correu ao hall e ali o
encontrou. O elegante rapaz estava sentado num sofá,
sorrindo languidamente para um hóspede alto e musculoso,
que se sentara ao lado dele. Brigitte agarrou seu amigo por
um braço e arrastou-o para fora do hotel.
— Que está fazendo comigo? — protestou Simone. —
Que brutalidade!
— Vou raptá-lo — sorriu Brigitte. — Vamos jantar num
restaurante pitoresco de Lausanne e, depois, passear pelos
campos, à beira do lago. Mas vamos de trem!
— De trem? Como plebeus?
— Sim. É apenas meia hora, de Lausanne a Montreux.
Saltaremos perto dos Rochedos de Naye e passaremos a
noite ao ar livre. Acho que você é até certo ponto
recuperável, Simone!
— Ah, Brigitte! Não me tente, por favor!
Gastaram a noite passeando pelas aldeias vizinhas de
Lausanne — de Pully, Cully e Lutry até Montreux — e foram
se deitar na grama de Caux. Quando a madrugada irrompia
sobre a bela paisagem sonolenta, Brigitte não pôde deixar
de recitar os versos de Jean Graven, o poeta suíço: “Dans le
soir transparent, la flûte des moustiques vibre comme la
dard aigu de la clarté...”*

*“Dentro da noite transparente, a flauta dos


mosquitos vibra como dardo agudo da claridade.”

Mas o maior milagre não foi o da poesia, foi o do sexo.


Simone des Boulevards, há muito entusiasmado com a
beleza de sua companheira, acabou vencido pela sua
natureza, despertada num arroubo de paixão. E ele
cumpriu, fiel e carinhosamente, os seus deveres de
cavalheiro.
Ao menos por uma noite.

A SEGUIR: WHISKY 33
Digitalizado por Carlos Natali

Revisado por Savajo

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