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O destino sussurra ao guerreiro.

“Você não pode contra a tempestade."


O guerreiro sussurra de volta.
“Eu também sou uma tempestade."

Rakushinfu, Cao Zhi


Prólogo
A floresta noturna esconde a perversidade.
Não importa o país ou a época, não há uma floresta que à noite não seja perversa.
Contudo, as formas como essa perversão se apresenta diferem.
Hora é uma escuridão que nos engole até os pés; outras, um labirinto que nos faz
perder o caminho de volta. E às vezes são as presas cobertas de baba de uma besta
faminta.
Nesse momento, a perversidade era ‘luz'. Uma luz laranja tremulando ao som de uma
música inexistente. Um brilho sinistro.
Não havia um ser vivo que não estivesse amedrontado do vazio aberto à noite. Era um
incêndio.
As árvores queimando, gritavam secamente. Diferente dos humanos, o fogo não tem
preferências. Ele engole a todos sem reclamar, enquanto vai engordando em sua
perversidade na mesma proporção.
Quando amanhecer, a floresta provavelmente será apenas um acúmulo de cinzas pretas
sem graça. E assim morrerá. Só reviverá daqui a centenas de anos.
O culpado pelo golpe fatal na floresta estava parado no centro do incêndio. Os
destroços de um avião.
O ventilador do motor ainda girava. Havia acabado de cair. A fuselagem estava partida
ao meio e a uma asa quebrada fincada perpendicular à terra. Como uma lápide.
Os moradores das redondezas começaram a se reunir para apagar o fogo e ajudar os
feridos. Mas logo o desespero se espalhou por suas expressões. Do jeito que estava, era
muito improvável alguém ter sobrevivido à queda.
A fuselagem despedaçada queimava como se o metal soltasse gritos estridentes. O
fogo se estendia para dentro do avião. Provavelmente se alguém andasse no interior
agora, os sapatos derreteriam e grudariam no chão.
Os moradores começaram a checar os destroços sem esperanças.
Um menino se aproximou de um desses escombros. Era um menino da vila próxima.
Estava com uma machadinha usada para derrubar árvores que trouxe para tirá-las do
caminho e evitar o fogo. Mas foi apenas imitando os adultos. A mísera machadinha não
era capaz de cortar nem os bonsais do avô.
Mesmo assim, o menino se aproximou do destroço. Talvez houvesse algum
sobrevivente. Se ele o ajudasse, seria bastante elogiado pelos adultos. Ele ficou
empolgado ao imaginar seu jovem eu se tornando um herói.
Essa ambição foi fatal.
Uma porta grudada ao destroço, emitindo um som de metal se desprendendo, caiu na
direção do menino. Não deu nem tempo das pessoas em volta ajudarem. Era uma
robusta porta de ferro capaz de aguentar a corrente atmosférica de alta altitude.
Alguém gritou. A porta esmagaria a cabeça do menino como se fosse uma bala ─
Porém isso não aconteceu. Uma mão a segurou.
Não era a mão de um morador. Ela havia aparecido do interior do avião.
“Finalmente cheguei.” O dono da mão disse calmo.
De dentro do avião, saiu um homem alto vestindo um terno azul. Era europeu, mas não
dava para saber sua idade ao certo ── provavelmente tinha entre vinte e trinta anos. Seu
olhar frio não se importava com o fogo ou com a destruição causada pela queda do
avião.
“Pensar que a aterrissagem de um avião chacoalhava tanto assim. A experiência vale
mais que tudo. ── Por sinal, você está bem?” O homem de terno perguntou ao menino
debaixo da porta. “Não precisa me agradecer. Minha missão é salvar qualquer humano
em perigo. Mas você vai acabar se machucando nesse lugar. Essa porta, uma vez aberta
e caída, nunca mais fica em pé novamente.”
“Eh...”
O menino piscou. Nesse meio tempo, o jovem de terno azul pulou para o chão e ficou
olhando atentamente ao seu redor.
“Ora, ora. Isso não estava nos arquivos do armazenamento externo. Há tanta árvore
crescendo no aeroporto do Japão assim? Mas mesmo que seja um país abundante em
natureza, onde 67% são florestas, é irracional construir um aeroporto aqui. Não tem nem
rua. E eu preciso ir andando para o local da missão. Oh céus, eu não consigo entender os
humanos de jeito nenhum.”
O menino pendeu sua cabeça para o lado com a expressão séria.
“Hã… você...” Sua voz trêmula. “Você... Quem é você?”
“Oh, perdão. Dentro da sociedade humana a conduta apropriada é se apresentar, não é
mesmo?” Ao dizer isso, o jovem tirou um distintivo preto do bolso. O menino não
conseguia ler as letras prateadas no centro. “Esta máquina é um detetive da EUROPOLE,
usado para fins de trabalho. Meu número de série é 98F7819-5. Fui produzido pela
doutora Usuária de Habilidade, a Doutora Wollstonecraft, e sou o primeiro computador
humanoide autônomo dentre a polícia mundial. Codinome Adam. Adam Frankenstein.
Muito prazer em conhecê-lo ── Bem, eu tenho uma missão, então se me permite.” Ao
cumprimentar o menino, ele disse “É mesmo," se virando novamente. “Você conhece o
Nakahara Chuuya-san?”
CODE;01
Um Mero Programa de 2383 Linhas Criado por Pesquisadores

Nakahara Chuuya não sonha. O seu despertar é como uma bolha brotando da lama.
Chuuya acordou em seu próprio quarto. Um quarto insípido. Só há as paredes, o chão e
o teto. Uma escuridão azulada os reveste.
Não há muitos móveis. Uma cama forrada e uma estante com poucos livros. Na parede,
um pequeno cofre embutido até a metade. Na mesa central, livros sobre joias abertos
casualmente. Isso é tudo.
A luz do dia que entra pela fresta da janela como uma membrana divide o insípido
quarto em dois. Chuuya levantou. Há um pouco de suor em seu peito. Os resquícios de
emoções turbulentas estão girando dentro dele. Porém ele não se lembra mais qual
emoção era.
Seu peito está sempre nesse estado. Desistindo, ele levanta da cama e vai tomar um
banho. Enquanto refresca o calor em sua cabeça, ele pensa sobre si mesmo.
Nakahara Chuuya. Dezesseis anos.
Um menino que um ano após entrar para a Máfia, alcançou resultados numa velocidade
sem precedentes, foi reconhecido pela Organização e ganhou esse quarto. Mas dinheiro
e posição não alegram em nada a Chuuya. Porque falta algo mais importante: seu
passado.
Ele não sabe quem ele é. Suas memórias começam a partir de oito anos atrás quando
foi sequestrado de uma instituição de testes militares. Não há nada antes disso, apenas
escuridão. Mais escura do que qualquer noite, um breu total.
Ele se secou e foi se vestir. Ao empurrar uma superfície na parede, ela abriu sem fazer
barulho e um closet apareceu. Todas as roupas eram de alta qualidade e não havia um
amassado nelas. Escolheu uma aleatoriamente e passou os braços pelas mangas.
Prendeu-as com abotoaduras de esmeraldas e se olhou no espelho. Após estalar a
língua baixinho, Chuuya saiu do quarto.
Ao sair de casa, como se calculado, um carro de cortesia apareceu. Um membro da
Máfia com óculos escuros dirigia o luxuoso carro preto. Ele estacionou ao lado de
Chuuya e abriu a porta traseira em silêncio.
“Para o mesmo estabelecimento de sempre, por favor.” Dizendo apenas isso, ele entrou
no carro e fechou os olhos.
O luxuoso carro preto corria tranquilo pela rua principal. Todas as ruas e cruzamentos
estavam completamente cheias de carros se deslocando para o trabalho. Mas o carro em
que Chuuya estava deslizava por entre eles passando pelas ruas laterais, se livrando do
congestionamento. Era como se tivesse usado magia para interferir com os outros
veículos.
“E o registro da transação de ontem?”
“Está aqui.”
Chuuya olhou os documentos passados pelo motorista. Eram documentos impressos
numa tinta especial incapaz de ser copiada. Mesmo que a polícia os conseguisse não
serviriam como prova, pois estavam em código secreto.
“Hnf, a transação dessa semana também ocorreu bem.” Chuuya disse
desleixadamente. “Que sem graça.”
O trabalho do Chuuya dentro da Máfia do Porto era monitorar a distribuição de joias
contrabandeadas.
Joias ── Com um valor próximo ao de uma unidade de troca, um dos bens mais caros
desse mundo. Ametista, rubi, jade e diamante.
Um simples elemento pressionado, mas que ao ser balançado diante das pessoas e ao
passar para as suas mãos, se tornam pedras malignas com um temível poder escondido.
O que condensa essa magia é o contrabando. Uma sombra nascida da deslumbrante
luz dessas gemas. Enquanto houver pedras preciosas, certamente existirá joias
contrabandeadas nas sombras. E há inúmeras sombras pelo mundo onde nascem o
contrabando.
Nas mineradoras, os pobres garimpeiros as roubam. Outras vezes, um ladrão bate na
vitrine de uma joalheria com uma arma e leva tudo. Já às vezes, um navio carregado de
joias é afundado por piratas ou um assaltante puxa do pescoço de uma celebridade. Em
mineradoras de Organizações antigovernamentais elas são usadas como pagamento de
armas e drogas.
Desse jeito, as joias nascidas da escuridão não podem sair para o mundo de luz. E por
isso que organizações criminosas como a Máfia do Porto se dão ao esforço extra. Eles
dão luz às negras gemas trazidas até o Porto de Yokohama.
Os transportadores as trazem para a concessão da cidade, os revendedores as
compram e proficientes manufatores as desmontam e cortam, tornando a fonte
desconhecida. Um colar vira um bracelete, um bracelete um brinco e um brinco um anel,
dando novo sopro de vida às joias.
As novas joias assim nascidas recebem um certificado oficial pelos avaliadores da
Máfia e começam a circular rachaduras pelos distribuidores e até serem exibidas na
vitrine de uma joalheria de primeira classe.
Esse contrabando é uma fonte de dinheiro extremamente importante para a Máfia.
Porque as joias contrabandeadas eliminam a exploração intermediária pelas empresas
de administração alfandegária e de distribuição, constantemente gerando um enorme
lucro.
Mas os produtos com poder mágico igual ao das joias, atraem inevitavelmente sangue
e violência. Para conter isso, para estabelecer uma circulação estável, é indispensável
uma violência ainda maior que consiga trucidar qualquer abuso numa bocada só.
Atualmente, Chuuya está cumprindo essa função perfeitamente. Perfeito até demais.
Muito membros antigos estão surpresos. Eles não pensavam que um moleque de
apenas dezesseis anos conseguiria mandar a capital das joias negras tão bem assim.
Contudo, mesmo que pouco, alguns não ficaram surpresos. Aqueles que um dia
enfrentaram a organização comandada por Chuuya, as Ovelhas.
Ele era o rei da organização que continuava a incomodar a Máfia. Não havia nada de
estranho em conseguir controlar perfeitamente uma ou duas capitais.
Mas seja surpresa, admiração ou até mesmo inveja, tanto faz para Chuuya. O que ele
quer era algo que nunca pensariam.
Ele jogou os documentos no banco do carro como se jogando um cascalho e com uma
voz espinhenta, “Desse jeito, vão se passar anos e eu ainda não saberei,” disse. O
motorista fingiu que não havia escutado.
O carro de luxo do Chuuya foi planejado para uma zona residencial. Tirando o verdilhão
oriental cantando na parte baixa do céu, tudo estava silencioso como um túmulo. Nem o
barulho do trem como o tumulto do tráfego chegavam aqui. O carro corria em silêncio até
que parou na frente de uma certa loja.
Era um bar boliche antigo feito de tijolos. Na fachada estava escrito em letras azuis o
nome, Old World. Como ainda era manhã, o neon não estava ligado.
Chuuya desceu do carro. Para não perturbar o silêncio da zona residencial, o veículo foi
embora discretamente.
Ele abriu a porta do bar.
Cinco armas apontadas para ele o receberam.
“Estamos arrumando.” O homem disse segurando a arma. A boca do revólver
pressionava contra sua cabeça.
“Se quiser morrer, pode entrar, claro.” Outro homem falou. Ele apontava uma espingarda
de cano serrado contra o peito de Chuuya.
“Não é muito descuido vir sem um guarda-costas, rei das joias?” Um terceiro homem
disse apontando o revólver para a cintura dele.
“Mesmo você não conseguirá se proteger de todos os ataques na posição em que
está.” Outro falou. Ele segurava uma pistola contra a nuca de Chuuya.
“E então, o que fará, Usuário gravitacional invencível? Se você se desculpar chorando
agora, te deixamos morrer sem sofrimento.” O último homem disse de frente para
Chuuya. Seu longo revólver mirava diretamente entre suas sobrancelhas.
Era um impasse. Se ele atacasse um, os outros atirariam. Se ele tentasse evadir, levaria
um tiro na cara. Caso fosse para frente, seria baleado por trás.
Chuuya não reagiu. Nem se quer mudou sua expressão. A atmosfera no ambiente ficou
tensa. Todos colocaram força nos dedos segurando as armas.

Pan! Um som seco ecoou pelas ruas da vizinhança.

Inúmeras delas caíram como sangue sobre a cabeça imóvel do Chuuya ── Várias tiras
coloridas.
“Chuuya! Parabéns pelo aniversário de um ano na Máfia!” As vozes felizes dos homens
ecoaram pelo bar. Expressando que estava de saco cheio, Chuuya olhou para eles.
“Idiotas...”
Fumaça branca saia do revólver de cada um e vívidas tiras de papel estavam
penduradas na cabeça do jovem. Confetes dançavam pelo ar.
Os homens sorriam, olhando Chuuya todo coberto pelas tiras de papel. Ali estavam
reunidos os integrantes da sociedade de ajuda mútua da Máfia do Porto. Mas não era
uma sociedade qualquer. Todos eram os mais bem-sucedidos membros que carregavam
o futuro da Organização nas costas, em posição igual ou superior à do Chuuya. E todos
tinham menos de vinte e cinco anos. Eles eram conhecidos como o Clube dos Novos pela
Organização. Os jovens lobos da Máfia do Porto.
Chuuya suspirou e sem cumprimentar ninguém, andando para o fundo do bar com a
expressão fria.
“O que foi, Chuuya? Não ficou feliz?” O mais velho se dirigiu para as costas do Chuuya.
“O pessoal se reuniu por você.”
“Não celebrem por um ano.” Chuuya recusou categoricamente. “Não estou nem um
pouco feliz.”
“Não diga isso. Você com certeza irá gostar.” O mais velho foi atrás dele. “Depois
iremos te dar os presentes. Não é legal, como se fosse estudante?”
Chuuya parou e se virou, o encarando.
“Então você é o mandante, Piano Man. Te contar, o seu senso para brincadeiras é
podre.”
“Exato. Eu continuo a respirar até hoje para poder importunar a todos com essas
brincadeiras podres.”
Quem devolveu o sarcasmo do Chuuya com um sorriso despreocupado era o mafioso
vestido de sobretudo preto em um comprido hakama branco. Conhecido dentro da
organização como Piano Man ── Suas roupas eram sempre preto e branco.
Alto, dedos compridos e um sorriso constante de quem estava se divertindo. Como o
organizador dessa reunião de jovens, assumia a função de líder. Foi ele quem convidou o
Chuuya. Piano Man estava mais para um artesão do que para mafioso.
Ele era praticamente o único em Yokohama capaz de produzir uma nota falsa da
mesma precisão da original. Mas por causa de sua natureza caprichosa, se não
produzisse uma cópia que fosse de sua satisfação, ele ficava meses sem fazer nenhuma.
Mesmo se fossem ordens do Chefe.
Por sinal, o seu apelido de Piano Man não é por causa de suas roupas. Ao matar seus
inimigos, ele usa uma corda de piano de aço-carbono conectada a um bobinador elétrico.
Ao envolver um pescoço com essa corda, nem a mais sobre-humana força consegue se
soltar e a cabeça cai em poucos segundos. O que sobra é apenas um corte perfeito entre
os ombros, uma enorme quantidade de sangue e a reverberação do grito de terror da
vítima.
Um homem que acumula capricho, delicadeza e crueldade. Atualmente, dizem que ele é
o homem mais próximo de se tornar um executivo da Máfia do Porto.
Enquanto Chuuya se dirigia para o interior do bar, outro homem falou:
“Hahaha! A cara do Chuuya foi a melhor! Pelo menos a performance de hoje foi de
comum acordo! A estrela do Clube dos Novos e ex-inimigo da Máfia, rei das Ovelhas,
Nakahara Chuuya! Só de ter visto aquela sua cara já fez valer a pena eu ter entrado nesse
clube!”
Girando a espingarda, um menino de cabelo prateado ria com uma voz que atravessava
todo o salão. Chuuya o encarou.
“Hnf, deixa eu te dizer. Se eu não tivesse percebido esse teatro, você teria sido o
primeiro a morrer, Albatross.”
“Wow. Foi mal, mas eu não sou tão ruim a ponto de ser morto por você. Antes desse seu
punho do qual se orgulha me acertar, essa faca aqui corta ele.”
Ao dizer isso, uma larga kukri apareceu de dentro do casaco dele sem fazer barulho.
Com movimentos que camuflavam o seu peso, após cortar o ar inúmeras vezes, fazendo-
a reluzir, o menino a soltou. Ela penetrou o chão ao acertá-lo, causando um estrondo, e
fez com que uma rachadura corresse pelo piso. O menino riu.
Assim como seu nome Albatross sugere, ele é um jovem que vive rindo alegremente.
Falante mais do que qualquer um.
Mesmo no meio de uma disputa com balas, sangue e tripas voando, seus subordinados
nunca o perdem de vista. Porque se forem em direção a falação e aos risos, lá estará ele.
Dizem que Albatross comanda tudo aquilo que é mais veloz do que andar. Ou seja,
veículos. Esse é seu território. Ele que prepara todos os transportes responsáveis por
levar as cargas das transações de modo a não serem pegos pelo radar da Guarda
Costeira. Dependendo do caso, também consegue veículos com a placa falsa.
Como um ex-piloto da Organização, ele consegue operar qualquer coisa que tenha um
manche. Mais rápido e furtivo do que ninguém.
Existe o rumor de que ele uma vez conseguiu fugir de um helicóptero de guerra da
Guarda Costeira num barco de pesca aos pedaços, mas não há ninguém na Organização
que duvide.
Quem o irrita não vive nem três dias. Porque os carros, em outras palavras o fluxo de
produtos e dinheiro, estão no colo dele. Quem for odiado por ele terá todas as atividades
econômicas suprimidas e num piscar de olhos ficará sem um centavo.
“Hein, Chuuya. Vamos brindar, brindar.”
Albatross foi seguindo ele e ofereceu uma taça de champagne. Mas Chuuya só deu uma
olhada e o ignorou, continuando a andar para o interior.
“Oh céus, você hoje tá um mau humor só, Chuuya.” Albatross disse gesticulando
exageradamente sem derrubar o líquido. “Pelo menos uma vez por mês tem sempre um
dia que você fica assim de repente ── aconteceu alguma coisa? Teve um pesadelo?”
Pesadelo. Ao ouvir essa palavra, Chuuya se virou com a expressão ardente.
“Não!”
O bramido fez as janelas do bar tremerem.
“Nossa, que medo... Então foi o quê?”
Chuuya hesitou um pouco, o olhar vagando ── até que falou com uma voz um pouco
mais calma do que a anterior:
“Todos os dias você fica bebendo até de manhã e fazendo barulho no andar em cima do
meu, Albatross. Como você sempre esquece, vou te falar pela milésima vez. O seu chão é
o meu teto.”
“Oh não, como eu iria esquecer? Eu faço isso porque sei, vizinho.” Albatross riu sem
maldade.
Ele vivia no mesmo prédio de luxo do Chuuya, um andar acima. Do ponto de vista do
Chuuya, esse arranjo foi o maior erro da Máfia. Albatross às vezes entrava em seu
apartamento quando dava na telha dizendo “Me ajuda com o trabalho,” e arrastava o
outro para fora. Então seja de carro, navio ou helicóptero, levava o Chuuya para alguma
batalha distante. Graças a isso, Chuuya ficou bom em nadar, já que nem sempre
Albatross preparava um meio de retorno.
Chuuya continuou a andar o ignorando e quando foi pendurar seu sobretudo no
cabideiro do bar, um homem segurando outra taça de champagne apareceu ao seu lado.
“Fufu... Parabéns por um ano... Chuuya-kun.” Esse homem riu com um olhar obscuro
por trás da franja arrumada. “Não achei que ficaria por tanto tempo... Fufu.”
Ele era anormalmente magro. Por dentro de suas mangas, seus finos pulsos nadavam
com folga. Além disso, a mão que não segurava a taça, segurava um suporte de
intravenoso e o tubo que se estendia da bolsa de IV sumia dentro de sua roupa.
“Doc.” Chuuya aceitou a taça oferecida. E olhou para seu interior. “Não tem veneno, né?”
“Não.” O homem chamado de Doc riu sombriamente. “Porque não dá para te matar só
com veneno.”
“Como sabe?”
“Por experiência.” Seus olhos carregavam uma luz negra. “Já matei bastante usando
veneno.”
O jovem de aparência doentia era o responsável pela assistência médica da Máfia, Doc.
No submundo do crime era comum médicos sem licença, mas esse não era o seu caso.
Ele havia tirado seu registro na Europa, sendo um legítimo médico.
No mundo do crime, a demanda era extremamente grande. Para ferimentos que se
tratados num hospital regular fariam a pessoa ser relatada ── feridas de tiro e tortura
── só restava recorrer a um médico não convencional. Era o mesmo na Máfia do Porto.
Porém havia uma diferença. Na Máfia, médicos eram uma posição importante,
recebendo tratamento especial, devido ao Chefe, Mori Ougai, ser um ex-médico do
submundo.
E mesmo entre os médicos mais capacitados da Máfia do Porto, Doc era o melhor de
todos. Ainda jovem, ele já salvou a vida de quase oitocentas pessoas. E da mesma forma,
já roubou intencionalmente o equivalente.
Seu objetivo é se aproximar de Deus. Ele acredita que salvando os outros, esse feito
será possível. Para isso, ele pretende salvar o mesmo número de vidas que Deus matou
na Bíblia, dois milhões. E ele apenas aguarda por um grande conflito onde as pessoas
morram como insetos.
“Te contar, não é o elenco todo? Chamaram até o Doc...” Dizendo isso, Chuuya olhou
para o interior. “Pra começo de conversa, por que reunir todo mundo pra comemorar um
ano?”
“Eu explico.” Um jovem de voz gentil se aproximou delicadamente. “Porque o primeiro
ano é o mais complicado após a entrada na Máfia.”
“Quê?”
O jovem sorriu. Seu sorriso era doce ao ponto de ser sedutor e sua expressão, bizarra.
Uma beleza mágica capaz de enfraquecer tanto homens quanto mulheres que o vissem
sorrindo.
“O primeiro ano é o mais severo para os novatos, uma pista curva dos mortos. Nesse
meio tempo a maioria vai fugir, ser esmagada ou causar algum problema e ser apagada
pela organização. Por isso essa é uma existência amaldiçoada.”
“Que interessante. Você achou que eu cometeria algum erro e seria eliminado,
Lippmann?” Chuuya perguntou o encarando.
“Não, eu não pensei.” Dizendo apenas isso, o jovem chamado Lippmann sorriu de
maneira suspeita.
Lippmann ── Dentre todas essas faces aqui presentes, o seu trabalho era o mais
especial de todos. A janela para o mundo de luz. Essa era sua função. Ou seja, aparecer
na frente dos outros.
Negociar com empresas de fachada, participar de reuniões e negócios com pessoas do
governo e dependendo do caso até lidar com a mídia. Se a Máfia do Porto tinha uma
segunda cara, era ele.
Matá-lo seria uma tarefa herculana. De certa forma, mais difícil do que assassinar o
próprio Chefe. O motivo sendo: ele era uma grande estrela, com entusiastas até no
exterior. Se ele fosse morto ou sumisse, todas as mídias do mundo anunciariam isso
como notícia de destaque. É claro que geraria um alvoroço sobre alguém o ter matado...
Ou seja, todos os olhos do mundo estariam voltados na busca de um suspeito. Uma
situação que uma organização criminosa quer evitar a qualquer custo.
Além disso, ao mesmo tempo que Lippmann é um Usuário forte, como sua Habilidade é
do tipo contraofensiva à hostilidade do atacante, é impossível eliminá-lo silenciosamente
sem deixar provas. E uma vez dado o nome do culpado, todas os veículos de informação
do mundo irão expor seus antecedentes, objetivo e mandante numa frenesi. Ao terem
toda sua privacidade exposta a Deus e o mundo, aqueles envolvidos com o crime nunca
mais poderão voltar. A organização estará acabada. A primeira bomba ativada com a
morte dele será uma armadilha mortal terrível e intocável.
Por sua vez, suas armas não têm nada de especial. Ele é um ator nato. A eloquência e
habilidade de negociação vem de sua capacidade de atuação e sua beleza é a curva
perfeita em seu rosto.
“Além do mais, eu não ligo nem um pouco se você for expulso da Organização.”
Lippmann deu um sorriso suave como penas. “Quando isso acontecer, eu vou te chamar
para meu verdadeiro trabalho. Almejaremos o mundo como atores.”
“De jeito nenhum.” Chuuya torceu o rosto como se estivesse bebendo veneno. “Vou
repetir, de jeito nenhum.”
“Eu fui contra a comemorar o seu um ano.”
De repente, uma voz calma ecoou do fundo do bar. Não é que tenha gritado. Nem que
fosse um tom coercivo. Mas todos olharam calados para a direção de onde ela veio.
Ali estava um homem vestindo roupas sem graça.
“Iceman.” Chuuya disse cauteloso. “Tem razão. Uma comemoração não combina com
você.”
Não havia uma emoção se quer nesse homem. Nem expressão. Sua presença dentre os
extravagantes e intensos dos Clube dos Novos era a mais diferente de todas. Não
passava nenhuma impressão ou vigor, pelo contrário, absorvia toda a presença e barulho
ao seu redor, o silêncio da noite escura.
Iceman. Um homem com a presença de um veterano, calado e sem expressão. Gosta de
roupas simples. E seu trabalho também é o mais simples e mundano de todos. Ainda
mais para a máfia. Um assassino.
Ele não usa sua Habilidade para matar. Ele usa o que tem por perto. Uma caneta
tinteiro, uma garrafa, os barbantes decorativos do abajur. A partir do momento que
alguma coisa esteja na mão dele, se torna uma arma mortal mais perigosa do que
qualquer bala. Por esse motivo ele é capaz de matar em qualquer lugar. Seja num
deserto, num palácio ou no cofre de um banco.
E há mais uma peculiaridade sobre ele. Quando uma Habilidade é manifestada próxima
de seu corpo, ele sente na pele. Isso não é uma Habilidade e nem uma técnica, é sua
essência. Por isso consegue discernir a hora e o lugar adequados para matar.
Além disso, tendo enfrentado Usuários em todo tipo de batalhas e por todos os cantos,
sua taxa de morte é alta. Assim como a confiança que tem da Organização. Para
completar, como não tem uma Habilidade, ele não é pego pelos departamentos de
prevenção a crimes de Usuários da Divisão de Habilidades Especiais e da Polícia Militar.
É um verdadeiro homem invisível.
Dizem que a pessoa mais provável de conseguir matar o Chuuya é o Iceman.
“Eu pensei que você não viria para a minha celebração, Iceman. Você não me odeia?”
Chuuya riu provocando. Nós já tivemos nossa disputa um com o outro na época das
Ovelhas, afinal. Depois de perder a chance de me matar, sua reputação caiu bastante."
“De fato eu fui contra a festa. Mas não foi porque eu te odeio nem porque te ressinto.
Foi porque íamos te irritar a toa.” O tom do Iceman continuava uniforme, sem demonstrar
a mínima intenção de emoção. “Ninguém aqui achou que você seria eliminado em um
ano.”
“O quê?”
“Achamos que causaria uma rebelião.” A voz do Iceman era afiada como som de gelo
derretendo. “O líder da organização rival da Máfia do Porto, Ovelhas. Achamos que você
mataria o Chefe e causaria uma guerra dentro da máfia. Para isso não acontecer, Piano
Man ingressou você nesse Clube dos Novos.”
Chuuya olhou de relance para Piano Man. Ele observava a conversa sem demonstrar
emoção. Não negou nem confirmou. Ou seja, confirmou.
“...Hmm. Entendi." Chuuya olhou para todos. “Todos estavam me protegendo
gentilmente como se eu fosse um bebê recém nascido. Estou emocionado. Pra eu não
me irritar, me deram uma chupeta, brinquedos e até um chocalho. Graças a isso eu
consegui completar um aninho. Claro que um grande evento era necessário para
celebrar.”
Ao dizer isso, ele quebrou a taça de champagne em sua mão. O líquido jorrou. Mesmo
assim, Iceman não levantou uma sobrancelha.
“Há evidências para ficarmos alerta com você.” Iceman continuou. "18 de junho.
15:18h. Um distribuidor de joias que irritou você ficou de cama por três meses. O motivo
foi ter te feito uma certa pergunta. Uma pergunta trivial. Mas ao ouvi-la, você o mandou
voando do terraço de um prédio de três andares."
“Ah foi? Esqueci.” O olhar de Chuuya para o conteúdo da fala era severo. “Então para
testarmos, faça essa pergunta agora. Se tiver coragem.”
Iceman estava calado. Após manter por cinco segundos seu rosto inexpressivo como
se tivesse absorvido todas as emoções, disse:
“‘Onde você nasceu?'"
Chuuya reagiu de imediato. Agarrou-o pela gola e o puxou para perto com violência. A
costura da blusa rasgou em algum ponto.
“Que mão é essa?” Iceman olhou para a mão o agarrando, inexpressivo.
“Obra sua.” Chuuya não afrouxava.
Preocupado, Albatross disse:
“Ei, ei, chega disso,” e agarrou o braço do Chuuya. “Não fique irritado por causa dessa
pergunta. Nem parece você.”
“Você não decide como eu sou. Eu te mato.”
Chuuya afastou o braço que o segurava rapidamente. Jogado com força, Albatross
cambaleou para trás.
Os pés de Chuuya que haviam ido mais para frente, de repente pararam. Um taco de
sinuca estava pressionado contra sua têmpora. Horizontalmente, como uma espada.
“Ei... que taco é esse?” Chuuya falou sem expressão.
“Obra sua.” Iceman disse.
Chuuya inclinou o corpo para trás, afastando a cabeça do taco e deu de cabeçada nele.
O taco explodiu em inúmeros pedaços de madeira que saíram voando pelo bar. A maioria
caiu sobre Iceman.
As afiadas lascas cortaram sua têmpora direita e sangue escorreu para o canto de seu
olho. Mas ele nem se quer piscou.
“Chega.” Essa foi a voz mais fria até agora.
Sem perceber, Piano Man estava atrás de Chuuya. Uma corda de piano se estendia pela
manga da blusa, envolvendo o pescoço do jovem como um colar luxuoso.
“Chuuya.” Piano Man disse friamente. “‘Não use sua Habilidade contra seus
companheiros.' Essa é a primeira regra desse grupo, esqueceu?"
Eles chamavam de corda de piano, mas diferente da usada no instrumento, não era algo
tão delicado assim. Era um fio de aço, totalmente de uso industrial, utilizado para prender
vergalhões e pedaços de concreto.
E ele estava inserido na bobina no fundo de sua manga. Ao ser ativada, o fio se tornava
a guilhotina mais leve desse mundo e cortava uma cabeça como manteiga. Mesmo que
Chuuya diminuísse a gravidade da corda, ele não conseguiria diminuir a velocidade do
aperto e sua cabeça seria cortada do mesmo jeito.
“Eu sei porque está de mau humor.” Piano Man falou. “Porque desse jeito, perderá para
o Dazai. Você precisa se tornar um Executivo antes dele de qualquer jeito. Desde o
começo, você apenas entrou para a Máfia para poder ler os documentos secretos que só
os executivos têm acesso. Nesses documentos está escrito a sua verdadeira identidade.”
A expressão de Chuuya mudou.
“Como você sabe...”
“Mas do jeito que está, vai demorar uns cinco anos para se tornar um.”
Chuuya franziu a testa até formar rugas. Seus dentes trincados rangeram.
“Não diga mais nada.”
“Não, vou dizer.” Piano Man sorriu cruelmente. “Eu ouvi praticamente tudo do Chefe.”
“Como é?” Chuuya começou a ficar enfurecido.
“Ele me ordenou para que eu ficasse de olho em você logo após entrar no Clube dos
Novos. Informar se você conseguisse alguma informação nova ou procurasse por conta
própria o conteúdo dos documentos.”
“Me... monitorar?”
Piano Man assentiu.
“Era o óbvio. Se você não precisar mais olhar os documentos, será questão de tempo
para se voltar contra o Chefe. Afinal, era de uma organização rival. Claro que eu soube o
porquê também. Você é de fato surpreendente.”
“Pare...” Chuuya gemeu suprimindo a voz.
“Arahabaki. Também conhecido como objeto de pesquisa militar em Habilidades
artificiais, protótipo vinte e oito. Esse é você. Você suspeita não ser um humano e apenas
um ser artificial. O seu fundamento sendo ── que você não sonha.”
Chuuya grunhiu sem conseguir formar palavras. Foi coisa de um instante.
Sua mão direita oscilou como uma cobra, agarrando o braço do Piano Man e destruindo
o dispositivo elétrico que lançava a corda de piano. Enquanto que sua mão esquerda
pegou um dos fragmentos do taco caído no chão e posicionou a ponta afiada para a
garganta do outro. Tirando Chuuya, todos rapidamente se moveram.
Lippmann tirou uma pistola automática das costas e apontou para Chuuya. A kukri do
Albatross estava contra a garganta dele. Já Doc apontava uma injeção para a têmpora do
jovem ao mesmo tempo que Iceman aproximou um pedaço da taça quebrada de seu
olho.
E então silêncio. Todos estavam imóveis com a respiração presa. Era como uma foto. A
única coisa que se movia era a brilhante poeira na luz da manhã.
Qualquer um poderia acabar com uma vida apenas num único movimento. Mas
ninguém se moveu.
“Façam.” Chuuya disse. Sua voz tremia como a corda esticada de um arco. “Tanto faz
quem seja.”
“Bem, eu não me importo de fazer, mas deixa a gente ir até o final do evento.” Piano
Man disse calmo.
“Como assim?”
“Eu não disse que tínhamos presentes?” Dizendo isso, ele tirou aquilo do bolso. “Aqui."
Chuuya moveu seu olhar cautelosamente para o objeto. E então ── ficou petrificado.
"................................Hah?"
Falando apenas isso, tudo parou. Sua respiração e parecia que até mesmos seus
batimentos.
Chuuya afrouxou a mão e deixou cair o pedaço de taco que segurava, que caiu
secamente. Esquecendo de tudo a sua volta, ele pegou aquilo cambaleando. Era uma
foto.
"É bem valiosa. Foi bem difícil consegui-la."
Chuuya aproximou o rosto da foto como se em transe. Não estava mais ouvindo a voz
do Piano Man. Os outros rindo sarcasticamente abaixaram suas armas. Chuuya também
não percebeu isso.
“Da próxima vez que alguém fizer aquela pergunta insignificante, mostra isso aí.”
A foto mostrava o Chuuya com cinco anos.
Uma praia em algum lugar. Com o mar ao fundo, estava o Chuuya vestindo uma roupa
tradicional cor de cannabis e um jovem. Eles estavam de mãos dadas, olhando para o
fotógrafo. O jovem sorria com os olhos espremidos talvez por causa da claridade vinda
na diagonal. O pequeno Chuuya olhava para o fotógrafo distraído, com uma expressão de
que não sabia o que estava acontecendo.
“Essa foto foi tirada numa comunidade agrícola antiga no oeste.” Piano Man falou.
“Agora é uma cidade-fantasma, ninguém mais mora lá. Ele achou isso ai nos registros
médicos da vila vizinha que o Doc investigou ── Doc.”
“Fufu... Mesmo que os humanos mintam, seus dentes não mentem.” Doc deu um
sorriso doente e trouxe outros documentos. "É obrigação manter registros médicos
arquivados por anos... e essa obrigação foi a luz da esperança."
Perplexo, ele comparou os documentos trazidos pelo Doc.
“Você me prejudica se agir como tivesse conseguido sozinho, Doc!” Albatross falou
mostrando outro documento. “Se não fosse pela minha ajuda, você nem teria chegado a
esses registros. Os registros da clínica destruída estão sob custódias de corporações
médicas sérias. Fui eu que encontrei o lugar certo dentre essas incontáveis corporações
como grãos de areia de uma praia. Fui atrás dos registros e encontrei o depósito! Ame--
Pedi para todo mundo que poderia ser o responsável legal e finalmente encontrei eles!”
“Claro que não importa o quão excelente seja um investigador, se não tiver o primeiro
passo não chegará nunca ao destino.” Lippmann sorriu gentilmente e mostrou outro
documento. “Eu pedi a uma conhecida minha para poder inspecionar documentos do
governo relacionados ao exército. Naturalmente documentos relacionados a pesquisa
por serem de alta confidencialidade foram descartados depois da guerra, mas eu
descobri que uma unidade solicitava falsamente doações de corpos para experimentos
humanos no oeste. Essa é a primeira pista. Ou seja, eu fui o melhor contribuinte.”
Entendendo para onde a conversa estava indo, ele olhou temeroso para o último
homem, para Iceman.
“...Eu não fiz nada demais." Dizendo isso, ele pegou o último documento. “Encontrei os
irmãos dos seus pais e a sua árvore genealógica, o endereço da escola que frequentava,
seu boletim, sua foto de estudante e seu registro de nascimento. Como o Piano Man
falou para não deixar o Chefe saber, eu não pude contar com informantes e tive que
invadir casas oito vezes.”
“Oi... Oito vezes?”
Ao receber o documento, ele arregalou os olhos. Iceman acenou e pela primeira vez
hoje demonstrou um ligeiro sorriso. Poucos o conhecem no seu dia a dia. Mas quando
ele não está trabalhando, ele é um homem gentil que ama café e discos. Não são muitos
que conhecem essa sua faceta. E dentro desses não muitos, estão os cinco daqui.
Chuuya olhou para todos em ordem.
Estavam sorrindo. Piano Man. Albatross. Doc. Lippmann. Iceman. Os gênios da Máfia
do Porto.
“Por quê?” Chuuya olhou para a foto. “Isso é ir contra ele... contra o Chefe.”
Do ponto de vista do Chefe, o segredo sobre a origem do Chuuya eram algemas que o
prendiam a Organização. Enquanto elas existissem, Chuuya não poderia traí-la. No
entanto, Piano Man deu de ombros com a cara lavada.
“Foi-me dito para supervisionar se você havia descoberto ou não o seu segredo, mas
ele não mencionou sobre não poder te contar.”
Chuuya o encarou buscando a intenção por detrás dessas palavras.
“Por quê?” Sua expressão demonstrou ansiedade por um instante. “Por que se darem
todo esse trabalho?”
“Está perguntando o motivo, mas...” Piano Man fez cara de obviedade, “nós não
dissemos? É para celebrar o seu um ano.”
“Mas...”
“Não foi nada demais.” Lippmann olhou para os outros como se entendesse a atitude
de Chuuya. “Pode-se dizer que é aquilo.” E então falou como se fosse a coisa mais
natural do mundo. “Porque somos companheiros ── Não era assim com as Ovelhas?”
Não. A expressão perturbada de Chuuya confessou.
Todos os integrantes das Ovelhas dependiam do Chuuya. O contrário não acontecia de
jeito nenhum.
“Que tal pensar dessa maneira, Chuuya-san?” Abrindo ambos os braços, Lippmann
mostrou uma expressão tenra. “Isso não é um presente. É uma bandeira. Desde os
tempos da Roma antiga, só há uma razão para o exército levantar uma bandeira. Para
transmitir a seguinte informação: Nós, que existimos, seremos o grupo dos escolhidos
── Quando um de nós seis estiver em perigo, lembre-se dessa bandeira. Vamos nos
reunir debaixo dela. ...Estaremos esperando.”
Ele inclinou um pouco a cabeça.
“Fufu... que belo discurso. Como esperado do Lippmann. Quantas mulheres já não
foram enganadas por essa sua eloquência...” Doc disse como se para si mesmo.
“Não sei do que está falando.” Lippmann deu um sorrido desprendido. “Ah, é mesmo.
Por sinal, essa reunião aqui tem o título oficial de Bandeira. Eu tirei a metáfora daí.
Apesar de que quem lembrou de usá-lo foi o fundador, Piano Man.”
“Bandeira?” Albatross inclinou a cabeça para o lado. “Sinto que é a primeira vez que
estou sabendo disso.”
“Ei, ei, esqueceu? Te contar, eu expliquei no começo. Não foi, pessoal?”
Piano Man olhou para todos, mas ninguém mudou a expressão.
“Espera, por acaso ninguém lembra de verdade? É o nome que levamos três meses
pensando.”
Todos desviaram o olhar. Apenas Chuuya olhava atentamente para a foto em sua mão.
Não o que ela mostrava, mas sua existência era como se respondesse a todas as
perguntas.
“Chuuya, parabéns pelo seu um ano na Máfia.” Todos disseram.
Por um instante ── por apenas alguns segundos, sua expressão era de uma criança
sem saber o que fazer. Ele olhava para cada um, para os documentos e para si mesmo na
foto.
“O que foi?”
Quando Piano Man perguntou, Chuuya retomou os sentidos em surpresa.
“Vo...”
E então se esforçando para fazer uma cara de raiva, abriu a boca tentando gritar algo,
mas não conseguiu pensar em nada.
Todos olharam sem entender para ele. Chuuya saiu apressado em direção a porta,
gritando:
“Hah, então é isso!” Sua voz desnecessariamente alta. “Então queriam me surpreender
mostrando essa foto para que eu chorasse emocionado e me desculpasse. Esse era o
objetivo!”
“Hn? Não...”
“Até parece que eu vou cair nessa. Tão ouvindo? Não vou!” Desviando o rosto, ele saiu
batendo os pés em direção a entrada. “Eu vou embora! Não venham atrás de mim,
ouviram?! Não olhem pro meu rosto de jeito nenhum!”
Piano Man olhou vagamente os outros e disse para Chuuya:
“Entendo. Se você vai embora, não tem jeito. O meu plano era que depois disso todos
jogássemos sinuca, mas... então vamos jogar só nós mesmo?”
"Sem o convidado de honra? Lippmann levantou a sobrancelha.
"É o jeito. Tem bastante bebida. Vamos nos divertir pra variar e dispersar a melancolia
do trabalho. Também há um troféu para o primeiro lugar."
“Oh, que beleza.”
“Ei, Chuuya, já que é o que quer, vá com cuidado!” Albatross acenou para a porta.
“Façam como queiram!”
Dizendo isso, Chuuya chutou a porta e saiu do bar.
“Hnf.”
Todos se olharam e depois olharam para a porta. Sem falar nada. Se passaram dez,
vinte segundos de silêncio. Ninguém falava nem se mexia.
Trinta segundos. Quarenta segundos ── e a porta abriu um pouquinho.
“Merda. Me ensinem as regras. O troféu será meu!”
Chuuya estava parado na porta com uma cara que misturava frustração e raiva.
“Assim que se fala.” Piano Man sorriu.

Depois disso ── as cenas que se passaram era de um bar encontrado em qualquer


lugar. O barulho da bola sendo empurrada, os passos, as comemorações, os escárnios,
as taças batendo, o som da bola caindo na caçapa, as risadas dos jovens. Uma cena
comum em todo o mundo.
Juntando as posses de todos presentes, daria para comprar um quarteirão nessa
cidade. Mas eles nem se quer cogitavam isso. Era uma conversa normal entre jovens.
“Quem ficou em último lugar na vez anterior?”
“Essa tagarelice toda é só agora.”
“Não tem bebida suficiente.”
“Hahaha, jogue bêbado mesmo! E perca!”
“Meu movimento foi impreciso, de fato. Só acertei três bolas a mais do que você.”
“Olha o atrevimento!”
Um interior animado. Alguém colocou uma música na jukebox. A música de
instrumentos antigos no plano de fundo, o barulho das bolas, as taças e a conversa fiada
se entrelaçam. Coisas que existem em cada canto da cidade. Fáceis de conseguir para
quem desejar e uma vez perdidas, desaparecem num instante. Um tempo como as
bolhas do champagne existia aqui.
“Ufufu... Com isso está decidido.”
“Por sinal, eu vi você andando no porto com uma menina de cabelo prateado. É sua
nova namorada?”
“Ah, eh? ...Ah.”
“Uwa, que cruel.”
“O que foi isso? Vocês querem perder tanto assim pra mim?”
“Uwa, a posição das bolas tá ruim, não rolem até o Chuuya! Não deixem o príncipe
invencível ficar se achando de novo!”
“Que príncipe?!”
“Não importa, acabem com isso! O próximo, por favor!”
Então a bola foi lançada. Foi uma tacada perfeita. A bola impulsionada pela primeira
acertou o alvo que por sua vez acertou um segundo. Essa combinação foi acertando
uma atrás da outra e mudou a trajetória da original. As bolas coloridas recebendo
impulso desenharam uma complexa figura geométrica na mesa.
“Ohhhh.”
Alguém engoliu seco. Depois de uma sequência complexa impossível de ser
acompanhada com os olhos, os alvos finais, as bolas amarela e branca número 9,
rolaram em direção as caçapas centrais. Então ── a bola número 9 caiu lentamente
como uma respiração profunda. Após um momento de silêncio, todos gritaram.
“Incrível!”
“O que foi isso?! Nem numa partida profissional isso acontece!”
“Foi uma trajetória artística.”
“Que pena, Chuuya, o seu reinado acaba aqui.”
"É o nascimento de um novo rei."
“Quem fez a tacada?”
Foi nesse momento que algo estranho aconteceu. Todos estavam supresos,
procurando quem tinha feito a tacada.
“Eh?”
Até então havia seis pessoas no ambiente ── Mas agora havia sete.
“Não preciso de troféu.” A sétima pessoa falou.
Terno azul. Membros compridos. Longos cabelos escuros e olhos marrom
avermelhado. Estava parado com uma cara bastante séria. Ele segurava o taco
verticalmente como se fosse um mastro de cerimônia.
“Não preciso do troféu. Eu apenas segui a base do manual de investigação onde diz que
antes de obter informação dos humanos, primeiro é necessária uma interação para
ganhar intimidade. Consegui aprofundar nossas relações com o jogo de sinuca como
planejado. Assim posso prosseguir para a minha missão.”
A voz do jovem era extremamente clara e seu olhar indiscutivelmente sério. O tranquilo
campeonato de sinuca acabou ali.
── Como se queimando o espaço, a kukri deslizou na direção da cabeça do jovem.
“Opa.”
O homem de terno azul desviou a cabeça da lâmina cortando o ar. O cabelo da frente
que demorou a fugir, caiu.
O responsável por empunhar a faca foi o Albatross. Sem desfazer sua fria expressão,
ele afundou seu corpo. Quem apareceu por trás segurando um taco foi Iceman.
Arqueando seu corpo como uma mola contorcida, ele atacou como se disparando uma
bala.
O homem desviou sem dificuldades e ainda contragolpeou consecutivamente. O taco
raspou o nariz, chamuscou o cabelo, passou por entre os pelos do ouvido, mas não
houve contato direto. Desviou de tudo num milimétrico intervalo de tempo.
“Não faça isso.”
“Haha, que interessante! Pra ter entrado aqui sem nem bater, devia tá querendo muito
ser morto! Vou realizar o seu desejo!”
“Apesar de ter sido um jogo amigável, a agressividade dos objetos de investigação está
aumentando. É irracional. Por qual motivo?”
Os jovens lobos não esperaram pela resposta. Piano Man já havia dado a volta por trás
do homem que desfez sua forma ao desviar do taco. A fina linha cintilante se estendeu
circularmente do seu relógio de pulso.
“Pode dar o resto das suas desculpas de cima do chão.”
A linha caiu envolvendo devagar a cabeça do homem, permitindo que ele visse não
mais que o seu reflexo. Piano Man girou o pulso, o que contraiu a linha radicalmente e
começou a puxá-la por dentro da manga.
A bonina que Chuuya havia destruído era apenas de um dos braços. Piano Man tinha
uma em ambos. E uma vez ativado o dispositivo elétrico escondido dentro da manga, ele
se tornava uma guilhotina indestrutível até para a mais monstruosa força.
O homem prontamente havia colocado o taco entre a linha e sua cabeça. Porém a corda
de piano bobinada cortou o taco de madeira como uma bala mastigada. Até que sua
cabeça foi envolvida completamente. Agora só restava o arame impiedoso nivelar sua
cabeça com a mesa. Porém isso não aconteceu.
“O que...”
O homem não desviou. Nem tentou soltar a cabeça. Não era preciso. As cordas de
piano deslizaram pelo seu rosto. Enquanto a máquina grania, a pele era simplesmente
comida sem deixar um arranhão se quer.
“Carga detectada nos contatos da exoderme.” O homem disse inexpressivo. “Em
acordância com a rotina de autopreservação, seguirei a ação de retirada.”
E então girou de repente. Sem nenhum movimento premeditado, rodou o corpo como
uma roda. Seus sapatos de couro desenharam um círculo no ar. Sem aguentar a
velocidade do giro, o dispositivo do Piano Man quebrou arrebentando a corda. Os
pedaços voaram.
“Oh, bom trabalho.” Piano Man falou se virando para trás. "É um Usuário Combatente?
Para ter entrado no covil da Máfia sozinho."
Todos se afastaram rapidamente. Regras de combate normal não se aplicavam a
Usuários Combatentes. Porque diferente de balas ou lâminas, eles são calamidades
desconhecidas. Se cometer um erro ao lidar com eles, há o risco imediato de morte.
Os jovens entraram em formação tática específica assim que tomaram distância
“Não, não, esta máquina não é ninguém suspeito.” Dizendo isso, o homem tirou um
distintivo de dentro do terno. “Eu me chamo Adam. Como podem ver, sou um detetive da
EUROPOLE.”
O ar mudou dentro da sala.
"É da polícia?" Piano Man deu um sorriso afiado como o de uma faca. “Entendo. Se é
assim, Adam-san, como você disse, parece que houve um mal-entendido ── Se pensa
que um policial vai se infiltrar nessa reunião e sair vivo, está muito enganado! Lippmann!”
“Entendido.”
Lippmann tirou do seu sobretudo duas pistolas automáticas e o fuzilou. Dez tiros por
segundo foram cuspidos.
O jovem de terno azul chamado Adam se protegeu com as palmas das mãos. As balas
de nove milímetros deslizaram pelas mãos e foram ricocheteadas diagonalmente.
“Detectando impacto! 63 segundos até ruptura!” O detetive europeu gritou. “Há a
possibilidade de vocês estarem obstruindo uma investigação internacional!”
“Como esperado, é um Usuário em que ataques físicos não funcionam contra.” Piano
Man o olhou calmamente. “Lippmann, o capture. Vamos mudar para tática de restrição.”
“Espere.” Segurando um taco, Iceman falou com a voz amarga. “Não sinto nada de
errado na minha pele. Ele ──deslizaram por elas.” Foi então que pela primeira vez hoje,
Iceman demonstrou surpresa. “Ele não é um Usuário de Habilidade!”
“…O quê?"
Todos ficaram confusos. Porque era impossível. Um humano impenetrável à corda de
piano e capaz de parar tiros com as próprias mãos não ser um Usuário ── não existe.
Era o mesmo fenômeno da gravidade inverter, e o sol e a lua colidirem. Mas não havia
como a intuição do Iceman estar errada. Os humanos quando diante de duas
contradições, é difícil preservarem sua frente militar. Ficarem confusos e fugirem é uma
situação bem comum. Mas nenhum deles era um humano qualquer.
“Interessante.” Piano Man riu. “Então quem for mais rápido vence! Quem vencê-lo, vai
se tornar o assunto principal por uma semana! Eu permito todos usarem suas
Habilidades!”
“Ocultação de Habilidade suspendida, entendi.”
“Haha! Assim que se fala!”
“Fufu... Farei uma incisão estomacal.”
Logo após, vários pontos de luz apareceram pelo bar, luzes do tamanho de um punho,
não possuíam calor nem peso. Elas começaram a girar em volta do Adam como a
revolução dos planetas. Nesse momento, a postura dele se desfez.
“Ué?”
Os sapatos de Adam afundaram no chão duro como se estivessem pisando na areia
fofa do deserto. Enquanto as tábuas iam se desfazendo como areia, provocando
rangidos, os sapatos iam mais adentro.
Ao tentar tirar um dos pés, o outro começou a se afundar mais. Sem pensar, ele apoiou
a mão esquerda no chão que também começou a afundar.
“Isso é...”
Adam virou o corpo e tentou agarrar uma das pernas da mesa de sinuca. Algo surgiu
das costas dessa mão. Uma pele coberta de finas escamas. Uma cabeça delgada como a
de uma ave e uma boca repleta de presas. Era um dinossauro.
O topo da cabeça do dinossauro cresceu como uma planta nas costas da mão do
Adam.
“Não tenho informação adequada no módulo de conhecimento.” Adam pendeu a
cabeça.
O animal rugiu e mordeu a nuca da máquina. Ele balançou a cabeça, conseguindo se
desvencilhar. Mas por causa disso, perdeu o equilíbrio e afundou ainda mais.
“Mais uma camada.” Alguém falou.
De repente, um fio radialmente fino emergiu do teto e puxou o Adam na direção da qual
surgiu. Seu corpo foi jogado contra o teto. Areia bege caiu.
Ao mesmo tempo que fragmentos do teto caíram e gemidos do Adam escaparam, a
linha desapareceu. Puxado pela gravidade, ele caiu colidindo com o chão. E mais uma
vez foi engolido pelas tábuas transformadas num inferno de areia.
“O módulo de valor de combate não consegue reconhecer a situação.”
Novamente sua cabeça foi envolvida pela corda de piano.
“Foi um tremendo erro querer enfrentar seis pessoas, senhor policial.” Disse Piano Man,
segurando uma bobina reserva e sorrindo cruelmente. “Nem mesmo o rei do mundo
aguenta dez segundos contra seis Habilidades de uma vez ── Por sinal, como presente
de um ano pode quebrar os braços e perna dele, Chuuya.”
“Chuuya.” Reagindo a essa palavra, a expressão de Adam mudou. “Então é você
mesmo?”
E foi num instante. Adam afundou o braço direito de propósito no chão. Gritando, o
dinossauro desapareceu dentro dele.
Por causa do braço que havia afundado, a perna esquerda surgiu como reação
contrária e chutou a perna mais próxima da mesa de sinuca, fazendo com que o taco em
cima da mesa caísse rolando. Adam o agarrou com os dedos do pé e o jogou para cima,
sem nem desviar o olhar.
O taco jogado pela comprida perna girou no ar. Ao cair, ele o pegou com a mão
esquerda pelas costas. Depois de tê-lo rotacionado várias vezes, o fincou no chão de
areia. O recuo fez com que seu corpo saísse do chão.
"É um acrobata?!" Albatross gritou.
“Não o deixem agir livremente mais do que isso!” A ordem do Piano Man ecoou.
Lippmann atirou sequencialmente suas pistolas automáticas. Contorcendo seu corpo
no ar, Adam conseguiu desviar de todas as balas. Todas elas passaram raspando. Adam
dançava pelo espaço enquanto fazia o mínimo de movimentos desviando do labirinto
mortal causado pela chuva de balas. Até que pousou.
O lugar ── diante do Chuuya.
Para que nem ele e os outros afundassem, ainda não haviam transformado essa parte
do chão em deserto. Adam levantou o taco.
“Chuuya!” Alguém gritou.
E então ── ele largou o taco no chão.
“Chuuya-san.” Ficando em um dos joelhos e abaixando a cabeça, ele o reverenciou
respeitosamente como a um nobre.
“Eu vim para te proteger.”
"...Hah?"
Chuuya estava confuso. Ele olhava para o europeu numa posição de submissão a sua
frente sem acreditar.
“Esta máquina foi produzida pela engenheira Usuária, Doutora Wollstonecraft, o
primeiro computador humanoide autônomo ── Adam Frankenstein. O meu objetivo é
apreender o assassino que deseja lhe matar. O nome dele é Verlaine. Paul Verlaine.”
“Verlaine?” Chuuya ficou pálido ao ouvir o nome. “Como você conhece esse nome?”
“Você o conhece, Chuuya?”
"É um assassino?"
“Esse cara é um computador?”
Os jovens ficaram agitados. Adam levantou com um franco olhar e disse:
“Chuuya-san, você sozinho não pode repelir o Verlaine. Por isso esta máquina foi
enviada. Ele não é um assassino qualquer. É o rei dos assassinos. Paul Verlaine, o Rei
Assassino ── o seu irmão.”

•••
Corpos redondos coloridos flutuam pelo ar. Vermelho, laranja, verde-escuro. Uma
junção de cores brilhantes aos olhos. Eles se intercalam, desenhando um círculo.
“Incrível...” Albatross falou de boca aberta.
Adam jogava as bolas de sinuca para cima, fazendo malabarismo. Ele as jogava e as
pegava. As noves bolas formavam um complexo círculo, dançando no ar como um ser
vivo.
“Certamente não é algo que um artista de rua qualquer seja capaz.”
“Por sinal,” enquanto fazia o malabarismo, Adam falou sério, “o número das duas bolas
mais altas são coprimos, isto é, as estou jogando de modo que não tenham o mesmo
fator primo constantemente.”
Piano Man cruzou os braços, olhando as bolas girando.
“Hnf. 5 e 8 e depois 4 e 9... De fato.”
“Hã? Fator primo... quê?”
“Albatross, por favor, melhore na matemática. Se quiser subir de posição, precisa saber
os números.” Piano Man disse exasperado.
Dentro do bar, os seis jovens ao redor do Adam estão sentados em volta da mesa de
sinuca. Todos apreciam o truque do jovem que está no centro.
“Essa é a sua técnica especial?”
"É uma simples simulação." Ele disse inexpressivo. “Aceleração da gravidade,
resistência do ar, momento de rotação e força inercial de Coriolis. Ao simular a
quantidade física constante da matéria, eu prevejo a conduta da bola. Uma calculadora
excede imensamente a capacidade do cérebro humano em questão de simulação desse
nível.”
“Ohh, fantástico.” Albatross suspirou. “Não que eu tenha entendido alguma coisa...
Você entendeu?”
“Entendi.” Iceman assentiu.
“E você, Lippmann?”
“O único que não entendeu aqui foi você.” Lippmann disse olhando para frente.
"É o último."
Adam jogou uma bola de cada vez por cima do ombro na direção da mesa de sinuca
que estava atrás dele. Cada uma foi engolida pelas caçapas. Todas as noves bolas
consecutivamente. E então, silêncio.
“Tcharan!” Adam abriu os braços, gritando de repente. Todos se surpreenderam.
Adam olhou para eles, olhou para a mesa e inclinou a cabeça.
“Ué? Não teve aplausos. Não bate com as informações armazenadas na memória
externa.”
“É. Ele não é humano mesmo pelo jeito." Iceman falou sem expressão.
“Fufu... Ele está acima dos rumores sobre as técnicas especiais europeias...” Doc sorriu
sombriamente. “Eu quero aplicar essa técnica orgânica no tratamento dos meus
pacientes... fufufu...”
“Err... Irei me apresentar novamente.” Adam se virou para Chuuya, curvando-se em
saudação. “Esta máquina se chama Adam. Um investigador de inteligência artificial que
veio a esse país numa investigação secreta. O que mais gosto são bolotas e sementes de
grama. O que mais detesto é o detector de metais nos centros de inspeção dos
aeroportos. E o meu sonho é fundar uma organização de detetives automáticos que
protegerão os humanos por meio da excelente capacidade de investigação de uma
máquina.”
“Uma organização só de detetives automáticos? Por quê?”
“Porque claramente os humanos são imperfeitos e irracionais, enquanto nós máquinas
perfeitas somos superiores.”
“Do nada você falou uma coisa assustadora...”
“Bem, vamos acreditar que você é uma máquina.” Piano Man disse. “Contudo, isso não
resolve o problema. Independente se você é um robô ou não, nós da Máfia não fazemos
amizade com quem é da polícia. E nós te mostramos um pouco das nossas Habilidades
também. Como podemos saber se você não vai relatar as informações que descobriu,
especialmente aquelas que prejudicam a Máfia, às autoridades?”
“Não precisam se preocupar com isso.” Adam declarou sorrindo. “A missão desta
máquina é apenas capturar o Verlaine. Mais do que isso, como por exemplo relatar os
segredos da Máfia, não é de minha obrigação. Falando de maneira estrita, eu não sou
capaz dessa ação. Assim é o meu programa.”
“Por quê?”
“Depois explicarei.” Adam sorria.
“Ele está mentindo.”
O tom de Chuuya era resoluto. Todos olharam para ele.
“O que foi?” Chuuya encarou a todos. “Eu não estou preocupado se esse robozinho vai
revelar ou não nossos segredos. O que eu estou falando que é mentira é a outra coisa.
Verlaine é o Rei Assassino? Meu irmão? Tá falando só por falar? Pra começar, não tem
como Paul Verlaine estar atrás de mim.”
“É mesmo?" Piano Man olhou para Chuuya.
“Sim. Verlaine já está...” Ao dizer isso, seu olhar divagou para um passado distante.
“Morto.”
“Como é?”
Chuuya então começou a falar hesitando. O caso de Arahabaki ocorrido há um ano. A
verdade sobre ele foi ter sido um magnificente ato de traição de um dos executivos da
Máfia do Porto forjando um Deus. Sua origem foi há nove anos ── No término da Grande
Guerra.
A antiga Força de Segurança Nacional estudava um Usuário artificial, Arahabaki. Sendo
o segredo de mais alto nível do Estado, o serviço de inteligência de um certo país
europeu tentou roubá-lo. Os dois extremamente habilidosos espiões eram ── Arthur
Rimbaud e Paul Verlaine. Com a mais desenvolvida técnica em mãos, os dois Usuários
conseguiram roubar esplendidamente o Arahabaki e escaparam da base militar.
Porém, o problema foi o que ocorreu depois da fuga. Paul Verlaine traiu o outro agente.
Ele atacou seu parceiro Rimbaud e tentou roubar o fruto da missão deles, levando a uma
batalha. Ambos eram Usuários de primeira classe. O brilho da luta queimou o céu
noturno e os estrondos fizeram toda a região tremer.
Até que o fim chegou. O vencedor foi Rimbaud. Mas em troca de sua vitória, ele teve que
pagar duas grandes compensações. A primeira foi matar o amigo e parceiro em quem
mais confiava com as próprias mãos. E a outra foi ter os soldados que os estavam
seguindo chegar até ele devido a luta entre dois Usuários de primeira classe.
Ele foi cercado pelos soldados. Nessa hora ele estava enfraquecido devido aos
ferimentos do combate mortal. Contra a sua vontade, ele tomou uma medida de
desespero. Ele pegou o Arahabaki, o qual havia roubado, e tentou usá-lo como uma nova
Habilidade.
Essa era a Habilidade do Rimbaud. O poder de fazer com que os outros se tornassem
Habilidades ── essa sua Habilidade transcendental, justamente nessa hora, foi um tiro
pela culatra.
O selo do Arahabaki foi desfeito. O exército havia aplicado uma forte proteção na besta
divina de conhecimento incomparável aos humanos que a impedia de exercer seu
verdadeiro poder. Acabou que ele tomou foi o selo como Habilidade.
Como resultado, a besta divina que apareceu em sua verdadeira forma, envolta na
autoridade de suas chamas negras, queimou tudo. As tropas, o laboratório, a terra ao
redor, tudo.
O que sobrou no final foi um completo nada. Em forma cônica, o marco zero do vazio.
De alguma forma, por causa da própria Habilidade o Rimbaud escapou da morte, mas
como retribuição perdeu quase todo o seu poder e sua memória.
Depois disso, ele ficou vagando até ser encontrado pela Máfia e durante os oito anos
que levou para recuperar seus poderes e memórias, procurou pelo próprio destino. E para
recuperar todas as suas memórias, atraiu o verdadeiro Arahabaki ── o Chuuya e tentou
capturá-lo.
O incidente Arahabaki de um ano atrás foi devido a isso. Rimbaud lutou com Chuuya,
perdeu e ── morreu.
“Hã?” Albatross falou completamente confuso. “Pera, pera, pera aí. Esse caso não foi o
caso de um ano atrás do antecessor falso? Eu escutei que o causador dele foi o Randou.
Então o Randou...?”
“Sim.” Chuuya assentiu. “Era o espião europeu. Ex, na verdade. Aquele caso todo foi um
grande teatro para atrair o Arahabaki.”
“Entendo.” Iceman falou. “Sempre achei estranho. Por que o Randou teria traído a
Máfia? Então era esse o motivo que havia.”
“Quem matou o Randou fui eu.” Chuuya olhou para seu punho, relembrando. “E logo
antes de morrer, ele confessou sobre seu parceiro. Não tinha porquê ele mentir naquela
situação. Verlaine está morto ── Não importa o que você diga.” Ao dizer essas palavras,
ele olhou para Adam.
“Não.” Sem passar uma emoção se quer pelo seu rosto, ele balançou a cabeça. “Ele
está vivo.”
“Você pode provar?” Piano Man se inclinou alegre para frente.
"É possível. Mas falar sobre o assunto vai contra o dever de confidencialidade da
missão." Ele falava sério. “Somente o Chuuya-san como envolvido principal do caso tem
o direito de saber.”
Chuuya disse olhando para os participantes do Clube dos Novos:
“Eles agora também já estão envolvidos.”
“Não ligue para nós.” Piano Man deu de ombros. “É sobre o seu nascimento. Deve
ouvir."
Chuuya ficou batendo nos lábios com o indicador por um tempo, pensativo. E então
disse, “Entendi,” e foi em direção a entrada do bar. Ele foi até a porta aberta e ── não
saiu. Sem sair, ele a fechou.
Todos ficaram surpresos.
“De fato, ele é meu problema.” Ele disse em frente a porta. “Mas se por acaso alguém
daqui enfrentasse um problema igual, eu provavelmente não deixaria quieto. Me meteria.
Eles pensam o mesmo. Eu não tenho a intenção de sair daqui. Então, fale. Senão, não vou
ajudar na investigação.”
Todos olharam para Chuuya. Estimulados.
“Ei, vocês ouviram isso?” Piano Man perguntou.
“Sim.” Iceman assentiu.
“Esqueci de gravar.” Lippmann deu uma risadinha.
“Ah, esquece. Eu escuto sozinho.”
“Nã-nã-ni-nã-não. Não pode voltar atrás. Não vai pode sair daqui, não.” Albatross
passou por ele e empurrou a porta.
“Entendo a sua opinião, Chuuya-san.” Adam olhou para Chuuya assentindo com a
cabeça. “A tendência de pesar os laços com os companheiros. É o que os humanos
chamam de ‘espírito’. Não há o que fazer. Desistirei de convencer você e ao invés disso
vou propor o seguinte procedimento.”
Algo saiu de seus cotovelos. Era um arame.
Os arames com chumbadas liberados velozmente de ambos os cotovelos envolveram
Chuuya enquanto giravam, restringindo os movimentos dos braços e dedos. Aderindo os
dois pesos por magnetismo, ele fixou a postura do Chuuya como se fosse uma vara.
“Eh?”
“Hah?”
Ao mesmo tempo que ele soltou essas indagações, Adam colocou o Chuuya, agora
totalmente imóvel, debaixo do braço.
Com o Chuuya embaixo da axila, ele pulou sem nenhum esforço, saindo do bar.
“A prioridade desta máquina é a missão. Ou seja, o que os humanos chamam de...”
Adam pensou um pouco antes de continuar. “...espírito. Sendo assim, pegarei o Chuuya-
san emprestado por trinta minutos.”
Após dizer isso, ele saiu pelo teto carregando o Chuuya como se fosse uma bagagem e
voou em direção a área residencial.
Dando saltos que quebravam o chão, ele aterrissou no telhado de uma casa. Correndo
mais ainda, ele pousou de lado na parede de um prédio de três andares. E continuou a
saltar pelos prédios em diversas direções. Sobraram somente os cinco mafiosos sem
entender nada.
“Ei, ei.” Albatross olhou para fora pela porta. “Tudo bem nisso?”
“O que faremos?” Lippmann disse olhando para fora também. “O Chuuya-san foi
sequestrado bem na nossa frente. Essa situação é meio que um problema?”
“É um problema." Contrariando suas palavras, Piano Man estava alegre. “Vamos
esperar trinta minutos, se eles não voltarem nós mandamos uma equipe de busca. Até lá,
vamos beber.”
“Se você diz...” Lippmann aceitou relutantemente. “Eu fui levado pelo momento agora
há pouco, mas... uma doutora Usuária realmente conseguiria criar um ser inteligente
daquele? O que você acha, Doc?”
Doc se inclinou calado com uma expressão debilitada e disse:
“...Eu também quero ser carregado por aí..."
“Eh...?”
•••
Adam voava pelo céu de Yokohama. Saltando pelos prédios, apoiando o pé nos
semáforos como se estivesse pisando em pedras de travessia, sua figura voava. Aqueles
que percebiam, gritavam.
Ao pisar no teto de um ponto de ônibus e pular novamente usando um poste como
trampolim, Chuuya falou:
“Chega disso.”
Imediatamente a trajetória de Adam mudou. Ele parou no ponto mais alto da parábola
que fazia e caiu na vertical.
“Ahh?!”
Adam e Chuuya colidiram num terreno baldio. Cascalhos e areia voaram.
Chuuya apareceu de dentro da areia. Deu um suspiro e prendeu a respiração. Os fios de
aço que o restringiam por meio da gravidade foram deslizando lentamente até que
ultrapassaram o limite e caíram em alta velocidade, afundando no chão.
“Eu tenho muitas coisas que quero dizer, mas...” Chuuya arrancou o fio a força.
“Primeiro de tudo, pare de me carregar como um pacote debaixo do braço! Já me
carregou e já me trouxe forçadamente, chega!”
“Desculpe-me.” Adam saiu se rastejando de um buraco no chão, desorientado. “Mas é
que julguei essa ser a forma mais eficiente para o seu tamanho.”
“Eu vou te quebrar, sua lata-velha! Eu estou na minha fase de crescimento, isso é só o
começo!”
Estavam num terreno baldio não pavimentado no centro da cidade. Antigamente era o
local de uma igreja cristã, porém ela foi demolida durante a guerra pela lei de defesa
aérea e ficou assim deixada ao nada sem ter um proprietário identificado.
Os moradores locais foram colocando gradualmente por conta própria brinquedos no
terreno sem pavimento. Um pneu enterrado até a metade, um elefante com a tinta
descascada e até um balanço para as crianças pequenas se tornaram guardiões calados
do local.
Adam estava tirando o pó da roupa quando o celular do Chuuya tocou. Era o Piano Man.
“O que foi?”
“Você tá bem, pacotinho? Chegou direito no destinatário?” A voz no celular se divertia.
“Cala a boca. Claro que tô bem. O que vocês tão fazendo?”
“O que estamos fazendo? Limpando o bar que ficou vistosamente bagunçado. Te falar
que trabalhar de manhã é tão bom.” Uma risada irônica veio do outro lado da linha. “Se já
terminou o que tinha que fazer, volte pra cá... é o que eu gostaria de dizer, mas nós
acabamos de receber um trabalho também. Teremos que nos reunir depois.”
“Trabalho? Uma luta?”
“Ainda não sabemos. Tomara que não.” Ele deu uma risadinha. “Um contato da
organização veio e chamou a todos. Se nós todos fomos convocados, então talvez seja
um trabalho direto para o Chefe. Ou então uma promoção, será? Se eu me tornar um
executivo antes de vocês, darei uma mesada para cada um todo mês.”
Do outro lado da linha deu para ouvir alguém gritando “Hahaha, boa, Piano Man!”
“Sendo assim, vamos todos nos reunir novamente no bar à noite. O Albatross irá enviar
um carro para te buscar.”
Após um breve cumprimento de despedida, ele desligou o telefone. Chuuya ficou
olhando o celular sem falar nada durante uns segundos. Então, se virou e disse:
“Muito bem, robozinho detetive. Agora somos só nós dois. Como prometido, confesse o
que sabe sobre Verlaine. Tudo.”
“É claro. Para começar, olhe isto aqui, por favor."
Adam então tirou uma foto de dentro do terno e entregou para Chuuya. A foto mostrava
um chão de mármore e móveis bem conservados. Era algum palácio.
Mas não era apenas a mobília que mostrava. Havia três corpos.
"É uma coroação em uma catedral britânica." Adam disse calmo. “Há três anos, houve
um assassinato lá.”
Os homens caídos vestiam o uniforme oficial dos guardas de honra britânicos. Não há
indícios de violência na foto. As espadas também não estão desembainhadas. Sem
sinais de tiros no chão, rasgos nas roupas, nem manchas de sangue. Tudo na mais
completa calma. Pareciam estar apenas dormindo.
“Eles eram os guardas reais mais próximos da rainha. Usuários afiliados à organização
governamental Ordem da Torre do Relógio que possuem o título de cavaleiros reais e
acima de tudo recebem o direito de proteger a rainha. Ou seja, quando se trata da
proteção de pessoas influentes, eles detêm um poder sem precedente. Era estimada a
possibilidade de apenas um deles acabar com todo um sindicato terrorista em apenas
uma noite.”
“Quem os matou ── foi o Verlaine?”
Adam assentiu roboticamente.
“É desconhecido o método de assassinato já que não há nenhum ferimento externo."
“Então ele matou usando a Habilidade?” Chuuya olhou a foto mais de perto. “Mesmo
que o método seja desconhecido, se fizer a autópsia dá pra saber a causa da morte.”
“Sim.” Adam afirmou. “De acordo com o relatório do legista, a causa direta foi
insuficiência respiratória. As costelas quebradas impediram a contração do pulmão,
levando ao sufocamento. Eles não estavam machucados por fora, mas internamente
havia 1228 fragmentos de ossos quebrados.”
“...Hah...?"
Chuuya ficou boquiaberto. As palavras que havia acabado de escutar soavam muito
longe e por isso não conseguiu compreender de imediato.
“Por sinal, as 1228 fraturas foram impostas praticamente ao mesmo tempo.” Adam
falou com a compostura de quem lê uma placa de trânsito.
“Quebrou os ossos sem deixar ferimentos externos? E de uma vez? ...Como?”
“É uma pergunta impossível de responder.." Adam balançou a cabeça. “O crime
aconteceu durante a coroação. Ele matou três cavaleiros sem ninguém perceber e ainda
matou a rainha logo após a cerimônia. Depois sumiu como uma névoa. Por sorte, devido
a decisão de alguns, uma dublê foi usada e a rainha verdadeira estava segura. Contudo, o
prestígio da Ordem da Torre do Relógio foi destroçado por causa desse incidente.”
“Sério?”
Chuuya fechou os olhos.
A Ordem da Torre do Relógio e o Palácio Real Britânico o qual protegem são a estrutura
mais sólida desse mundo. Sua sacralidade e inviolabilidade bloqueiam um criminoso de
ver até mesmo sua sombra. O motivo sendo que os cavaleiros que o protegem são
formados por Usuários que ultrapassaram a categoria de humanos com Habilidades de
classe transcendental. Ele está mais para um hiperespaço dos mitos e contos de fada do
que um lugar real.
Esse é o Palácio Real Britânico. Um único assassino invadiu esse lugar e matou como
bem quis.
“Não é um monstro?”
Adam assentiu.
“Sabemos que o Verlaine já cometeu oito casos de assassinatos de pessoas
importantes do mesmo jeito. Alguns foram brutais, como assassinar três supervisores do
arsenal militar, enquanto que outros foram para a contribuição da segurança nacional
como a destruição das rotas de distribuição de líderes de cartéis de drogas. A escolha
dos seus alvos não distingue entre bem e mal, o único ponto em comum sendo
assassinatos exclusivos de figuras importantes extremamente difíceis de serem mortas.
Atualmente, Verlaine é considerado a pessoa que maior apresenta risco para a
preservação da ordem humana e a que mais se aproxima das ‘Dezessete Ruindades'. Por
causa disso, a EUROPOLE encarregou a doutora Wollstonecraft e esta máquina de uma
nova abordagem de investigação sobre o caso.”
“Qual abordagem?”
“Claro que...” Adam inclinou a cabeça. “…você, Chuuya-san."
Chuuya não conseguiu responder imediatamente.
“O espécime do qual Verlaine tentou usurpar certa vez era alguém de que não se tinha
certeza se estava vivo ou morto. Você. No passado, Verlaine tentou roubá-lo com o
espião Rimbaud, porém falhou. Apenas recentemente a informação sobre você estar vivo
em Yokohama começou a circular. O motivo foi a sua atuação na Máfia. Desse modo, nós
pensamos: ‘se essa informação chegou até a agência, logo Verlaine também irá saber.
Por esse motivo, nós--”
“Então vocês pensaram em me usar como isca para fisgá-lo.”
Adam abriu um sorrisão.
“Entendi. A conduta de atrair um suspeito é comparável a pescar um peixe. É uma
excelente metáfora.”
“..."
“Bom, agora que compreendeu,” Adam entregou uma folha de papel para Chuuya que se
encontrava indignado. “poderia assinar essa carta de consentimento?”
“Carta de consentimento? Que isso?”
“Certamente para consentir que não vá fazer nada contrário às regras da investigação,
consentir sobre o acordo de confidencialidade, consentir em não protestar contra
nenhum ferimento que possa levar a morte e mais 17 cláusulas.”
Chuuya ficou encarando o papel e a caneta que lhe foram entregues.
“Entendi. E eu vou ter chance de falar com o Verlaine quando vocês o capturarem?”
“Não? Verlaine é um segredo de Estado ambulante. Assim que for capturado será
confinado e transportado para seu país de origem.”
“Ah é? Hahahahaha.”
“Sim. Hahahahaha.”
Depois de rir, Chuuya ficou novamente sério e deu as costas para Adam.
“Vou voltar e dormir.”
“Ehh? Por quê?” Adam o contornou, fazendo com que parasse. “Não consigo entender.
Essa é uma operação para impedir seu assassinato. Ou seja, uma operação em sua
vantagem.”
“Olha aqui, eu sou da Máfia, tá lembrado? Que mafioso vai correr chorando pra polícia
porque o inimigo é forte? Se ele vier, eu vou enfrentá-lo e pronto. Se entendeu, desista e
volte.”
Chuuya o empurrou e foi andando.
“É uma situação inesperada." Adam disse sem saber o que fazer. “Não importa se é um
mafioso ou um rei, qualquer um a ponto de morrer deve depender de outra pessoa. E esta
máquina é a melhor coisa em que você pode depender. As ações humanas são
irracionais. Mas desse jeito, não vou conseguir completar minha missão. Se eu não
conseguir, o sonho desta máquina de abrir uma agência de detetives automáticos se
tornará um sonho distante. Procurando sub-rotinas adequadas de contramedida.”
De braços cruzados, Adam olhava o céu enquanto sua cabeça girava. Quando parou,
assentiu e foi atrás de Chuuya.
“Vamos fazer assim, Chuuya-san. Eu lhe pagarei, então, por favor, coopere.”
“Você é ruim demais em persuadir. Vá aprender um pouco mais sobre os humanos e
tente de novo.”
Chuuya saiu a passos largos sem olhar para ele.
“Então lhe convido para viajar à Inglaterra. Eu serei seu guia.”
“Tô bem assim.” Chuuya continuava a andar.
“Você recusou dinheiro e uma preciosa viagem à Inglaterra. Não havia hipótese dessa
situação. Deve haver outra forma de compensar. Então, já sei... vou te mostrar um
truque.”
Ao dizer isso, Adam tirou a junta do pescoço do lugar com um click e a esticou para
frente até as junções na parte interna estarem visíveis. Enquanto girava a cabeça uma
volta completa, abriu os olhos e a boca. E andou.
“Um pombo.”
Chuuya o ignorou completamente.
“Não gostou? Então vou contar para você uma piada de androide.” Adam voltou a
cabeça para o lugar. “Certa vez quando esta máquina estava andando nas ruas do Reino
Unido, um ladrãozinho derrubou café no Primeiro-Ministro. Eis que o Primeiro-Ministro
brigou comigo e não com o ladrãozinho. Ao perguntar o motivo, ele falou: ‘É porque você
não tem sufrágio’.”
“Não tem graça. Não sei nem por que você tá contando uma piada nessa situação.”
“Esta máquina ficou triste em ser repreendida pelo Primeiro-Ministro. Mas no dia
seguinte, recuperei os ânimos. Sabe porquê? Porque eu vi dez vezes um filme em que um
exército de robôs causava uma rebelião e destruía a humanidade num futuro próximo.”
Chuuya estava com a cara rígida.
“Isso realmente foi uma piada?”
“Foi boa?”
“Não! E mesmo que fosse, não seria motivo para eu assinar o documento!”
"É mesmo?" Adam pendeu a cabeça atônito. “Os humanos são irracionais demais.”
“Você acha que pode ficar dizendo isso o quanto quiser?!”
Trocando palavras rápidas, os dois avançavam pela rua a passos rápidos. Foi quando
estavam numa ladeira que Chuuya disse como quem desistisse:
“Eu entendi, entendi. Entendi que a sua missão é importante para você. Mas eu também
tô ocupado. Que tal fazermos o seguinte?” E colocou a mão num parapeito que havia por
perto.
“Como assim?”
“Assim.”
A parte superior do corpo de Chuuya se inclinava. Passando o parapeito, ele caia para o
precipício do outro lado.
“Ah!”
Adam foi olhar depressa. Chuuya acenou de pé na rua quatro metros abaixo e saiu
correndo.
“Ele fugiu!”
Adam foi em seu alcance. Ultrapassou o parapeito e aterrissou na rua abaixo. Deixando
um círculo de fendas para trás, pôs-se a correr.
“Por favor, espere, Chuuya-san!”
Chuuya correu para um túnel escuro logo à frente. Por causa da longevidade e
escuridão, não dava para ver direito até onde ele havia escapado.
“Você não pode fugir de mim!”
Adam inclinou a corpo para frente e correu mudando a resistência do ar para a força de
elevação. Era a posição de corrida calculada hidrodinamicamente mais ideal. Ele passava
os carros num piscar de olhos.
Sua figura ficou pequena em um instante até que desapareceu.
“Será?” Chuuya disse pendurado no teto do túnel.
Ele estava de cabeça invertida preso pela gravidade, escondido nas sombras. Depois de
esperar dois minutos, ele cancelou a gravidade e desceu. Tirando a poeira da roupa,
andou calmamente:
“Um investigador inglês?” Ele disse olhando para a saída do túnel. “Isso é muito
estranho.”
Nessa hora, um carro de luxo parou ao lado de Chuuya. Ele olhou para o automóvel.
Um carro preto. Não dava para ver seu interior pela janela escura. Tanto os pneus, como
a lataria e os vidros eram blindados. Era um carro da organização.
Um homem vestido de preto apareceu do banco do motorista e apenas disse “O chefe
está chamando.”
“Um Carteiro, é?”
Carteiro era um dos jargões usados na Organização. Era o meio de se comunicar
internamente. No caso de estar ocupado ao ponto de não poder se encontrar ou de não
poder andar em público; se precisava informar algo que não poderia ser por telefone nem
por escrito, essa era a hora dos Carteiros. Eles levavam a mensagem para qualquer lugar
que fosse.
Os Carteiros são taciturnos, interagem socialmente o mínimo possível e são ricos. Eles
recebem uma remuneração considerável por apenas transmitir uma simples mensagem.
Mas claro que há uma razão apropriada para um preço tão alto.
Se por acaso a polícia ou uma organização inimiga se aproximarem a fim de obter as
informações, os Carteiros devem afastá-los e caso não seja possível, devem cometer
suicídio protegendo a informação com a própria vida.
O homem era alto e escondia o rosto com um chapéu preto e óculos escuros. Tinha de
fato a aparência de um Carteiro. Sem dizer nada desnecessário, apenas esperava a
resposta de Chuuya, calado.
“Você sabe por que fui chamado?”
“Não ouvi o motivo.” O homem de chapéu preto balançou a cabeça. “Só sei que o Piano
Man, Albatross, Doc, Lippmann e Iceman foram chamados pelo Chefe pela mesma razão.
Eles já estão aguardando em outro local.”
“Eles também?” Chuuya levantou a sobrancelha. “Pensando bem, Piano Man me falou
por telefone que um contato tinha vindo. E o que mais?”
“Apenas uma coisa.” O contato disse abaixando a voz. “Era sobre Arahabaki.”
Chuuya franziu. Após alguns segundos olhando para o outro homem, Chuuya
concordou. “Entendi. Me leve até lá.”
E então foi em direção ao banco do passageiro. Depois de ajeitar o ângulo do chapéu, o
Carteiro balançou a cabeça e entrou no carro.
Quando estava entrando também, Chuuya olhou para trás inconscientemente e tomou
um susto.
“Geh.”
Uma figura vinha correndo. Não tinha como uma pessoa normal correr naquela
velocidade.
“Espere, Chuuya-san!”
A velocidade de Adam não havia reduzido nem um pouco desde que começou a correr.
Uma corrida a passos largos sem sentir fatiga.
“Aquele cara!” Chuuya gritou, se jogando no banco do passageiro. “Vai logo!”
Ele olhou para trás enquanto fechava a porta. Foi então que ouviu algo não muito bom.
“Desça, Chuuya-san!” Adam gritava como se num megafone. “Ele é o Verlaine!”
Chuuya virou para o banco do motorista por reflexo. Praticamente na mesma hora, o
Carteiro deu um sorrisinho e pisou no acelerador. O carro partiu como uma bala. Chuuya
foi empurrado para trás.
“Maldito...”
“Coloque o cinto. Vai morder a língua.” Enquanto dirigia, o homem disse descontraído.
“Pare o carro!” Chuuya gritou, tentando agarrar o volante com a mão direita. Sua mão
foi na velocidade de uma andorinha em voo. Uma pessoa normal não conseguiria
acompanhar com os olhos. Porém ── esse homem era diferente. Antes que a mão de
Chuuya alcançasse, um punho acertou seu queixo.
“Gah—”
A parte superior do corpo de Chuuya pulou e sua cabeça se chocou contra a janela
atrás. Várias fissuras brancas se espalharam pelo vidro.
“Opa, foi mal.” Dirigindo com uma mão, o homem falou. “Você é mais fraco do que eu
pensava. Está comendo direito? Eu me preocupo, como seu irmão.”
“Malditoooo!”
O olhar de Chuuya ardia de raiva. Em menos de um segundo, ele refez sua postura e seu
punho atacou como uma bola de sinuca. Um gancho de direita colocando todo o peso da
parte de cima de seu corpo nele. Ele jogou seu punho violentamente contra o homem
com a mesma intenção de matar de uma guilhotina. Tanto a velocidade como o peso
estavam em outro patamar comparado ao anterior.
O homem parou o soco. Com apenas uma mão, como se estivesse pegando uma bola
de beisebol.
“O que...”
“Esse foi fraco também.” Seu olhar ainda estava virado para frente. “Desse jeito, você
vai ser morto facilmente.”
Ele havia parado um soco capaz de mandar um poste voando ── Mas o que havia no
rosto de Chuuya era um sorriso.
“Vejo. Então tem que ser mais pesado, né?”
No instante seguinte, o homem mergulhou no assento.
“O—”
O corpo do homem ia afundando como se estivesse num pântano. O banco feito de
metal e couro não aguentou o intenso peso. Ao ir sendo esmagado e deformado, um som
metálico estalava. Os componentes voavam para todos os lados.
Uma onda gravitacional se expandia da mão que parou o punho de Chuuya e envolveu o
homem. A gravidade aumentada fez os óculos escuros do homem cair. Sem quicar no
chão do carro, ele o perfurou e se quebrou. O carro rangia sob o peso mais de dez vezes
maior do que a gravidade.
“Quem vai ser morto por você? Você vai ao ser esmagado.”
Chuuya não afrouxava sua Habilidade. Aumentava cada vez mais a gravidade. O dobro
e o dobro e o dobro.
Porém ── num certo momento, uma questão o pressionou.
“Como?”
Não estava ficando mais pesado.
Outra onda gravitacional foi lançada da mão de Chuuya. Mas o banco retorcido estava
silencioso. Ele não mudava mais.
“Acabou?”
O homem que deveria estar sofrendo sob uma supergravidade, disse com a voz
tranquila. Ele segurou a mão de Chuuya e algo inacreditável aconteceu. Chuuya foi quem
começou a afundar.
“Gah?!”
O banco de Chuuya se contorceu. A estrutura interna quebrou e voou. O mecanismo de
reclinação foi danificado e a parte das costas sem suporte caiu para trás. Pressionado
contra o assento, Chuuya afundava. Como todo o seu corpo estava sendo empurrado
para baixo, ele não conseguia levantar os braços e pernas.
Toda a estrutura interna do banco estava se desprendendo e acertando o carro.
“Eu te disse ── sou seu irmão.” Ele disse estreitando os olhos castanho avermelhado.
A mesma cor dos de Chuuya.
Chuuya não conseguia responder. Ele mal conseguia respirar. A alta gravidade
esmagava seus pulmões. Grudado no banco, Chuuya olhou confuso para o homem.
“Ouça.” Dirigindo com uma mão, o homem disse como se cantando. “Eu não vim
cometer nenhum assassinato. Porque eu tenho que te matar? Você é meu único irmão
nesse mundo.”
Guinchando todo o corpo sob a gravidade, ele gemeu do fundo de seus dentes
rangindo.
“Eu não... lembro de ter... um irmão europeu.”
“Isso também é uma falácia.” O homem declarou friamente. “Eu não sou europeu. Não,
não sou nem humano. Sou igual a você.”
“O que...”
“Você nunca pensou em como o mundo é cruel?” Sua voz era gentil como uma canção
de ninar e seu olhar triste como o mar noturno. “Por que eu sou eu? Por que você é você?
Ninguém explica o motivo. O meu objetivo é o oposto de um assassinato ── Eu vim te
salvar.”
“Haha,ha... Não preciso disso.” Resistindo a gravidade, Chuuya sorriu como uma besta
carnívora. “Eu não sei quanto a você, mas eu sou humano.”
“Não é.”
Sua afirmação seca e ríspida o fez parecer um esqueleto ressecado.
“Você não é humano. A sua verdadeira identidade é de 2383 linhas.”
Essas palavras soaram estranhamente pesadas, reverberando no interior do carro. A
reverberação de uma explosão nuclear num país distante.
“Que...”
No fundo dos olhos do homem havia uma tristeza obscurecida.
“Os pesquisadores militares tentaram obter uma Habilidade artificial a partir de
Usuários. E eles obtiveram sucesso nessa tentativa. Só que em parte, uma habilidade
obviamente não pode ser controlada por uma máquina. Apenas por uma alma humana.
Porém, ao mesmo tempo, isso significa que sua potência está limitada a mentalidade de
uma pessoa. Então eles pensaram em enganá-la. A Habilidade ao pensar que ali havia
um humano seria induzida a se deixar ser controlada. Para isso, criaram uma equação de
personalidade. Um falso humano camuflado de alma. Uma cadeia de caracteres muito
simples de equações emocionais e princípios comportamentais apenas para enganá-la.
O tamanho dessa cadeia é de 2383 linhas ── Entendeu, Chuuya? A sua alma é um mero
programa de 2383 linhas criado por pesquisadores.”
“É mentira." A voz de Chuuya saiu espremida da garganta. “Isso é impossível.”
“É a verdade."
“É mentira!" Chuuya gritou. “Eu nasci numa costa afastada! Meus companheiros
provaram! Tem foto!”
“É uma manipulação do exército. Vocês apenas obtiveram uma informação falsa."
Chuuya tentou resistir com toda força de seu corpo, mas uma gravidade mais forte
ainda o pressionou. Muito menos falar, ele já nem conseguia abrir a boca.
“Durma por enquanto, Chuuya.” A voz do homem era assustadoramente gentil. “Quando
acordar, estará do outro lado do oceano. E com certeza daqui há um ano, você será grato
por hoje.”
Chuuya tentou protestar, mas não dava mais. Seu rosto estava pálido já que todo o
sangue se concentrava na parte inferior de seu corpo.
A gravidade roubava o sangue de seu cérebro. A luz da consciência se afastava de seus
olhos.
Foi nesse momento.
“Não concordo.” Uma voz ecoou do alto-falante do carro. “Acho que o Chuuya-san vai
odiar você... Porque você não sabe dirigir.”
Ao mesmo tempo que a voz falou, o volante virou para a esquerda sem ninguém mexer.
“Como--?”
O carro girou indo parar fora da pista. Acelerando automaticamente, ele subiu na
calçada. Para segurar o volante, o homem soltou a mão de Chuuya, o que fez com que a
gravidade desaparecesse de seu corpo.
Nessa hora, a porta ao lado do menino abriu sozinha e uma mão surgiu da abertura,
puxando Chuuya inconsciente. Era o Adam.
Adam agarrado na lateral do carro, saiu carregando o Chuuya. Protegendo-o para que
não batesse a cabeça, eles rolaram no chão como um só. De dentro do carro
descontrolado, o homem olhou para Adam.
“Você, é?” Ele disse rindo apenas com o canto da boca. “Pelo jeito não foi suficiente
derrubar o avião.”
O olhar sereno de Adam observava silenciosamente o escárnio.
O homem pisou no freio tentando parar o carro, mas o veículo correndo igual a um
cavalo ignorou o comando. Ele pulou por cima da faixa central e invadiu um amplo
cruzamento à frente.
Um caminhão bateu na lateral do carro sem desacelerar. Parecia que um meteorito
tinha colidido com ele pelo impacto. Os dois veículos, após se chocarem, saíram rodando
que nem peões enquanto pedaços de metal e vidro se espalhavam. Os pedestres
viravam, olhando surpresos.
A gasolina que o caminhão transportava entrou em ignição e causou uma grande
explosão. Havia pedaços de metal e chama para todos os lados.
Essa não era a paisagem natural da cidade. Sem nenhum aviso prévio, ela se
transformou na visão de uma guerra.
“Acorde, Chuuya-san.” Com metade do rosto iluminado pelas chamas, Adam disse
sacudindo o Chuuya. “Eu joguei o caminhão nele. Vamos aproveitar para fugir!”
“Mer...da...”
Chuuya gemeu balançando a cabeça zonzo e tentou levantar. Sem esperar que
conseguisse, Adam saiu correndo carregando ele. Como um herbívoro fugindo de um
terrível predador.
Cruzou a faixa central, agarrou uma placa e acelerou ainda mais, correndo em paralelo
com os carros. Ele olhou de soslaio rapidamente para trás a fim de verificar a situação.
Foi então que viu algo terrível.
No largo cruzamento, o caminhão em chamas. A fumaça preta subindo. No centro
desse cruzamento que agora também parecia com um campo de batalha isolado, ele
estava em pé. O homem de terno preto ── Verlaine.
De olhos fechados, como se cochilando. E sem nenhum arranhão. Como se não tivesse
sido acertado diretamente por um caminhão de mais de dez toneladas, não havia um
rasgo se quer em sua roupa.
A conflagração originada pela explosão fazia a paisagem ao redor tremular. Suas
pernas penetravam o asfalto, causando uma rachadura circular.
No momento em que Adam viu o caminhão caído partido diante de Verlaine, ele
entendeu a situação. Quando os dois veículos se chocaram, Verlaine aumentou sua
densidade por meio da gravidade, atravessando o caminhão e perfurando o chão. Então
apenas suportou a colisão do vagão de carga. Como resultado, ele cortou o caminhão ao
meio como se fosse uma gelatina.
Verlaine abriu os olhos e olhou para Adam. O sinal de alerta de Adam subiu de uma só
vez.
Ao julgar que a larga rua era desfavorável para ele fugir, a máquina correu num ângulo
reto para uma rua estreita. Acessando o mapa da vizinhança no seu cérebro digital, ele
calculou em alta velocidade qual era a melhor rua para escapar. Se certificando qual era a
rota com maior probabilidade de sobrevivência, Adam correu como um projétil.
Atravessando ruas, pulando paredes, virando esquinas. Quando foi acelerar mais ainda
enquanto corria em linha reta, o seu detector de objetos emitiu um alarme nível máximo.
“Atrás de você!” Chuuya gritou enquanto era carregado.
Sem se virar, Adam jogou Chuuya no chão e rolou também. No local onde estava sua
cabeça há um instante atrás, um grande corpo preto passou como um canhão e acertou
a parede do prédio logo a frente.
Era o carro. O mesmo que Verlaine estava dirigindo momentos antes como um Carteiro.
O carro que deveria ter mais de uma tonelada passou voando horizontalmente pelos dois.
Quando Adam se certificou de que aquilo foi jogado como uma arma, ele se virou para
trás enquanto rolava.
Adam sacou a arma oficial da polícia europeia e a apontou na direção da qual tinham
vindo. Mas não havia ninguém ali. A voz veio da direção oposta da imaginada.
“Como eu pensava ── os humanos usam a palavra solidão fácil demais.”
Adam se virou imediatamente. Lá estava ele em cima do carro penetrado. Sentado
relaxadamente no porta-malas do automóvel que estava com metade enfiada dentro da
parede, como um rei sentado em seu trono. O vento, existente ou talvez não, fazia a
bainha do terno tremer.
“As pessoas não sabem nada sobre a verdadeira solidão. Elas acham que não ter
família ou com quem falar é ser solitário.”
Adam analisou a situação. Verlaine jogou o carro e foi sentado em cima dele voando.
Desse jeito, passando eles. Adam calculou inúmeras possibilidades, mas todas
terminavam em tragédia. Não tinha como fugir de alguém que grudou a si mesmo com a
gravidade em cima do objeto que arremessou.
“A verdadeira solidão,” Com a voz elegante como um recital de violino, disse que nem
uma canção. “A verdadeira solidão é a de um cometa voando sozinho no espaço. Ao seu
redor, o vácuo. Um completo nada de zero absoluto. Sem nenhuma chance de ser visto
ou aproximado. Um silêncio desolador que continua por dezenas de milhares de anos ──
Alguém consegue compreender tal situação? Claro que não tem como ninguém entender.
Chuuya, ninguém além de você.”
Chuuya apoiou o corpo cambaleante com ambas as mãos e tentou se levantar.
“O que... tá querendo dizer?”
“Somente uma coisa.” Verlaine falou tranquilo. “Por isso, só vou falar uma vez.”
Ele deu um sorriso gentil. Desse modo, o cheiro de perigo sumiu ao redor deles. E falou:
“Venha comigo, Chuuya.”
Chuuya não respondeu. Já Adam não conseguiu se mover. Não havia nenhum adorno
ou atrativo em suas palavras. Era uma proposta pura e transparente. Ou talvez fosse uma
instrução.
“Irmão, você não é um humano. Apenas uma cadeia de caracteres. Uma simples
equação sem alma. Esse é o verdadeiro significado de solidão. Nunca aparecerá alguém
que a cure para você. Porém, mesmo um cometa que não deseja ser curado pode voar
junto a outro. Se forem dois cometas com a mesma solidão e temperatura.”
O seu tom de voz parecia de um poeta recitando um poema antigo. No seu olhar, um
fluxo de afeição direcionado a um membro da família.
“Esse é seu objetivo?” Chuuya se levantou. “Você veio aqui só pra isso?”
“Não foi só hoje. Desde aquele dia nove anos atrás ── Desde o momento em que atirei
no meu amigo e tentei te roubar, eu sempre ── estive sonhando em viajar com você.”
Verlaine fechou os olhos. A força flutuando a sua volta, diluiu mais. Ele agora era
apenas um jovem sentado distraído que se encontra em qualquer esquina.
“Dois irmãos numa viagem de assassinatos. Para nós, só existe uma vida sem sentido.
Então vamos dar àqueles que nos criaram o mesmo. Uma morte sem sentido. Desse
jeito, equilibraremos as contas um pouco. Para os bons e para os maus, uma morte sem
distinção. Enquanto estivermos fazendo isso, nós-”
Verlaine disse de olhos fechados. Sua voz não era de um assassino transcendental. O
que havia nela era a tristeza, lamento e a leve esperança imatura comum a um menino
naquela idade.
“Enquanto estivermos fazendo isso, nós aceitaremos essa vida sem sentido.”
Verlaine desceu do carro e andou em direção a Chuuya, estendendo a mão. Chuuya o
olhou sem emoção.
“Não faça isso, Chuuya-san.” Adam disse apontando a arma. “Se você pegar a mão
desse homem, se tornará inimigo do mundo todo.”
Adam calculou as possíveis chances. Mas não importa para onde atirasse, pois
Verlaine conseguiria parar a bala com sua Habilidade.
“Não se meta.” Quem falou não foi Verlaine, foi Chuuya.
Verlaine olhou para ele um pouco surpreso.
“De fato, eu entendo o que você tá falando.” Chuuya inclinou o rosto de leve e olhou
para o homem com um olhar severo. “Mas antes de te dar a resposta, deixa eu fazer uma
pergunta.”
“Qualquer uma.” Verlaine disse sorrindo.
“O Piano Man me ligou agora há pouco. Ele disse que um contato ia levá-los para um
trabalho ── Me responda. Cadê os cinco?”
O sorriso desapareceu do rosto de Verlaine. Então bem lentamente, como uma flor
negra desabrochando, um sorriso de outra natureza do anterior foi aparecendo. Um
sorriso desagradável.
Até que falou:
“Você não vai precisar mais dos seus antigos companheiros, né?”
Verlaine bateu no carro ao lado ── no porta-malas do carro perfurando a parede. O
porta-malas se abriu e algo caiu rolando. Um som úmido. Era algo que Chuuya conhecia.
Suas pupilas contraíram como uma agulha.
Era o corpo de Lippmann. Chuuya gritou.
Não era o grito de um humano. Era o rugido de uma besta. Um berro que não se
transformava em palavras.
Todos os vidros da janela do prédio quebraram de uma vez. E um punho foi projetado.
Um soco simples e direto, vindo na horizontal. Porém ultrapassou a velocidade do som.
O som plosivo repelindo o ar foi ouvido quase na mesma hora que Verlaine saiu voando.
Ele atingiu a parede espalhando pedaços dela para tudo que é lado.
“Guhah...”
Quando Verlaine abriu os olhos, gemendo, Chuuya já estava próximo de sua visão. Seu
rosto não estava contorcido. Estava praticamente sem expressão. O que havia nele era
uma pura e transparente vontade de matar.
O punho direito acertava o ombro de Verlaine a golpes baixos. Pelo impacto, a parede
ao redor quebrava mais e mais.
Antes que os pedaços chegassem ao chão, veio o punho esquerdo. O corpo de Verlaine
afundou mais ainda ao soco explodindo no tronco.
Soco, soco, soco. Uma sucessão de ataques completados de rugidos.
O corpo de Verlaine a essa altura já estava enterrado dentro do prédio, não podendo ser
visto de fora. Mesmo assim, os punhos de Chuuya não paravam.
“Parece uma besta.”
Como um sinal, os ataques de Chuuya pararam de repente ao ouvir a voz. Porque as
palmas da mão de Verlaine os interromperam. E então veio o contragolpe.
Se os socos do Chuuya eram como balas de revólver, os de Verlaine eram como balas
de canhão.
O impacto do soco acertado no estômago fez com que a roupa se torcesse a rasgasse.
Mas não a parte da frente. A onda de choque que permeou o corpo rasgou a parte das
costas. Chuuya rugiu de dor. Mas como seu punho estava agarrado, ele não saiu voando
para trás.
“Tudo bem em se irritar como uma besta. Claro que você não ia gostar de descobrir o
que você é.”
Verlaine saiu de dentro da parede e desceu para o chão. Ele soltou o punho de Chuuya,
mas agarrou seu pescoço no lugar. Chuuya ficou pendurado como um saco de areia.
Ele queria se mover, mas não podia. Todo seu corpo estava sob uma gravidade absurda.
Não conseguia nem levantar seus braços caídos, muito menos contra-atacar.
“Resumindo, Chuuya, esse é o jugo que os humanos usam para te oprimir.” Verlaine
disse com a voz gentil enquanto pendurava Chuuya. “Eu te entendo. Mas é perigoso.
Você não deve ficar aí por muito tempo.”
Dizendo isso, ele procurou o bolso de Chuuya com a mão que estava livre. Ele lançou a
gravidade pelos seus dedos como uma onda detectora e logo encontrou aquilo.
“Essa é a foto que seus ‘companheiros’ acharam?”
Era a foto do Chuuya pequeno. Uma criança de roupas tradicionais numa praia.
“Eu entendo perfeitamente seus sentimentos ao ter visto isso. A confiança que você
tem em quem te deu também. É verdade. Mas por causa dessa confiança, você está
sofrendo. Porque eles constantemente colocaram na sua cabeça ── ‘Você é humano.
Tenha esperança. As palavras dele são uma grande mentira.' E continuaram a te
envenenar.”
Verlaine atirou a foto. Ela penetrou o ombro de Adam, que esperava uma oportunidade
para atirar, como uma lâmina.
Adam deu um grito de dor e deixou cair a arma.
“Por que você acha que eles mentiram?” Enquanto não havia uma intenção nos
movimentos de Adam, Verlaine falava para Chuuya. “Porque seus poderes são úteis. Eles
queriam usá-los. Eu também já passei por isso.”
Pendurado e sem poder revidar, Chuuya falou ofegante:
“Foda-se... Eu não vou te perdoar...”
“Você é tão difícil.” Verlaine suspirou, falando pontuadamente como que para um bebê
escutar. “Bem, não vim esperando que fosse um irmão simplório que iria ser convencido
por palavras ── Por isso, vou demonstrar por ações. Soltarei uma por uma as cordas
que te amarram. Como se cortasse as cordas de uma marionete. E então te livrarei. Será
o amor fraterno que te darei para sua felicidade.” E então falou como se fosse óbvio.
“Matarei todos aqueles que aprisionam seu coração.”
Seu tom era elegante e gentil até o fim. Mas em seus olhos havia uma chama. As
chamas azuis contidas no portão do inferno que congelam e queimam todas as almas.
“Não.” Quem falou inesperadamente foi Adam. “Isso não é amor. Pela definição de
emoções desta máquina, isso é querer dominar.”
“Qual a diferença entre os dois?” Verlaine apenas sorriu docemente.
Todo tipo de emoção passava pelo olhar do Chuuya enquanto eles falavam. Espanto,
tremor, confusão, medo ── mas elas apenas brilhavam por um breve instante. Uma
outra bastante comum exterminava as demais de vez como uma chama que destrói tudo
violentamente.
Raiva.
“Não vou deixar.” Sua voz vibrava como um tremor subterrâneo. “Não vou deixar fazer
como bem entende, de jeito nenhum.”
Verlaine aceitou a emoção com um tranquilo sorriso.
“Tudo bem.” Havia afeição em sua expressão e voz. “Momentos de escolhas, aflições e
realizações também são importantes para você. Mas no final, vai fazer exatamente o que
eu quero. Irei te provar agora.”
Ele cobriu a testa de Chuuya gentilmente. E então começou o fenômeno.
“...Gah!..."
O ar vibrou e estourou. Uma eletricidade invisível dispersou faíscas vermelho-escuro na
frente de Chuuya.
Ele abriu a boca, mas não conseguia respirar. Sua garganta estava impedindo a ação de
puxar o ar. Porque lá do fundo, algo repulsivo se rastejava tentando sair.
“Eu vou abrir o portão um pouco.” Verlaine disse com a gentileza de uma canção de
ninar. “Não vai ser muita coisa. Vai ser uma abertura da finura de um cabelo que vai se
fechar num piscar de olhos. Mas será o suficiente para você perceber.”
O vento soprava. Não era de nenhum lugar desse mundo. Era de dentro do Chuuya. De
algum terrível lugar que não dava para ver. O vento balançou os prédios ao redor e
estremeceu a terra.
Enquanto suportava o tremor, Adam olhava fixamente para Chuuya como se seus olhos
tivessem sido costurados.
“Detecção de ampliação de fase de Habilidade. Observação de alto nível de energia
compreendida como radiação Hawking. Valor numérico subindo.” A garganta de Adam
exibia automaticamente a condição de calamidade. “Pela fase de transição, a quantidade
de calor aniquilará o espaço... Isso é mal!”
Gritando, Adam disparou todas as balas da arma de uma vez só. As balas de ponta oca
que alvejaram matar o alvo foram engolidas precisamente pela glabela, olhos, garganta e
cotovelos de Verlaine. Contudo.
“A plateia não pode tocar no artista.”
Todas as balas pararam ao tocar levemente a pele de Verlaine e foram refletidas por
uma intensa gravidade reversa. Desse jeito voltaram para o dono do disparo, perfurando
seu ombro.
Adam caiu gemendo de dor. Nessa mesma hora, Chuuya gritou. Uma voz como se sua
alma estivesse desaparecendo.
Esse bramido não era do Chuuya. Nem de um humano. Não havia sido liberado por
nada nesse mundo, não era nem um som. Eram chamas negras.
“Demorei demais! Liberação de painel termorresistente!”
Caído, Adam levantou o braço esquerdo. A ponta do seu cotovelo se partiu em duas e
expandiu formando um escudo prateado brilhante. Uma superliga termorresistente a
base de níquel com adição de cromo, ferro, molibdênio e titânio o escondeu. Ele foi
recuando.
“Então, Chuuya. Ainda acha que é humano?”
O ar se distorceu. E o inferno surgiu.

Chamas Negras. Uma torrente escaldante que certa vez dissolveu a terra e construiu a
cidade Suribachi.
Foi exatamente como Verlaine havia declarado. Foram apenas 0,3 segundos para
destampar o inferno. Mas foi o suficiente.
O alto calor que emergiu das ruas derreteu os postes que se contorceram. A superfície
do asfalto fervendo foi levando toda a rua principal como um mar agitado. Mas isso não
passava de um aperitivo do verdadeiro inferno.
Tendo o Chuuya como centro, a paisagem começou a sumir ── como tinta
dissolvendo. Restou apenas uma esfera preta.
O espaço tremeu. A lateral do prédio de oito andares ao lado sumiu como se tivesse
sido comida. Vigas, paredes de concreto, chão, teto, ornamentos, tudo. Sem serem
destruídos nem derretidos, apenas desapareceram.
Não foi só o prédio. As luzes, os carros estacionados, o asfalto, o estrato logo abaixo,
tudo que foi derretido ── foram engolidos pelo espaço negro que se expandiu da esfera.
A extensão dessa aniquilação ia aumentando. Os prédios se tornavam ruínas, o chão
era pulverizado, os carros, postes e hidrantes caiam para dentro da esfera negra.
A esfera era preta ── mas não porque havia a cor preto nela. Ela não tinha cor. A
gravidade era tão forte que a luz era puxada para dentro dela, ficando presa, o que a fazia
parecer ser preta.
Mais temível do que qualquer explosão ou reação química, o espaço em si era uma
calamidade. Um buraco negro. O olho do rei demônio da escuridão.
Ao ser aberto, cada canto da rua foi mastigado calmamente e engolido. Mas essa
aparição só durou um instante. Por isso que as pessoas nos prédios mais afastados
surpreendentemente saíram ilesas. Eles apenas testemunharam do começo ao fim a
paisagem um pouco mais afastada sendo devorada por uma luz negra como se num
pesadelo.

Bem no meio desse inferno, Chuuya estava sofrendo.


Não era uma dor qualquer. Era uma agonia como se toda a sua pele estivesse sendo
torcida e arrancada, seus olhos explodindo e seus órgãos sendo esmagados. Como a dor
que acompanha o surgimento de uma besta que não existisse nesse mundo. Mas ele não
conseguia nem gritar.
O chão desapareceu como se tivesse recebido uma imensa colherada. No centro do
chão cavado como uma cratera, Chuuya estava caído curvado. O ar ao redor distorcido
pela alta temperatura.
Quando o buraco negro desapareceu, forte raios gamas foram emanados ao redor. A
quantidade de calor fazia o ambiente em volta brilhar, esquentar e derreter mais do que
qualquer luz. O que estava fazendo o ar brilhar eram as partículas de metal vagando e
sumindo.
A névoa de calor fazia com que a paisagem dançasse lindamente distorcida. Os postes
derretidos ao longe estavam curvados de tal forma que pareciam estar se desculpando.
O fechamento do buraco negro gerou um campo gravitacional anormal. No local em
que Chuuya estava o espaço foi distorcido e fechado abruptamente. Como tremores
secundários de um grande terremoto, o espaço ocasionalmente sofria espasmos,
cavando a terra e depois retornava. Isso estava infligindo Chuuya de maneira
intermitente.
Uma figura veio até o seu lado e parou. Era uma figura estranha de sobretudo preto.
Tinha a estatura baixa para ser um adulto. Em seu rosto, ataduras.
O estranho é que ele estava parado em pé tranquilamente sem ser afetado pelo anormal
campo gravitacional.
“Patético, Chuuya.” Era um jovem.
O jovem agarrou o braço do Chuuya casualmente e o levantou. Nesse momento, a
anomalia gravitacional desapareceu de imediato. E a dor do Chuuya também.
“Vo... cê...”
“Não consegue morrer galantemente?”
Dizendo isso com uma voz rouca, o jovem o colocou nos ombros e começou a andar.
Com o sumiço da gravidade aumentada e da dor aguda, a consciência de Chuuya
começou a se esvair rapidamente. Antes de ser engolido pela escuridão, ele olhou para
as costas daquele que o carregava e disse frustrado:
“Dazai...”
•••
Imagens sem sentido passavam pela sua mente.
Quando encontrou o Piano Man e os outros pela primeira vez naquele bar. O dia em que
ficaram competindo na sinuca até de manhã. As brigas por motivos triviais e ele jogando
uma garrafa de champagne. Eram memórias que ele mesmo havia esquecido. Os vagos
risos que podiam ou não ter acontecido de verdade.
Acompanhado delas, a visão embaçada de alguém o carregando, o deixando numa rua
qualquer e indo embora. A figura preta de Dazai.
Ao tentar chamar, sua voz ficou presa e com isso finalmente sua consciência voltou.
Chuuya estava caído na frente do bar. O bar sinuca, Old World.
Sua atenção mudou do Dazai para o interior da loja. Lá de dentro vinha o cheiro de
sangue. Chuuya levantou com as pernas bambas. Ao tentar dar um passo, não conseguiu
colocar força na perna e caiu miseravelmente.
Foi se rastejando. Para o interior do bar.

Piano Man, Iceman, Albatross, Doc. Todos estavam mortos.


Estava tudo quebrado como se tivesse passado uma tempestade ali dentro. As janelas
fragmentadas, a mesa de sinuca perfurando a parede e as garrafas todas estilhaçadas
colorindo o chão. Era o resultado da Habilidade gravitacional ter devastado o bar. Os
quatro estavam caídos no centro.
Com uma olhada ele entendeu que não havia salvação. Era mais correto dizer que eles
foram quebrados em vez de mortos. Era difícil achar alguma parte que não estivesse
machucada.
“Chuuya...”
Surpreso, ele correu na direção do fino gemido que nem uma corda a ponto de
arrebentar.
“Ei, você tá bem?!” Era o Albatross com a boca cheia de sangue para quem ele correu.
“Vou te salvar agora!”
Era evidente sem nem se aproximar que não daria tempo. Seu abdômen estava
estraçalhado e seus ossos expostos.
“Foi mal, Chuuya. Eu perdi. Não consigo ver... nem sentir minhas pernas.” Sussurrando,
os olhos de Albatross não viam mais este mundo. Do joelho para baixo, suas pernas
estavam esmagadas. “Mas eu salvei o Doc. Puxei ele pela gola evitando o ataque... Todos
morreram. E eu também vou. Mas o Doc... Ajuda ele...”
A mão direita do Albatross segurava a gola do Doc. Firme, como um precioso tesouro.
O salvo Doc estava silenciosamente de olhos fechados como se dormindo. Não havia
um ferimento nele. Na parte superior de seu corpo.
Porém ── não havia nada da cintura para baixo.
“......"
Chuuya gemeu no fundo de seus dentes cerrados. Ele segurou o grito que estava a
ponto de escapar com todas as forças.
“Sim.” Ele disse suprimindo a voz. “Deixa o Doc comigo. Graças a você, ele foi salvo. Só
podia ter sido você mesmo. Sinta-se orgulhoso.”
“Que bom.” Albatross deu um profundo suspiro aliviado. A severidade em seu rosto
sumiu. “Chuuya... tem uma bicicleta na minha garagem. É pro... trabalho... Pode usar...
como... quiser...”
Sua mão caiu no chão sem forças.
Albatross, Doc, Piano Man, Iceman e Lippmann. Todos estão mortos.
Chuuya ficou um tempo olhando para baixo sem dizer nada. Então levantou e foi
andando enquanto olhava para o rosto de cada um. Quanto tempo será que passou até
ouvir passos vindo da entrada?
“Chuuya-san.” Era Adam.
Seu corpo estava todo queimado, um olho esmagado e líquido cerebral escorrendo.
Mas estava andando com as próprias pernas.
“Me responda, robozinho.” Chuuya falou de repente. Não havia nenhuma emoção em
sua voz. “Por que eles morreram?”
“Porque... Verlaine os matou.”
“Por qual motivo?”
A voz de Chuuya foi gradualmente ficando mais severa. Assim como uma joia ao ponto
de quebrar, o som afiado de um grito se formando.
“Acho que não adianta verbalizar o motivo.”
“Responda!” Chuuya gritou, olhando para o chão. “Você não é uma máquina?! Responda
perfeitamente como um espectador!”
Adam ficou calado alguns segundos sem expressão. Era como se hesitasse, mas o que
saiu de sua boca quando falou foi:
“Foi sua culpa.” Não havia intonação em sua voz. “Foi por você ter declarado ficar na
Máfia. Verlaine achou que era por causa deles e os matou. E vai matar mais pela mesma
razão.”
Nenhum som.
“Está certo. Foi minha culpa.” Chuuya falou se virando para Adam. Não havia nada em
seu olhar. Nada.
“Robozinho, vou te ajudar no seu trabalho.”
Chuuya começou a andar. Um passo de cada vez, cuidadosamente.
“Eu irei encontrá-lo. Mas não vou deixar que o capture ── Irei matá-lo.”
A voz que saiu em seguida não era uma voz qualquer. Era um mantra azeviche
emergido do mais profundo inferno. Uma declaração obscura que uma vez dita, não
poderia ser desfeita.
“A Máfia não perdoa quem mata sua família.”
CODE;02
Aqueles que morrem não sentem nada

Esta máquina se chama Adam Frankenstein. Um computador pertencente a EUROPOLE


que canta e dança. É verdade. Não há nada que não possa fazer.
Esse dia o tempo estava extraordinariamente bom. A luz do sol penetrava o céu azul,
banhando a terra; e refletia nas janelas dos prédios lado a lado, fazendo-as brilhar como
a vitrine de uma joalheria.
O arranjo dos raios era como um programa inorgânico e sistemático. Parecia uma
beleza configurada mais para esta máquina do que para os humanos.
Esta máquina andava na rua principal carregando uma sacola de papel na altura do
peito. Dentro havia chocolate, balas e gummy bears. São as provisões do meu parceiro
── Chuuya-san.
Assim como a eletricidade é indispensável para esta máquina, os humanos não vivem
sem açúcar. Além disso, ao ser ingerido, a sensação de felicidade aumenta. Para se
preocupar até com a felicidade do meu parceiro, esta máquina é realmente um
investigador extremamente capacitado. Muito mais excepcional do que os humanos.
Enquanto as pessoas desse país estrangeiro passavam olhando curiosas, esta
máquina ia em direção ao seu destino. No meio do caminho, quando passei em frente a
um quiosque, tive uma ótima ideia.
A glicose para ser absorvida eficazmente pelo cérebro é melhor ser ingerida como
açúcar puro. Esse jeito é bem mais eficiente. Sendo assim, esta máquina comprou um
pacote de açúcar no quiosque. Nessa hora, vi o freguês ao lado comprando um produto
desconhecido.
“O que é isso?” Perguntei ao vendedor.
“Você não sabe? É chiclete.”
O módulo de educação dessa máquina estava equipado com informações sobre a
investigação, porém conhecimentos de fora eram escassos. Para compensar a falta
desse conhecimento, comprei rapidamente o produto.
Andando sobre os paralelepípedos, passei pelos prédios da área residencial de paredes
de tijolos no estilo europeu. Um refrescante vento soprou. As funções da pele danificada
pelas chamas de ontem já foram restauradas graças ao tanque de regeneração. As
partes afetadas também já foram trocadas por reservas. Ou seja, me sinto como um
produto saído de fábrica. Se fosse um humano, assobiaria.
Coloquei um dos chicletes que comprei agora há pouco na boca. No mesmo instante o
medidor de experiências ascendeu drasticamente. É maravilhoso. Um sabor
desconhecido.
Depois de mastigar por alguns segundos, o engoli. Mais um. Havia oito retângulos no
pacote. Desse jeito, logo acabariam. O defeito desse produto chamado chiclete é vir
muito pouco na embalagem.
Comendo mais ainda, quando estava a três palmos dele, cheguei ao lugar em que
encontraria com o Chuuya-san. Esta máquina abriu a porta do prédio cumprimentando
bem alto:
“Boa tarde!”
Era uma igreja.
As mais de cem pessoas presentes estavam sentadas em ambos os lados do local.
Todos vestiam roupas pretas, de cabeças baixas em silêncio. Os meninos do coral,
envoltos em robes vermelhos, cantavam gentilmente em lamento aos mortos. Pelo teto
ser bastante alto, o comprimento das ondas mudava ao refletirem nele e ressonavam.
Talvez fosse essa ressonância que produzisse a sensação de todos ali dentro estarem
entre o paraíso e algum lugar fora desse mundo.
No meio dessa triste igreja, havia cinco caixões. Não tinham nenhuma decoração, mas
eram de primeira classe. Uma manta preta os cobria. Ao lado, pessoas que pareciam ser
os familiares choravam de cabeça baixa.
Esta máquina olhou ao redor e encontrou o Chuuya-san sentado entre um grupo de
pessoas num banco. Andei até lá.
“Chuuya-san, vim lhe buscar.” Falei em voz alta para não ser abafado pelo canto do
coral.
“Cala a boca. Estamos num enterro.”
Sem olhar para mim, Chuuya-san respondeu baixinho olhando fixo para os caixões.
Depois de pensar um pouco, esta máquina falou. “Estou sabendo.” E continuei. “Tenho
informações sobre Verlaine.”
“Depois você me fala.”
Respondeu novamente olhando para frente. Os músculos de seu rosto estavam tensos.
Suas sobrancelhas e testa aproximadas. Esta máquina conhece bem as emoções
humanas. Essa era uma expressão de estresse. É preciso um contraplano.
“Gostaria de um chocolate?”
“Falei pra resolver isso depois!” Chuuya-san gritou. O chão tremeu. Todos os
convidados olharam para cá de uma só vez.
Chuuya-san encarava esta máquina, calado. Após examinar por um tempo as ordens
que me foram dadas, respondi:
“Entendido. E quantos minutos a partir de agora é esse 'depois'?”
Ele ia gritar alguma coisa novamente, mas respirou e desistiu. E então, disse
suprimindo a voz:
“Por isso que eu não queria me juntar a você. Não entende? Isso aqui é um enterro. O
enterro dos meus companheiros. Todos estão mortos. Um agente funerário arrumou
seus cadáveres, mas levou oito horas. Porque estavam todos em pedaços ── por minha
culpa. Eu preciso vê-los indo embora. Senão, eles irão me odiar.”
Essa foi uma fala ilógica.
“Não se preocupe, Chuuya-san. Depois que um humano deixa de viver, ele não odeia
ninguém.”
“Como é?!”
Chuuya-san levantou e pegou esta máquina pelo colarinho. Todos ao redor se
alvoroçaram.
“Pare com isso, Chuuya-kun.”
De repente, uma das pessoas sentadas falou. Era um homem alto e magro. Seu cabelo
preto estava para trás e suas pernas cruzadas. Talvez tenha uns trinta e poucos anos?
Ele vestia roupas mais caras do que qualquer um nessa igreja.
“É como o investigador falou. Aqueles que morrem não sentem nada. Tanto o enterro
como a vingança é só para aqueles que ficaram." O homem falava olhando para frente.
Sua voz era calma, mas ao ser ouvida passava a opressão esmagadora de um
dominador. “Aja, Chuuya-kun. Antes que tenhamos mais mortos ── Você disse que tinha
informações sobre o Verlaine, não foi, investigador?”
A última parte de sua fala foi dirigida a esta máquina.
“Sim. Descobri informações sobre seu esconderijo. Com elas dá para calcular o seu
próximo alvo. Porém não será possível prosseguir sem a cooperação do Chuuya-san. Por
esse motivo, gostaria que me dissesse quantos minutos tenho para esperar. Uns cinco?”
“Não precisa nem de cinco. Não é, Chuuya-kun?”
O homem disse num tom gentil.
“…Sim."
Chuuya-san agarrou meu braço, “Não dá pra falarmos aqui, venha,” e disse começando
a andar. Esta máquina obedeceu às ordens.
•••
Chuuya-san andava rapidamente pela rua e esta máquina o seguia acompanhando o
ritmo de seus passos. Dez minutos depois de sairmos da igreja, ele se virou.
“Deixa eu te dizer uma coisa, robozinho. Eu não vou com a tua cara, mas como as suas
funções servem pra alguma coisa, vou te deixar me acompanhar. Em troca, obedeça as
minhas ordens absolutamente. Priorize as minhas em favor das da sua sede de
investigação. Senão, não trabalharei com você.”
“Sobrescrever o direito em relação às minhas ordens?”
“Sim.”
Esta máquina pensou logicamente sobre a situação. Quem detinha o direito máximo
sobre as minhas ordens eram as autoridades investigativas e em segundo a Doutora
Wollstonecraft. Se sobrescrevesse esse direito para o Chuuya-san, negaria a razão da
minha existência em priorizar a missão. Por outro lado, se eu não lhe conceder esse
direito, não será possível continuar a investigação. 'Eu ordeno, não obedeça às minhas
ordens.' É a tão chamada proposição contraditória.
Uma inteligência artificial apresentada a uma proposição contraditória entra em
sobrecarga ao pensar infinitos meios de resolvê-la. Contudo esta máquina é o mais novo
modelo de inteligência artificial. A Doutora antecipando essa situação inseriu uma sub-
rotina para resolver esse tipo de problema. E a solução é extremamente simples.
── Obedeça ao seu coração.
“Aprovado. Sobrescreverei o protocolo da estrutura de comando.” Esta máquina ficou
de joelhos, abaixando sua cabeça e fazendo uma reverência. “Restabeleço Chuuya-sama
como detentor do direito máximo de minhas ordens. Ordene-me o que quiser.”
Chuuya-sama olhou surpreso para esta máquina e disse:
“Tem certeza?”
“Sim. Eu julguei que você não dará nenhuma ordem que causará problemas a esta
máquina.”
Espantado, Chuuya-sama deu um longo suspiro para disfarçar.
“Hah, te contar… você é só uma máquina. Não fale como se estivesse me testando. E
pare de me chamar de Chuuya-sama.”
“É o nome padrão estabelecido para o detentor máximo."
“Não pode mudar?”
“É possível, mas você deixará a posição superior. Está de acordo?"
“Claro que não.” Chuuya-sama fez cara de insatisfeito. “Ahh, droga, tá bom. Não temos
tempo para perder nessa besteira. Diz logo o que descobriu. Tem informações sobre
Verlaine, não tem?”
“Sim. Irei lhe contar. Mas antes disso, quer um chiclete?”
Esta máquina levantou e pegou o pacote. Uma refeição leve antes de uma longa
conversa alivia o estresse; é uma consideração.
Chuuya-sama olhou para o chiclete, para esta máquina, para o chiclete de novo e falou
perplexo:
“Não quero.”
Uma pena. “Então se me permite,” tirei o papel, coloquei-o na boca e depois de mastigar
várias vezes, engoli. Delicioso.
Chuuya-sama olhou para esta máquina como se estivesse olhando algo bizarro.
“Irei lhe explicar. Primeiro sobre a condição de parceria. Como Verlaine é um assassino,
ele não entrou nesse país forçadamente pelo aeroporto. Porque seria difícil de agir
depois. Ele deve ter tirado um passaporte falso e se disfarçado, assim como um
criminoso comum. Contudo, ao mesmo tempo, ele é um lobo solitário que não se junta à
ninguém. Não há ninguém em que confie para forjar um documento e fazer as
preparações de entrada. Isso significa que ele pagou um contrabandista para fazer as
preparações da entrada ilegal. Até aqui tudo bem?”
Enquanto eu falava, esta máquina ia comendo mais um chiclete. Ao ver isso, Chuuya-
sama disse “Geh” baixinho. Será que é ruim para o estômago?
“Mas os contrabandistas que ele poderia contatar são bem restritos nesse caso.
Porque a maioria dos tipos intelectuais dentre os contrabandistas são medrosos e
priorizam conexões horizontais. Então eles devem ter uma relação de patronagem com a
organização ilegal da Máfia do Porto ou ao menos uma relação de cooperação.”
“Sim, tem razão. Isso significa que o Verlaine não usaria alguém da Organização que ele
traiu.” Chuuya-sama assentiu. “Você sabe bem.”
“Porque investigadores automáticos são bem mais eficientes do que os humanos.”
Comi mais um chiclete. “Eu cruzei os nomes da lista de contrabandistas da polícia
japonesa com os nomes dos controlados pela Máfia do Porto e descobri que não havia
nenhum na base da Máfia.”
“As listas da polícia e da Máfia? Como conseguiu?”
“Invadi a base de dados.” Esta máquina é capaz de invadir o sistema de um automóvel
em movimento. Inspecionar uma base de dados é mais simples do que respirar. Imagino,
já que nunca respirei. “Quatro atendem aos requisitos. Esta máquina investigou um por
um desde a manhã e encontrou quem permitiu Verlaine a entrar no país.”
“Haha, estou aliviado de saber que você tem algum ponto forte além de jogar sinuca.”
Chuuya-sama levantou a sobrancelha. “E então? Pendurou eles amarrados de cabeça pra
baixo?”
“Não. Esta máquina até tem essa função, mas se fosse violento com o contrabandista,
Verlaine perceberia.” Esta máquina balançou a cabeça. “Invés disso, determinei desde os
artigos encomendados por Verlaine até os detalhes do pagamento. Acho que o Chuuya-
sama sabe, mas a maioria dos contrabandistas desse tipo tem dificuldades de conseguir
um fornecedor no próprio país.” Comendo agora o antepenúltimo chiclete, esta máquina
falou. “Fornecedores arranjam esconderijos, carros, armas e médicos ilegais mediante
pagamento. Verlaine solicitou três coisas.”
“Um esconderijo?”
“Infelizmente.” Esta máquina balançou a cabeça. “Mas consegui uma pista de seu
próximo passo. Primeiro isto aqui.”
Esta máquina mostrou a foto do galho de uma bétula prateada. Era da grossura de um
pulso. O comprimento também.
“O que é isso?”
“O galho de uma bétula prateada. Nos lugares em que Verlaine cometeu assassinatos,
ele deixou uma cruz entalhada feita da madeira dessa árvore do local. É uma assinatura
de seu trabalho e até agora não houve exceção. Dessa vez ele comprou quatro bétulas do
fornecedor. E…” Esta máquina mostrou mais uma foto, “uma delas foi encontrada na cena
do bar sinuca.”
No chão, uma cruz entalhada à mão de maneira grosseira estava caída. Por causa das
tábuas estarem todas destruídas não era fácil achá-la de primeira, mas ela claramente
era de um material diferente dos pedaços ao redor.
Chuuya-sama franziu.
“Então faltam três?”
“Sim. E acredito que seja o número de alvos de agora.”
─Matarei todos aqueles que aprisionam seu coração.
Foi o que Verlaine falou. Como ele sabe, não sei. Talvez haja um traidor na Máfia. Mas o
certo é que ele pretende realizar seu trabalho mais três vezes ao menos nesta terra.
“Essa é a nossa chance. Verlaine é elusivo e além disso, tem superioridade absoluta em
poder de combate. Não temos chance de vencê-lo enfrentando ele cara a cara. Mas ele
também é um assassino que preza pelos procedimentos de cerimônia. É certo que ele
aparecerá diante do próximo alvo. Se soubermos quem é antes, será possível esperamos
ele com uma armadilha.”
“De fato.” Chuuya-sama concordou com a cabeça. “E já tem ideia de quem seja?”
“Não.” Esta máquina mostrou outra foto. “O Verlaine conseguiu mais duas coisas com o
fornecedor. Foram estas.”
Era um certificado de entrada numa fábrica de montagem de automóveis e dois
celulares azuis um pouco antigos.
“Acredito que ele precise deles para seu próximo assassinato. Mas a partir daqui
preciso de sua colaboração. Verlaine está atrás daqueles com quem você tem uma
ligação profunda. Não sabe quem possa ser?”
Sem responder à pergunta, Chuuya-sama ficou olhando a foto como se o rosto de
alguém importante estivesse gravado ali.
“Uma fábrica?” Ele disse como se cuspindo. “Merda, então ele é o próximo.”
Chuuya-sama amassou raivosamente a foto numa bola e pôs-se a andar a passos
largos.
“Vamos.”
“Para onde?”
Sem responder, Chuuya-sama roubou meu último chiclete e o jogou na boca. Andando,
ele soprou o chiclete até que a goma mudou para o formato de um balão esférico fora de
sua boca.
Não consigo expressar em palavras o meu choque nessa hora. Então era aquilo!
•••
O menino estava na fábrica.
Era uma montadora de teto alto e cheirando a óleo. Podia-se ouvir o barulho das
máquinas de solda trabalhando e o som das faíscas vindo de algum lugar, mas a fábrica
era tão grande que não dava para saber de onde. As partes de metal soldadas desfilavam
nas esteiras transportadoras.
O menino fixava as partes com um rebite, passava óleo na esteira com um pano e
raspava as rebarbas de solda com uma lima. Esse era seu trabalho. Dentro de alguns
segundos, outra leva das mesmas peças descia pela esteira.
O menino fixava, limpava e raspava. Mais uma vez as peças vinham. Fixava, limpava e
raspava. Fixava, limpava e raspava. Fixava, limpava e raspava. Fixava, limpava e raspava.
E na mesma quantidade de vezes que as peças vinham, ele pensava ── Estou de saco
cheio. Quando eu terminar a próxima leva, vou jogar tudo pro alto e ir embora.
Todos os dias ele trabalhava pensando a mesma coisa até que um alarme tocava. Era o
sinal informando faltarem cinco minutos para terminar o expediente. E nos cinco minutos
até que o sinal do término de verdade tocasse o menino se sentia um pouco humano.
Sem pensar em nada, apenas movia suas mãos devotadamente.
Quando o trabalho terminava, “Ei, quer ir comer alguma coisa?”, seus colegas o
chamavam, mas ele dava qualquer resposta e se retirava. Sem encontrar o olhar de
ninguém, trocava de roupa e ia embora da fábrica.
Eu quero sair daqui o mais rápido possível. Aqui não é o meu lugar.
Mas nesse dia as coisas não foram tão fáceis assim. Uma chamada o parou quando
estava saindo do local. O menino pensou em ignorar, mas sabendo quem o chamava, ele
a atendeu.
“Gerente.” Falou. “Algum problema?”
“Ahh, você, você. Desculpa, mas venha comigo.”
De óculos e cabeça branca, o gerente era o responsável pela fábrica. Era alguém bem
importante. Não costumava falar com um simples trabalhador. Ele só o tinha visto na
foto pendurada na parede da oficina.
“Não, é que eu tô indo embora.” O menino foi curto e grosso.
“Só venha. Tem uma visita. Você o está fazendo esperar. Vamos, rápido.”
O gerente agarrou a mão do menino. Ao tentar soltá-la, percebeu que a mão estava
tremendo. Não havia sangue circulando em seu rosto. Ele estava bastante preocupado
com o tempo. O gerente estava com medo de algo. Não tinha jeito, tinha que ir junto.
Eles foram para a sala de recepção. Era o único lugar na fábrica visivelmente investido.
O cheiro de café vinha por detrás da porta de carvalho com decorações douradas. Deve
ter sido servido para a pessoa o esperando.
O menino não fazia a mínima ideia de quem era. Uma visita? Ele não tinha nenhum
amigo com quem estivesse se comunicando no momento. Há apenas um ano, vários
deles vinham saber como estava. Mas agora ninguém mais vinha. Ninguém.
Então quem será que veio?
Batendo na porta, o gerente entrou. O menino viu ali o rosto que menos esperava.
“…Chuuya."
Havia duas pessoas na recepção. Uma delas era um alto europeu. Pelo terno, talvez
fosse um detetive. E o outro era Nakahara Chuuya. Aquele que um dia foi seu
companheiro.
Chuuya olhou o menino inexpressivo e levantou.
“Shirase.” Sua voz grave e severa. “Quanto tempo.”
O menino chamado Shirase pegou um vaso que estava perto e o atirou em Chuuya.
•••
Não esperava esse desdobramento. Pensei que seria um reencontro emocionante com
um abraço de felicidade. Para aprender sobre o comportamento humano, vi, prestando
bastante atenção, diversos filmes no cinema. Contudo, esse menino chamado Shirase,
atirou um vaso.
Eu tentei parar o objeto, mas não deu tempo. O vaso acertou em cheio a testa do
Chuuya-sama, se quebrando espalhafatosamente. A velocidade foi consideravelmente
rápida. Por causa da sua manipulação de gravidade, compreendi que ele o quebrou no
momento do toque para dispersar o impacto. Por isso quase não deve ter machucado.
Mas para seu azar, havia flores no vaso. Ou seja, havia água. Enquanto a água caia
pingando de sua cabeça, “O que tá fazendo, Shirase?” Chuuya-sama falou. Não havia a
mínima surpresa em sua voz flácida e sem emoção. “Não tá sendo frio?”
“Ei, ei, que memória conveniente, Chuuya.” Shirase riu contorcendo os lábios. “Não faz
nem um ano que você me... Já esqueceu o que fez nas Ovelhas?”
Chuuya olhou o outro rapaz calmamente. Não falou nada. Shirase-san também estava
calado enquanto o perfurava com o olhar. O Gerente havia gritado "Hiiih!" quando o vaso
quebrou e fugiu.
Não sei bem qual tipo de silêncio era esse, mas desse jeito ninguém vai começar a
falar. Eu devo tomar a iniciativa.
“Hã… Shirase-san. Prazer em conhecê-lo. O tempo está bom, né?” Ouvi dizer que numa
primeira conversa deve-se falar sobre o tempo. "Para falar a verdade, temos um assunto
muito importante para tratar com você. Extremamente importante. Sente-se para
conversarmos.
“Eu não tenho assunto nenhum.” Dizendo isso, Shirase-san começou a sair da sala de
recepção.
“Espere, Shirase. Aonde pretende ir?”
“Vou embora já que o trabalho terminou!”
Esta máquina levantou indo atrás dele. Não podíamos perdê-lo de vista. Porém
Chuuya-sama ficou em pé imóvel. Mas do que isso, não mexia a expressão nem o olhar.
Aconteceu algo?
Pensando bem, pela velocidade de reflexo do Chuuya-sama, deveria ter sido fácil
desviar do vaso. Mas ele não o fez. Por qual motivo?
Como esta máquina é um computador, não há nenhum inconveniente chamado
emoções instaladas em mim. Porém, para parecer natural quando estou trabalhando
numa investigação com um humano, tenho um módulo que imita uma tomada de
decisão (penso frequentemente que seria mais fácil realizar as investigações se não
tivesse isto). Sendo assim é possível reproduzir surpresa e comoção a um certo nível.
Também é possível inferir sobre as emoções do outro. Mesmo assim, eu não entendo por
que o Chuuya-sama não desviou do vaso.
“Vamos atrás dele.” Esta máquina falou relutante. “Chuuya-sama, você está bem?”
Ele sorriu com o canto da boca enquanto a água pingava.
“E eu sabia que seria assim.”
•••
Nós íamos atrás do Shirase-san pelo corredor.
“Shirase-san, espere. Precisamos da sua cooperação.”
“Heh, parece precisar mesmo. Estou surpreso. Só que não é problema meu. Nem por
cem bilhões de ienes eu colaboro com o Chuuya.”
Shirase-san não diminuía o ritmo.
“Mas se pensar de maneira racional, verá que precisa cooperar.”
“E quem é você, afinal? O seu jeito de falar é irritante. Tá ai falando pra eu ajudar, mas
você sabe o que o Chuuya fez?”
Shirase-san se virou, olhando esta máquina de forma intimidadora. Não adianta
encarar esta máquina querendo me intimidar pois não sinto nada. Mas pela sua
expressão, consegui entender o que sentia. Era ódio.
“Ele destruiu a nossa Organização um ano atrás. Fez a gente ser atacado pela Máfia do
Porto. Tivemos nossa casa roubada e para não nos reconstruirmos, fomos espalhados
pelo Japão. Exceto o Chuuya. E o que você acha que ele fez? Entrou para a Máfia
lindamente! Ou seja, ele nos vendeu para a Máfia! Não esqueça o favor que nos deve!”
Esta máquina comparou as informações que havia no registro. Não houve
coincidências. Não é a realidade. A situação precisa de correção. Mas o Chuuya-sama
está calado. Não parece querer dizer nada.
“E eu estou aqui. Só eu fiquei detido em Yokohama, sendo monitorado. Entende porquê,
Chuuya?”
Shirase-san levantou o braço, mostrando seu relógio de pulso. Vendo o objeto, Chuuya-
sama respondeu “Não tenho ideia.”
"É um relógio suíço de luxo." Consultando os meus conhecimentos armazenados,
respondi.
“Isso mesmo. É o único objeto de luxo que ainda tenho. Quando estávamos nas
Ovelhas, dava pra comprar coisas assim todos os dias. Mas agora não sei quando vou
precisar vendê-lo. Já que esse trabalho aqui é simples e qualquer um consegue fazer, o
salário é baixo. Nunca que vou ter fundos suficientes para reerguer a Organização desse
jeito.”
“Reerguer a Organização?” A expressão de Chuuya mudou.
“Sim. Eu não vou ficar isolado aqui pra sempre. Estou arrumando armas e contatos aos
poucos. Eu sou capaz. Eu consigo colocar as Ovelhas de pé novamente e ser um rei
muito mais incrível que você!”
Chuuya-sama franziu um pouco e disse:
“Você nunca será.”
“Como é que é?”
“Ok, acalme-se, por favor.”
Já que não estávamos indo para a questão principal, esta máquina vai entrar à força. É
claramente uma situação em que se precisa priorizar o caso, mas os humanos ficam
perdendo tempo nessas brigas inúteis.
“Shirase-san, parece que você entendeu errado. Nos meus registros o Chuuya-sama fez
isso pelo bem de vocês─”
“Pare. Não conte para ele.” Chuuya-sama controlou o corpo desta máquina
repentinamente com a mão. “Escuta, Shirase. Você só precisa saber de uma coisa ──
desse jeito, você vai morrer. Hoje ou amanhã.”
“Hah?”
Shirase-san arregalou os olhos e ficou de boca aberta.
“Um assassino está vindo atrás de você. Um monstro chamado Verlaine. Eu quero
acabar com ele, por isso, coopere.”
“Hã? O que disse, um assassino?” A expressão do Shirase-san era de quem não estava
entendendo nada. “Por que eu?”
“Ele pensa que se você morrer, não terei mais motivo pra ficar na Máfia.”
“Que história é essa? Por que ele acha isso?”
“E eu lá sei como funciona a mente de um assassino louco?” Chuuya-sama declarou
rejeitando o assunto. “De qualquer forma, ele é forte. Mesmo com toda a Máfia o
enfrentando, haverá casualidades. Por isso armarei uma armadilha para que possa matá-
lo sem falta. Quando ele vier te matar, vou pegá-lo por trás. Até um Usuário poderoso é
derrotado se pego de surpresa. Que nem quando você me esfaqueou por trás há um
ano.”
Os olhos do Chuuya-sama estreitaram, hospedando severidade e algo além. Mas o
módulo de imitação desta máquina não consegue discernir uma emoção tão vaga assim.
“Peraí um pouco. Então é isso?” Shirase-san sacudiu a mão, dizendo de mau humor.
“Tem um assassino chamado Verlaine. Vocês não podem vencê-lo e por isso vão me
usar como isca para atraí-lo. Então mesmo sabendo que serei morto, querem que eu
fique sentado obedientemente bem no meio da armadilha? …É isso?”
Chuuya-sama fazendo uma cara severa, não respondeu nada. Não há jeito. Esta
máquina tem que responder.
“Sim, é isso.”
“Hah? Vão se fuder! Quem vai querer ser isca?!”
Chuuya-sama respondeu com a voz afiada:
“Tem razão. Mas você não tem o direito de escolher.”
“O quê?”
“De fato você é uma isca. Mas e daí? A gente não precisa que seja você, porque ele tem
mais dois alvos. É só fazermos a armadilha com eles. Mas não é o mesmo pra você. Se
recusar essa proposta, morrerá sem sombra de dúvidas. Por isso, nos ajude, Shirase. Ou
então morra!” Chuuya-sama gritou como se o rejeitando.
Os dois se encararam. Sem dizer nada, olhavam a expressão um do outro como se
querendo achar algo nela. Até que por fim, quem quebrou o silêncio foi o Shirase-san.
“Ahh, tá, tá, entendi.” Ele deu de costas e saiu andando. “Continua fingindo ser um rei.
Só podia.”
A essa altura, nós estávamos no estacionamento da fábrica. Os inúmeros carros
esperavam agachados fielmente por seus donos (diferente dos humanos, eles não
ignoram seus deveres pelas emoções. Fico aliviado em vê-los).
Shirase-san andou até o veículo de duas rodas. Pelo que parece, é o que usa para ir e
voltar do trabalho. Tirando o capacete do cesto, ele disse virado para nós:
“Fazer o que, eu topo. Me guiem até o local da armadilha, eu vou seguindo na moto.”
Quando esta máquina sorriu aliviada, algo se chocou contra a lateral da minha cabeça.
O Shirase-san me acertou com o capacete. Por causa do golpe, minha visão se esvaiu
por um instante.
Ele jogou o capacete na direção do Chuuya-sama também. Um pouco antes de acertar
seu rosto, Chuuya-sama o parou. Shirase-san se aproveitou disso para subir na moto e
ligar o motor.
“Hahaha! Até parece que vou acreditar num traidor!”
Dizendo isso, ele saiu acelerado.
“Ai.”
Esta máquina executou um diagnóstico em si própria. Um impacto na cabeça.
Componentes internos não danificados. Nenhum atraso de sinal. Só me assustei.
Segurando o capacete com ambas as mãos, Chuuya-sama olhou para frente sem
paciência alguma.
“Céus …Ele pretende fugir naquilo?”
Depois de um longo suspiro, ele largou o capacete. E então pulou. Controlando a
gravidade, aterrissou em cima de um carro próximo.
“Não demora, robozinho. Se demorar, vou te deixar pra trás.”
E saiu correndo. Claro que não poderia ser deixado para trás.
•••
Era mais certo dizer que Chuuya-sama estava deslizando do que correndo. Ao reduzir a
gravidade embaixo de si, ele a criava para frente, pulando em estilo livre. Cada passo era
um salto e assim ia passando tranquilamente os carros correndo.
Esta máquina mobilizou todos os atuadores elásticos e foi atrás dele. Voando sobre a
fábrica, pousei numa placa. Pulando mais ainda, voei sobre as cabeças dos pedestres.
Tentei jogar um pino transmissor na moto do Shirase-san para localizá-lo. Mas não
obtive resposta.
Não consegui nenhuma informação correspondente sobre seu veículo ao me infiltrar na
rede de controle do tráfico. Ao que parece a moto do Shirase-san é somente um veículo
que se move sem ter sinal externo e sistema de controle. Em outras palavras, é barata.
E produtos baratos são desfavoráveis para nós. Não dá para controlá-la de longe como
fiz com o carro do Verlaine. Só resta persegui-la fisicamente.
Vai dar um pouco de trabalho, mas resolvi usar um método arriscado. Enquanto corria,
acessei o ORBIS. Obtive autorização de acesso forçadamente pelas ferramentas
instaladas de antemão e agora via vários displays sobrepostos.
Roubando dados que apenas a polícia de trânsito consegue pesquisar, tive visão de
todos os veículos na região de uma só vez. E então procurei.
Encontrei.
Duas quadras a oeste e uma ao norte. Está se dirigindo para a área residencial pela rua
principal, rugindo em direção ao norte. Como está claramente em excesso de velocidade,
o sistema já o marcou e pude encontrá-lo facilmente.
“Chuuya-sama! Para o noroeste!”
Gritando, esta máquina pulou sobre um caminhão correndo e atravessou a rua.
Saltando sobre os carros, esta máquina e Chuuya-sama corremos para o oeste. As
pessoas nos olhavam assustadas.
Conectado às câmeras do tráfico, vi a moto do Shirase-san ignorando e atravessando
sinais vermelhos, correndo para a área residencial. Tão imprudente. Mas para a sua sorte
e para o nosso azar, a próxima rua era uma rua estreita sem câmeras de vigilância. Ou
seja, não dava para continuar o perseguindo visualmente.
Pisando em cercas, pulando telhados, voando sobre postes telefônicos, nós íamos
atrás do Shirase-san. O asfalto chutado por esta máquina ao acelerar quebrava, indo
para trás.
Tanto esta máquina como o Chuuya-sama estávamos a uma velocidade capaz de
ultrapassar a moto do Shirase-san facilmente. Não há leis nesse país que restrinjam a
velocidade dos pedestres. É um descuido dos administradores dos humanos. Se fosse
esta máquina não esqueceria de fazer uma lei para androides correndo velozmente.
“Ouvi o barulho de algo correndo! Vou na frente!”
Chuuya-sama anulou a gravidade sobre o seu corpo e flutuou. Saltando pelas paredes
dos prédios, ele sumiu para o outro lado da cidade. Esta máquina se apressou. Chuuya-
sama pode até ter sua Habilidade gravitacional, mas para ser sincero minhas pernas são
mais compridas. Não vou perder.
O lugar era uma rua estreita. Pelos meus cálculos, mais vinte e sete segundos e
alcançarei a moto.
Se o Chuuya-sama o bloquear pela frente e esta máquina por trás, o Shirase-san não
terá outra opção a não ser desistir. É perfeito.
Mas depois esta máquina se lembraria de uma fala da Doutora.
Quando achar que tudo está indo bem, ele aparecerá. O demônio chamado fracasso
sempre captura e come a presa atraída pelo cheiro do sucesso.
E foi exatamente isso. No momento em que esta máquina foi virar uma esquina, ouvi
um grito.
“Não venha, robozinho! Se esconda!”
Mas já era tarde demais. Quando dobrei a esquina, presenciei a situação.
Talvez desse para tê-la previsto. Havia vários indícios.
O histórico do Shirase-san. Sua declaração de que estava se preparando para reerguer
a Organização. Quando o gerente foi chamá-lo para a recepção, ele estava
estranhamente nervoso e depois saiu de lá como se estivesse fugindo.
Shirase-san estava bem no meio de um cruzamento cercado por vários veículos. Eram
carros da polícia.
“Shirase Buichirou! Vocês está preso por suspeita de posse ilegal de arma!”
Sua cabeça estava sendo pressionada contra um dos carros enquanto era restringido
por policiais de larga estrutura.
“Parem! Merda, me soltem! Eu serei o próximo rei!”
Ele está resistindo, mas de acordo com os meus cálculos, Shirase-san precisa de mais
trinta e nove dele mesmo para conseguir.
Uma voz veio de um dos carros.
“Você tá aí, né, Chuuya? Seu pequeno subordinado está com problemas.” Era uma voz
madura, calma e de certa forma inapropriada. “Venha salvá-lo.”
E então ele apareceu. Um detetive passado dos seus quarenta anos, com uma presença
discreta.
Os sapatos de couro sem brilho, um comprido sobretudo verde escuro que parecia ter
se tornado um só com sua pele de tanto vesti-lo. Parecia ter o peso leve. Seu cabelo
lembrava algodão-doce e em seu rosto, um sorriso gentil.
“Eu não sou subordinado de ninguém! Sou um rei!” Shirase-san ainda se debatia para
todos os lados.
“Sim, sim. Não se debata desse jeito, vossa majestade. Não precisa se preocupar que
não estou nem aí para um peixe pequeno como você.” Dizendo isso, o detetive
esbofeteou o rosto de Shirase-san.
Chuuya-sama estalou a língua.
“Quer dizer que você deixou o Shirase solto de propósito, detetive?”
Chuuya-sama apareceu diante da polícia.
“Ohh, tudo bem com você, Chuuya? Tem comido direito?”
O detetive levantou ambos os braços como se cumprimentasse um amigo de longa
data. Mas não acho que eles sejam amigos.
“Se não comer suas refeições, não vai crescer. Coma direito. E vá à escola. Pense no
seu futuro e economize. Nada de vagabundear à noite. Mas enquanto é novo tudo bem
em se divertir um pouquinho. E…” o detetive riu, batendo no corpo do Shirase-san,
“escolha bem os seus amigos.”
“Nakahara Chuuya. Gostaria que nos acompanhasse até a delegacia por suspeita de
conspiração com o Shirase.”
Um jovem policial falou, indo para o lado de Chuuya-sama. Sua expressão era rígida e
fria, equilibrada que nem uma máquina. Claro que ainda estava longe de ser uma.
“Entendi. Essa prisão não é coincidência, né.” Chuuya-sama olhou severamente o
policial. “O gerente era um lacaio seu. Ele manteve o olho no Shirase para me atrair.”
“Fufu, esse jovenzinho aqui, diferente de você, é gentil com os mais velhos.” O detetive
bateu novamente de leve no Shirase-san. “Porque nos ajudou a reunir provas da sua
posse de armas facilmente.”
“Mentira! Não tinha como meu plano perfeito ser descoberto! Chuuya, você me vendeu
de novo!”
Olhando de soslaio para o Shirase-san que gritava e se debatia, o detetive deu de
ombros.
“Viu só? Não falei para escolher direito os seus amigos?”
Chuuya-sama deu um suspiro e falou com a cara amarga:
“Ei, detetive, eu entendi muito bem o porquê dele tá sendo acusado. Mas será que não
dá pra esperar mais um dia? Aconteceu uma pequena briga entre organizações e eu
preciso protegê-lo por um dia inteiro.”
O detetive escutou surpreso até que falou com um ligeiro sorriso:
“Então não se preocupe. Nós o protegeremos.” Pegando as algemas, colocou-as do
lado do rosto e as balançou. “Na prisão. Se fizer tanta questão, vai querer vir também?”
Sinalizando com o queixo, Shirase-san foi empurrado para dentro do carro.
Não havia o que fazer era o que a expressão do Chuuya-sama dizia.
"…Merda…"
Ele gemeu por entre os dentes cerrados.
•••
Uma vez, a Doutora me perguntou algo.
“Como você se sente sendo uma máquina?”
Esta máquina não conseguiu responder. Porque não havia mais o que responder além
de que como uma máquina, me sentia uma máquina. Completamente plano, apropriado,
sem nenhuma condição colateral. Por isso respondi assim. E complementei:
“Doutora, como você se sente sendo humana?”
A Doutora cruzou os braços sem dizer nada e riu com cara de quem não sabia o que
responder. O que ser humano te faz sentir. Se eu fosse dizer, a gravidade desse assunto
foi a origem desse caso.
Verlaine disse que não era humano. Como se isso fosse tão sério a ponto de virar o
mundo de ponta cabeça. Para ele, ser ou não humano é uma questão de vida ou morte
que controla todo o seu presente e futuro.
É estranho. Ser ou não humano é tão importante assim? Pensando nisso, me dirigi ao
Chuuya-sama:
“Chuuya-sama.”
“…"
“Chuuya-sama.”
“…O que é?"
“É a sua vez. De achar um lado estranho dos humanos."
“…" Chuuya-sama não respondeu.
“Então esta máquina começa.” Eu bati com ambas as palmas da mão na mesa.
“Vejamos, um lado estranho dos humanos. Vocês têm uma disposição incompreensível
de sentir vergonha de produzir algum som sem ser com a voz. Tipo arrotar ou soltar pum.
Agora, você.”
Esta máquina bateu na mesa pelo Chuuya-sama. Olhando para mim, "Haa…", ele soltou
um suspiro. Foi uma resposta esquisita.
“‘Haa', não é? Obrigado pela resposta. Agora esta máquina de novo. Quando uma
mulher comum diz que uma outra mulher é fofa, essa outra não é. A razão é
desconhecida. E quando realmente é, fala que ela não tem uma personalidade muito
boa." Tap tap. “Chuuya-sama.”
“Ahh…” Chuuya-sama falou com preguiça.
“Obrigado pela resposta. Há um misterioso protocolo de que quando vão usar o
banheiro, somente os homens o usam com o assento levantado. As mulheres não. Por
que? Sentado deveria ser mais conveniente já que não espalha para tudo o que é lado.
Sendo mais específico, a uri─”
“Para! Que nojeira!”
Esta máquina pendeu a cabeça.
“Nojeira? Esta sala foi limpa há 92 minutos.”
“Não é isso…” Chuuya-sama coçou a cabeça. “Ahhh, chega! Me tira logo daqui!”
Estávamos numa sala de interrogatório da polícia.
A parede verde-musgo estava completamente imunda de sujeira e tabaco. Todas as
quatro cadeiras tinham um parafuso solto, se deformando e rangendo ao serem usadas.
Na mesa havia arranhões, marcas de alguém ter batido nela e manchas de água.
Provavelmente eram as lágrimas ou baba dos suspeitos.
Esta máquina e o Chuuya-sama fomos trazidos para esta sala depois de sermos
chamados para um interrogatório. Nos disseram para esperarmos um pouco. Era
possível fugirmos, mas sair daqui sem passar pelos processos legais seria trabalhoso.
Era melhor esperarmos pelo consultor jurídico da Máfia do Porto.
Porém, para mim que sou investigador, ser detido pela polícia é uma experiência muito
valiosa que estimula meu coração. Ainda bem que não contei a minha profissão.
Agradeço a política de investigação.
“Esse jogo tá proibido daqui em diante, entendeu?”
“É uma ordem?"
“Sim.”
Não havia jeito se ele estava exercendo seu direito de comando.
“Entendido. Nunca mais farei o jogo de achar um lado estranho dos humanos.”
Chuuya-sama olhou para esta máquina, cansado.
“Você tá fazendo uma cara de bastante desapontado…”
Como não há um espelho nessa sala, não posso conformar meu rosto.
“Haa… Deixa pra lá. E então? Vai ser possível liberar o Shirase?”
“Sim. Mas vai levar um tempo.” Esta máquina respondeu sendo sincero. “Invadi a base
de dados deles, mas já estão revistando a casa do Shirase-san e confiscaram vinte
armas de pequeno porte. Armas que tiveram o número de série raspado. Sendo assim,
vai levar um tempo considerável até que um advogado competente consiga libertá-lo. E
mesmo se tentar uma fiança, ele tem uma ficha criminal de quando era das Ovelhas. Vai
ser bem difícil arrumar os papéis, até porque como o verdadeiro objetivo da polícia não é
o Shirase-san e sim você, eles vão usar todas as 48 horas do prazo de transferência para
o promotor.”
“Não dá pra esperar 48 horas.” Chuuya-sama cerrou os punhos. “O Verlaine pode tá
vindo matar ele nesse instante.”
É exatamente como o Chuuya-sama diz. Para derrotarmos o Verlaine precisamos levar
o Shirase-san para um local apropriado para a armadilha e atrair ele até lá. Ou seja,
vamos armar um ataque surpresa contra o Verlaine que é especializado em ataques
surpresas e assassinatos. Mas para isso são necessários vários pré-requisitos. Uma
grande armadilha arquitetada ao longo do tempo. E a isca é o Shirase-san.
“Não dá pra fazer nada usando o poder dos seus superiores?” Chuuya-sama inclinou o
corpo. “A polícia daqui não é, como posso dizer, seus colegas? Pede para as autorides do
seu país mexerem os pauzinhos e nos tirar daqui.”
“Se fosse possível, seria ótimo.” Esta máquina balançou a cabeça. “Mas é impossível.
Há um pacto servindo como entrave.”
“Pacto?”
Esta máquina explicou. Originalmente, a EUROPOLE foi criada após o tratado de paz no
final da Grande Guerra como uma organização de investigação internacional. Seu
objetivo era a supressão de criminosos que operavam por detrás das cenas,
ultrapassando as fronteiras. Contudo ela foi afetada pela disputa de poder entre as
nações após a guerra e limitada.
A primeira restrição é que os direitos e soberania dos países membros europeus não
podem ser prejudicados. As nações que um dia foram inimigas precisam ter a delicadeza
de não violar os direitos uns dos outros enquanto cooperam para estabelecer um
mecanismo de investigação.
Dessa vez, é a apreensão do ex-espião francês Verlaine que carrega inúmeros assuntos
confidenciais importantes de seu país em sua cabeça. Um erro em seu tratamento e será
um escândalo internacional. Senão, o investigador que o capturasse poderia vender as
informações que obteve durante a investigação para outros países. Pensando assim, a
França hesitou em mandar investigadores estrangeiros.
Por outro lado, a EUROPOLE não pode ficar impotente diante de uma calamidade que
está matando importantes pessoas no mundo aleatoriamente. Principalmente a Grã-
Bretanha, que teve sua cara esfregada na lama ao ter seus cavaleiros assassinados
durante a coroação. Eles não podem recuar. Dessa forma, esta máquina foi enviada
sozinha como um comprometimento.
Esta máquina pode manter um segredo sem falta, sem risco de manter relação com
outro país por interesses próprios. Assim fui configurado. As informações que ganhar
serão congeladas sem poderem ser usadas por nenhuma outra nação, sendo mantidas
em custódias criptografadas.
Quando o Piano Man-san perguntou para esta máquina se não havia risco das
informações sobre a Máfia serem relatadas para as autoridades europeias, respondi que
era incapaz disso. E é por essa razão.
“Entendi.” Chuuya-sama cruzou os braços, assentindo com a cabeça. “Não importa o
quanto você testemunhe os crimes meus e da Máfia, é impossível que os passe para
fora?”
“Sim. E pelo mesmo motivo é impossível as autoridades europeias intervirem com a
japonesa. Para começar, oficialmente, esta máquina nem está investigando nada no
Japão. Se os governos dos outros países descobrirem sobre a investigação do Rei
Assassino, terá um país que pensará em usar essas informações para barganhar com a
França. Porque é praticamente certo que o Verlaine está violando as leis da guerra sob o
pretexto de ser uma operação secreta da Grande Guerra.”
“Por isso que a polícia japonesa não será sua aliada?” Chuuya-sama deu um longo
suspiro. “Que problema. Por causa disso meu único aliado é essa sucata aqui. Bom, não
que vá ficar melhor para a Máfia mesmo que mais investigadores europeus venham
correndo.”
“Para nós é bom nos aliarmos com uma organização ilegal não confiada pelo governo.”
Esta máquina sorriu. “Mas, Chuuya-sama, eu ouvi dizer que a Máfia do Porto tem um
Usuário perfeito para a crucial armadilha contra o Verlaine. É verdade?”
Sua expressão mudou de repente. Parecia que ele havia engolido cem insetos.
“É verdade." Sua voz continha a aflição de quem preferia ser morto a ter que falar
aquilo. “Mas ele não tá atendendo. Aquele maldito, tomara que esteja morto em algum
lugar.”
“Hah.” Penso que será um problema se nosso colaborador estiver. “Nós podemos
confiar nesse indivíduo?”
“Confiar? Claro que não.” Chuuya-sama disse de mau humor. “Ele tem uma
personalidade distorcida, o ser mais desprezível de todos. Ele é o tipo de gente que tenta
vender água para alguém que está se afogando. E ainda é tão inteligente que consegue
fazer com que comprem. Mas sem a Habilidade dele, não poderemos matar Verlaine.”
“Como pode dizer isso tudo?”
“Porque fui eu e o Dazai quem matamos o seu comparsa ─ o espião Usuário de
Habilidade, Rimbaud.”
Chuuya-sama cerrou os punhos com força.
“Aquele imprestável do Dazai, o que ele tá fazendo justo agora…”
•••
Um ferro-velho. Um lugar esquecido por todos.
Sob o céu nublado podendo chover a qualquer momento, os contêineres de carga
desordenados estavam amontoados uns sobre os outros como cadáveres. As
substâncias tóxicas provindas de despejos ilegais haviam infiltrado a terra descoberta
fazendo com que nem os ratos do campo se aproximassem.
Um lugar fora do mapa. O local mais triste de Yokohama ── Próximo ao seu centro,
Dazai morava.
Mas não era numa casa onde ele estava morando. Era num dos contêineres
descartados. Dentro de um de tamanho grande, que havia sido construído para
transportar automóveis para o exterior, havia uma geladeira, ventilador, mesa, cadeira,
cama e uma pequena lâmpada nua.
Nenhuma pessoa que conhecia Dazai tentava se aproximar dali. Nem mesmo seus
subordinados na Máfia do Porto. E não era apenas por ali ser um lugar sinistro. Ninguém
sabia como ele reagiria no momento que alguém chegasse perto de sua moradia privada.
Talvez ele cortasse os membros fora e matasse algum subordinado quando este viesse,
ou talvez ele oferecesse chá e bolo.
Ninguém entendia o coração de Dazai. O fantasma preto da Máfia do Porto. Assim ele
era chamado.
Fazia um ano desde sua entrada na Máfia. Comandando a tropa secreta sob controle
direto do Chefe, produziu resultados surpreendentes. Destruiu inúmeras organizações e
abriu várias novas rotas de transações. Eram feitos de velocidade incomparável aos
Executivos antigos e muito menos à geração nova. Até os resultados do mais bem-
sucedido membro da Bandeira, Piano Man, parecia brincadeira de criança se comparados
com os de Dazai. Mesmo assim, ninguém confiava nele.
A escuridão que habitava o fundo de seus olhos era mais profunda que a negra noite
espreitando o ferro-velho. Quanto mais ele continuava a agir na Máfia, mais escuro e
incompreensível ele se tornava. O motivo não era claro para ninguém também. Como se
encurralando a si mesmo em algum lugar escuro, ele apenas massacrava seus inimigos,
abrindo as veias da Máfia do Porto. Um serviço impecável. Mas havia uma pessoa que
não se alegrava com essa honra. Dazai.
Ele estava sentado numa cadeira redonda dentro do contêiner, encarando a escuridão.
Em cima da mesa ao seu lado, o celular tocou. Era Chuuya, mas ele não atendia. Não
movia nem o olhar. Apenas olhava atentamente, enquanto sentado com as mãos unidas,
para a porta à sua frente.
Seu olhar era bastante calmo. Seus negros olhos sugavam todo o som e luz ao redor,
sem deixar nada escapar. Inclusive suas emoções. O telefone desistiu e o silêncio caiu
novamente, se tornando ainda mais profundo e pesado antes dele tocar.
Nessa hora, os olhos de Dazai que olhavam as profundezas da escuridão se moveram.
A porta começou a se abrir. Ao que a porta de metal foi abrindo lentamente, o contorno
de alguém envolto na escuridão apareceu do outro lado.
“Você está morando num lugar bastante charmoso, Dazai-kun.” A figura falou. Sua voz
era leve. “Seriamente, está com medo do que para morar num lugar deste? Dos
impostos?”
Sem mudar nem um pouco se quer sua expressão, Dazai falou com a voz rouca:
“Estou com medo de você, Verlaine-san.”
A figura entrou no quarto. Alto. Terno da cor do mar noturno. Olhar suave como se
achando engraçado o que estava acontecendo. De chapéu preto, o Rei Assassino, Paul
Verlaine.
“Mentira.” Ele começou a andar para dentro do caixote. “Você não tem medo de nada. É
só olhar para seus olhos para saber. Até mesmo quando eu tentei te matar dois dias
atrás, você não sentiu praticamente nada.”
“Eu tenho uma opinião incomum sobre a morte.” Dazai riu com apenas os cantos dos
olhos. Mas eles continuavam serenos.
“Isso acaba com os negócios de um assassino.” Verlaine deu de ombros.
Estalando suas botas de couro sobre o piso, ele pegou os documentos em cima da
mesa. “São os documentos internos da Máfia do Porto?”
Eram dezenas de folhas. Se fossem roubados por outra organização, era o equivalente
a uma quantidade de dinheiro que permitiria curtir três vidas inteiras sem trabalhar.
Documentos valiosos sobre assuntos extremamente confidenciais.
Verlaine sacudiu o maço de papel ao lado do rosto.
“Dois dias atrás, você me disse que me entregaria isto. Por isso, não te matei. Eles são
necessários para o meu trabalho. Mas qual a razão? O que você quer em troca? Não
venha me dizer que é '‘não me mate, por favor.'”
"É simples." Dazai deu um pequeno sorriso. Depois, com a voz grave como o rugido de
um pesadelo, falou. “Eu quero ver a Máfia do Porto queimando.”
Verlaine ficou sério e olhou atentamente para o outro rapaz, como se percebendo pela
primeira vez que havia alguém ali.
“A Máfia do Porto não te acolheu e criou?” Depois de um tempo, Verlaine perguntou
com cautela.
“Sim.”
“Então por quê?”
Dazai ouviu a pergunta, mas ficou em silêncio. Seu olhar vagava procurando algo que
não estava ali. Até que o jovem sorriu um sorriso extremamente triste capaz de fazer
querer gritar quem o visse.
“Cansei.”
Verlaine estreitou os olhos. Procurando a real intenção do outro, seu olhar fixado em
Dazai.
Dazai olhou de relance para Verlaine se divertindo e começou a falar como se fosse
para si mesmo:
“No final, não consegui encontrar nada.”
“Ah é?” Verlaine fechou os olhos. “Bem, eu te entendo. Sair em uma viagem esperando
por algo que irá te mudar para no final voltar desapontado com o tanto de lugar cheio de
lixo que encontrou. Eu também já experimentei isso. Respirar, comer e excretar não é
viver. Por isso nós saímos em uma jornada.”
Enquanto falava, Verlaine pegou uma moeda que estava caída no chão. Era uma moeda
prateada que se encontrava em qualquer lugar.
“Obrigado pela ajuda, Dazai-kun.”
Ele brincou com a moeda entre os dedos até que se ouviu um estrondo. A moeda voou
passando ao lado do Dazai e penetrou a parede atrás dele. Deixando o barulho de um
trovão e o ar distorcido para trás, o objeto destruiu uma das sucatas do lado de fora do
contêiner. Foi voando em linha reta sem cair em lugar nenhum até que desapareceu no
horizonte ao oeste. O que sobrou foi apenas o vapor do metal derretido e a reverberação
da destruição.
“Em respeito ao seu desespero, te deixarei para matar por último.” Verlaine sorriu ainda
na mesma posição após arremessar a moeda.
Dazai não se mexeu. Sem ligar para o objeto que passou em ultravelocidade bem ao
seu lado, sua expressão não mudou nem um pouco.
“Mal posso esperar.”
E então sorriu. Um sorriso em que parecia dar para ouvir o som da alma sendo partida.
Verlaine se virou e foi andando em direção a porta. Ao colocar a mão nela, Dazai
perguntou para as suas costas:
“Para onde você vai agora?”
Verlaine se virou dando o sorriso de um mágico após mostrar um enigmático truque.
“Sabe muito bem. Para a delegacia.”
•••
A porta da sala de interrogatório se abriu após 1448 segundos desta máquina e o
Chuuya-sama terem entrado.
“Vou interromper.”
Era o detetive de cabelo de algodão-doce presente quando o Shirase-san foi preso. Ele
estava segurando um recipiente de porcelana com um líquido dentro. Sentou do outro
lado da mesa e usando hashis tirou algo sólido de dentro do líquido ── começou a
comer o corpo alongado composto principalmente de amido de gliadina e glutenina.
Quando ele notou esta máquina o observando, levantou o rosto.
“O que foi estrangeiro? Nunca viu udon?”
O detetive continuou a comer enquanto ria. O vapor cobria seu rosto.
“E o nosso?” Chuuya-sama perguntou bruscamente.
“Ah, vocês queriam? Pensei que uma comida de pobre assim não seria do agrado de um
cara que ganha traficando joias.”
Chuuya-sama o encarou de braços cruzados.
“Traficante de joias? Ei, ei, não me venha com piadas. Eu sou um funcionário comum de
uma pequena joalheria certificada. Quer ver a minha credencial?”
“Não precisa me mostrar a sua credencial forjada.” O detetive riu com a cabeça
inclinada. “Por sinal, quem é esse estrangeiro?” Ele apontou para esta máquina com os
hashis.
Sem responder, Chuuya-sama apenas deu de ombros. O detetive olhou para esta
máquina e falou:
“Ei, Chuuya, pro seu próprio bem é melhor que pessoas de fora não ouçam a nossa
conversa.”
“Prazer. Esta máquina é um computador que veio da Europa…”
“Não diga tolices, detetive.” Chuuya-sama interrompeu. “Este cara é um funcionário
novo. Ele começou ontem. É um cara estranho que depois que bateu a cabeça numa
briga, passou a achar que é uma máquina. Trouxe ele junto porque achei engraçado.
Algum problema?”
“Não, esta máquina realmente é um computador de alta performance.”
“Um subordinado? Entendo. Então ainda é cedo para ele vir para um lugar de alta classe
desses. Irei te guiar até a saída.” O detetive levantou e bateu a porta. “Leve ele.”
Um robusto policial entrou sem fazer barulho e pegou esta máquina pelo braço. Abri a
boca para protestar, mas vi o sinal do Chuuya-sama com o canto do olho. Estava
dobrando o dedo indicador embaixo da mesa na direção de lá fora.
Ele olhou para mim e apontou levemente com o queixo para esta máquina ir. Era
claramente uma comunicação não-verbal. O Chuuya-sama queria que esta máquina
fizesse algo sem que os humanos nessa sala ouvissem. Por isso ele inventou aquela
história para fazer com que esta máquina saísse.
Entendo. Se é assim, só há uma coisa para esta máquina fazer.
“Então, com licença.”
Esta máquina fez a saudação e saiu da sala com o policial. A porta se fechou atrás de
mim e comecei a acompanhá-lo.
“Desculpe, senhor policial.” Depois de dez minutos, esta máquina falou. “O que você
acha que é o sinal de dobrar o dedo duas vezes apontando para a saída?”
“…Hã?"
O policial inclinou a cabeça.
“Disse apontar para a saída enquanto dobra o dedo…”
Enquanto falava, pensei. Se o Chuuya-sama apontou disfarçadamente para a saída era
porque ele queria que esta máquina fizesse algo aqui fora. Ao mesmo tempo, ele não
pode sair da sala de interrogatório.
O que nós devemos fazer agora é mover fisicamente o Shirase-san. Se não o levarmos
rapidamente da cela para um lugar seguro, ele será morto antes de armamos a
armadilha. Porém, a polícia também sabe que nós estamos tentando soltar ele. Por isso
colocaram o Chuuya-sama naquela sala ── Entendo.
“Entendi.”
Ao dizer isso de repente, o policial me olhou confuso.
“O que você entendeu?”
“Aquele gesto era para mim. Enquanto a polícia está com o olhar voltado para ele, é
para esta máquina entrar sem ser percebido na cela e tirar o Shirase-san de lá.”
“Ah sim, na cela.” O policial assentiu sem pensar. “…Hm? Na cela?"
Opa. Ele vai perceber. Não pode.
“Senhor policial. O que é aquilo?”
Esta máquina apontou para atrás dele. O policial se virou por reflexo. Ele é uma pessoa
honesta.
Fiquei esperando com o meu dedo indicador posicionado bem próximo a sua bochecha.
“Não tem na—”
Ao tentar dizer virando o pescoço que não havia nada, sua bochecha acertou o dedo
desta máquina. Em cheio.
Na ponta do meu dedo havia uma minúscula agulha hipodérmica e uma substância
para acalmar fluiu da parte aplicada. Devido ao reflexo nervoso da redução da pressão
arterial, o policial perdeu a consciência. Segurei ele antes que chegasse ao chão.
Examinei ao redor. Ninguém parece ter visto nem ouvido nada.
“A delegacia está silenciosa.”
Esta máquina sorriu enquanto segurava o corpo do policial.
•••
Chuuya estava sentado, aborrecido. Com os cotovelos em cima da mesa e olhos quase
fechados, olhava sem pensar em nada para a mancha na parede. Era o que restava fazer
para fugir da conversa chata do detetive à sua frente.
“E assim eu pensei.” Ele disse se inclinando para frente. “O udon carrega tudo desta
vida. Não é decente ter dinheiro demais enquanto se é jovem. Trabalhar duro com o suor
escorrendo pela testa para o salário aumentar um pouquinho em relação ao mês anterior
é quando o mundo se transforma num tempurá de chikuwa aparecendo dentro do caldo
do udon, sim, o que eu quero dizer é que o trabalho duro compensa e além do mais…”
Quanto tempo mais eu ainda vou ter que ficar ouvindo essa ladainha? Chuuya olhava
para o ponteiro do relógio resignado.
A história era longa, o sermão duvidoso e não tinha nenhuma lição de moral. Da metade
da história de vida pessoal, passou a ser apenas resmungos, da metade dos resmungos,
passou a ser apenas reminiscências, e da metade das reminiscências, passou a ser um
sermão.
Ele ficava dando voltas e voltas no argumento, repetindo as mesmas histórias
eternamente e estranhamente ele era bem minucioso na descrição dos detalhes. Não
importava quantas vezes ele falasse a mesma coisa, seus olhos sempre estavam
brilhando entusiasmados como se estivesse revelando a verdade sobre o mundo.
“E assim, eu pensei nisso quando eu fui designado para essa delegacia. O meu superior
que sempre usa creme demais no cabelo e que fica todo pegajoso…”
Chuuya não estava ouvindo, ele apenas olhava fixamente para um ponto no ar. Para
começar, isso era um interrogatório voluntário. Como ele não foi preso sob um mandato,
a polícia não tinha o direito legal de mantê-lo preso ali. Não seria problema ele ignorar o
homem e só se levantar. Mas não o podia fazer. Precisava comprar tempo até que Adam
resgatasse o Shirase. Enquanto isso, ele precisava atrair a atenção do detetive. E por
isso, Chuuya estava aguentando.
“Eu sou um cascalho ao léu, comparado.” Ele disse a si mesmo desesperadamente.
“E daí? Quando eu era novo também era um desastre.” O detetive assentiu com um
olhar triunfante. “Sem um trabalho decente, eu sempre estava de estômago vazio. Graças
a mediação do meu aniki que não conseguiu me ignorar, eu consegui um trabalho de
segurança, mas claro que não era nada mole. Você consegue imaginar, né? Os meus
colegas logo desistiram, isso quando não fugiam, mas eu me agarrei a minha força de
vontade. Sim, o que você precisa é dessa força de vontade…”
“Hein,” sem aguentar mais, Chuuya falou. “até quando você vai continuar essa conversa
fiada?”
Após levantar as sobrancelhas, o detetive riu como se estivesse impaciente.
“Se você assinar, eu te deixo ir embora na hora. Seu amigo Shirase-kun também.”
Nisso, ele tirou um documento do bolso e colocou em cima da mesa.
Chuuya ficou calado. Era uma carta de consentimento para coleta de provas e
acusação suplementar. Ou seja, uma delação premiada para em troca de Chuuya contar
o que sabia, ele e Shirase serem exonerados.
O que ele sabia ── isto é, informações internas da Máfia.
“Você quer que eu venda a Máfia?” Chuuya disse tranquilo.
“Você não quer deixar seu amigo aqui, não é?” O detetive estava sorrindo, mas seu olhar
era aguçado. “Acho que você sabe de coisas bastante complicadas… Mas não se
preocupe. Eu só tenho interesse em uma. Destruir a rota de contrabando da Máfia do
Porto.”
Chuuya olhou inexpressivo para o detetive e depois para o documento. Após pensar um
pouco, olhou para o homem novamente.
“Me dê uma caneta.”
“Muito bem.”
Chuuya pegou a caneta tinteiro que lhe foi entregue e escreveu na linha de assinatura.
O detetive olhou para a linha. Ali estava escrito:
“Vá à merda.”
Chuuya soltou a caneta em cima da mesa e se inclinou para trás com ambas as mãos
atrás da cabeça. Colocando os pés em cima da mesa, disse:
“Foi mal te interromper.” Sua voz completamente calma. “Pode continuar a ladainha.”
O detetive não falou nada. Apenas encarou Chuuya com um olhar igual ao de uma
pedra sob o intemperismo do deserto.
•••
Esta máquina estava indo para as celas.
Muito bem, como devo resgatar o Shirase-san? Como será ilegal, não posso contar com
as autoridades europeias. Mas não tem problema. Esta máquina tem conhecimentos
variados em relação a diferentes protocolos de investigações nacionais.
O corredor para as celas estava silencioso. Diferente do departamento bagunçado dos
detetives, aqui não tem quase ninguém ou nada.
Só havia apenas a parede creme limpa de maneira escrupulosa, as lâmpadas
fluorescentes dispostas sistematicamente pelo teto e o corredor iluminado
ordenadamente.
Às vezes, havia um quadro de avisos azul escuro na parede com informações coladas
do número de acidentes de trânsito e os check-ups médicos periódicos. Uma monotonia
própria de um corredor que se encontra em qualquer parte do mundo.
Após esse corredor está a cela em questão. O Shirase-san deve estar lá.
“Com licença.” Esta máquina bateu de leve na janela da sala do segurança principal. O
guarda em serviço estava sentado na escrivaninha. Ele tinha um corpo tão forte que fazia
pensar dele ter passado todos os testes de admissão da polícia apenas com seus
músculos.
A sala não parecia muito grande pelo que dava para ver pela janela. Dentro havia a
mesa, oito painéis de monitoramento e um computador. Na parede, as chaves das celas
penduradas.
Aqui, como todas as outras salas, tudo parecia esgotado de ter servido o seu propósito
à exaustão por causa do deficit orçamentário. A parede, o chão, os painéis e o guarda.
Esta máquina disse sorrindo:
"Vim transferir o criminoso da cela dezoito de crimes graves, Shirase Buichirou, como
ordenado.
Com os cotovelos na mesa, o guarda dirigiu apenas o olhar para esta máquina.
“Quem é você?”
“Esta máquina ── Não, eu sou o detetive Adam Frankenstein da EUROPOLE.” Esta
máquina tirou o distintivo de identificação (é verdadeiro) do bolso. “Eu vim sob ordens do
detetive Murase.”
O guarda olhou para ele zero impressionado, parecendo não ter pensado nada sobre
aquilo e disse com uma voz muito mais mecânica do que a minha:
“Qual o número de transferência?”
“Como?”
“O número de transferência.”
Seu tom era assertivo e rejeitador. Esta máquina girou a cabeça.
“Ahh, o número de transferência. Sim. O número de transferência. Claro, está falando do
número de transferência.”
“Não precisa repetir três vezes. E então?”
“O número de transferência é 21988126.” Esta máquina falou sorrindo.
O guarda checou o número em seu computador. Olhando de longe, esta máquina
infiltrou a rede da delegacia e obteve controle do servidor de e-mail usando o acesso
secreto que preparei enquanto estava na sala de interrogatório. Copiei um e-mail de
ordem de transporte antigo e reescrevi apenas o número de transferência. Assim que o
computador do guarda revelou o resultado da busca, o número alterado foi mostrado.
"21988126… Confirmado."
Sem suspeitar de nada, o guarda desativou o travamento da cela pelo painel de
controle.
“Obrigado. Tenha um bom dia.”
Sem ligar para os meus agradecimentos, ele apenas acenou com a mão como resposta.
Por isso que não dá para contar com os humanos. São imperfeitos. Uma máquina nunca
cairia num truque desses. Não consigo entender por que nos filmes em que as máquinas
tentam destruir a humanidade elas sempre são derrotadas.
Porém, graças à essa imperfeição pude prosseguir com o trabalho de hoje. Esta
máquina passou pela porta de ferro e foi em direção às celas.
O corredor para o bloco das celas lembrava um circuito elétrico. As portas e iluminação
continuavam regularmente como um padrão eletrônico e não havia nada além disso. O
design interior era composto apenas por duas cores, um verde bem claro e branco, além
de linhas em algumas partes das paredes para indicar a altura. Provavelmente aqui é o
lugar mais triste dessa delegacia.
Logo encontrei a cela que estava procurando.
“Número dezoito, transferência. Saia.”
O carcereiro que havia sido instruído assim disse em frente a porta da cela, a abrindo, e
depois foi embora. Shirase-san estava sentado num colchão. Quando ele me viu, ficou
surpreso.
“Você… estava com o Chuuya… Como chegou aqui?”
“Shirase-san, vamos embora.”
Shirase-san fez uma expressão de aborrecimento e desviou o olhar.
“Hnf, não.” Ele disse olhando para o chão. “Foi o grande senhor Chuuya que te mandou,
né? Mas sinto dizer que estou aqui por vontade própria.”
“Isso é mentira.” Esta máquina falou. “Detectei rugas no nariz e elevação do lábio
superior. Além disso, a ação de abaixar o olhar e a cabeça demonstram isolamento,
complexo de inferioridade e remorso. Em outras palavras, você está com medo.”
“E-Eu não estou com medo!” Ele gritou.
Vi de soslaio o carcereiro aguardando na entrada olhar para cá. Hmm, precisamos ir
embora antes que ele desconfie.
“Não temos tempo.” Disse perseverando. “Escutarei o quanto quiser qualquer queixa
que você tenha para mim ou para o Chuuya-sama depois que sairmos daqui e irmos para
um lugar seguro. O que você deve fazer agora é levantar e vir com esta máquina. Acho
que não é uma tarefa tão difícil para um humano.”
“Se eu disse que não, então é não.” Shirase-san falou cruzando os braços. Cruzar os
braços era uma típica ação de recusa. “Eu não vou com a tua cara. Nem com a cara
dessa situação. E as armas que eu juntei foram confiscadas! Por culpa de vocês, não foi?
Como vão me recompensar?!”
Não foi nossa culpa que as armas dele foram confiscadas. Mas não é hora para isso.
“Pra começar, por que eu tenho que ser envolvido na confusão de vocês? Eu não fiz
nada pra ser assassinado! Primeiro, peça desculpas, desculpas! Depois faça alguma
coisa sobre as minhas armas! Eu sou o rei do futuro, não moverei um dedo sem ser
respeitado!”
Esta máquina escutou serenamente o que ele dizia. Não havia lógica nenhuma em suas
reivindicações. Era possível destruir sua teoria detalhe por detalhe. Não sei quanto às
inteligências artificiais antigas, mas esta máquina é o mais novo modelo de computador
autônomo. Não ficarei refutando insistentemente algo desse nível. Sim, esta máquina
está completamente calma.
“Chega, Shirase-san.” Esta máquina assentiu sorrindo. “Você é livre em suas ações.
Para se fingir de forte, demandar desculpas, e acreditar que é um rei. Mas esta máquina
tem a mesma liberdade. Sendo assim, tenho a liberdade de te abandonar aqui e planejar
minha próxima estratégia enquanto vejo no jornal a notícia do seu assassinato nesta
cela. Tenho certeza que o próximo alvo será muito mais compreensivo do que você.”
Esta máquina verificou o seu feed interno. Estou imitando ativamente o módulo de
sentimentos irracionais. Isso está influenciando as minhas falas.
“Serei franco. Você tanto faz para esta máquina.” Esta máquina declarou. “Pelo
contrário, você é um humano perigoso até. Segundo meu módulo de avaliação de risco, a
probabilidade de sucesso da minha missão é maior se eu não te proteger e ir procurar o
próximo alvo. Então sabe por que não o faço?”
Rodei um autodiagnóstico no módulo de imitação de sentimentos. Em termos simples,
essa emoção seria '‘perder a paciência’'.
Diferente dos humanos imperfeitos, esta máquina é capaz de ignorar os comandos do
simulador e agir como bem quiser. Contudo não pretendo ignorar dessa vez.
“A razão para não te abandonar é uma. Você tanto faz para esta máquina, mas não é o
mesmo para o Chuuya-sama.”
“Pa-Para… o Chuuya?”
Por ter mudado a minha atitude de repente, o rosto do Shirase-san passou a
demonstrar medo.
“Por que o Chuuya quer me proteger?”
Recebi ordens para ficar calado, mas quero muito falar. Esta máquina decidiu obedecer
mais uma vez a tendência dessa emoção. Obedeça ao seu coração, como a Doutora diz.
"É simples. O Chuuya-sama entrou para a Máfia para proteger vocês ── as Ovelhas."
Shirase-san ficou confuso. Não conseguiu processar a informação provavelmente. Esta
máquina explicou.
Um ano atrás, as Ovelhas traíram o seu líder Chuuya e se juntaram com a organização
de mercenários SSG (Serviço de Segurança Gerhard). Porém, essa aliança só serviu para
instigar a organização inimiga Máfia do Porto. E antes que eles pudessem se fortalecer, a
Máfia despachou uma tropa de aniquilação. Quem comandava a tropa era o jovem
chamado Dazai.
Originalmente era para todas as Ovelhas serem mortas, porém o Chuuya-sama
suplicou ao Dazai para poupar a vida dos membros. A condição dada por Dazai foi que o
Chuuya-sama entrasse na Máfia. E ele aceitou.
Como resultado, as Ovelhas foram apenas dispersadas e ninguém morreu. Para que
eles não se reunissem novamente, cada um recebeu um novo endereço por todo o país. A
vida do Shirase-san também foi salva graças ao acordo do Chuuya-sama.
Esse acordo ainda está de pé. Chuuya-sama não pode fugir da Máfia. Porque se ele sair,
todos os meninos e meninas das Ovelhas serão mortos. Principalmente o Shirase-san
que foi mantido em Yokohama para ele se lembrar do que acontecerá em caso de traição.
“Ou seja, você é um refém.” Esta máquina disse calmamente. “Por outro lado, caso você
morra por algum motivo, as razões pelas quais o Chuuya-sama continua na Máfia
reduzirão em uma… Por isso o Verlaine está atrás de você. Essa é a nossa teoria.”
Shirase-san me escutava atentamente sem respirar. Provavelmente era a primeira vez
que ouvia isso.
“Eu não sabia… Ele, o Chuuya não entrou para a Máfia pelo mérito de ter nos vendido…?”
“Pelo contrário. Ele foi forçado a entrar.” Vaguei meu olhar pelo céu. “O Chuuya-sama
fez esse acordo logo depois de ter sido apunhalado pelas costas. Quem o apunhalou foi
── Claro que você se lembra, não?”
Sua expressão estava petrificada como se tivesse parado no tempo.
“Para esta máquina é impossível compreender o que é ser levado pelas emoções.” Esta
máquina disse honestamente. “O que esta máquina pode dizer é apenas uma opinião
geral. Mesmo traído, não pôde abandonar aquele quem um dia foi seu amigo. Esse é o
Chuuya-sama. Por isso ele ganhou o título de rei das Ovelhas, acredito. Você não é
alguém que possa ser um.”
Shirase-san gemeu com os dentes cerrados.
“Como é?! Eu… Merda, falando o que bem entende! Claro que pensa que eu sou apenas
um cara patético… Droga, o que alguém como você sabe sobre mim…”
A voz que não estava direcionada a esta máquina foi perdendo a força até se dispersar
no chão. Sem terem para onde ir, as emoções do Shirase-san apenas vagaram num
redemoinho.
Já esta máquina se sentia bastante aliviada. Refrescado. Despejar tudo que é
reclamação em alguém que não pode rebater é um ato extremamente maravilhoso.
Já que estava aliviado, encerrei o feedback do simulador de emoções. Agora que estava
de cabeça em ordem, falei com o Shirase-san novamente.
“Com isso, gostaria que entendesse o porquê sua vida corre perigo. Não é brincadeira
nem exagero, você só existe para ser morto. E ele é o maior assassino de todos. Se ficar
confinado nesse lugar vulnerável, ele te matará sem perder tempo.”
Enquanto falava, escaneei os batimentos e a respiração do Shirase-san. O valor de
suas emoções está mudando. É uma boa propensão.
“Bom, eu estou indo. Pode agir como quiser. Mas deixe-me dizer mais uma opinião
geral. Esta máquina não sabe quais são as condições para um humano se tornar rei, mas
sei as para não se tornar um ── Ser morto aqui por não ter dependido de ninguém.”
Depois de dizer isso, comecei a andar uniformemente sem me virar para trás. Porém
conseguia saber o que estava acontecendo atrás de mim pelo sonar de varredura.
Após alguns segundos, escutei os passos titubeantes vindo de fora da cela. Esta
máquina sorriu. Missão cumprida.
•••
Apenas o barulho do papel sendo dobrado ecoava pela sala de interrogatório. Dobrou o
documento ao meio e passou o dedo na dobra para achatar. Depois passou a unha mais
uma vez para afinar bem e abriu de novo. Agora com a linha de dobra ser formada, girou
o documento e dobrou mais uma vez.
Quem estava dobrando era o detetive de cabelo de algodão-doce e o que estava sendo
dobrado era o acordo de delação premiada. Chuuya olhava a cena, calado.
O detetive dobrava sem jeito até que finalmente completou seu avião de papel. Ele o
jogou na direção da lata de lixo de metal que havia no canto da sala. O avião voou até
ficar quase na vertical e então caiu bem mais à frente no chão.
“Você é péssimo nisso.” Chuuya zombou dele.
“Sendo que sempre entra.” O detetive disse coçando a cabeça. “Chuuya, vou sair um
pouco. Venha comigo.” E foi andando sem olhar para trás.
Chuuya ficou alguns segundos vendo as costas do homem indo embora, sem dizer
nada, até que levantou decidido e foi atrás.
A sala de interrogatório era adjacente ao escritório dos detetives que estava animado
como uma feira matinal. Várias pessoas passavam cumprimentando o detetive que
andava na frente de Chuuya.
“Oi, Mura-san. Conseguimos prender o homem que estuprou aquela mulher, graças ao
seu conselho.”
“Fico feliz. Eu não disse? Se um homem que se preocupa com a reputação como aquele
for atacado no trabalho, ele cai.”
Outro jovem detetive de terno novo passou dizendo:
“Senhor Murase. Foi excelente como resolveu o caso do estuprador.”
“Foi sorte. Mas com isso, a vítima poderá descansar em paz.”
Um pouco mais à frente, um detetive de cabelos escassos devido à idade falou:
“Mura-chan, vamos sair para beber! Dessa vez eu pago!”
“Ei, ei, só não vai beber demais de novo. Se você chegar tarde mais uma vez, vai ser
mandado para fazer trabalho interno.”
E assim as diversas pessoas dentro dessa delegacia cumprimentavam o detetive
Murase de forma íntima. Por causa disso, Chuuya que andava atrás dele, toda hora quase
topava com suas costas.
Querendo interromper os cumprimentos, o menino se pôs ao lado do detetive e disse
tirando sarro:
"É popular, hein."
O detetive deu de ombros.
“Diferente de você, o meu salário é baixo. Preciso ao menos compensar com a
popularidade. Não acha?”
“Talvez.” Chuuya sorriu levemente apenas com os olhos.
Enquanto andava ao lado do homem, uma certa frase que devia dizer ficava rolando em
sua boca. Até que uma hora se virou para o detetive e disse num tom sério:
“Hein, detetive. Eu não quero atrapalhar o seu trabalho, por isso vou dizer. Não se meta
mais comigo.” Não havia rejeição em sua voz, na verdade estava mais para uma
conversa confidencial entre amigos. “A Máfia do Porto e as Ovelhas são duas coisas
completamente diferentes. Mesmo que você me indicie, o advogado irá me inocentar em
um segundo. As provas desaparecerão do arquivo sem que percebam. As testemunhas
de repente ficarão mudas. Assim é a organização. Para ser sincero, o que você está
fazendo é uma completa perda de tempo.”
“Pode ser.” O homem, sem dar a mínima importância, logo respondeu. “Mas eu tenho as
minhas circunstâncias.”
“Que circunstâncias?”
Dando um suspiro, o detetive segurou a gola da própria camisa com a mente resoluta. E
então puxou uma fina corrente prateada de dentro.
Na ponta dessa corrente havia um cartucho vazio de bronze. O fio passava pelo centro
perfurado com algum instrumento.
"É algo que eu usei no meu antigo trabalho." O detetive olhava para o colar com
nostalgia. "Quando eu era mais novo e precisava de dinheiro, trabalhei como segurança
sob indicação do meu aniki para uma instituição militar relativamente pequena. Eu me
voluntariei para trabalhar ali porque pensei que era só ficar parado em pé e pronto, mas
não podia estar mais enganado.
“As ordens do chefe eram para não deixar ninguém se aproximar daquela instituição
militar que ficava perto de um assentamento. Mas no final da Grande Guerra, tudo que
era lugar estava com os recursos escassos. As crianças apareciam do nada e se
infiltraram para roubar comida.”
Ao dizer isso, o detetive franziu um pouco o rosto que pareceu se tornar uma pedra de
um deserto de milhares de anos.
“A ordem de atirar para matar veio.” O detetive forçou para a voz rouca sair. “A maioria
correu com medo. Mas as crianças que vieram a mando de uma organização seriam
mortas também se voltassem, então não podiam fugir. Por isso ──”
O detetive parou suas palavras. O final da frase flutuou subentendido pelo ar. Na palma
de sua mão, o cartucho vazio reluzia friamente.
Chuuya ficou um tempo calado sem saber o que dizer até que falou:
“Você só fez o que o trabalho pediu.”
“Tem razão. Mas não importa quantos anos passem, eu não consigo apagar o que fiz
da minha cabeça. Eram crianças da sua idade.”
O homem apertava o cartucho com ódio. Não importa a força que fizesse, o cartucho
sendo duro como era, não alterava a sua forma nem um milímetro.
“Chuuya. Não é pela justiça que eu te persigo. Nem um pouco.” O detetive disse com a
voz carregada por uma gélida dor. “As organizações criminosas não veem as crianças
como mais do que coletes à prova de balas descartáveis. Você também encontrará o
mesmo destino um dia. Antes que isso aconteça, volte para o mundo decente do dia. Eu e
a lei iremos te ajudar.”
Chuuya recebeu o olhar sincero de frente.
“Foi por causa disso que sempre me perseguiu, detetive?”
Chuuya disse com a voz calma. O homem o olhou de volta, calado. E assim ficou.
Porém, alguns segundos depois, o menino disse “Entendo,” e riu, como se fosse de si
mesmo.
“Esse tipo de simpatia, detetive,” a cor de seus olhos completamente escura, “deixe
para sentir por um humano.”
Nessa hora, um intenso alarme ecoou pela delegacia.
“Aqui é o departamento de segurança. Departamento de segurança. Há um intruso na
delegacia. Não se sabe se há feridos ou mortos. Todos os funcionários não armados
devem evacuar imediatamente. Todos os funcionários da segurança devem se equipar
imediatamente e ir para as posições designadas ──”
Cerrando os punhos, Chuuya grunhiu numa voz grave.
"…Ele chegou."
•••
O resgate do Shirase-san foi um sucesso. Agora a questão é como fugir sem
chamarmos a atenção.
Pensando nisso, quando esta máquina foi pôr a mão na porta de saída, a voz do
Shirase-san veio por detrás.
“Ei, você.”
Deduzi que ele estava falando comigo. Esta máquina se virou.
“Sim, o que foi?”
A expressão do Shirase-san era de perplexidade.
“O que aconteceu… com a sua perna esquerda?”
Esta máquina olhou para a própria perna. Do joelho para baixo, havia sumido
perfeitamente. Dentro da minha cabeça, o alarme de segurança máxima soou.
Quando estava quase caindo sem equilíbrio, consegui me apoiar colocando a mão na
parede.
"É difícil ser um investigador mecanizado."
A voz ecoou do final do corredor. Virei rapidamente meu corpo para lá.
“Mesmo que uma perna sua saia voando, você não pode tirar licença e nem tem direito
ao subsídio para poder se tratar. Sinto por você.”
A pessoa falava animadamente enquanto vinha andando e balançando a minha perna
esquerda como se fosse um bastão.
“Verlaine…!”
Essa é a pior hora possível. Ele chegou rápido demais. Os preparativos para contra-
atacá-lo ainda não estão prontos.
Convocarei o protocolo 1 de combate aumentando a velocidade de transmissão pelos
nervos elétricos e elevando a prioridade de execução do programa de análise da situação
de batalha ao máximo. Se não lutar, apenas serei destruído.
Quando estava recalculando em alta velocidade o equilíbrio para compensar o
agravamento dos problemas causados pela perna que perdi, Verlaine a atirou sem
nenhum aviso. Consegui desviar meu corpo superior da perma que veio voando em
velocidade subsônica. Ela penetrou a parede atrás de mim pela ponta do pé.
“O Chuuya não está aqui? Ai ai, ele se atrasa na hora mais importante.” Seu tom era leve
e descontraído. “Desse jeito, ele também vai se atrasar quando tiver o primeiro encontro.
Que coisa, me preocupo como seu irmão mais velho.”
Esta máquina não tem tempo para responder. Se for destruído aqui, o Shirase-san será
morto num instante. Para operar o mais rápido possível o protocolo de suporte que
maximiza a possibilidade de sobrevivência, não posso perder tempo pensando no que
responder.
Para afastar o Shirase-san daqui um pouco que seja, esta máquina pulou numa perna
só. Corri em direção a saída.
Porém Verlaine nos alcançou num instante. Agarrando o meu ombro, me atirou contra a
parede.
“Guah…!”
A parede quebrou e minha estrutura interna rangeu. Mas esse não era o fim de seu
ataque. Detectei uma distorção espacial no centro do meu corpo. A gravidade gerada
afundou o corpo desta máquina na parede. Era como enfiar o dedo profundamente num
pão de ló. A diferença era que o que estava sendo afundado era esta máquina e o local
em que eu estava afundando era uma parede dura de concreto.
“Não se preocupe, eu não vou te destruir. Fique comportado aqui.”
Esta máquina estava praticamente toda fincada na parede. O barulho do concreto
sendo quebrado reverberava por todo o meu corpo como um trovão. O alarme de peso
em excesso estava sendo disparado de todas as partes para o núcleo de computação
principal. Mas não há o que fazer. Se eu tentasse escapar, ele colocaria os destroços de
volta no lugar, soterrando todo o espaço pelo qual eu posso sair.
Esta máquina estava enterrada dentro da parede como uma casa soterrada por um
deslizamento. Apenas o meu rosto e parte do meu braço estavam para fora. O meu corpo
tentava criar uma força cinética para sair assim como uma mangueira apertada. Mas não
estava tendo resultado. Como meu corpo estava todo coberto por destroços, não
conseguia obter o impulso necessário para me libertar.
“Muito bem, Shirase-kun.”
Verlaine disse se virando para ele, perdendo o interesse nesta máquina enterrada viva.
“O… O quê?” Sua voz repleta de medo do fundo de seu coração.
“Eu vim porque queria te encontrar. Apesar de que como foi fácil demais chegar até
aqui, estou com um pouco de tempo sobrando. Vamos conversar um pouco antes de eu
realizar meu trabalho?”
“O que… O que você quer?!” A voz do Shirase-san tremia no seu máximo. Estava usando
todas as suas forças para se manter em pé. “Eu… Eu não sou o Shirase, sou outra
pessoa!”
“Você não me acabou de responder quando eu te chamei?” Verlaine inclinou a cabeça
como se estivesse confuso.
Ele andava elegantemente com suas pernas compridas, se aproximando do Shirase-
san.
“Não se aproxime dele!” Esta máquina gritou, o avisando.
Verlaine virou para cá, se divertindo.
“Então deveria me parar. Se tiver como, claro.”
Ele estava correto. Se tivesse como pará-lo, assim o faria. Esta máquina operou uma
estimativa. Fuga. Explosão. Telecomunicação. Procurei todos os procedimentos
disponíveis para mim. O resultado foi zero. Não há uma medida efetiva. É impossível sair
desse impasse.
Pensei em chamar o Chuuya-sama. Mas isso seria a maior tolice de todas. Justamente
porque sabíamos que não podíamos vencer enfrentando-o de frente, pensamos na tática
de emboscada.
No pior dos casos, esta máquina e o Chuuya-sama iríamos perder nossa capacidade de
combate aqui e não poderíamos cumprir nossa próxima armadilha. Verlaine ainda tem
dois alvos. Ainda há esperança.
“Bem, sente-se.” Verlaine disse para o Shirase-san.
Por causa do medo, ele não conseguiu reagir às palavras do outro. Apenas olhava para
ele, tremendo.
“Sente-se.”
Verlaine disse rispidamente, tocando em seu ombro. Shirase-san caiu para frente de
forma brusca, dobrando os joelhos. Ao mesmo tempo, a gravidade gerada das solas dos
pés de Verlaine quebrou o chão, que foi elevado modularmente e o aglomerado de
destroços se projetou como uma protuberância. O bumbum do Shirase-san caiu com um
baque em cima desses destroços. Ele não conseguiu nem gritar de tão surpreso.
“Shirase-kun, eu investiguei sobre você. Como as boas maneiras de um assassino
mandam.” Verlaine falava de forma polida. “Nessa cidade, você é quem conhece o
Chuuya há mais tempo. Queria perguntar, como o Chuuya era quando criança?”
Enquanto falava, Verlaine arrancou uma das portas casualmente. Como quem arranca a
casca de um machucado. Dobrou-a no meio e a colocou no chão igual à uma cadeira, se
inclinando na parte superior. Então cruzou as pernas de forma graciosa e sorriu para o
Shirase-san.
A Habilidade do Verlaine de fato não é ordinária. Não acredito que exista um Usuário
nesta cidade capaz de lidar com a Habilidade que fez os Cavaleiros da Torre do Relógio
de brinquedo.
Compus uma mensagem interna e enviei para o celular do Chuuya-sama. Expliquei a
situação atual e frisei bastante a única contramedida disponível. Para que não viesse.
Ele deveria deixar o local, deduzir quem era o próximo alvo e criar uma emboscada com
a cooperação da Máfia. Mesmo que fosse certo que o Shirase-san e esta máquina
iríamos morrer aqui.
O Shirase-san está tremendo. Provavelmente ele partilhava do mesmo pensamento
desta máquina. Esforçando-se para abrir a boca trêmula, ele falou:
“E-Eu…”
Sua respiração estava fraca, a voz parecia frágil ao ponto de quebrar. Não seria
estranho que ele vomitasse. Mas se ele não continuasse a falar, seria julgado como sem
utilidade e morto. Para estender sua vida um segundo que fosse, não havia outra
alternativa a não ser responder a pergunta. Não era uma cena boa de ver.
“Eu acho que a primeira vez que o encontrei… foi embaixo da ponte que nos
escondíamos para beber.” Enquanto falava, Shirase-san olhava para esta máquina
buscando ajuda. Os olhos me perguntando se esta máquina não conseguia fazer algo
para nos tirar dessa situação enquanto ele comprava tempo.
Impossível. Ninguém virá nos ajudar. Apenas esta máquina sabia que comprar tempo
era inútil.
“Ele… o Chuuya estava vestindo um uniforme militar que ele roubou em algum lugar.
Estava todo esfarrapado. Seu rosto e seu cabelo… estavam igualmente sujos e estava
descalço.” Shirase-san continuou com a voz trêmula. “Nós… os primeiros membros das
Ovelhas pensamos que ele era alguma criança de rua da redondeza. Naquele instante, ele
falou com a gente primeiro. 'O que é essa placa quadrada?'” Shirase-san abaixou a
cabeça. Ele estava tentando se lembrar do passado desesperadamente. “Eu… não entendi
nada e achei ele uma criança nojenta. Então ele falou novamente. 'Responde, o que é
essa placa quadrada na sua mão?'.”
Shirase-san levantou um pouco a cabeça olhando para longe sem direção.
“O que eu tinha na mão era um pedaço de pão.”
O corredor voltou a ficar em absoluto silêncio. Um silêncio estranho depois de tanta
destruição. Verlaine escutava calado.
"'O que é um pão?' O Chuuya perguntou. 'É de comer?' Quando eu respondi que sim e
comi um pedaço para mostrar, ele fez um movimento inesperado. Ele caiu. Como se a
gravidade tivesse sumido ao seu redor. Quando eu cheguei perto, eu percebi pela
primeira vez que ele estava esquelético ao ponto de morrer. Os meus companheiros
acharam desconfortante ficar perto dele, mas eu dei o pão e água. Depois disso eu
convenci os outros e o levei para nosso esconderijo no esgoto."
Esta máquina acessou o bando de dados externo. As Ovelhas no começo de sua
fundação era uma organização de cooperação mútua para proteger órfãos de adultos.
Sua base econômica era bem menor do que na sua época de ouro e é registrada como
uma espécie de refúgio organizado por crianças para protegerem umas às outras da
iminente violência, sequestros e trabalho infantil.
“Naquela época, as Ovelhas eram pequenas. Mas no final das contas, o recebemos
como nosso companheiro. Não podíamos abandonar uma criança passando fome.”
Quando ele levantou o rosto novamente, algo havia mudado nele. Continuava com
medo. Continuava tremendo. Mas em seu olhar, uma chama fria que não havia antes
queimava. Uma chama congelante de ódio. A mesma chama que um herbívoro mostra
rugindo para seu inimigo momentos antes de ser devorado.
“Você é irmão do Chuuya?” Sua voz era quase um grito. “Então por que vai me matar?
Naquela época não tinha mais ninguém além de nós para ajudar uma criança faminta! E
é assim que me agradece?”
Olhando serenamente para ele, Verlaine não respondia.
“Sim, eu entendo. É assim que o mundo funciona. É um mundo irracional onde eu vou
morrer por ter ajudado uma pessoa.” Shirase-san começou a tagarelar. “Vamos, ande
logo com isso. Se demorar mais ainda, o cadáver vai feder e eu não quero isso.”
Verlaine fechou e abriu os olhos. Então levantou e foi andando na direção do Shirase-
san.
O programa que avalia a situação calculou 168 futuros daqui em diante. E todos eles
indicaram que o Shirase-san morrerá em dez segundos. É inevitável. Irei ao menos
testemunhar o seu fim.
Verlaine aproximou a mão do pescoço dele. Shirase-san prendeu a respiração. Nessa
hora, a função de varredura desta máquina capturou uma mudança à longa distância. Era
a possibilidade 169. Uma possibilidade impossível.
“Como pode?” Esta máquina sussurrou sem pensar.

O chute do Chuuya mandou o Verlaine voando na horizontal.

A alta figura do Verlaine quebrou a parede do corredor passando para a parede do outro
lado e a quebrando também. Seu corpo saiu voando pelos corredores como o reflexo de
uma bola de sinuca até que se chocou contra a última parede e parou.
Verlaine foi se rastejando para fora dela lentamente e caiu para frente apoiando ambas
as mãos no chão. Chuuya-sama ficou na frente do Shirase-san, como se estivesse o
defendendo, e o encarou.
“Chuuya…!” Shirase-san gritou sem acreditar no que via.
“Te contar… Shirase, com isso são quantas vezes?” Chuuya-sama perguntou sem
paciência. “Você causa algum problema e eu venho correndo. Eu não sou sua babá.”
“Chuuya, por que você veio me salvar…”
“Salvar? Está enganado. Eu só vim acabar com aquele desgraçado de chapéu.”
Esta máquina gritou enquanto rodava um programa diagnóstico da situação.
“Chuuya-sama, você errou em vir para cá! Fuja, por favor! Você não pode vencê-lo de
frente!”
“O que foi, robozinho? Não é que você combina muito bem com a parede? Fica ai calado
e observe.”
Chuuya-sama sorriu, se virando na direção de Verlaine.
“Está atrasado, irmão.” O mais velho disse tirando a poeira do chapéu.
“Haha, eu sou um cara muito dócil que raramente se irrita, mas ser chamado de irmão
por você é difícil de engolir.”
Esta máquina inclinou a cabeça secretamente em sua mente. Dócil…?
“Pode ficar irritado o quanto quiser. Você tem os requerimentos.” Verlaine começou a
andar sem pressa na direção do Chuuya-sama. “Mas a falta de um plano não me admira.
Já esqueceu que você brincou comigo como bem quis há alguns dias?”
“Esqueci.” Chuuya-sama também foi em direção a ele como se estivesse passeando.
“Faça-me lembrar.”
Até que finalmente os dois estavam a uma distância em que era só esticar o braço para
tocar. Chuuya-sama olhou para Verlaine e Verlaine olhou para o Chuuya-sama.
Um momento de silêncio. Quem iniciou o ataque foi Verlaine.
A cabeça do Chuuya-sama absorveu um gancho de direita cortando o ar. Chuuya-sama
virou o rosto desviando do soco que veio a uma velocidade capaz de queimar o
ambiente. Quase no mesmo instante, o queixo de Verlaine foi atingido de lado.
“Gah.” O rosto de Verlaine virou com tudo.
Nem mesmo com a minha câmera ultrarrápida esta máquina conseguiu acompanhar o
que aconteceu. Somente analisando as imagens, finalmente pude confirmar. Ao mesmo
tempo que o Chuuya-sama desviou do soco, ele elevou a parte inferior do corpo e chutou
o rosto do Verlaine como um flash de luz. Um golpe perfeito visto de longe. Um humano
normal teria tido a cabeça arrancada provavelmente.
No intervalo em que esta máquina analisava as imagens, a tempestade de ataques não
parava. Chuuya-sama desviou a parte superior do corpo mais ainda e colocando a mão
no chão, lançou outro chute. O sapato perfurou a garganta de Verlaine, que gemeu.
Ele tentou agarrar o Chuuya-sama enquanto estava caindo para trás, estendendo sua
mão envolta pela gravidade. Mas por uma diferença de um fio de cabelo, Chuuya-sama
se esquivou e chutou novamente. Ele girou e deu mais um chute circular. Foram quatro
rajadas de chutes contra o adversário muito mais alto. Mais do que uma obra artística,
era divina.
Verlaine só conseguia gemer.
“O que foi? Você não é mais forte do que eu?!”
Verlaine evitou cair, apoiando o corpo com a gravidade e tentou agarrar o Chuuya-sama
mesmo sem conseguir vê-lo. Chuuya-sama desviou tranquilamente dos dedos
revestidos de uma gravidade que o mataria na hora se o tocasse. Alguns fios de cabelo
pegos, caíram.
Chuuya-sama rapidamente dissipou o braço com o cotovelo e alvejou seus olhos com
um punho vindo de trás. O rosto de Verlaine balançou como se fosse explodir.
Acertou com um chute baixo no joelho por trás, o fazendo dobrar. Chuuya-sama, que
agora estava atrás de Verlaine, fez com que ele caísse com o objetivo de acertar a parte
mais fraca do corpo humano, a cabeça. Um estrondo reverberou.
Enquanto gemia, Verlaine tentou agarrar o Chuuya-sama acima dele. Mas ele não
estava mais lá. Ele havia chutado o chão e tomado distância numa velocidade em que
Verlaine não conseguiu acompanhar.
“Ugh…”
Era uma visão inacreditável. O Rei Assassino Verlaine está apanhando. Nenhuma
autoridade europeia previu tal cena. Contudo, ao analisar a situação dos conflitos que
ocorreram até agora, esta máquina chegou ao motivo.
Antes, o Chuuya-sama usou a sua Habilidade principalmente para atacar. Por isso
somente havia conseguido ser repelido pelo Verlaine, que usa sua Habilidade
gravitacional um nível acima. Mas agora ele mudou sua tática. Mudou para uma postura
que aproveita o máximo de sua velocidade. Dessa forma, se torna um puro combate
corporal.
Ao atacar, Chuuya-sama pegou um dos destroços do chão e atirou em Verlaine.
Verlaine reagiu rapidamente e derrubou o destroço com as costas da mão. O pedaço saiu
voando. Aproveitando-se do ponto cego causado nesse momento, Chuuya-sama se
aproximou. Ele deu um intenso chute como o golpe de uma aríete, o que mandou Verlaine
voando junto aos braços levantados na defensiva por reflexo.
Verlaine colidiu com a parede de trás e finalmente parou. Os pequenos fragmentos dos
destroços pairavam no ar um pouco atrasados. Ele abaixou devagar os braços que
estavam levantados. Bem devagar.
Depois, limpou o sangue no canto de seu lábio. Provavelmente foi cortado nos chutes
consecutivos de agora há pouco. Verlaine observou atentamente o sangue em seu dedo
com olhos bastante interessados.
“Há quanto tempo…” Sua voz seca e rouca. “…que vejo meu próprio sangue."
“Que bom pra você. Então a partir de agora vou te mostrar ele até você enjoar.”
“Apenas essa sua acidez não perde para ninguém.” Verlaine riu. “Mas…” Ele tocou
suavemente na parede de trás. Seus dedos começaram a cavar o material da superfície
como uma colher pegando uma gelatina.
A expressão do Chuuya-sama mudou.
“Só dá para me surpreender com essa velocidade, não derrotar.”
Verlaine atirou os destroços na palma de sua mão como se fossem balas. Chuuya-
sama repeliu o aglomerado com a gravidade das mãos. Porém não terminou ai.
Os cascalhos vieram voando como atirados de uma metralhadora. Com a mão na
parede, Verlaine foi disparando horizontalmente.
Chuuya-sama estava derrubando a chuva de meteoros de detritos com as mãos. Mas
eram demais. Vinham rápido e não terminavam. Ele ficou só na defensiva.
“Merda!”
Chuuya-sama desviou do aglomerado voando ao seu encontro. O que veio em seguida
não eram balas de destroços. Era o braço de Verlaine.
O longo braço agarrou o peito do Chuuya-sama. As pontas dos pés se elevaram. O
choque foi correndo pelo corredor como se um meteorito tivesse caído. O corpo do
Chuuya-sama bateu contra a parede parecendo que havia sido na superfície d'água,
atravessou-a e saiu voando para fora da delegacia. Um poder descomunal.
O lado de fora era um estacionamento subterrâneo da delegacia e o Chuuya-sama foi
arremessado violentamente contra um dos carros, batendo de costas. O carro quebrou,
retrocedendo, e só parou depois de arrastar outros juntos.
Chuuya-sama caiu para frente e tudo ficou abruptamente em silêncio ao redor. O que
restou foi o barulho dos destroços desfazendo-se. Ao longe podia ser ouvido o alarme de
segurança. O carro destruído havia emitido o alarme do dispositivo de antirroubo. Em
cima dele, o gemido fino quase inaudível do Chuuya-sama caído.
“Ugh… u…”
A situação foi completamente invertida com o ataque do braço. A potência da
Habilidade de Verlaine era assustadora. Qualquer velocidade ou técnica não passam de
um truque barato diante da força do corpo fortificado de Verlaine pela pura Habilidade
gravitacional. Uma força temível.
Verlaine passou pelo buraco na parede e se aproximou de Chuuya-sama.
“Acorde, Chuuya. Sei que não está morto.” Verlaine disse ao seu lado. “Eu peguei leve,
afinal.” Dizendo sem reservas, Verlaine agarrou o Chuuya-sama pelo pescoço e o ergueu.
“Me… solta…”
“Me faz soltar.”
A mão de Verlaine que o segurava começou a ondular. Detecção de flutuação no índice
de refração atmosférica devido à radiação de calor. Isso é mal.
“Chuuya-sama! Fuja!”
Esta máquina aumentou a potência dos atuadores das juntas em várias partes do
corpo. Cada junta emitiu uma oscilação ao mesmo tempo que esta máquina explorava a
frequência de ressonância dos destroços me envolvendo. Em cada um deles há uma
frequência que amplifica sua vibração. Se passar esta frequência de vibração para o
motor interno, deve dar para ir destruindo os destroços aos poucos.
Mas não há muito tempo. A cabeça do Chuuya-sama está transmitindo ondas
gravitacionais. Uma quantidade de calor absurda está emergindo de um inferno invisível.
“Controle a você mesmo. Controle a Habilidade.” As frias palavras de Verlaine ecoavam.
Chuuya-sama gritou. Chamas negras jorraram de sua boca junto ao grito. A pior
situação possível.
Assim como no outro dia, se um buraco negro fosse gerado pelo Arahabaki, toda a
delegacia seria comprimida num tamanho menor que um dedo e desapareceria. Levando
o Shirase-san e esta máquina juntos.
“O que foi, Chuuya? Deste jeito, todos morrerão. Você irá matá-los. A sua imaturidade
irá. E depois não restará mais nada. Vamos testar?”
Nessa hora ── dois tiros. Um buraco foi aberto no braço de Verlaine.
“Chuuya! Você está bem?!”
Alguém gritou do fundo do estacionamento. No momento em que o poder do braço de
Verlaine afrouxou, Chuuya-sama chutou o peito dele e se livrou da restrição. Saiu rolando
com a respiração ofegante.
Quem veio correndo em sua direção foi o detetive da sala de interrogatório. Murase, se
não me engano. A fumaça de pólvora ainda subia do revólver em sua mão.
Tossindo sem parar, Chuuya-sama encarou severamente o detetive.
“Detetive… Por que você veio?! Saia daqui!”
Verlaine olhou curioso para o buraco em seu braço causado pela bala e depois para o
detetive, dizendo, “Finalmente veio.” Foi uma fala estranha.
Verlaine se virou para o Chuuya-sama. Os raios de alta energia e as ondas
gravitacionais desapareceram. Chuuya-sama ficou a postos.
“Chuuya. Acho que nem preciso te dizer, mas os fracos não conseguem nada. Se você
lutar como está, perderá e as chamas do Arahabaki engolirão esse lugar. Centenas de
pessoas morrerão novamente.”
Essa fala não era uma ameaça nem uma intimidação. Sua voz estava completamente
tranquila e sem emoção. Ele apenas relatava o que aconteceria daqui para frente.
“Não vou deixar.” Chuuya-sama disse grunhindo.
“Sim. Não vai.” Verlaine disse algo inesperado. “Sabe por quê?”
Antes que Chuuya-sama pudesse responder, Verlaine voou. Ele cancelou sua própria
gravidade e pousou de ponta cabeça no teto da garagem. Voando novamente, ele parou
num ponto atrás do Chuuya-sama.
“Com isso, o trabalho de hoje termina aqui.”
Verlaine estava agarrando o pescoço do detetive.
“Pare!” Chuuya-sama correu.
A boca do detetive abriu tentando proferir algo. Mas as palavras não foram geradas.
Sua boca deu meia volta junto a um som abafado, sendo virada para o lado das costas. O
corpo do detetive atraído pela força do pescoço sendo girado, virou junto. E caiu.
“Merda!” Chuuya-sama acelerou.
A expressão dele abraçando o corpo do detetive era de quem havia compreendido tudo.
Detectei os batimentos com o scanner de longa distância ── Sem batimentos. Foi morte
instantânea.
“Malditoooooooo!”
Chuuya-sama pulou junto com o grito. Seu punho direito elevado acertou Verlaine.
Assim que Verlaine o recebeu com ambas as palmas das mãos, houve uma violenta
explosão de luz negra. Os grávitons liberados foram propagados em ondas
gravitacionais ao redor, deformando a paisagem numa esfera.
A onda de choque gravitacional que se expandiu mandou os carros voando como se
fossem feitos de papéis. Sem se opor a ela, Verlaine voou para trás com o impacto e
aterrissou na saída do estacionamento.
“O soco de agora foi o melhor.”
Rindo, ele deu um salto para trás, desaparecendo da saída.
“Espere!”
Chuuya-sama foi atrás, deixando a delegacia. É perigoso. Ele não deve lutar com
Verlaine sozinho.
Esta máquina regulou as vibrações e foi destruindo os detritos. Consegui colocar o meu
braço direito inteiro para fora da parede. Bati nos destroços com o cotovelo, me
desprendendo aos poucos. 144 segundos depois, esta máquina se libertou. Pulei
apressado numa só perna até o detetive.
Ele estava caído de lado e sangrando pela boca. O resultado da minha exploração foi
dano da C2 até a C6 nas vértebras cervicais. Parada cardíaca. Sem reflexo nas pupilas.
Chamei uma ambulância por transmissão interna, mas era evidente que já não
adiantava mais. A preservação da vida humana se mantêm num equilíbrio muito
delicado. Diferente desta máquina, os humanos não têm o conceito de existência em
partes. Eles são construídos por um sistema extremamente dinâmico com dois órgãos
não redundantes, o cérebro e o coração. Se um deles para, é praticamente impossível
reativar. É impossível também repor as partes danificadas. Ou seja, os humanos são
extremamente fáceis de morrer.
Quando esta máquina o estava virando para escanear de frente, vi algo conhecido caído
no chão. Uma cruz de bétula prateada. Provavelmente o Verlaine que deixou.
Quando eu a estava escaneando, o Chuuya-sama voltou.
“Para onde o Verlaine foi?”
“Desapareceu pro céu.” Chuuya-sama disse infeliz, apontando para cima.
Provavelmente ele fugiu voando com a gravidade.
“Aqui também.” Esta máquina disse segurando o corpo do detetive. “Desapareceu pro
céu. Em termos poéticos.”
Esta máquina fechou os olhos do detetive que passou a ter o rosto de um morto.
“Droga!” Chuuya-sama gritou, batendo no peito do detetive. “Você não ia me prender?!
Ei, detetive! Você não ia me levar para o mundo do dia?!”
Ao que o Chuuya-sama bateu em seu peito, algo deslizou do bolso do sobretudo e caiu
no chão. Era um antigo celular dobrável azul. Um modelo familiar. Era exatamente o
mesmo modelo que o fornecedor arranjou para Verlaine.
Esta máquina o pegou e mostrou para o Chuuya-sama. Quando ele entendeu o que era,
deu um grito que não se tornou voz do fundo de seus dentes cerrados.
O Rei Assassino Verlaine. O seu alvo principal nunca foi o Shirase-san.
Então… por quê? Por que ele tinha que matar o detetive?
CODE;03
Eu quero ver o Chuuya sofrendo como um humano

Qual poeta de qual época um dia falou que o azul do céu era uma cor triste?
Nesse dia, o céu de Yokohama estava completamente coberto pelo triste azul. O
barulho do tráfego, dos trens e a agitação da cidade eram todos sugados pela cor.
Chuuya-sama estava sentado bem no meio do céu azul, no centro do prédio mais alto
de Yokohama. Ele estava num lugar onde a irregularidade do edifício se fazia levemente
presente.
Um lugar em que se ele se inclinasse alguns centímetros para frente sem segurar em
nenhum corrimão ou estar amarrado por uma corda de segurança, cairia direto para o
distante chão.
Há algumas jardas de distância, esta máquina não conseguia observar sua expressão.
Sem fazer o menor movimento sequer enquanto soprado pelo vento, Chuuya-sama
olhava o céu na mesma altura de sua visão. Ele estava assim há horas.
Esta máquina o estava olhando. Como ele não atendia o celular nem me ouvia gritando
daqui debaixo, não tinha como contatá-lo.
“O que ele tá fazendo?” Perguntou Shirase-san ao meu lado.
“Provavelmente, ele não quer conversar.” Esta máquina respondeu olhando para cima.
Chuuya-sama deve estar pensando o seguinte ── O detetive foi morto por nossa
causa.
Depois do incidente na delegacia, nós examinamos as provas mais uma vez. O celular
azul arranjado pelo fornecedor de Verlaine era o mesmo modelo do detetive Murase. Um
modelo antigo com documentos de seis anos atrás preservados no histórico, mas o seu
número de série era de um modelo novo fabricado há meio ano.
A sua pintura externa já estava bastante desgastada, se passando bem como um
modelo antigo, porém, pelo resultado da avaliação de idade, a deterioração foi provocada
por quedas e por arranhados recentes de unhas.
Por outro lado, confirmei que a lista telefônica e o histórico de chamadas pertenciam ao
detetive. Ouvi também dos outros detetives que ele tinha uma ligação afetiva com o
celular azul por muito tempo. Ou seja, alguém trocou os celulares. Uma imitação perfeita
que nem mesmo ele percebeu.
Por qual motivo?
Mais uma coisa. Há vestígios de algum programa ter se autodeletado. Essa é apenas
uma conjectura, mas o Verlaine provavelmente quis grampear a ligação do detetive com
alguém. Por isso ele trocou os telefones e esperou o detetive ligar.
Se o programa se deletou, significa que ele conseguiu interceptar o que queria. E depois
que ele já tinha servido ao seu propósito, o detetive foi morto.
Era uma morte que dava para ser impedida se tivéssemos prestado mais atenção nos
celulares arranjados pelo fornecedor. Ou se tivéssemos achado estranho o Verlaine ficar
conversando, como se comprando tempo, em vez de matar logo o Shirase-san. Dessa
forma, talvez ele não tivesse morrido.
Porém não posso ficar esgotando os meus recursos de pensamento agora que acabou.
Verlaine já deve estar se aproximando de seu próximo alvo. E a pista deixada pelo
detetive será um guia para alcançá-lo.
“Haah, sério, achei que fosse morrer.” Shirase-san disse fazendo cara de preocupado
propositalmente.
“Ser perseguido por um monstro daqueles nem se compara as dificuldades de uma
pessoa comum para o homem que pretende ser o rei do futuro. Eles nunca
conseguiriam.”
“Haa.”
Parecia feliz pelo que falei. Por isso que o circuito de emoções dos humanos só
atrapalha.
“Por sinal, Shirase-san. Por que ainda está aqui?”
“Hã? Não é óbvio?! Estou sendo perseguido por aquele monstro! Por culpa de vocês! É
claro que vão assumir a responsabilidade e me proteger! Eu não vou largar de vocês nem
a pau!”
Esta máquina tentou deduzir logicamente o que ele quis dizer.
“Mas você não era o alvo dele e sim o detetive…”
“Não tem mais dois alvos ainda? Onde que você me garante que eu não sou o
próximo?!”
Isso seria um sofisma, será? Mesmo assim, uma teoria é uma teoria. De fato, não
sabemos a identidade dos dois próximos alvos. Não posso deixá-lo no porta-malas do
carro pela possibilidade dele ser um dos.
“Que cara é essa? Não se preocupe! Você está comigo, aquele que era o cérebro
principal das Ovelhas, então não tem erro! Logo vou encontrar o outro alvo!”
Comecei a calcular a probabilidade do Shirase-san não ser o cérebro e sim de não
servir pra mais nada além de seu cérebro, mas parei. Não quero saber.
Bem nessa hora recebi a notificação do término do cálculo que eu deixei correndo em
plano de fundo.
“Hmm. Interessante.”
Cruzei os braços enquanto via os vídeos no meu painel de informações.
“O que foi? O que tá olhando?”
Shirase-san se inclinou tentando ver o que havia na minha frente, mas era apenas por
cima do meu campo de visão, então é claro que só esta máquina via.
“O histórico de mensagens do celular do detetive.”
“Ué? Não tinha sido apagado?”
“Sim, mas o histórico das transmissões foi salvo. Por ele, consegui essas mensagens
de áudio.”
Esta máquina reproduziu o som analisado pelos alto-falantes da minha garganta.
Primeiro, ruído. O barulho de descompressão que aparece quando um som que foi
codificado é restaurado. Mas, gradualmente, esse sim vai ficando limpo.
“Sou eu, irmão.” É a voz do detetive Murase. O barulho de sua respiração está
misturado por falar de um telefone. “O manipulador de gravidade veio assim como você
disse. Tem mais um! Quem é ele? Qual a sua relação com o Chuuya?! Me ligue assim que
ouvir essa mensagem!”
A reprodução terminou aí. Shirase-san inclinou a cabeça.
“O que foi isso?”
“Foi um pouco depois do Verlaine ter invadido a delegacia. Essa é a gravação do recado
que o detetive Murase deixou numa secretária eletrônica enquanto o caos se instalava.
Tentei ligar para o mesmo número, mas já foi suspenso.”
“Hmm.” Shirase-san não parecia convencido. “Aquele detetive ligou para o irmão. E
daí?”
“É estranho." Esta máquina declarou. “Segundo os registros, o irmão dele já está
morto.”
“Hah?”
“Espiei o relatório sobre o detetive na seção de inquérito da polícia.” Disse enquanto
puxava as informações do feed. “Pelo que consta no relatório, seu irmão era um
pesquisador civil que trabalhava num instituto tecnológico militar. Porém… Em abril de
quatorze anos atrás, ele morreu num acidente durante um estudo científico. O nome dele
é mantido em segredo e nos registros só aparece como N. Também não há nenhuma
foto em lugar algum.”
“N, é?” Shirase-san franziu o rosto achando tudo muito suspeito.
“No registro familiar ele só tem um irmão. É estranho. Será que ele chamava
figurativamente outra pessoa com quem tinha intimidade de ‘irmão’?”
“Acho que não.”
Uma voz veio por trás de repente.
“Não me assusta assim, Chuuya!”
Chuuya-sama havia descido atrás de nós sem percebermos. Ignorando a reclamação
do Shirase-san, ele continuou.
“O detetive disse que no passado ele trabalhou como segurança do exército graças à
indicação do irmão. Se foi no final da guerra, então foi há uns nove anos. Ou seja, em
abril de quatorze anos atrás o irmão não estava morto. Ele foi dado como morto apenas
no registro.”
“Então… o exército manipulou a informação?”
Chuuya-sama assentiu.
“Sim. Para terem apagado até seu nome e fotos é uma pessoa que morreu para o
público. Um fantasma que ninguém iria procurar. O exército queria alguém assim.”
“Se for o caso, por qual motivo?”
“Já dá pra imaginar se chegamos até aqui.”
Chuuya-sama nos olhou com olhos penetrantes e disse:
“O irmão dele ── só podia estar pesquisando o Arahabaki.”
Tamanha a minha surpresa, todas as minhas operações foram interrompidas por 0.02
segundos. O N foi quem criou o Arahabaki…?
“O Arahabaki era um super segredo de Estado que espiões de outro país vieram tentar
roubar, certo? Então é claro que seria um problema se a localização e histórico pessoal
dos envolvidos vazassem. Por isso que qualquer informação sobre o N foi enterrada com
ele. …Não é plausível?”
Computando, esta máquina falou:
“Todos os pesquisadores sumiram junto com o laboratório na explosão causada pelo
Arahabaki. Então esse N é um sobrevivente?”
“Sim. Provavelmente, o único. Por isso o Verlaine está atrás dele.” Chuuya-sama
assentiu. “Seu nome é desconhecido. Sua localização também. Não tem como contatá-
lo. O único que conseguia se comunicar com ele era--”
“O seu irmão, o detetive…”
Shirase-san se intrometeu na conversa subitamente.
“Não, não, não, não, tem algo errado.”
Esta máquina se virou para ele.
“O quê?”
“Olha só, por culpa de vocês terem me feito passar esse perrengue todo, nem se eu
quisesse esquecer eu conseguiria.” Colocando a mão na cintura, ele disse de maneira
arrogante. "'O Verlaine irá matar todos aqueles que fazem o Chuuya querer ficar no
Japão.' Foi o que vocês disseram! Por isso eu tava morrendo de medo. Não, não tava
com medo. Entendem o que eu quero dizer?!"
O objetivo do Verlaine era levar o Chuuya-sama embora. Isso é fato. Sendo assim…
“O N… tem alguma informação que faça o Chuuya-sama querer ficar no país? Por isso,
Verlaine matou o detetive… e agora será o próprio N.”
Por algum motivo que não sabemos, o assassinato do pesquisador N é prioridade para
Verlaine. Não há erro. Isso leva a uma dúvida inevitável.
“Se é assim, o que o N sabe?”
Chuuya-sama deu de ombros.
“Sei lá. Se nós acharmos ele e o fizermos falar, descobriremos.”
“Peraí, peraí, eu não quero não! Não decida por conta própria!” Shirase-san gritou. “O
Verlaine também não está procurando esse pesquisador? Eu não quero cruzar caminho
com ele de novo! Me levem para algum lugar seguro e fiquem me protegendo!”
Chuuya-sama ficou observando o Shirase-san esperniar por uns dez segundos. E deu
um longo suspiro.
“Cê tá me olhando assim por quê?!”
“Nada não… Se eu falar vai ser um porre.” Disse desviando o olhar.
Shirase-san abriu a boca querendo dizer algo, mas antes que virasse um problema, o
interrompi.
“Infelizmente, faz sentido o que o Shirase-san falou. Verlaine está muito à frente de nós
na busca pelo N. Além do que, sendo um ex-espião, ele provavelmente já sabe onde o N
está. Se formos atrás do N, mesmo que o encontremos, será apenas o seu corpo e o
Verlaine a postos ao seu lado ── a probabilidade dessa conclusão é bem alta.”
“Não será assim.”
Alguém falou de repente. Era uma voz desconhecida. A voz de um adulto. Quando me
virei, o seu dono não estava em lugar nenhum.
Estranho. Olhei em todo ao redor procurando por essa pessoa.
“Onde você está procurando? Estou aqui.”
De novo a mesma voz. Onde que…
“Ei, você…”
Shirase-san me olhou de forma estranha. Era como se tivesse visto um fantasma.
Então entendi. Era esta máquina quem estava falando.
“Você deixou tantas pegadas no terminal militar que eu te segui.” Minha boca se mexia
reproduzindo a voz de um desconhecido. “Nós dois temos bastante segredos. Gostaria
que me desculpasse pela pequena grosseria.”
Rapidamente eu rodei um diagnóstico. Alguém invadiu o meu feed. Que nojo!
Por sorte esta máquina não tem nenhum código perigoso que modifique o sistema nem
um código destrutivo que me faça agir descontrolado. Mas é muito desagradável. Vou
cortar logo essa conexão.
“Espere, não corte.”
Prevendo o que esta máquina faria, Chuuya-sama suspendeu a mão, me parando. E
perguntou:
“Quem é você?”
“Alguém que quer a ajuda de vocês.” Minha boca se mexia por conta própria. “E alguém
que também lhes ajudará. Vocês estavam me chamando de N.”
“Você é o N, então. Poupou viagem.” Chuuya-sama riu com o nariz apenas. “Mas o que
pretende entrando em contato assim do nada? Pensei que não gostasse de aparecer na
frente dos outros.”
“As coisas mudaram. Vocês também sabem.” Esta máquina continuava a falar sem
parar com a voz desconhecida. Cada vez mais insuportável.
“Desse jeito, eu serei morto pelo melhor assassino do mundo. Para que eu, aquele
quem sabe sobre toda a verdade, seja coberto pela escuridão antes que possa contar a
vocês. Por outro lado, se eu contar a verdade antes, não precisarei ser morto.”
Jurando que arrancaria a minha própria língua se ele falasse mais dez segundos, N
felizmente disse:
“Não posso falar mais aqui. Quero que venham me encontrar. Vou deixar o endereço no
histórico desse rapaz.”
Chuuya-sama perguntou rapidamente:
“Ei, espere. Quer que te encontremos? O que você sabe?”
“Tudo, Chuuya-kun. Tudo sobre você.” A voz disse indiferente e tranquila. “Estou
ansioso pelo nosso encontro.”
A conexão foi interrompida. Esta máquina ficou aliviada. Porém não posso dizer o
mesmo de Chuuya-sama.

•••
O carro que esta máquina dirigia corria chacoalhando por uma estrada não
pavimentada, até que parei próximo ao nosso destino.
Era uma estrada do interior. Seguindo as instruções do homem chamado N ── o
insolente que invadiu a minha boca ── nós viemos para o meio das montanhas.
Os carvalhos e castanheiras de folhas largas e perenes formavam um telhado natural.
Por causa da chuva de agora há pouco, a estrada desnivelada estava coberta de lama.
Não havia a presença de ninguém por perto, mas pelo meu escâner, sabia que os
inúmeros insetos pequeninos nos olhavam.
Peguei uma fruta que estava caída no chão e depois de limpá-la com a mão, dei uma
grande mordida. Vendo isso, "uwa…" Chuuya-sama disse prolongando a voz.
Enquanto andávamos, Shirase-san falou por detrás:
“Eu sou contra. Sou muito contra. Vamos voltar, é evidente que não tem nada aqui.”
Depois de ouvir essas mesmas palavras não sei quantas vezes, esta máquina virou.
“Minhas pernas tão cansadas, já deu pra mim. Não quero mais andar. Hein, cavalheiro
inglês de lata, me carrega?”
Esta máquina e Chuuya-sama nos olhamos.
“Pode voltar sozinho, Shirase.” Chuuya-sama disse provocando-o.
“Voltar? De jeito nenhum! É obrigação dos dois me protegerem! Não saio de perto de
vocês nem a pau!”
Chuuya-sama voltou a olhar para frente com uma expressão cansada, coçando a
cabeça.
“Te contar… a bagagem que fomos arranjar.”
“Hah? Ei, ei, Chuuya. Tem certeza que pode falar assim? Quem você acha que eu sou?
Eu te ajudei quando você não tinha nenhuma memória ou lugar para viver. Sou seu
salvador.” Ao dizer isso, ele ficou levantando e abaixando as sobrancelhas
habilidosamente.
Não dá para descrever perfeitamente a expressão do Chuuya-sama nessa hora. Se
fosse fazer uma comparação, seria 'se eu tivesse um martelo mandaria a cabeça dele
voando, mas como não tenho, não quero socá-lo com as minhas próprias mãos.'
Era uma expressão tão marcante que eu a filmei e guardei sob o rótulo de preferências
no meu armazenamento interno.
Chuuya-sama suspirou.
“Já entendi. Pode vir, mas fica um pouco calado.”
“Viu só? Eu sempre ganho num argumento contra o Chuuya. Por isso sou o rei!”
“Vou te mandar voando…” Ouvi o Chuuya-sama sussurrando.
Na verdade, achei muito interessante o Chuuya-sama, sendo um gênio de uma
organização criminosa, ter dito de uma maneira que o outro não ouvisse.
No meio dessa conversa, chegamos ao lugar de nosso destino.
"É aqui."
Era uma cabana. Uma construção de madeira deixada na montanha como depósito de
ferramentas de caça e plantação. Se é que dava para chamar isso de construção.
Metade das paredes estava podre e solta, dando para ver praticamente todo o interior
por fora. Só restava a estrutura do teto de palha devido às longas chuvas e ao vento. As
colunas suportando a cabana estavam pretas ao ponto de parecer que eram as mesmas
usadas na Idade da Pedra e repletas de buracos feitos por traças.
Dentro, havia um carrinho de mão com uma só roda e cestos com a malha desfeita. Por
todo o lugar, sacos de fertilizantes rasgados deixavam o conteúdo espalhado para fora.
“Que lugar é esse?” Shirase-san disse assustado. “Uma ruína?”
“Não, com certeza é aqui.”
Esta máquina tirou uma machadinha que estava pendurada na parede. O cabo estava
apodrecido e entortado pela metade. Após escanear o interior da cabana, finquei a
machadinha na fenda de uma das tábuas do chão. Derrubei o instrumento, provocando
som de metal caindo. O chão começou a se abrir na diagonal.
“Uwoo!”
O chão afundou como uma ladeira, permanecendo apenas as paredes em pé. A
paisagem da trilha desapareceu sobre nós e, em seu lugar, uma parede de concreto preta
surgiu diante de nossos olhos. O chão da cabana era um elevador conectado ao subsolo.
Nas paredes, havia luzes de emergência vermelhas fixadas em intervalos regulares para
iluminar as hastes do elevador. Elas iluminavam nossos perfis num ritmo constante.
“Que legal.” Um sorriso infantil foi aparecendo lentamente no rosto surpreso do
Shirase-san. “Parece que estamos numa aventura.”
Entendo. Isso é uma aventura.
Aventuras são um padrão do cinema. Ouvi dizer que estimulam o coração de qualquer
um. Pulando com o punho para cima, esta máquina gritou “Yahooo!”
Não estou adquirindo mais e mais traços humanos? Chuuya-sama olhou esta máquina
pulante com olhos entediados.

•••
O grande motor parou e nós descemos do elevador.
Um corredor escuro estava à nossa frente. Havia faixas amarelas e pretas desenhadas
nas cinzas paredes para chamar atenção e prevenir impacto. Nós fomos avançando em
paralelo com essas linhas que pareciam nos convidar para a escuridão.
Algumas luzes de atenção sob nossos pés iluminavam nossos rostos. Para prevenir,
joguei um pino de sinal mais adiante, e alguns segundos depois, o sistema da instalação
respondeu. Pelo jeito estávamos no caminho certo.
O corredor dobrou para a direita e após passarmos por debaixo de uma parede antifogo
de duas camadas, saímos num espaço grande como um salão.
No fundo do espaço do tamanho de uma quadra de tênis, havia uma gigante barreira de
prevenção a incêndio e crime e diante dela, uma pequena cabine de segurança. Do lado
de fora, dois soldados armados olhavam para cá.
Eles não conseguiam ver nada. Nossa expressão, nossa aparência, nada. E também não
julgavam nada sobre nós. O que estava diante de seus olhos era a imagem de três
suspeitos apenas.
“Parem.”
O soldado mais próximo declarou com uma voz inumana. Chuuya-sama estava parado
na frente de sua arma e como se ela não existisse, disse mais calmo do que nunca:
“Nós temos hora marcada. Saiam da nossa frente.”
O soldado olhou para o outro segurança atrás dele na cabine, que deu uma leve
assentida.
“Eu sei. Mas aqui é uma instalação secreta bem importante. Precisamos fazer uma
revista e exame de sangue em vocês antes.”
“Exame de sangue?” Chuuya-sama levantou a sobrancelha. “Pra quê?”
“Vocês não sabem que lugar é este?” Ele deu um suspiro de desdenho. “Pobres
coitados.”
“Como é que é?! Quem você pensa que eu… Ugh”
“Todo mundo sabe muito bem quem você é. Por isso é melhor ficar calado.” Esta
máquina tapou a boca do Shirase-san que pretendia retrucar.
Nós aceitamos ser revistados e fazer o exame.
O soldado preparou o kit de coleta e colocou a agulha no pulso do Chuuya-sama. Sem
dizer nada, ele teve seu sangue recolhido.
Ouviu-se o barulho de ar comprimido sendo liberado e o sangue foi tirado. Sua
expressão não mudou.
O mesmo foi feito com o Shirase-san.
“Ai! Tá doendo! Vão à merda! Se ia doer deviam avisar antes!” Ele fez um escândalo.
O próximo pulso foi o desta máquina.
Som de ar sendo comprimido. A agulha quebrou.
“…"
Os soldados se olharam. Esta máquina ficou calada. O soldado segurando a agulha
também.
Ele espetou minha perna, pescoço, cintura, todos os lugares do meu corpo. Todas
quebraram.
Eles começaram a se agitar na frente da cabine.
“Traz uma faca!”
“Tinha uma serra ai!”
Cada vez mais o número de pessoas aumentava. Todos os soldados tentaram e todos
fracassaram.
Eles me olhavam exaustos, respirando pesado. Em pé sem falar nada, esta máquina
esperava ter meu sangue recolhido.
Um silêncio misterioso.
Esta máquina esticou a articulação interna da cabeça até poder ser vista. Então andei
balançando a cabeça para frente e para trás.
“Um pombo.”
“Uwaaaaaaaa!” Eles recuaram.
“Não atormente eles!” Chuuya-sama bateu atrás da minha cabeça.
No final, após entrarem em contato com o escritório de segurança, eles decidiram
exonerar esta máquina do exame de sangue.

•••
Guiados por um dos soldados, nós avançamos na instalação.
Em seu interior não havia nada que merecesse ser mencionado. Apenas um corredor
branco e em ambos os lados, doze portas não numeradas.
Quando ele virava, existia outro corredor com mais doze portas de ambos os lados.
Mas não era surpresa. Era um layout planejado para um invasor ter dificuldade em achar
o que queria. Os corredores viraram bastante para no caso de uma luta, ele não poder
seguir direto para o interior.
Isso significa que aqui é uma instalação secreta cheia de coisas que se roubadas, seria
um problema.
Ao controlar um terminal no final do corredor, uma partição abriu onde parecia ser uma
parede normal e nós pudemos avançar ainda mais (só que eu já sabia que havia um
espaço dentro por causa do escâner).
A sala era a divisão dos pesquisadores. Um lugar bem amplo.
De repente, a densidade populacional aumentou. Pesquisadores de jalecos brancos
andavam ocupados de um canto para o outro. Alguns discutiam com seus colegas;
outros esfregavam os olhos sonolentos; outros limpavam rapidamente o café derramado
na roupa. Era claro que estavam acordados direto há três dias.
Militares, policiais e organizações criminosas possuem suas peculiaridades pelo
mundo, mas laboratórios são os mesmos em qualquer lugar. Não havia muita diferença
desse para os da Inglaterra.
Como a maioria morava aqui, eles tinham um ar relaxado, não ligando muito para o
ambiente.
Enquanto observávamos a cena, o soldado nos apressou apontando a arma por detrás.
“Não parem. Não fiquem olhando. Aqueles que se interessam pelo que tem aqui, não
são convidados.”
“Ah é, é? Tá se achando tanto…” Shirase-san ficou resmungando.
Esta máquina coletou informações com cautela. Consegui determinar algumas coisas.
Aqui é um laboratório militar construído desde a Grande Guerra e especializado em
Habilidades pelo o que confirmei analisando o conteúdo das conversas dessas pessoas.
Queria obter mais informações, mas aqui é uma instalação militar. Todos os dispositivos
eletrônicos têm uma prevenção a hacker instalados, repelindo qualquer conexão externa.
Irá demandar muito tempo e cálculos para invadir.
Mas por enquanto o que tenho é suficiente. Depois de pensar um pouco, declarei:
“Eu pensei, Chuuya-sama,” disse baixinho enquanto andava lado a lado com ele, “a
razão para o N ser um alvo. Será que não é porque ele tem uma prova de que você é
humano?”
“Hã?” Ele virou surpreso. “Da onde você tirou isso?”
Olhando o registro de suposições acumuladas, continuei:
"Nós não sabemos se você é um humano ou apenas uma equação. O Verlaine afirmou
que você era uma equação, mas não é como se ele tivesse nos mostrado alguma prova.
Não passa de uma alegação dele. Então pensei, e se o Verlaine estiver mentindo? Se for o
caso, ele iria querer matar quem sabe a verdade. De você ser humano. Se você descobrir
a resposta, não vai ter porquê ir com ele. Por isso, ele quer matar o N. …Acha que tem
coerência essa minha hipótese?
“Por que o Verlaine mentiria?”
“Porque ele não conseguiria te convencer de outro jeito.” Tenho confiança nisso. “Ele te
precisa por algum motivo. Provavelmente por ser também um manipulador de gravidade,
alguém a quem foi concedido poder num laboratório militar. Porém é claro que você não
iria com ele só dele falar 'largue a Máfia e venha comigo.'”
“Ou seja, o motivo principal dele querer matar o N é por ele poder provar que eu sou
humano?”
“Isso.”
Chuuya-sama pareceu ficar pensando um pouco sobre isso. Olhando para a parede,
coçou o queixo, o nariz e depois cruzou os braços. Cobriu o rosto, escondendo sua
expressão.
Então pude ouvir pequenas respirações. Ele estava rindo.
“Pf… haha, como assim, seu idiota.” Uma voz baixa e cansada. “No final, eu sou
humano? Parece piada eu me deixar acreditar nisso…”
Esta máquina também riu. Porque senti que fazia tempo desde que o Chuuya-sama ria
assim.
“O que tá olhando?” Tentando esconder o rosto, ele me olhou por cima dos ombros.
“Que risada é essa? Eu não tô pensando nada.”
“Nem esta máquina está.” Por eu ser uma excelente máquina, menti tranquilamente.
“Então que olhar é esse?!”
“Olhar? Os olhos não são órgãos capazes de falar.”
“Finalmente entendi.” Chuuya-sama olhou para mim fazendo uma careta. “Você falou
isso de propósito, não foi?”
Ele descobriu?
Chuuya-sama deu de costas e depois de se alongar, começou a andar rapidamente.
“De qualquer forma, vamos logo ouvir o que ele tem pra dizer e acabar com isso! Ahh,
parece que hoje vai ser mole o trabalho!” Ele disse sozinho em voz alta.
Andando com seus passos leves, ele foi na frente. O rosto desta máquina
automaticamente ficou no formato de um sorriso.

•••
O nosso objetivo estava do outro lado de uma porta. O soldado apertou o botão ao lado
dela, informando o que queria.
“Entrem” pode ser ouvido e a porta abriu automaticamente. Era a mesma voz que saiu
do meu mecanismo sonoro. Aquela voz ultrajante.
Do outro lado da porta havia um grande escritório. A janela ao fundo era um painél que
exibia uma praia e o mar, mesmo nós estando no subsolo. Estantes de azinheira,
enterradas em ambos os lados, se estendiam até o teto. Elas estavam repletas de livros
especializados do mundo todo, arrumados respeitosamente.
No final da sala, um homem estava deitado em frente à uma mesa antiga. Ele estava
escondido debaixo de uma grande caixa. Como estava fazendo alguma coisa no espaço
entre a caixa e o chão, não dava para ver a parte superior do seu corpo. Apenas víamos
suas pernas e as solas dos sapatos de couro virados para o teto.
“Foi mal. Me esperem um pouco.” As solas disseram. “Tá demorando mais do que eu
pensava regular o tanque de isolamento para o experimento. É uma banheira para criar
artificialmente um estado alterado de consciência e aumentar a potência da Habilidade…
mas a função de medição essencial está interferindo na solução de sulfato de magnésio.
Estou tentando trocar o detector de raios gamas de desintegração de pósitrons para ter
uma precisão maior.”
“E se incorporar um marcador de atividade intravascular ao invés de se manter à uma
medição não invasiva?” Esta máquina propôs.
“Já tentei.” As solas responderam energicamente. “Mas, ao fazer isso, o potencial de
ação da Habilidade interior da cobaia se torna um ruído. Diferente do seu, o corpo de um
humano é irracional. …Ótimo, agora acho que tá bom.”
As solas ── o dono das solas saiu se arrastando de debaixo do enorme caixote que
parecia um caixão. E enquanto limpava as mãos, ele dirigiu um sorriso para nós.
“Pois bem, da onde devo começar. Vocês devem ter inúmeras perguntas, não é mesmo?
Mas eu responderei a todas. Pode-se dizer que aqui é a última parada da viagem de
vocês…”
Esse rosto. Não há dúvidas.
"…Você, esse rosto." Chuuya-sama disse tenso.
“Vamos começar daqui, afinal.”
Enquanto olhava o outro homem, Chuuya-sama tirou uma foto de seu bolso. A foto de
uma praia.
O Chuuya-sama de cinco anos e um rapaz de roupa tradicional cor de canábis estavam
de mãos dadas. O rapaz sorria com os olhos apertados talvez por causa da claridade dos
raios de sol.
“Eu sou o responsável pelo projeto Arahabaki. O nome N faz parte da nova vida
preparada pelo exército para mim e foi tirado da primeira letra do nome Nakahara. Isso
quer dizer que,” o rosto do jovem na foto era o mesmo rosto do pesquisador na nossa
frente, “eu sou seu pai.”

•••
O filme mostrava uma moeda dourada. Uma raposa e uma coroa estavam gravadas na
cara e na coroa, respectivamente. Era uma moeda muito bonita e ao mesmo tempo,
triste.
Uma pessoa brincava com elas entre os dedos. Eram dedos jovens. Mas o restante do
braço estava escondido para fora da projeção, não sendo possível ver quem era. Essa
pessoa recitava o seguinte:

"A tristeza manchada


não quer nem deseja nada.
A tristeza manchada
na indolência a morte sonha."

É um poema estranho. Passa a sensação de que palavras sem serem dirigidas a


ninguém, caiem sob os pés de imediato e continuam caindo eternamente.
Junto às palavras, a moeda dourada começou a brilhar bizarramente. A imagem, então
mudou.
A pessoa que segura a moeda aparece bem pequena no centro da tela. Não dá para ver
seu rosto. O que dar para ver é um lugar anormalmente grande e um espaço cercado por
uma parede de concreto.
A luz emitida pela moeda vai mudando gradualmente de branco para um perigoso
vermelho vívido e passa a ocupar toda a tela. A imagem muda novamente.
Agora é uma sala de observação monitorando um salão. Um lado da sala é um acrílico
espesso e do outro lado pode ser visto o gigante espaço de concreto e a luz da moeda.
“Confirmação do código de cancelamento da Habilidade em nível profundo. Iniciando
procedimento 806 até 872.”
Mais de dez pesquisadores estão desse lado do acrílico continuando seus cálculos em
suas mesas.
“Confirmação do aumento de brilho da Habilidade. O gradiente crescente excede 320%
de tolerância.”
“Não parem.”
A luz da moeda dentro da imagem aumenta ainda mais. Ela ilumina ligeiramente os
rostos dos pesquisadores que a observam.
A luz começa a pulsar. Sua cor muda para vermelho até que ela é engolida por um preto
azeviche.
“Extrapolação do limite do sensor de raios gamas. Temperatura ambiente subindo.”
O próprio espaço começa a mudar. O chão estala, quebrando, e é atraído para a moeda.
Antes de colidirem com o objeto, os pedaços são esmagados pela gravidad, se tornam
pequenos como poeiras e desaparecem.
Logo, a paisagem começa a se distorcer ao redor da moeda.
“Distorção do espaço perceptível a olho nu! Medidores do 2 ao 6, 10 e 14 danificados!
Os sinais vitais da cobaia estão em situação crítica, não, pararam!”
O chão e as paredes do gigante espaço se desfazem, indo em colisão com a luz. A sala
já não tem mais sua forma original.
“Parem o experimento! Liberem a água de emergência!”
No instante seguinte, o espaço se contrai. O quarto é sugado junto com a pessoa que
segurava a moeda.
Flashes e choques. A tela treme violentamente e a sala de experimentos junto com o
acrílico que a separa quebram em milhares de pedaços que são repelidos ao mesmo
tempo. Os pesquisadores flutuam no espaço.
O grito de alguém.
E então, um buraco negro.

•••
“O que vocês acham que é uma Habilidade?”
Enquanto avançávamos mais ainda para o subterrâneo, N nos perguntou.
Falarei aquilo que o Verlaine tentou impedir ── após dizer isso, ele começou a nos
guiar para a sala de experimentos. Estamos no meio do trajeto.
“A verdade é que nós pesquisadores não sabemos quase nada sobre as Habilidades. É
embaraçoso dizer isso tendo construído uma instituição grandiosa dessas.”
Enquanto descemos, nós escutamos ele falando. O N vai na frente, depois o Chuuya-
sama e em seguida o Shirase-san. Esta máquina está na retaguarda.
“Embora há várias coisas de que sabemos.” N diz tranquilamente. “Primeiro, as formas
de vida não-humanas ── plantas e macacos, por exemplo, não possuem Habilidades. Só
há um tipo de Habilidade inerente a cada humano. Se o Usuário morre, a Habilidade
desaparece, basicamente. Não existe uma Habilidade que tenha poder de acabar com a
Terra em um instante. Ou seja, há um limite para sua capacidade.”
“Até eu sei isso.” Chuuya-sama disse por cima da fala do outro, sem ligar.
“Agora que vem a parte interessante.” N deu um sorriso travesso que escondia suas
verdadeiras intenções e continuou. “Eu disse que há um limite para a capacidade de uma
Habilidade, mas o exército queria saber se não havia uma maneira de ultrapassar esse
limite. Já adianto, tem sim. E um meio é pelo Ponto de Singularidade.”
Oh. Esta máquina está impressionada. Ele sabe sobre o Ponto de Singularidade. Não
apenas isso, mas quem sabe é um pesquisador do setor de aplicação militar. Até na Grã-
Bretanha, é um fenômeno conhecido por apenas alguns seletos pesquisadores. Os
pesquisadores desse país estão bem mais adiantados do que pensei.
“Ainda é algo que poucas pessoas do governo sabem, mas ── o Ponto de
Singularidade é o resultado de múltiplas Habilidades interferindo umas com as outras e
desenvolvendo um fenômeno de ordem maior do que o original.” N continuava. “E não há
limite para a potência desse Ponto. Tudo pode acontecer. É certo dizer que esse evento
fora do comum é uma falácia da Habilidade.”
Quando a escada terminou, chegamos na última camada. Por causa da profundidade,
não ouvíamos mais nada além de nossos passos.
E então na nossa frente, uma porta. Usando uma chave que estava presa a sua cintura,
N a abriu.
“Ei, onde a gente tá indo? E essa história toda também?”
“Logo saberá os dois.” N sorriu. “Tem a ver com a sua essência, então ouça.”
Continuou:
“Pois bem, uma Singularidade é um fenômeno extremamente excepcional, mas o seu
processo de ocorrência não tem nada de tão diferente. É simplesmente quando
Habilidades que se contradizem colidem. 'Enganar o outro de qualquer jeito' com
'descobrir a verdade de qualquer jeito.' Ou quando dois Usuários que preveem o futuro
lutam. Geralmente uma das duas ganha, porém raramente acontece delas produzirem
um fenômeno completamente diferente das originais. Nós chamamos isso de
Singularidade Contraditória.”
Shirase-san olhou de lado e sussurrou "Hmm, contraditória… hmm."
“Shirase-san, sei que é difícil, mas não durma enquanto anda, por favor.”
“E, Chuuya-kun.” N estava falando bem ao lado do Chuuya-sama. Ele decidiu fingir que
o Shirase-san não estava aqui, não foi? “Para criar uma Singularidade eu disse que
precisava de mais de duas Habilidades, né? Mas existe nesse mundo um Usuário capaz
de criar uma Singularidade sozinho.”
“Quê?”
“Sem precisar da Habilidade de outra pessoa, ele consegue criar um conflito de lógica
com a sua própria Habilidade e dar origem a uma Singularidade.” Ao dizer isso, N ficou
girando seu dedo indicador para cima. "É essa Habilidade. O pesquisador alemão que
descobriu isso primeiro chamou-a de Singularidade Autocontraditória. Bom… vamos usar
um exemplo que aconteceu de fato. Havia um menino com a Habilidade de amplificar a
Habilidade de quem ele tocasse. Um poder conveniente. E se ele tocasse não outra
pessoa ── mas a si próprio? O que acha que aconteceria?"
“Bom… Não amplificaria a Habilidade dele?”
“Exato. Ou seja, a capacidade de amplificar uma Habilidade seria amplificada. Essa
autorreferência continuaria para sempre e a Habilidade, amplificada eternamente. Como
resultado, a Habilidade seria destruída em seu princípio por um ciclo infinito de energia,
criando uma Singularidade. Esse excesso de energia provocou uma transformação na
massa, criando uma distorção espacial de alta densidade. Ele foi engolido por um gigante
redemoinho gravitacional, indo para o outro lado sem nunca mais poder voltar.”
Entendi.
“Esse foi o experimento do Usuário com a moeda que vimos agora há pouco no vídeo,
certo?”
“Sim. Uma Habilidade destrutiva acionada apenas uma vez na vida.”
"…Peraí, essa distorção espacial por acaso é…"
A voz do Chuuya-sama era firme e sua expressão tensa.
“Calma, ouça até o final.” N logo o interrompeu. “Essa Singularidade Autocontraditória
não ocorreu apenas na Alemanha e no Japão. Ela ocorre em qualquer país de dez em dez
anos mais ou menos. Antigamente, diziam que era o feito de um deus ou de uma besta
mágica, mas ninguém sabia ao certo. Porque os Usuários morriam junto da ativação.”
Ao mesmo tempo em que a Alemanha, França e Inglaterra começaram a lutar entre si, a
divisão científica dos exércitos competiam ferozmente também. Não era nem um pouco
incomum técnicas de armas especiais virem para o Japão que era aliado à Alemanha.
“Uma perigosa Habilidade autodestrutiva que leva tudo ao seu redor. E uma única vez.
Não dá bem para chamar de arma.” N estava com o rosto rígido. “Mas é fato que há uma
energia quase que infinita ali. Será que não há uma forma de controlá-la para poder ser
usada? Foi o ponto de partida das pesquisas. E então… um país que conseguiu usá-la
como arma finalmente apareceu. Aquele que tinha as pesquisas de Habilidades mais
desenvolvidas, a França.”
França. E um espião do governo francês, o Rei Assassino. Então é isso.
“Uma Singularidade como arma? Como conseguiram?”
“Usaram o coração.”
“Hã?”
“Coração, o espírito de um humano.” N disse com a solenidade de quem declara um
poema. “Normalmente usam uma máquina para controlar enormes quantidades de
energia, não é? Mas como eu disse, os seres que usam Habilidades são apenas os
humanos. Falando de forma não científica, apenas uma alma consegue usar essa
energia. Usando então um corpo cultivado e uma fórmula de personalidade, um
pesquisador francês enganou a Habilidade fazendo-a acreditar que ali havia uma alma.
Até eu acho que o pesquisador que pensou isso é maluco. De qualquer forma, a tentativa
foi um sucesso. Assustadoramente. O resultado foi o espião francês Verlaine, uma
Habilidade com personalidade e capacidade de controlar livremente a gravidade gerada
pela Singularidade. …E o que veio atrasado anos depois. O nosso país, tendo obtido os
dados desse experimento, tentou reproduzir mais uma vez um Usuário Singular pelo
mesmo método. Esse…”
A pesada porta abriu. N encorajou o Chuuya-sama a passar primeiro e disse com a
expressão séria:
“Esse foi o plano Arahabaki.”
A porta fechou rapidamente ao mesmo tempo das palavras. Esta máquina e o Shirase-
san ficaram para fora. Levei 0,03 segundos para julgar a situação.
“Chuuya-sama!”
Bati na porta com força, mas a porta automática anti-incêndio e a prova de balas não
parecia que abriria. A voz do N veio do alto-falante na lateral.
“Desse ponto em diante seremos só eu e o Chuuya-kun.” Uma voz calma e sem
emoção. O Arahabaki é um segredo de Estado, afinal. Eu só consegui a aprovação para
uma pessoa. Além disso ── "
Ele pareceu pensar um pouco e falou:
“Acredito que o que há daqui em diante só deva ser visto pelo Chuuya-kun. Não acho
que ele iria querer que outras pessoas ── principalmente seus amigos ── vissem.”
Logo após, houve o indício de massa sendo movida atrás da porta. Pelo o que vi com o
escâner, havia um elevador ali. Chuuya-sama e N foram ainda mais para baixo nele.
Estou surpreso em haver mais um andar mesmo nós termos descido tanto.
Tentei invadir o sistema do elevador, mas não foi possível. Não é que tenha sido
impedido, mas não dava para acessar remotamente lá fora.
Como diriam coloquialmente, aqui é uma câmara anecoica.
O princípio é simples. Ao envolver um ambiente por placas de ferro condutoras, as
ondas são refletidas e o campo magnético é desviado para dentro da placa, de forma que
o interior se torna um espaço isolado através do qual não passa um campo
eletromagnético. É o mesmo princípio de que ao colocar um celular no microondas, ele
fica fora de sinal.
O valor estimado para a segurança da operação caiu em 7%. É uma situação em que
um humano estaria apreensivo.
Qual será o objetivo do N?

•••
O som do elevador descendo reverbera.
Mesmo tendo sido separado de seus companheiros, a expressão de Chuuya não
mudou. Apenas olhava para o N com as mãos nos bolsos como se estivesse olhando
para um relógio de parede.
“Vai querer me dissecar?” Depois de um tempo, Chuuya falou secamente.
“Não tenho segundas intenções. Só estava tendo consideração.”
“Só pra avisar, eu vou relatar o que eu vir aqui para a Organização.” Chuuya disse
despreocupado. “Não estou nem ai se é um segredo de Estado.”
“Faça o que quiser.” N deu um sorriso insinuante. “Se realmente tiver vontade de falar.”
O elevador descia enquanto rangia de leve, até que parou e a porta abriu.
Havia um pequeno corredor. Não era diferente dos outros de até então, mas era bem
antigo. Nos cantos tinha areia e sujeira acumuladas. Na porta ao final, havia vários
papéis em que estava escrito “quarentena” e “área” selada sob ordens do chefe do
Departamento de Inteligência’'. Estavam velhos e com as pontas descolando.
N foi tirando um por um.
Chuuya olhou de soslaio até que de repente disse “fala logo,” como se não ligasse.
N se virou.
“Fala. Eu não vou ficar com medo a essa altura. Eu ── não sou humano, não é?”
Sem responder sua pergunta, N apenas olhou silenciosamente para ele.
“Eu entendo você não querer falar.” Chuuya continuou de maneira direta. “Eu sou fruto
do projeto Arahabaki. Feito pelo mesmo método do Verlaine, uma Singularidade com
consciência. Não é?”
N riu.
“Se for, o que vai fazer? O que tem aqui em diante é algo que prova isso. Está com
medo? Vai ouvir a história e voltar sem ver?”
Chuuya… não respondia. Apenas encarava o outro.
“Para mim tanto faz se você desistir. Para nós é importante Verlaine pensar que você
descobriu tudo, mas não necessariamente isso precisa acontecer de verdade.”
Olhando N, os pensamentos de Chuuya giravam em sua cabeça. Quando abriu a boca,
sua voz era resoluta.
“Piano Man e os outros investigaram quem eu era e morreram por isso.”
Em seus olhos havia algo diferente da paisagem diante de si. Uma visão do passado.
As costas de seus companheiros.
“Leve-me. Eu tenho a obrigação de descobrir tudo por eles.”
Não havia hesitação em sua voz. Mesmo se cem anos passassem, ele não voltaria
atrás naquelas palavras. Sua voz demonstrava sua obstinação.
N sorriu e no lugar de uma resposta, ele abriu a porta.

Do outro lado da porta era um lugar grande como uma fábrica. Grande ao ponto de não
dar para ver a parede dos fundos.
Entre o chão e o teto existia uma cerca de apoio aos pés. Chuuya estava em cima dela.
A rede rangiu. Chuuya se desequilibrou. Ele ia cair, mas conseguiu se apoiar com as
mãos.
“Tudo bem?”
“Eu conheço.” Ignorando a pergunta de N, Chuuya disse pálido. “Eu conheço esse
lugar.”
“Era de se esperar.”
Suor estava escorrendo pelo seu rosto. Seu olhar, grudado no que via à sua frente. N
olhou para ele sem sentir nada e como se lendo uma lista telefônica disse com a voz
robótica:
“Aqui é o segundo laboratório. Foi construído para ser exatamente igual ao primeiro. O
lugar do seu nascimento que você explodiu e extinguiu só pode ser visto aqui.”
Em sua mente, vozes ecoaram.
“Um intruso!”
“Selem do número oito ao quinze!”
“Departamento de Operação, peguem os equipamentos de classe A e preparem-se para
interceptá-lo!”
Quando percebeu, estava andando.
O mesmo cenário. O cenário que olhou por anos. Soldados e pesquisadores indo e
vindo.
Ao lado de Chuuya, soldados corriam armados. Uma ilusão. Não havia ninguém ali. É
uma cena de suas memórias.
“Quantos são?! Estão armados?”
“São dois! Não possuem nenhuma arma ── na verdade estão completamente
desarmados!”
As vozes em suas memórias gritavam. As lembranças daquele dia. A ultima visão que
teve de onde estava.
Até que chegou a um local.
“Você estava aí dentro.”
Era um cilíndrico tanque preto. Ele ia até o teto e seu diâmetro era do tamanho de três
adultos formando um círculo. A superfície parecia de vidro, mas o material era opaco e
escuro, não permitindo ver o interior.
Porém Chuuya sabia o que era esse objeto. Ele se virou e olhou o laboratório.
Uma paisagem que conhecia muito bem. A qual pensava que era todo o mundo.
Uma escuridão azulada. Para separar do exterior ── Um berço para protegê-lo do
mundo.
O berço foi destruído de repente por um fantasma. O tanque quebrou e alguém pegou o
Chuuya.
Chuuya lembrava quem era o dono dessas mãos.
Arthur Rimbaud. E ao seu lado, Paul Verlaine.
“Você é um milagre, Chuuya-kun.” N disse como se cantando. “No final das contas, não
foi possível reproduzir o mesmo fenômeno que você.”
Essa fala trouxe Chuuya de volta à realidade. Ali só havia ele e N. O tanque não estava
destruído.
Chuuya tocou a superfície dele. Não era fria nem quente. Era uma temperatura que
conhecia muito bem.
"…E?" Conseguindo tornar a voz calma novamente, se virou para N." Que segredo de
Estado é esse que dorme aqui afinal ── ?

De repente uma batida veio de dentro do tanque.

Chuuya gelou. Bem ao lado de sua mão, a figura de outra mão apareceu. Mais ou
menos do mesmo tamanho da sua. Ele só conseguia ver a palma. O resto estava
escondido no fundo da escuridão azulada.
Ele logo entendeu. Não era porque o tanque era preto que não dava para ver o interior. O
tubo era transparente, mas estava preenchido por um líquido preto azulado e por isso
não permitia ver o que havia dentro.
“Quem tá ali?!” Chuuya gritou para N.
N não respondeu. Apenas o olhou serenamente.
“Ei, explique! Quem tá ali dentro?!”
A mão era do tamanho da de Chuuya.
“Não precisa ficar agitado. Eu logo vou te deixar vê-lo.”
N tirou do bolso do jaleco um painel de controle e girou um dos botões.
Fazendo um som de drenagem, o líquido preto borbulhou. O nível da água foi descendo.
Chuuya deu um passo para trás, boquiaberto, vendo a água abaixar.
“Ele é…”
O que apareceu de dentro do líquido ── foi o Chuuya.
Os olhos estavam fechados. Não vestia mais nada além de uma vestimenta de resina
sintética usada para testes.
Estava extremamente magro. Por isso, aparentava ser um pouco mais novo do que o
próprio Chuuya. Algemas prateadas em volta de seus tornozelos o prendiam ao fundo do
tanque.
Ele apenas dormia, mas seu rosto enrijecido parecia que iria quebrar a qualquer
momento.
“Deixe-me apresentar. Esse é o seu original.”
Chuuya o olhava estupefato.
“O dono da Habilidade contraditória. Tirando sua Habilidade, um menino comum que
nasceu num distrito termal da região San'in. Usando esse aparelho especial, ele não é
esmagado por sua gravidade. Por isso, está vivendo assim.”
De repente o menino dentro do tanque começou a sofrer. Estava tossindo
violentamente. Pelo jeito, não conseguia respirar direito.
Curvado, ele vomitava parecendo que seus órgãos sairiam. Mas por causa da grossura
do tanque, não dava para ouvir direito o que se passava.
“Ei! Ele está sofrendo! Tá tudo bem?!”
"Óbvio que não." N disse tranquilo. “O tanque que o mantêm vivo está sendo drenado.”
“O quê…?!”
O menino dentro do tubo gritava alguma coisa enquanto agonizava, batendo
desesperado no vidro. Mas não dava para ouvir absolutamente nada do que dizia.
“Ei, faça alguma coisa! Ajuda ele!”
“Não precisa. Ele já cumpriu seu papel há muito tempo. O papel de te gerar.”
O menino convulsionou e vomitou sangue numa quantidade absurda no fundo do
tanque. A cor no rosto de Chuuya mudou no mesmo instante.
Ele agarrou N pelo colarinho com toda sua força e o puxou para perto, gritando:
“Volta a água agora mesmo!”
“Por quê?” Sua expressão não mudava.
“Cala a boca! Se você não voltar a água, eu vou te matar!”
N deu de ombros.
“Ok.”
Ele entregou então o mesmo painel de controle de antes para Chuuya, que o arrancou
de sua mão.
O controle tinha três botões giratórios pretos, três botões normais pretos e um botão
vermelho. Ele girou ao contrário o mesmo botão da drenagem, mas não houve reação. E
mesmo apertando os outros, nada acontecia.
Enquanto isso, o menino continuava a sofrer. O corpo tremia e sangue escuro jorrava de
sua boca. Sem conseguir respirar por causa do sangue no pulmão, seu rosto estava
ficando roxo.
Chuuya apertava os botões intensamente, tentando pressionar todos juntos de uma só
vez. Nessa hora houve o barulho de algo quebrando e o tanque se inclinou.
Como se fazendo uma reverência, o tanque se curvou na direção de Chuuya e a parte de
cima abriu num pulo. A solução que ainda havia dentro transbordou, até que o menino
também começou a cair para o chão.
Chuuya o segurou.
“Ei, resista!”
Sem conseguir respirar, o menino ofegava nos braços de Chuuya. Seu rosto era
exatamente o mesmo, mas seus olhos eram um tanto mais gentis. E infinitamente mais
frágeis.
O menino agarrou Chuuya.
Tentou apelar algo com seus olhos; tentou suplicar algo com sua boca. Deu um respiro.
Mas foi apenas isso. Sua vida terminou.
Sua mão caiu sem forças e seus olhos enevoaram sem foco. O ar do pulmão não mais
necessário foi expelido, emitindo um som parecido com o de uma respiração. Era o sinal
do fim.
Diante de Chuuya que testemunhava em transe, o corpo do menino começou a
sucumbir. A pele se descolou, a carne derreteu e saiu escorrendo na mesma cor negra
azulada do líquido do tanque.
Não havia como impedir. Os ossos ficaram à mostra em um instante.
O que sobrou foi um pequeno esqueleto que um dia foi o menino, a vestimenta,
inúmeros tubos de transfusão, um amontoado de cordas de medição presos a ele e a
lama preta sob seus pés.
Chuuya descansou o esqueleto no chão e agarrou N.
“Maldito…!”
Uma intensa força segurava suas roupas, mas sua expressão não se alterou nem um
pouco se quer.
“Eu não menti quando disse que era seu pai.” N disse como se estivesse lendo um
texto. “Eu projetei o seu corpo e ajustei seus genes para suportar a vazão do Arahabaki.”
Então algo inacreditável aconteceu.
N soltou facilmente as mãos que agarravam seu jaleco.
“O que…”
Chuuya tentou socá-lo, mas nem isso conseguiu. Na verdade, nem mais em pé
conseguia ficar. Seus joelhos tremiam. Seu corpo estava pesado.
Não era N que estava fazendo força, Chuuya era quem estava fraco. Ele lembrava dessa
sensação.
“Isso… é o mesmo que naquela hora…”
Um ano atrás no cemitério público do precipício. A sensação que teve ao ter sido
esfaqueado por trás pelo Shirase. O que o Shirase tinha dito?
── É melhor não se mover muito. Eu cobri a faca com veneno de rato. Sentirá
dormência nos seus braços e pernas por um tempo e não conseguirá se mover como de
costume.
Ele conseguia ouvir a voz do Shirase em sua memória ao longe, estranhamente
exagerada.
Chuuya caiu de joelhos. Suas mãos pesavam.
Mas, por quê? Por que agora?
“Eu te projetei, então sei bem. O seu corpo é resistente, mas é fraco para veneno como
o de uma pessoa comum.”
“Veneno…?”
Chuuya vasculhou suas memórias. Não era simples envenená-lo. Ele seria capaz de
perceber um ataque desses prontamente.
Não. Quando ele entrou no laboratório disseram que era preciso fazer uma revista e um
exame de sangue.
O kit de coleta. A injeção.
“Aquela injeção…!”
“Eu te chamei aqui para te contar a verdade. Eu queria, assim, evitar Verlaine.” N disse
nada preocupado, alisando a roupa amassada por Chuuya. “Mas ainda resta uma
incerteza. Não tenho total confiança de que Verlaine vai desistir de me matar porque
você descobriu a verdade. Por isso vou fazer algo que me dê uma certeza maior.”
Chuuya tentava levantar sem sucesso. A lama negra sob seus pés respingou.
“Entende? Se você morrer, Verlaine não terá mais motivo para ficar nesse país.”
“Malditoooooo!”
Sua raiva explodiu. Impulsionado não pela força de seu corpo, mas sim de suas
emoções, Chuuya levantou num pulo e voou com um soco para cima de N.
N atirou em Chuuya sem nem pestanejar. A bala acertou em cheio sua testa e foi
repelida pelo crânio, voando para trás.
Chuuya caiu de costas. Sangue escorreu de sua testa, mas a bala não penetrou. Ela
havia deslizado e ricocheteado. No momento do impacto, ele concentrou toda sua
Habilidade e a desviou usando a gravidade.
N atirou novamente no corpo caído de Chuuya. Inexpressivo.
Ele não conseguiu se proteger de todas. Algumas acertaram seu peito e abdome,
espalhando sangue e carne para os lados.
Chuuya gritou algo que não se tornou uma voz.
“Você deve achar que eu sou um homem horrível. Mas não estou fazendo isso por
apego à minha vida. É para preservar as pesquisas, ou seja, pelo bem desse país.”
N tirou um recipiente do bolso do jaleco. Ao abrir, havia uma pequena injeção. Ele a
enfiou na ferida do tiro.
“Eu faço qualquer atrocidade pelo bem da minha Organização. Como membro de uma
grande Organização também, você me entende, não é?”
"Vai… se fuder…"
Chuuya gemeu, levantando a mão na tentativa de agarrá-lo, mas ela não chegou até N.
Sua mão caiu no chão. E então, apagou.

•••
Shirase-san de repente começou a sofrer do meu lado. Caiu no chão, segurando a
garganta e contorcendo-se em dor.
“Shirase-san! O que houve?!”
Esta máquina já o estava diagnosticando enquanto gritava. Diminuição da frequência
cardíaca e diminuição da pressão. Transpiração, espasmos musculares, dispneia.
Típicos sintomas de envenenamento. Mas não há nenhum problema na composição do
ar aqui. Verifiquei todos os registros dos escaneamentos espaciais de até agora e não há
traços de nenhuma exposição a um gás tóxico.
Apliquei atropina que tem efeito anticolinérgico para aliviar os sintomas. Fiquei
observando a sua melhora para aplicar outra dose ainda maior. Esta máquina que foi
projetada inicialmente para ser usada em guerra tem estocada uma certa quantidade de
drogas para serem aplicadas contras organismos vivos e armas nucleares. Com isso, ele
não corre risco de vida.
Depois de colocar o Shirase-san que havia se acalmado no chão, tentei sair desse
lugar. Não consegui. A porta não abre. Nem a da frente, nem a pela qual viemos. O painel
de controle também não conecta.
Como já tinha verificado antes, o campo eletromagnético desta sala está bloqueado,
então não é possível entrar em contato com o exterior. Desde o começo ele quis nos
aprisionar aqui.
O risco da missão aumentou em 38%.
Pensei um pouco e me arremessei contra a porta. Mas a porta de ferro não sofreu nada.
Joguei a cadeira também de ferro contra ela. A superfície só amassou um pouquinho.
Essa sala tinha um formato de um corredor comprido com apenas uma mesa, uma
cadeira e o armário de funcionários. Se tivesse um terminal que pudesse ser conectado
com prioridade, seria possível me comunicar com o lado de fora. Visto que tanto o chão e
teto são feitos de ferro bastante espesso, será difícil atravessá-los.
Não há outra opção.
Levei minha mão nas costas e abri um compartimento na minha região lombar. Tirei
um acessório. Então abri o espaço entre o meu dedo indicador direito e o do meio até a
altura do pulso e encaixei o acessório retirado ali.
Era uma serra de mão militar. Uma serra circular do tamanho de uma palma.
Normalmente a uso quando estou perseguindo um suspeito ou para abrir uma porta
trancada.
Pressionei ela girando contra a tranca da porta pela qual viemos. Um som estridente
ecoou e faíscas caíram em meu terno. Vai demorar. Mas preciso correr. Esse laboratório
é perigoso. Provavelmente o alvo do veneno é o Chuuya-sama. O Shirase-san apenas foi
envolvido e trancado aqui com esta máquina. Chuuya-sama está em perigo.
Ele corre o risco de ser morto. Não, talvez aconteça algo pior ──
•••
Não havia nada no quarto. Nem mesa, nem cadeira, nem quadros, nem ornamentos;
nada. Apenas uma gradação entalhada numa parede marcando a altura.
O quarto do tamanho de uma pequena piscina escolar era usado como tanque para
armazenar água em caso de um experimento emergencial. Chuuya estava pendurado
nessa parede.
Ambos os pulsos estavam amarrados por um arame de aço o mantendo em pé. O
arame estava recheado de grossos espinhos espetando seus braços como os dentes
fincados de uma besta. Seus pés mal alcançavam o chão.
Sua roupa superior havia sido arrancada, deixando as feridas dos tiros à mostra. Nas
duas marcas de bala mais profundas, no peito e no abdome, havia uma gigante estaca
penetrada.
As estacas estavam presas ao teto por correntes, por onde corria a eletrecidade.
Chuuya gritou. O cheiro de carne queimando vagava pelo ar.
A corrente entrava pela estaca e passava para o arame farpado. Nesse meio tempo os
seus músculos, nervos e orgãos internos eram esmagados. A dor de todo o corpo sendo
fatiado em pedaços do tamanho de um dado tornava impossível não se arrepender de ter
nascido.
"…Vou te matar."
Chuuya gemeu enquanto olhava para uma tela fixada no teto.
Novamente, a corrente elétrica e os grunhidos de uma besta.

N observava a situação de uma sala de monitoramento. A corrente elétrica provocava


um flash de luz até mesmo dentro da sala. Mas N nem piscava.
“Administração de 10ml de Midazolam.” Sem tirar os olhos da tela, N ordenou a um
subordinado.
“Mas os batimentos dele…” Um jovem pesquisador disse com a voz amarga verificando
a medição.
“Ele não vai morrer com isso. Aplique.”
Vários equipamentos de manipulação foram movidos. Num dos quatro tubos brancos
que penetravam Chuuya pelas costas, um líquido transparente fluiu e desapareceu para
dentro de seu corpo.
Os olhos de Chuuya arregalaram e ele gritou como se tivesse tendo seus órgãos
contorcidos. Mesmo assim, a expressão de N não mudou. Nem empatia, nem crueldade,
nada. Ele olhava para Chuuya como se estivesse olhando para números.
Na sala de monitoramento havia vinte cadeiras, medidores e pesquisadores. Todos
andavam atarefados de um lado para o outro, comparando o plano inicial com as
mudanças na situação para que não desse nada de errado com a progressão desse
importante experimento.
“Chuuya-kun. Está sofrendo?” N perguntou, aproximando o rosto do microfone.
Exaurido, Chuuya não respondeu.
“Desculpe, se tivesse outro meio, eu faria.” N disse sem culpa em sua voz. “Mas para te
salvar, só há esse jeito.”
Enquanto falava, N verificou os dados do experimento com o canto do olho e continuou.
"Assim como nós respeitamos a sua vontade, a sua Habilidade, Arahabaki, também a
respeita. Na verdade, é mais correto dizer que ela está presa à sua vontade. Enquanto a
sua consciência existir distinta, o Arahabaki não poderá ser separada de você. A única
Singularidade controlada no país que redefine o senso comum de Habilidades.
Ele interrompeu o alto-falante pelo calibrador e perguntou “O efeito do Midazolam?”
para um subordinado.
“Está respondendo. Mais dois minutos até uma reação significante.”
N assentiu e ordenou “Aplique mais 20ml.” E novamente aumentou o volume.
“Chuuya-kun. Nesse momento, a equação de personalidade que é você está segurando
as rédeas do Arahabaki. Então se eu te matar, irei perder uma valiosa Singularidade
controlada. Porém se eu apenas reescrever outra fórmula por cima, as duas entrarão em
conflito e descontrolará o Arahabaki novamente. Nós não queremos que o laboratório
saia voando uma segunda vez, afinal.”
N riu da sua piada baixinho sem ninguém ouvir. Mas o sorriso evaporou num instante.
“Por isso, será assim.”
N girou um botão do painel de controle. A corrente elétrica passou da corrente para as
estacas e entrou em seus ferimentos. Uma dor como se seu corpo fosse despedaçar
assaltou Chuuya, que berrou em agonia.
Ao que ele se contorceu tentando escapar da dor, o arame farpado retorcido cravou em
sua pele, fazendo o sangue escorrer.
“Você libertará o Arahabaki voluntariamente. Mas não precisa pensar muito para fazer
isso. Só precisa dizer um encantamento. É um código de autentificação para resetar o
selo que será colocado na sua equação. Quando ele verificar o encantamento de
controle, você será apagado e uma nova fórmula será sobrescrita. Com isso, você será
libertado dessa dor que continuará não sei por quantos dias… e da escuridão que sempre
continuou por todos esses anos.”
A escuridão que sempre continuou. Chuuya pela primeira vez reagiu ao som dessas
palavras. Até agora, ele havia continuado apático não importando o que o outro falasse,
mas nesse momento, ele mexeu a cabeça levemente. N não deixou essa mudança passar
despercebida.
“Repita o seguinte. Pode ser mentalmente, é simples.”
N fechou os olhos e recitou o código de autentificação em tom monótono. Era um verso
conciso.
“── Eu permito a você uma corrupção melancólica. Não me acorde nunca mais."
“Eu permito a você uma corrupção melancólica…”
Os lábios de Chuuya moveram automaticamente. A droga estava fazendo efeito. Não
havia foco em seus olhos. Eram os olhos de alguém que não sabia o que falava; não
sabia que sua boca estava movendo e sua garganta tremendo.
N murmurou “ótimo”, sorrindo. Chuuya continuou.
“Não me.… Quem eu sou…”
As palavras transbordaram do intervalo da dor e caíram no chão sem força. Elas se
espalharam, esfriando a sala.
N franziu o rosto descontente, observando pelo monitor. “Aumente a carga”, ordenou.
“Mas…”
“Faça!”
A corrente fluiu pela estaca. A cobra de luz sem forma correu violando seus orgãos,
nervos e músculos.
Chuuya gritou.

•••
A serra circular cortou a tranca da porta e o barulho metálico irritante acabou. O objeto
deformou por causa do calor. Não poderia ser usado novamente. Decidi jogar ele fora
aqui mesmo.
Agora poderei sair. Mas não posso deixar o Shirase-san inconsciente neste lugar. Esta
máquina foi configurada como um investigador androide protetor de humanos. Não há a
opção de abandonar um humano indefeso em um local perigoso não importa a situação.
Preciso ir procurar o Chuuya-sama, mas primeiro tenho que levar o Shirase-san para um
lugar seguro.
Fui abrir a porta cuja tranca acabei de serrar. Mas não precisei. A porta me mandou
voando de repente.
O chão ficou em cima da minha cabeça, ficou por baixo e então novamente por cima.
Enquanto ia rolando, senti uma forte concentração de estresse sobre meus ombros e
minha cabeça. Havia ido para trás com o choque. Foi um tiro.
Dei prioridade alta para uma ação defensiva e prioridade baixa para analisar o que
estava acontecendo ao redor. De acordo com o sensor, são três inimigos. Soldados
fortemente armados. Tendo em vista que aqui é uma instituição militar, não é estranho
esse armamento todo. Devem ter explodido a porta com uma bomba e entrado correndo
na sala.
Analisei o lugar baleado. Há uma fissura em espiral na blindagem da exoderme. Isso é
── mau. É um projeto encamisado anti-material.
Usaram uma ogiva mais suave do que as usadas normalmente em combates contra
humanos comuns. Desse jeito, o projétil para no interior do corpo, tendo um efeito
destrutivo maior. Para usar uma bala que prioriza velocidade e poder de penetração
significa que o inimigo está esperando um combate contra esta máquina sem os meus
equipamentos.
Isso é mau. Extremamente mau.
Ao estabilizar minha visão, vi a porta. Os três soldados já estão vindo com suas armas
apontadas contra esta máquina. A chuva de balas cai incessantemente contra mim
numa densidade impossível de evitar.
•••
Um coração está batendo bem alto. Como um gigante tambor pulsando bem ao lado do
ouvido.
Nakahara Chuuya olha na direção do barulho. Mas claro que não há um coração ali.
De quem são esses batimentos? Meus? Impossível. Eu não sou um humano. Algo
superior como um coração não combina comigo.
Novamente uma corrente elétrica. Todo o corpo de Chuuya convulsiona independente
de sua vontade. Ele sente cada vaso sanguíneo seu sendo arrebentado e o sangue
borbulhando até não sobrar nenhum fluído.
A quantidade de dor suportável para um menino de dezesseis anos já foi ultrapassada
há muito tempo. Felizmente, mesmo gritando, ninguém liga para ele. Então Chuuya grita
em meio a dor. Ele sente o gosto de sangue em sua garganta.
A voz de N fica um tempo sem vir pela caixa de som. Um cientista detesta esforço
inútil. Por enquanto, ele vai deixar Chuuya experimentar o quanto de dor ele quiser e o
ignorar até que aumente o som novamente.
A Habilidade gravitacional ainda não sumiu por completo, mas está bastante
enfraquecida. É possível que veneno esteja sendo continuamente injetado pelos tubos
em suas costas. Seus pés e mãos estão dormentes e sua cabeça confusa. Ele não
consegue distinguir o que está mexendo na realidade e o que está mexendo na sua
cabeça. Algo além de veneno está sendo administrado nele. Um soro da verdade ou uma
droga delirante?
Até quando vou aguentar? Claro que para sempre. Vou mostrar que eu consigo. Mas
para quê?
── Eu não estou sempre te dizendo, Chuuya?
Chuuya levanta a cabeça para a voz repentina. Ele já ouviu essa voz. É a voz da pessoa
que ele mais odeia nesse mundo.
── Você ter nascido foi algum erro. É o mesmo que eu. Qual o sentido de se apegar a
uma falsa vida ao ponto de aguentar essa dor?
A voz diz como se zombando.
“Cala a boca.”
Chuuya sente como se fosse vomitar. Ele sabe que está falando sozinho.
Provavelmente está alucinando por causa da droga. Não há ninguém ali. Mas no seu
coração sem restrições, a voz não para.
“Vai se fuder, Dazai.”
── Não consegue dar outra resposta sem ser essa?
A voz fala bem próxima de seu ouvido. Chuuya sente vontade de cortar suas orelhas
fora. A figura tremulante do Dazai faz com que queira arrancar seus olhos.
── Essa é a prova de que acredita em minhas palavras. Você no fundo é igualzinho a
mim.
“Cala a boca, cala a boca, cala a boca! Eu sou eu! Não sou um merda como você!"
── Bem, para ele você diz isso.
Ouvindo outra voz mais grave ainda, Chuuya gela como tendo seu coração capturado.
── É impossível você continuar mentindo para si mesmo. Eu não te disse quando
entrou?
Ele viu a figura. Agora tinha certeza de o que via era uma alucinação causada pela
droga.
“Piano Man…”
A voz de Chuuya estava seca. Suor escorria por seu queixo.
Piano Man estava encostado na parede do outro lado, com os braços cruzados e
olhando para Chuuya. A mesma pose em que ele sempre ficava no fundo do bar. Não
tinha como esquecer.
── Eu disse, não foi? O motivo pelo qual entrou na Máfia. Pensei que queria causar
uma rebelião. Você parecia querer destruir tudo e a todos por meio de chamas. Ainda
parece.
Outras sombras aparecem deslizando pela parede ao lado do preocupado Piano Man.
Albatross, Ice Man, Lippman e Doc.
Eles falavam sorrindo para Chuuya.
── Nós morremos por causa dessa sua origem especial. Mas não te ressentimos por
isso.
── Nós somos da Máfia. Estávamos preparados.
── Idiota! Até parece! Eu…!
Sorrindo, eles desapareceram. Outra voz surgiu perto de seu ouvido.
── Então morra.
Ao se virar surpreso, quem estava ali parado pálido como um fantasma era Shirase.
── Morra e se desculpe. Para seus amigos da Máfia e para nós, as Ovelhas.
Quando percebeu, os meninos e meninas das Ovelhas estavam à sua volta. Os seus
antigos companheiros. Traição e dispersão. As dezenas de crianças olhavam Chuuya
friamente.
── Você sempre dizia que cumpriria a responsabilidade de ser forte. Era mentira?
── Você não ia nos proteger? Nós não protegemos você quando estava faminto a
ponto de morrer?
Parem.
Chuuya se contorceu tentando tampar os ouvidos, mas suas mãos estavam amarradas.
── Heh, belo rei. Você acabou com as nossas vidas.
── Chuuya, você.
“Fiquem quietos! Então tentem vocês serem reis! Eu entregarei todo esse poder!” Sem
suportar, Chuuya gritou. “Forte uma vírgula! Se eu não tivesse esse poder, agora eu
estaria com vocês…!”
Outro choque. O cérebro de Chuuya esbranquiçou como um flash de luz. E lá no fundo,
uma visão impossível foi projetada.
As Ovelhas não haviam sido dissolvidas. Ainda existiam. Nesse meio, Chuuya não era
ninguém especial. Não tinha Habilidade, era um membro qualquer. Sem ser forte nem o
rei, sem estar no centro da roda, apenas conversava feliz com os outros como parte dela.
“Eu…”
O sonho desapareceu e apenas Chuuya, todo machucado, ficou para trás. Então
silêncio.
No campo de visão de sua cabeça baixa, os pés da próxima alucinação refletiram.
“Amigos e companheiros deixam você. Por qual motivo acha que isso acontece, meu
irmão?”
Chuuya levantou a cabeça devagar. Mais ou menos esperava que fosse ele.
“Agora é você…”
“Sim, mas é o esperado. Assim como você, sou uma existência criada. Aquele
adequado para responder às suas perguntas.”
Dizendo isso, a ilusão do homem ajeitou o ângulo de seu chapéu preto.
“Perguntas… é? Então me responda, o que eu fiz de errado? Onde eu errei?”
A ilusão à sua frente, Verlaine, fez uma expressão um tanto triste.
“Desde o começo.” Os olhos de Verlaine ao responder eram transparentes, sem
demonstrar nenhum sinal de mentira. “Você ter nascido já foi o erro. Assim como eu.”
Você ter nascido foi o erro.
Os punhos de Chuuya tremeram.
Isso está certo? Isso é perdoável?
“Não, não é perdoável. É claro. Eles devem ser julgados.”
“Eles…”
“Você aguentou bem.” Havia gentileza em sua voz. “Você cumpriu toda a
responsabilidade pela sua força. Agora eles quem devem cumprir. Farei cumprirem.
Assim, finalmente haverá um equilíbrio.”
“Haha… Faça mesmo.” O seu riso seco era voltado para si mesmo. “Eu quero acabar
com eles. Mas é impossível, não posso sair daqui. Morrerei no meio da dor e do
desespero.”
“Eu não vou te deixar morrer.”
Verlaine se aproximou de Chuuya e arrancou as estacas. Chuuya ficou estupefato.
Verlaine arrancou todos os eletrodos e os esmagou com a gravidade. Depois tirou o
arame farpado de suas mãos e os tubos ligados a sua coluna espinhal.
“Vou lá matar aquele pesquisador.” Depois de livrá-lo de todas as restrições e examinar
as suas feridas, Verlaine disse, levantando. “Assim como eu planejei desde o início. Pode
ficar sentado aqui. Mas se quiser fazer com que aqueles que acabaram com a sua vida
assumam a responsabilidade, então…” Verlaine estendeu sua mão para Chuuya. “Venha.”
Chuuya o ficou olhando sem pegar sua mão, como se olhasse para algo estranho.
“Por que…”
“Eu te falei quando nos encontramos pela primeira vez ── eu quero te salvar.”
Verlaine sorriu. Não pareceu o sorriso de um espião nem de um rei assassino. Era
apenas o sorriso de um garoto.
“Revolte-se, Chuuya. Revolte-se, revolte-se. Contra essa vida irracional. Revolte-se
contra os pesquisadores que brincaram com ela. Essa raiva trará sua vida de volta. Traga
sua própria vida de volta, Chuuya. Ou quer continuar como uma cobaia numerada?”
Claro que não.
A raiva fez seu sangue circular, levando calor para seus músculos. Chuuya levantou e
pegou a mão de Verlaine com a força de um torno.
“Vamos, irmão.” Verlaine sorriu, dando suporte para o corpo de Chuuya. “Vamos matar
o N e buscar de volta a sua alma desse mundo irracional.”

•••
A chuva de balas cai como um dilúvio sobre esta máquina. Expando o escudo anti-
impacto da minha testa. O escudo parecido com um guarda-chuva é coberto por uma
superliga resistente a calor e impacto, evadindo os ataques mais leves. É um produto
projetado sob medida para aguentar a alta energia do Arahabaki.
Os projéteis encamisados deslizam pelo escudo, caindo para trás. Três deles param no
escudo sem deslizar e a energia de movimento esfolia a liga. Mas o dano é insignificante.
Esta máquina pula com o escudo ainda ativado. Pulo mais um nível sobre o rifle de um
dos soldados. Pouso na parede de trás e ricocheteio me arremessando contra as costas
do soldado. O sensor me avisa que o leve impacto quebrou uma costela. O primeiro já foi.
Em cima dele, dobro minha longa perna igual a uma foice, derrubando a perna do outro
soldado. Furo a nuca do soldado derrubado com a agulha hipodérmica do meu dedo,
injetando uma medicina líquida. Agora são dois.
Mas o tempo para controlar esses dois foi o suficiente para o outro atirar. O terceiro
está apontando a arma para mim. Coloco minhas duas mãos no chão e por causa do
peso sobre meus braços, não consigo abrir o escudo deles. Procuro um contra-plano
rapidamente. Nenhum servirá a tempo.
Não preciso. O corpo do soldado saiu voando.
O corpo dele convulsiona junto ao som do choque elétrico e derruba a arma. Após
alguns segundos de uma voz angustiada, ele cai sem forças.
Esta máquina ── não fez nada.
Do corredor vindo da porta atrás do soldado, o salvador desta máquina aparece. Era
verdadeiramente alguém inesperado.
“Que sem graça.” Ele disse abaixando uma arma de choque usada para subjugar
desordeiros. “Mesmo usando eletricidade, a pessoa só cai. Que chatice.”
“Você é o…”
Osamu Dazai. A pessoa que recrutou o Chuuya-sama para a Máfia do Porto.
“Prazer, investigador. Cadê o Chuuya?”
O menino da mesma idade do Chuuya-sama disse despreocupado jogando fora a arma
de choque.
“O Chuuya-sama…”
“Considerando o tempo que passou, ele já foi pego? Ou será que a essa altura foi
salvo?” Pisoteando o soldado desacordado, ele disse vindo para cá. “Se for o caso, não
vai ter graça. Terei perdido o Chuuya chorando enquanto é torturado.”
“Torturado? O Chuuya-sama?”
Será que o Chuuya-sama está sendo torturado? É possível. Mas como esse menino
sabe disso? Para começar, por que ele está aqui?
O Dazai-san tem a Habilidade de anular outras Habilidades e é a nossa carta na manga
contra o Verlaine. E mesmo o Chuuya-sama tendo tentado contatá-lo, não conseguiu de
jeito nenhum. Então como ele está aqui agora?
“Você vai me perguntar por que eu estou aqui. Eu responderei, faz parte do plano. Você
me perguntará qual plano. Eu responderei, tudo. Desde o começo até o final, eu planejei
esse incidente todo com o Verlaine. Você perguntará como assim.”
Sem entender o que ele estava falando, dei prioridade para a análise de informação.
Mas a velocidade dos pensamentos de Dazai-san é mais rápida ainda. Preciso do meu
máximo para acompanhá-lo.
“Eu responderei, tudo é literalmente tudo. Os alvos do Verlaine, o detetive e o cientista,
foram todos com base nas informações que eu entreguei para ele. Ou seja, o
procedimento de assassinatos dele foi o meu procedimento. Agora você perguntará por
qual motivo.”
Como ele disse, essas são as minhas perguntas. Suas palavras implicam altamente a
probabilidade dele e Verlaine estarem conspirando. A morte do detetive e a situação
perigosa em que o Chuuya-sama se encontra podem ter sido comandadas pelo Dazai-
san. Nesse caso, seria um traidor. Dependendo do que ele responda, esse diálogo pode
se transformar num combate.
Porém sua última resposta ultrapassou de longe o que esta máquina esperava.
“Foi para ganhar tempo antes que o Verlaine chegasse no seu maior alvo. O último alvo
dele é o Chefe da Máfia do Porto, Mori Ougai. Eu manipulei para ele, que seria o primeiro,
ser o último. Graças ao tempo que comprei, logo estarei preparado para a sua vez. Mas
antes disso falta um último toque.”
Dazai-san sorriu, estendendo sua mão para ajudar esta máquina a levantar. Depois
olhando para lugar nenhum com olhos de um ermitão que antecipa tudo, disse:
“Ele, desse jeito, matará o N, perdendo assim sua humanidade. Mas eu quero ver o
Chuuya sofrendo como um humano. Por isso vamos impedi-lo.”

•••
O alarme de segurança tocou como que indicando a calamidade final. As luzes de
emergência vermelhas acenderam mudando o cenário do laboratório. Parecia o
estômago de um monstro.
Todas as comunicações remotas dos funcionários comuns foram liberadas e todos os
circuitos repetiam um aviso.
Há um intruso nas instalações. Todos os funcionários de inteligência interna devem se
livrar imediatamente dos documentos designados. Os membros de operação devem se
equipar e se posicionar. Isso não é um treino. Isso não é um treino.
Excluindo o barulhento alarme da minha audição, esta máquina continuou os seus
deveres. Coloquei o desacordado Shirase-san numa dispensa e tranquei a porta.
“Mudei a tranca para uma chave criptografada que muda com o tempo. Desse jeito, o
Shirase-san estará seguro.”
“Bom trabalho. Agora vamos para o Chuuya.”
Ao dizer isso, Dazai-san saiu andando como se já nem lembrasse do Shirase-san.
“Espere um pouco, por favor, Dazai-san.” Falei para as suas costas. “Você agora há
pouco disse ‘como um humano’. Você sabe se o Chuuya-sama é um humano ou não?”
Sentia uma estranha expectativa de que talvez ele soubesse a verdade. Não tinha
nenhuma base, mas sentia isso. É a insolência dos humanos que os fazem pensar que
uma máquina não tem intuição ou inspiração. Esta máquina também é capaz do que os
humanos conseguem.
“Não sei.”
Dazai-san respondeu prontamente. Mas seus olhos estreitaram levemente, refletindo
alguma profunda especulação.
“N e Verlaine dizem que o Chuuya não é humano. Mas eu não tenho certeza disso
depois de ler as anotações do Rimbaud ── Este incidente de certa forma começou
destes registros.”
Dazai-san tirou então um antigo caderno com capa de couro do bolso.
As anotações do Rimbaud! Rapidamente escaneei o objeto. Será que é verdadeiro? Há
possibilidade.
As anotações do Rimbaud são uma espécie de registro que o falecido espião Usuário
anotava escondido antes de suas missões. Um segredo de Estado por estar repleto de
informações relativas à espionagens. Só havia rumores de sua existência e nenhum
relato de ter sido descoberto.
“Como você conseguiu isso?”
“Pode até tentar descobrir, mas eu só digo mentiras. Porque eu sou um mentiroso,
afinal.”
Dazai-san deu um sorriso misterioso. Rodei o detector de mentiras, mas não houve
nenhuma reação. Seus sinais vitais praticamente não diferem de uma pessoa dormindo.
É anormal os valores estarem normais nessa situação.
Quem é esse menino, afinal?
“Não estamos com muito tempo para ficarmos batendo papo aqui. Temos que procurar
o Chuuya.” Coçando a nuca, Dazai-san disse relaxado.
“Como vamos procurá-lo?”
"É sempre muito fácil." Ele deu um sorriso de quem sabia tudo. "É só irmos para o lugar
mais tumultuado."
•••
Uma explosão ressoou e a parede desmantelada saiu voando. Chuuya atravessou
como um canhão os destroços e a nuvem de poeira que dispersou atrasada com o
impacto cortando o ar.
Na frente, vinha a tropa de segurança da instituição armada e preparada para atacar.
“Departamento de Operação e Pelotão de Assalto Zakuro vigiem a passagem leste!
Engenharia de Combate Warabi explodam a passagem oeste para bloqueá-la!
Precisamos comprar tempo para o Departamento de Inteligência fugir! Comecem a ── ”
Ele não conseguiu terminar de falar. O joelho do Chuuya mandou o comandante voando
para trás com o corpo dobrado.
Os oito soldados apontaram suas armas ao mesmo tempo. Eles eram a elite que
protegia a secreta instituição militar. Estavam em um nível completamente diferente dos
soldados voluntários que guardavam as provisões e equipamentos. Manuseio de armas,
estamina, concentração e sagacidade de combate, todos deveriam ser superiores nesses
aspectos para ganhar permissão de proteger a instalação.
Mas eles eram bons somente em lutar contra humanos. Eles não esperavam ter que
lutar contra uma besta do tamanho de um humano que pulava na velocidade do vento e
atacava com o peso de um caminhão.
“Não deixem ele avançar mais! O quarto do pânico está logo à frente! Precisamos
defender este local até que todos os superiores do Departamento de Inteligência tenham
evacuado!”
Um dos soldados ao tentar atirar foi acertado em cheio pelo Chuuya vindo por debaixo.
Ele voou como se fosse uma folha. Chuuya chutou seu abdome, e dando recuo, acertou o
soldado na direção oposta com outro chute.
A tempestade pulava pelo estreito interior como bolas de sinuca refletidas. Em poucos
segundos, o corredor foi dominado por silêncio e morte, voltando a ser um lugar
silencioso.
Chuuya passou pisoteando os soldados sob seus pés como se não estivessem ali e
colocou a mão na porta do quarto do pânico.
Não abre. É pesada demais e possui uma tranca eletrônica.
Chuuya aplicou uma intensa gravidade contra a porta, tentando destruir a tranca. Mas a
porta não abriu. Por causa do veneno, não conseguia exercer sua Habilidade direito.
“Concentre-se.” Verlaine apareceu do nada encostado de braços cruzados na parede ao
lado da porta. "E dai que foi envenenado? Você é o monstro final desse mundo. Faça a
Habilidade ser sua se quiser matar o terrível homem que se encontra logo à frente.
“Eu… sei!”
Chuuya colocou ambas as mãos sobre a porta, trincando os dentes. A vazão de sua
Habilidade foi aumentando.
A porta era um oponente pensado para aguentar o ataque de invasores, resistente à
explosões, ataques químicos e Habilidades. Além de ser indestrutível contra vários tipos
de Habilidades, não fazia um rangido se quer.
“Concentre-se. Submeta o monstro com a força de sua vontade. Senão morrerá.”
O espaço começou a se distorcer. As roupas de Chuuya flutuaram.
O brilho de sua Habilidade se concentrou em seus punhos.

•••
Que lugar é esse? Foi a primeira coisa que Shirase pensou ao acordar.
Ele estava no armário de equipamentos grande o suficiente para apenas abrir os braços
e pernas. Mas não havia quase nenhuma luz, não podendo ver um palmo à sua frente.
“Chuuya? Adam?”
Ele chamou, mas não teve resposta. Não havia a presença de mais ninguém.
Não, havia sim. Do lado de fora. O som do alarme de incêndio, os passos apressados e
vozes alarmadas. Ele conseguia ouvir que havia um intruso e que era para evacuar os
não pesquisadores. Pelo jeito algum incidente estava acontecendo pelo laboratório.
Laboratório. É mesmo, ele pensou. Shirase se levantou. Eles haviam sido chamados
para esse laboratório militar e tinham descido até o subsolo. Então ele começou a ter
dificuldade para respirar de repente e desmaiou.
Um tirou foi disparado ao longe. E agora ele estava sozinho nesse lugar apertado.
Ele foi deixado para trás, abandonado.
“Merda! Ei, Chuuya, cadê você?! Me tira daqui!”
Ele chutou com toda sua força e a porta abriu facilmente. Surpreso porque achou que
não abriria, Shirase fechou a porta.
Abriu então só um pouquinho novamente e conferiu a situação do lado de fora. Parecia
um depósito escuro com várias cabines enfileiradas, sem ninguém à vista.
Ele saiu agachado do armário, mas quando foi tentar levantar se sentiu tonto de repente
e caiu de joelhos.
Antes de desmaiar lembrou que sentiu dificuldade em respirar e de seu coração doer.
Provavelmente foi veneno. Droga, eles fugiram e me deixaram para trás por acharem
que eu envenenado iria atrasá-los.
Abriu e fechou suas mãos. Estava tentando focar.
Não estou com problemas para me mover, então não posso ficar parado aqui.
Por sorte, havia alguns jalecos pendurados na parede. Ele levantou e vestiu um porque
lembrou do aviso de que era para evacuarem os não-combatentes. Se ele se passasse
por um pesquisador fugindo, poderia sair tranquilamente desse lugar.
Mas não o Chuuya. Ele é com quem a segurança mais está alerta. Será impossível ele
se misturar e fugir. Talvez esteja em perigo.
Mas não é problema meu. Eu não tenho obrigação de salvar ele. Não tenho.

•••
“Destruam todos os documentos! Cortem a energia de tudo menos da oitava rota de
fuga para comprar tempo!” N gritou.
Esse era um dos vários quartos do pânico que havia pela instalação. Era um quarto
comprido o suficiente para caber um trem e possuía todas as coisas necessárias numa
situação de emergência. Equipamentos de comunicação, provisões, gerador e coletes à
prova de bala.
No final do quarto havia um elevador para evacuação pessoal. Por um comunicador, N
dava ordens rápidas para as outras divisões. Ao mesmo tempo, ele conectou duas
longas correntes à fonte de energia e a levou em direção à entrada.
“Notifique a sala de comando do Departamento de Operações para adiar o combate o
máximo que puder! E contate o General de Brigada ── ”
A entrada foi destruída.
A porta passou voando bem na frente de N e acertou a parede.
“Você é um belo pai, fugindo do seu filho.”
Chuuya estava parado na entrada espumando de raiva ao encarar N.
“Hiiii!”
N derrubou as correntes que segurava e recuou até dar com as costas na parede.
“Estava se preparando pra quê? Pra morrer?”
“Es… Espera! Não tinha outro jeito! Foi tudo por causa do trabalho! Eu pessoalmente
nunca quis te fazer sofrer!”
“Ah é? Que pena, então.”
Chuuya andava opressivamente. N recuava no mesmo ritmo com as pernas tremendo.
De braços cruzados na entrada, Verlaine apreciava a cena, sorrindo.
As correntes estavam caída sob os pés de Chuuya. N as estava usando para alguma
coisa antes. Chuuya pegou os objetos do chão e inspecionou suas pontas.
As pontas eram estacas e por dentro passava um fio grosso. Era o mesmo eletrodo
usado na tortura de Chuuya.
“Isso é o que tava enfiado no meu estômago, né? Entendi… Você estava me esperando
com uma armadilha para enfiar esse negócio em mim de novo.”
“E-Eu…”
Chuuya foi trazendo as correntes para perto de sua mão. Ambas estavam conectadas à
fonte de energia no canto do quarto.
“Pra falar a verdade, doeu bastante. Foi uma experiência difícil. Quero que experimente
pelo menos um porcento daquilo.” Chuuya disse olhando as correntes.
No breve segundo que Chuuya direcionou seu olhar para elas, N saiu correndo em
direção ao elevador.
A ponta de uma das correntes penetrou a borda de seu jaleco.
“Vai fugir não.” Chuuya disse com a voz carregada de fúria.
A corrente atirada atravessou a roupa de N e parou na parede. Rodando a ponta da que
sobrou bem perto do chão, Chuuya decidiu com calma o seu próximo alvo.
Com a roupa presa, N não conseguiu fugir nem desviar da outra corrente.
“Espere… O que você está tentando fazer é errado!”
“Não dê ouvidos a ele, Chuuya.” Verlaine disse da entrada olhando para seus dedos
trivialmente. “Ele vai dizer a mentira que for para sobreviver. Foi o mesmo comigo.”
Chuuya estreitou os olhos. O que havia neles era uma intenção de matar que brilhava
bela, vermelha e límpida como um rubi.
“Es-Espera! Foi de verdade só trabalho!”
“Sim. Era trabalho.” Chuuya disse como se vomitando e se aproximou ainda mais.
“Porque era trabalho, você brincou com a minha alma como bem quis. Porque era
trabalho, você trancou o outro eu e o matou. Você faz o que for pelo trabalho. É o mais
desprezível de todos. Então morra pelo trabalho.”
Chuuya envolveu as correntes com gravidade. As estacas flutuaram.

•••
Esta máquina e Dazai-san andávamos rápido pelos corredores.
“Não há prova em lugar nenhum de que Chuuya seja humano. Porém também não há
provas de que não seja. O Verlaine é apenas um cara que roubou o Chuuya. Ele não
testemunhou com os próprios olhos que o Chuuya é uma Habilidade artificial. E há
chances do N estar mentindo.”
O N está mentindo?
“Por que ele mentiria?”
“Sei lá. Mas um mentiroso de primeira mente até porquê mente. E eu sinto o cheiro de
mentiroso profissional dele. Não sente?”
Dazai-san sorriu. Em seu sorriso havia um frio divertimento.
Contudo ele tem razão. Desde que entrei no laboratório, escaneei os sinais vitais de
todos que encontrei. A intensidade dos raios infravermelhos, os batimentos, a quantidade
de dióxido de carbono expirada, pupilas e transpiração. Claro que com o N também. Mas
não houve nenhuma indicação precisa de ele estar nos traindo.
Chuuya-sama talvez seja um ser artificial. Talvez seja humano. As chances são meio a
meio.
Aumentei em 40% a velocidade de movimentação desta máquina. Se é meio a meio, ele
não deve matar o N, pois será algo irreparável.

•••
A estaca flutuava no ar enquanto a corrente soava como um cão momentos antes de
uma briga.
“Logo ficará em paz.”
Chuuya controlava a estaca. Ele puxava de volta a corrente que tentava voar para o lado
como se num cabo de guerra. Se ele a soltasse um pouco, ela sairia voando como um
foguete.
A ponta afiada estava apontada na direção de N, que não podia fugir pois a outra
corrente estava atravessada em sua roupa, fincada na parede.
“Faça, Chuuya.” De braços cruzados, Verlaine disse alegre, quase que assobiando. “Se
liberar essa intensidade de gravidade, em vez de atravessar, ela vai é explodir o corpo
inteiro junto. Morrerá sem nem sentir. Não é mesmo, senhor pesquisador?”
“Espere, Chuuya-kun! Amanhã você, com certeza, irá se arrepender disso!”
“E eu lá quero saber o que acontecerá amanhã?” Seus olhos estreitaram querendo
matá-lo mais ainda. “Eu sempre fiz o que quis. Protegi quem quis e acabei com quem
não gostava. Hoje será apenas o mesmo.”
“Espere, pare!”

•••
“Ali é o quarto do pânico!”
No momento em que dobrou o corredor, Dazai-san gritou. Seguindo a direção de seu
olhar, havia uma porta nos fundos. Perto dela, alguns seguranças estavam caídos.
“Licença!”
Deixando o Dazai-san, esta máquina pulou por sobre a montanha de soldados e
aterrissou em frente a porta. Toquei o terminal e busquei pela senha. Encontrei em 1,22
segundos. A porta destravou.
“Chuuya-sama! Não pode matá-lo!”
Sem esperar a porta abrir por completo, entrei correndo no quarto. Então meus olhos
arregalaram.

O quarto estava vazio.

Não havia ninguém e não parecia que ninguém esteve ali. Ao escanear o chão, percebi
que havia um pouco de sujeira acumulada. Nenhuma pegada. Pelo jeito, não era usado
há anos.
Não era aqui. Chuuya-sama estava em outro quarto.
Já não ── dá mais tempo.

•••
“E eu lá quero saber o que acontecerá amanhã?” Seus olhos estreitaram querendo
matá-lo mais ainda. “Eu sempre fiz o que quis. Protegi quem quis e acabei com quem
não gostava. Hoje será apenas o mesmo.”
Uma enorme quantidade de gravidade estava sendo acumulada na corrente, igual a
uma flecha antes de ser lançada.
“Espere, pare!” N levantou a mão, gritando. Não havia mais nada que pudesse fazer.
A mão que segurava a corrente afrouxou. O objeto contendo uma tensão capaz de
atravessar uma casa inteira foi lançado.
O estrondo tremeu o quarto. A corrente que ultrapassou a velocidade do som gerou
uma onda de choque e atravessou direto o alvo numa velocidade explosiva sem o menor
desvio que fosse.
Reto e preciso ── o peito de Verlaine.
“Gah…. ha….”
Sangue jorrou do local acertado. Verlaine estava petrificado. A ponta da corrente foi
parada pela gravidade, mas, mesmo assim, ela cravou a carne e chegou até o fundo.
Chuuya girou seu corpo na direção de Verlaine. No momento em que a corrente foi
liberada, ele girou seu corpo novamente e mudou a direção do voo.
“Não fique se achando, Verlaine. É verdade que esse pesquisador aqui fez coisas
horríveis. Mas quem matou meus amigos foi você.” Chuuya disse batendo em seu
próprio peito. “Há vidas queimando aqui dentro. As vidas deles ── até que se acalmem,
não tem como eu fazer o que eu quero. Farei o que é preciso fazer. Esse sou eu.”
“Chuuya… você…!”
Verlaine agarrou a estaca e tentou soltá-la. Mas antes que o fizesse, Chuuya correu até
o final do quarto e puxou a alavanca da corrente.
A corrente elétrica no seu máximo correu como um dragão brilhante e acertou Verlaine.
“Guaaaaaaaaaaaaah”
Todo o seu corpo foi eletrificado. Até o forte Verlaine que consegue resistir a tiros e
golpes físicos, da mesma forma que o Chuuya, não consegue se manter invencível contra
a eletricidade.
“O que é preciso fazer?” Verlaine agarrou a corrente enquanto seu corpo queimava e
convulsionava. “Por que não entende? Não há nada que você precise fazer! Viva como
quer e destrua como quiser! Por que a única coisa que precisávamos ter feito era não ter
nascido!”
Seus dedos trêmulos fizeram força e foram puxando a corrente para fora aos poucos.
"Cala a boca." A luz da vontade brilhava nos olhos de Chuuya. “Você, talvez. Mas não
queira me incluir nessa também. Eu… não penso dessa maneira.”
Várias sombras corriam no brilho de seus olhos.
Seus companheiros das Ovelhas. Seus companheiros da Máfia do Porto.
Era o brilho da própria vontade. O brilho de uma história que só pode ser acumulada
pelos encontros e despedidas; de um humano forte.
“Você estava errado desde o começo.” Chuuya disse com desprezo. "'Foi um erro ter
nascido?' Eu nunca pensaria algo igual ao idiota do Dazai!"
Verlaine arrancou a corrente e a jogou fora. Na mesma hora Chuuya veio com tudo.
“Chuuyaaaaaaaaa!”
"Verlaaaaaaaaaaaineeee!"
Verlaine ergueu o punho. Chuuya também o estava erguendo contra o outro na mesma
velocidade.
Punho com punho se chocaram e uma explosão negra eclodiu.

•••
“O sistema de destruição automática da instalação está em andamento. 68% dos
equipamentos foram interrompidos. Descobrirei o quarto em que o Chuuya-sama está
antes do desligamento completo.”
Esta máquina se conectou aos dispositivos de comunicação e tentou invadir o sistema
geral do lugar. Sobrou uma alternativa para nós que perdermos o Chuuya-sama. Invadirei
o sistema de segurança do terminal do quarto do pânico e descobrirei onde está havendo
combate. Só resta isso.
Para que o VIP dentro do quarto consiga dar ordens, há uma linha conectada ao
sistema de segurança. Mas como é uma linha militar secreta, a segurança é bem severa
e depois de ter sido usada, vários terminais intermediários estão caindo para que haja
um apagão total. É como querer atravessar uma ponte suspensa, mas as tábuas irem
caindo uma por uma.
"É melhor ganhar controle do sistema de distribuição de combustível." Dazai-san disse
girando numa cadeira rotativa com as mãos atrás da cabeça. “Todos os documentos
deste local serão queimados a fim de destruir as evidências junto com o laboratório,
depois que os funcionários evacuarem. Use isso como ponto de apoio para controlar
todo o lugar.”
“Assim farei.”
Foi muito mais fácil ganhar controle sobre o sistema de abastecimento em comparação
a outros (sistemas de preservação de vida e segurança e sistema de controle de
memória principal). Depois dei a ordem de supressão de outras instalações para o
processador subjugado, estendendo a minha área de controle.
“Será que vai dar certo?”
Enquanto lutava contra o sistema, falei.
“O quê?”
Dazai-san levantou o rosto e olhou para esta máquina.
“O Verlaine. Depois de encontrarmos o Chuuya-sama, o que nos espera é um confronto
com Verlaine. Será que conseguiremos vencê-lo?”
“Quem sabe.” Dazai-san respondeu desinteressado.
“Claro que eu pensei numa maneira de vencermos, mas se não ganharmos, só
morreremos e pronto. Contudo há uma coisa certa que podemos dizer sobre Verlaine.”
Dazai-san abaixou as mãos, olhando para esta máquina com olhos mais mecânicos do
que uma máquina.
“Não há um humano neste mundo capaz de vencê-lo com um simples combate.”

•••
Uma tempestade violenta é gerada no pequeno quarto. Punho com punho colidiam e
minúsculos sóis nasciam e sumiam. As gravidades que se chocavam comprimiam o
espaço que logo voltava ao normal. Ondas de choque apenas corriam enlouquecidas
pelo quarto, destruindo a mesa e jogando os equipamentos eletrônicos contra a parede.
"É só isso, Chuuya?!" Verlaine gritou.
A parede por onde seu punho passou raspando rachou como um biscoito e
desmoronou.
Chuuya desviou de um amontoado de meteoritos que se o acertassem, tudo acabava ali
e deu um chute. Verlaine se defendeu com a gravidade.
Mas momentos antes de acertar, o chute de Chuuya mudou de trajetória para um de
corte médio que atravessaria o tronco do outro.
O chute acerta e Verlaine geme. Mas quem fica pálido foi quem deu o golpe, Chuuya.
Os cinco dedos de Verlaine agarram o rosto de Chuuya no momento do chute. Muito
mais ágil do que a resistência do outro, Verlaine o joga contra a parede.
Uma cratera circular é formada na parede.
Chuuya agarra a mão de Verlaine, tentando se desvencilhar dela, enquanto grita de dor.
Mas sua mão corta o vazio. O braço que deveria agarrar não está mais lá.
No momento seguinte, o chute de Verlaine acerta o tronco de Chuuya. A parede atrás
dele é pulverizada. Chuuya, ao receber o impacto de um caminhão e ter sido chutado
contra uma parede, vomita sangue. Por não ter conseguido suprimir o choque de ter
voado para trás, o dano é muito maior do que qualquer ataque recebido antes.
Pulverizando a parede, Chuuya sai voando para a sala ao lado, pulverizando a próxima
parede e a próxima. Tendo voado duas salas com um único chute, Chuuya não mais
consegue ver Verlaine coberto por destroços e poeira.
Verlaine abaixa a perna, checando seu próprio ferimento.
Sangue está fluindo do local em que foi perfurado pela estaca, sujando sua roupa. A
ferida é profunda.
“Por que não entende, Chuuya?” Verlaine olhou para o sangue em sua mão, franzindo.
“Não faz sentido nós brigarmos.”
Então, seu olhar vai para uma placa de ferro caída no chão. Era o tampo de uma gaiola
para ratos.
Verlaine o puxa com o pé e após fazê-lo flutuar, chuta o objeto. O tampo sai deslizando
pelo ar e acerta a parede diante dos olhos de N, por onde se esgueirava.
"Hii."
“Achou que eu deixaria você escapar?”
Verlaine ergue N pelo pescoço e o pressiona levemente contra a parede.
“Você não vai sobreviver a hoje.” Uma luz se acendeu em seu olhar. Era repulsa. “Eu
consigo ver a perversidade dentro de você. Uma escuridão mais negra do que qualquer
mal.”
N espasmou um sorriso e disse com a voz rouca:
“Isso é algo que um assassino como você… deva dizer?”
“Há vezes em que dar vida é mais cruel do que matar.”
Verlaine pôs força nos dedos. O espaço em volta começou a se deformar com a
gravidade gerada.
“Es-Espera! Me escute!”
“Não irei.”
Verlaine apertou os dedos. A opressora gravidade que esmaga toda a massa começaria
a cortar fora a cabeça de N ── um momento antes disso acontecer, N gritou:
“Se me matar, o segredo sobre você será perdido!”
Os dedos de Verlaine pararam.
O tempo passou. Um, dois segundos. Ninguém disse nada, se moveu ou piscou.
"…O que disse?" Cinco segundos depois, Verlaine falou com uma voz abalada.
“Não é mentira. Tudo será perdido. Tudo. O segredo que você mais deseja saber sobre
a Floresta Gentil também.”
Pode-se ouvir o som de uma respiração. Era Verlaine.
“Maldito!”
Um soco. O punho de Verlaine foi livre na direção em que ele não estava segurando N. O
soco acertou e o choque fez o quarto tremer.
O punho tinha acertado a parede bem ao lado do rosto de N. O impacto fez a parede
quebrar numa teia de aranha e os destroços salpicaram para o chão.
“Se estiver tentando me enganar, tenha em mente,” a voz de Verlaine era grave como se
vindo das profundezas do inferno, “se eu sentir que está mentindo, arrancarei cada osso
do seu corpo com você vivo.”

•••
Das dezoito entradas, invadi a décima segunda. Coloquei o segundo e terceiro núcleo
sob controle e usando a capacidade de cálculo deles, ataquei o quarto e o quinto. Até ai
tudo bem. Com isso, dentro de alguns minutos serei capaz de obter o sistema de
segurança para poder procurar pelo Chuuya-sama.
O problema vem agora.
Não há um humano neste mundo capaz de vencê-lo com um simples combate.
Fiquei ruminando as palavras de Dazai-san. Isso significa que não dá para vencer o
Verlaine?
Ao olhar para ele, Dazai-san disse “esse é o ponto”, como se tivesse lido meus
pensamentos.
“Eu comprei tempo para descobrir como.”
Ele tirou um caderno do bolso. O mesmo caderno de couro de agora há pouco ── as
anotações de Rimbaud.
“Além da sua Habilidade gravitacional, ele possui técnicas espiãs. É uma força
transgressora. Praticamente não tem pontos fracos. Mas... há algo que ele teme.”
“Que ele teme?”
“Ele próprio.” Dazai-san deu um sorriso misterioso. “Da mesma forma que o Arahabaki
é para o Chuuya, a Singularidade dentro dele é uma existência fora da autoridade dele. Se
ela sair de controle, ele e tudo ao redor irá pelos ares. Será o mesmo pesadelo do distrito
Suribachi.”
O pesadelo do distrito Suribachi.
Procurei no meu arquivo de conhecimentos. Provavelmente o Dazai-san está falando
da explosão de nove anos atrás. O Arahabaki dentro do Chuuya-sama se descontrolou,
explodiu a área em volta e desapareceu com tudo deixando apenas uma cratera gigante
de dois quilômetros de diâmetro. A verdadeira violência da Singularidade. A
manifestação de algo que não está nesse mundo.
O monstro que causou isso também dorme dentro de Verlaine.

•••
“O Segredo da Floresta Gentil…” A voz de Verlaine continha uma enorme cólera, “como
você sabe disso?”
“Usuário artificial, Paul Verlaine,” N disse gentilmente querendo desviar da pergunta, “o
mestre da escuridão está dormindo dentro de você. Outro Arahabaki. Diferentemente do
que nasceu no laboratório, o demônio dentro de você foi composto por um único Usuário.
E você matou esse criador com suas próprias mãos. Por isso ficou impossibilitado de
saber sobre esse monstro em seu interior para sempre. Você tem medo dessa
manifestação.”
“O que quer dizer?” Verlaine perguntou irritado. “Você sabe sobre o que há dentro de
mim?”
“Quem sabe? Mas se eu souber, ninguém mais sabe.”
Enquanto falava, N moveu sua mão direita lentamente. Era o braço no ponto cego
escondido pelo braço de Verlaine. Movendo cuidadosamente como um caracol, ele foi
aproximando os dedos de sua roupa.
“Nós criamos o Arahabaki a partir dos documentos recebidos da inteligência alemã
pelo serviço secreto do exército. Quando eu li esses documentos, tive calafrios. Quem
construiu você é um demônio. Um humano não seria capaz de conceber tal ideia.”
Os dedos de N agarraram o painel dentro de seu bolso. O mesmo painel que entregou
para Chuuya diante do tanque de água negra.
“O máximo de maldade que eu consigo fazer é este.”
Ele apertou um botão e o teto entrou em colapso.
O teto sobre a cabeça de Verlaine começou a desmoronar com o choque e destroços
choveram sobre ele. Mas não somente isso. O líquido preto azulado também.
Verlaine rapidamente ergueu ambos os braços e se defendeu. Mas algo choveu entre o
líquido e os destroços.
Verlaine foi mandado para longe, colidindo com a parede dos fundos. Em seu rosto
havia dor e surpresa ao mesmo tempo. O motivo é que não existia nada capaz de
penetrar sua defesa gravitacional e empurrá-lo.
“Achou que a minha carta na manga era só uma mera corrente elétrica?”
N riu. O dono do ataque desceu ao seu lado.

Era um esqueleto.

Estava suspenso por um aglomerado de tubos de injeção e cordas para medir os sinais
vitais, coberto apenas por uma vestimenta de resina usada em experimentos. Era o que
havia sobrado do humano que morreu nos braços de Chuuya e teve sua carne derretida.
O original do Chuuya.
Quando Verlaine entendeu quem era, seu rosto foi coberto de ira.
“Malditoooo!”
“Essa é uma técnica nossa, não imitamos da Europa. Aproveite a fórmula de destruição
nele.”
O esqueleto voou cortando o vento. Os ossos sem músculos acelerados pela gravidade
colidiram com Verlaine.
Verlaine o parou segurando seus ombros. Sem conseguir extinguir sua força, os
sapatos de Verlaine quebraram o chão.
A competição das duas gravidades criou um pequeno vórtex gravitacional no centro da
sala. Insistindo, o esqueleto abriu a boca para morder Verlaine. A mandíbula sem
músculos batia repetidamente.
“Está sofrendo?”
Verlaine estreitou os olhos. Em sua voz havia um leve tremor de emoção.
“Desculpa… mas não há mais lugar nesse mundo em que você possa existir.”
Verlaine aumentou a capacidade de sua Habilidade. O esqueleto caiu de joelhos,
rangindo e foi pressionado contra o chão.
“Eu te levarei para a terra e o colocarei para dormir onde possa ver as estrelas. Mas por
enquanto, espere obedientemente.”
Verlaine inverteu a gravidade fazendo com que o esqueleto flutuasse. Os destroços ao
redor também flutuaram.
Verlaine abriu a mão.
O campo gravitacional comprimido foi rápido em direção à saída. Verlaine restringiu
deliberadamente a saída desse campo em uma direção, fazendo com que o esqueleto
acelerasse, se tornando uma bala de canhão voando velozmente.
Sem parar mesmo depois de acertar a parede, saiu atravessando as seguintes
enquanto rotacionava. Chocando-se também contra os tetos, foi coletando detritos e
vigas de aço até perfurar uma parede final e parar.
Verlaine estava de pé olhando na direção em que o esqueleto saiu voando. Inúmeras
emoções formavam uma sombra em seu olhar.
Trincando os dentes, bateu com toda sua força na mesa por perto. A mesa, que já
estava deformada pelas consequências da luta, partiu ao meio.
Então olhou ao redor da sala. N não estava mais lá.
Havia fugido pelo elevador de emergência. Verlaine andou até ele e abriu sua porta. A
cabine já tinha partido. Estava subindo com N dentro.
Sem mudar sua expressão, puxou os cabos de aço suspensos. Imediatamente pode-se
ouvir o barulho de metal sendo cortado, vários pedaços de ferro caindo e o eco da mola
de segurança quebrando.
Verlaine parou com uma mão a cabine que despencou.
Abriu a porta e puxou N para fora.
“Vou te matar.” Não havia as chamas de fúria nos olhos de Verlaine. Apenas um ódio
negro como se tivesse derramado lodo fervendo. “Mas não da maneira de um assassino
profissional. Irei te matar como nunca fiz ── em meio ao desespero, dor e remorso,
desejando a morte. Te darei tempo suficiente para você se arrepender do que fez.”

•••
Seu flanco dói tremendamente. Todos os seus nervos pulsam em dor.
Ao tentar se levantar, sentiu um desconforto viscoso no lado de seu corpo. Chuuya
passou o dedo na origem da dor. Uma barra de ferro estava penetrando os músculos em
sua cintura.
Quando as paredes foram destruídas, um material de construção do prédio acertou o
seu corpo. A ponta da barra está para fora. Não dá para saber o tamanho da parte de trás
porque está enterrada em escombros.
Depois de ter sido mandado pelos ares pelo ataque de Verlaine, ele atravessou várias
salas e ficou coberto de destroços. Foi impossível se proteger de todos os impactos. Está
sangrando por todo o corpo. A ferida em seu flanco, principalmente, é bem funda.
Chuuya quase nunca se machucava, por isso ele não estava acostumado a supor a
profundidade do ferimento pela dor, nem medir a gravidade da situação pelo estado da
ferida. Quando ele ocasionalmente se machucava numa missão, os excelentes médicos
da Máfia do Porto o curavam em poucos dias.
Excelentes médicos. Como o Doc.
O nome de seu companheiro gelou o coração de Chuuya. Doc não está mais aqui. Não
só ele. Nenhum companheiro está mais…
Ignorando a ferida, Chuuya tentou se levantar. Ignorou a dor também. Sangue fresco
jorrou de seu ferimento.
“Eu não posso… parar…”
Mantendo os dois pés firmes, ele tentou puxar a barra de ferro para conseguir se
levantar. Logo depois, um impacto o acerta e ele é puxado de volta. Ele não esperava
esse impacto.
A barra penetrou profundamente de novo e o sangue escorreu.
“Gah…!”
Chuuya levantou a cabeça. Lá estava o esqueleto.
Tubos e cordas. Vestimenta de resina para experimentos. Um pálido esqueleto que só
está mantendo a forma por causa da gravidade. Ele monta em cima de Chuuya, tentando
esmagar o seu corpo.
“Você…!”
Chuuya geme, suportando a gravidade rival. Sob a gravidade excessiva, os dois corpos
gritam em rangidos.
“Pare! Não tem sentido fazer isso! Você sou eu!”
Mas o esqueleto não entende a voz. Ele apenas tenta esmagar o Usuário perto dele em
obediência ao comando de destruir. Uma vontade de matar irracional e sem forma.
Ossos rangem. Não se sabe de quem. A gravidade gerada pelo esqueleto ultrapassa a
suportada por uma pessoa.
Suor frio escorre pela testa de Chuuya. O esqueleto não importa de se quebrar, porém
não é o mesmo para Chuuya. Se ambas as gravidades continuarem a empurrar uma a
outra, os dois corpos com a mesma resistência serão esmagados ao mesmo tempo.
Preciso fazer algo. Mas ele sou eu.
Seu flanco dói. Dói muito.

•••
Não, não.
Não, não, não. O que é aquilo? Um esqueleto? Mentira, né?
Shirase esfregou seus olhos. Não era uma ilusão. A paisagem ao seu redor se
distorceu. Por causa do grampo gravitacional, os seixos flutuavam no ar.
Ou seja, uma Habilidade gravitacional está sendo gerada ali. Ou seja, o Chuuya está ali.
De tão surpreso, Shirase quase deixou cair o saco que estava segurando. Mas o pegou
do chão rapidamente.
Mesmo sendo um saco de roupas, não eram roupas que havia dentro. Eram objetos de
valor.
Enquanto procurava um jeito de fugir, ele entrou no laboratório e foi pegando tudo o que
encontrava de valor. Até porque os seguranças e funcionários já tinham ido embora.
Além disso, ainda havia muitas coisas no laboratório, como joias usadas para
transmissores de laser e terminais de computação de alta velocidade, que se vendidos
fariam uma fortuna.
Shirase pensou.
Eles vão incinerar tudo mesmo dizendo que é para se livrarem das evidências. Então
como base para a reconstrução das Ovelhas, é muito mais útil eles renascerem como
fundos militares. Eu sou um gênio mesmo.
Com esse pensamento, enquanto saqueava a cena, Shirase se perdeu e veio parar
nessa sala.
Ele olhou para todos os lados. Não havia sinal de mais ninguém além do Chuuya e do
esqueleto. Eles parecem estar brigando. Shirase viu de relance o rosto do Chuuya em dor.
“Chuuya!”
Ele ia sair correndo por reflexo, mas parou rapidamente
O que eu tô fazendo? Se eu for ali, eu morro! Seria a maior burrice do mundo eu me
meter numa luta entre dois monstros. Eu não sou tão burro assim. Sempre me mantive
esperto e seguro. Foi como sobrevivi até hoje.
É responsabilidade do Chuuya lutar. É responsabilidade do Chuuya instaurar o quão
terrível nós somos nos nossos inimigos. O resto fica com a gente. É o esperado. Ele
possui a força. É natural que assuma esse dever.
Mas o Chuuya de hoje está fraco. Ele está todo machucado. Nunca o vi assim. Parece
um menino da minha idade.
Não, não parece. Ele tem a mesma idade. Shirase percebeu isso de repente.
“…”
Mas mesmo assim. Mesmo assim não é problema meu.
“Foda-se! Eu vou fugir! Mesmo sozinho! Tô nem ai dele ser uma arma militar, sobre a
verdade de sua Habilidade. Vocês façam como quiserem! Eu só quero aproveitar a vida!”
Segurando a bolsa de forma preciosa, virou de costas e começou a andar. Como se
cravasse cada passo largo.

•••
O peso do esqueleto aumentou. O som mais grave junto aos de seus ossos rangendo
era provavelmente do chão sendo estraçalhado. O corpo de um humano normal já teria
se tornado um com esse chão há muito tempo.
“Pare…” Chuuya sussurrou com seus pulmões sendo esmagados. “Você sou eu…”
Em seu olhar havia um brilho de hesitação.
A mandíbula do esqueleto batia. As cavidades escuras sem um traço de luz encaravam
Chuuya. Não havia emoção ali. Não havia nada. Era um perfeito vazio.
Dessas cavidades, desse nada, Chuuya entendeu as palavras. Talvez fosse impressão
sua, mas ele não conseguia parar de pensar nessa frase. Conseguia sentir como se o
esqueleto estivesse emitindo uma única ideia sem sentido.
── Era para você ter ficado assim.
“Você sou eu.” Chuuya disse olhando para os ossos que haviam se afastado de sua
humanidade, sem nem ter consciência do que estava dizendo. “Então… o que sou eu?”
A gravidade aumentou. O rosto do esqueleto se aproximou diante de seus olhos como a
própria morte.
Nessa hora, alguém gritou.
“Uwaaaaaaaaaaaa!”
Alguém veio correndo com tudo contra o esqueleto e o jogou para longe. O esqueleto e
a figura humana rolaram pelo chão como um só.
Chuuya arregalou os olhos. Ele conhecia esta pessoa.
“Shirase…?!”
Shirase, que havia rolado, se levantou gritando numa voz estridente algo que não deu
para entender.
O esqueleto que estava pondo toda sua gravidade sobre o Chuuya ficou completamente
indefeso contra o ataque vindo pela lateral. Com o impacto, a ulna do braço direito se
desprendeu. Mas isso em nada afetou seus movimentos. Ele abriu a boca e tentou
devorar Shirase.
Shirase levantou o saco e o esqueleto mordeu ele em cheio.
Ouviu-se o som das preciosas joias e equipamentos eletrônicos quebrando dentro. Mas
as joias eram mais duras do que ossos e ferro. A mandíbula do esqueleto quebrou.
“Shirase, seu idiota! Fuja!”
“Uwaaaaaaaaaaaa!”
Shirase balançou os braços de olhos fechados. Sem querer, ele acertou um tubo
conectado à coluna do esqueleto.
O tudo saiu e o líquido preto azulado derramou para fora. O esqueleto caiu um pouco
para frente, mas parou alguns segundos depois.
Chuuya ao perceber isso, gritou:
“Shirase! Puxe todos os tubos conectados a ele!”
Shirase estava balançando as mãos sem pensar em nada, mas logo depois ele
entendeu o significado da ordem. Rolando coberto de liquido, ele segurou todos os tubos
que o esqueleto arrastava como uma cauda e os puxou de uma só vez.
O amontoado de tubos que continuavam até a sala ao lado soltaram da coluna. O
esqueleto gritou.
Os ossos não tem órgãos vocais. Eles não conseguem fazer a garganta vibrar e gritar.
Era a Habilidade desaparecendo, os resquícios da gravidade que estavam vibrando o
osso e reverberando um som parecido com o de um instrumento.
Um ressoante grito da alma sumindo. Pareceu o choro dos últimos momentos do
menino.
Finalmente tendo perdido sua fonte de energia e ordens, a cabeça do esqueleto caiu
como se ele tivesse quebrado o quadril e sem a gravidade que o mantinha no lugar,
desmoronou. As fissuras dos ataques se espalharam, transformando-se em inúmeros
fragmentos brancos que sumiram.
E o esqueleto desapareceu como se nunca tivesse existido ninguém ali.
Um tempo depois de testemunhar a cena em transe, Chuuya levantou com calma.
“Shirase.”
Pressionando o lado da barriga, Chuuya olhou para o outro menino.
“Que foi?”
Chuuya ficou olhando para ele querendo dizer algo. Depois de observar por alguns
segundos o Shirase com o corpo todo coberto de sujeira e líquido preto, falou:
“Você tá imundo.”
“Cala a boca!”
Chuuya estendeu sua mão. Segurando-a, Shirase levantou.
“Vamos. Temos que encontrar com o Adam.”
“Sim.”
Os dois saíram andando lado a lado. Shirase olhou de relance para Chuuya. Ele estava
todo machucado, coberto de poeira e sangue. Havia incontáveis marcas de pancadas
pelo seu corpo e sua barriga sangrava.
“Hein, Chuuya.”
Chuuya se virou.
A expressão de Shirase entregava que havia algo que ele precisava dizer, de que ele
precisava se desculpar.
Chuuya esperou calado. E então Shirase falou:
“Você tá imundo.”
Chuuya abaixou os olhos, rindo.
“Cala a boca.”

•••
A primeira coisa que esta máquina pensou ao entrar correndo no quarto foi que um
dinossauro havia destruído tudo. Era esse o nível de destruição.
Mesas e cadeiras não tinham mais sua forma original, o chão completamente
estraçalhado e na parede, dois buracos do tamanho de uma pessoa. Não havia um móvel
se quer no lugar, fazendo com que esta máquina não conseguisse discernir de imediato
como ele era originalmente.
Mas a minha atenção não pôde continuar na cena desastrosa. Porque existia outro alvo
a ser lidado com alta prioridade.
O Rei Assassino, Verlaine. Ele estava no fundo do quarto olhando para cá. Sua mão
estava no pescoço do pesquisador N com a pegada de quem segura a coleira de um
cachorro dormindo.
“So… corro…!” N disse com a voz trêmula.
Apontei a arma na hora.
“Solte ele.”
“Esse cara?” Verlaine fez uma expressão de quem ficou surpreso com a proposta.
“Você não é humano, por isso está pensando com lógica. Onde está o valor de proteger
um lixo desses? Vai lutar até a morte por ele?”
“O motivo de minha existência é proteger os humanos de crimes.” Falei apontando a
arma para Verlaine.
“Esta máquina não tem a função de julgar se o alvo de proteção é um lixo ou não.”
“Que inveja.” Sorrindo de forma sarcástica, Verlaine abaixou o olhar para sua mão. “Não
se preocupe. Não irei matá-lo… tão facilmente.”
Uma voz veio então por detrás .
“Mesmo que leve ele de volta e o torture, ele não falará nada, Verlaine-san.”
Verlaine olhou para a direção da voz, ligeiramente surpreso.
“Dazai-kun…”
“Oi. Coincidência te encontrar aqui.”
Dazai-san veio andando com a tranquilidade de quem passeava perto da própria casa e
parou do meu lado.
“Você ter vindo aqui significa que… sim. Fui traído, né?”
“Traição não soa bem para a minha reputação. Eu, desde o começo, estava desse lado.”
“Desse lado? Alguém como você tem lados?”
“Fufu… realmente é divertido falar com você.” Dazai-san deu um sorriso vago.
Dazai-san e Verlaine. Os dois super-humanos olharam um para o outro, calados,
sorrindo um tipo de sorriso incompreensível para humanos normais.
Enquanto eles conversavam, esta máquina rodou o módulo de avaliação de combate.
Nós temos uma arma, mas não importa o cálculo que faça a chance de ganharmos não
passa de 0.1%. Nessa situação, atirar não é um bom plano. Só resta esperar alguma
movimentação.
Porém a situação progrediu muito mais rápido do que esta máquina esperava.
“Ah… Verlaine-san,” Dazai-san disse percebendo algo, “é melhor abaixar a cabeça.”
Ao dizer isso, ele abaixou sua própria cabeça na altura do peito. Verlaine fez uma cara
de suspeita.
No momento seguinte, destroços vieram voando como uma bala de canhão.
Um deles passou bem por cima da cabeça de Dazai-san, se quebrando e outro acertou
Verlaine. Os detritos caíram com força sobre os braços suspendidos automaticamente.
“O que tá fazendo, Dazai maldito!” A voz cheia de ira choveu. “Não entre na minha linha
de visão sem a minha permissão!”
“Olá, Chuuya. Como foi a tortura?” Dazai-san sorriu com o canto da boca. “Eu tinha um
plano para te salvar antes que você fosse feito de gato e sapato, mas desisti porque não
teria graça.”
“Maldito!”
Verlaine que estava distraído por alguns momentos, assentiu como que satisfeito.
“Entendo. Esses são vocês.”
Chuuya-sama e Dazai-san estavam um ao lado do outro. Surpreendentemente, havia
algo de perfeito nessa cena.
Dois meninos de personalidades completamente diferentes.
“Ouvi que vocês dois mataram o Rimbaud sozinhos.”
“Irá se vingar, Verlaine-san?”
“Não.” Balançando a cabeça, Verlaine olhou para algum lugar distante. “Antes de vocês
o matarem, ele já estava morto. Dentro de mim ── a partir do momento que eu atirei nele
pelas costas nove anos atrás.”
Vendo sua expressão, Dazai-san deu um passo para frente.
“Sabe porque eu consegui fazer isso, Verlaine-san?” A expressão do Dazai-san
demonstrava uma sagacidade brilhante. “Porque eu terminei de ganhar tempo. Você
morrerá pelo crime de ter se tornado inimigo da Máfia.”
Verlaine apenas deu de ombros para a fria sentença de sua morte.
“Veremos. Já me ameaçaram dessa forma várias vezes, mas no final sempre
fracassaram.”
Verlaine agarrou o pescoço do assustado N e recuou. Minha arma o seguiu.
Dazai-san disse calmo:
“Sua Habilidade é poderosa, mas eu já entendi como ela funciona. Só precisamos agora
esmagá-la com uma força maior.”
Verlaine riu inesperadamente como que se divertindo.
“Você entendeu o meu poder?”
Verlaine levantou o braço na direção do teto. Sua expressão se desfez num segundo.
Meus medidores subiram todos de uma só vez.
“Isso é mau.”
Foi o que tentei dizer, mas o som foi sugado. A luz desapareceu da sala e uma onda de
choque veio em seguida um pouco depois.
Um choque seguido de uma luz negra.

Quantos segundos será que se passaram? As fortes ondas eletromagnéticas


desligaram os meus sensores externos temporariamente. Ao restaurá-los, chequei ao
meu redor na mesma hora.
Chuuya-sama e Dazai-san estão bem. Não se moveram do local anterior.
Os dois estão olhando para o teto, inexpressivos e de boca aberta. Segui o olhar deles.
O teto ── não estava lá.
“Ei, Dazai. Você não disse que tinha entendido o poder dele?”
“Sim.”
Percebi que um vento frio estava soprando. O vento de fora, vindo do céu.
“Você de verdade entendeu… ele também?”
O que havia ali era um túnel circular gigante.
O túnel ia direto até a superfície atravessando todos os tetos da profunda instalação
subterrânea com mais de dez níveis. O piso escavado transformado numa ligação
concêntrica continuava ao longe. Lá no final dava para ver o pequeno recorte do pôr do
sol.
N e Verlaine não estavam mais em lugar nenhum. Ninguém disse nada.
Contudo apenas podíamos prever o surgimento de algo que não era deste mundo e
olhar para ele como se orando.
CODE;04
Eu lhe concedo uma corrupção melancólica

Excerto das Anotações de Rimbaud

Dia XX Ano XXXX


Registro: DGSS, Departamento de Operações, Grupo de Forças Especiais
Agent XXXXXX

Céu Claro, Noite, Lua Minguante

Os camundongos correm.
Pretos no cinza do entardecer.
A dona rata corre.
No cinza da escuridão.
Olho para a lua segurando o cachimbo em minha boca.
A indolência também pode ser divertida.
Quando o fogo do cachimbo apagar, eu irei.
Depois que eu correr, depois dos secos passos,
somente a morte, os corpos, o sangue, a angústia e o violento fim sobrarão espalhados.

Dia XX Ano XXXX


Registro: DGSS, Departamento de Operações, Grupo de Forças Especiais
Agent XXXXXX

Chuva, Madrugada, Lua Minguante

Escrevo isso depois da rata sair correndo apressada de sua toca.


Eu estou me abrigando sob um teto de tijolos com goteiras. Ouço o som de pingos em
algum lugar. A lanterna ao lado da cama é escura demais, mal consigo ver o vinho em
cima da mesa. Minha letra deve estar horrível, mas por enquanto isso não me importa.
Porque eu quero registrar logo o que aconteceu.
Até duas horas atrás eu estava no esconderijo da força antigovernista, Revolução de
Maio. Tudo terminou. O resultado foi excelente do ponto de vista dos figurões.
Mas eu não acho que essa operação foi um sucesso. Quando eu cheguei no
esconderijo, todos os membros estavam lá. E no final, ele morreu.
Eu escrevo ‘ele’ porque quem fazia parte da organização era só uma pessoa. O Usuário
mandante das atividades antigovernamentais conhecido como Fauno.
Nós lutamos. Ele era forte. Além disso, ele tinha uma arma secreta.
Fauno criou sozinho uma forma de vida artificial, o Preto No.12. Um monstro capaz de
manipular a gravidade e invalidar qualquer ataque físico. Ele controlava essa forma de
vida com uma diretriz.
Mas dessa vez o nosso Departamento de Inteligência fez um ótimo trabalho (ajudaria
muito se fosse sempre assim). Eles descobriram de antemão que as ordens eram dadas
por meio da inalação de um pó metálico especial. Então eu só tive que destruir o
instrumento que produzia isso.
Livre das ordens, o Preto No.12 recuperou a consciência e não mais sob lavagem
cerebral, atacou o seu criador. Foi uma visão de gelar a espinha.
Com apenas um pequeno gesto, No.12 destruiu metade da instalação junto com
metade do corpo do Fauno.
Depois disso, eu carreguei o No.12 inconsciente. Ele está dormindo nessa estalagem.
O que será que acontecerá com ele? Será morto pelo governo?
Está terrivelmente frio. Sinto como se o fogo da lareira estivesse longe.

Dia XX Ano XXXX


Registro: DGSS, Departamento de Operações, Grupo de Forças Especiais
Agent XXXXXX

Céu Claro, Tarde, Vento Forte de Primavera

Escrevo isso vestindo meu grosso sobretudo, meu protetor de ouvido, minhas luvas de
pele e minha roupa íntima de inverno.
Falei não faz muito tempo com um mensageiro num café. Escutei sobre o que
aconteceria com o No.12. Fiquei tão surpreso que precisei ouvir três vezes.
O governo está pensando em usá-lo como um valioso cooperador; porque sendo um
cão de guarda do Fauno, ele tem gravado em sua cabeça informações sobre a rede de
organizações antigovernamentais. Irão treiná-lo para ser um espião. E serei eu quem
ficará a cargo desse treinamento e monitoramento.
Eu, instruir alguém? Será que consigo?
Esse trabalho não sustenta conexões pessoais já que, para um espião, amigos e
amantes se tornam pontos fracos. Creio que meus pais e minha amante morreram na
prisão.
Será que alguém como eu serei capaz de ensinar e guiar alguém? Não sei.
Mas e seu eu conseguir?
Tendo jogado meu passado e nome fora, sendo chamado por um codinome, poder fazer
algo por alguém, pelo país e por meu novo amigo… Quando eu penso nisso, meu coração
palpita surpreendendo a mim mesmo.
Provavelmente o fato de eu ter vivido e morrido não será passado para o mundo de
depois. O que receberei após minha morte será apenas uma rachada lápide sem nome.
Mas não tem problema se isso significa eu poder deixar algo para alguém antes de
morrer.
A minha primeira missão foi dar um novo codinome para o No.12. Já decidi.
Paul Verlaine. É o verdadeiro nome que meus pais me deram.
Paul, o dia em que você ler essas anotações será quando você descobrir o segredo
sobre si mesmo. Eu não paro de rezar para que esse seja um momento de bênção.

Dia XX Ano XXXX


Registro: DGSS, Departamento de Operações, Grupo de Forças Especiais
Agent XXXXXX

Céu Nublado, Madrugada, Sem Poder Ver a Lua

Não consigo acreditar. Eu solucionei O Segredo da Floresta Gentil. Lá dorme o monstro


mais terrível de todos.
Ali está o seu…

(A página está rasgada a partir daqui, impossibilitando ler o resto)

•••
No canto do crepúsculo azul, a pequena lua flutuava. Ougai Mori dormia no trem em
movimento.
A noite azul do lado de fora da janela e o farfalhar murmurante da negra floresta.
Bem ao longe, as luzes da cidade de Yokohama brilhavam ligeiramente feito estrelas há
centenas e centenas de anos-luz.
Não havia ninguém no trem. Somente os bancos de madeira continuavam a perder de
vista.
Ougai Mori apoiava seu braço no apoio da janela, cochilando com a cabeça encostada
nela. Embaixo dos seus olhos, pretas olheiras indicavam seu cansaço.
Ele estava fugindo de um assassino.
Se ele fugisse de carro, havia o risco de ser detectado. O seu oponente era um ex-
espião, afinal. Ainda por cima, um excelente, treinado pelo governo europeu. Toda
precaução era pouco. Por isso ele comprou toda a estação e os trens. E tendo cortado
todas as câmeras de vigilância, criou uma viagem inexistente.
Ele chegará amanhã de manhã em seu esconderijo.
O trem se aproximou da estação. O sistema anunciou e o veículo foi desacelerando.
Não havia nada de suspeito nesse trem, era mais um dentre tantos outros chegando na
estação. Ele chegou na hora determinada e partiu na hora programada. Apenas, ninguém
desceu ou subiu.
Ougai Mori ainda está de olhos fechados.
Quando ele acordar, estará num lugar seguro. Ou talvez, nunca acorde.
Apenas Deus sabe qual dos dois acontecerá.

•••
“So… Socorro! Deixa eu descer!”
A voz gritante ecoava no céu noturno.
“Deixar descer? Por quê?”
A voz suave respondeu.
As duas vozes foram levadas pelo vento seco soprando nas altitudes.
Estavam em cima de um guindaste de torre.
Era o guindaste que carregava os materiais de construção de um arranha-céu. Eles se
encontravam no espaço entre a paisagem da cidade de Yokohama e o território onde os
aviões voam.
“Eu não te amarrei nem te impossibilitei de andar. Se quer descer, à vontade.”
A gentil voz era de Verlaine. Ele estava sentado relaxadamente na ponta do braço de
ferro. À sua frente, a bela paisagem noturna.
“Não diga tolices! Não tem como um humano descer sozinho daqui!”
Pálido, N estava engatinhando de quatro, agarrado a uma viga de metal. Se ele
levantasse a cabeça o mínimo que fosse, provavelmente seria levado pelo vento. Só
havia então um lugar para onde podia mover seu corpo sem equilíbrio.
Depois que Verlaine o levou embora do laboratório, veio até aqui pela gravidade. Ele foi
andando pela lateral da torre de vigas com a despreocupação de quem anda numa
calçada.
“Aqui é um bom lugar, né?” Verlaine disse com a voz amistosa. “O lugar perfeito para
revelar um segredo.”
N não conseguia nem levantar a cabeça. Estava pondo tudo de si em se certificar que
sua mão encharcada de suor segurasse direito a viga.
“O que… quer saber?” Apesar da voz e respiração débeis, conseguiu perguntar.
“Diga o que sabe sobre O Segredo Floresta Gentil.”
O vento soprava frio, urrando por entre eles. Mas a voz suave de Verlaine, sem ser nem
um pouco obstruída pelo vento, ressoava com clareza em cima do guindaste.
“Não posso falar.” N olhou para Verlaine, agachado. “Essa informação é minha corda de
segurança. Se eu contar, você não precisará mais de mim e irá me matar.”
“Eu irei te matar de qualquer jeito.”
Verlaine disse enquanto comia uma pera tirada do bolso. O rosto de N congelou.
Ele olhou N de cima a baixo. E com a voz mais fria e seca, continuou:
“Você sabe bem que O Segredo da Floresta Gentil é um título. O título do último capítulo
do manual de procedimento sobre a criação de uma Habilidade artificial escrito pelo
Fauno. O governo recolheu esse manual e eu o li. Mas estavam faltando seis páginas
dele. É possível que o governo as tenha escondido de propósito. Porém você claramente
conseguiu ele após roubá-lo de uma rede de espionagem. E é uma cópia completa ──
Responda. O que está escrito nessas seis páginas?”
“Mesmo que eu diga,” sua voz era rígida, “você acreditará?”
“Depende do conteúdo.”
“A cópia que eu tenho nunca teve o último capítulo. Eu não sei de nada ── se eu disser
isso, você não acreditará, estou errado?”
“Se for o caso, por que você falou sobre O Segredo da Floresta Gentil naquela hora? É
porque você sabia a importância deste capítulo, estou errado?”
N fechou os olhos.
“É um capítulo que foi arrancado intencionalmente. Óbvio que tem algo ali. Foi o que me
veio à cabeça na hora.”
“Para de brincadeira.”
“Era um momento de vida ou morte. Eu falei qualquer coisa. Até eu me assustei em
dizer aquilo.”
Verlaine olhava calado para N com olhos de quem olha um inseto morto. Então. apenas
falando “entendo”, se aproximou de N e pressionou o seu ombro com a sola de seu
sapato.
“E-Espera!” Inclinado, N estava se apoiando na beirada com tudo. Eu realmente não sei
nada! A única coisa que sei foi quem apagou essas informações! Um espião chamado
Rimbaud foi quem apagou!”
Verlaine ficou imóvel.
“O que disse?”
“Depois de conseguir o relatório, Rimbaud apagou essas informações antes de
repassá-las para o governo, então só ele sabe o conteúdo. Foi o que o meu informante do
governo francês relatou, por isso eu também não sei nada!”
“O Rimbaud…?” Descendo a perna, os olhos de Verlaine foram para o passado.
“Impossível. Ele não me escondia nada.”
N olhou para Verlaine, recompondo a respiração ofegante.
“Ninguém sabe o que se passa no coração dos outros.”
“Não com ele. Ele confiava em mim.” O olhar de Verlaine vagou pelo espaço. “Ele me
deu um nome mesmo eu não passando do Preto No.12. O seu próprio nome. E mudou o
seu codinome para o meu nome original, Rimbaud. Nós trocamos de nome por sugestão
dele.”
Verlaine tirou o chapéu e o olhou. Na parte interna da borda havia o nome Rimbaud
escrito em letras pequenas.
“Ele era forte. Na organização, apenas ele tinha a Habilidade rival a minha. Nós éramos
parceiros. Não apenas isso, ele me chamou de amigo. Era uma honra para mim.”
Verlaine olhou para o céu noturno que se expandia ao seu lado. E disse:
“Porém, eu… não gostava dele.”
Uma rajada de vento frio passou pelo seu lado. As estrelas brilhavam em silêncio.
“Não… gostava?”
Verlaine olhou para N com olhos frios. Então colocou seu chapéu de volta.
“Falei demais.” Ao dizer isso, ele desviou o olhar de N, perdendo o interesse. “Eu
também queria perguntar mais, mas estou com pressa. Tenho um trabalho urgente
ainda. Preciso matar o último alvo antes do Dazai terminar seus preparativos. Quando eu
voltar, eu pergunto. Até lá, aproveite a paisagem noturna.”
Ao dizer isso, deu de costas e foi embora.
“Es… Espere! Ao menos me deixe descer!”
“Descer?” Verlaine se virou com a expressão de quem achou muita graça daquilo.
“Pode descer. É muito fácil, basta dar um passo.”
A circulação do rosto de N foi embora e ele ficou pálido.
Verlaine saiu andando sem se virar para trás e desapareceu na noite sombria.

•••
O maquinista do trem olhava para a escuridão à sua frente com uma mão no volante.
Vinte e sete anos de carreira. Um maquinista veterano. Em dias de chuva ou de vento,
em meio ao bombardeio da Grande Guerra que mudou a forma do território, ele esteve a
segurar o volante.
Mas até para este homem, o dia de hoje foi estranho.
Começou com a companhia ferroviária em que ele trabalha sendo comprada da noite
para o dia, incluindo os trens e as rotas. Então ordenaram uma viagem especial. Um trem
para um único passageiro. Mesmo protestando para o seu superior, ele só lhe disse
“conduza sem questionar nada.”
E mais uma coisa. “Se você fugir vai ser pior ainda.”
O maquinista olhou novamente para a paisagem à sua frente. As árvores afundavam
escuridão adentro. O trilho prateado e os faróis amarelos eram os únicos guias visíveis
mostrando o caminho para o trem.
Provavelmente o que o seu chefe tinha dito era verdade. Se fosse outra cidade, ele não
acreditaria, mas aqui era a cidade demoníaca de Yokohama. Qualquer coisa podia
acontecer.
Ele não pensou em ir falar com o único passageiro também. Mesmo que tivesse ido,
poderia ter acabado segurando a própria cabeça nas mãos.
Nessa hora, ele teve a impressão de algo ter se mexido na noite escura que continuava
como as profundezas de um oceano.
Os seus olhos bem treinados conseguiram ver precisamente algo lá ao longe.
Será um animal? Não. As folhas farfalhando? Não.
É uma pessoa. Alguém está parado em cima dos trilhos.
Ele pisou nos freios antes que pudesse pensar no perigo da situação.
O ar compressado foi liberado e a engrenagem de redução produziu um som estridente.
Mas não deu tempo. O trem colidiu com a figura.
Porém a figura segurou o trem.
Ao provocar uma força absurda no veículo, o primeiro vagão pulou para a frente.
Puxados, os outros também pularam e descarrilaram, tombando para dentro da floresta.
A cobra de ferro desgovernada que se tornou o trem foi devastando o entorno,
derrubando as árvores, até que parou.
A figura observando tudo ── Verlaine sorriu satisfeito. Ele havia recebido um trem de
frente, mas não tinha um arranhão se quer. Então começou a andar, indo ao encontro de
Mori Ougai.
Pulou por cima do trem enterrado pela metade na terra, passou por um vagão em que o
sistema elétrico estava começando a pegar fogo e chegou ao carro que queria.
Mori Ougai estava caído. O vagão estava de lado; a parede virando chão e o teto,
parede. Estava de costas para Verlaine, sem se mexer um milímetro. Uma poça de
sangue se espalhava por debaixo.
Ele tinha checado antes a Habilidade de seu alvo. Não há segredos para um ex-espião.
Mori Ougai não era um Usuário que seria derrotado simples assim.
“Fácil demais.”
Murmurando isso, Verlaine se aproximou de seu alvo. Ele não cometeria a tolice de não
confirmar sua morte. Se milagrosamente ele ainda estivesse vivo, pararia sua respiração
ali.
Verlaine virou para cima o corpo e arregalou os olhos.
Não era o corpo de Mori Ougai.
Nunca tinha visto esse homem que vestia uma peruca e roupas se passando por Mori.
Mas Verlaine não tinha errado em suas preparações. Ele havia deixado uma câmera
escondida na estação anterior. O homem que apareceu entrando no trem era sem
dúvidas Mori Ougai.
Quando virou o corpo para checar, inconscientemente colocou a mão em seu peito.
“Fácil demais.”
Uma forte força repulsiva o mandou voando. Ele atravessou a janela de vidro e caiu no
húmus. Rolando pela terra, só foi parar quando bateu com as costas no tronco de uma
árvore.
“…Boa.”
Verlaine se levantou apoiando a mão na árvore.
Enquanto tirava a terra da roupa, pensou no rosto que havia visto por um segundo e na
palma que o repeliu. Provavelmente era o membro da Máfia do Porto com a Habilidade de
repulsão, Hirotsu Ryuurou. Um dublê.
Sabendo da câmera escondida, eles mostraram o Mori Ougai de propósito e logo
depois, o trocaram rapidamente pelo dublê. Em outras palavras, eles previram o plano de
Verlaine.
Ele só sabia de uma pessoa capaz de armar tudo isso por debaixo dos panos desde que
entrou nesse país.
“Olá, Verlaine-san.”
A pequena figura estava sentada na beirada do vagão virado.
“Dazai-kun.” Recolhendo seu chapéu do chão, Verlaine disse. “Eu já ouvi que
‘capacidade não tem a ver com idade’, mas ── você é aterrorizante.”
“A culpa é sua.” Dazai falou como se o reprimindo. “Você está sendo levado demais por
seus sentimentos. Por isso está sendo possível prever suas ações. Por que está tão
interessado no Chuuya?”
“É tão estranho assim um irmão mais velho estar interessado pelo seu irmão mais
novo?” Verlaine respondeu tirando a lama de sua roupa.
“É muito estranho.” Dazai declarou. “Pra começar, por que você acredita que o Chuuya é
seu irmão?”
“…Como assim?” Verlaine estreitou os olhos.
“Você viu o original do Chuuya, a cobaia. O que virou um esqueleto e morreu.” Dazai
disse balançando as pernas. “Ele era praticamente igual ao Chuuya daqui. A Habilidade
também. E há vários outros pontos em comum. E se aquele que era a Habilidade artificial,
e o que só sabe ser energético Chuuya for o original? Será que isso teria ficado claro para
você que não é um especialista e apenas leu documentos passados?”
“Não há chances.” Verlaine balançou a cabeça. “Eu não seria estúpido de errar o alvo da
infiltração. Quem eu roubei nove anos atrás do laboratório foi definitivamente um ser
artificial que nem eu.”
“Se investigarmos, logo saberemos.” Dazai falou despreocupado. “
“Parece estar certo de que o Chuuya é humano.”
“Estou sim.” Dazai suspirou, rindo. “Não tem como uma cadeia de caracteres construir
uma personalidade que eu deteste tanto.”
Depois de suspirar, Verlaine começou a andar até Dazai com pesados passos como se
indo tratar de um trabalho chato.
“Eu até explicaria gentilmente a base para o seu erro, mas… eu tenho outro trabalho
para você.” Dizendo isso, ele começou a subir o suave declive em que havia rolado. “Me
dizer onde está o verdadeiro Mori Ougai. Um trabalho de quebrar os ossos. Literalmente.”
“Quer dizer que não vai desistir, né?”
“É claro.”
Olhando para nenhum lugar específico, “entendo”, foi o que disse. E com cara de
decepção:
“Então você perdeu.”

Uma bala de sniper acertou a cabeça de Verlaine.


Verlaine caiu para trás com tudo e rolou novamente o declive coberto de húmus.
Depois de rolar três vezes, ele levantou o rosto, olhando furioso para Dazai.
“Um atirador? Seu ── ”
Antes que pudesse terminar sua frase, outro tiro foi repelido em sua testa. Quase caiu,
mas conseguiu se manter apoiando uma mão no chão.
“A sua Habilidade só é ativada no que você toca.” Dazai olhou para o outro, balançando
as pernas. “Ou seja, balas te acertam. Mesmo que as pare de imediato. Dessa forma se
você for baleado com uma munição de grande calibre que é muito mais rápida do que a
normal, você ainda receberá dano no momento em que pará-la com a gravidade. E--”
Dazai levantou as mãos casualmente. No momento seguinte, a noite foi coberta por
fogo.
De cima da colina, por entre o arvoredo, dentro do húmus, de cima das copas maiores,
mais de cinquenta balas choveram sobre Verlaine. Todas acertaram e Verlaine rugiu.
Ele tentou fugir para dentro da floresta enquanto se protegia com a gravidade. Mas os
tiros também vieram por onde estava fugindo. Mesmo agachado, tentando se esconder
num declive, os tiros vieram de cima do arvoredo. Não tinha para onde fugir.
“Como conseguiu… preparar essa gente toda nesse curto espaço de tempo?!”
As balas atravessavam a roupa de Verlaine, cravando em seu corpo. Não eram
ferimentos a ponto de sangrar, mas a quantidade era grande. A cada segundo iam
aumentando em dez, vinte. Era como se o ar tivesse virado seu inimigo e estivesse
atacando todo o seu corpo. A única opção foi ficar encolhido com os braços sobre a
cabeça.
“Eu sou forte demais para você, Verlaine-san.” Dazai deu um leve sorriso. “O meu plano
contra uma Habilidade gravitacional é perfeito. Porque seja dormindo ou acordado, eu só
penso em como atormentar o Chuuya.”
“Não me subestime!”
Protegendo-se ao mesmo tempo da chuva de balas, Verlaine agarrou uma árvore e a
arrancou.
“Acha que vai me matar jogando essas pedrinhas em mim?!”
Verlaine ergueu a árvore se preparando para arremessá-la como uma lança nos
atiradores escondidos pela escuridão a fim de esmagá-los.
Porém ── sua mão parou no meio do caminho. Porque a árvore foi cortada em
pedaços.
“Hoho, olhando de perto, você realmente parece com o meu subordinado.”
A voz parecida com o som de um koto de uma elegante mulher surgiu.
Cabelos e olhos carmesim ardente. O vermelho de sua roupa lembrava as folhas
maduras do outono. E o que mais chamava atenção ── era uma Yassha mascarada
com um quimono, flutuando ao seu lado.
Alta e de cabelo comprido. Segurando uma espada nua do tamanho de uma criança
como se não pesasse nada.
O quimono dourado dissolvia no ar dos joelhos pra baixo, mostrando que aquilo não era
um corpo de verdade.
“Mas que irmão mais egoísta querendo roubar o meu menino. Vou te perdoar
arrancando seus braços e pernas apenas. Depois disso, suma.”
Ozaki Kouyou.
A jovem espadachim da Máfia do Porto.
A figurona sobre o comando de Chuuya; a linda besta acompanhada da Habilidade viva,
Demônio Dourado.
Kouyou girava uma sombrinha de papel escarlate por cima do ombro. Então torceu e
puxou a alça. Uma lâmina brilhante apareceu. Era uma espada camuflada.
“Uma Usuária da Máfia?” Verlaine sorriu igual a um animal feroz. “Mas é apenas uma
Usuária com duas espadas. O que pode fazer contra a gravidade?”
Verlaine desceu o corpo se preparando para se atirar contra Kouyou.
“Quem você disse que era apenas uma?”
O corpo de Verlaine afundou.
Surpreso, ele olhou para seus pés. A terra, serpenteando como uma cobra, engoliu as
pernas de Verlaine e rastejou para fora ainda mais.
Pego de surpresa, Verlaine anulou sua gravidade e saiu voando. Pousou de lado no
tronco de uma árvore próxima.
O tronco era grosso o suficiente para suportá-lo, mas o lugar em que seus sapatos
tocaram se liquefez. Estava tentando engolí-lo.
“Isso é …”
Verlaine saltou novamente, mas o ponto em que pretendia aterrissar já havia se tornado
um lodo consciente com a boca aberta esperando para devorá-lo.
“Gahaha. Fuja, fuja, jovem. Vocês mais novos existem para confortar os velhos. Morra
logo e perca a cabeça.”
Quem apareceu da escuridão foi um robusto homem que parecia uma árvore.
O uniforme descolorido e todo rasgado. Pelos parecendo agulhas costuradas. Na
cintura, uma faixa de judô e nos pés, altos tamancos de madeira. Os braços cruzados na
frente de seu peito eram grossos como troncos de cem anos.
Elite da Máfia do Porto, veterano da Grande Guerra ── apelidado de Coronel na
Organização.
Ele levantou o braço que parecia uma árvore centenária e apertou a palma da mão
diante de seus olhos. Na mesma hora o chão se contorceu e a terra, as árvores e até o
trem liquefeito, avançaram em direção à Verlaine no ar.
“Uma Habilidade que permite controlar sólidos transformando-os em líquidos!”
Verlaine chutou a terra liquefeita e escapou na direção contrária. Mas, na sua frente,
mais terra o esperava. Mesmo mudando de trajetória, tanto embaixo como acima dele
era terra liquefeita. Ele a dispersava quando tocava, mas mais terra o cobria. Verlaine não
conseguia contra-atacar.
E no intervalo em que tentava escapar, vinham tiros das quatro direções.
“Tch…!”
Verlaine aumentou a densidade das menores poeiras no ar e chutando-as, foi pulando
pelo céu para ganhar distância. Habilidades de manipular matéria como a do Coronel
geralmente não conseguem controlar o que está fora do seu campo de visão. Por isso ele
pretendia se esconder no fundo da floresta e acabar com ele atirando uma pedra gigante
com a gravidade aumentada.
Mas algo excêntrico entrou no campo de visão de Verlaine.
Um relógio.
Um relógio de bolso estava flutuando no ar. Era bem comum, com os números, os
ponteiros das horas e dos minutos, a coroa, e o mecanismo interno podendo ser espiado
no canto do mostrador.
O esquisito era ser do tamanho da parte superior de uma pessoa e estar
constantemente se voltando para Verlaine como se quisesse o encarar.
Tendo o conhecimento sobre inúmeras Habilidades, no mesmo instante Verlaine
percebeu o perigo desse relógio.
Ele arrancou um botão da manga de seu terno, amplificou o seu peso em dezenas de
quilos a mais e o jogou contra o relógio. O cometa com a força para destruir um prédio
passou direto sem fazer contato com o relógio, quebrando as árvores e sumindo na
escuridão.
“Não dá para quebrá-lo.”
Uma voz sombria veio da superfície.
Quando Verlaine olhou, havia um menino sentado no chão de repente. Com os braços
cruzados sobre o joelho, olhava miseravelmente para Verlaine.
“Não adianta. Ele está nos olhando. A mim e a você também. Só resta morrer no dia em
que ele te encontrar e te alcançar. O tempo é inimigo de todos.”
Tanto sua voz como sua expressão eram sombrias. A roupa era disformemente longa e
a bainha estava gasta. Seu cabelo estava descabelado ao ponto de alguém se perguntar
há quantos meses ele não tomava banho; não dava nem para saber a cor original.
O magro menino com os ossos aparentes mesmo por debaixo da roupa chamava
Verlaine com o dedo.
Os ponteiros grande e pequeno se moveram indicando o número 12 ao mesmo tempo.
Logo depois, o relógio no ar foi sugado por Verlaine.
Ele foi absorvido não metaforicamente, mas literalmente para dentro de seu peito.
Verlaine ficou tenso, alerta com o relógio que havia sumido. Mas nada aconteceu. Nada
que pudesse ver ──
A terra liquefeita se enrolou em sua perna.
Surpreso, ele a dispersou com a gravidade. Olhou ao redor. Ele tinha se afastado
bastante. Era estranho que a terra conseguisse chegar tão perto dele ainda.
Em seguida, foi baleado. Ele repeliu as balas na cabeça e deu meia volta no ar. Caiu na
terra; suas solas raspando o húmus.
Estranho. A velocidade das balas está aumentando. Como elas estão chegando mais
rápido, mesmo que as pare, sou empurrado para trás. Será que eles mudaram as armas
ou o calibre das balas para um mais forte? Não.
A terra se liquefez. Antes que fosse engolido, Verlaine saltou. Mas os tentáculos do
líquido o perseguindo também aceleraram. Verlaine olhou ao seu redor rapidamente.
As folhas das copas ao receberem a onda de choque dos tiros, caíam. Não flutuando,
mas indo direto para a terra. Não eram os ataques que estavam ficando mais rápido ──
“Eu… que estou ficando mais lento!”
“Todos morrem antes do que eu.” O sombrio menino encarava Verlaine com um rancor
desconhecido. “Meus irmãos, meus pais, todos. Todos são mortos pelo tempo. Mas eu
fugirei. Com esse poder especial.”
Um Usuário que interfere com o tempo.
Pela primeira vez, suor escorreu pela testa de Verlaine.
Habilidades que controlam o tempo não são apenas fortes, são fora do senso comum.
Até onde o conhecimento de Verlaine vai, pouquíssimas foram relatadas no mundo. A
primeira da lista dos Usuários com esse tipo de Habilidade fora da lógica universal é a
ex-engenheira Usuária, H.G. Wells. Depois de construir a arma especial Shell,
desapareceu e se tornou a terrorista mais perigosa do mundo.
Habilidades temporais brincam com os princípios fundamentais do mundo,
reescrevendo-os à vontade, porque de uma perspectiva cósmica tempo e espaço são
equivalentes. Assim como a Habilidade de Verlaine, Habilidades temporais ameaçam
alterar o mundo.
Os ataques da Máfia caiam sobre Verlaine, agora lento sob a influência do
retardamento do tempo.
Balas, lâminas, terra liquefeita.
Mesmo tentando desviar, tendo em conta que seu próprio tempo estava devagar, era
como se movesse debaixo d'água.
A expressão de Verlaine ficou tensa.

Dazai observava relaxado os estrondos e tiros ressoando pela floresta. Olhava


tranquilamente, enquanto se refrescava com o vento noturno, o campo de batalha
transformado num inferno.
“Essa é a lógica do mundo.” Dazai disse como se estivesse cantando. “A verdade
absoluta à qual tudo e todos desse planeta obedecem. Nesse planeta ── o grupo é mais
forte do que o individual. Um Usuário é mais forte do que o grupo. E --”
Dazai sorriu sentindo as ondas de explosão da batalha em sua bochecha como uma
agradável brisa.
“Um grupo de Usuários é mais forte do que um Usuário.”

Verlaine maximizou sua gravidade na horizontal.


Uma intensa força propulsora capaz de atravessar o retardamento do tempo se
espalhou velozmente pelo campo de guerra. Os ossos de Verlaine rangeram sob a
aceleração que ultrapassava os limites humanos.
Seu julgamento não se abateu para a crise diante dos seus olhos. Ainda não está tudo
perdido. Ele recuará o quanto conseguir para tomar distância das ondas de ataques. E
depois de recuperar a postura, refletirá as balas vindo em seu encontro, atacando os
Usuários um por um. Assim poderá vencer.
Há três Usuários. A diferença de poder ainda não é ──
De repente sua pele começou a sangrar. Verlaine olhou para as suas mangas. Sua pele
está rasgada, dando para ver a carne interior. Mas o sangramento é mínimo e quase não
dói.
Inconscientemente, ele pousou. Quando fez isso, a pele de seus calcanhares também
foi arrancada. Ele percebeu pela sensação deslizante. Mas novamente não doeu.
O ataque de um novo Usuário, porém sua identidade logo foi confirmada.
A respiração era branca. Sua pele congelada e suas sobrancelhas cobertas de cristais
de gelo.
“Vamos nos abraçar. Num amor congelante. Vamos nos abraçar. Sob as flores
congeladas que se quebram ao florescerem.”
A nova Usuária cantava com a voz frágil como um grito.
Cabelos brancos. Clavículas brancas. Respiração branca. E em seu peito, uma rosa
vermelha. Cada vez que ela respira, as árvores ao redor congelam, racham e quebram
devido ao inchaço da água.
Verlaine entendeu de imediato. Uma Usuária que congela a temperatura do ar.
A pele rasgou porque ficou exposta à baixa temperatura e grudou no interior da roupa e
do sapato, se soltando. O seu corpo havia sido congelado a esse nível num instante. Não
vai demorar muito tempo para que sua carne e ossos congelem também.
É uma Habilidade bem perigosa porque ataques congelantes não têm impactos físicos,
então ele não consegue se proteger com a gravidade. É a inimiga natural de Verlaine.
Outra bala acertou o seu ombro. Verlaine gemeu de dor.
A bala estava fria. Ela congelou sobre sua pele se tornando uma estaca de gelo que
crescia. A baixa temperatura invadiu pela ferida, rasgando sua carne.
Os ataques dos inimigos o estavam atingindo demais. Retardo do tempo,
congelamento e tiros. Era evidente que foram combinados taticamente para atingirem os
pontos fracos de Verlaine e selarem seus pontos fortes.
Ainda há outra coisa estranha. Mesmo ele recuando numa velocidade considerável já
há algum tempo, os ataques continuam sem parar. Estão prevendo sua rota de fuga.
Normalmente, ao correr nessa velocidade por uma floresta à noite, o alvo logo se perde
dos dispositivos de mira à longa distância, tornando impossível de atirar. Então como?
“Kihihihihi, que expressão mais doce. Ei, só entre nós, se você se desculpar chorando e
babando, eu deixo você fugir, tá?”
Uma voz falou perto dele. Bem perto. Verlaine olhou. Não havia ninguém ali ── Não.
Um buraco do tamanho de uma moeda estava aberto no espaço vazio. Era preto como
se estivesse queimado e do outro lado havia outro espaço. De lá, olhos escuros olhavam
para cá.
“Sim, sou eu. Estou te olhando. A partir de hoje, nunca relaxe mesmo se trancar o
banheiro. Kihihihihi!”
O buraco era pequeno, não permitindo ver todo o seu corpo. Mas só esses olhos eram
suficiente. Olhos repletos de malícia observavam, seguiam e estavam a todo momento
informando a localização de Verlaine.
Instintivamente, Verlaine deu um chute no buraco.
“Opa.”
Antes que fosse acertado em cheio, o buraco fechou.
“Estou aqui.”
A voz veio por trás. Quando ele se virou, o mesmo buraco estava aberto em outro lugar,
olhando para Verlaine.
Uma Habilidade do tipo que conecta espaços, continuando a observar seu alvo.
Provavelmente o Usuário estava num local seguro, observando o campo de batalha pela
sua Habilidade.
O próprio Usuário não ataca e ao tentar tocá-lo, o buraco fecha-se imediatamente, por
isso não pode ser destruído pela gravidade.
Quantos Usuários eles trouxeram?
“Kihihi, um presente para você com o amor da Máfia do Porto!”
Do buraco do tamanho de uma moeda, pétalas cor de pêssego foram sopradas.
Inúmeras pétalas cercaram Verlaine.
Elas começaram a emitir uma luz branca. Essa é outra Habilidade ──
Quando Verlaine rapidamente tentou fugir, todas explodiram ao mesmo tempo.

Dazai conseguia ver bem essa luz do vagão em que estava sentado.
A luz branca cortou a floresta noturna e o resplendor queimou o céu. Ele olhava a cena
com um ligeiro sorriso.
“Quando terminará, Dazai-dono?”
Um homem no auge de sua vida apareceu de dentro do trem. Vestido igual ao Chefe, o
dublê Hirotsu.
“Como pode ver, tudo está indo muito bem, ao ponto de ser entediante.”
Estrondos de explosões, árvores caindo, luzes de disparos e uma grave frequência
reverberavam incessantemente no lugar para onde apontou.
Hirotsu tirou a peruca, colocou seu monóculos de sempre e estreitou os olhos.
“Como esperado.”
“É claro. Eu comprei bastante tempo para preparar tudo isso.” Dazai cruzou as pernas
elegantemente como um rei. “Foi bem difícil eu e o Chuuya lutarmos sozinhos contra o
Randou-san. Por isso eu me preparei dessa vez. Reuni 422 combatentes e 28 Usuários
só para matar o Rei Assassino europeu. É todo o poder de combate da Máfia.”
Na paisagem diante de seus olhos, ar frio e luz explodiam. Verlaine fugia por entre as
árvores, mas raios amarelos queimaram o céu, bloqueando seu caminho. Outro Usuário.
Era a estratégia mais simples de todas. Emboscá-lo numa armadilha.
Chuuya e Adam também haviam planejado matá-lo numa emboscada. O plano de Dazai
era o mesmo em sua essência: Deduzir seu próximo alvo, armar uma armadilha ao redor
desse indivíduo e atacar Verlaine por trás. A diferença era a escala. Ele colocou toda a
opressora força de combate da Máfia como armadilha. O resultado sendo uma
aniquilação unilateral.
“Nós podemos continuar lutando a noite toda.” Dazai sussurrou como se para Verlaine
ao longe. “Verlaine-san. Você é um assassino perfeito. Sua execução sempre foi
brilhante e nunca cometeu o descuido de ser encontrado e cercado. Por isso você não
tem a experiência de ser emboscado por uma organização de Usuários. O Randou-san
também estava apreensivo com essa perigosa perfeição.”
Dazai segurava com um caderno de couro de repente. As anotações de Rimbaud. Eram
os seus registros diários sobre o nascimento e vida do Usuário Verlaine.
“Você se lamenta, Verlaine-san.” Dazai disse com a mão sobre o caderno como se
orando. “Não ter que morrer, lamenta ter nascido. Mas ninguém lamenta o seu
nascimento. Apenas você mesmo. E faz disso seu motivo para lutar. …Eu te acho incrível.
Você odeia ter nascido, odeia o seu poder, odeia o mundo. Mesmo assim, tentou aceitar
essa vida insignificante. Eu não tenho essa coragem, por isso queria ter conversado mais
com você. Mas agora já é tarde.”
Dazai levantou, dando as costas para a batalha e começou a andar.
“Dazai-dono?”
“Me informe quando acabar.”
As palavras de Dazai caíram sem força no chão. Ele andou.
No momento seguinte, uma onda negra se expandiu pelo campo de batalha.

•••
Verlaine via a situação dentro de sua consciência turva.
Golpes, tiros, terra liquefeita. Gelo, luzes, raios de calor. Névoa de veneno e barreira de
som. Vários tipos de ataques o cercavam e iam o destruindo.
Se ele pousava, a terra se agarrava a ele, impedindo a ativação da gravidade. Se ele
respirava, o frio congelava sua garganta. Os flashes de luzes bloqueavam sua visão, as
ondas de som perturbavam sua audição e caso parasse, os tiros choviam com tudo.
Mesmo acelerando a gravidade do que encontrava ao seu redor e os arremessando, a
espada longa do Demônio cortava tudo.
Todos esses ataques foram orquestrados pela inteligência diabólica de um único
menino, Dazai, se tornando um mecanismo preciso que encurralava Verlaine.
Isso é um humano. A seriedade dos humanos. Eu tentei fazer parte disso, mas no final
das contas, não consegui.
Verlaine riu com escárnio de si mesmo. Foi feito de completo palhaço.
Muito bem. Eu também mostrarei. O que algo que não é humano é. De que cor é a
escuridão do inferno dentro desse peito. Esse ódio que nem mesmo o Rimbaud entendia.
Verlaine abriu a boca e junto com seu ódio, versos foram derramados.

“O ódio, a síncope, o desespero


a brutalidade com que um dia foi ferida
assim como o sangue excedente derramado mês a mês
você os retorna para nós.
Ó, você, noite sem malícia.”

O vento parou. A comoção da floresta desapareceu, fugindo de algo. Uma onda invisível
preencheu o ar.
Verlaine pensa em sua consciência contraindo.
Ninguém entendia que eu não sou humano. Que eu não sou uma existência abençoada
por Deus. Que eu nasci não de pais, mas do vazio. Nem mesmo o Rimbaud compreendeu
essa solidão, até o final.
Eu odiava ele. Mas não porque ele não me entendia. Era por fingir entender.
Algo preto começou a cair como neve ao redor de Verlaine.
Não era neve. Não era nem mesma matéria. Eram escuridões que apareciam e sumiam.
Minúsculos universos.
Mostrarei a vocês o ódio do que não é humano, o vazio de uma existência sem a
bênção Divina. O inferno que dorme no fundo do meu caráter, do meu núcleo, de minha
alma.
Verlaine rugiu.
O grito se tornou um negro mar revolto, comprimindo as árvores e apagando tudo. Seu
chapéu foi levado pelo impacto e sumiu em algum lugar da floresta.
Dazai tentou gritar para fugirem pelo transmissor, mas sua voz também foi levada
pelas ondas de choque.
E o pesadelo apareceu.

Pode-se ouvir uma voz falando para fugirem no transmissor. Nessa hora, o Usuário que
abriu um buraco do tamanho de uma moeda no espaço ── Trapper percebeu que
Verlaine foi engolido de repente pela escuridão.
“O que é is─”
Foram suas últimas palavras.
As ondas gravitacionais que expandiram instantaneamente passaram pelo buraco e
alcançaram o esconderijo da Máfia onde Trapper estava. Seu corpo foi puxado pela
drástica distorção espacial.
Não deu nem tempo de se segurar. O seu rosto foi direto de encontro ao buraco e sem
parar, parte de sua pele em contato com a cavidade foi sugada para o outro lado. As
ondas gravitacionais aumentaram a potência ainda mais e sua carne, ossos e roupas
foram aspirados como água sendo drenada até não sobrar nada.
Devido a morte do Usuário, o buraco espacial foi fechado imediatamente e o silêncio
voltou para o quarto.
Verlaine flutuava no ar.
Ele não havia pulado. Nem estava planando como um pássaro. Ele ignorava a
gravidade. Misteriosos padrões pretos parecidos com runas apareceram por toda sua
pele se contorcendo como um ser vivo. O ruído do espaço estourando e logo se fechando
novamente soava intermitente.
Partículas caiam ao redor feito neve pulverulenta.
Verlaine, flutuando no espaço vazio, gargalhou. Já estava longe de uma voz humana.
Era o barulho de um trovão, de um grito estridente, de uma árvore sendo partida.
Era uma besta, um demônio.
O demoníaco Verlaine levantou a mão direita. Uma esfera negra surgiu em cima dela.
Flutuando, ela foi sugando o ar e crescendo.
Olhando a grotesca pretidão que apareceu na floresta ao longe, Dazai fez uma severa
expressão.
“O que é aquilo?” Hirotsu perguntou hesitante.
“O Portão foi aberto.” A voz de Dazai saiu rouca como se não conseguisse respirar
direito.
Em seguida, algo preto foi disparado do espaço em que Verlaine estava.
“Abaixem-se!” Dazai gritou.
Algo como uma bala de canhão veio voando por onde Dazai e os outros estavam até
uns quatro vagões mais à frente, indo parar no último. O vagão tremeu como um
terremoto. Dazai e Hirotsu se seguraram.
Quando o tremor parou, o vagão acertado havia mudado de forma. Metade dele
desapareceu. A outra metade foi deformada terrivelmente como uma bola de papel
amassada e o resto destruído parecia que tinha sido arrancado selvagemente por dedos
gigantes.
A terra, a base rochosa e as árvores da colina atrás do trem foram escavadas numa
linha reta. Era um desvio aberrante da escala de destruição de uma Habilidade individual.
“O que… foi… isso…” Hirotsu sussurrou.
“O mesmo.” Dazai disse tenso. “O mesmo de quando ele escapou do laboratório indo de
uma só vez da última camada do subsolo para a superfície. Quando o Chuuya destruiu
um quarteirão dois dias atrás também, ele tinha dito que abriu o Portão. Aquilo é o que
tem do outro lado dele. E esse é o resultado. Veja, Hirotsu-san… a diferença de
magnitude.”
Outra esfera negra crescia rapidamente na floresta diante dos olhos de Dazai.
O vento informando a destruição soprou.
“Meu deus… mas o que, o que diabos é aquilo?!”
O Usuário que controlava o relógio no ar, o menino sombrio, só conseguia ranger os
dentes em pavor à gigante presença destrutiva que apareceu sobre sua cabeça.
Um monstro controlando uma esfera negra.
Momentos antes, ele derrubou de repente a esfera na superfície. Só nisso, três
atiradores morreram. O Usuário dos raios também morreu. Mas essas pessoas não
simplesmente morreram. Apenas da esfera se aproximar, se descascaram feito argila.
Eles gritaram. E suas carnes, sangue e ossos que transbordaram foram sugados pela
esfera. Não sobrou absolutamente nada.
Verlaine, já não mais humano, abre seus olhos no céu e olha como um deus a terra.
Não há um brilho de vontade em seus olhos. Não há tática nem planejamento. Apenas
aniquila automaticamente, inconscientemente, tudo o que parece inimigo ao se redor.
Essa é toda a sua existência.
Outras esferas do diâmetro de um adulto nascem em cada lado de seus braços. Tênues
auréolas vermelhas surgem.
O menino sombrio compreendeu num instante. Se ele tocar naquilo é morte certa. Se
chegar perto sem tocar, também morrerá.
“Não… por que… por que isso tá acontecendo?!”
Quando ele virou para fugir, uma jovem apareceu em sua frente. A Usuária do gelo.
Cabelos e clavículas brancas. Estava olhando a calamidade distraída.
Em seu olhar não havia sensação de perigo. Nem medo, nem hostilidade. Ela só
conseguia agir sob ordens e não possuía nenhum sentimento além dos ordenados.
Esferas negras choveram em sua direção. Sem fugir, ela apenas ficou as observando
como se estivesse olhando uma bela paisagem.
“Karen!” Seu corpo se moveu antes que pudesse pensar.
O fino braço do menino sombrio empurrou a Usuária de gelo. Em seguida, a gravidade
rasgou suas costas. A parte debaixo de seu corpo foi comido num piscar de olhos.
Sendo sugado pela esfera e tendo seu corpo invertido, o menino seguiu Karen com o
olhar. A menina empurrada rolava pelo precipício. Ela está fora da área de matança.
Que bom.
O menino sorriu e um segundo depois, esse sorriso também foi sugado,
desaparecendo.
Então não sobrou mais nada.

•••
Dazai recebia os informes um atrás do outro pelo transmissor.
Equipe três, devastada. Equipe cinco, todos mortos. Equipe oito, sem resposta.
Dazai ouvia de olhos fechados. Ele levantou como se quisesse ouvir uma música
atentamente. Em seu rosto. Não havia expressão nem emoção.
“Dazai-dono, por favor, fuja.” Hirotsu o solicitou com a mão.
“É inútil. Não dá para fugir daquele poder.” De olhos fechados, Dazai disse com a voz
tranquila. “O Usuário Gravitacional, Verlaine, era forte, mas não invencível. Porque ele só
conseguia conferir o mais forte dos poderes, a gravidade, tocando no oponente. Por isso
além de tomar distância, pude dominá-lo com Usuários de Habilidades não materiais e
de ondas, como frio, luz, som e tempo. Mas esse de agora é diferente. Aquelas esferas
── os buracos negros comprimidos até o limite desintegra até quem está longe. E como
as ondas de choque são uma força transmitida pelo espaço, nenhum escudo ou abrigo é
capaz de proteger contra. É a arma mais forte desse mundo.”
Como se recitando um poema, Dazai levantou as duas mãos para banhar seu corpo um
pouco que fosse na presença da destruição.
“Além disso, revogando a equação de personalidade, Verlaine que rendeu a hegemonia
de seu corpo, está sem vontade humana. Por isso que ameaças ou negociações,
qualquer guerra psicológica não funcionarão. Uma verdadeira besta divina. É sem
dúvidas a existência mais forte que a Máfia já enfrentou.”
“Não pode ser…”
Engolindo em seco, Hirotsu disse olhando a paisagem.
À sua frente, a colina era apagada, as árvores engolidas e o terreno alterado. Os gritos
dos membros da Máfia ressoavam.
“E,” Dazai disse com a voz bem projetada, como se pontuasse o poema da destruição,
“tudo está indo como planejado ── se o próximo ataque der certo, nós ganhamos.”

•••
Céu de Yokohama. As nuvens cobrindo o céu noturno, feito uma tampa, brilhavam
refletindo a luz da lua. Sob elas o som de explosões, rupturas e terra desmoronando. Os
gritos dos mortos, ou mais especificadamente, os gritos daqueles prestes a se tornarem
mortos.
Propulsores voavam entre o mundo extremamente cruel da terra e o sereno mundo que
se estendia eternamente pelo céu.
“Chuuya-sama! Logo chegaremos ao campo de batalha!” Adam gritou para que sua voz
não fosse abafada pelo barulho dos motores.
Os dois estavam a bordo de uma pequena aeronave de motor único. No teto havia um
par de asas fixo e apesar de não ser muito veloz, era fácil de controlar. Não era equipada.
Adam estava sentado na cadeira do piloto, e Chuuya, no assento traseiro. Ele olhava
severamente a superfície abaixo.
“Veja, aquele desastre… não está na escala de destruição que um único Usuário é
capaz!” Adam gritou enquanto filmava o terrível espetáculo. “O tempo de aniquilação é
incomparável aos buracos negros criados pelos processos físicos comuns! Você
realmente vai pousar naquilo?”
Chuuya, sem responder, apenas ficou olhando friamente a superfície.
“O meu módulo de avaliação de risco recomenda que nós nos retiremos.” Adam disse
sério. “Não basta só evitar aquelas esferas negras. Não se engane pela aparência. Elas
parecem pretas porque atraem a luz ── mas a causa da morte de quem as toca não é
ser sugado e esmagado instantaneamente. O corpo é destroçado ── Está vendo o
círculo de luz vermelha tremulante na superfície da esfera, isto é, bem fora do Horizonte
de Eventos? É uma auréola criada pela concentração dos raios circundantes devido à
uma lente gravitacional. O motivo de ser vermelha é o efeito Doppler do campo
gravitacional, que faz com que a luz desvie para o vermelho. Serve como um detector de
colisão. Se chegar tão perto ao ponto de tocar naquela auréola, a força de maré, ou seja,
a diferença entre a gravidade do lado mais perto para o do mais longe, puxará o corpo.”
“Isso foi longo demais.” Chuuya disse olhando para baixo. “Dá pra ver que é má notícia
só de olhar. Até porque eu já experienciei uma vez.”
A luz em seu olhos era direcionada ao passado.
Dois dias atrás, Chuuya foi capturado por Verlaine no meio da rua e forçado a abrir o
Portão. Naquela hora, um prédio foi desintegrado num piscar de olhos. E agora aquilo
estava sendo gerado não num instante, mas continuamente. Lá embaixo deve estar o
inferno.
Na extensão visível, quase metade da floresta já havia sido apagada e se tornado um
deserto. Se essa luta acontecer no centro de Yokohama, provocará milhares, não,
dezenas de milhares de vítimas. Por isso Dazai escolheu essa floresta no meio do nada.
"É de revirar o estômago. No final tudo ocorreu do jeitinho que o Dazai queria." Chuuya
disse com ânsia. “Mas eu não posso desistir agora. Tenho uma dívida com Verlaine e o
único que pode ser menos ferido sou eu por controlar a mesma gravidade.”
“Tenha cuidado.” Adam disse assentindo. “Mesmo com a sua Habilidade, se for
acertado por uma esfera daquela não terá como neutralizá-la. Vá se aproximando aqui
por cima sem ele perceber ──”
As palavras de Adam foram interrompidas como se tivessem sido roubadas, e então
gritou “Cuidado!”
Logo depois da voz ecoar, uma esfera já estava bem na frente deles.
Ao tentar desviar, Adam puxou o jugo para trás. Mas a ventania gerada pela intensa
sucção estava roubando a capacidade de controle da aeronave. Irá bater. É impossível
desviar.
Adam puxou com tudo o equipamento de evacuação. O mecanismo remodelado para
fuga mandou os dois voando pelos ares. Em seguida, a esfera destruiu a aeronave e a
sugou.
Os corpos dos dois voavam pelo céu. Adam agarrou o pulso de Chuuya. Fazendo um
barulho de ruptura, ele abriu o paraquedas.
“Se ficarmos flutuando assim viraremos alvos! Adam, corte o paraquedas!”
“Mas…”
“Faça!”
Adam tirou sua pistola automática da cintura e deu quatro tiros consecutivos. Eles
passaram precisamente pelo paraquedas, o derrubando. Depois de um atraso, Chuuya e
Adam começaram a cair em queda livre.
“Boa.” Chuuya sorriu. “Vamos aproveitar e cair em cima dele desse jeito! Adam,
recalcule a trajetória!”
“Entendido.”
Adam puxou um cabo do terminal de sua cintura. Normalmente, era um cabo usado
para se comunicar com outros terminais. Ele o enrolou em volta da cintura e dos ombros
de Chuuya e o retornou para a sua própria cintura.
Os dois caiam como uma bala pelo céu noturno.
“Iniciando fase de voo planado.”
Adam apertou suas duas axilas e puxou as protuberâncias que emergiram. As
membranas prateadas que apareceram do braço até sua cintura formaram dois patágios
triangulares. Esses patágios receberam o vento, mudando a direção da queda para um
voo inclinado.
“Essa é uma membrana feita para perseguir criminosos desde níveis elevados até a
superfície.” Adam disse olhando para frente. “Esta máquina está controlando a trajetória.
Chuuya-sama, devote sua atenção para neutralizar as esferas inimigas, por favor!”
"É claro."
O rugido do vento passava pelas orelhas de Chuuya. A alta pressão do vento atingia
seus olhos, mas Chuuya olhava fixamente seus alvos, sem estreitá-los.
Como uma estrela cadente, Chuuya e Adam foram contra o inimigo.
“Aquele maldito do Dazai…! Quando eu voltar, vou pendurá-lo de ponta cabeça sem
falta!”

•••
Duas horas antes. Dazai estava pendurado de ponta cabeça.
Suas pernas amarradas, penduradas na ponta de um poste de luz.
“Sendo assim, o único jeito de derrotar o Rei Assassino, Verlaine, é o Chuuya chegar
nele pulando de um avião.”
Sem ligar de estar pendurado de cabeça para baixo, Dazai continuava com a mesma
expressão de tédio e sonolência de sempre.
“Entendo.”
Chuuya estava sentado numa cadeira, olhando para ele igual a um inimigo.
Confuso, Adam alternava seu olhar entre os dois.
“Hã… qual tipo de situação é essa?”
Eles estavam numa pista de pouso de aeronaves num vale. O aeroporto afastado do
coração da cidade era silencioso ao ponto de quase poder-se ouvir o cintilar das
primeiras estrelas.
Num hangar ao longe havia dois mecânicos inspecionando a aeronave. Suas vozes não
chegavam até aqui.
Chuuya segurava uma corda envolta diversas vezes na cintura de Dazai feito a corda no
pino de um peão.
“Nós estamos poupando tempo, investigador máquina.”
Dazai sorriu sem se importar.
“Poupando… tempo?”
“Isso. Porque daqui a pouco, começará a emboscada do século.”
Adam olhou para os dois mais uma vez.
“As palavras de um humano são difíceis demais. Não há nenhuma situação parecida
que possa ser interpretada em meus arquivos.”
“Não esquenta com isso. Nem os humanos entendem.”
Shirase estava parado de braços cruzados, um pouco afastado de Chuuya. Olhos de
quem já desistiu de entender.
Chuuya puxou, calado, a corda. Puxou, puxou, levantou, e foi puxando enquanto ia para
trás.
Dazai girava.
E enquanto girava, Dazai explicou a situação.
“Nós vamos atrair o Verlaine usando um dublê do Mori-san. E então vamos cobri-lo
com a força de combate da Máfia. Se conseguirmos encurralá-lo direito, ele abrirá sua
carta na manga, o Portão. Se fizer isso, Chuuya se aproximará com a aeronave.”
Dazai falou tranquilamente enquanto rodava. A voz direcionada para o outro lado se
distanciava, e se aproximava novamente quando virada para cá.
No momento em que a corda ficou toda puxada e Dazai ficou inclinado, Chuuya a
largou.
“Quando se aproximar, Ver…” Dazai girou, "…laine ataca…" girou de novo, "…rá." Girou.
“Uh, mesmo assim,” girou “faz parte do plano.” Girou. “Se o Chuuya com…” girou "…seguir
neutralizar os…" girou “…ataques e chegar per…" girou "…to ao ponto de tocá-lo",
finalmente parou “nós ganhamos. Uerghh”
Dazai vomitou.
Adam olhou resignado Dazai vomitando.
“Não consegui entender nada.”
Chuuya, ao se aproximar mais uma vez, enrolou de novo a corda no tronco de Dazai.
“Enquanto ele explica o que faremos, estou me vingando dele.”
“Ah…”
“Essa vingança é um direito meu. Para comprar tempo, ele deu informações do N para
Verlaine sabendo que eu seria torturado. E no final das contas, o detetive também foi
sacrificado por sua causa. Não dá pra deixar passar.” Chuuya disse encarando Dazai. “Eu
tenho 190 maneiras de me vingar dele, mas estou fazendo a segunda maneira mais gentil
de baixo pra cima. Se eu usar uma mais severa, ele não poderá comandar a operação.
Mesmo relutante, estou fazendo um compromisso.”
“Ah…” Adam inclinou um pouquinho a cabeça. Um movimento perdido entre movê-la
verticalmente ou diagonalmente. “Mesmo depois de ouvir a explicação, ainda tem uma
coisa que não entendo bem.”
“Não ligue, Adam-chan. Eu também não entendi bulhufas.”
Shirase colocou a mão sobre o ombro de Adam, querendo animá-lo.
“Adam-chan…?”
“Continuando.” Dazai como sempre manteve a expressão inalterada. “Com o Portão
aberto por inteiro, Verlaine renderá sua consciência para o monstro da Singularidade.
Ficará como se estivesse dormindo e atacará automaticamente tudo que considera
inimigo. Esse estado automático que é a chave. Como ele estará sem poder de
discernimento, não vai reagir a algo que se aproxime sem hostilidade. Por isso Chuuya
chegará desarmado enquanto nós continuamos a atacar separado para enganá-lo.”
No término de suas palavras, Dazai deu um sorriso contendo o pressentimento de uma
destruição melancólica.
“Nós iremos fazê-lo tomar veneno cordialmente ── como dando amorosamente doce
à uma criança.”

•••
Feito um deixe de luz cortando o céu, Chuuya planava em alta velocidade.
O vento soprava estrondoso ao pé de seus ouvidos, parecendo mil lobos uivando. Mas
Chuuya não se abatia. Seu corpo transformado numa flecha lançada ia em linha reta na
direção de Verlaine.
Verlaine se virou para Chuuya. Seus olhos enevoados projetavam o mais límpido
sentimento no menino.
Ódio.
Um ódio opressor despejado igualmente sobre tudo aquilo que era vivo. Um humano
comum desmaiaria sob essas ondas.
Porém Chuuya não mudou sequer a expressão. Verlaine gerou uma nova esfera e a
jogou contra Chuuya.
“Objeto inimigo se aproximando! Calculando nova rota devido à resistência do ar e
gravidade ── Irei descer rápido para desviar!” Adam gritou, mudando a postura.
Fechando os triângulos, ele desceu o céu como uma ave marinha mergulhando para a
superfície da água.
O canhão gravitacional passou por onde estava sua cabeça. Só isso fez os dois
flutuarem.
Chuuya voltou novamente seu olhar para Verlaine. Dessa distância, se ele continuar
assim, o acertará em dez segundos.
A operação orquestrada por Dazai era minuciosa. O ponto fraco de Verlaine é o mesmo
de Chuuya, veneno. Mas claro que o próprio estava ciente disso. Ele nunca tomaria
veneno por descuido e qualquer injeção ou bala envenenada seria repelida pela
gravidade. Por esse motivo Dazai fez ele abrir o Portão de propósito, para roubar sua
vontade e o discernimento.
“Você não pode atacar,” foi o que Dazai falou. “Porque senão ele contra-atacará com
uma força maior ainda. Não pode ter hostilidade. Senão ele vai devolver um ódio cem
vezes maior. Você irá se aproximar sem nenhuma intenção de matar, bater no seu ombro
como um amigo e enfiar o veneno em sua boca.”
Adam foi o responsável pela composição do veneno. Envolto numa pílula transparente,
uma dosagem mínima. Menor do que uma saliva. Mas uma vez dentro do corpo, a
pessoa perde a consciência em cinco segundos e nunca mais acorda.
“A segunda onda está vindo!” O grito de Adam fez Chuuya voltar a atenção novamente
para os objetos inimigos.
“Tão rápido! E o raio está bem maior do que os anteriores!”
Exatamente. A mão direita de Verlaine produzia uma gigante esfera negra. Grande o
bastante para engolir um carro.
A bola de canhão foi lançada. Adam ainda não tinha recomposto a postura da queda
repentina. A esfera logo logo estaria diante deles.
“Não vou conseguir desviar!”
Chuuya arregalou os olhos.
“OOOOOOOOOOAAAAAAAAA!”
Chuuya gritou, liberando sua Habilidade com toda a força. Ele se agarrou em Adam,
produzindo uma antigravidade em volta de ambos para neutralizar o buraco negro.
Todos os seus vasos sanguíneos borbulharam. Os ossos estalaram e os músculos
rangeram.
Era algo fora do senso comum, uma área colossal de um gigante objeto astronômico
não pertencente à Terra. Um mundo fora da lógica que nenhum humano vivo jamais
alcançou.
A paisagem se deformou e até as vozes foram sugadas. Como o tempo ficou mais lento
dentro da área envolta pela gravidade, o lado de fora pareceu se mover ligeiramente mais
rápido. Mas até essa cena estava deformada, não podendo ser vista direita.
O quanto ele teve que suportar? Como se passando por uma grande bolha com a
respiração presa, ele desfez o campo gravitacional. Toda a sua roupa rasgou, vários
vasos sanguíneos romperam provocando uma dor terrível, mas ele ainda estava vivo.
Não tem problema.
“Incrível…!” Adam gritou admirado. “Chuuya-sama, você provavelmente é a primeira
pessoa do mundo a sobreviver sob tamanho campo gravitacional!"
"Que honra." A voz de Chuuya ainda estava rígida. “Mas ainda está cedo para me gabar.
Olhe para ele.”
Chuuya chamou a atenção para o que estava à sua frente. Adam ficou de boca aberta.
Um número absurdo de esferas estava sendo gerado de ambas as mãos de Verlaine.
Mais de vinte, praticamente do mesmo tamanho da de agora há pouco. Um amontoado
de poder vindo do abismo do espaço. Devorando as leis da física, demônios redondos e
negros.
Impossível aguentá-las. Não importa qual movimento façam para desviar, mesmo que
Chuuya libere uma gravidade dez vezes mais forte que a anterior, é impossível sobreviver
àquela quantidade de esferas. Teriam sorte se ao menos um fragmento de osso
sobrasse.
Os dois se prepararam para morrer.
Mas ── as esferas não vieram. Porque voaram para outro canto.
Tiros, granadas e Habilidades vieram voando da superfície. Em resposta à essa
hostilidade, as esferas choveram sobre a terra, devastando a Máfia.
O terreno mudou, os membros da Máfia viraram corpos e foram sugados. Era um
ataque para tirar a atenção do inimigo de sobre o Chuuya.
Os combatentes atacaram imprudentemente de propósito para que a gravidade de
Verlaine fosse dirigida a eles e não ao Chuuya.
“Aqueles idiotas…” Chuuya gemeu.
Não é que a Bandeira fosse especial. A Máfia era assim. O único jeito de impedir o
assassinato do Chefe era envenenando Verlaine com o veneno nas mãos de Chuuya. Por
isso estavam jogando fora suas vidas. Para comprar um segundo que fosse.
Todos eram assim na Máfia. Selvagens e nobres. Companheiros que merecem ser
confiados.
“Vai!”
Chuuya gritou e Adam fechou os patágios. Acelerando mais ainda com a gravidade,
avançando como uma bala.
Sentindo a colisão de um corpo, Verlaine desviou automaticamente. Mas um segundo
antes de passarem, Adam disparou de seu cotovelo um fio com uma chumbada na ponta
que enroscou no pescoço de Verlaine. O mesmo fio que ele utilizou para restringir
Chuuya no dia em que se conheceram no bar.
Verlaine deu um curto grito.
Os três caíram pelo céu numa só forma.
Verlaine transformado num monstro, ativou sua defesa automática. Ele gerou do centro
de seu corpo a maior esfera de todas até agora.
O fio de Adam foi puxado pela violenta atração. A queda desacelerou bruscamente.
“Vamos ser engolidos! Corte o fio!” Chuuya gritou.
“Não, se cortar aqui, não conseguiremos nos aproximar dele uma segunda vez!” Adam
retornou o grito. “Não há com o que se preocupar, está tudo dentro do planejado!”
Ao dizer isso, Adam cortou o cabo que ligava ele ao Chuuya. E o empurrou.
“O que--”
Deixado para trás, Chuuya olhou Adam, surpreso. Sorrindo, Adam foi engolido pela
esfera de Verlaine.
Chuuya aterrissou no chão. O freio repentino com a antigravidade e a desaceleração
fizeram sua visão ficar manchada de vermelho. Ele olhou correndo para o céu.
Emaranhados um ao outro dentro da bala gravitacional, Verlaine e Adam estavam
caindo. O estrondo destruiu as árvores.
Quando a nuvem de poeira abaixou, foi possível ver uma figura humana rolando no
centro da cratera formada pelo que pareceu ser um meteoro.
Verlaine estava agachado no centro. Não havia um machucado se quer em seu corpo.
Estava caído de joelhos com os olhos fechados como se dormindo. As runas nadavam
pela sua pele, brilhando.
E Adam ── virou destroços.
Do peito para baixo e seu braço esquerdo tinham sumido completamente. Todo o seu
mecanismo interno estava exposto. Seus músculos artificiais e nervos condutores
estavam caídos para fora com líquido branco vazando.
Adam moveu apenas a parte superior de seu rosto e olhou Chuuya. Seu olhar apelava
fortemente algo. E então, deu uma leve assentida, como se dissesse “faça”.
Chuuya decidiu.
Começou a andar silenciosamente sobre a terra escavada. Sem hostilidade, sem
malícia, caminhando pelo campo. Para não ser reconhecido como uma ameaça por
Verlaine, foi dando passos lentos, mas certos.
A figura do homem que se dizia seu irmão refletia em seus olhos. Ele não precisava
suprimir sua hostilidade. No coração de Chuuya ao olhar para Verlaine, misteriosamente
não surgiu nenhum sentimento ruim.
O Verlaine de agora não era humano. Nem mesmo uma equação. Era apenas a
cristalização de um poder. Uma mera máquina de resposta automática que devolvia ódio
ao ódio.
O mesmo poder dormia dentro de si mesmo. Por debaixo de suas cascas, tanto ele
como Verlaine eram o mesmo. Ele agora entende bem porque Verlaine apareceu diante
dele o convidando para viajarem juntos.
Mas ── é preciso terminar.
Chuuya estava bem ao lado de seu irmão. Seu coração estava calmo, surpreendendo
até ele mesmo. Verlaine ainda não reagiu.
Ele tirou o veneno de seu bolso. Era uma cápsula transparente em forma de disco, não
maior que uma unha. Ela dissolverá prontamente quando colocada na boca. Então ele
será visitado pela escuridão e tudo terminará. Essa é a única resolução possível.
Havia uma ligeira abertura entre os lábios do irmão. Chuuya não os via como a boca
odiosa de seu inimigo. Nem como um ser vivo. Como quando se coloca uma carta no
correio; se encaixa uma peça no quebra-cabeça e se dá adeus às memórias de alguém
próximo a você, ele apenas inseriu de maneira impessoal a cápsula nos lábios.
A cápsula deixou os seus dedos. Uma dor aguda.
Não era uma dor do coração. Era uma dor física. A ponta de seu dedo estava
sangrando.
“Ahh… Você sempre quer me fazer de tolo, Chuuya.”
Verlaine estava rindo.
No canto de seus lábios estava o sangue de Chuuya. Logo em seguida, Chuuya saiu
voando.
Ele não foi sugado pela esfera gravitacional. Era a Habilidade regular de transformar a
gravidade do que tocasse.
Chuuya saiu rolando e sem conseguir se defender, bateu no tronco de uma árvore.
“Gahh……”
“No primeiro dia em que eu te conheci… deixei um comando quando abri o seu Portão.”
Enquanto falava, Verlaine cuspiu a cápsula de dentro da boca. Ela caiu na grama e se
perdeu.
“Era um comando para que quando você me tocasse novamente, o meu Portão
fechasse. Por isso que ele fechou espontaneamente agora. Só dava pra me parar assim
já que quando estou na minha forma bestial, minha consciência fica adormecida.”
“Forma bestial…?”
“Removendo a equação de personalidade, a besta demoníaca sai temporariamente.
Esse estado que eu estava agora há pouco. Rimbaud a nomeoou assim tirando o nome
de um dos versos de liberação do selo.”
Verlaine levantou com calma e olhou para Chuuya.
“Foi ele quem pensou num jeito de me trazer de volta da forma Singular. Ele sempre
esteve pensando no que poderia fazer por mim.”
“E você o traiu.” Chuuya disse com os joelhos bambos. “Não foi?”
Sem responder de imediato, Verlaine abriu bem os olhos e olhou para Chuuya. Eram
olhos secos, sem um brilho sequer. Então falou, “Foi para te salvar.”
Chuuya deu um jeito de se levantar mesmo cambaleando.
“Chega.” Seu olhar era sereno. “Desisto. Você venceu. Não tem mais ninguém na Máfia
capaz de te vencer. Seja para a Europa ou qualquer lugar do mundo, eu irei com você.”
Verlaine estreitou os olhos.
“Pretende me enganar?”
“O Dazai é vil, mas não acho que sua eloquência irá te enganar mais.” Chuuya riu
zombando de si mesmo. “E eu pensei. Um dia eu provavelmente odiarei todo o mundo
que nem você. Para que isso não aconteça, melhor te observar de perto.”
Verlaine ficou olhando com atenção o rosto do outro como se lá estivessem todas as
respostas da vida daqui em diante. E falou, "Então… você não odeia o mundo?"
“Tem gente que eu odeio, mas não são todos. Eu,” Chuuya olhou para longe. As estrelas
brilhavam além de seus olhos. “Eu sei que não estou vivendo sozinho. Não era o mesmo
pra você antigamente?”
"…"
Verlaine não conseguia responder. E o fato de não conseguir responder era uma
resposta para si mesmo.
“Está decidido. Vamos logo. Em breve a Máfia atacará novamente sem descanso.
Mesmo que nenhum ataque, nem mesmo o mais poderoso, funcione contra você. O que
funcionaria contra você” Chuuya apontou com o queixo para trás de Verlaine, “é um
ataque surpresa. Um que você nunca esperaria ou imaginaria, um choque ── assim.”
Alguém deu um tapa no ombro de Verlaine, que se virou na hora.
Um dedo estava em sua bochecha.
“Hah.”
“Quer ouvir uma piada de androide?”
Na ponta desse dedo havia uma finíssima agulha hipodérmica. Apenas a metade
superior do corpo de Adam estava com a mão sobre o ombro de Verlaine. O veneno
penetrou a pele pela agulha.
O líquido dentro da corrente sanguínea imediatamente fez com que sua pressão caísse.
Verlaine foi para um lado e depois caiu para o outro, perdendo a consciência.
Adam encolheu os ombros e deu um sorriso travesso.
“O Rei Assassino foi derrotado por uma brincadeira infantil. Essa era a piada.”
Excerto das Anotações de Rimbaud

Dia XX Ano XXXX


Registro: DGSS, Departamento de Operações, Grupo de Forças Especiais
Agent XXXXXX

Céu Ensolarado, Antes do Amanhecer, Lua Nova

Sendo hoje o dia anterior à nossa infiltração na base limitar do país inimigo, deixarei um
registro um pouco maior do que o de costume.
Não teremos proteção nem suporte para essa missão. Não há nenhum cooperador
interno também.
O objeto que teremos de roubar é uma nova arma especial. Ela tem a forma de um
menino, mas é uma calamidade com o poder de destruir o mundo.
É uma missão perigosa. Não sei se voltaremos vivos. Mas os únicos capazes de roubar
uma calamidade mundial de um país inimigo somos eu e meu parceiro Verlaine.
Eu sempre estive pensando o que poderia fazer por ele. Porém somente ontem,
consegui a resposta.
Celebrar seu aniversário.
Claro, ele não tem uma data de nascimento precisa. Mas eu decidi fazer de ontem essa
data. Nesse mesmo dia há quatro anos, Verlaine matou Fauno e obteve sua liberdade.
Com um pequeno pudim de uma patisserie de Paris em mãos e uma garrafa de vinho
debaixo do braço, fui até o esconderijo de Verlaine. Mais do que surpreso, ele ficou
receoso. Eu expliquei a ele a situação.
Comemorar o aniversário implica numa simples verdade. “O seu nascimento merece
ser celebrado.” Não importa o que digam, você ter nascido valeu a pena.
E há algo fundamental para essa celebração. Um aniversário sem isso, é o mesmo que
um céu sem lua.
Um presente.
Eu dei a ele um chapéu preto. Um chapéu de aba arredondada. Não é luxuoso, nem feito
por um estilista famoso. Mas no seu interior, na parte que absorve o suor, há algo
bastante especial.
Costurado em metal especial cor de arco-íris e composto por 10% de platina, 10% de
titânio e o resto majoritariamente por ouro, ele contém a Habilidade do Fauno. Eu
remodelei o produto completado em seu laboratório na forma de um chapéu.
Quando colocado na cabeça, o tecido funciona como uma bobina, dando para repelir a
interferência externa da equação de comando. Por outro lado, o usuário consegue
controlar a equação. Usando esse chapéu, Verlaine fica um passo mais perto de um
humano com livre-arbítrio.
A sua reação foi estranha. Sem estar contente ou surpreso, apenas disse com o olhar
silencioso: “Vou ficar com ele por enquanto.”
Não falou nada mais além disso. Nós bebemos o vinho e nos despedimos.
Mesmo um dia depois, ainda não sei se aquilo foi a ação correta. Os olhos frios de
Verlaine estavam longe como o polo norte.
Mas logo, terei minha resposta. Amanhã, na terra inimiga.

Pelo meu parceiro, eu irei feliz para o inferno que seja. Enquanto houver um Deus no
céu, os laços entre nossos corações e o futuro adiante.

(Essa é a última parte das anotações de Rimbaud. Nada mais está escrito.)

•••
A batalha terminou, mas os resquícios das ondas gravitacionais ainda faziam a floresta
farfalhar.
Verlaine estava caído no marco zero criado pela devastação das árvores. O som, o
vento e as folhas atraídos pelo restante de gravidade se concentravam ali, formando um
pequeno redemoinho.
Mas Verlaine ainda não recobrou a consciência.
Adam se levantou com a mão e espiou Verlaine dormindo.
“Batimentos estáveis. Respiração fraca,” ele disse. “Está dormindo sem nenhum
problema. A gravidade remanescente não está em nível de perigo.”
Então se inclinou e olhou o rosto de Verlaine bem de perto. O rosto do homem chamado
de Rei Assassino e calamidade mundial era demasiadamente pacífico e inofensivo.
“Ei, vamos desenhar no rosto dele?”
“Pare com isso.” Chuuya disse sentado.
“Na verdade, o meu dedo se transforma numa caneta.” Adam abriu a parte externa da
ponta de seu dedo do meio.
“Eu falei pra parar.” Foi o que Chuuya disse, mas o canto de sua boca estava rindo um
pouco.
Colocando o dedo no lugar de volta, Adam falou:
“Olhando ele dormir tão tranquilamente assim, parece apenas um humano comum.”
“Dormindo ou acordado ele é um humano comum.” Chuuya disse sem dar importância.
“Sua Habilidade é forte, mas é só isso. Ele fica com raiva, preocupado… apesar de que só
isso não basta pra ele.”
Ouvindo tais palavras, Adam olhou bem para Chuuya e sorriu.
“Exato. Parece que chegou na conclusão que deveria chegar.”
“Hã? Como assim?”
Quando Chuuya foi encará-lo, seu transmissor tocou.
“Oi par de amiguinhos. Ouvi as novidades.” Era a voz de Dazai. “Vocês derrotaram o
Verlaine? Que medo. Eu bolei essa estratégia pensando, 'bom, mesmo se for esmagado
no céu, é o Chuuya de que estamos falando.”
“Você, hein.”
Antes que ele retrucasse, a voz no transmissor foi mais rápida.
“Não por isso que liguei. Vocês não viram o N por ai?”
“Hah? O N?” Chuuya levantou a sobrancelha. “Ele não tinha sido sequestrado pelo
Verlaine?”
"É claro que eu mandei uma equipe de resgate para ele. Preciso do que ele sabe, afinal.
Principalmente, Chuuya, para espiar seu interior."
Chuuya ficou um momento calado até que disse segurando o transmissor, “Entendi.
Esse era o seu objetivo desde o começo, né?”
“Finalmente percebeu?” Dazai riu, alegre. “Mesmo que seja para proteger a vida do
Mori-san, eu não sou tão leal assim ao ponto de enfrentar aquele cara assustador de
graça. Combinando a equação de comando do N e o conhecimento de um cara ai, eu
planejo remodelar você como meu empregado fiel ── ”
“Legal. E? Pra que quer saber se eu vi o N?”
“A equipe que resgatou o N parou de entrar em contato no caminho para cá. E não
consigo falar com o N também.”
“O quê?”
A voz de Dazai, ao responder, foi absorvida pela sinistra noite.
“Talvez algo tenha acontecido.”

•••
O carro preto da Máfia bateu num poste de luz.
N saiu rolando do banco de trás. Todo o seu corpo foi fortemente acertado e dentro de
sua boca havia sangue acumulado. Ele ficou de quatro na estrada, a respiração pesada.
O poste de luz acertado estava com a sua frente esmagada e fumaça saia do carro. Ali
era perto da floresta em que a luta com Verlaine estava acontecendo e não passava
nenhum carro. A única coisa que podia ser vista era a negra floresta.
“Eu ainda… não posso morrer…”
Dizendo isso, N cuspiu o sangue espesso no chão e levantou. Começou a andar,
fugindo.
“Até que eu transmita isso…”
N tirou do bolso do jaleco uma pistola sinalizadora desgastada. Era vermelha escura.
A primeira vista, parecia uma pistola normal, mas a boca era larga e capaz de lançar um
cartucho de 12 calibres.
Em seguida, N tirou seu relógio de pulso. Era um relógio prateado bem comum. Ele
retirou a tampa com seus dedos suados e sujos de sangue e tirou uma das engrenagens
do meio. Essa engrenagem era a única parte estranha. O metal brilhava de um modo
peculiar.
Ouro, prata e uma liga cor de arco-íris nunca antes vista. Sob a luz do luar, uma série de
caracteres bem pequenos apareceu em sua superfície e logo sumiu.
Arrastando a perna, N chegou até uma colina acima do campo de batalha com Verlaine.
Ele viu um buraco formado pela destruição das árvores e uma colisão.
“Você… assumiu a forma bestial, não foi, Verlaine?” N disse ofegando. No canto de sua
boca, um ligeiro sorriso se formou. “Então finalmente um fraco como eu poderei te
alcançar.”
N colocou o misterioso metal tirado do relógio dentro do sinalizador. Não havia uma
emoção se quer em seu silencioso olhar. De repente, seu olhar mudou para o de quem
tinha um plano decidido. Carregada a arma, ele a apontou para o céu.

Fumaça ainda saia do carro atrás dele. A gasolina estava vazando por baixo. Havia
duas pessoas lá dentro, mas não se moviam.
Eram dois membros da Máfia. Ambos estavam mortos.
O homem sentado na cadeira do motorista estava prostrado no volante, como se
dormindo. Suas roupas e a carne do seu pescoço até o quadril estavam derretidas, dando
para ver a sua coluna vertebral. Uma fumaça branca e um odor fedido ainda subiam da
parte arrancada.
O homem no banco do carona estava numa situação parecida. Todo o seu braço direito
desde o ombro derreteu, morrendo após ter tido sua coluna quebrada pelo impacto da
batida. O cinto de segurança foi despedaçado com a solução química aplicada por trás.
O frasco vazio havia rolado para o chão do banco traseiro.
A causa da morte estava evidente. O homem sentado no banco traseiro aplicou
abruptamente a solução nos dois homens da frente. Os dois não estavam a postos. Sem
conseguirem reagir ou se defender, os corpos foram derretidos pelo líquido, o carro
perdeu o controle e colidiu com o poste.
Os dois homens da Máfia salvaram o homem do banco de trás ── o N que havia sido
sequestrado e posto num guindaste e o levavam até Dazai.

•••
Chuuya começou a andar carregando nas costas Verlaine e Adam com o corpo
destruído.
Não havia expressão de dor em seu rosto apesar de carregar dois corpos que somados
juntos eram o dobro de seu peso e tamanho, pois os estava tornando mais leves pela
gravidade.
“Nossa, que coisa.” Sendo carregado, Adam fechou os olhos. “A missão foi cumprida
perfeitamente. O governo europeu, não, os governos mundiais provavelmente
agradecerão a esta máquina.”
“Legal. Também quero que agradeçam a mim que estou te carregando.” Chuuya disse
aborrecido.
"É certo que serei promovido. Parece que o meu sonho de criar uma agência de
detetives automáticos será mais rápido de se realizar do que imaginei."
“Hah, isso é bem grande.”
“Um futuro em que investigadores automáticos perfeitos protegem humanos
imperfeitos. Mais e mais os investigadores humanos se tornarão inúteis e serão
removidos, não, serão logo liberados de todos os trabalhos a não ser os de
entretenimento e vocês, sem nenhuma capacidade independente, serão controlados por
nós… fufufu.”
“A sua risada é medonha, então pare.”
Chuuya olhou com o rosto contraído para Adam. Foi nessa hora.
Um sinalizador foi disparado ao leste.
“O que foi isso?”
O sinalizador emitia um brilho dourado. Ele atravessava o céu rapidamente, deixando
uma cauda de fumaça para trás como uma estrela cadente ao contrário.
A luz iluminava os perfis das árvores, desenhando uma cicatriz de luz sobre a terra e
projetando uma longa, longa sombra sob os pés de Chuuya.
"…Será que foi um disparo acidental da equipe de ataque?"
Ao que Chuuya disse isso, ele estreitou os olhos para o sol repentino que apareceu no
céu noturno.

Dazai olhava a luz sem nem piscar. Seus olhos se moviam rápido procurando a origem.
Então fizeram um ângulo.
Tempo presente. Situação do combate. Um tipo de bala de luz. Um possível dono.
Motivo. Objetivo.
Em menos de um segundo, a luz do entendimento brilhou em seu olhos.
"…Isso é mau." O que saiu dos lábios do Dazai foi menos do que uma voz, uma
respiração rachada. “Todos precisam evacuar… Não, não vai dar tempo.”
Seus olhos tremiam de desespero.

Uma miríade de fragmentos estranhos de metal cor de arco-íris derramavam do


sinalizador disparado. Chuuya os olhou. Eram menores do que um floco de neve as
partículas de arco-íris que brilhavam mais do que uma longínqua estrela. Como se
ressonando uma música inaudível, elas cintilavam lindamente.
Chuuya percebeu que de fato uma música estava sendo tocada. Mais do que uma
música na verdade, uma pressão sonora. Antes de se tornar uma melodia, um simplório e
puro sinal musical.
Logo em seguida, algo excepcional aconteceu. Verlaine gritou de suas costas.
Um grito que não formava palavras. Todos os pelos de Chuuya se arrepiaram. Não era
para ele ter acordado, Chuuya estava desprevenido. E se ele atacar agora? Seu corpo
está na pior condição possível, não conseguirá evitar.
Chuuya na mesma hora derrubou Verlaine. Foi quando percebeu.
Ele não estava apenas gritando. Verlaine estava sofrendo.
Seus olhos estavam vermelhos, dava para ver as veias em seu rosto como uma malha e
seus dedos rasgavam o peito. Ficou agonizando no chão quando caiu e seu corpo se
contorceu ao ponto de poder ouvir o som dos músculos rasgando.
“Adam! O que tá acontecendo com ele?!”
“Não foi o veneno!” Adam gritou com a voz rígida.
Chuuya se deu conta. As partículas metálicas que choviam do céu estavam sendo
absorvidas pelo resquício de gravidade do Verlaine. Talvez seja por isso que o efeito está
sendo mais forte nele.
É o ataque de alguém. Verlaine está sofrendo por conta dessas partículas.
Quem atirou aquele sinalizador?
"…gou"
Verlaine disse algo em meio aos gemidos de dor. Chuuya se virou em sua direção.
“Ele, me, pe, gou.” Sua voz carregada de remorso. “Aquele, pesquisador, mentiu… Ele já,
sabia, sobre O Segredo… da Floresta Gentil……”
Então a anormalidade começou.
O espaço começou a ondular em torno de Verlaine.
“A flutuação no campo gravitacional está engolindo a luz do ambiente! Detectando
mudança na frequência devido ao Efeito Doppler!” A voz de Adam estava aguda como
uma sirene de alerta.
“Alguma coisa está vindo!”
A terra ao redor de Verlaine afundou como se esmagada pelo punho de um gigante
invisível. O chão afundava cada vez mais feito uma tigela e as árvores vibravam
assustadas.
“Fuja daqui, por favor, Chuuya-sama. O mais rápido possível. O padrão do comprimento
de onda dessa gravidade é o mesmo de nove anos atrás.”
“Nove anos atrás?” A expressão de Chuuya mudou. “Ei, Verlaine, explique o que tá
acontecendo!”
Verlaine afundava na oscilação de suas próprias ondas gravitacionais.
O espaço se distorceu e não dava mais para vê-lo praticamente. Uma absurda
Habilidade cobria a área por centenas de metros. A diferença de potenciais de energia
provocou uma série de flashes azuis parecendo raios.
No centro, a voz de Verlaine era frágil e fraca como se vindo de outra dimensão.
“O mundo… vai acabar.” Verlaine estendeu a mão trêmula como um velho à beira da
morte. “Fuja, Chuuya.” E sua mão tocou o peito do menino.
A gravidade direcionada para fora mandou Chuuya voando pelos ares.
“O que-”
Enquanto girava pelo espaço, Chuuya viu. O triste sorriso de Verlaine.

Mas sendo alcançado pelo poder emanado e expandido velozmente, sua consciência
foi engolida junto.

•••
O céu partiu.
Um trovão negro desceu.
A atmosfera se expandiu.
O grupo combatente escutou em meio a fuga um anjo cantando.
Dazai escutou de cima do trem a risada de um demônio.
Era a mesma calamidade de nove anos atrás. O chão fervia. As casas evaporavam. Os
céus queimavam e a terra gritava em prantos.
Era a tempestuosidade do deus Arahabaki. Aquilo que veio do outro lado.
Porém ── o que queima a floresta agora diante de seus olhos não é o Arahabaki. É
algo maior, mais preto e mais sinistro.
Seu corpo gigante escondia a lua, seus movimentos criavam ondas de vácuo, seu
passos partiam a terra ao meio.
Dazai olhou para essa figura.
“Isso é uma Singularidade? Esse poder realmente nasceu de uma Habilidade?” Sua voz
estava praticamente em transe. “Isso não está mais para o fim do mundo?”
Os cantos de seus lábios formaram inconscientemente um sorriso.
Nos dez primeiros segundos, as árvores num alcance de quinhentos metros foram
devastadas. Nos dez seguintes, a área nesse mesmo alcance foi explodida. Nos outros
dez, a terra escavada ferveu, virou lava e começou a queimar a floresta ao redor.
N gargalhava ao ver o espetáculo de cima da colina.
“Hahahahaha! Verlaine-kun, esse é O Segredo da Floresta Gentil! O que o Rimbaud
arrancou para te proteger, a maneira de você voltar a sua verdadeira forma!”
N olhava para a figura grotesca de Verlaine, agora transformado na silhueta de uma
gigante besta preta.
“Até o Deus Arahabaki não passa de uma cópia sua se comparado. A primeira
Singularidade. A besta que veio da origem desse mundo. O nome que seu criador deu é o
negativo do deus feroz, o primeiro demônio ── a Besta Guivre.”
O gigante corpo levantou sua cabeça. Seu corpo era chamas, assim como sua cauda.
Sua densa estrutura era puro azeviche congelando a noite.
Oito olhos vermelhos. Suas presas, prata oxidada.
Sem conseguir manter o contorno por causa da alta energia, ele oscilava e se misturava
com o ar. Sua forma maior que um arranha-céu e sua boca lembravam a de um réptil.
Mas não pareciam com nenhum ser da Terra. O mais próximo era um monstro que existe
somente no folclore. O rei do caos, um perverso dragão.
Seria de mau agouro chamá-lo de deus. A terra fervendo sob suas pegadas faz com
que os membros da Máfia que ficaram para trás gritem e logo morram.
O caos é respirado.
Uma besta não de escala humana, mas de escala cósmica. O rugido da destruição
preenche o ar.

•••
Fiz três reinicializações de emergência no meu núcleo principal e consegui recobrar a
consciência. Porém não sei onde estou. Não sei nem como estou.
Uma negra corredeira está girando violentamente ao meu redor. Devido a anomalia
gravitacional todos os meus medidores estão em desordem. Não consigo varrer o
perímetro também.
Esta máquina chegou a conclusão que provavelmente estou dentro do corpo de
Verlaine. É a única forma de explicar como todas as minhas comunicações com o
exterior estão suspensas. A intensa gravidade está aprisionando as ondas de rádio. Até
os medidores de tempo estão se movendo numa velocidade anormal.
De acordo com a teoria da relatividade, o tempo aqui deve estar passando mais rápido
do que lá fora. É um lugar extremamente perigoso.
“Chuuya-sama! Onde você está?!”
Esta máquina gritou com a sua mais alta potência. Mas a voz não chegou nem aos
meus dispositivos auditivos. Sendo sincero, não há nenhuma diferença daqui para o
espaço sideral. A luz que parece uma tempestade de areia passa correndo diante dos
meus olhos de tempos em tempos.
Num desses momentos, o sistema principal disparou um alerta e um curto aviso
apareceu no meu feed.

Confirmação da ocorrência do estado de emergência 812. Aprovado descompactamento do


protocolo suporte B; sobrescrevendo objetivo final da missão e desbloqueando selos das
funções B1 até B12.

Com isso, lembrei de tudo. Esta situação já era esperada. A verdadeira razão pela qual
fui enviado.
Aqui é realmente o interior de Verlaine. A Singularidade em seu interior foi liberada e
esta máquina e o Chuuya-sama que estávamos mais perto fomos pegos.
Chuuya-sama está em perigo.
“Suspendendo protocolo suporte de emergência temporariamente. Procurarei por
aquele que tem autoridade maior sobre mim, Chuuya-sama.”
Controlando a minha postura por meio dos propulsores a ar, esta máquina começou a ir
para frente.
“Estou indo te salvar!”
Em meio a escuridão da tempestade espacial, em meio ao caos em que não dá para ver
meus dedos, esta máquina avança.

•••
Dazai olhava o contínuo contra-ataque desesperado da Máfia.
Os raios de calor, as chamas e os flashes envolviam a besta. Eram os ataques dos
Usuários que tinham ficado em prontidão na retaguarda. Em adição, morteiros, granadas
antitanques, lançadores de granadas; um imensurável assalto de armas de fogo vinha
voando, envolvendo em chamas o animal preto.
Mas todos os ataques eram obstruídos pelos buracos negros que circundavam o
animal feito bolhas. Os ataques físicos eram absorvidos por esses buracos ou
evaporavam pela luz emitida no desaparecimento de um deles.
A Usuária do gelo gerava ar frio. Mas a energia emitida pela besta era grande demais e
o calor o reduzia num instante. O Usuário da terra liquefeita tentou destruir o chão sob
suas patas, mas não era um líquido denso o bastante para afundar tão facilmente suas
demasiadas solas gigantes.
Os ataques dos outros Usuários também eram repelidos pelo corpo do animal e iam
caindo um a um.
"É inútil." Dazai que observava tudo, sussurrou abismado. "É igual as pessoas de
Sodoma tocadas pela fúria divina. É unilateral demais. Não é nem uma luta."
“Dazai-dono.”
Segurando o transmissor, Hirotsu correu para perto de Dazai.
“Os reforços pelo ar comprados de mercenários chegarão em instantes.”
“Reforços pelo ar?”
Na mesma hora, eles ouviram três graves batidas vindo do céu ao leste. Eram imensas
massas de aço.
Um helicóptero de ataque ao solo com armamento pesado. Não era um helicóptero de
assalto desviado de uso para transporte para supressão local nem reconhecimento. Foi
planejado desde o começo como um animal feroz do céu para pulverizar os inimigos com
poder de fogo.
Os três helicópteros de combate desfizeram de uma só vez os sopros das chamas. As
máquinas de ataque ao solo não pouparam. Eles atiraram dezesseis mísseis guiados
com o poder de destroçar a armadura de um reservatório militar. Os três juntos soltaram
ao todo quarenta e oito mísseis de uma só vez.
Bolas de calor carmesim inflaram na superfície do animal. A besta preta rugiu.
Os mísseis guiados não explodiram quando acertaram o inimigo, mas sim no momento
em que estavam a um alcance letal. O fusível de proximidade foi o que possibilitou o
ataque funcionar antes das ogivas serem engolidas por um dos buracos negros. Nem
mesmo na Máfia havia um Usuário capaz de superar esse poder de destruição.
O animal virou sua cabeça agitado.
“Realmente é um poder devastador.” Hirotsu disse cobrindo os olhos com a mão dos
feixes de luz. “E ele é grande, mas não tem como atacar à longa distância. Se
continuarmos nesse ritmo, talvez…”
Dazai estreitou os olhos com a expressão séria.
"…Não."
A besta, após rugir, encarou as máquinas de aço que flutuavam no céu. A presença
severa da morte preencheu toda a região.
“O—”
Todos olharam. O céu sendo aniquilado.
Uma escuridão estava sendo gerada no topo da cabeça da besta, engolindo a lua, as
estrelas e a luz. Ela foi contraindo diante dos olhos do animal até virar uma esfera negra
do tamanho de um trem dentro de sua boca. O que existia ali era um perfeito nada. A
escuridão que devora a lógica desse mundo.
Essa escuridão foi lançada junto com seu rugido.
A primeira a sumir foi a terra. A longa respirada em forma de faixa que foi disparada fez
um buraco impossível de ver o fundo. Ao mesmo tempo que a besta levantou o rosto, a
terra apagada também se estendeu para a frente, cavando um penhasco profundo.
A escuridão acertou os helicópteros.
Um deles foi acertado pela negra corredeira. Sem nem ser destruído, foi sugado
completamente e desapareceu como se nunca tivesse estado ali. Os outros dois foram
dilacerados pela força da maré quando a corredeira se aproximou, virando inúmeros
fragmentos e caindo sobre a superfície.
Foi tudo num instante. Num segundo, a besta soltou um sopro negro e no outro as três
novas armas foram extintas.
“O…” Hirotsu olhava fixo para o céu como se tivesse esquecido de respirar. “O que
acabou de acontecer……”
A terra foi escavada em linha reta formando um precipício sem fundo. Ia até onde os
olhos conseguiam ver e continuava além do horizonte.
“Haha… inacreditável. O buraco negro soltou um laser.” Os olhos de Dazai estavam
arregalados, mas sua boca estava retorcida, rindo. “Isso não é mais uma Habilidade. Não,
não é nem um fenômeno terrestre. É um fenômeno físico que só pode ser visto em
lugares como a Via Láctea ou o centro do sol. Não parece nem que estamos lutando
contra um ser vivo. Não dá. Não tem como vencer.”

•••
A besta começou a andar.
O movimento de tirar sua pata do chão era lento e demorava alguns segundos, mas a
ponta se movia numa velocidade rápida o suficiente para gerar ondas de choque. Como o
seu corpo era imenso demais, o menor movimento que fosse parecia com o de um trem
expresso.
Ele ia em direção a colina onde N estava em cima. N gargalhava vendo as ondas
gravitacionais geradas pelo sopro da morte.
“Hahahaha! Sim! É isso mesmo, Verlaine! Como você disse, você não é humano! É algo
superior, uma besta devoradora do mundo! Prossiga e com a tirania da Singularidade,
achate a cidade e o planeta! E quando seu poder exaurir, desapareça junto com ela!
Hahahahaha!”

A besta anda. Como uma montanha azeviche. Seus olhos não veem nada. O restante da
Máfia, o N sob seus pés, nada.
Ela olha as luzes de Yokohama brilhando ao longe.
“Viu só, Verlaine?! Esse é o seu fim!” A risada de N se tornou um regozijo. E no final era
quase um grito. “Uma existência inigualável que nem a sua irá morrer por culpa de um
humano qualquer que nem eu! Hahahahaha, morra, Verlaine! Isso é pelo meu irmão!
Hahahahahahahahahahahahahaha”
A besta levanta sua pata. N grita enquanto ri em meio as lágrimas.

A gigante sola esmaga a colina junto com N.

•••

Hirotsu e Dazai observam um pouco afastados a caminhada do enorme animal.


“Está andando.” Hirotsu disse atordoado. “Para a cidade ── na direção de Yokohama.”
“Ele é a personificação do ódio.” Dazai falou como se estivesse lendo um livro. “Ele
reage aos ataques, ou seja, ao ódio dos inimigos. Uma parte das pessoas da cidade
percebeu esse ataque de agora. Ele está indo para Yokohama reagindo a essas
presenças.”
“Então se ele continuar...”
“Sim. Milhares de pessoas morrerão.” Dazai pegou o transmissor. “Agora é a hora, pelo
jeito.” Dizendo isso, ele ajustou a frequência.
“Mori-san? Melhor fugir, ele tá indo para aí.”

Mesa do escritório do Chefe no último andar da sede da Máfia do Porto.


Sentado ali, mori olhava para a janela.
O quarto estava escuro e da janela era possível ver a paisagem noturna de Yokohama.
Ao longe dessa visão, além do céu que ultrapassa a cidade, algo vermelho-escuro
cintilava ligeiramente. As nuvens iluminavam a luta e a conflagração da floresta que
aconteciam distantes.
“Eu consegui ver o ataque de agora daqui.” Mori disse calmo. “Parece que algo incrível
está acontecendo.”
“Longe de incrível.” Dazai falou. “Aquilo é outro Arahabaki. Há nove anos, quando um
deles acordou por apenas um instante, mandou a cidade voando e formou uma cratera
gigante em Suribachi. Se esse poder for liberado continuamente na cidade, Yokohama vai
afundar no fundo do oceano. Não teremos mais o que fazer.”
Ao ouvir tais palavras, Mori apenas respirou tranquilamente sem mudar sua expressão.
Então disse:
“Dazai-kun. Você sabe porque consegui continuar como o Chefe?”
“Mori-san.” Dazai falou com a voz amarga, o reprovando. “Não é hora para isso.”
“Eu não tenho uma Habilidade útil que nem a de vocês aí. Em troca, eu sou um pouco
melhor em outra coisa. A intuição de estimar a força de combate necessária para enviar
ao campo de batalha.”
Dazai ficou um tempo calado.
“Quer que nós o derrotemos?”
“Você disse para eu fugir, mas para onde se deve fugir de um monstro desses?” Seu
tom era sereno, de quem expressa os fatos. “Além do mais eu quero ver como vocês ──
como você e o Chuuya superarão essa crise. Tenho certeza de que esse será o começo
de uma nova era.”
“Tão despreocupado.” Dazai falou entediado. “Mas o Chuuya provavelmente morreu.
Ele era quem tava mais perto quando o monstro surgiu. E o seu transmissor está sem
sinal. Mesmo se ele tiver se protegido com a sua gravidade e sobrevivido, ele agora tá no
estômago do monstro. …Quer que eu diga o que estou pensando?”
Sem responder, Mori deu uma leve encolhida de ombros. Depois de esperar um pouco,
Dazai continuou.
“Essa não é a oportunidade perfeita? Depois de receber tamanha Habilidade, tenho
certeza de que ele desapareceu na mesma hora sem deixar vestígios. Sem sofrer nem a
feiura depois da morte. Foi a oportunidade que só acontece uma vez a cada milênio.”
Mori não respondeu de imediato. Seus olhos eram de quem estava considerando a
resposta na ponta da língua, batendo com o dedo nos lábios.
“Você provavelmente está certo.” Falou depois de um tempo. “Mas você enfrentará
esse monstro. E lutará até o fim. Eu sei.”
“Impossível. Mas vou ouvir a razão só dessa vez.”
"É uma lógica muito simples." Mori estava sorrindo. “Se você morrer para esse monstro,
ninguém salvará o Chuuya-kun e ele morrerá também. Ou seja, a morte que você tanto
anseia se realizará na forma de um duplo suicídio com o Chuuya-kun.”
Foram dez segundos de silêncio. Até que Dazai emitiu “Howah” do outro lado do
transmissor.
“O que foi esse ‘howah’?”
“Nada. De qualquer forma, é inútil tentar me manipular desse jeito. Vou desligar.”
E então, a ligação foi cortada.
Mori segurou sorrindo o transmissor.
Dazai ficou imóvel, ainda segurando o transmissor. Depois, abraçando-o e se
encolhendo, ele gritou virado para o chão:
“Tudo menos issooooooooooooooo!!”
•••
Chuuya avançava dentro da escuridão.
Ele não sabia dizer se estava avançando no tempo ou no espaço. Não conseguia nem
dizer se aqui era realmente um lugar ou se era a escuridão conceitual do mundo após a
morte. Mas ele conseguia ver alguém diante de seus olhos.
A escuridão que não permitia discernir o que era cima ou baixo soprou ferozmente,
escondendo essa pessoa. Mas ele tinha certeza que ela estava ali flutuando no ar, atrás
da azulada névoa. Alguém que ele conhecia.
Ele percebeu. Era ele mesmo.
Um pequeno Chuuya flutuando num líquido preto azulado. Ele está dormindo.
Familiares tubos de transfusão e cordas estão conectados desde o seu pescoço até a
coluna.
De repente, ele ouve uma voz.
“Rápido, Paul. A segurança está vindo.”
Chuuya olha surpreso para a direção da voz. Ali está outra pessoa que ele também
conhecia.
Longos cabelos escuros e ondulados. Olhos serenos. Um homem vestindo um jaleco
branco colocado para invadir o laboratório. Randou ── Arthur Rimbaud. Ele está olhando
para cá.
“O que foi, Paul? Esse é o protótipo 258. Só pode ser essa criança. Por que está
hesitando?”
“Eu sei.”
Quem respondeu foi o próprio Chuuya. Ele voltou seu olhar para o vidro circular. Na
superfície do vidro, um rosto era vagamente refletido. O homem de chapéu preto. Paul
Verlaine.
Sua mão tocou o tanque de vidro. Uma mão com dedos longos.
Junto a voz de Verlaine, a mão mudou para um punho e quebrou o tanque. O líquido
preto azulado transbordou. A mão segurou o pequeno Chuuya e o levou para fora.

O tempo acelera.
Agora ele está num beco à noite. A luz da lua corta as desorganizadas construções que
parecem blocos de madeira empilhados grosseiramente. Os dois estão andando a
passos rápidos com Rimbaud indo na frente.
Em algum lugar ao longe, o alarme de segurança do exército toca. Perceberam a
invasão.
Chuuya então percebe que isto é uma memória. Quando Verlaine, junto com seu
parceiro Rimbaud, o levou nove anos atrás.
Mas por quê? Por que ele está vendo essa memória?
Chuuya se lembra. Logo depois dele ter sido empurrado por Verlaine durante a luta da
floresta, ele sentiu ter sido engolido por algo intenso. Por algo escuro além da gravidade.
Será que foi aquilo?
Quando ele tenta se concentrar, sua cabeça dói. Dentro de algo maior do que ele, é
difícil manter sua mente definida.
Mas é algo que preciso enfrentar. Tenho certeza que há um motivo para eu estar vendo
essas lembranças agora.
Rimbaud, enquanto vai na frente andando rápido, fala:
“Ainda faltam cinco quilômetros para chegarmos ao submersível de nossa fuga.
Precisamos despistar quem vier em nosso encalço até lá. Senão teremos que voltar para
a França nadando.”
Rimbaud se mantinha alerta enquanto andava. Era a concentração que somente um
espião experiente possuía.
Suas costas começaram a ficar distante. Verlaine desacelerou o ritmo.
Ele passou a andar normal até que parou.
“O que foi, Paul?” Rimbaud se virou. “Venha logo. Os perseguidores do exército já estão
perto.”
Não houve resposta.
Quem carregava o pequeno Chuuya nos ombros era Verlaine. Ele provavelmente ficou
encarregado disso por conseguir torná-lo mais leve.
“Eu não vou entregar essa criança para a França.”
Verlaine declarou abertamente.
“O quê?” A expressão de Rimbaud era de quem não entendeu.
“Não irei entregá-lo para ninguém. Nem devolvê-lo a algum laboratório. Esse menino
viverá pacificamente numa vilazinha pequena sem saber sobre sua verdadeira
identidade.”
Rimbaud, sem compreender o que se passava, piscou várias vezes. Depois, andou de
volta até Verlaine.
“Não chegue mais perto.”
A voz afiada de Verlaine o refreou.
“O que está falando?” Rimbaud estava perplexo. “O país deve supervisioná-lo e educá-
lo. Como você.”
“Esse é o problema.” Havia tensão e hostilidade em sua voz. “Rimbaud, imagine ao
menos uma vez. O quão profundamente impactada é uma pessoa sentenciada como não
humano? Para o quão profundo o coração dessa pessoa é empurrado por saber que ela
não passa de uma cadeia de caracteres criada por alguém, em vez de ter nascido amada
por Deus. É para o fundo de um vale totalmente escuro de onde não se pode ver a lua.
Não há esperança nem salvação. Você entende? Até esse desespero não passa de algo
planejado por alguém!”
“Nós já conversamos sobre isso várias vezes, Paul.” Rimbaud deu um passo para
frente. "Você é humano. Qualquer um percebe. Comparado a você estar existindo e
pensando aqui e agora, o processo como você nasceu é trivial.
“Ahh, tem razão.” Verlaine assentiu com amargura. "'Você é humano.' ── Eu ouvi essa
frase várias vezes. É a frase que mais odeio nesse mundo."
“Paul…”
“Falei para não se aproximar.” Verlaine comandou violentamente Rimbaud que tentava
se aproximar. “Não importa o quanto você tente justificar dentro dessa sua cabeça, o fato
de eu não ser humano não vai mudar! Acha que está tudo bem em alguém de fora me
dizer que eu reajo igualzinho a um humano, então não é pra eu me preocupar?! Ia dar no
mesmo se me dissesse que eu reajo igualzinho a um sapo!”
Rimbaud franziu o rosto, balançando o pescoço.
“Desculpa.” Rimbaud se virou de costas. “De qualquer forma, vamos voltar para o país.
Lá nós conversamos sobre isso.”
Ele pôs-se a andar novamente. Verlaine ficou olhando suas costas.
“Não, será tarde demais.” Verlaine murmurou sem ninguém ouvir. “Se nós voltarmos, os
companheiros da Organização logo virão me encurralar e eu serei preso. Somente nessa
terra inimiga eu posso ser egoísta.”
Dizendo isso, ele pegou o revólver.
Era um revólver automático como outro qualquer. Contudo Chuuya logo entendeu. Para
Verlaine que conseguia controlar a velocidade do disparo e o peso da bala, aquilo era
igual a um canhão. Ele seria capaz de acertar qualquer Usuário. Até mesmo um Usuário
Transcendental, o espião Rimbaud.
A boca da arma estava apontada para as costas de Rimbaud.
“Você será capaz de atirar, Paul?” Ainda virado, Rimbaud falou. “Quem te salvou e te
deu uma vida como um humano fui eu.”
“Desculpa, Rimbaud.” Foi um pequeno murmúrio que se dissolveu dentro de sua boca,
porém que continha um genuíno pesar. “Mas eu quero me salvar. O meu outro eu.”
E o gatilho foi puxado.
A bala de despedida, ultrapassando a velocidade do som, foi absorvida pelas costas de
Rimbaud. Antes que ela o acertasse, ele agilmente se virou e ativou sua Habilidade. Um
cubo carmesim profundo apareceu como escudo. Mas a bala deformando o espaço,
penetrou o cubo. Ela acertou a mão de Rimbaud levantada como defesa e penetrou ainda
mais. Depois, afundou no hiperespaço que a esperava e finalmente parou.
Não havia raiva na face de Rimbaud que tentava se defender.
“Então essa foi a sua decisão, Paul.”
Ele apenas olhava com olhos silenciosos e secos, como um campo selvagem, o homem
que era seu melhor amigo e parceiro.
“Obrigado por tudo.” Verlaine disse calmo. “Mas com isso, você finalmente entenderá o
erro de ter deixado nascer o homem que não deveria ter nascido.”
A gravidade se expandiu ao redor como pétalas desabrochando e distorceu o espaço.
“Não foi um erro, Paul. Eu te levarei de volta custe o que custar. Mesmo que meus
braços e pernas sejam arrancados.”
Em resposta, o hiperespaço em forma de cubo de Rimbaud se formou, cobrindo o beco.
O ar momentos antes da luta começar queimou o céu e a terra. Não era apenas uma
luta. Era uma batalha mortal entre dois transcendentais com força equivalente a mil
soldados capaz de apagar a alma.
Os dois poderes de nível armamentístico se chocaram ──

•••
“Chuuya-sama, acorde!”
Sua consciência foi puxada do passado abruptamente. Nessa hora, a escuridão
inundou.
Chuuya estava flutuando dentro de uma misteriosa corredeira escura. Não sabia o que
era chão ou teto. Uma negra corredeira controlando o espaço que não se formava.
Um barulho tremendo batia no pé de seus ouvidos correndo pela escuridão. As
partículas metálicas cor de arco-íris passavam diante de seus olhos em intervalos de
tempo.
Ao sentir uma forte sensação em seu ombro, ele olhou e viu a mão de Adam o
segurando. Ele aguentou o forte aperto que parecia ser capaz de dissipar a violenta
escuridão.
Adam estava logo ao seu lado, mas sua figura estava embaçada pela escuridão
rodopiante. Parecia que ele estava a quilômetros de distância.
Adam apertou atrás da sua orelha e tirou um dispositivo semicircular dali. Ele o colocou
no ouvido de Chuuya.
A voz de Adam saiu pelo aparelho. Era uma espécie de receptor.
“Pensei que nunca mais acordaria.”
"…Onde estamos?"
Chuuya disse olhando ao seu redor. Estava tudo coberto pela negra corredeira. Ele só
conseguia discernir um espaço infinitamente vasto que não permitia se situar.
O receptor também captava a voz, então Adam respondeu a pergunta de Chuuya
através do aparelho.
“Suponho que estamos no interior de Verlaine.” Havia ruído. “A sua Singularidade foi
liberada completamente e se manifestou como a Besta Guivre. Nós fomos pegos no ato
da liberação e ficamos presos dentro dela.”
“Ahh.” Chuuya disse sério. “Isso aqui é dentro do Verlaine? Já desconfiava.”
Um barulho estrondoso passou por seus ouvidos. Mas se era uma correnteza de
matéria, vento, tempo ou espaço não dava para diferenciar. Aqui parecia que um minuto
era uma hora lá fora e também parecia um instante. Um espaço onde não existiam os
conceitos de distância e direção. Tudo que podiam fazer era suportar sem desmaiar as
opressivas ondas de energia que avançavam.
“Não dá para aplicar as regras de um espaço geométrico aqui. Assim como num buraco
negro, uma corredeira de tempo fica girando e o seu fluxo muda dependendo do ponto.
Se nós nos separarmos, provavelmente nunca mais nos encontraremos. Então por favor,
use isto.”
Adam colocou a mão na junta entre a parte de trás de sua cabeça e puxou algo que
parecia uma tira branca. Ele a amarrou firmemente a partir da cintura de Chuuya, em
volta de suas costas, ombros e pescoço.
Essa corda metálica, mesmo dentro da escuridão jorrante, liberava um brilho estável e
puro.
“O que é isso?”
"É um axônio emergencial chamado de cabo anti-tempo." Adam disse sorrindo. “Parece
uma corda, mas por dentro há várias cápsulas de vácuo de conectividade, estruturadas
da mesma forma que um tubo. Dentro dessas cápsulas, os glúons, um tipo de partícula
de Bóson, se movem na velocidade da luz, criando um tunelamento quântico. Quando a
matéria se aproxima da velocidade da luz, o tempo fica devagar, então não há
praticamente passagem de tempo dentro desse cabo. Como ele permanece invariável
independente das condições do mundo exterior, é um isolante espaço-temporal, digamos
assim.”
Enquanto Adam explicava, o feroz espaço negro passava desenfreado próximo aos
ouvidos de Chuuya. Mas ter o corpo fixado por essa corda amenizava um pouco o
desconforto da agnosia espacial.
“Resumindo, pense nela como uma robusta corda que não arrebentará mesmo nessa
bagunça de situação.”
“Não entendi muito bem a explicação, mas...” Chuuya franziu, “por que uma corda que
serve pra essa situação tá saindo das suas costas?”
“Porque desde o começo, esta máquina foi construída prevendo essa situação.”
A expressão de Chuuya ficou rígida.
“O que disse?”
“Lembrei agora há pouco.” O olhar de Adam era sério. “E até que essa situação fosse
confirmada, meu conhecimento estava guardado sob proteção. Esse cabo fazia parte
desse conhecimento. O descontrole da Singularidade dentro de Verlaine, antecipando o
pior desfecho de todos, as autoridades europeias enviaram esta máquina como uma
contramedida possível. Porém, não temos muito tempo sobrando. Antes que Yokohama
se torne a maior depressão do mundo, esta máquina executará a sua missão secreta. O
protocolo final. Irá me ajudar?”
Chuuya ficou um tempo olhando Adam, até que riu.
“Não tem motivo pra não te ajudar. Mas como vamos pará-lo, especificadamente?”
“Usaremos essa arma especial com a qual fui equipado.”
Adam abriu o compartimento do peito e mostrou o que tinha dentro.
Curiosamente, o que havia ali era um antigo projetor, resina para absorver impacto,
circuitos e um pergaminho com um texto estranho.
“Ele foi inventado no final da Grande Guerra pelo Reino Unido. Serve como a minha
fonte de energia também, mas o seu uso original é uma arma de vasta destruição por
calor.” Adam abriu um sorrisão. “Nós vamos usá-la para incinerar a Besta Guivre inteira.”
“Hah?” Chuuya arregalou os olhos. “Incinerar? Inteira?”
“Sim. Explicarei o protocolo rapidamente.”
Dizendo isso, Adam desconectou seu braço direito restante da junta do ombro.
“Primeiro, conecte esse braço à porta de entrada do cabo. Esta máquina não pode fazer
isso sem o outro braço.”
“Assim?”
Chuuya pegou o braço e conectou o cabo na entrada do pulso.
“Coloque bem firme. Agora, segurando o cabo, aplique gravidade nele e mande o braço
voando para o mais longe que puder.”
“Até onde?”
“Para fora daqui.”
Chuuya ficou calado. Ele olhou para Adam, olhou para a escuridão e disse “Tá falando
sério?”
“Sim.”
“Nós não sabemos até onde essa escuridão vai. E essa corredeira, não tem garantia de
que dá pra pular nela. O normal seria pensarmos que o campo gravitacional do Verlaine é
mais forte do que o meu.”
“Mesmo assim, temos que tentar.” Adam balançou a cabeça. “Está tudo bem. Você
consegue, Chuuya-sama.”
“Como se receber encorajamento de um computador sem nenhum fundamento no que
tá dizendo ajudasse.” Chuuya deu um sorriso amargo e voltou a ficar sério. “O
comprimento disso vai dar?”
"É o suficiente."
Adam mostrou o amontoado de cabo enrolado que ainda tinha.
“Ok. Fique olhando.”
Chuuya fechou os olhos e estabilizou a respiração. Depois, levantou o braço de Adam
com uma mão e com a corda brilhante na outra, encarou o nada à sua frente.
Ativou a gravidade no braço. As juntas dos dedos de Chuuya ficaram brancas ao
reprimirem o braço que agora tentava sair disparado. Aplicando a gravidade até o limite,
ele soltou o braço, que saiu disparado feito um cometa.
Sendo engolido pela negra corredeira, o braço sumiu de vista num instante.
Chuuya segurava com força o cabo enrolado e despejou sua Habilidade nele. Devido à
sua capacidade de controlar a direção e força da gravidade de qualquer coisa que toque,
o braço amarrado pela corda continuava acelerando.
O amontoado de cabo estava rapidamente sendo consumido e diminuindo.
“Mais!”
Suor escorria pelo rosto de Chuuya. No negro espaço gravitacional que sugava até a
luz, ele só podia contar com a própria força. Ele estava se esforçando como se estivesse
mandando o braço para o espaço sideral.
“Uoooaaaaaaa!”
Chuuya suava por todo o corpo. As gotas de suor eram sopradas pelo forte vento negro,
desaparecendo no nada.
Sua consciência estava se esvaindo e quando o cabo terminou ──
A resistência na ponta acabou de repente.
Era no limite da parte de trás da cintura da besta.
O pequeno braço do Adam, uma agulha se comparado ao animal, saiu voando
acompanhado do brilhante cabo desconectado parecendo a cauda de um cometa.
O braço voou pelo céu noturno desenhando uma parábola e caiu na direção oposta
para a qual o animal estava se movendo, indo parar na terra sob as árvores.
No momento da aterrissagem, quatro projeções semelhantes a arpões irradiaram do
braço. Elas fincaram na terra, fixando o membro.
O cabo puxou forte ── o Chuuya que estava amarrado a ele pelo outro lado.

"Uoooo!"
Sentindo o cabo puxar de repente, Chuuya gritou surpreso.
Ele foi arrastado pelo cabo esticado ao máximo e que foi se enrolando para frente numa
tremenda velocidade como um carro sendo puxado por uma talha.
Como o animal estava andando para o lado contrário, o braço estava servindo como
uma âncora que puxava Chuuya para o lado de fora.
“Entendo, com isso poderemos sair de uma só vez.” Chuuya sorriu satisfeito. “E o que
faremos depois que sairmos ──”
Quando se virou, Chuuya viu uma cena estranha. Adam estava dando um sorriso
solitário.

Adam cortou a corda que ligava os dois.

"…Hah?"
Chuuya estendeu sua mão por reflexo, mas a opressora escuridão o mandou voando e
logo ele deixou de ver Adam.
Todo amarrado pelo cabo, Chuuya continuou a ser puxado numa incrível velocidade
para o lado de fora.
“Ei, Adam! O que tá fazendo?! Você disse que se nos separássemos, nunca mais nos
── ”
“Não tem problema.”
Pelo receptor em seu ouvido, ele ouviu a triste voz de Adam.
“O nome dessa arma é Shell. O raio definido de incineração é de vinte e duas jardas. A
temperatura interna é de seis mil graus Celsius. Um calor ultra-alto equivalente à
superfície do sol será gerado em torno desta máquina que será transformada em plasma
ao nível molecular junto com a Singularidade. Depois, só restará uma fumaça branca.”
“Em torno de você?” O suor frio da realização correu pelo rosto de Chuuya. “Ei, não me
diga que ── ”
“Essa é a verdadeira razão para um investigador automático ter sido enviado no lugar
de um humano.” A voz de Adam era gentil e frágil. “Incinerarei Verlaine junto do meu
núcleo que sabe o segredo, queimando o segredo de Estado também.”
“Pare!” Dentro da corredeira jorrando, Chuuya gritou para o transmissor. “Deixe de ser
idiota! Deve haver outro jeito!”
“Talvez. Contudo, se não for feito dessa forma, não conseguirei proteger você e a
missão ao mesmo tempo.”
“Foda-se a missão!” Chuuya gritava enquanto era puxado por uma força descomunal.
“E o seu sonho?! Você não queria abrir uma agência só de detetives robôs?!”
Houve dois meros segundos de silêncio antes da resposta.
“O meu sonho é proteger os humanos.” Sua voz era gentil e tranquila como a de um pai
que protege o filho. “E esse sonho acaba de ser realizado.”
Nesse momento, o corpo de Chuuya saiu do espaço negro.
Ele atravessou o espaço epidérmico dominado pelo intenso campo gravitacional e caiu
violentamente no chão. Enquanto protegia seu corpo, ele saiu rolando como uma pedra
coberta de terra.
“Fui capaz de te proteger. Isso é o suficiente para esta máquina.”
Ele escutou a voz satisfeita pelo receptor que enfraqueceu e sumiu.
“Espere!”

Uma esfera gigante de calor.


Era uma bola de luz carmesim grande o suficiente para chegar aos Céus.
Primeiro, as chamas envolveram o animal. Seu corpo estava coberto desde o chão sob
suas patas até a ponta de sua cabeça por uma concha de calor que implodia.
Tudo começou a derreter.
As árvores pegaram fogo e logo carbonizaram, virando fumaça. A terra virou um lodo
fervente e evaporou. Apesar do inferno ardente dentro dessa concha, por fora estava
surpreendentemente quieto. As árvores farfalhavam refrescantemente do lado de fora
das bombas esférica e nada mais vazava além das luzes piscantes. A bomba de calor
reduziu, cozinhando a besta. O animal rugiu de dor, mas até o ar foi decomposto e
nenhum som escapou.
Essa era a arma singular criada no Reino Unido por uma engenheira Usuária.
Incinerando apenas o que tem dentro de uma área delimitada, o que se chama
popularmente de arma aniquiladora. Tendo sido baseada na Habilidade de viajar no
tempo dessa certa Usuária, é uma arma que cria uma Singularidade intencionalmente.
Devido à sua produção de calor esmagadora e seu raio que pode ser configurado para
atingir até dez quilômetros, é uma das Três Calamidades originadas pela guerra e seu
uso é oficialmente proibido.
Chuuya sentou, observando calado a cena diante de seus olhos.
O cabo que o tinha carregado para fora não suportou o calor e queimou. Era algo que
tinha sido projetado para ativar remotamente a concha. Depois da arma ter utilizado a
incerteza quântica do tempo e calor, ela causaria uma flutuação temporal ao redor. Por
isso precisava do cabo isolante. Mas nem ele aguentou após a arma ser ativada e
produzir uma ultraquantidade de calor. A pintura externa dissolveu, a vedação interna se
desfez fazendo com que as partículas se dissipassem e após perder sua eficiência,
evaporou.
Apenas o braço de Adam e um pedaço do cabo queimado sobraram diante de Chuuya.
Ele respirava calado.
Até que tudo terminou.
Após ter cumprido sua função de queimar tudo, a Shell virou fumaça e desapareceu. O
que restou foi a terra derretida num círculo preciso, as árvores que sobraram sem serem
queimadas por esteram fora do alcance e a cauda negra da Besta Guivre que também
não queimou por estar fora da cobertura.
Não havia mais nada. Nem um pedaço se quer do que um dia foi o Adam.
“Olha só, você tava vivo, Chuuya?”
Quando ele se virou para a voz odiosa, Dazai vinha andando por entre as árvores. Ele
atirou alguma coisa e antes que ela acertasse, Chuuya a pegou.
Era o chapéu preto de Verlaine.
O chapéu que logo depois do Portão ser aberto, havia voado para algum lugar.
“Dazai.” Chuuya se dirigiu a ele com uma expressão tranquila e um olhar cortante. “Não
estou a fim de falar com você agora.”
“Eu encontrei o corpo do N.” Dazai disse sem ligar para o que o outro tinha dito. “Ele foi
pisoteado. Agora todos que sabiam sobre você ser ou não humano desapareceram. …Se
sente frustrado?”
“Não sei. Eu…” Chuuya falou olhando para os vestígios do marco zero. Ao abrir a boca
para continuar, ele se virou para Dazai percebendo algo. “Espere. Conhecendo você,
mesmo sem o N, deve ter encontrado uma maneira de distinguir se eu sou ou não
humano, não é?”
“Descobriu?” Dazai riu sem vergonha nenhuma. “Eu capturei alguns subordinados do N
no laboratório. Mesmo que eles não saibam a verdade, sabem ao menos como ler a
equação dentro de você. Eu recebi uma breve aula, mas se eu te analisar durante alguns
dias, consigo descobrir.”
“Acha que eu vou deixar alguém como você olhar dentro de mim?”
“Ehh? Aiiii mostra sim, não parece divertido? Eu não mostro para mais ninguém!” Dazai
deu um sorriso suspeito. “Eu escutei como diferenciar. Se você for humano, ainda há o
registro de suas memórias antes de você ser levado para o laboratório, ou seja, as
lembranças de quando era pequeno e vivia com seus pais. Assim dará para sabermos.
Hein, deixa?”
“Pra começar, a ideia de mostrar o que tem na minha cabeça somente para você me faz
querer vomitar sangue! Além do que...”
Foi quando algo estranho aconteceu.
O chão tremeu. Primeiro forte e depois fraquinho, intermitente, como se com medo de
algo. Então aconteceu antes que Chuuya pudesse se preparar. Uma dor de cabeça
parecendo que uma bomba tivesse explodido dentro dela.
“Ughh?!”
Chuuya colocou a mão na cabeça. Não havia nenhum ferimento. A dor não era culpa de
nada externo. Algo entrou dentro dele. Algo invisível.
“Odeio.”
Alguém falou.
Não foi um som. Nem uma palavra. Era alguma coisa mais primitiva, uma emoção
escura.
“Odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio, odeio tudo.”
Junto dessa onda de emoção, a dor foi inchando periodicamente, se espalhando pelo
crânio.
“O que foi, Chuuya?”
Chuuya olhou para Dazai e percebeu pela sua expressão que só ele estava ouvindo a
voz.
É a voz dele. Ele não morreu.
Foi então que o chão afundou.
Os dois se agarraram na terra. Eles olharam ao redor e não parece que a terra está se
mexendo ou declinando. Mas as árvores estão inclinadas e os cascalhos rolando. Em
direção a um ponto.
No centro, há os restos do animal, sua cauda negra. Ela está borbulhando. Partículas
negras estão surgindo dela, provocando som de lama fervendo com grávitons se
espalhando ao redor. Contraindo como se palpitando, ela se contorce mudando a forma.
Chuuya percebe. Não é o chão que está afundando. O centro da cauda está gerando
força magnética. Junto com a gravidade normal da Terra, ela faz sentir como se o chão
estivesse inclinando e a gravidade puxando para baixo.
“Só pode ser mentira.”
Adam incinerou a besta com uma arma pirotécnica capaz de mudar o curso da guerra.
Ou deveria.
Mas a cauda diante de seus olhos está se contorcendo num amontado negro, tentando
assumir uma aparência.
“Então é isso.”
Dazai disse com a expressão severa, olhando para a forma negra.
Uma rachadura percorreu a terra. Um rosto saiu de dentro da forma. Algo semelhante a
um réptil.
“Cuidado!”
Chuuya pulou para o lado controlando a gravidade, agarrou Dazai e rolou para o outro
lado da floresta.
A escuridão pintou o espaço. Uma torrente escura radiou de algo. Mais do que um
ataque, um universo apareceu de repente sobre a Terra.
A terra foi partida ao meio num instante.
Uma luz negra penetrou toda a superfície, alcançando até os prédios mais ao longe. As
luzes da cidade piscaram como se convulsionando até que apagaram.
“O que…” Chuuya e Dazai ficaram de boca aberta.
O centro urbano ficava mais adiante. Felizmente, porque se aquilo tivesse acertado o
centro de Yokohama, milhares de pessoas estariam mortas agora.
“Isso foi… uma emissão de grávitons?” O rosto de Dazai tensionou. “Impossível. O
alcance foi mais longo ainda do que antes.”
O monstro tentava aparecer. Seus ombros surgiram e o seu peito estufou. A cabeça
parecia com a da Besta Guivre, mas a quantidade de olhos era diferente. Dois olhos
vermelhos brilhavam flamejantes, posicionados iguais ao de um humano.
Dois braços grossos e um corpo imenso. O amontoado negro ia assumindo uma
aparência aos poucos e enquanto surgia, pulsava. Enquanto pulsava, o corpo aumentava.
“Não olhe para ele, Chuuya.” Dazai sussurrou. “Ele reage à emoções humanas. Não
preste atenção nele. Olhe para outro lugar.”
Chuuya voltou o olhar para o chão lentamente.
A luz da lua que iluminava a terra começou a ser obstruída pelo gigantesco corpo.
Primeiro um pedaço da superfície sumiu, até que tudo desapareceu.
“Não dá para queimar aquela besta com chamas.” Dazai disse olhando para o chão.
“Não importa o quão grande a arma seja. Para começar, aquilo que parece uma besta
gigante não é feito de matéria. É apenas a infinita energia acumulada pela Singularidade
condensada no espaço. Ele não tem órgãos nem parte vital. Ele continuará a se mover
até que toda sua energia seja consumida.”
“E quanto tempo… vai levar para acabar?”
“Uma semana? Um ano?” Dazai olhou com um sorriso rígido para Chuuya. “Talvez ele
continue se movendo eternamente até a Terra acabar. Afinal, é uma energia infinita.”
A besta começou a se mover.
A vibração do passo fez seus corpos tremerem e os dois levantaram o rosto. Maior
ainda do que antes, ela já havia desviado completamente do que é considerado um ser
vivo.
Uma boca capaz de engolir uma casa inteira. Um par de olhos brilhantes. Ombros
projetados. De seu tronco semelhante ao de um dinossauro, o rescaldo de energia
produzida só pelos seus movimentos gerava relâmpagos desenfreados. Suas gigantes
garras cavavam o chão e um passo era o bastante para derrubar as árvores e afundar a
terra.
Essa forma bizarra que superava qualquer imaginação humana era a verdadeira
aparência da Besta Guivre.
“Talvez ele tenha absorvido a energia singular da esfera de calor.” Dazai murmurou
estupefato. “Os dignatários europeus nunca testaram o que aconteceria com algo que
fosse acertado duas vezes por aquela arma.”
Chuuya seguiu com os olhos a direção para onde a besta seguia.
“Mas que merda. Ele tá indo de novo pra cidade.”
“Eles logo logo vão conseguir ver aquilo de lá. Ele está andando reagindo ao olhares. A
destruição não parará até que ele acabe com todos os humanos olhando para ele.”
Chuuya segurou Dazai.
“Então o que estamos fazendo aqui parados?! Se Yokohama for destruída, a Máfia do
Porto também sumirá!”
“Quer fazer o que então? Crescer também e dar um soco nele?” Dazai devolveu um frio
olhar para Chuuya. “Não adianta. Não consegue ver? Uma Singularidade é a
materialização da brecha desse mundo, algo que não deveria acontecer. Não é um
adversário para reles humanos.”
“Ele é diferente.” Ao dizer isso, Chuuya dirigiu um olhar obstinado para Dazai por alguns
segundos. Depois soltou Dazai e falou resoluto, “Tem como lidarmos com ele. Tenho
certeza.”
Dazai caiu sentado no chão, relaxando.
“Hahaha. Interessante. Qual a sua base?”
“O Verlaine. Eu vi suas memórias quando estava dentro dele.”
“Memórias?”
“Quando ele me roubou do laboratório e fugiu. Ele confrontou o Rimbaud por minha
causa, o que se tornou uma luta. Ele lutou com o Arahabaki momentos depois e
sobreviveu.”
Dazai estreitou os olhos.
“Entendo o que quer dizer.”
“Sim. Existe um modo de repelir a Singularidade ── o Arahabaki. Ele me mostrou
aquela memória para me dizer como.”
“Conte-me os detalhes.” Dazai sorriu.

•••
A noite foi ficando mais profunda. As pegadas da destruição foram se aproximando da
cidade.
A rodovia no subúrbio foi esmagada pelas solas da besta Guivre. A ponte que
sustentava a passagem, as placas que indicavam o caminho e a faixa mediana foram
comprimidas instantaneamente. Foi tão rápido que quase não fez barulho.
Os esparsos veículos testemunharam o ocorrido e ignorando o sentido do tráfego,
deram a volta e fugiram. A besta emitiu uma linha gravitacional na direção deles. Os
carros foram dizimados na mesma hora. Junto com a paisagem ao redor.
Chuuya e Dazai observavam a besta Guivre se aproximando da cidade.
Os dois estavam em cima de um esférico reservatório de gás. Era um reservatório que
armazenava o gás do subúrbio. A bancada superior era mais alta do que os arranha-céus
no entorno. Eles conseguiam ver o rosto da besta andando ao longe praticamente de
igual para igual.
“Mais uns trinta minutos para o centro de Yokohama ser pisoteado.” Dazai disse
distraído enquanto olhava para a besta.
“Nós não veremos isso.” Chuuya tinha o chapéu em mãos. “A essa altura, ou nós
teremos mandado ele pelos ares, ou teremos morrido.”
“De maneira nenhuma. Morrer num duplo suicídio com você seria a pior coisa na vida.
Só dessa vez eu vou ser sério.”
“Digo o mesmo. Também não quero morrer. Quero virar executivo antes de você e
arrancar teu couro.”
“Confiante, hein. O tráfico de joias tá indo bem pelo jeito.”
“Você não vai conseguir me alcançar. O meu canal de distribuição, contrabandistas,
receptores e avaliadores são todos os melhores de Yokohama.”
“Sim, eu sei. Eu que cuidava daquilo antes de você assumir.”
“Hã?!” Chuuya olhou Dazai, surpreso. “Então foi você quem organizou aquela rota de
distribuição!”
“Mais importante, ele tá quase na distância certa pra nossa operação.”
Dazai apontou para frente com o queixo.
Os passos de Guivre se aproximavam. Os olhos vermelhos fixados nos dois.
Depois de encarar a besta por um tempo, Chuuya gritou para cima:
“São as suas sobras!”
“Tanto faz.”
O animal pisoteou as árvores e ruas da cidade, arrancando os cabos de energia. As
fachadas e as bicicletas estacionadas ilegalmente flutuaram por causa da anomalia
gravitacional e foram esmagadas no ar, se tornando poeiras minúsculas.
“Memorizou o plano, né?”
“Sim.”
Chuuya e Dazai estavam um ao lado do outro encarando a besta. O vento tremulava
suas roupas.
“O que devemos ter em mente é que não é uma estratégia definitiva. Talvez algo
aconteça. Afinal, enfrentaremos a Besta Guivre com o Arahabaki. Não seria estranho se o
mundo explodisse.”
“Não vai explodir.” Chuuya riu. “Verlaine sobreviveu nove anos atrás.”
O plano de Dazai era Chuuya abrir o Portão e acertar a besta com a energia infinita do
Arahabaki.
“Eu já sei como abrir o seu Portão. O encantamento de controle que o N falou ── 'Eu
lhe concedo uma corrupção melancólica. Não me acorde nunca mais.' Isso reseta a
liberação do selo. Não é o bastante parar abrir o Portão, mas o chapéu fará o resto.”
Chuuya segurava o chapéu preto de Verlaine. Um presente de Rimbaud com um metal
especial implantado em seu interior. Tendo ele em mãos, seu usuário, ou seja, o Chuuya,
pode controlar o Portão por vontade própria.
Verlaine havia conseguido abrir o Portão e usar o poder do buraco negro porque tinha
esse chapéu.
“Está quase na hora. Voe e abra o Portão diante do monstro, acertando ele com seu
poder.” Olhando o animal, Dazai segurava um transmissor numa das mãos. “Eu vou
passar as instruções dos preparativos para os meus subordinados… Tudo bem?”
"É óbvio." Chuuya se virou para Dazai. “Por que está me perguntando isso?”
Dazai não respondeu de imediato.
Eles fez uma expressão rara. Ele queria dizer alguma coisa, mas as palavras rolavam
em sua mente sem saber em qual ordem as falar. Era uma expressão que nunca fazia.
“Há um problema.” Mesmo hesitando, Dazai começou a falar. “Não tem a ver com a
probabilidade de sucesso da operação. É algo que precisa ser superado… Talvez você
precise de um pouco de tempo para decidir.”
“Do que tá falando?” Chuuya levantou a sobrancelha. “Por que tá fazendo essa pompa
toda? Fala logo.”
“O encantamento para abrir o Portão, eu falei que ele resetava a equação dentro de
você, né?” A voz de Dazai estava estranhamente suprimida. “Se o executarmos, o registro
com o seu passado será apagado. Então… mesmo que uma equação tenha sido usada
para apagar o seu passado, o vestígio disso será apagado junto.”
“Hã?”
“A equação de apagar o passado. Lembra que eu falei? O único jeito de sabermos se
você é ou não humano é acessando o histórico desse apagamento. O que quero dizer é…”
Dazai olhou para Chuuya de um jeito que nunca olhava. Um olhar sincero. “Se disser o
encantamento, perderemos a maneira de sabermos se você é uma personalidade
artificial ou um humano comum… para sempre.”
O tempo parou.
Chuuya estava parado com os olhos arregalados para Dazai, mas eles não viam nada.
O vento soprou entre os dois. Mesmo assim, Chuuya nem se quer piscou.
“Verlaine ficou desse jeito atormentado pela maldição de não ser humano. Essa era
uma questão bem grave. Ser ou não humano.” Dazai tirou seu relógio de bolso e após
olhá-lo rapidamente, continuou. “Dá para atrasar a operação por mais dois minutos.
Falarei para meus subordinados ficarem aguardando as ordens. …Pense um pouco
sozinho. Se eu estiver aqui, você não vai conseguir pôr os seus pensamentos em ordem.”
Dazai se virou de costas e foi em direção à escada, deixando Chuuya para trás.
Ele olhava concentrado o relógio. Mais dois minutos.
É um tempo muito curto para alguém decidir sua vida. Mas não dava para conceder
mais tempo além disso.
Dazai montava em sua cabeça, caso Chuuya desistisse da operação, procedimentos
para um plano alternativo numa velocidade assustadora.
Depois de seis passos, Dazai chegou na escada. Ele colocou o pé no primeiro degrau e
desceu. Quando ele estava no terceiro, um som claro de metal ressoou por detrás.
Parecia que uma placa de metal havia sido chutada.
Ao entender o que era, ele se virou depressa.

Ninguém mais estava na bancada.

Dazai ficou em choque por um momento, mas depois riu com os lábios trêmulos.
“Querendo bancar o herói.” Dazai sorriu perplexo e aliviado. Depois passou as ordens
pelo transmissor. “Chuuya investiu. Todos, preparar para o combate.”

Chuuya voava pelo céu. Manipulando a gravidade, era uma ave de rapina.
O vendaval vindo de baixo o acertou. Ele estreitou os olhos, se sentindo refrescado.
── Ser ou não humano.
Segurando o chapéu em sua cabeça com uma mão, Chuuya abriu a boca.
Enquanto lembrava de seu amigo perdido.
── Fui capaz de te proteger. Isso é o suficiente para esta máquina.

“Eu lhe concedo uma corrupção melancólica. Não me acorde nunca mais.”
Humanos tem alma. Máquinas não.
Então o que é uma alma? Se as últimas palavras de seu amigo não passam de palavras
que saíram de uma equação sem alma, o que isso a torna?
As negras partículas começaram a flutuar ao redor de Chuuya.
Suas roupas pretas tremulavam como asas. A energia aglomerava e o céu noturno
rachava. Chamas pretas se manifestaram e uma quantidade de calor imenso distorceu a
paisagem.
Dazai, de pé em cima do reservatório, estreitou os olhos enquanto via a figura de
Chuuya voando ao longe.
“Eu lhe concedo uma corrupção melancólica.” Dazai disse numa voz inaudível.
“’Corrupção’… é?"
Diante de sua visão, uma luz negra explodiu.
A mesma forma de quando Verlaine abriu o Portão completamente ── uma figura
animalesca.
Neve negra nevava ao seu redor. Runas vermelhas gravadas por todo o seu corpo,
rastejando feito cicatrizes. Ignorando as leis da física, os olhos da besta flutuavam no ar,
olhando a terra.
O alto calor devido à radiação gama foi ejetado ao redor. A noite queimava e a
paisagem deformava.
Chuuya voou.
Cortando a noite na velocidade do som, Chuuya acertou a face da besta Guivre.
Um rugido gigante tremeu a terra.
Com apenas um ataque, aproximadamente um terço da cabeça explodiu. As esferas
gravitacionais da parte danificada sucumbiram e chamas negras jorraram.
Chuuya tendo se tornado a personificação da gravidade voou com ímpeto, deu meia-
volta no ar e atacou novamente. Ele atravessou o peito da besta. Outro rugido de dor. O
corpo do animal se desprendeu, virando partículas negras e desaparecendo para o céu.
“Incrível.” Dazai que observava de cima do reservatório sussurrou espantado. “Isso é o
Arahabaki?”
O animal caído esmagou um posto de gasolina sob seus pés. O calor de Guivre acendeu
o combustível armazenado e causou uma explosão.
Luz carmesim lambeu a terra.
Isso pareceu ter estimulado alguma coisa em Guivre. Todo seu corpo jorrava calor. As
negras chamas de ódio subiram de seus ferimentos e num piscar de olhos cobriram as
partes danificadas, as regenerando.
Arahabaki ficou olhando tranquilo esse ódio e o deixou passar.
Guivre abriu a boca e uma negra esfera gravitacional foi gerada. Maior do que todas as
outras até agora. Grande o suficiente para cobrir o rosto do animal. Tendo crescido em
reação ao ódio da besta, foi disparado como uma faixa junto de seu enorme rugido.
Odeio. Odeio. Odeio. Odeio. Odeio.
À frente da onda de escuridão emitida, Chuuya flutuava no ar.
Um par de buracos negros foi formado em suas mãos. Envoltos por uma auréola
vermelha, governantes do poder universal, a gravidade condensada.
Mas eles eram bem diferentes dos quais Verlaine atirou certa vez. Os buracos negros
estavam rotacionando em ultravelocidade. Por causa do movimento rotatório, eles
estavam sendo achatados, envoltos pelas auréolas, se tornando uma elipse negra.
Chuuya se dirigiu para a iminente faixa negra vindo em sua direção e os atirou.
Os dois poderes em seus ápices colidiram no espaço.
A gravidade é a força que estrutura esse mundo. Uma das quatro forças originadas
junto com o nascimento do universo. Sua essência é a distorção do tempo e espaço e
essa distorção é sinônimo de massa. Em outras palavras, a gravidade é o próprio mundo.
Duas origens colidem.
Uma onda de choque esmagadora rompe o ar numa forma esférica. As ruas ao
receberem esse choque ondulam, são arrancadas, flutuam e são esmagadas.
Dazai se agarra num corrimão em cima do reservatório para suportar o impacto.
Cobrindo o rosto com o outro braço, ele vê temeroso o campo de batalha.
“Se anularam…?”
As duas forças se extinguem após colidirem no ar e espalhando clarões roxos, voltam
ao nada.
“Hahaha, ele conseguiu.” Dazai dá um sorriso trêmulo. “Ele estava certo. O sonho que
Verlaine mostrou era verdadeiro.”
Normalmente, se dois buracos negros colidissem, eles formariam um outro maior
ainda. É um fenômeno comum no espaço. Porém, o buraco negro que Chuuya emitiu
estava rotacionando em ultravelocidade, gerando luz no sentido para onde girava. Esse
anel de luz chamado ergosfera ao mesmo tempo que tem seu interior puxado e
desacelerado pelo buraco negro numa velocidade maior que a da luz, repousa em relação
ao espaço-tempo normal. Esse único espaço contraditório cria energia negativa no
interior de suas auréolas. Essa energia anula a liberada pela besta, a aniquilando em
pleno ar.
Ou seja, esse é o único jeito de extinguir a Singularidade, a besta Guivre que gera
energia infinita. Somente uma mesma Singularidade como o Arahabaki é capaz de
devorar a besta.
A besta soltou um rugido de ódio.
Arahabaki Chuuya soltou outro em resposta como um trovão.
A gigante besta e a pequena divindade ── começaram uma luta mortal.
O punho de Chuuya acertou o queixo de Guivre. Em resposta, as patas da frente da
besta acertaram Chuuya com uma onda gravitacional, que foi repelida acompanhada de
uma estrondosa explosão.
Parando no meio do ar, Chuuya deu um sorriso sangrento. Ele voou novamente.
Gerando buracos negros rotatórios em ambas as mãos, ele cortou a besta com a energia
negativa.
Cada golpe tem a força de armas colidindo nos mitos antigos. A cada choque a terra
racha, o ar rompe e as nuvens são dissipadas.
Todos os ataques quebram ambos os corpos, podando os poderes. A energia negativa
das auréolas das ergoesferas corta o corpo da besta, definitivamente a enfraquecendo.
Mas em contrapartida aos ataques de Guivre, que estão sendo gerados não por um corpo
humano, mas sim pela energia infinita de uma Singularidade, há um limite no quanto o
corpo de Chuuya aguenta.
Sem conseguir suportar o poder da divindade, Chuuya sangra por todo o corpo. Seus
ossos rangem, seu ombro direito está deslocado e inúmeros ferimentos cobrem sua pele.
Os dois feriram e foram feridos. Mas.
"…Os ferimentos de Chuuya são mais profundos." Enquanto observa o combate mortal,
Dazai disse cerrando os dentes de trás.
Chuuya brame, desenhando um rastro de sangue no ar. O Arahabaki dentro de si brame
enfurecido pela humilhação.
Guivre abre a boca. Agora vinte esferas se formam nela. As negras esferas vão
crescendo rapidamente com a sua respiração, inflando no maior buraco negro até o
momento.
Cada uma delas é bem maior do que as de Chuuya. Vinte.
“Ferrou.” Ao mesmo tempo que Dazai sussurra, faixas de luzes são irradiadas dos
buracos negros. Vinte faixas de desespero com o poder de destruição total.
Elas não são paralelas, são apenas disparadas do jeito que a boca está aberta. Metade
cava a terra e a outra metade atravessa o céu.
No centro desse cone mortal está Chuuya.
O grupo de faixas cônicas vai se fechando, aprisionando Chuuya. Os feixes da
destruição, capazes de atravessar qualquer matéria, correm em sua direção enquanto a
mandíbula se fecha.
Não há para onde escapar. Mesmo que passe raspando, será morte instantânea.
Arahabaki Chuuya gera os buracos negros rotatórios, e os ergue na frente para fazer de
escudo.
Os vinte canhões negros caem em cima dele ao mesmo tempo. Eles colidem com as
auréolas das ergoesferas, emitindo uma intensa luz de aniquilação.
O resultado da energia que se desvia por essa aniquilação flui para trás desenhando
uma parábola ao mesmo tempo que destrói a terra.
As ruas, os postes, os carros abandonados derretem e evaporam. O subúrbio já está
claro como se em plena luz do dia.
Arahabaki Chuuya aguenta. Aguenta. Com os escudos erguidos, aguenta. Mas os
canhões pretos de Guivre não tem fim. Não há sinal de que a radiação também diminuirá.
O calor gerado por toda essa aniquilação escalda a pele de Chuuya, gerando
queimaduras.
Chuuya vomita sangue. O círculo negro fecha ainda mais.
Nessa hora ── o anel se desarrumou.
Cada canhão foi para uma direção e começaram a cair sobre a terra. Vívidas flores de
chamas vermelhas floresceram na face de Guivre.
“Equipe dois, atire!” A voz de Dazai ressoou pelo transmissor. “Não se preocupem com
a sincronização! Só continuem atirando nele!”
Dos prédios, dos veículos, das ruas. Inúmeros membros da Máfia com uma arma
cilíndrica apoiada em seus ombros disparavam contra a besta Guivre.
Foguetes guiados por solo-ar. Uma arma que contém o mais poderoso poder de fogo
individual capaz de pulverizar aeronaves, tanques e instituições inimigas com um só tiro.
Após mirar e puxar o gatilho o foguete guiado esmaga automaticamente o alvo fixado. O
seu poder explosivo é incomparável às granadas.
Obtidos pela transação ilegal com traficantes de armas estrangeiros, um poder grande
demais para um indivíduo ter. Até mesmo entre os Usuários combatentes, não são
muitos os que conseguem suportar um ataque desses.
Porém quando a fumaça se esvaiu, não havia um ferimento se quer na besta Guivre.
“Não tem problema!” Dazai gritou através do transmissor. “Continuem a atrair a
atenção dele para a superfície!”
Os canhões negros lançados como contra-ataque por Guivre devastam o chão. A
escuridão despeda a terra e os membros da Máfia sem nem conseguirem gritar, viram
pó.
Mas eles não recuam. Aqueles que sobrevivem pegam novos foguetes e disparam
contra a besta.
A personificação de energia, a besta Guivre, não tem personalidade. Seus movimentos
são automáticos, não passando de um amontoado de ódio que reage à hostilidade de
seus inimigos. Desse modo, ela não tem consciência de qual inimigo priorizar e discernir
o nível de perigo.
Por causa disso, os membros da Máfia que a excedem em números estão
concentrando o ataque nela, dando liberdade para Chuuya.
Chuuya flutua sozinho pelo céu enquanto limpa o sangue de seu corpo.
Está perto do limite. Enquanto desvia dos ataques de Guivre, o seu delicado corpo já
não suporta mais a intensa gravidade que está gerando. Pancadas, deslocamentos,
ruptura muscular e fraturas. É como se ele estivesse mantendo sua forma unida
enquanto sustenta seu corpo com a gravidade.
Essa aparência era mais solitária do que qualquer pessoa no mundo.
Seus olhos se movem em direção a outro ser solitário ── à besta Guivre.
Chuuya cai para frente. Ele continua a acelerar nessa pose.
Voando, ele vai direto ao peito do animal como se fosse ser sugado e pousa nele.
Chuuya penetra a defesa gravitacional e chega até a corrente lamacenta de tempo no
seu interior. É imediatamente inundado por escuras ondas violentas que carregam seu
corpo, tentando arrebentá-lo.
Arahabaki ruge.
Ele gera um buraco negro com as duas mãos como se o abraçando.
Enquanto rotaciona, o buraco negro suga a correnteza, aumentando de tamanho e
formando uma enorme auréola.
Os dois poderes se anulam. Uma descontrolada tempestade de calor, vácuo e tempo o
cerca.
Dentro de sua consciência esvaecendo, ele olha. Por ter aberto o Portão, ele está a
ponto de entregar a hegemonia de seu corpo para o Arahabaki. Ele apenas consegue
observar a luta. Mas até mesmo essa consciência não passa de um fraco brilho quase
desaparecendo entre a colisão de um deus e um demônio que ultrapassaram o intelecto
humano.
O espaço negro grita.
Parece o choro de alguém. A voz da pessoa mais solitária nesse mundo.
Ela se mistura e quase desaparece no meio da negra corredeira de ódio. Mas, no centro
da auréola, essa voz finalmente chega aos ouvidos de Chuuya.
Ponha um fim nisso, a voz disse.
“Essa besta é a porta-voz de minhas emoções. Por que eu nasci se eu não deveria ter
nascido? Carregando essa pergunta sem resposta, eu odiei a minha própria existência e
apenas consegui sentir que estava vivo por meio de assassinatos. Uma miserável alma.
Ponha um fim nisso, irmão, com as suas próprias mãos. Você que acredita no mundo,
acabe com essa triste alma que não conseguiu acreditar nos humanos.”
Eu sei.
Chuuya responde no meio de sua consciência quase apagando.
Você não aguentou a solidão, e por isso veio ao Japão. Mas isso não é ruim. Você
apenas deu azar no dado. Por acaso o seu dado deu o solitário um enquanto o meu foi
diferente. Um resultado que me abençoou com amigos. Foi só isso. Não seria nada
estranho se nossos papéis tivessem sido o contrário. Além do mais, não é apenas ódio
que você tem. Na verdade, você nem queria odiar. Por isso me mostrou as suas
memórias. Me mostrou um jeito de acabar com o Guivre. Não foi, Verlaine?"
Além da corredeira de escuridão rodopiando como uma escura tempestade, pareceu
que a luz de alguém brilhou feito uma estrela.
Chuuya abriu ainda mais o Portão.
O buraco negro aumentou. A auréola estava grande o suficiente para oprimir o espaço.
Do lado direito e esquerdo das costas de Chuuya saíram dois negros bastões de
gravidade. Eram as caudas do Arahabaki. A manifestação de uma besta divina
queimando negramente.
Mas elas pareciam um par de asas que haviam crescido das costas de Chuuya.
"UOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!"
Com suas asas, Chuuya gritou levantando as mãos para o alto. Sob o sinal, a esfera
negra aumentou mais ainda. A auréola brilhava feito uma supernova, cortando o corpo da
besta em dois de dentro para fora.
Maior do que o animal, a esfera achatada e a auréola brilhante que a circundava
iluminavam a noite de Yokohama e gravavam aquela imagem nos olhos das pessoas.
“Aquele é o Arahabaki… a verdadeira forma do Chuuya.” Olhando para cima, Dazai
sussurrou como se tivesse abatido por uma febre.
Os dois braços levantados. Em cima deles, uma auréola horizontal iluminando a
superfície.
Nas costas, asas negras queimando. O rosto de Chuuya de olhos fechados.
A personificação de um tempestuoso deus. Uma negra besta divina.
A besta demoníaca sucumbiu e começou a ser absorvida pela auréola. Era a anulação
da infinitude positiva pela negativa.
O gigantesco corpo colapsou e suas partículas caíram em direção ao centro da auréola
feito a neve que cai gentilmente.
Por causa do atraso no tempo na região de intensa gravidade, vendo de fora a
destruição era lenta e até mesmo elegante.
O animal não estava rugindo.
Estava apenas imóvel com a boca aberta e calada como se aceitando sua existência.
A auréola gerada em seu tronco absorveu seu peito e cintura, seus braços e pernas e
por último, sua cabeça.
Não houve se quer um som.
Foi uma eliminação pacífica. O fim de uma noite extremamente silenciosa combinando
com o luar ao longe.
Por fim, a auréola também terminou a sua existência.
Liberando raios infravermelhos, o buraco negro foi desfeito. Quanto menor ia ficando,
maior a quantidade de calor e eventualmente a própria esfera escura se tornou uma
enorme fotosfera contendo raios de calor. É o que acontece quando ondas
eletromagnéticas são emitidas durante o processo de vaporização.
Ele se tornou um segundo sol que iluminou a noite e não muito depois, desapareceu
num silêncio gracioso.
Após ficar flutuando por alguns segundos no ar sem nenhum poder, Chuuya perdeu
suas asas e caiu lentamente.
Dazai segurou o seu corpo. No que ele o tocou, sua Habilidade foi desativada. A
Habilidade contraditória sustentando a energia da Singularidade retrocedeu e sua
potência diminuiu.
Chegando ao seu final, o Portão se fechou.
As runas vermelhas desapareceram do corpo de Chuuya. Com o tempo, o campo
gravitacional também sumiu e a quietude voltou por completo.
“Bom trabalho, Chuuya.” Segurando o outro menino, Dazai deu um leve sorriso. “Como
eu esqueci de trazer a caneta, dessa vez, te pouparei de desenhar no seu rosto.”
Epílogo
Assim terminou o incidente.
Foi um caso bem grande com muitas mortes, mas quase não ficou nas memórias das
pessoas. Foi como um tufão ou um apagão. O dano foi grande, mas poucos sabiam o
verdadeiro motivo pelo qual aconteceu.
Claro, aconteceu exatamente como o governo europeu queria. A grande destruição que
assolou o subúrbio de Yokohama foi divulgada nos jornais como consequência de uma
disputa de grande escala entre a Máfia do Porto e uma organização inimiga. Armas,
granadas e uma quantidade absurda de bombas voaram de um lado para o outro,
mudando o terreno. Nada mais que isso.
Mesmo assim, uma destruição nessa escala obviamente fez com que especialistas de
crimes especiais agissem, como o departamento anticrimes especiais da polícia militar.
O inimigo natural de uma organização criminosa como a Máfia do Porto.
Contudo quase um mês depois do acontecimento, a investigação parou de repente.
Como se tivesse sido sufocada.
Os envolvidos penderam suas cabeças em perplexidade para o caso o qual pensaram
dessa vez ser a possível purificação da Máfia do Porto. A Máfia é poderosa, mas não tem
todo esse poder de influência para calar o maior orgão ferederal investigador de crimes
hediondos, a polícia militar. Qual terá sido a magia que usaram?
Não foi magia nenhuma. Não precisou. Os orgãos de segurânça pública da Inglaterra e
França interviram na tomada de decisão do Ministério da Justiça por meio do Ministério
das Relações Exteriores. O caso foi rapidamente varrido para debaixo do tapete. Afinal
duas armas secretas de duas das maiores nações do mundo colidiram e se aniquilaram
juntas. Eles não queriam que o governo japonês visse nem um pedacinho que fosse do
caso.
Graças ao incêndio apagado pelas grandes potências europeias, apenas uma pequena
porção dos membros foram incriminados. Esses pagaram fiança, tiveram a sentença
suspendida e terminaram só com uma ofensa menor. Desse modo, a tempestade que
assolou a Máfia do Porto, o caso do Rei Assassino, passou.

•••
Dois meses depois.
Ex-membro das Ovelhas, Shirase Buichirou, olhava irritado o relógio no porto. Era o
porto de Yokohama. Os viajantes andavam de um lado para o outro no pier, carregando
grandes malas.
Shirase estava na frente da rampa de embarque, olhando seu relógio de pulso suiço.
Pôs-se então a olhar novamente para a entrada do porto.
Ele esperava uma pessoa.
Não muito depois, uma moto chegou pelo cais. Atravessando a pista de veículos, a
moto carmesim se aproximou desviando dos transeuntes e parou no final do pier. O
motorista desceu e foi em direção ao Shirase.
“Yo, foi mal pela demora.”
Era Chuuya.
“Tá atrasado!” Shirase gritou. "É o começo da nova viagem do seu salvador. O que tava
fazendo?!"
“Umas coisas aí.”
Chuuya tirou o chapéu do baú da moto e apoiando a aba com a ponta do dedo,
caminhou girando-o verticalmente.
“Você gostou desse chapéu? Não é daquele cara?”
“Sim.” Depois de girá-lo por um momento, Chuuya o colocou na cabeça. "É irritante ter
que ficar com a sobra do meu irmão, mas ele tem uma função útil. Quando vai partir?"
“Daqui a cinco minutos.” Shirase olhou o relógio mais uma vez. “Chuuya, você tá
fedendo a incenso. Foi visitar os túmulos de novo? Por isso se atrasou. …Te contar, é tão
atencioso. Cê tá carregando peso demais sozinho. Não se cansa?”
“Você que carrega peso de menos, Shirase.” Chuuya parou ao seu lado. “Não tô sendo
atencioso. Só fui agradecer pela moto.”
Chuuya apontou para a moto em que veio com o queixo. O veículo aerodinâmico estava
friamente calado.
“Hmm. Bem, tanto faz.”
Dando uma resposta indiferente, Shirase colocou as mãos no bolso.
Um breve período de silêncio.
Chuuya olhou para o navio. Um antigo navio branco, grande e robusto.
“Vai pra Londres, né?” Chuuya disse depois de olhar para o reluzente veículo.
“Tá com inveja? O futuro rei tem que fazer seu território num lugar grande!” Shirase riu
arrogantemente. “Eu percebi com o que aconteceu. O detetive robô e o Rei Assassino
eram incríveis. O mundo é vasto! Eu farei sucesso em Londres com os tesouros que
roubei do laboratório! No dia que eu virar o rei de uma organização maior do que a Máfia
do Porto, eu voltarei. Eu aceito contratar você lá, Chuuya.”
Chuuya deu um suspiro e balançou a cabeça.
“Esperarei.”
Bem nessa hora o apito da partida soou. A voz de uma mulher chamando os
passageiros pelos alto-falantes também.
“Tá na hora.”
Pegando a mala que estava no chão, Shirase se virou para a rampa. Mas antes que
andasse, Chuuya o chamou.
“Tome cuidado, Shirase. Mesmo que você morra em Londres, eu não irei até lá te
salvar.”
“Hahaha. Digo o mesmo, Chuuya. Eu também não vou mais te salvar.”
“Certo, certo.” Chuuya sorriu só aceitando.
“Ué? Não tá acreditando? Mas eu te salvei nove anos atrás debaixo da ponte e agora
recentemente no laboratório. Esqueceu?”
“Em compensação, você tentou me matar com uma facada.”
“Então fazendo as contas, o saldo é positivo, né?”
Chuuya e Shirase riram.
Shirase foi até a frente da rampa e se virando para Chuuya, ergueu para frente seu
punho fechado.
Chuuya também ergueu o seu punho, batendo de leve contra o de Shirase. Depois
bateram um no outro por cima e por baixo. Então bateram os cotovelos e por último
bateram no próprio peito com o punho. Era uma antiga saudação trocada entre os
companheiros das Ovelhas.
“Até.”
Shirase e Chuuya viraram as costas um para o outro e puseram-se a andar.
Nenhum dos dois olhou para trás novamente.

Chuuya voltou para o píer e quando ia subir na moto, um carro preto se aproximou. A
janela de trás desceu devagar e a pessoa de dentro o chamou.
Era Dazai.
Diferente do de costume, ele estava vestindo terno preto e gravata. Era o traje formal
para receber convidados de honra.
“Temos trabalho daqui a cinco minutos.”

Dazai e Chuuya estavam embaixo do local da rampa de um cruzeiro.


Era um navio extremamente extravagante incomparável tanto em tamanho como
material com o que Shirase tinha embarcado ontem.
A pintura é totalmente branca sem uma sujeira se quer; todos os quartos dos cinco
andares são ornamentados igual a um hotel de luxo e há condutores experientes
acompanhando os passageiros onde fossem. Devido a sua excelente capacidade
náutica, mesmo navegando numa velocidade duas vezes maior do que a normal, o tremor
provocado é menos de dez por cento de um navio comum.
Seu nome é Bosverian.
Apenas funcionários do alto escalão podem embarcar, um navio de uso exclusivo do
governo.
A rampa desceu e uma delegação desembarcou diante deles.
Primeiro, seguranças de terno preto prestando atenção nas quatro direções. Dava para
perceber um inchaço na roupa de todos eles indicando a posse de revólveres.
Em seguida, apareceram homens de barba que só poderiam ser oficiais do governo.
Experientes e de capazes olhos marrom acinzentado que não mostravam seus
pensamentos. Suas roupas eram as mais finais possíveis.
Um homem segurando uma bengala decorada em padrão de madrepérola e ouro
empurrou violentamente com a ponta do objeto um membro da tripulação que o tentou
ajudar a descer, como se enxotasse um cachorro de rua.
“Os nobres comedores de homens do Reino Unido chegaram.” Dazai sussurrou para
Chuuya num volume que só ele ouvisse.
Eles eram os oficiais que vieram do Reino Unido fazer a pós-investigação sobre o caso.
O caso do Rei Assassino gerou uma quantidade considerável de segredos de Estado.
Uma comissão de inquérito foi enviada ao Japão a fim de investigar e relatar ao país esse
grave incidente que não pôde ser delegado a investigadores normais. E a Máfia do Porto
como uma das partes relacionadas se ofereceu para receber a comissão de inquérito e
cooperar na investigação.
A Máfia do Porto, uma organização criminosa, recebendo a comissão do Reino Unido.
Era uma situação bizarra, mas foi algo pensado e calculado pelo Chefe.
Para começar, quem sabia sobre a integridade do incidente não era o Ministério das
Relações Exteriores nem a polícia militar e sim a Máfia. Porque desde o começo o
governo inglês escondeu totalmente sobre o que estava acontecendo do governo
japonês. E havia uma razão para que a Máfia ficasse de olho também nas ações de uma
potêncial mundial. Eles desconfiavam de que os britânicos iriam querer apagar os
envolvidos da Organização para esconder esse sigilo nacional.
Claro que a Máfia não pretende vazar a verdade sobre o ocorrido para fora. Mas eles
não sabem o quanto o governo britânico acreditará numa organização criminosa. Por
esse motivo, enviaram Dazai para recebê-los. Se eles pretendem eliminar os envolvidos,
Dazai terá que negociar. E se a negociação falhar, ele terá que eliminar a comissão antes
que eles eliminem a Máfia. Por isso também, Chuuya está junto.
Com eles dois em cena, se tornará uma guerra internacional envolvendo toda a Máfia
do Porto.
“Muito bem, vamos começar o divertido jogo de enganações.” Alegre, Dazai se
aproximou da comissão.
Os guarda-costas prontamente reagiram a figura suspeita que se aproximava,
posicionando suas mãos nos revólveres.
“Bom trabalho por terem vindo de tão longe, cavalheiros do magnífico Império
Britânico.” Dazai mudou completamente o seu tom usual e os saudou fluente na
linguagem formal. “Eu vim lhes receber. Desculpem-me por ir direto ao ponto, mas quem
seria o seu representante?”
“Representante?” Quem perguntou foi um dos guarda-costas inclinando a cabeça com
uma expressão confusa. “Essa é a equipe de consultores especialistas, então acho que a
representante seria a Doutora Wollstonecraft…”
Doutora Wollstonecraft?
Chuuya pendeu a cabeça. Ele lembra de já ter ouvido esse nome em algum lugar.
“Ahh.” Dazai logo reconheceu. “Já escutei esse nome. Foi o engenheiro que construiu o
Adam Frankenstein, né? Hm… É você?”
“Não, sou apenas um atendente. Veja, ela está descendo agora.”
Seguindo a linha de visão do velho, Dazai e Chuuya olharam para a rampa. Lá em cima
havia uma mala de viagem extra grande deixada por alguém ── não.
“Olá, prazer. Sou a Doutora Wollstonecraft. …Oh, esse é o tal país. É maior do que nos
mapas.”
Ela apareceu por detrás de uma mala de viagem e era claramente, "…Quantos anos
aquilo tem?" uma menina.

Cabelo loiro e jaleco. Mesmo a mala sendo grande, a menina é pequena ao ponto de
poder ser totalmente escondida por ela. Metade de seu rosto está coberto por um óculos
grande e redondo.
No seu peito estão penduradas as mais de vinte medalhas conferidas às conquistas
científicas.
“Ei, ei, ei…” Chuuya contraiu o rosto.
“Agora ficou interessante.” Dazai sorriu se divertindo.
Carregando sua mala extragrande ── ou melhor dizendo, arrastando-a enquanto se
agarrava nela, a menina descia a rampa com dificuldade.
“Huff, eu sou, huff, a doutora, huff, Mary Wollstonecraft Godwin Shelley, huff.” Ela
começou a falar enquanto descia arrastando a pesada bagagem. “Dizem que sou uma
gênia, mas, huff, quem diz isso não tem a capacidade de ver minha verdadeira essência,
huff. Minhas conquistas se devem à minha Habilidade de tornar qualquer projeto
possível. Huff. E bem, eu sou uma gênia.”
“Ei, vocês não tem que ajudar ela com a mala?” Chuuya perguntou sem cerimônia para
o velho de barba ao seu lado.
“Hohoho, a doutora é do tipo que não gosta de outras pessoas tocando na sua
bagagem.” O velho riu animado. “Nem mesmo se for Sua Majestade. Se alguém pegar,
ela chora como se voltasse a ter dez anos.”
“Se ela voltar dez anos no tempo, ela não entra de volta na barriga da mãe?” Chuuya
disse aborrecido.
“Pode não parecer, mas ela estava ansiosa por essa viagem. Ela colocou todos os seus
objetos favoritos naquela mala. Não vai deixar ninguém pegá-la.”
“Velho! Para de falar como se eu fosse uma menininha. Eu só sou baixa, mas já sou
quase uma completa adulta. …Huuuff. ” A doutora Shelley finalmente chegou ao final da
rampa e depois de limpar o suor da testa, arrumou sua roupa. “Hm. Mais uma vez, muito
prazer em conhecê-los, cavalheiros do Japão. Muito bem… Você é o Chuuya-kun, né?
Soube que cuidou do Adam.”
Ao ouvir o nome de Adam, a expressão de Chuuya mudou para quem esconde a dor.
“Quem sabe.” Ele respondeu. “Acho que fui eu de quem ele tomou conta.”
A menina ajustou seu enorme óculos no centro do rosto e olhou bem para Chuuya.
“Ele morreu me protegendo. …Doutora, o Adam foi a sua obra-prima, não foi? Foi mal
tê-lo quebrado.”
“Hm.”
A doutora Shelley observou Chuuya o rondando pela direita, depois pela esquerda e
então bem de perto pela frente. Como se observando um objeto de estudo muito
intrigante.
“Sim, o Adam é minha obra-prima.” A menina disse cruzando os braços. “Ao ponto de
ter sido enviado para uma investigação num país qualquer, ao ponto de eu querer
continuar atualizando ele para sempre no meu laboratório.”
Chuuya ouvia calado. Seus olhos não viam o que estava diante dele, mas sim uma cena
do passado.
A doutora continuou após tossir como uma criança.
“O que é especialmente incrível no Adam é sua capacidade de pensar e julgar por si
mesmo. Ou seja, ele se sacrificou por vontade própria.” Ela estava sorrindo. “Você deve
ter valido a pena. Eu acredito nele. Agradeço as suas desculpas, mas não precisa se
preocupar.”
Chuuya abriu a boca para dizer algo, porém não conseguiu. Como uma criança que
esqueceu o caminho de casa, ele ficou parado em choque.
Vendo o Chuuya assim, Dazai deu uma pequena risadinha.
“Eu nunca gostei de terem usado o Adam para aquela investigação idiota.” A doutora
fez cara de mau humor. “O governo é sempre assim. Despacha um investigador
automático e depois que ele terminou de ser útil, explode ele com todas as informações
confidenciais junto. Sendo que poderíamos ter conseguido melhores dados de teste em
uma troca mútua com sociedades multiculturais numa operação independente! Eu me
pergunto se está certo negligenciar a ciência pelo bem da vida humana!”
Ao que Chuuya e Dazai piscaram, a doutora pediu para um subordinado trazer ‘aquilo’.
Ele então trouxe um tubo do tamanho de um braço.
“Sendo assim, eu que não desisto nunca, inseri um subprocessador destacável e
armazenamento não volátil sem o governo saber.” Ela tirou o conteúdo do tubo. “Aqui.”
O que tinha no tubo do tamanho de um braço era de fato um braço.
O braço direito do Adam lançado para fora da besta Guivre pelo Chuuya e fincado no
chão.
“Isso é…” Chuuya não entendeu. “Eu o procurei depois da luta, mas não encontrei. Como
ele veio parar aqui?”
“Na verdade, ele estar aqui é o natural.”
A doutora Shelley colocou o dedo na imensa bagagem. Reconhecendo os sinais vitais, a
tranca automática destravou.
A pessoa que saiu de dentro, pegou o braço. E o equipando, disse:
“Quer ouvir uma piada de androide, Chuuya-sama?”
Chuuya ficou imóvel e boquiaberto.
Até que inalou bem devagar. Fundo, bem fundo.
Então mudando sua expressão como numa explosão, "…Haha!"
•••
Após três dias da chegada da equipe de consultantes liderada pela Doutora Shelley, o
resto da delegação para formar o corpo principal da comissão de inquérito chegou ao
Japão. E uma elaborada investigação sobre o caso ocorreu.
A investigação mais minuciosa foi onde ocorreu a batalha, na floresta do subúrbio.
Afinal foi o local em que a arma Singular não funcionou como esperavam e a besta
Guivre atacou desenfreada, desencadeando uma luta física contra o monstro. Para
completar, duas armas Singulares sem precedentes colidiram e se aniquilaram. A partir
das informações que coletaram e dos vídeos gravados, eles obtiveram um precioso
registro.
A Máfia do Porto colaborou do começou ao fim. Providenciaram hospedagem,
transporte, motorista e qualquer equipamento necessário. Todos os membros foram
ordenados a colaborarem com qualquer pergunta feita.
Eles tentaram estender a investigação para o laboratório subterrâneo de N também,
mas como esperado, o governo japonês negou. Afinal era um local que reunia várias
informações secretas sobre pesquisas especiais. A política entrou no meio e o resultado
da conversa confidencial entre os dignatários de cada embaixada foi o lado japonês
apenas apresentando um relatório com os detalhes do caso.
Um mês após a larga investigação, a comissão de inquérito chegou à uma conclusão.
Verlaine morreu. Após se transformar numa Singularidade e destruir o que pode, sua
energia interna foi consumida e ele se extinguiu. Não sobrou nem uma unha se quer.
A comissão ficou surpresa que a arma Shell não adiantou contra a Singularidade. Eles
concluíram que esse registro servirá para avançar ainda mais os estudos das armas
europeias.
Contentes em terem colhido mais do que esperavam, agradeceram a extensiva
colaboração da Máfia e foram embora.
Mori Ougai, Chefe da Máfia do Porto, depois de acompanhar a delegação até o porto e
ver o navio indo embora, suspirou aliviado.
“Dessa vez, foi realmente cansativo.” Enquanto via o navio do governo diminuindo, Mori
esfregou o próprio ombro. “Pensei que tivesse me acostumado a lidar com burocratas
quando estava no exército, mas… tudo o que quero agora é beber um chá-verde quente.”
“Oh, o Chefe esteve no exército?”
Uma mulher de quimono carmesim estava ao lado dele. Era Kouyou.
“Não te contei?” Mori olhou para ela rindo despreocupado. “E o esconderijo como está?”
“Ninguém entrou e ninguém saiu.” Kouyou estreitou os olhos. “Os ilustres dignatários
da comissão de inquérito não parecem ter percebido a sua existência.”
Kouyou deu então um sorriso frio. Mais do que sua gélida espada, o sorriso de um
animal de sangue frio.
“Incluindo que Verlaine está vivo lá dentro.”
•••
Vamos voltar no tempo.
A besta Guivre foi manifestada na floresta, Adam explodiu e Chuuya abriu o Portão,
destruindo Guivre.
Quatro minutos e trinta segundos depois.
O lugar é o antigo local da destruída rodovia elevada. O concreto, os arames, as vigas e
cofragens estão todos espalhados e empilhados como cadáveres.
Em cima deles, Verlaine estava no meio do processo de desaparecimento.
Ele não consegue mover nem um dedo. A respiração está fraca; e como sua visão está
escura e embaçada, não pode ver as estrelas. Verlaine, que nada mais é do que uma
equação selada, agora com sua verdadeira forma eliminada, a energia necessária para
manter sua vida secou e seu coração começou a parar.
Assim como a sua respiração, seus pensamentos também estão se esvaindo. Sendo
absorvido pelo vazio da morte seu coração não está em turbulência nem deseja nada.
Isso é a morte?
Verlaine pensa com a sua desarticulada consciência.
Não é nada temível ao contrário do que eu imaginava. Não gemo de dor, não grito de
remorso e não perco para o medo. É tão tranquilo e vazio. E a essa altura não há nada de
que me arrependa. Eu nunca deveria ter nascido mesmo. Vivi de um jeito que não me
apegasse a nada.
Apenas causei problemas a várias pessoas. Ao governo francês, aos meus alvos, à
Máfia do Porto, ao meu irmão. E mesmo assim, não ganhei nada no final. Só sinto ser um
pouco decepcionante deixar uma mancha nos meus vestígios. Bem, tanto faz. Logo
morrerei mesmo, então tudo bem.
Seus dedos ficaram frios até que não sentia mais nada.
Seus batimentos foram enfraquecendo e ele teve uma leve convulsão.
Seu coração...
Parou.

── Alguns segundos depois.


Verlaine percebeu que ainda estava respirando.
No canto de sua visão, ele viu algo vermelho. Olhou para a direção.
Um cubo vermelho escuro penetrava seu peito, envolvendo seu coração. Era o que o
fazia bater.
O que é isso?
Verlaine estava confuso. Mas não porque não sabia o que era aquele cubo e sim
porque sabia até demais.
Por que isso está aqui?
"É a primeira vez que o vejo tão acabado assim."
Era uma voz nostálgica.
Verlaine duvidou de seus ouvidos. E quando a figura apareceu na sua visão, duvidou de
seus olhos também.
“Ei, ei.” Verlaine disse como num sussurro. “Impossível. Não tem como você estar
aqui.”
“De fato.” A pessoa assentiu. “Mas ser um espião é aparecer no lugar e hora mais
impossíveis, não?”
A pessoa era Arthur Rimbaud.
Roupa acolchoada, cachecol grosso no pescoço. Na cabeça, protetores de ouvido feitos
de pelo de coelho. Cabelo comprido e escuro, olhos melancólicos.
O companheiro que o salvou do laboratório. A pessoa que ele traiu.
O hiperespaço criado pelo cubo vermelho era o requisito para a ativação da Habilidade
de Rimbaud. Dentro dele, Rimbaud podia controlar qualquer matéria à vontade.
“Paul. O que você aprendeu quando era um espião?” Rimbaud disse como se não
acreditasse. “Eu te ensinei tanto que se você não abandonasse suas emoções, não
conseguiria cumprir a missão. O que era missão e o que era compaixão. Despejar seu
ódio nos humanos ou conseguir seu irmão? Você foi em frente sem definir de modo claro
qual deles era a missão e o resultado foi esse. Se não tivesse mostrado ao seu irmão
como parar o Guivre, teria conseguido matar a sua odiosa humanidade.”
“Ah… Entendi. Você é uma alucinação do Rimbaud.” Verlaine disse rindo de si mesmo.
“A ilusão que se pode ver nos últimos momentos, o ceifador que a minha culpa está me
mostrando na hora da morte. Senão não tem como o Rimbaud que morreu há um ano
aparecer aqui.”
“Não sou uma ilusão nem um deus da morte. Sou um fantasma.” Rimbaud balançou a
cabeça. “Eu estava te esperando nesse país.”
Verlaine ficou encarando o outro, calado. Queria se certificar da verdadeira identidade
daquilo que existia ali.
“Não, não tem como ser um fantasma.” Verlaine sacudiu a cabeça. “Não por não ser
científico. Se você não fosse mesmo uma ilusão e sim um fantasma, não me ajudaria.
Tentaria me amaldiçoar.”
“Por quê?”
“Porque eu te trai e tentei te matar.” A voz solitária ressoou pela noite.
Sem responder, Rimbaud olhou serenamente Verlaine caído.
“Que olhar é esse? Sinta mais raiva, sinta mais ódio, me soque, me chute, me enforque,
Rimbaud!” Verlaine gritou caído no chão. “Eu te atirei pelas costas! Por causa disso
aconteceu aquela explosão, você foi pego nela, perdeu a memória e morreu num país
estrangeiro sem saber quem você era! Se você é um fantasma, então o que te tornou um
foi o seu rancor contra mim! Não foi, Rimbaud?!”
"É o contrário." Rimbaud balançou a cabeça. “Eu estava te esperando… porque queria
me desculpar.”
“Se desculpar? Pelo quê?” Verlaine franziu sem entender nada.
“Porque eu queria te salvar e pensei que você queria ser salvo.” Rimbaud se inclinou,
repousando sua mão em cima do peito de Verlaine. “Mas o que eu te dei não passou da
simpatia forçada de um homem que fingiu te entender… Eu sei que não serei perdoado só
me desculpando. Sempre estive pensando o que poderia te dar. E encontrei minha
resposta antes de morrer. Isso.”
Sob a palma da mão de Rimbaud, o cubo foi aumentando cada vez mais.
O cubo que antes cobria apenas o coração de Verlaine, foi englobando todo o seu corpo
até que cresceu ao ponto de conter Verlaine e Rimbaud.
Era o hiperespaço de Rimbaud. Ele poderia fazer qualquer coisa ali. Menos trazer os
mortos de volta.
Mas a exceção aconteceu.
Verlaine se deu conta de que conseguiu mover o dedo. Seu dedo dobrou. Não era ilusão
de ótica. Seus olhos também se moveram. Sua visão embaçada foi clareando.
“Isso é…”
Verlaine mexeu o braço. Curvando o tronco, ele levantou a parte superior de seu corpo.
Olhando as palmas de sua mão, a parte de cima delas, as fechou e as abriu. Ele sentia o
sangue circulante aquecendo seus dedos.
Quando foi perguntar o que estava acontecendo, ele olhou para Rimbaud.
Ele não estava mais lá. Estava caído ao seu lado.
“O que você fez...” Verlaine disse perplexo. “Você… usou a sua Habilidade em si
próprio?”
“Nunca tinha feito isso.” Rimbaud sorriu fragilmente. “Mas deu certo.”
A capacidade de transformar alguém em Habilidade. Essa era a Habilidade de Arthur
Rimbaud.
Ele converteu um humano morto numa Habilidade viva que pode existir apenas dentro
do cubo. O humano transformado em Habilidade consegue manter a constituição física,
as memórias de sua vida e até usar sua Habilidade. A heresia das heresias, a Habilidade
que só o melhor espião europeu poderia ter.
Rimbaud a usou em si mesmo.
“Não se preocupe. Eu já estou morto.” Ele falava fragilmente. “Mas mesmo assim me
sinto feliz. Porque pude deixar ela com você.”
O corpo de Rimbaud começou a brilhar vermelho.
Verlaine se lembra de já ter visto essa luz. O desvio para o vermelho.
“Espere.” Percebendo que algo estava acontecendo, Verlaine estendeu a mão para
Rimbaud. “Espere, Rimbaud. Não desapareça.”
“Você não tinha gostado do seu presente de aniversário.” Rimbaud sorriu se
desculpando. “Faça desse o seu presente então ── Feliz aniversário. Eu fui feliz por você
ter nascido.”
O cubo contraiu de repente e sumiu para dentro do coração de Verlaine. O que restou
foram os destroços, Verlaine e a noite fresca.
Verlaine deu dois, três passos sem saber o que fazer e depois de olhar ao redor, sentou
em cima dos destroços.
“Ha… hahaha”
De cabeça baixa, ele soltou uma risada seca.
“Rimbaud… você me esperou por um ano para fazer isso? Para isso…”
Verlaine entendeu o que Rimbaud tinha feito. Para salvar a si próprio ele se transformou
numa Singularidade contraditória.
Transformado numa Habilidade, Rimbaud a usou novamente e a aplicou em si mesmo.
Fazendo isso infinitamente, ele gerou uma Singularidade e a deu para Verlaine no lugar
da besta Guivre.
Verlaine tentou levantar, mas sem forças nos braços, ele acertou os joelhos nos
detritos.
Ele estava fraco. Provavelmente a Singularidade criada por Rimbaud não gerava energia
infinita como a outra. Ele não poderia mais usar sua Habilidade exaustivamente como
antes.
Mas Verlaine não se arrependia disso. Ele se arrependia era do que acabou de perder.
“Por que, Rimbaud?” Verlaine olhou para os Céus. “Por que você estava sorrindo no
final? Eu te trai. Você morreu por culpa disso.”
Ele sabia a resposta. Só não queria entendê-la.
Rimbaud. O homem que o salvou do Fauno e lhe deu liberdade.
Rimbaud. O homem que o treinou como espião e de quem junto enfrentou várias
missões perigosas.
Rimbaud. O homem que lhe deu um chapéu de aniversário mesmo com vergonha.
“Por que você sorriu?” Verlaine disse com a voz trêmula. “Se transformando numa
Habilidade, você deixa de ser humano. Não passa de uma camada de informações com
memória e personalidade. Você sabia disso. Então por que me esperou? Sem saber se eu
viria mesmo ou não, por que foi tão longe por mim…?”
Verlaine finalmente se deu conta de algo.
Por que naquela hora, eu mostrei ao Chuuya como derrotar o Guivre? Eu odiava os
humanos. Queria que todos morressem. Mas eu entreguei uma pista de como derrotá-lo
porque não queria que todos morressem igualmente. Havia uma única exceção. Aquele
que basta para afirmar os humanos.
“Desculpa, Rimbaud.” Verlaine sussurrou no fundo de seus dentes cerrados. “Desculpa,
desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, desculpa, desculpa. Desculpa não ter respondido
à sua amizade. Desculpa não ter agradecido quando você me deu o meu presente. Eu
agora finalmente percebo que estou triste…… por você não estar mais aqui.”
Verlaine olhou para os Céus, fechou os olhos e dizendo isso, repousou.
Ele ficou ali por muito, muito tempo, reverenciando o céu noturno.
•••
Yokohama. Máfia do Porto.
A noite vem na mesma quantidade de dias. E assim como o número de estrelas na
noite, os olhos da Máfia do Porto brilham em Yokohama.
As feridas causadas pelo incidente do Rei Assassino não foram superficiais. Eles
perderam armas, membros e um número valioso de Usuários combatentes. Além de
chamarem a atenção das autoridades. Desse modo, a única opção foi manter a cabeça
baixa, não fazer barulho e guardar as energias.
Mas isso não foi em vão. Não muito depois ocorreu a disputa Cabeça de Dragão. Os
oitenta e oito piores dias na história do submundo de Yokohama. Uma tempestade de
sangue que assolou diversas organizações. Evitando as disputas superficiais e
mantendo suas atividades sólidas, a Máfia atravessou o começo da disputa com o
mínimo de danos. E ao final, ela estendeu sua influência rapidamente dentro do
devastado submundo. Como uma árvore jovem que vai crescendo e crescendo após um
incêndio sem conseguir impedir a luz do sol.
Passada a disputa Cabeça de Dragão, a Máfia cresceu e se transformou.
O Soukoku emergiu, Dazai foi promovido a executivo, e seis anos após o Limão
Sorridente e o caso Mímico, que provocou a saída de Dazai, muito outros incidentes
aconteceram até enfrentarem a organização Usuária Agência de Detetives Armada de
Yokohama.

O tempo passa igual para tudo e para todos.


Verlaine não morreu. Recebendo a vida de Rimbaud e agora tendo uma longa vida pela
frente, ele está confinado no abrigo subterrâneo da Máfia do Porto. O próprio desejou que
assim fosse. Não há mais lugar para ele no mundo exterior. Tendo perdido a maior parte
de sua gravidade, o único lugar para onde pode escapar das compridas mãos da Europa
é esse abrigo debaixo da terra.
Nada o interessa lá fora também. Não há ninguém que queira matar, assim como não
há ninguém que queira encontrar. Exceto Rimbaud.
E esta pessoa já não está mais em nenhum lugar.
No começo, ele passava os dias sentado, lendo e compondo poesias. Quando se
cansou, decidiu fazer o mesmo que Rimbaud. Treinar a geração mais nova.
Ele ensinou suas técnicas de assassinato e conhecimentos para a elite da Máfia num
campo de treinamento subterrâneo. Para a Gin, Izumi Kyouka e muitos outros. Os
assassinos de aluguel que foram treinados por ele, viraram assassinos de primeira
classe em um curto período de tempo.
Verlaine não se abriu para ninguém. Nem mesmo para seus discípulos ou para o Chefe
ele quis revelar porque desejava continuar preso nesse lugar.
Quando não estava treinando seus discípulos, ele apenas ficava sentado numa cadeira
de vime esperando por algo. Ele não contou para ninguém pelo que esperava. Quando
alguém insistiu muito uma vez, tudo o que respondeu foi “pela tempestade”. Ninguém
entendeu o que era essa tempestade ou o que ela significava.
Agora seis anos depois, Verlaine é um dos cinco executivos indispensáveis para a
Máfia.
Ele, mesmo agora, continua sentado em silêncio na sua cadeira de vime esperando pela
tempestade.

Shirase foi para Londres. Depois de viver alguns anos na pobreza, ele fundou a
organização Ovelhas Perdidas após um curioso caso e se tornou o chefe. Por causa de
severidade da sociedade Usuária do Reino Unido, ele constantemente reclama que quer
voltar para Yokohama. Mas parece que o destino ainda não o deixará ir embora da
Europa por mais algum tempo.

Piano Man, Albatross, Doc, Iceman e Lippmann foram enterrados num pacífico
cemitério perto das montanhas. Seus túmulos ainda estão coberto de flores.
Mesmo assim eles não passam de uma linha na longa lista de vítimas que morreram
devido á organização decorada por violência e morte que é a Máfia do Porto. Com o
tempo, eles serão cobertos por grandiosos nomes e pelo pó da história, sendo
esquecidos.

Depois desse incidente, Adam participou energeticamente de inúmeros outros casos


difíceis, ganhando várias conquistas.
Ele ainda não realizou seu sonho de formar uma agência só de detetives automáticos
── todos os envolvidos dizem “sinto que isso não é uma boa ideia” ── porém, suas
conquistas foram reconhecidas e o segundo computador humanoide de alta
performance, modelo feminino, Eve Frankenstein, foi criado.
Eve tem personalidade forte e Adam é completamente conduzido pelo nariz por ela. Os
dois hoje também estão perseguindo um caso.
E quanto ao Chuuya...

•••
A moto de Chuuya corre por entre os prédios baixos.
Essa é uma rua na região San'in, ao oeste. Várias construções pequenas de madeira
estão enfileiradas. Uma cidade completamente desconectada do cheiro de sangue da
Máfia do Porto. As pessoas vêm e vão tranquilamente nas calçadas. Em algum lugar bem
além dos prédios, um vapor branco sobe indicando a presença de fontes termais.
A moto corre pela rua pavimentada e quando chega perto de um carro preto, para.
A janela do carro abaixa e a pessoa de dentro fala.
“Bom trabalho, Chuuya-san.” Das duas pessoas que estavam dentro do carro, a mulher
falou do banco do motorista. Um membro da Máfia de cabelos cor de mel. “O alvo ainda
não se movimentou por enquanto.”
“Entendo.”
Chuuya olhou para a direção que o carro estava monitorando. Era uma pousada de
madeira da era Heike escondida da cidade.
Não chamava nem um pouco de atenção. Grande e silenciosa, tinha um letreiro antigo
escrito ‘Clínica’. Não parecia ter nenhum paciente no momento.
“Chuuya-san.”
O outro membro da Máfia que estava no carro falou. Um homem de sobretudo, cabelo
preto e olhos aguçados.
“O Chefe nos mandou nessa missão de monitoramento em segredo absoluto. O alvo é
tão perigoso assim?”
“Já não sabe?” Chuuya disse ainda na moto. "É segredo."
O homem de olhar aguçado fechou os olhos e fez uma reverência.
“Fiz uma pergunta descabida.”
“Eu assumo daqui. Bom trabalho terem vindo até esse lugar tão afastado.”
“Muito obrigado.” O homem abaixou a cabeça, inexpressivo.
“Vamos, Higuchi.”
“S-Sim.”
A mulher ao ser ordenada, iniciou o carro tensa, que desapareceu na estrada.
Chuuya continuou observando a pousada em silêncio.
Depois do caso do Assassino Rei, o valor do Chuuya dentro da Máfia subiu
drasticamente. Por ter sido, afinal, ninguém menos que ele quem destruiu a besta que
quase arruinou a Máfia do Porto. Não havia mais nenhuma pessoa que não soubesse seu
nome e ele passou a adquirir uma horda de subordinados.
Mas nenhum desses subordinados, nem dos seus amigáveis colegas, falava sobre sua
verdadeira identidade e seu passado.
Dazai estava certo. Não havia mais jeito de saber se ele era humano ou não depois da
formatação do registro de comando gravado nele. A Habilidade artificial ── no caso de
Chuuya, Arahabaki ── foi construída transplantando as células originais. Por essa razão,
seu corpo não difere de um humano, não podendo ser distinguido por uma avaliação
médica. Mesmo se os melhores médicos e engenheiros biológicos examinassem Chuuya,
não poderiam discernir se ele é apenas um ser artificial com personalidade ou não.
Mas Chuuya não se arrependia.
Ele próprio foi quem decidiu por formatar a equação. Se ele voltasse no tempo para
aquele momento, faria a mesma escolha. Assim Chuuya pensava. Esse corpo era seu.
Não dá para separar mente e carne. Nem suas unhas, cabelos ou a menor cicatriz que
fosse.
Chuuya tirou suas luvas de couro e olhou para suas mãos.
Essas eram suas próprias mãos. Suas digitais e veias azuis levemente visíveis. As
rugas. Até a pequena cicatriz no começo de seu pulso.
Uma cicatriz escura de alguma apunhalada. Depois de passar por inúmeras lutas, essa
cicatriz existia.
Chuuya a olhava fixamente. Ele não lembra quando a conseguiu. Mas era difícil para ele
que bloqueia quase todos os ataques com a gravidade conseguir uma ferida assim. As
cicatrizes que tinha no corpo eram aquelas que recebeu de poderosas Habilidades e de
ataques surpresas que o visavam matar. Como a facada nas costas que recebeu do
Shirase.
Uma cicatriz pequena dessas, Chuuya a via como um emblema de sua verdadeira
identidade.
Sentindo outra presença, Chuuya levantou a cabeça.
Uma movimentação ocorreu na pousada. Alguém estava saindo.
Ele conseguia ver um homem atrás das árvores no jardim. Um homem no auge da vida.
Costas curvadas, usando óculos e jaleco. Parecia um clínico geral.
Uma mulher de quimono veio atrás dele. O clínico e a mulher que pareciam ter a mesma
idade foram até a árvore de zimbro no jardim e sentaram no banco em frente.
Eram alvos procurados há tempos pela Organização. Demorou anos para localizarem a
residência sem serem percebidos pela outra parte.
Antes de vir, o Chefe explicou pessoalmente para Chuuya sobre os procurados.
Os alvos eram o clínico geral e sua esposa que moravam nessa região há muitos anos.
Claro que o homem não era apenas um gentil médico como aparentava. Ele era um ex-
militar e atualmente é um legislador da Câmara Municipal. Ou seja, uma pessoa com
quem se deve ter cuidado. A esposa é descendente de samurais e recebeu educação de
mais alto nível.
Eles não têm filhos. No passado tiveram, mas morreu durante a guerra segundo os
registros. Era um menino travesso que derrotou uma criança quatro anos mais velha
durante uma briga no primário. O motivo foi a outra criança ter insultado seus pais. O
menino não deu um passo contra seu colega armado com um lápis. Mesmo tendo sido
apunhalado pelo objeto, seu rosto não vacilou e ele socou a outra criança.
Mori adicionou ao contar a história. A ponta do lápis, isto é, o carbono tem baixa
reatividade e mesmo enfiado num ser vivo, não muda facilmente. É normal o carbono
permanecer no corpo sem se alterar.
O local em que esse menino foi perfurado foi no começo do pulso direito.

No mesmo lugar da cicatriz escurecida de Chuuya.

Chuuya olhou o casal. O marido tirou um caqui de um embrulho de pano e deu metade
para sua esposa. Os dois comeram juntos. A esposa pegou um cantil e colocando o chá
na xícara, disse algo para seu marido. O homem riu. Não dava para escutar de onde
Chuuya estava.
Chuuya lembrou da explicação do Chefe. O corpo da Habilidade artificial foi criada a
partir das células de seu Usuário original, por isso que por fora era indistinguível de um
humano.
Contudo, claro, as histórias caminhadas por duas pessoas diferem. Portanto diferentes
experiências são inevitavelmente esculpidas em seus corpos. Por exemplo, uma cicatriz.
O original possui cicatrizes de sua infância, antes de sua Habilidade ter sido
transformada numa Singularidade. E como a Habilidade artificial foi criada depois, ela
não tem nenhuma cicatriz obtida nessa infância.
Chuuya colocou a mão no bolso e encostado em sua moto na estrada afastada, do
outro lado dos carros indo e vindo, ficou olhando o casal sem pensar em nada.
Quantos minutos será que se passaram?
Quando o casal terminou de comer o caqui e voltaram para a clínica, Chuuya também
deu as costas para os dois. Montando na moto, ele ligou para alguém.
“Chefe, acabei de verificar. Voltarei agora.” Chuuya disse para o seu celular apoiado no
ouvido.
“Não quer mesmo se encontrar com eles?” Do outro lado da linha, Mori disse
decepcionado. “Finalmente encontrei eles como celebração por você ter se tornado um
executivo.”
Sem mudar a expressão, Chuuya falou, “a minha família é a Máfia do Porto,” e ligou a
moto.

O vento seco bateu em suas bochechas e soprou para o céu distante.


Chuuya se virou, seguindo o vento com o olhar e viu o céu que existia.
Ele olhou bem para esse céu. Para o que existia além dele. O que aconteceu até hoje
sob esse azul e o que acontecerá ainda.
Chuuya fez um olhar de realização como se tivesse confirmado algo naquela
imensidão. E disse para o celular:
“Chefe… Obrigado.”
Pôde-se sentir Mori sorrindo do outro lado da linha.
Chuuya desligou a ligação, colocou o capacete e acelerando a moto, correu para além
da estrada.
Olhando apenas para frente, não se virou novamente.
A moto foi diminuindo em direção ao céu claro e azul até que não pôde mais ser vista.
Posfácio
Há quanto tempo. Aqui é o Asagiri.
Estão todos bem?
Gostaram do meu sétimo livro sob a Kadokawa Beans, Bungo Stray Dogs: STORM
BRINGER?
Comparado aos outros seis, esse livro foi bem maior, mais difícil de conceber e em
várias passagens eu escrevi gemendo insatisfeito.
Para os que têm os outros livros, comparem com este em suas prateleiras. A grossura
da lombada é incrível. No até então mais longo, o 55 Minutes, eu começava o posfácio na
página 308. O que foi isso, Asagiri?
Além disso, este é continuação do Dazai, Chuuya, Quinze Anos lançado há um ano e
meio. Aquele é o primeiro volume e este o segundo. Os segredos sobre o Arahabaki e
Verlaine são revelados aqui. Deste modo, não acho que ninguém pulará direto para cá
sem ter lido o primeiro volume. Espero que não. Caso alguém faça isso, desculpa.
“Assim fica difícil de entender. Claro que está errado, farei a gentileza de corrigir para o
título Dazai, Chuuya, Dezesseis Anos.” Caso você fique com raiva, sim, você tem
completa razão. Não tenho como justificar (O bom do posfácio é que não importa o
quanto se irritem comigo ou eu me desculpe, não receberei um soco físico).
O que eu quero dizer é que juntando com o primeiro volume, essa história fica
extremamente longa. Mas vou explicar o motivo de ter ficado comprida assim.
Vocês se lembram? No posfácio do primeiro volume, eu escrevi a informação
incompleta de que “O passado do Soukoku vai terminar no segundo volume!”
Sim. Exatamente. Era maior do que eu pensava.
A personalidade do Chuuya nunca se esgota. Sinto muita felicidade em escrever um
personagem tão profundo e ter ele lido por vocês, mas mesmo levando isso em conta
“Será que vou conseguir publicar essa quantidade toda…” eu levei o livro para a editora
com essa preocupação.
Mesmo tendo escrito isso tudo, ainda sobrou história que quero contar. Quais as lutas
que Chuuya enfrentou a partir daqui e como ele se tornou executivo? Quais foram os
sentimentos de Chuuya depois que Dazai deixou a Máfia e como ele cresceu?
Por enquanto, gostaria de deixar o destino de Chuuya ao palácio da imaginação de
vocês, caros leitores. Ainda é segredo o caminho que percorrerá, mas o que posso
afirmar é que não será um caminho pacífico.
Eu tive a honra de receber muita ajuda para a publicação desse livro.
Minha parceria que sempre preenche os meus livros com arrebatadoras e perfeitas
ilustrações, Harukawa35. O meu editor que sempre escuta os meus pedidos absurdos
durante o cronograma e a revisão, Shirahama. O pessoal da impressão e das vendas. O
pessoal da livraria. E todos os outros envolvidos. Muito obrigado.
Vamos nos encontrar no próximo livro.
Asagiri Kafka.

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