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Trem noturno da Via Láctea

Título original: Ginga tetsudo no yoru


Traduzido da edição japonesa: Shincho Bunko
Tradução: Tomi Okiyama & Montse Watkins
Revisão: Otavio Omati
Ilustrações: Kunio Sato
Copyright desta edição: ULS & Co.
Publicação eletrônica da versão revisada - Maio de 2017
Índice

Introdução
Trem Noturno da Via Láctea
Aula da tarde
A gráfica
Em casa
A noite da Festa das Estrelas
A coluna dos desejos
A estação da Via Láctea
O Cruzeiro do Norte e a Costa do Plioceno
O cata-pássaros
O bilhete de Giovanni
Introdução
Kenji Miyazawa é um autor clássico no Japão, ainda que
praticamente desconhecido entre os leitores ocidentais. A sua obra
contém símbolos e referências de costumes e tradições de difícil
compreensão para o leitor estrangeiro.
As diferenças culturais, no entanto, não são obstáculos para
desfrutar o seu trabalho, que deve ser lido com os olhos do coração,
para se deixar transportar ao seu mundo mágico com a mente
aberta.
Para a tradução dos textos, foram consultados diversos
especialistas na obra de Kenji e principalmente o seu irmão caçula,
Seiroku. A pesquisa para a tradução exigiu um trabalho minucioso,
que permitiu conhecer melhor não só a sua obra como também
muitos aspectos de sua vida.
Buscamos compartilhar este conhecimento com o leitor adulto
ou jovem, e arrastá-lo à tentação de lançar-se a estes contos para
distanciar-se da realidade por algumas horas e voltar a ela com o
espírito mais alegre.
Mas quem foi Kenji Miyazawa?
Esse escritor, que morreu poucos dias depois de ter completado
37 anos, nasceu no dia 27 de agosto de 1896 na pequena cidade de
Hanamaki, na província de Iwate, a uns 500 quilômetros ao norte de
Tóquio.
Ainda que sua família fosse de comerciantes sem problemas
econômicos, Kenji cresceu em uma sociedade empobrecida pela
Guerra russo-japonesa, iniciada em 1904, assim como pelas
frequentes geadas e inundações, que causaram fome endêmica
entre os agricultores locais.
Kenji se educou em uma família de fervorosos budistas, que lhe
inculcaram a ideia de auto-sacrifício pelo bem-estar alheio e outros
princípios religiosos aos quais se manteve fiel até a sua morte.
Através de sua profissão de engenheiro agrônomo, Kenji ajudou
os camponeses de seu povoado a melhorar as colheitas, para livrá-
los da pobreza.
Aos 21 anos, começou a publicar, em jornais locais, contos
ingênuos e humorísticos, mas apenas cinco anos mais tarde, após a
morte de sua irmã mais nova, Toshi, de tuberculose, iniciou um
período de grande produção literária.
Entre os atormentados poemas e as enigmáticas histórias
dessa etapa se destaca a sua obra mais representativa, Trem
noturno da Via Láctea, que reescreveu em quatro ocasiões
durante dez anos e por fim deixou inacabada.
Outros relatos escritos pelo autor são As bolotas de carvalho
e o gato da montanha, O restaurante com muitos pedidos e
Viagem pela neve, bastante populares entre o público japonês,
além de abundantes pequenos contos e poemas.
Afora sua atividade literária, Kenji se uniu a jovens profissionais
para formar um grupo dedicado a discutir os problemas da
comunidade e ensinar aos camponeses locais novas técnicas de
cultivo.
Também organizava saraus para se ouvir discos de música
clássica, um refinamento raro no campo japonês, incluída uma
coleção de concertos de Beethoven, que ainda se conserva no
museu construído em memoria de Kenji nos arredores de
Hanamaki.
Os saraus, porém, logo chegaram ao fim. O crescente
militarismo japonês nos anos 20 provocou uma onda de atentados
anarquistas, que colocaram o Estado sob alerta contra qualquer
organização de jovens.
Aos 32 anos Kenji contraiu tuberculose. Teve que abandonar
seu trabalho de engenheiro, mas continuou escrevendo até que
morreu, cinco anos mais tarde, em setembro de 1933. Foi nesse
período que trabalhou no último manuscrito de Trem noturno da
Via Láctea, só publicado três décadas mais tarde, quando uma
equipe, da qual participava seu irmão, Seiroku, editou a obra com os
quatro manuscritos existentes, todos inacabados.
Na atual edição japonesa, inclusive, há alguns pontos de
ruptura, uma indicação de que se perderam algumas páginas do
original, que nesta tradução se buscou eliminar com a supressão de
uma ou outra frase solta no texto.
Um ponto de controvérsia entre os críticos refere-se à ideia que
teria inspirado Kenji a escrever Trem noturno da Via Láctea. A tese
mais aceita é a da separação entre o autor e sua irmã Toshi, que
morreu aos 25 anos.
Outra influência neste relato, em especial no capítulo do
naufrágio, foi o romance Cuore, escrito pelo italiano Edmondo de
Amicis, em 1896.
Segundo Seiroku, é dessa obra que Kenji tirou a ideia de utilizar
nomes italianos para os dois protagonistas - Giovanni e Campanella
-, por acreditar que esses nomes estrangeiros contribuiriam para dar
um ambiente mais imaginário ao relato.
Trem noturno da Via Láctea
Trem noturno da Via Láctea é um clássico da literatura
japonesa, combinando elementos espirituais e científicos. Também
faz uma curiosa mescla entre o cristianismo e o budismo. É
claramente cristã a descrição desta viagem onírica através do tempo
e espaço, que começa na constelação do Cruzeiro do Norte e
termina na do Cruzeiro do Sul, assim como a de alguns
personagens e do céu. Enquanto que a ideia de cruzar a Via Láctea
para ir ao paraíso é uma analogia ao Rio Sansu, que separa este
mundo do outro e deve ser cruzado pelos budistas ao morrer.
Também a “Coluna dos Desejos” era utilizada anteriormente
como instrumento de pregação budista, Consistia em uma coluna de
pedra atravessada por um anel de ferro, girado pelos devotos, na
época incapazes de ler os livros sagrados, enquanto formulavam os
seus desejos.
Os protagonistas desta obra são Giovanni, um menino pobre e
solitário que tem que trabalhar para ajudar sua mãe doente, e seu
melhor amigo Campanella. Devido às suas responsabilidades,
Giovanni nunca tem tempo livre e é ridicularizado pelos colegas da
escola. Campanella, é o único entre os alunos que se preocupa com
Giovanni. Certo dia, por exemplo, na aula de ciências da escola, o
professor pergunta a Giovanni o que realmente é a Via Láctea.
Giovanni sabe que ela é feita de estrelas, mas não consegue
responder. O professor então pergunta a Campanella, que finge não
saber a resposta e também não responde, a fim de salvar Giovanni
de ser ridicularizado pelos outros alunos.
Um dia, cansado depois da escola e do trabalho, Giovanni se
deita no topo de uma colina. De repente, se encontra viajando pelo
espaço em um estranho trem, que conduz ao outro mundo os
espíritos das pessoas que morreram, entre eles o de seu melhor
amigo Campanella.
Giovanni não sabe que é o único viajante com bilhete de volta,
que lhe permitirá regressar ao mundo dos vivos. Sua ansiedade por
viver plenamente a amizade com Campanella e sua evolução até
superar o egoísmo e desejar “a felicidade para todos”, inclusive com
o auto-sacrifício budista, constituem o ritmo do relato.
Para os cenários, Kenji se inspirou no campo de sua terra natal,
enquanto para a “Festa das Estrelas” adotou como modelo o
tradicional festival Tanabata, que ocorre em todo Japão no mês de
julho.
Segundo a lenda, Tanabata marca o dia do ano em que uma
donzela fiandeira e um pastor, representados pelas estrelas Vega e
Altair, cruzam a Via Láctea e se encontram.
O costume de lançar lanterninhas para flutuar no rio ou no mar,
com o objetivo de receber os espíritos dos mortos, ainda se mantém
em algumas regiões do Japão.
Durante os festejos, as ruas são decoradas com longos talos de
bambu adornados com figuras e enfeites de papel multicolores, as
crianças soltam fogos de artifício, compram escaravelhos ou peixes
coloridos, e todos saem a passear pelas ruas iluminadas.
Em uma noite assim, Campanella morre afogado no rio, e
Giovanni, que ficara dormindo ao pé da Coluna dos Desejos, vê
realizado o seu desejo de fazer com o amigo uma viagem mágica no
trem da Via Láctea, despertando com uma nova energia para viver.
A primeira edição da tradução deste livro foi publicada em maio
de 1994 pela Luna Books.
A Luna Books foi fundada por Montse Watkins, que por possuir
um profundo conhecimento sobre a literatura japonesa, publicou
diversas traduções para o Português e Espanhol. Infelizmente ela
veio a falecer em novembro do ano 2000, o que significou o fim da
Luna Books.
Naquela época, a Uls & Co ajudava a Luna Books na confecção
dos seus livros (impressão e acabamento). Com o passar dos anos
ficou claro que era um desperdício deixar tantos livros traduzidos
esquecidos no tempo.
Já se passaram mais de 20 anos da publicação da primeira
edição, mas finalmente com uma tradução em mãos, a Uls & Co fez
uma revisão e decidiu publicar novamente esta obra, mas desta vez
em versão eletrônica.
As ilustrações da versão original foram feitas pelo xilografista de
Hokkaido, Sr. Kunio Sato, que gentilmente cedeu as ilustrações
originais para esta nova publicação em versão eletrônica.
E assim, reacendendo o desejo de Montse Watkins de tocar os
corações dos leitores através da leitura, apresentamos esta série da
Luna Books em versão eletrônica, esperando emocionar o maior
número possível de pessoas.
Trem Noturno da Via Láctea
Aula da tarde
- Dizem que parece um rio, ou o rastro deixado por uma
corrente de leite, mas, esta coisa borrada e branca, sabem o que é
na realidade?
O professor fez esta pergunta à classe enquanto assinalava um
grande mapa preso na lousa, no qual apareciam as estrelas sobre
um fundo negro e uma zona branca e difusa parecida com uma
galáxia.
Campanella levantou a mão. Em seguida mais quatro ou cinco
garotos fizeram o mesmo. Giovanni também ia levantar a mão, mas,
apressadamente, mudou de opinião.
Sem dúvida tudo isso eram estrelas, uma vez o havia lido em
uma revista. Mas, ultimamente, a Giovanni todos os dias lhe dava
sono na aula e, como não tinha tempo para ler livros nem tampouco
livros para ler, tinha a impressão de que não entendia bem nada.
O professor logo se deu conta.
- Giovanni, entendeu a pergunta?
Giovanni se levantou com decisão, mas assim que ficou de pé
não soube o que responder. Zanelli, que estava sentado diante dele,
voltou-se para trás e, observando-o, riu na sua cara. Giovanni,
vermelho de vergonha, se manteve de pé completamente confuso.
O professor voltou a falar:
- Se observarem a Via Láctea com um telescópio potente, mais
ou menos em que consiste?
Ainda que Giovanni tenha pensado que, claro, eram estrelas,
tampouco desta vez pôde responder.
O professor pareceu preocupado por um momento, mas em
seguida, dirigiu o olhar para Campanella e perguntou-lhe:
- E então, Campanella?
Mas Campanella, que havia erguido a mão com tanto vigor, se
levantou vacilante e tampouco pôde responder.
Estranhando, o professor contemplou Campanella durante
um instante e então, com um apressado “Bem, muito bem”,
assinalou o mapa de estrelas.
- Se olharem a borrada e pálida Via Láctea com um potente
telescópio verão que é formada por muitas estrelas pequenas. Não
é mesmo Giovanni?
Giovanni assentiu, ruborizando-se de novo, mas em algum
momento seus olhos haviam ficado cheios de lágrimas.
Claro que o sabia - pensou - e Campanella, provavelmente,
também. Havíamos lido uma vez em sua casa, em uma revista de
seu pai, que é doutor. Não só isso como Campanella, ao vê-la, foi
em seguida ao escritório de seu pai e trouxe um livro grosso. O
abriu no lugar onde dizia “Via Láctea” e estivemos vendo durante
muito tempo aquela bela fotografia de inumeráveis pontos brancos
sobre a página negra como o carvão. Não é possível que tivesse
esquecido, mas apesar disso não respondeu. Ultimamente, tenho
que trabalhar duro, tanto bem cedo, pela manhã, como à tarde.
Ainda que venha à escola, não tenho vontade de brincar com os
demais nem tampouco converso com Campanella como o fazia. Ele
se deu conta disso e não respondeu de propósito. Quando penso
nisso, me dá muita pena.
O professor falou novamente:
- Portanto, se pensarem que a Via Láctea é como um rio de
verdade, cada uma das pequenas estrelas que a formam
corresponderia à areia e às pedras do seu leito. E se pensarem que
é como uma corrente de leite, com a qual se parece mais, então, as
estrelas seriam como as pequenas gotas de gordura que flutuam
nela. Deste modo, se nos perguntamos a que corresponde a água
deste rio, a resposta é o vazio, que transmite a luz a certa
velocidade e no qual, certamente, também flutuam o sol e a terra.
Ou seja, nós vivemos dentro da água da Via Láctea. E se desde
dentro da água deste rio celeste olhamos em todas as direções, do
mesmo modo que a água de verdade, que quanto mais profunda
mais azul se vê, bem longe, na profundidade da Via Láctea,
podemos ver muitas estrelas juntas, motivo pelo qual nos parece
esbranquiçada e borrada. Vejam este modelo.
O professor apontou para uma grande lente convexa de duas
faces, que continha muitos grãos brilhantes de areia.
- A forma da Via Láctea se parece muito com esta. Podemos
pensar que cada um destes grãos são estrelas que brilham por si
mesmas, como o sol. Imaginem que o sol está no centro e a terra
muito próxima dele. E suponham que à noite olhem através da lente
em todas as direções, como se estivessem de pé, no centro dela.
Nesta face a lente é delgada, portanto não poderão ver mais que
uns poucos grãos brilhantes de areia, ou seja, estrelas, certo? Mas,
onde o cristal é grosso, poderão ver muitos grãos brilhantes de
areia, e os mais distantes serão vistos como uma massa
esbranquiçada e borrada. Em resumo, esta é a explicação sobre a
Via Láctea que vimos hoje no mapa. Como hoje já não temos mais
tempo, falaremos na próxima aula de ciências sobre o tamanho
desta lente e das distintas estrelas que se podem encontrar com ela.
Hoje é a Festa das Estrelas, portanto ao sair observem bem o céu.
A aula acabou. Guardem os livros e cadernos.
Durante um momento se ouviu na classe o ruído de abrir e
fechar carteiras e de amontoar livros. Mas, em seguida, todos de pé
e em ordem, saudaram o professor e saíram da sala.
A gráfica
Giovanni, ao cruzar a porta da escola, se deu conta de que sete
ou oito de seus companheiros, em vez de voltar diretamente para
casa, haviam se reunido ao redor de Campanella em um canto do
pátio, junto à cerejeira. Parecia que planejavam colher cabaças para
fazer lanterninhas, que, com uma luz azul dentro, soltariam para
flutuar no rio esta noite, na Festa das Estrelas.
Ao passar junto deles, Giovanni os saudou com um gesto
enérgico de mão e cruzou a porta da escola com a maior pressa. Ao
sair à rua, viu que as casas estavam adornadas com bolas de
galhos de teixo, que os ciprestes estavam cobertos de luzinhas e
que todo tipo de preparativo havia sido feito para a festa.
Giovanni, em vez de voltar para casa, seguiu caminhando e,
depois de dobrar três esquinas, chegou a uma imensa gráfica. Após
deixar os sapatos na entrada, abriu a grande porta que dava entrada
a um corredor.
Apesar de ainda ser dia, as luzes estavam acesas. Um grande
número de prensas rotativas giravam e giravam com incessantes
golpes. Havia muitas pessoas, vestidas com faixas e viseiras, que
liam e contavam cadenciadamente.
Giovanni se dirigiu a um homem sentado em frente a uma alta
escrivaninha, a terceira a partir da entrada, e o cumprimentou.
Então esse homem procurou algo na estante.
- Poderá terminar isto hoje? - disse, enquanto lhe passava um
pedaço de papel, Giovanni recolheu uma pequena caixa plana, que
estava ao pé da escrivaninha, a levou para um canto bem iluminado
por uma lâmpada pendurada à parede e, de cócoras, começou a
tirar com umas pequenas pinças os caracteres, tão diminutos como
grãos de milho.
- Vejam, aqui temos o moleque da lupa! - disse ao passar atrás
de Giovanni um homem com avental azul.
Quatro ou cinco pessoas que estavam por perto, sem dizer
nada e nem virar a cabeça, responderam com uma risadinha
marota.
Giovanni foi tirando os caracteres, enquanto esfregava os olhos
repetidas vezes.
Pouco depois das seis já tinha a caixa plana cheia de
caracteres. Depois de compará-los com a folha de papel que
sustinha na mão, levou a caixa ao mesmo homem, ainda sentado
em frente à escrivaninha, que a recebeu em silêncio, assentindo
levemente.
Giovanni, após cumprimentá-lo, abriu a porta e se dirigiu ao
caixa, onde um homem vestido de branco lhe entregou, também
sem dizer nada, uma pequena moeda de prata.
Com a face iluminada, Giovanni pegou a sua carteira, colocada
sob o balcão, e se precipitou, contente, para fora. Logo, assoviando
alegremente, se aproximou da padaria, comprou uma barra de pão
e um saco de torrões de açúcar e saiu correndo a toda velocidade.
Em casa
O lugar ao qual Giovanni se dirigiu tão contente era uma
casinha em uma rua secundária. Das três entradas alinhadas, a da
sua casa era a que estava mais à esquerda. Frente a ela havia
repolhos ornamentais, crespos e roxos, e aspargos plantados em
velhas caixas de madeira. As duas pequenas janelas tinham seus
toldos abertos.
- Mãe, já voltei - disse Giovanni enquanto tirava os sapatos na
entrada da casa - Como a senhora passou hoje?
- Ah, Giovanni! Está cansado, não? Hoje estava fresco e me
senti bem o dia todo.
Giovanni entrou em casa. No quarto contíguo à entrada, usando
uma touca branca, sua mãe descansava.
Giovanni abriu a janela.
- Mãe, hoje comprei torrões de açúcar. Pensei em colocá-los
logo no seu leite.
- Primeiro descanse um pouco. Eu ainda não quero tomar nada.
- Quando a minha irmã voltou?
- Lá pelas três. Já fez todas as tarefas domésticas.
- Ainda não trouxeram o leite, não é?
- Ah, é mesmo. Parece que não o trouxeram.
- Então, eu vou buscá-lo.
- Não tem pressa, descanse primeiro. Sua irmã preparou algo
com tomates e deixou ali.
- Bem, então vou comer.
Giovanni pegou o prato, colocado no anteparo da janela, e,
junto com um pedaço de pão, comeu tudo com avidez.
- Sabe, mãe? Creio que o pai vai voltar logo.
- Ah, eu também acho! Mas, explica-me, por que o dizes?
- É porque o jornal desta manhã dizia que a pesca no norte foi
muito boa este ano.
- Mas talvez o seu pai não esteja pescando...
- Tenho certeza que saiu para pescar. O pai não fez nada de
mal para ser preso. Na última vez que voltou trouxe de presente
para a escola uma enorme casca de caranguejo e uns chifres de
rena. Estão guardados na sala de ciências. O professor os utiliza
com frequência nas aulas do sexto ano.
- Seu pai disse que da próxima vez te traria uma jaqueta de
pele de lontra marinha, lembra-se?
- Sim... Quando me veem todos dizem o mesmo. O dizem
zombando de mim.
- Zombam de ti?
- Sim, mas Campanella nunca o faz. Quando os outros me
dizem essas coisas, parece que fica com pena.
- O pai de Campanella e o seu, como vocês, eram bons amigos
desde pequenos.
- Claro, por isso papai de vez em quando me levava à casa de
Campanella. Eram bons tempos aqueles. Às vezes, no caminho de
volta da escola, íamos à sua casa. Tinha um trem que funcionava
com álcool. Juntando sete trilhos se podia formar um círculo.
Também tinha postes elétricos e semáforos, que só ficavam verdes
quando o trem passava. Uma vez, quando acabou o álcool, usamos
óleo, e a locomotiva se encheu de fuligem.
- De verdade?
- Ainda levo o jornal toda manhã à sua casa. Mas a casa
sempre está em completo silêncio.
- Claro, pois é muito cedo.
- Possuem um cão que se chama Sauer. Seu rabo é idêntico a
uma escova. Quando vou para lá sempre se aproxima para me
cheirar. Me segue até a esquina, às vezes até mais longe. Esta noite
todos irão ao rio para lançar as lanterninhas para flutuar e
certamente o cão os acompanhará.
- Ah, é verdade, esta é a noite da Festa das Estrelas.
- Sim. Quando for buscar o leite vou passar lá para ver.
- Bem, vá. Mas não se meta no rio.
- Não. Só olharei da margem. Estarei de volta em menos de
uma hora.
- Fique se divertindo um pouco mais. Se vai com Campanella,
estarei tranquila.
- Claro que estaremos juntos. A senhora quer que eu feche a
janela?
- Sim, será melhor que a feche. Já esfriou.
Giovanni se levantou e fechou a janela. Recolheu seu prato e a
bolsa do pão.
- Volto dentro de uma hora e meia! - disse contente da entrada,
enquanto colocava os sapatos e saía pelo portão, já envolto na
escuridão.
A noite da Festa das Estrelas
A expressão de Giovanni, ao descer rumo ao povoado pela
ladeira margeada de negros ciprestes, se tornara triste e solitária.
No final dela havia uma lanterna, que brilhava com uma bonita
luz pálida. Giovanni, pouco a pouco, foi se aproximando. Sua
sombra, que até então o havia seguido, grande e borrada como um
fantasma, foi se tornando mais escura e definida. Levantando as
pernas e balançando os braços, girou até avançar ao seu lado.
- Sou uma locomotiva - pensou - vou rápido porque isto é uma
ladeira. Agora estou passando esta lanterna. Toma! Minha sombra
girou como uma bússola e parou diante de mim.
Giovanni, enquanto pensava nisto, caminhava a largos passos
e, justo quando havia deixado atrás a lanterna, Zanelli, o daquela
manhã, vestido com uma camisa nova de colarinho pontiagudo,
apareceu por uma ruazinha e cruzou o seu caminho.
- Zanelli, você vai ao rio para lançar lanterninhas para flutuar? -
ia dizer Giovanni, quando o outro menino falou:
- Giovanni, seu pai vai te trazer uma jaqueta de lontra marinha!
Este ficou paralisado, como se um barulho ensurdecedor
houvesse invadido o ar.
E, ainda que de surpresa, lhe respondeu gritando: “Atreve-te a
repeti-lo, Zanelli!” Mas o garoto já havia desaparecido dentro de
uma casa, rodeada por uma cerca de ciprestes.
- Por que Zanelli me diz essas coisas se eu não lhe fiz nada?
Quando sai correndo parece um rato. Se me diz essas coisas sem
motivo é porque é tonto.
Giovanni, ocupado com esses pensamentos, ia caminhando
pela rua, esplendidamente adornada com luzes coloridas e ramos
verdes.
A relojoaria estava iluminada por uma brilhante luz de néon. Na
vitrina havia uma coruja de pedra cujos olhos vermelhos se moviam
da direita à esquerda marcando os segundos. Sobre o mostrador de
vidro da cor do mar, algumas joias giravam lentamente e pareciam
estrelas. Do outro lado do mostrador, um centauro de cobre girava
vagarosamente e foi se aproximando do local onde se encontrava
Giovanni. Bem no centro se podia ver um globo terrestre, redondo e
negro, enfeitado com folhas verdes de aspargo.
Giovanni se esqueceu de tudo, absorto na contemplação
daquele globo.
Ainda que fosse muito menor do que o mapa que havia visto
pela manhã na escola, estava feito de tal maneira que, girando-se a
esfera para ajustar o dia e a hora certos, se podia ver o céu, tal
como estava nesse momento, dentro de um recipiente oval.
No céu de hoje, certamente, podia-se ver a Via Láctea, que se
estendia como uma franja indefinida e nebulosa. Na sua parte
inferior havia uma zona onde parecia ter ocorrido uma pequena
explosão e ficado flutuando uma nuvem de vapor.
Por trás de tudo isso, um pequeno telescópio montado sobre
um tripé brilhava com uma luz amarelada. Ao fundo, preso à parede,
havia um grande mapa com todas as galáxias, representadas com
formas de animais estranhos, tais como serpentes, tartarugas e
muitos outros.
Giovanni ficou admirando enquanto se perguntava se o céu
estaria na realidade cheio de galáxias como a do Escorpião, do
Caçador ... e pensava: “Ah, como gostaria de viajar entre elas para
sempre!”.
Por um momento, ficou ali de pé, absorto nessas reflexões.
De repente, lembrou-se do leite para a mãe e se pôs em
marcha, distanciando-se da loja.
Apesar de notar que a jaqueta começara a ficar pequena e a
apertar os ombros, estufou o peito de propósito e, balançando os
braços vigorosamente, continuou caminhando através do povoado.
O ar percorria as ruas, transparente como a água. Em frente às
lojas, as lanternas estavam adornadas com ramos verdes de abeto
e carvalho. Os seis plátanos alinhados diante da companhia elétrica
estavam repletos de luzes, de maneira que o lugar parecia o Reino
das Sereias.
Todas as crianças, com as roupas bem passadas, assoviavam
a Canção das Estrelas e, enquanto gritavam “Centauro, faça cair o
orvalho!”, corriam, acendiam fogos artificiais azuis de magnésio e
pareciam estar se divertindo muito.
Giovanni, que em algum momento havia tornado a ficar
cabisbaixo, pensando em algo muito distinto da algazarra reinante,
se apressou rumo à leiteria.
Antes de dar-se conta já havia chegado aos limites do povoado,
onde inumeráveis álamos se perfilavam contra o céu estrelado,
como se flutuassem nele.
Entrou pela escura porta da leiteria e, de pé, frente à cozinha
que cheirava a gado, tirou o chapéu e saudou com um enérgico
“Boa noite!”.
Contudo, a casa estava em completo silêncio e parecia não
haver ninguém.
Giovanni voltou a dizer “Boa noite! Há alguém em casa?”, ainda
de pé e bem ereto.
Pouco depois, uma velha, que parecia não estar muito bem, se
aproximou devagar, murmurando algo entre os dentes.
- Hoje não levaram o leite em casa, por isso vim buscá-lo -
disse Giovanni.
- Agora não há ninguém. Volte amanhã - respondeu a velha,
olhando-o enquanto esfregava os seus avermelhados olhos.
- Minha mãe está doente e necessitamos esta noite.
- Bem, então volte daqui a pouco - disse ela, que parecia a
ponto de regressar por onde havia chegado.
- Ah, sim? Muito obrigado! - disse Giovanni, que, depois de
cumprimentá-la, saiu da cozinha.
Ao dobrar a esquina do cruzamento, à altura da venda junto à
ponte, viu que se aproximavam, em uma confusão de sombras
negras e tênues camisas brancas, seis ou sete estudantes,
assoviando e rindo. Cada um deles levava uma lanterninha.
Estas risadas e canções lhe eram familiares: eram as de seus
companheiros de classe, Giovanni, surpreso, ia dar meia volta, mas
mudou de ideia e continuou o seu caminho com passo decidido.
Ainda que sentisse um ligeiro nó na garganta, ia dizer-lhes “Vão
ao rio?”, quando Zanelli voltou a gritar-lhe o mesmo de antes:
- Giovanni, seu pai vai te trazer uma jaqueta de lontra marinha!
Então todos o imitaram gritando:
- Giovanni, seu pai vai te trazer uma jaqueta de lontra marinha!
Giovanni, corando violentamente e já sem saber nem por onde
andava, ia passar longe com toda a pressa quando se deu conta de
que Campanella estava entre eles. Este, que parecia sentir um
pouco de pena dele, olhou para Giovanni e lhe sorriu em silêncio,
como dizendo: “Não se aborrece, não é?”
Evitando o seu olhar, Giovanni deixou para trás a alta figura de
Campanella. Então todos se puseram a assoviar, cada um por seu
lado.
Ao dobrar a esquina, Giovanni se virou para olhar e percebeu
que Zanelli também havia feito o mesmo. Campanella, que se
pusera a assoviar fortemente, correu para a ponte envolta pela
névoa.
Giovanni, sentindo-se indescritivelmente só, de repente
começou a correr. Umas crianças pequenas que, tapando as
orelhas com as mãos, saltavam em uma perna só pensaram que
Giovanni corria para brincar e por um momento o seguiram,
gritando.
Giovanni continuou correndo e correndo.
Mas em lugar de subir reto pela colina rumo à sua casa, se
dirigiu ao norte, para fora do povoado. Uma pequena ponte, com um
parapeito delgado, cruzava um riacho que corria entre margens
esbranquiçadas e borradas.
Giovanni se deteve na ponte e, com a respiração acelerada, se
pôs a assoviar entrecortadamente para enganar a sua vontade de
chorar.
- Não tenho com quem brincar, todos me olham como se eu
fosse um bicho esquisito - pensou.
Mas em seguida voltou a sair correndo com todas as suas
forças em direção à negra colina.
A coluna dos desejos
Atrás da granja, a encosta da colina se fazia suave e sobre seu
escuro e plano topo se via, vagamente e mais baixa que de costume
no céu do norte, a Ursa Maior.
Giovanni foi subindo pelo pequeno caminho do bosque, já
coberto de orvalho, que, abrindo passagem entre a negra relva e os
arbustos de distintas formas, resplandecia como uma linha branca
sob a luz das estrelas.
Entre a relva, alguns insetos brilhavam com uma luz azulada e
algumas folhas pareciam de um verde translúcido. Giovanni pensou
que eram como as lanternas que antes as pessoas haviam levado
ao rio.
Ao cruzar o escuro bosque de pinheiros e carvalhos, Giovanni
viu de repente o céu aberto e nele a Via Láctea, que se estendia
esbranquiçada do norte ao sul.
No topo da colina se erguia a Coluna dos Desejos. Ao seu redor
floresciam campainhas e crisântemos silvestres, exalando o seu
perfume como em um sonho. Um pássaro sobrevoou a colina
cantando.
Giovanni subiu até chegar ao topo e, justo ao pé da Coluna dos
Desejos, largou seu corpo cansado sobre a relva fresca.
As luzes do povoado, lá embaixo, em meio à escuridão,
pareciam as de um palácio no fundo do mar. De vez em quando lhe
chegavam debilmente as canções, assovios e risadas das crianças.
O vento soprava ao longe, a relva da colina se balançava
suavemente e Giovanni, que tinha a camisa empapada de suor,
começou a se sentir refrescado.
O barulho de um trem chegou da planície. Se via a fileira de
janelas pequenas e avermelhadas dos vagões. E através delas
muitos viajantes, que descascavam maçãs e conversavam
animadamente. Giovanni, tentando imaginar o que estariam fazendo
aquelas pessoas, sentiu-se de novo invadido pela tristeza e levantou
a vista para o céu.
Por muito que olhasse, não podia crer que aquele céu era um
lugar deserto e frio como havia dito o professor. Ao contrário, quanto
mais olhava, mais pensava que se parecia ao campo, com seus
pequenos bosques, suas granjas...
Ante os olhos de Giovanni, a azulada estrela Vega parecia
dividida em três ou quatro pontos brilhantes, estendendo e
encolhendo seus braços ou tomando a forma alongada de um
cogumelo. Inclusive o povoado que se via lá embaixo começou a
tomar o aspecto de um borroso grupo de estrelas ou de uma grande
nuvem de fumaça.
A estação da Via Láctea
Giovanni viu que a Coluna dos Desejos, situada bem atrás dele,
em algum momento se convertera em uma baliza de agrimensura
que se acendeu e apagou como um vaga-lume. Pouco a pouco
tomou uma forma mais definida até que, ao final, se tornou uma
silhueta clara e imóvel contra o céu azul escuro, que parecia uma
folha de metal recém-fundida.
De algum lugar, então, chegou uma estranha voz que dizia:
“Estação da Via Láctea, Estação da Via Láctea”. Nesse mesmo
instante tudo se iluminou, como se a luz de um número infinito de
lulas-vaga-lume[1] tivesse se tornado fixa no fundo do céu ou como
se um comerciante de diamantes, pretextando escassez para evitar
que baixassem o seu preço, houvesse escondido grande quantidade
deles que, subitamente derramadas por alguém, brilhassem com
todo o seu esplendor. Giovanni esfregou várias vezes os olhos e
ficou aturdido.
Quando voltou a si, já fazia um tempo que o pequeno trem
estava sacolejando. Ali estava sentado Giovanni, olhando pela
janela, em um compartimento desse trem noturno, iluminado por
uma luz amarelada.
No vagão, os assentos forrados de veludo azul estavam quase
todos desocupados e na parede oposta, pintada de cinza,
resplandeciam dois botões de latão.
Giovanni se deu conta de que no assento da frente um menino
alto, vestido com uma jaqueta negra que brilhava como se estivesse
molhada, havia colocado a cabeça pela janela e estava olhando
para fora.
Como algo em seu aspecto lhe parecia familiar quis saber a
todo custo de quem se tratava.
Ia colocar também a cabeça pela janela quando o menino
retirou a sua e olhou para onde estava.
Era Campanella.
Giovanni ia perguntar-lhe: “Campanella, desde quando está
aqui?” - quando este disse:
- Todos se apressaram muito, mas chegaram tarde. Também
Zanelli, apesar de ter corrido com todas as suas forças, não
conseguiu tomar o trem.
Ah, claro! Tínhamos que ir todos juntos - pensou Giovanni.
- Podemos esperá-los em alguma parte, não? - propôs.
Mas Campanella respondeu:
- Já não há necessidade. Zanelli voltou para a sua casa. Seu
pai foi buscá-lo.
Ao dizer isto, ficou um pouco pálido, como se de repente algum
pensamento triste o tivesse atormentado, Giovanni, com a estranha
sensação de que não entendia nada, permaneceu calado.
Contudo, Campanella logo se recuperou e, olhando pela janela,
exclamou muito animado:
- Puxa, esqueci o meu cantil. E também meu caderno de
desenho! Mas não importa. Logo estaremos na Estação dos Cisnes.
Morro de vontade de vê-los. Certamente se voarem ao longe, sobre
o rio, poderemos vê-los.
Campanella estava olhando um mapa em forma de tábua
redonda e o girava sem parar.
Obviamente, ali se podia ver representada a linha do trem, que
corria pela margem esquerda da Via Láctea em direção ao sul.
Mas o fantástico deste mapa era que cada parada e baliza,
cada rio, lago e bosque se destacava sobre o seu fundo, negro
como a noite, em forma de luzes incrustradas, azuis, alaranjadas ou
verdes.
A Giovanni lhe deu a impressão que já havia visto aquele mapa
em alguma parte.
- Onde comprou este mapa? - perguntou - É feito de feldspato,
não?
- Me deram na Estação da Via Láctea. Não deram um para
você?
- Não estou seguro de ter passado pela Estação da Via Láctea.
Estamos aqui agora? - disse Giovanni, assinalando um ponto um
pouco mais ao norte da Estação dos Cisnes.
- É sim. Veja! Será a luz da lua aquilo que brilha no leito do rio?
Ao olhar para lá, viram que a margem da Via Láctea, brilhando
com uma luz tênue, estava coberta de susuki[2], que sussurravam e
balançavam com o vento, formando ondas prateadas.
- Não é a luz da lua. Brilha assim porque é a Via Láctea.
Enquanto dizia isto, Giovanni sentia que podia ter pulado de
alegria. Sapateando e colocando a cabeça pela janela, assoviava
muito, muito alta a Canção das Estrelas, estirando-se o mais
possível para ver toda a água da Via Láctea. A princípio não pôde
lográ-lo, mas, pouco a pouco, foi se dando conta de que a água,
mais clara que o cristal e o hidrogênio, fluía em silêncio. Nela se
formavam pequenas ondas, que por momentos pareciam uma
ilusão, cintilando de cor violeta ou com todas as cores do arco-íris,
enquanto que por toda a extensa planície se levantavam balizas
iluminadas com uma bela luz fosforescente.
As distantes se viam pequenas, as próximas grandes, aquelas
definidas de cor alaranjada ou amarela, estas claras e algo
borradas. Algumas eram triangulares, outras retangulares, em forma
de ziguezague ou de corrente. Havia um grande número delas, que
brilhavam dispersas por toda a planície. Ao vê-las, sentia como se a
cabeça estivesse girando. Então pareceu que todas as belas luzes
de cor azul ou alaranjada, assim como as distintas balizas, que
piscavam e se balançavam, houvessem adquirido vida de repente.
- Estou realmente nas planícies celestes!- disse Giovanni.
- A propósito, parece que este trem não funciona com carvão,
não? - perguntou com a mão esquerda fora da janela e olhando
para frente.
- Deve funcionar com álcool ou eletricidade - disse Campanella.
Então, a título de resposta, de alguma parte lhes chegou uma
voz, ressonante como um violoncelo:
- Este trem não funciona nem a vapor nem a eletricidade. Move-
se porque está decidido que se mova. Vocês pensam que sacoleja
como um trem, mas é apenas porque até agora estavam
acostumados a trens que o fizessem.
- Já ouvi esta voz em algum lugar.
- Eu também, talvez no bosque e na margem do rio.
Sacolejando, sacolejando, o pequeno trem continuava a sua
marcha entre os susuki que balançavam ao vento, junto à água da
Via Láctea e o brilho pálido das balizas. Avançando e avançando
sem parar...
- Veja, as gencianas já floresceram! Já estamos em pleno
outono - disse Campanella, assinalando para fora através da janela.
Entre a curta relva que margeava a linha, as gencianas
apareciam com uma esplêndida cor violeta claro, como se
houvessem sido talhadas em água-marinha.
- Quer que te mostre como desço, colho algumas flores e volto
a subir? - disse Giovanni, cheio de entusiasmo.
- Tarde demais! Veja como as deixamos para trás.
Apenas Campanella havia acabado de dizer isso, já haviam
passado por outro canteiro de esplêndidas flores.
Mais e mais gencianas, com o fundo do seu cálice amarelo,
foram cruzando ante seus olhos como se fossem uma chuva,
enquanto que as fileiras de balizas, algumas borradas, outras
definidas, brilhavam cada vez com mais intensidade.
O Cruzeiro do Norte e a Costa do
Plioceno
- Minha mãe me perdoará? - disse de repente Campanella,
gaguejando um pouco. Giovanni pensou: “Ah, claro! Minha mãe está
perto daquela baliza alaranjada que se vê bem distante, pequena
como um grão de poeira, e certamente se lembrará de mim”. Sem
responder, compenetrou-se mais ainda em seus pensamentos.
- De verdade que faria qualquer coisa que pudesse fazer feliz a
minha mãe. Mas, o que poderia fazê-la verdadeiramente feliz?
Enquanto dizia isso, Campanella estava fazendo um esforço
por conter as lágrimas.
- Mas não aconteceu nada com a sua mãe, não é? - exclamou
Giovanni surpreso, sem compreender a que se referia seu amigo.
- Não sei. Mas todo mundo quando faz algo bom se sente feliz,
não é verdade? Por isso, creio que a minha mãe me perdoará -
disse Campanella, que pareceu enfim haver chegado a uma
conclusão.
Inesperadamente, o interior do vagão se iluminou com uma luz
branca. Sobre o leito da Via Láctea, que passava sem barulho e
sem forma, resplandecente como se houvesse unido o brilho dos
diamantes ao orvalho caído sobre a relva, se podia ver uma ilha
rodeada de uma auréola clara.
Sobre seu suave topo se levantava uma magnífica cruz branca,
tão branca como se houvesse sido talhada em uma nuvem gelada
do Polo Norte e envolta por um halo dourado que girava em silêncio
eterno.
- Aleluia! Aleluia! - se ouviam as vozes, que lhes chegavam de
todas as direções.
Ao olhar ao seu redor, viram que os viajantes de seu vagão
haviam se colocado de pé . As pregas de suas roupas caíam retas.
Com uma bíblia negra apertada contra o peito e um rosário de cristal
entre as suas mãos unidas, rezavam com devoção.
Sem dar-se conta, os dois também se colocaram de pé.
As bochechas de Campanella brilhavam, vermelhas como uma
maçã madura.
Pouco a pouco, a ilha e a cruz foram ficando para trás.
Na margem oposta, que brilhava com uma luz difusa e pálida,
parecia que os susuki que ondeavam ao vento se embaciassem por
instantes. As abundantes gencianas se escondiam entre a relva e
voltavam a aparecer, como se fossem delicados fogos fátuos.
A Ilha dos Cisnes, oculta pelos susuki que cresciam entre o rio
e o trem, pôde ser vista momentaneamente algumas vezes, mas
logo ficou bem para trás, pequena como uma pintura, e se perdeu
de vista entre as sussurrantes folhagens.
Por trás de Giovanni, uma alta freira católica, coberta com um
véu negro, havia subido no trem em algum momento, em silêncio.
Com suas redondas e verdes pupilas olhando fixamente para frente,
parecia estar ouvindo discretamente palavras ou vozes distantes.
Os viajantes já haviam voltado aos seus assentos sem fazer
ruído. Ambos se puseram a conversar em voz baixa, com o coração
cheio de uma nova e estranha sensação.
- Logo chegaremos à Estação dos Cisnes, não?
- Sim, chegaremos às onze em ponto.
As luzes verdes dos sinaleiros e dos postes, brancos e
borrados, passavam rapidamente ante a janela. Logo as luzes das
alavancas de manobra, débeis e imprecisas, também apareceram
como chamas de enxofre. Pouco a pouco o trem foi reduzindo a sua
velocidade. Em seguida apareceram as belas lanternas da estação,
perfeitamente alinhadas, que foram ficando cada vez maiores e
separando-se. Quando o trem parou, ambos ficaram bem em frente
ao grande relógio da estação.
Em sua esfera se refletia a luz do fresco dia de outono e as
agulhas metálicas azuladas marcavam onze horas em ponto. Todos
baixaram ao mesmo tempo, e o trem ficou vazio.
“Vinte minutos de parada”, indicava um letreiro sob o relógio.
- Vamos descer também! - disse Giovanni.
- Sim, desçamos!
Os dois se levantaram ao mesmo tempo de um salto, cruzaram
a porta rapidamente e foram correndo para a guarita do bilheteiro.
Ali brilhava uma luz violeta, mas não havia ninguém. Olhassem por
onde olhassem não havia rastro nem dos rapazes nem do chefe da
estação.
Frente à estação havia uma pequena praça, rodeada de
árvores de gingko[3] que pareciam talhadas em cristal de rocha. Um
amplo caminho partia dela, reto, rumo à pálida luz da Via Láctea.
As pessoas que haviam descido antes do trem já não podiam
ser vistas em nenhuma parte.
Giovanni e Campanella avançaram, um ao lado do outro, pelo
caminho. Suas sombras foram tomando distintas formas, como as
de duas colunas em um quarto com janelas nas quatro direções, ou
como os múltiplos raios de duas rodas. Em pouco tempo já haviam
chegado ao belo leito do rio que haviam visto do trem.
Campanella pegou um punhado de sua areia brilhante e,
estendendo-a sobre a palma da mão, a fez estalar com os dedos.
- Esta areia é de cristal de rocha - disse, como se estivesse em
um sonho - Como se dentro de cada grãozinho brilhasse uma
chama de fogo.
- Ah, é verdade ... - respondeu distraidamente Giovanni,
perguntando-se onde o amigo havia aprendido essas coisas.
Na margem do rio, as pedrinhas eram todas transparentes, sem
dúvida de cristal de rocha e topázio. As dobras dos estratos se
haviam feito visíveis e em suas bordas brilhavam suavemente as
ametistas.
Giovanni foi correndo até a beira da água e submergiu as mãos.
A água misteriosa da Via Láctea era mais transparente que o
hidrogênio, mas apesar disso estava bem claro que corria, já que
pareceu adquirir uma ligeira cor de mercúrio e se formaram
pequenas ondas, que se chocaram contra as suas mãos e brilharam
como uma bonita luz fosforescente, como se estivessem ardendo.
Mais para cima do rio, ao pé de um barranco coberto de susuki,
viram uma rocha branca, plana como uma quadra de esportes, que
se estendia paralela ao rio. Ali se distinguiam as silhuetas de cinco
ou seis pessoas. Parecia que estavam enterrando ou desenterrando
algo, já que se levantavam e agachavam sem parar e, de vez em
quando, alguma ferramenta lançava um reflexo.
- Vamos ver? - gritaram os dois ao mesmo tempo e se dirigiram
para lá correndo.
Na entrada do lugar onde se encontrava a rocha branca, um
lustroso letreiro de cerâmica dizia “Praia do Plioceno”. Beirando a
praia, levantava-se uma fina cerca metálica e aqui e ali haviam
bonitos bancos de madeira.
- Veja que coisas mais estranhas - disse Campanella, detendo-
se para recolher algo que parecia uma noz negra com a
extremidade pontiaguda.
- É uma noz. Há um monte delas. A correnteza não as arrastou,
estão dentro da rocha.
- Que enormes! Têm o dobro do tamanho das normais. Veja,
esta está intacta.
- Vamos rápido para lá. É certo que estão desenterrando algo.
Levando as negras e enrugadas nozes, continuaram
aproximando-se do local.
À esquerda, na praia, as ondas ardiam delicadamente como
pequenos relâmpagos e, à sua direita, no barranco, os susuki, que
pareciam de prata e de nácar, balançavam ao vento.
Ao se aproximarem, viram um homem alto, com grossas lentes
de míope e botas, que parecia um cientista. Estava compenetrado
tomando notas em seu caderno e dando instruções a três homens,
sem dúvida seus ajudantes, que trabalhavam com enxadas e pás.
- Utilizem as pás de modo que não rompam esta saliência.
Essas pás! Mais longe, cave um pouco mais longe! Não, assim, não!
Por que não toma mais cuidado?
Dentro daquela branda rocha de cor branca encontravam-se
ossos esbranquiçados de um animal enorme que havia sido
desenterrado até mais da metade. Parecia que tinha caído para um
lado e se feito em pedaços. Também se deram conta de que uma
rocha, marcada com duas pegadas de casco, tinha sido cortada
cuidadosamente em uns dez blocos, já numerados.
- Vieram fazer uma visita? — perguntou o cientista, lançando
um reflexo com seus óculos quando dirigiu o olhar para eles.
- Encontraram muitas nozes, não? Têm quase um milhão e
duzentos mil anos e não são das mais antigas. Nesse período, ou
seja, no final da era terciária, este lugar era mar, por isso aqui
debaixo também se pode encontrar conchas. No mesmo lugar pelo
qual agora corre o rio, naqueles tempos, subiam e baixavam as
marés de água salgada. Este animal chamado “bos”... Ei, deixe a
enxada! Utilize o cinzel, com cuidado....chamado “bos”, muito
comum naquela época, é de fato um antepassado da vaca de
nossos dias.
- Vai levá-lo a um museu?
- Não, eu estou aqui para recolher dados. Desde o nosso ponto
de vista, e temos muitas provas disso, este é um grosso e magnífico
estrato que data de aproximadamente um milhão e duzentos mil
anos, mas outras pessoas não pensam o mesmo. Quem sabe se
apresentarmos estas provas acreditem, ou quem sabe, todavia,
achem que se tenha convertido em um terreno baldio pela ação do
vento e da água. Entenderam? Mas...eh, eh, ali tampouco utilizem
as pás! Não se dão conta de que justo aí debaixo podem estar
enterradas as costelas?
O cientista saiu disparado para lá.
- Já é hora. Vamos - disse Campanella, após comparar o mapa
com o seu relógio de pulso.
- Ah, é verdade! Temo que já seja hora de voltar - disse
Giovanni e se despediu cortesmente do cientista.
- Já têm que ir? Bem, então até a vista - disse, de novo
ocupado movendo-se de lá para cá dando instruções.
Os dois correram com todas as suas forças sobre a branca
rocha para não perderem o trem. E viram que podiam correr como o
vento, sem perder o fôlego e sem que lhes dobrassem as pernas.
Giovanni pensou que correndo daquele modo poderiam dar a
volta ao mundo.
Avançaram de regresso pelo leito do rio e, à medida que se
aproximavam da estação, a luz da guarita do bilheteiro foi se
fazendo maior e maior. Em pouco tempo já estavam sentados em
seus assentos, olhando pela janela na direção pela qual tinham
vindo.
O cata-pássaros
- Importam-se que me sente aqui? - disse uma voz de pessoa
mais velha, áspera porém afável, que vinha detrás deles.
Tratava-se de um homem vestido com um abrigo marrom um
pouco puído, de ombros encurvados e barba avermelhada, que
levava no ombro um fardo envolto em um pano branco, dividido em
duas metades.
- Em absoluto, por favor... - disse Giovanni, encolhendo um
pouco os ombros a título de cumprimento.
O recém-chegado colocou com calma seu pacote na rede de
bagagem, enquanto sorria levemente atrás de sua barba.
Giovanni, sem saber por que, sentia-se só e triste. Estava
olhando em silêncio o relógio colocado à sua frente, quando ouviu
um som parecido com uma flauta de cristal, que vinha de algum
lugar diante dele. Então o trem se pôs em marcha lentamente.
Campanella percorreu com a vista o teto do vagão. Sobre uma
das luzes havia pousado um escaravelho, e sua enorme sombra se
projetava no teto.
O homem da barba avermelhada, com um sorriso nostálgico,
estava observando o que faziam Giovanni e Campanella.
O trem ia cada vez mais depressa. Através da janela se via
brilhar em um momento o rio, no outro os susuki.
- Para onde vão? - perguntou-lhes o homem de barba
vermelha, um pouco timidamente.
- Em frente, para sempre - respondeu Giovanni, em um tom que
evidenciava a sua pouca vontade de conversar.
- Não está mal. Justo como este trem.
- E você, aonde vai? - perguntou-lhe bruscamente Campanella,
como se procurasse uma discussão, provocando o riso de Giovanni.
Um homem sentado do outro lado do corredor, usando um
chapéu pontiagudo e com uma grande chave presa ao cinto, deu
uma olhada para onde eles estavam e também riu. Campanella,
ruborizando-se, acabou rindo com os demais.
Ainda que não parecesse ter se chateado, o homem respondeu
um pouco nervoso:
- Eu vou descer em seguida, meu trabalho é colher pássaros.
- Que tipo de pássaros?
- Garças e patos selvagens. Também grous e cisnes.
- Há muitos grous?
- Sim, muitos. Já faz um tempo que se ouve. Podem ouvi-los?
- Não.
- No entanto, é possível ouvi-lo. Ouçam com atenção.
Ambos levantaram a vista e aguçaram os ouvidos. Ao sacolejo
do trem se acrescentava o barulho do vento através dos susuki, só
chegando aos seus ouvidos algo parecido ao borbulhar de água
fervendo.
- Como faz para colher as garças?
- As garças, ou quer dizer os grous?
- Os grous, respondeu Giovanni, pensando que dava no
mesmo.
- É muito fácil. Os grous se reúnem nos bancos de areia da Via
Láctea, onde podem relaxar-se já que sempre, voem por onde
voem, regressam ao seu rio de origem. Para colhê-los, espero até
que comecem a baixar, os pego assim, pelos seus pés estendidos, e
logo os jogo contra o solo, onde morrem tranquilamente. Logo,
portanto, a única coisa que se tem de fazer é prensá-los.
- Prensá-los para conservá-los como exemplares de estudo?
- Não, não. Para comê-los, evidentemente.
- Que estranho! - disse Campanella enquanto inclinava o
pescoço com espanto.
- Não há nada de estranho nisso. Vejam - o homem se
levantou, tirou seu fardo da rede de bagagem e o desatou com
movimentos rápidos.
- Vejam. Estão recém-catados.
- Olhem, são grous de verdade! - gritaram os dois sem se dar
conta...
Uns dez grous , tão brancos e brilhantes como o Cruzeiro do
Norte que haviam visto anteriormente, estavam alinhados com o
corpo um pouco achatado e os pés negros encolhidos, de modo que
pareciam um relevo.
- Veja, têm os olhos fechados - disse Campanella, tocando com
delicadeza seus olhos brancos, em forma de meia lua. As penas de
sua crista, também brancas, sobressaíam como pequenas lanças.
- Viram como é verdade? - disse o cata-pássaros, voltando a
amarrar o fardo com um cordão,
- Os grous são saborosos? - perguntou Giovanni, enquanto
pensava em quem poderia comer grous por estes lados.
- Sim, todo dia me fazem pedidos. Mas vendem-se ainda
melhor os patos selvagens. Não só têm uma plumagem mais bonita,
mas também, e isto é o mais importante, não dão nenhum trabalho.
Vejam...
O cata-pássaros abriu o outro pacote. Nele havia vários patos
selvagens, com seu desenho de manchas amarelas e
esbranquiçadas, que pareciam brilhar um pouco. Como os grous de
antes, estavam alinhados com seus corpos um pouco achatados e
os bicos juntos.
- Estes podem ser comidos em seguida. Querem prová-los? -
enquanto dizia isso, tirou com suavidade um dos pés amarelos, que,
como se fosse de chocolate, se desprendeu facilmente.
- Vamos, provem um pouco - disse o cata-pássaros, partindo o
pé em dois e dando um pedaço para cada um.
- Puxa, mas como é doce! É mais saboroso que chocolate. Mas
como é possível que estes patos possam voar? - pensou Giovanni,
após ter provado um pouco - Este homem deve ter uma loja de
doces em algum lugar perto daqui. Mas agora me dá pena comer os
seus doces após ter debochado dele. Apesar dessas reflexões,
continuou mastigando com deleite.
- Comam um pouco mais - disse o cata-pássaros, tirando de
novo o fardo.
- Não, não, muito obrigado - disse Giovanni com prudência,
ainda que com vontade de comer um pouco mais.
Então ofereceu ao homem da chave, que estava sentado do
outro lado do corredor.
- Obrigado, mas os vende para ganhar a vida - disse este,
tirando o chapéu em cortesia.
- De nada, por favor...Como vão as coisas este ano com as
aves migratórias?
- Esplendidamente. Anteontem, durante o segundo turno,
choveram chamadas telefônicas daqui e dali perguntando se havia
alguma avaria. Então lhes disse que não era nenhum problema
nosso, que se tratava de uma nuvem de aves migratórias que
cruzavam diante do farol e não havia nada a fazer. “Melhor que vá
se queixar a esses tipos da capa ao vento, com bico e pernas
longas e finas.” - Foi isso o que eu disse! - sorriu o faroleiro.
Já haviam deixado para trás os susuki e lhes chegaram os raios
de luz do campo aberto.
- Por que os grous dão mais trabalho? - perguntou por fim
Campanella, após pensar um pouco.
- Para que possam ser comidos - disse o cata-pássaros,
voltando-se para ele - é necessário pendurá-los durante dez dias
sob a Luz da Via Láctea ou senão enterrá-los durante três ou quatro
dias na areia, de modo que se evapore todo o mercúrio.
- Estes não são pássaros de verdade. São apenas doce, não? -
decidiu-se a perguntar Campanella, que havia estado pensando o
mesmo que Giovanni.
De repente, o cata-pássaros pareceu ter muita pressa e
enquanto dizia “Assim é. Ehhh..., eu tenho que descer aqui”,
levantou-se, recolheu o seu fardo e antes que pudessem dar-se
conta já havia se perdido de vista.
- Onde terá ido? - se perguntaram ambos olhando-se.
O faroleiro, rindo com picardia e se esticando um pouco, olhou
pela janela situada ao lado de ambos. Ao olhar para lá, puderam ver
sobre as sempre-vivas, que cobriam a margem do rio e brilhavam
com uma bela luz fosforescente de cor amarelo claro, que o cata-
pássaros, de pé com a expressão séria e os braços abertos, estava
olhando fixamente para o céu.
- Vejam, ali está! Que estranho, não? É claro que vai colher
pássaros de novo. Espero que desçam logo, antes que o trem se
coloque em marcha.
Mal havia dito isso quando do céu violáceo começaram a cair
planando, como se fossem neve, e com grande algazarra, grous
idênticos aos que haviam visto.
Então o cata-pássaros, de pé com as pernas abertas e o olhar
satisfeito, ia colhendo com as mãos os negros pés encolhidos dos
grous que desciam, metendo-os um após outro no seu saco de
pano.
Os grous brilharam dentro do saco por um momento com uma
luz suave, acendendo-se e apagando-se brevemente, como vaga-
lumes. Por fim, tomaram uma cor branca difusa e fecharam os
olhos.
No entanto, o número de pássaros apanhados era muito inferior
ao dos que aterrissavam sãos e salvos sobre a areia da Via Láctea.
No momento em que seus pés tocavam a areia, se encolhiam e se
achatavam, espalhando-se sobre a areia e as pequenas pedras
como neve que se derretesse ou como cobre fundido recém-saído
do forno. Por um instante, suas formas permaneciam sobre a areia,
mas, depois de acender-se e apagar-se algumas poucas vezes,
voltavam à mesma cor anterior.
O cata-pássaros guardou uns vinte grous em seu saco e de
repente, levantando os braços, permaneceu imóvel em uma posição
semelhante a de um soldado atingido por uma bala.
Em um abrir e fechar de olhos já havia desaparecido, e
Giovanni pôde ouvir uma voz familiar ao seu lado.
- Ah, que satisfação! Não há nada como trabalhar exatamente o
necessário.
Ao olhar para lá, viu que o cata-pássaros já havia ordenado e
amontoado cuidadosamente os grous apanhados.
- Como fez para voltar tão rápido? - perguntou-lhe Giovanni,
que, confuso, não sabia se devia surpreender-se ou não.
- Como? Muito simples, quando quis voltar, voltei. E vocês, de
onde vêm?
Giovanni ia responder em seguida, mas não conseguiu se
lembrar de forma nenhuma. Campanella também, corando pelo
esforço, tentava recordar-se.
- De muito longe, não? - disse simplesmente o cata-pássaros,
assentindo como se tivesse entendido.
O bilhete de Giovanni
- Aqui terminou a zona dos cisnes. Vejam, este é o famoso
observatório de Albileus.
Através da janela, no meio da Via Láctea, que parecia coberta
de fogos artificiais, podia se ver quatro grandes edifícios negros. No
telhado de um deles, duas grandes esferas transparentes, uma
safira e um topázio de assombrosa beleza, giravam lentamente,
A amarela foi se distanciando e a azul se aproximando e logo
se superpuseram dando lugar a uma bonita lente convexa de cor
verde, cujo centro foi se expandindo até que a safira, menor, deixou
ver o topázio, formando um centro verde com um círculo amarelo ao
seu redor. Logo a safira se distanciou e se repetiu a forma de lente
anterior de maneira inversa. Finalmente se separaram,
distanciando-se a safira e aproximando-se o topázio, até ficar como
no início. Rodeados pela água sem forma e sem ruído da Via
Láctea, os observatórios jaziam em silêncio, como se estivessem
adormecidos.
- Aquele é um instrumento para medir a velocidade da água. A
água...
O cata-pássaros apenas havia começado a sua explicação
quando ouviram uma voz que dizia: “Seus bilhetes, por favor”.
O bilheteiro, um homem alto coberto com um gorro vermelho,
estava de pé junto a seus assentos.
O cata-pássaros, em silêncio, tirou um pedacinho de papel. O
bilheteiro deu uma breve olhada, depois da qual, dirigindo a vista
para Giovanni e Campanella, estendeu sua mão movendo os dedos
como se dissesse: “E onde estão os seus?”
Campanella, com toda a naturalidade, sacou um pequeno
bilhete de cor cinza.
Giovanni, preocupado, se remexeu no assento e meteu a mão
no bolso para ver se encontrava alguma coisa. Então descobriu um
pedaço grande de papel dobrado. Pensando “De onde haverá
saído?”, o tirou com toda pressa e viu que se tratava de um pedaço
de papel de cor verde, mais ou menos do tamanho de um cartão
postal, dobrado em quatro.
Como o bilheteiro continuava com a mão estendida, passou-lhe
o papel como último recurso.
Ao vê-lo, o homem se pôs ereto e, após dobrá-lo
cuidadosamente, começou a examiná-lo. Enquanto o fazia ia
arrumando os botões da sua jaqueta. Do seu assento, o faroleiro
também observava o papel com interesse. Giovanni, convencido de
que se tratava de um documento de identidade ou algo parecido,
respirou aliviado.
- Trouxe-o do espaço tridimensional? - lhe perguntou o
bilheteiro.
- Não tenho nem ideia de onde saiu - respondeu Giovanni,
levantando a vista para ele e rindo despreocupadamente.
- Tudo em ordem, muito obrigado. Chegaremos ao Cruzeiro do
Sul aproximadamente à terceira hora - disse o bilheteiro, devolvendo
o bilhete a Giovanni e afastando-se.
Em seguida, Campanella, que esperava uma oportunidade, deu
uma olhada no pedaço de papel.
Giovanni também estava impaciente por vê-lo. O bilhete,
porém, continha apenas uns desenhos negros parecidos com
arabescos, sobre os quais havia impressos uns caracteres
cruciformes. Enquanto o olhavam em silêncio, deu-lhes a impressão
de que iam ser sugados.
O cata-pássaros, dando uma rápida olhada, exclamou:
- Isto é extraordinário! Com este bilhete pode-se ir até mesmo
ao céu. Não só até o céu, mas também a qualquer lugar que
desejar. Com ele se pode fazer uma viagem sem fim neste trem da
Via Láctea, até mais além da incompleta fantasia da quarta
dimensão. Que extraordinário!
- Não entendo nada - respondeu Giovanni ruborizando-se.
Voltou a dobrar seu bilhete e o guardou no bolso.
Giovanni começou a sentir-se incomodado e se pôs a olhar pela
janela junto a Campanella, percebendo também os olhares de
admiração do cata-pássaros.
- Logo chegaremos à Estação das Águias - disse Campanella,
enquanto comparava as três pequenas balizas claras alinhadas na
margem oposta do mapa.
De repente, Giovanni, sem saber por que, sentiu muita pena do
cata-pássaros, sentado ao seu lado.
O cata-pássaros, que colhia garças e mostrava satisfação com
a sua captura, as envolvia em seu fardo branco, lançava olhares de
surpresa ao bilhete das outras pessoas e mostrava rapidamente a
sua admiração... Giovanni quis dar-lhe tudo o que levava, sua
comida, tudo. Se isso pudesse fazê-lo feliz, com prazer estaria de
pé no leito da brilhante Via Láctea, durante cem anos se fosse
necessário, colhendo pássaros para ele. Já não podia permanecer
mais tempo em silêncio. Queria perguntar-lhe o que desejava, mas
pensou que seria demasiado repentino. Enquanto pensava em
como fazê-lo, olhou ao seu redor, mas o cata-pássaros já não
estava ali.
Também os fardos brancos que estavam sobre a rede de
bagagem haviam desaparecido.
Pensando que deveria estar lá fora, bem plantado, olhando
para cima, pronto para colher garças, Giovanni se apressou a dar
uma olhada pela janela, mas só pôde ver a bonita areia e os susuki
ondulando ao vento. Os largos ombros e o chapéu pontiagudo do
catapássaros já não podiam ser vistos em parte alguma.
- Para onde terá ido? - disse Campanella, que também parecia
distraído.
- Sim, onde terá ido? Pergunto-me quando voltaremos a vê-lo.
Por que não fui mais amável com ele?
- Eu penso o mesmo.
- Parecia-me que aquele homem era um chato, mas agora me
dá pena.
Giovanni pensou que realmente era a primeira vez que se
sentia tão estranho e dizia tais coisas.
- Eh? Aqui cheira a maçã. Não será porque eu estava agora
pensando em maçãs? - disse Campanella, olhando surpreso ao seu
redor.
- É verdade que cheira a maçã. E também a rosas silvestres -
disse Giovanni, fazendo o mesmo. Sem dúvida o odor das flores
entrava pela janela, mas não era possível, pensou, que houvesse
rosas silvestres no outono.
De repente apareceu um menino, de uns seis anos, de cabelos
negros brilhantes e vestido com uma jaqueta vermelha
desabotoada. Tinha cara de estar muito assustado, de pé, tremendo
violentamente. Ao seu lado, um jovem bem vestido, com um terno
negro e o aspecto de um olmo açoitado pelo vento, o segurava
fortemente pela mão.
- Onde estamos? Que lugar mais bonito!
Uma encantadora menina de uns doze anos, de olhos
castanhos, vestida com uma capa negra, se apoiava no braço do
jovem e olhava maravilhada pela janela.
- Isto é Lancashire. Ah, não! É Connecticut. Ah, tampouco! Isto
é o céu. Nós vamos para o céu. Vejam este sinal: é o sinal do céu.
Já não temos nada a temer. Fomos chamados por deus - disse às
crianças o jovem vestido de negro, radiante de alegria.
Mas, de repente, por algum motivo, sua fronte se cobriu de
sulcos e pareceu muito cansado. Fazendo um esforço por sorrir, fez
o menino pequeno sentar ao lado de Giovanni.
Logo ofereceu com delicadeza o assento situado ao lado de
Campanella à menina, e esta, docilmente, sentou-se juntando as
mãos com polidez.
- Eu quero ir onde está a minha irmã e o meu pai - disse o
menino, com uma expressão estranha, dirigindo-se ao jovem, que
acabava de sentar-se frente ao faroleiro.
O jovem, com indescritível tristeza e sem dizer nada, olhou em
silêncio o rosto do menino, envolvido por cachos negros.
A menina, cobrindo o rosto com as mãos, se pôs a chorar em
silêncio.
- Seu pai e sua irmã Kikuyo têm coisas para fazer, mas apesar
disso não tardarão a vir. Mas já pensou em sua mãe? Quanto tempo
terá esperado?
- “Que canção cantará agora o meu querido Tadashi. Em uma
manhã nevada, deve estar brincando de mãos dadas com os seus
amigos, dando voltas entre os arbustos do jardim?” Certamente
estará pensando isso. Vamos rápido, não a faça esperar mais.
- Está bem, ainda que pense que oxalá não tivéssemos tomado
aquele barco.
- É verdade, mas veja como é esplêndido este rio? Lembra-se
de quando no verão, antes de ir dormir, cantavas “Brilha, brilha,
pequena estrelinha” e ao olhar pela janela podias ver algo que
brilhava com uma luz tênue? Pois é aqui. Veja que lindo.
Sua irmã, que ainda chorava, limpou os olhos com um lencinho
e virou-se para fora.
- Para nós já terminou o sofrimento. Logo, ao final desta bonita
viagem, chegaremos à presença de deus. Aquele é um lugar muito
luminoso, cheio de bons odores e gente boa. Sem dúvida todos os
que conseguiram tomar o bote, quando nós não pudemos, estarão a
salvo e logo poderão se reunir aos seus familiares, que os estão
esperando preocupados. Nós também chegaremos logo, por isso
vamos levantar o ânimo e cantar alguma canção.
Enquanto acariciava o cabelo negro e brilhante do menino e
consolava os dois irmãos, o rosto do jovem pouco a pouco foi se
iluminando.
- De onde vêm? O que ocorreu? - perguntou o faroleiro ao
jovem, como se houvesse começado a entender.
O jovem sorriu levemente.
- Estávamos em um barco que afundou ao chocar-se com um
iceberg. Há dois meses, o pai destas crianças teve que voltar antes
ao nosso país devido a um assunto urgente. Eu estava estudando
na universidade e me haviam contratado como tutor. Mas após doze
dias de viagem, creio que hoje ou ontem, o barco se chocou contra
um iceberg e rapidamente inclinou-se e começou a afundar. A lua
brilhava palidamente em alguma parte, mas a névoa era muito
espessa.
Metade dos botes, os situados a bombordo, se havia perdido, e
os que restavam não eram suficientes para todos. O barco ia
afundar a qualquer momento, e, por isso, desesperado, eu gritava
que deixassem subir as crianças.
As pessoas que estavam ao nosso redor logo abriram caminho
e se puseram a rezar por eles. Mas entre nós e os botes, porém,
havia muitas crianças pequenas com os seus pais e não tive
coragem de separá-los. Mesmo assim, pensei que era meu dever
ajudá-los e me dispus a afastar os outros do nosso caminho. De
novo pensei que, em lugar de salvá-los deste modo, seria melhor
para eles que fôssemos todos juntos à presença de deus. Depois,
desobedecendo a vontade de deus, eu, pecador, tentei de todas as
maneiras salvá-los, mas não fui capaz.
Nos botes só havia crianças. E a visão das mães enviando
beijos como loucas e dos pais bem postados tratando de conter seu
sofrimento me partia o coração.
Enquanto o barco afundava rapidamente nos juntamos todos,
resignados com o pior. Eu abracei estas crianças, esperando
somente que o barco acabasse de afundar, decidido a nos manter
flutuando até que fosse possível. Alguém lançou um salva-vidas,
mas quando ia pegá-lo resvalou-me das mãos e o perdi.
Com todas as minhas forças, arranquei uma janela da ponte e
nos agarramos a ela freneticamente. De alguma parte se ouviu o
salmo 306 e, em seguida, todos, em distintas línguas, nos pusemos
a cantar em coro.
De repente, produziu-se um grande ruído e caímos na água.
Pensando que estávamos sendo tragados pelo redemoinho, abracei
fortemente estas duas crianças, cuja mãe havia morrido no ano
passado. E sem nos darmos conta nos encontramos aqui.
Sem dúvida os que estavam nos botes se salvaram. Com
aqueles experientes marinheiros ao remo, puderam afastar-se
rapidamente do barco.
Concluído o relato, ouvia-se gente, ao redor, que suspirava ou
rezava em voz baixa, Giovanni e Campanella, com os olhos
lacrimejantes, recordaram, como entre sonhos, coisas que até o
momento haviam esquecido.
- Ah, esse oceano não era o Pacífico? Em algum lugar no
extremo norte desse oceano, onde os icebergues vão à deriva, em
um barco pequeno e lutando contra o vento, a água do mar gelada e
o frio intenso, há pessoas que estão trabalhando com todas as suas
forças. Quando penso nesta pobre gente me dá muita pena. Que
poderia fazer por sua felicidade?
Giovanni baixou a cabeça e mergulhou em um sombrio estado
de ânimo.
- E o que é a felicidade? - disse o faroleiro para consolá-lo - Por
difícil que seja, se seguimos o caminho reto, seja costa acima ou
costa abaixo, nos aproximamos passo a passo da felicidade.
- Assim é. Só que para alcançar a verdadeira felicidade temos
que passar inúmeros sofrimentos - agregou o jovem com grande
seriedade.
Os dois irmãos, esgotados, haviam dormido reclinados em seus
assentos. Seus pés, antes descalços, agora levavam sapatos de
uma suave pele branca.
Sacolejando, o trem continuou avançando pela borda do
brilhante rio fosforescente. Ao olhar pela janela para a margem
oposta, a planície parecia a projeção de um eslaide.
Havia cem, mil balizas de todos os tamanhos, que se
levantavam aqui e ali, as mais altas com bandeiras de agrimensura
vermelhas em sua parte superior. Em um lugar mais distante da
planície, inúmeras delas haviam se agrupado e brilhavam como uma
tênue névoa. Ali, ou mais longe ainda, por um momento se podia ver
algo parecido a sinais de fumaça de diversas formas que, ora aqui,
ora lá, se levantavam para o céu azul violeta.
O vento, limpo e claro, estava impregnado com perfume de
rosas.
- Vocês não querem uma maçã? Certamente é a primeira vez
que veem uma maçã assim.
O faroleiro, sentado no assento do outro lado do corredor, em
algum momento havia pegado umas grandes maçãs de bonita cor
amarela e vermelha, que segurava com ambas as mãos sobre seus
joelhos para que não caíssem.
- Caramba! De onde saíram essas maçãs? São ótimas. São
cultivadas por aqui? - disse o jovem, realmente surpreendido,
enquanto olhava ensimesmado o monte de maçãs, colocadas sobre
os joelhos do faroleiro, com os olhos semicerrados e o pescoço
inclinado.
- Claro, pegue uma e prove.
O jovem aceitou e lançou um olhar em direção a Giovanni e
Campanella.
- E vocês, garotos? Por que não as provam? - convidou o
faroleiro.
Giovanni, um pouco incomodado porque fora chamado de
garoto, não respondeu. Campanella agradeceu ao faroleiro.
Então, o jovem pegou uma maçã para cada um e lhes entregou.
Giovanni levantou-se e também agradeceu.
O faroleiro, enfim com os braços desocupados, levantou-se e
pôs uma maçã sobre o colo de cada um dos irmãos, que estavam
dormindo.
- Muito obrigado - disse o jovem, observando a fruta com
atenção - Onde se cultivam estas magníficas maçãs?
- Por aqui, claro. Ainda que exista a expectativa que se tenha
uma boa colheita quase sem esforços. De fato, a agricultura não é
nada complicada. Basta semear as plantas desejadas para elas
crescerem por sua conta. Por exemplo, o arroz não tem casca como
o que se cultiva na região do Pacífico, o grão é dez vezes maior e
tem um aroma agradável.
Contudo, no lugar para onde vão já não existe agricultura. E
nem as maçãs e os doces deixam qualquer resíduo. Apenas se
dispersam através dos poros em forma de uma tênue fragrância,
distinta em cada pessoa.
De repente o menino abriu bem os olhos.
- Ah, acabo de sonhar com mamãe! - disse - Estava em um
lugar excelente, cheio de estantes e livros, e, sorrindo, estendia a
mão para mim. Ao dizer-lhe “Mãe, quer que eu traga uma maçã?”,
despertei. Estamos no mesmo trem de antes, não é?
- Pois aqui tens essa maçã. Este senhor te deu - disse o jovem.
- Muito obrigado, senhor. Poxa, Kaoru ainda está dormindo. Vou
despertá-la. Veja, Kaoru, que maçã nos deram! Vamos, desperte!
Sua irmã despertou sorrindo, levou as mãos aos olhos como
que deslumbrada e observou sua maçã.
O menino já estava comendo a sua com deleite. A bonita casca,
tirada com esmero e em forma de espiral, brilhou de forma cinzenta
por um instante e se evaporou antes de cair no chão.
Giovanni e Campanella guardaram com cuidado as maçãs em
seus bolsos.
Corrente abaixo, na margem oposta, apareceu um bosque
grande e frondoso. Os galhos de suas árvores estavam carregados
de abundantes frutas redondas que brilhavam maduras e
vermelhas. No meio deste bosque havia uma baliza muito, muito
alta. E por entre as árvores saía uma música indescritivelmente
bela, que mesclava notas de carrilhão e xilofone. Emotiva e
penetrante, era levada pela brisa.
O jovem estremeceu dos pés à cabeça.
Enquanto ouviam a música em silêncio, surgiu diante deles uma
luminosa pradaria, que parecia uma grande almofada, amarelo-
dourada e verde claro. O orvalho branco como a cera pareceu turvar
a superfície do sol.
- Vejam aqueles corvos! - gritou Kaoru, sentada ao lado de
Campanella.
- Não são corvos, são gralhas! - gritou por sua vez Campanella,
como se a repreendesse. Giovanni não pôde conter o riso, e a
menina pareceu envergonhada.
Com efeito, sobre a luminosa pradaria podia se ver muitos,
muitos pássaros negros, alinhados e imóveis, à tênue luz do rio.
- É verdade, são gralhas. Vê que têm um penacho na parte
posterior da cabeça? - disse o jovem, em tom conciliador.
A baliza que se levantava no meio daquele bosque verde pôde
ser vista agora bem em frente ao trem. Naquele momento, atrás do
trem, ao longe, puderam ouvir a familiar melodia do salmo 306.
Parecia que um grande número de pessoas cantasse em coro.
De repente, o jovem empalideceu e, colocando-se de pé, por
um momento pareceu decidido a ir até lá, mas mudou de opinião e
voltou a sentar-se.
Kaoru cobriu o rosto com o seu lencinho.
Até Giovanni teve uma sensação estranha no nariz. Mas, sem
que ninguém soubesse nem como nem quando, o hino foi tomando
corpo, e logo Giovanni e Campanella, sem se darem conta, haviam
se unido ao coro.
O verde bosque de oliveiras foi ficando para trás, brilhando
tristemente mais além das invisíveis águas da Via Láctea. O
misterioso som dos instrumentos que saía do seu interior foi se
apagando pouco a pouco, até se confundir com o sacolejo do trem e
o barulho da brisa.
- Vejam, uma ave lira! Há uma ave lira! - exclamou o menino.
- Sim, há muitas - respondeu sua irmã - Aquele bosque é onde
vive a Constelação de Lira, não? Creio que nele se encontram
reunidos os membros de alguma grande orquestra do passado.
Giovanni olhou para o bosque, que se havia tornado menor e
menor até parecer um botão verde de nácar. Por instantes, podia se
ver um pálido reflexo das asas da ave lira a se abrir e fechar.
- Tem razão. Era o canto da ave lira o que se ouvia antes -
disse Campanella à menina.
- Sim, pelo menos havia trinta delas - respondeu ela.
De repente, Giovanni sentiu-se imensamente triste e teve que
reprimir a vontade de dizer com uma cara muito séria: “Campanella,
desçamos deste trem e vamos brincar em outro lugar”.
Mas, naquele momento rio abaixo, bem distante, Giovanni viu
algo estranho.
Parecia tratar-se de um objeto longo e delgado, negro e liso,
que saltava fora das águas invisíveis da Via Láctea, tomava forma
de arco e voltava a submergir.
Assombrado, voltou a olhar com atenção e, desta vez mais
perto, pôde ver que ocorria o mesmo novamente. Em um abrir e
fechar de olhos, havia montões destes estranhos objetos negros
que saltavam fora da água, voavam descrevendo um arco e
voltavam a submergir de cabeça. Parecia que estavam remontando
a corrente como peixes.
- Poxa! Que é isto? Veja Tadashi. Há montões deles. Que
podem ser?
O menino, que esfregava os olhos, sonolento, se pôs de pé
surpreso.
- Que poderá ser?- também o jovem se levantou.
- Que peixe mais estranho! Que será?
- São golfinhos - respondeu Campanella, olhando naquela
direção.
- É a primeira vez que vejo golfinhos. Mas isto não é o mar, não
é verdade?
- Os golfinhos não vivem somente no mar...
De novo aquela voz misteriosa e grave lhes chegou de algum
lugar.
Aqueles golfinhos tinham um aspecto realmente estranho.
Saltavam da água com as duas aletas dispostas como mãos dadas
e, com a cabeça inclinada como se fizessem reverência, voltavam a
submergir. Ao fazê-lo, na água invisível da Via Láctea se formavam
ondas que pareciam chamas azuis.
- Os golfinhos são peixes? - perguntou a menina, dirigindo-se a
Campanella. Seu irmão pequeno, esgotado, já havia tornado a
adormecer, apoiando-se no seu assento.
- Os golfinhos não são peixes, São mamíferos como as baleias
- respondeu-lhe Campanella.
- Já viu alguma vez uma baleia?
- Sim, já vi. Claro que no caso das baleias somente se pode ver
a cabeça e a cauda negra. Quando soltam o jorro de vapor são
iguais às imagens que estão nos livros.
- As baleias são enormes, não?
- Sim, são. Os golfinhos são mais ou menos do tamanho de
cães.
- Ah, é verdade! Foi o que li nas Mil e Uma Noites.
Absorta na conversa, a menina brincava com o seu fino anel de
prata.
- Campanella, quero descer. Eu nunca vi uma baleia - pensou
Giovanni, completamente irritado. Mas continuou olhando pela
janela com os lábios franzidos.
Lá fora já não havia rastros dos golfinhos, e o rio havia se
dividido em dois. No meio daquela ilha negra se levantava uma torre
e, de pé, em cima dela, havia um homem vestido com roupas
folgadas e coberto com um chapéu vermelho. Levava em uma das
mãos uma bandeira vermelha e na outra uma azul e, com a vista
levantada para o céu, fazia sinais.
Enquanto Giovanni olhava, o homem agitava a bandeira
vermelha vigorosamente. De repente, baixou-a, escondendo-a atrás
de si, e levantou a bandeira azul bem alto e começou a ondulá-la
com veemência, como se fosse um maestro. Ouviu-se, então, um
barulho parecido com a chuva e grupo após grupo de objetos
negros se lançaram voando para a margem oposta. Giovanni se
precipitou à janela para vê-los.
Sob o vazio e formoso céu azul violeta, cruzou um número
infinito de pequenos pássaros, agrupados em bandos, que
cantavam incessantemente.
- Veja como voam os pássaros - disse Giovanni, ainda com a
cabeça fora da janela.
- Eh, onde? - respondeu Campanella, olhando também para o
céu.
O homem que estava de pé em cima da torre levantou a
bandeira vermelha e a agitou freneticamente, interrompendo o voo
dos pássaros. Um som agudo chegou de rio abaixo e tudo ficou em
silêncio por um momento.
Mas, em seguida, ele voltou a agitar a bandeira azul, gritando:
- Em frente aves migratórias, cruzem agora!
Ouviu-se sua voz claramente. Nesse mesmo instante, um
bando de centenas de milhares de aves migratórias partiu à toda
velocidade, deixando o céu negro.
A menina, que também enfiara a cabeça pela janela entre
Giovanni e Campanella, olhava para o céu com sua bela face
corada.
- Oh, vejam quantos pássaros! E que formoso está o céu -
disse, dirigindo-se a Giovanni. Mas este, pensando em quão
vaidosa e antipática que era e franzindo de novo os lábios,
continuou olhando para o céu em silêncio.
Kaoru emitiu um leve suspiro e voltou para o seu assento sem
dizer mais nada. Campanella, que pareceu sentir pena retirou a
cabeça da janela e se pôs a consultar seu mapa.
- Que está fazendo aquele senhor? - perguntou a menina em
voz baixa a Campanella.
- Está fazendo sinais às aves migratórias. Sem dúvida porque
em alguma parte lançarão um fogo de artifício - respondeu
Campanella sem demasiada segurança.
O vagão ficou em completo silêncio.
Giovanni também quis retirar sua cabeça da janela, mas, como
não queria que ninguém visse seu rosto, se forçou a continuar de pé
tal como estava e se pôs a assoviar.
- Pergunto-me por que me sinto tão infeliz - pensou. Tenho que
ter um coração mais limpo e aberto. Ali na margem oposta se vê um
pequeno fogo, brilhando azulado como entre brumas. Parece tão
silencioso e fresco. Olhando-o bem quem sabe possa aprender a
conseguir paz de espírito.
Giovanni, segurando a cabeça ardente entre as mãos,
continuou olhando para lá.
- Ah! Não haverá ninguém, ninguém que possa ir sempre
comigo para onde quer que eu vá? Quando vejo Campanella
conversando com essa menina, como se estivessem se dando
muito bem, me dá muita raiva.
Os olhos de Giovanni voltaram a se encher de lágrimas, quando
viram a Via Láctea esbranquiçada e borrada, como que
distanciando-se muito.
O trem foi se separando do rio e começou a correr pela beira de
um barranco. Na margem oposta também se podia ver um barranco
negro que, à medida que descia o rio em seu curso, se fazia mais e
mais alto.
Por um instante, apareceu um grande pé de milho. Suas folhas
eram onduladas, e, sob elas, as grandes e bonitas espigas verdes,
terminando em um penacho vermelho, mostravam seus grãos que
pareciam pérolas.
Pouco a pouco, o número de pés de milho foi aumentando até
formar uma fileira entre o barranco e a via. Giovanni, sem pensar,
retirou a cabeça da janela e, ao olhar pelo lado oposto, viu uma bela
planície, estendendo-se até o horizonte, coberta da mesma
plantação que ondulavam e sussurravam ao vento. Os extremos de
suas esplêndidas folhas onduladas estavam carregados de gotas de
orvalho, que, como impregnadas de sol, brilhavam verdes,
vermelhas e de todas as cores, como se fossem diamantes.
- Aquilo é milho, não é? - perguntou Campanella, dirigindo-se a
Giovanni. Este, que não conseguia livrar-se do mal humor, sem tirar
a vista da pradaria lhe respondeu bruscamente: “Suponho que sim”.
O barulho do trem foi diminuindo pouco a pouco. Depois de
passar vários sinaleiros e luzes de mudança de via, o trem parou em
uma pequena estação.
A clara esfera do relógio assinalava a segunda hora. Agora que
o trem havia parado, a pradaria ficara em completo silêncio e
apenas se ouvia o pêndulo do relógio marcando o tempo com o seu
preciso tic-tac.
Então, entre os intervalos de silêncio do tic-tac do pêndulo,
chegou uma melodia, quase imperceptivelmente, de algum lugar
muito distante da planície.
- Oh, é a Sinfonia do Novo Mundo! - disse a menina, olhando
para onde estavam eles, em voz muito baixa, como para si mesma.
Mas, no vagão, tanto o jovem vestido de negro como todos os
demais pareciam estar submersos em doces sonhos.
“Em um lugar tão agradável e tranquilo, por que não estou mais
contente? Por que tenho que me sentir tão só? Mas também é certo
que Campanella se portou mal. Tomou o trem junto comigo e está
todo o tempo falando com essa menina. Sinto-me tão infeliz!” -
pensou Giovanni.
De novo, com a cara meio afundada entre as mãos, voltou a
olhar pela janela oposta. Ao soar uma flauta de som claro como o
cristal, o trem se pôs suavemente em marcha, e Campanella, que
também parecia triste, começou a assoviar a canção das estrelas.
- Realmente, esta é uma meseta muito alta - comentou uma voz
que parecia a de um homem mais velho, um pouco rouca, como se
acabasse de despertar - De fato, deve-se plantar o milho em sulcos
de uns sessenta centímetros de profundidade para que possa
crescer.
- Ah, é mesmo? Então estamos a uma grande altura sobre o rio,
não?
- Isso mesmo. Entre uns seiscentos e mil e duzentos metros. É
um desfiladeiro imenso.
- Ah, claro! - pensou Giovanni - isto deve ser a meseta do
Colorado.
A menina, com o irmão dormindo sobre o colo, estava absorta
em seus pensamentos, com as escuras pupilas perdidas na
distância. Campanella havia se posto novamente a assoviar com
melancolia. O menino pequeno estava profundamente adormecido,
e suas bochechas tinham a cor de uma maçã madura envolta em
papel de seda.
De repente, desapareceu o milho e, diante de sua vista, se
estendeu uma enorme planície negra.
Do além horizonte chegou-lhes a Sinfonia do Novo Mundo,
cada vez mais e mais claramente.
Sobre esta planície negra, um índio com a cabeça adornada
com plumas, peito e braços com missangas de pedra, montado
sobre um cavalo branco, tinha uma flecha colocada em seu arco e
galopava na mesma direção do trem.
- Olhe, um índio! Olhe, Kaoru, um índio! – exclamou o menino.
O jovem vestido de negro também se despertou.
Giovanni e Campanella puseram-se de pé.
- Vem correndo para cá! Vem para cá! Está nos perseguindo? -
perguntou a menina.
- Não, não está seguindo o trem. Está caçando ou, quem sabe,
dançando - respondeu o jovem, de pé com as mãos nos bolsos,
como tivesse esquecido onde estavam.
Na realidade, bem que o índio dava a impressão de que
estivesse a dançar. Seus passos eram demasiado calculados para
que se pensasse que estava apenas correndo. De repente, ao parar
tão abruptamente que suas penas brancas pareceram sair lançadas
para frente, disparou seu arco para o céu.
Então um grou caiu em ziguezague. O índio se pôs a correr de
novo, com os braços estendidos para pegá-lo. Logo se deteve e
sorriu satisfeito.
Sua figura, segurando o grou enquanto olhava para eles, foi se
fazendo cada vez menor. Os isolantes de um par de postes
telegráficos brilharam por um instante e apareceu outra plantação
de milho.
Giovanni, ao olhar por sua janela, viu que o trem marchava ao
lado de um precipício muito, muito alto, e que o rio, largo e
luminoso, corria pelo fundo do desfiladeiro.
- A partir de agora começamos a baixar - disse aquela voz, que
parecia de um velho - O que não é fácil, considerando-se que de
uma só vez baixamos até o leito do rio. Com tal inclinação, não há
trem que possa subir na direção contrária. Veem como pouco a
pouco começamos a ir mais rápido?
O trem foi descendo. Quando a via se aproximava da borda do
precipício, podiam ver o brilhante rio por um instante.
Lentamente, o estado de ânimo de Giovanni foi melhorando.
O trem passou rente a uma pequena cabana, diante da qual
estava de pé um menino pequeno de aspecto triste, e Giovanni não
pode evitar um grito de saudação.
O trem continuou correndo a toda velocidade. As pessoas no
interior do vagão, afundadas em seus encostos, se agarravam com
força em seus assentos.
Giovanni, sem dar-se conta, trocou um sorriso com
Campanella. Logo estiveram marchando de novo ao lado da Via
Láctea, cujas águas pareciam fluir com muito mais força que antes,
já que de vez em quando lançavam reflexos.
Na margem da Via Láctea, os cravos de cor rosa claro
floresciam aqui e ali. Por fim, o trem diminuiu a marcha e continuou
avançando com calma.
Nesta margem, e também na oposta, apareceram várias
bandeiras, com uma estrela e uma picareta.
- O que serão estas bandeiras? - perguntou Giovanni, mudo de
surpresa.
- Não tenho nem ideia, neste mapa não aparecem. Também há
um barco de aço, não?
- Ah, é verdade.
- Não estarão construindo uma ponte? - se aventurou a dizer a
menina.
- Realmente, aquela é a bandeira do Corpo de Engenheiros!
Estão fazendo exercícios de construção de pontes, ainda que não
se vejam soldados por nenhuma parte.
Naquele momento, na margem oposta, um pouco mais rio
abaixo, as águas invisíveis da Via Láctea lançaram um reflexo e
uma coluna de água se levantou com grande estrondo.
- Estão dinamitando! - disse Campanella pulando de alegria.
Quando desapareceu a coluna de água, grandes salmões e
trutas ficaram por um instante suspensos no ar, com seus ventres
brancos brilhando, até que, descrevendo um arco, voltaram a cair na
água.
Giovanni estava tão contente que poderia ter se posto a pular.
- É o Corpo de Engenheiros do Paraíso. Que vos parecem as
trutas que foram lançadas ao ar? Nunca havia feito uma viagem tão
divertida na minha vida. É fantástico! Certamente vistas de perto
estas trutas devem ser enormes. Nestas águas possivelmente há
muitos peixes.
- Também peixes pequenos, não é? - perguntou a menina que
se havia deixado levar pela conversa.
- Claro que sim. Se existem peixes grandes, é certo que
também deve haver pequenos. Mas não pudemos vê-los porque
estavam demasiado longe - respondeu alegremente Giovanni, que
já havia deixado para trás o seu mal humor.
- Vejam, certamente aqueles devem ser os palácios de Gêmeos
- gritou o menino de repente, assinalando algum lugar através da
janela.
À sua direita, sobre uma pequena colina, se levantavam dois
pequenos palácios que pareciam feitos de cristal de rocha.
- Que são os palácios de Gêmeos?
- Faz muito tempo, minha mãe costumava me contar a história
sobre dois palácios de cristal, um ao lado do outro.
- Conte-nos a história!
- Eu também a conheço! - exclamou o menino - As estrelas
gêmeas saíram para brincar na pradaria e brigaram com um corvo,
é assim?
- Não, não é assim! Minha mãe me contou que na margem da
Via Láctea...
- Ah, sim! E então uma estrela cadente se aproximou a toda
velocidade, silvando...
- Não, tampouco é assim, Tadashi! Esta é outra história.
- Agora estarão ali tocando flauta, não? Ou estarão no mar?
- Não, não! Já voltaram do mar.
- Ah, me lembrei! Vou contar-lhes a história.
A margem oposta do rio se tingira de vermelho.
Os salgueiros e tudo mais submergiram em uma profunda
escuridão, e as ondas das águas invisíveis da Via Láctea lançaram
reflexos púrpura.
Uma fogueira vermelha levantava a sua fumaça negra tão alto
que parecia queimar o céu azul violeta. Suas chamas, mais claras e
vermelhas que o rubi, mais formosas que o lítio, ardiam como se
estivessem embriagadas.
- Que será aquele fogo? O que queimarão para conseguir
chamas tão vermelhas e brilhantes ? - disse Giovanni.
- É o fogo do Escorpião - respondeu Campanella, consultando
de novo o seu mapa,
- Ah, o fogo do Escorpião! - disse a menina - Eu sei a história.
- Que é o fogo do Escorpião? - perguntou Giovanni. - O
escorpião ardeu até morrer. Nosso pai nos contou muitas vezes a
história de por que ainda segue ardendo.
- O escorpião é um inseto, não é?
- Sim, é um inseto. Mas um inseto bom.
- Não é verdade, não é um bom inseto. Uma vez vi um
conservado em álcool em um museu. Tinha um ferrão assim enorme
no rabo, e o professor nos disse que se te pica morres.
- É verdade. Mas apesar disso meu pai me disse que era um
bom inseto.
A menina começou o seu relato:
- Faz muito tempo, em um lugar remoto, vivia um escorpião que
se alimentava de pequenos insetos e outros bichinhos. Um dia, uma
doninha o encontrou e quis comê-lo. O escorpião tentou fugir com
todas as suas forças mas, ao final, encurralado, caiu em um poço.
Apesar de seus esforços, não pôde sair e começou a afogar-se.
Nesse momento começou a rezar do seguinte modo: “Até agora
quantas vidas de insetos terei tomado para subsistir. E agora,
quando me perseguia a doninha, quis escapar, sem poder sequer
salvar minha vida. Por que não deixei, em silêncio, que tomasse
meu corpo. Quem sabe assim ela pudesse ter vivido um dia mais.
Meu deus, veja o meu coração. Não permitas que minha próxima
vida se desperdice deste modo. Utilize o meu corpo de maneira que
possa ser útil aos demais”.
Ao dizer isso, o escorpião viu que o seu corpo ardia como uma
bela chama vermelha, iluminando a escuridão da noite. E, dizia meu
pai, desde então continua ardendo e assim seguirá para sempre.
Tenho certeza que é aquela fogueira!
- É mesmo! Vejam. Ali as balizas estão colocadas exatamente
em forma de escorpião.
Giovanni viu que do outro lado da grande fogueira havia três
balizas colocadas na forma das pinças do escorpião e cinco
configurando o rabo e o ferrão. O belo fogo do escorpião ardia
brilhante e em silêncio.
À medida que foram deixando para trás o fogo, começavam a
ouvir o som de diversos instrumentos, ao que se mesclava o
perfume de flores silvestres e as vozes e canções distantes de muita
gente.
Parecia que em alguma cidade próxima estivessem fazendo
festa.
- Centauro, faz cair o orvalho! - gritou de repente o menino
pequeno, que até este instante estivera a dormir ao lado de
Giovanni, mas que agora olhava pela janela oposta.
Através dela via-se um cipreste ou um abeto, decorado com
luzes coloridas como se fosse uma árvore de Natal, parecendo que
mil vaga-lumes houvessem pousado em seus ramos.
- Caramba, é esta noite a Festa das Estrelas.
- Ah, sim. Este é o povoado da Constelação do Centauro -
acrescentou em seguida Campanella.
- Logo chegaremos ao Cruzeiro do Sul. Preparem-se para
descer - disse o jovem, dirigindo-se aos dois irmãos.
- Eu vou um pouco mais no trem - replicou o menino.
Sua irmã, sentada ao lado de Campanella, se levantou excitada
e começou os preparativos, ainda que se visse claramente que não
queria separar-se de Giovanni e Campanella.
- Temos que descer aqui - disse o jovem, olhando para o
menino, que estava com os lábios franzidos.
- Não quero! Antes de descer quero ir um pouco mais no trem.
- Venha conosco. Com o nosso bilhete pode-se ir a qualquer
parte - disse Giovanni, que já não podia continuar calado.
- Mas nós temos que descer aqui. Aqui é onde se desce para ir
ao céu - disse tristemente a menina.
- E para que tens que ir ao céu? Nosso professor diz que temos
que construir um lugar melhor que o céu seja onde estivermos.
- Temos que ir porque ali está a nossa mãe. Além disso, assim
disse deus.
- Esse deus é um deus falso!
- O seu é que é falso!
- Não, não é verdade!
- Vejamos, que tipo de deus é o seu? - perguntou-lhe o jovem
sorrindo.
- Não sei muito bem - disse Giovanni - Mas apesar disso estou
seguro que é o único verdadeiro.
- Certamente, deus verdadeiro há só um.
- Não quero dizer isso. Quero dizer o único deus verdadeiro.
- Pois a esse deus me refiro eu. E rezarei para que possamos
voltar a nos encontrar diante desse deus verdadeiro - disse o jovem,
juntando as mãos com fervor.
A menina o imitou. Os três, cheios de tristeza por ter que partir,
haviam ficado pálidos. Giovanni teve que fazer um grande esforço
para conter as lágrimas.
- Já terminaram os preparativos? Logo chegaremos ao Cruzeiro
do Sul.
Nesse momento, apareceu diante deles, rio abaixo, sobre as
invisíveis águas da Via Láctea, que brilhava azul, alaranjada e de
muitas outras cores, uma cruz luminosa como uma árvore solitária.
Em sua parte superior, uma nuvem pálida formava um círculo
semelhante a um halo.
Dentro do trem, sentiu-se uma grande agitação. Como antes
havia ocorrido no Cruzeiro do Norte, todos de pé, bem postados,
começaram a rezar.
De todos os lados chegavam gritos de júbilo, que se mesclavam
com profundos suspiros de lástima.
Pouco a pouco a cruz foi se aproximando da janela. A nuvem,
prateada e pálida como a polpa de uma maçã, girava bem devagar
ao seu redor.
“Aleluia, aleluia”, repetiam, em uníssono, vozes claras e
alegres. Do céu frio e distante chegou o som límpido e
indescritivelmente doce de uma trombeta.
O trem cruzou entre inumeráveis sinais e luzes e, pouco a
pouco, foi diminuindo a velocidade, até parar bem em frente à cruz.
- Nós descemos aqui - disse o jovem, tomando a mão do
menino, enquanto a sua irmã arrumava-lhe a gola do abrigo. Os três
dirigiram-se devagar para a saída, no outro extremo do vagão.
- Bom, adeus - disse a menina, voltando a cabeça para onde se
encontravam Giovanni e Campanella.
- Adeus - disse Giovanni um pouco bruscamente, a ponto de
chorar.
A menina voltou-se de novo, com os olhos cheios de tristeza, e
desceu em silêncio.
O trem, já meio vazio, tinha um aspecto desolado, e o vento
soprava livremente através dos vagões.
Ao olhar para fora, viram as pessoas em fila, ajoelhadas
piedosamente diante da cruz, à margem da Via Láctea. Logo
apareceu uma figura divina, vestida de branco, que se aproximou
com os braços estendidos, cruzando as águas invisíveis. Mas, ao
soar a flauta de cristal, o trem se pôs de novo em marcha, enquanto
uma névoa prateada que subia rio abaixo foi cobrindo o cenário.
A única coisa que puderam ver foi um grande número de
nogueiras, cujas folhas brilhavam através da névoa. Entre elas, um
esquilo elétrico, com aura dourada, mostrava a sua linda carinha.
A névoa foi se dissipando e revelou algo parecido a uma
estrada margeada por uma fileira de lanternas. Durante um trecho
ficou paralela à via do trem. Cada vez que passavam em frente a
uma lanterna, esta se acendia e apagava em forma de saudação.
Ao virar a cabeça, viram que a cruz tornara-se tão pequena que
parecia poder ser pendurada ao peito. Na margem branca, coberta
pela névoa, já não se podia distinguir se a menina, o jovem e os
demais continuavam ajoelhados ou se já haviam ido a algum outro
lugar desconhecido, lá no céu.
Giovanni lançou um profundo suspiro.
- Campanella, ficamos sós novamente. Vamos sempre juntos
para qualquer parte, não é verdade? Sabe? Eu também, como o
escorpião, poderia deixar que meu corpo ardesse cem vezes se
fosse para a felicidade de todos.
- Eu penso o mesmo - acrescentou Campanella, com os olhos
brilhantes de lágrimas.
- Mas, o que é a verdadeira felicidade? - perguntou Giovanni.
- Não tenho nem ideia - respondeu Campanella distraidamente.
- Campanella, vamos ser fortes, heim? - disse Giovanni,
respirando profundamente, com o coração cheio de uma nova força.
- Veja aquela nebulosa escura! É um buraco no céu - disse
Campanella, afastando-se um pouco da janela enquanto apontava
para fora.
Ao olhar para lá, Giovanni levou um susto terrível. Em um lugar
próximo à Via Láctea via-se um buraco negro. Ainda que forçasse a
vista até que doessem os olhos, não pôde ver o seu fundo nem o
que havia nele.
- Eu não teria medo de entrar nessa enorme escuridão - disse
Giovanni - Se é para buscar a verdadeira felicidade para todos,
vamos juntos para qualquer lugar, até onde for necessário.
- Sim, iremos juntos! Oh, veja que lugar tão formoso! -
exclamou Campanella de repente, apontando através da janela para
uma radiante planície que se via ao longe - E todos estão ali
reunidos. Aquilo é realmente o céu! Oh, a minha mãe também está
ali!
Giovanni olhou, mas só pôde ver uma névoa esbranquiçada,
nada semelhante ao que havia dito Campanella.
Cheio de uma tristeza indescritível, continuou olhando
distraidamente para o local e viu, na margem oposta do rio, dois
postes de telégrafo, com seus travessões alinhados como se
estivessem de braços dados.
- Campanella, vamos seguir sempre juntos, não? - disse
Giovanni virando a cabeça. Mas no assento de Campanella já não
havia ninguém. Só o veludo negro brilhava no lugar vazio.
Giovanni levantou-se como empurrado por uma mola.
Colocando a cabeça pela janela para que ninguém o pudesse
ouvir no trem, pôs-se a gritar enquanto golpeava o peito com todas
as forças. Então começou a chorar violentamente.
Pareceu-lhe que tudo havia se tornado escuro ao seu redor.
- Pode-se saber por que choras? Olhe para lá.
Atrás dele ouviu-se uma voz doce, parecida com um violoncelo,
aquela que já havia escutado tantas vezes.
Giovanni, surpreso, enxugou as lágrimas e virou a cabeça para
o lugar de onde vinha a voz.
No assento antes ocupado por Campanella, encontrava-se
agora um homem de rosto pálido, com um grande chapéu negro,
que, sorrindo amavelmente, segurava um grosso livro.
- Onde estará teu amigo? Esta noite foi realmente para muito
longe. Já é inútil procurar por Campanella.
- Mas por quê? Se havíamos combinado seguir sempre juntos. -
replicou Giovanni.
- Eu sei. Todos pensamos o mesmo. Mas não é possível. Cada
um de nós é um Campanella. Qualquer um com quem encontre será
sempre alguém que já comeu maçã ou viajou no mesmo trem com
você. Portanto, tal como você havia dito antes, o melhor é buscar a
verdadeira felicidade para os demais e ir reunir-se a eles o mais
rápido possível. Só ali poderá estar para sempre com Campanella.
- Sim, é isso o que farei! Mas, como posso fazê-lo ?
- Ah, eu também a estou buscando! Tens que guardar o teu
bilhete. E estudar com todas as forças. Você estudou Química, não
é? Então sabe que a água é composta de oxigênio e hidrogênio.
Agora não há ninguém que duvide disso, pois pode-se comprovar
experimentalmente. Mas, há muito tempo as teorias afirmavam que
era formada de mercúrio e sal ou de mercúrio e enxofre. Do mesmo
modo, cada um de nós crê que seu deus é o único deus verdadeiro,
não é? E discutimos interminavelmente sobre quem tem razão sem
chegar jamais a nenhuma conclusão. Mas nos comovemos até as
lágrimas por coisas que fazem pessoas que creem em deuses
distintos. Não obstante, se estudas e aprendes a distinguir o certo
do falso, experimentando com um bom método, te darás conta de
que ao fim e ao cabo a fé é o mesmo que a ciência.
- Veja - continuou - dê uma olhada neste livro. É um tratado de
Geografia e História. Nesta página se descreve a geografia e a
história de 2.200 a.c.. Veja bem, não conta como era a realidade,
senão como a via as pessoas daqueles tempos. Portanto, só esta
página equivale a um volume inteiro de geografia e história. Você
me compreende, não? E o que se descreve nela era em sua maioria
correto naquela época. Se procurares um pouco, poderás encontrar
muitas provas que o confirmem. Mas, quando passares à página
seguinte, começarás a duvidar. No ano de 1.000 a.c., a Geografia e
a História mudaram bastante, não é mesmo? E também são
distintas de como as conhecem na atualidade. Mas não fique com
essa cara de espanto. Nossos corpos, nossas ideias, a Via Láctea,
este trem, a História, só são como são porque assim o percebemos.
Agora, procure relaxar comigo, está pronto?
O sábio levantou um dedo e voltou a baixá-lo lentamente.
Naquele momento, Giovanni viu que, de repente, ele mesmo e
suas ideias, o trem, o sábio, a Via Láctea, todos brilharam ao
mesmo tempo, apagando-se logo em silêncio e voltando a acender-
se e apagar-se. Com cada reflexo de luz descobria-se um novo
mundo, junto com uma história, diante de seus olhos. Ao apagar-se,
tão só ficava um enorme vazio.
Pouco a pouco, as imagens sucederam-se mais e mais rápido,
até que ao final tudo ficou como no princípio.
- Viu? Com esta experiência pudestes percorrer toda a coleção
de episódios históricos do princípio até o fim, que é o mais difícil.
Ainda que cada um deles seja importante por si mesmo.
Nesse momento, mais além do negro horizonte, um claro sinal
de luz artificial elevou-se no céu e converteu, por um instante, a
noite em dia, de tal modo que até o interior do trem se iluminou.
O sinal se deteve no alto do céu e continuou brilhando.
- Oh, aquela é a nebulosa de Magalhães! A partir de agora vou
buscar a verdadeira felicidade para mim mesmo, para minha mãe,
para Campanella, para todos.
Giovanni, com a vista fixa na nebulosa de Magalhães, lá ao
longe, e com os lábios franzidos levantou-se com determinação.
- Agora, guardes bem o teu bilhete. A partir de agora já não
estás mais em um trem de sonhos. Tens que andar com passo firme
através do fogo e das furiosas ondas do mundo real. Mas não
percas jamais este bilhete. É a única coisa real desta viagem pela
Via Láctea!
Apenas havia ouvido aquela voz, parecida com um violoncelo, a
Via Láctea já havia ficado muito longe, o vento soprava e Giovanni
encontrou-se de pé sobre a relva da colina. Ao longe se ouviam os
passos do sábio Vulcanilo, que se aproximava.
- Muito obrigado, foi uma experiência muito interessante. Em
um lugar tão tranquilo como este, estive pensando que gostaria de
transmitir meus pensamentos às pessoas. Todas as suas palavras
estão anotadas em meu livro de notas. Bem, volte para casa e
descanse. E segue o caminho reto que elegestes neste sonho. De
agora em diante podes consultar-me sempre que precisares.
- Jamais me separarei deste caminho. E buscarei a verdadeira
felicidade - disse Giovanni com decisão.
- Bem, até a vista. Aqui tens o bilhete.
O sábio colocou no bolso de Giovanni um pequeno papel verde,
dobrado, e a sua figura se perdeu de vista por trás da Coluna dos
Desejos.
Giovanni abriu os olhos e se deu conta de que, cansado,
dormira sobre a relva da colina. Sentia que o peito ardia de um
modo estranho e que lágrimas frias corriam por sua face.
Então se levantou como uma mola. Abaixo, ao longe, via-se o
povoado iluminado, ainda mais brilhante do que antes.
A Via Láctea, que havia visto em sonhos, estendia-se agora
para o sul, esbranquiçada e indefinida, sobre o horizonte. À sua
direita, o Escorpião resplandecia com sua bela luz vermelha, e a
posição das estrelas no céu parecia haver mudado.
Giovanni desceu a colina velozmente. Pensou comovido em
sua mãe, que o esperava sem haver jantado. Cruzou o negro
bosque de pinheiros com toda a pressa e, após margear a cerca da
granja, logo se colocou frente à entrada do escuro estábulo.
Parecia que alguém tinha regressado, já que havia um carro,
carregado com barris, que antes não estava lá.
- Boa noite! - gritou Giovanni.
- Já vou!
Logo apareceu um homem, vestido com grossas calças
brancas.
- O que o trás por aqui?
- Hoje não levaram leite na minha casa. - Ah, sinto muito! -
disse. Entrou no estábulo e voltou a aparecer com uma garrafa de
leite, que entregou a Giovanni.
- Realmente sinto muito. Esta tarde, distraído, deixei a porta da
cerca aberta, e o diabinho aqui bebeu metade do leite de sua mãe -
explicou rindo.
- Ah, sim? Bem, muito obrigado.
- De nada e perdoe-me.
- Não tem importância - respondeu Giovanni e, segurando a
garrafa de leite ainda morna, cruzou a cerca da granja.
Após andar por uma rua margeada de árvores, dirigiu-se à via
principal. Seguiu caminhando e, no cruzamento, dobrou à direita.
Dali pôde ver a grande ponte, à qual Campanella e seus amigos
haviam ido para lançar lanterninhas no rio, que parecia brumoso na
tranquila noite.
Nas esquinas do cruzamento e diante das lojas havia grupos de
mulheres que, olhando para a ponte, falavam em voz baixa. Sobre a
ponte via-se um grande número de luzes acesas.
Giovanni sentiu que seu coração gelava.
- Que aconteceu ? - perguntou, gritando, a alguém que estava
ali perto.
- Um garoto caiu no rio - respondeu. Todos se voltaram para
olhar Giovanni.
Giovanni, fora de si, saiu correndo para a ponte. Sobre ela
havia tanta gente que não se podia ver o rio. Também havia um
policial de uniforme branco, Dirigiu-se para o extremo da ponte e
desceu em grandes saltos até o leito seco do rio.
Ao largo da margem, inúmeras luzes subiam e desciam. Na
margem oposta, sete ou oito lâmpadas moviam-se na escuridão.
O rio, no qual já não haviam lanterninhas, corria cinza e
tranquilo com um leve murmúrio.
No local mais distante de seu leito seco, sobre algo que parecia
um banco de areia, viam-se as sombras negras de um grupo de
pessoas.
Giovanni saiu correndo para lá. De repente se encontrou com
Marceau, que antes havia estado com Campanella.
- Giovanni, Campanella caiu no rio - disse Marceau, correndo
para ele.
- Como foi? Quando?
- Zanelli estava tratando de lançar uma lanterninha na corrente,
quando o bote se balançou e ele caiu no rio. Em seguida,
Campanella saltou na água e o empurrou para o bote. Zanelli se
agarrou a Kato, mas Campanella já não podia ser visto em parte
alguma.
- Mas todos o estão procurando, não?
- Sim, todos vieram em seguida. Também o pai de Campanella.
Mas não o encontram. Já foram acompanhar Zanelli até sua casa.
Giovanni foi para onde estavam os demais.
O pai de Campanella, com a tez pálida e a mandíbula apertada,
estava olhando o rio com o relógio na mão. Ao seu redor juntaram
colegiais e pessoas do bairro.
Todo mundo tinha a vista fixa no rio. Ninguém dizia uma
palavra. A Giovanni lhe tremiam as pernas violentamente.
Um grande número de lâmpadas de acetileno, das que se
utilizam para pescar, percorria incessantemente a corrente e fazia
brilhar suas pequenas ondas negras.
Corrente abaixo, a Via Láctea se refletia em toda a superfície
do rio, de tal modo que este parecia a continuação do céu.
Giovanni se deu conta então de que o único lugar onde se
poderia encontrar Campanella era no fim da Via Láctea.
Mas todos pareciam estar convencidos de que apareceria entre
as ondas dizendo “Peguei um bom mergulho!” ou que estaria de pé
sobre um banco de areia, esperando que chegasse alguém.
Mas, de repente, o pai de Campanella disse com resolução: -
Já não há mais nada a fazer. Passaram-se quarenta e cinco minutos
desde que caiu na água.
Giovanni, sem pensar, aproximou-se correndo e, de pé, frente
ao doutor, quis dizer-lhe: “Eu sei onde está Campanella. Estivemos
juntos”. Mas fez-se um nó em sua garganta.
O pai de Campanella, crendo que Giovanni viera saudá-lo, por
um momento ficou observando-o fixamente.
- Você é o Giovanni, não é? Muito obrigado por sua ajuda esta
noite - disse-lhe cortesmente.
Giovanni, incapaz de dizer algo, fez uma reverência em
silêncio.
- O seu pai já voltou para casa? - perguntou, ainda com o
relógio fortemente apertado na mão.
- Ainda não - respondeu Giovanni, com um ligeiro movimento
de cabeça.
- Que estranho! Anteontem recebi notícias muito alentadoras
dele. Deveria ter chegado mais ou menos hoje. Será que o barco
atrasou? Amanhã, depois da aula, venha ver-me com os demais.
Enquanto dizia isso, olhava fixamente o lugar, rio abaixo, onde
se refletia a Via Láctea.
Giovanni, com o coração repleto de emoções, separou-se do
doutor em silêncio.
Queria dizer à mãe, o quanto antes, que o pai logo iria voltar.
Apertando a garrafa de leite, começou a correr com todas as forças
pelo leito do rio em direção à sua casa.

1. A lula-vaga-lume vive nos mares do norte do Japão, tem uns seis centímetros de
comprimento e possui órgãos no corpo e tentáculos que desprendem luz como se
fosse um vaga-lume. ⏎
2. Gramínea semelhante à eulália. ⏎
3. Gingko bilovalynn, árvore autóctone do Japão. ⏎

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