Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
escamandro
POESIA, TRADUÇÃO
https://escamandro.wordpress.com/2019/11/20/tres-mulheres-de-sylvia-plath-por-rafael-zacca/?fbclid=IwAR12WWHyXdL9w6fuG8lRGmT28wW… 1/12
21/11/2019 Três mulheres, de Sylvia Plath, por Rafael Zacca | escamandro
SOBRE A TRADUÇÃO
Sylvia Plath (1932-1963) compôs Três mulheres como um livro-poema radiofônico. Nesse sentido, não
foi escrito para ser lido individualmente, em silêncio, mas para ser falado. Inclui, em sua própria
forma, um desejo comunitário.
Trata-se, de fato, de uma comunidade de incomuns. As três Vozes do poema são de mulheres que
tomaram rumos distintos com relação a uma situação de possível maternidade.
(Sobre a questão da maternidade tanto em Três mulheres quanto em outros poemas de Plath, conferir o
artigo de Marina Della Valle que acompanha a tradução da mesma autora em “‘Três mulheres’: Sylvia
Plath e a maternidade”, nos Cadernos de Literatura em Tradução n. 8 da USP.)
O poema, encomendado pela BBC, é transmitido pela primeira vez em 1962, no mesmo ano em que
nasce o segundo filho da poeta e de sua separação de Ted Hughes.
Muitos viram nos temas que surgem no poema para três Vozes questões centrais na obra posterior de
Plath.
Outra chave de leitura possível seria considerar Três mulheres ao lado de outros poemas que
tematizam o universo do hospital, como “Acordando no inverno”, “Tulipas” e “Febre 40 graus”,
relativamente contemporâneos ao poema radiofônico.
Essa leitura permitiria, talvez, conjugar os pares solidão / comunidade e corpo / incomum com a lei
das metáforas em Plath, em sua relação com os pares natureza / cultura. Mas, sobretudo, permitira
ver na sua forma de metaforização um duelo entre um corpo que vai morrer e um corpo que insiste
em viver.
Sobre a tradução de Três mulheres: o poema de Plath possui poucas versões em língua portuguesa. Em
todas elas, um problema central se coloca: como traduzir o uso que Plath faz da palavra “flat”
mantendo: a sua conotação simbólica de oposição entre vazio e cheio; a sua sonoridade gerativa (nas
semelhanças sonoras produzidas pela palavra em versos como: “Blunt and flat enough to feel no lack. I
feel a lack”); e a sua brevidade fonética.
Ana Gabriela Macedo, que traduziu o livro para o português de Portugal pela editora Relógio
D’Água, opta pela variação do termo. Às vezes o traduz por “vazio”, às vezes por “raso”, por
exemplo, para manter uma polissemia lida pela autora como contradição entre esterilidade e vazio
masculino e fertilidade feminina. Já Marina Della Valle alerta que a escolha de um único vocábulo
para substituir “flat” também não se apresenta como solução possível sem que algo de muito valioso
se perca. Procurou, não obstante, manter suas escolhas vocabulares próximas ao termo “reto”,
escolha fundamentada nas leituras que a autora fez dos estudos de Kroll e Folson.
Não consegui localizar uma tradução de Marcia Cavendish Wanderley, que aparentemente está
concluída, mas uma versão preliminar pode ser lida no blog “Convite a palavra”, na publicação de 25
de dezembro de 2008, com o título de “TRÊS MULHERES de Sylvia Plath”. Também há variação do
termo.
Optei aqui pela insistência no termo “raso” como tradução para “flat”. Isso fez com que eu tivesse de
transformar também a tradução de vocábulos vizinhos, que produziam relações sonoras com “flat”,
em outras palavras Também transformei alguns vocábulos derivados de “flat” em outros
https://escamandro.wordpress.com/2019/11/20/tres-mulheres-de-sylvia-plath-por-rafael-zacca/?fbclid=IwAR12WWHyXdL9w6fuG8lRGmT28wW… 2/12
21/11/2019 Três mulheres, de Sylvia Plath, por Rafael Zacca | escamandro
em outras palavras. Também transformei alguns vocábulos derivados de flat em outros
semelhantes a raso, mas de significado completamente diferente. Em alguns casos, a operação beira a
arbitrariedade.
No entanto, como contraprova, quero advertir que procurei no universo simbólico do poema (como
no duelo entre natureza e cultura, bem como na ambivalência do caráter gentil e do violento
alternado entre as Vozes) a resposta para o gesto transcriativo. Como no caso de “flat, flatness”, em
que optei pelo par “raso, restinga”. Antes de receber as duras críticas de quem lê esta tradução, quero
chamar a atenção para o contraste que a segunda Voz faz com a primeira, por exemplo, quando se
refere a valores em jogo no mundo natural e no mundo social.
Não quero com isso propor que a dimensão sonora é a mais determinante na forma do poema – mas
decidi privilegiá-la para fornecer uma tradução de caráter por assim dizer mais radiofônico.
Não ignorei, tampouco, a dimensão gráfica. Não me parece gratuito, por exemplo, que na descrição
de uma cena de enfermaria, Plath faça um verso comparando aquelas mulheres a montanhas, de
acordo com o seu desenho debaixo dos lençóis, fazendo uso de letras que escritas remetem ao
desenho de subidas e descidas, “m” e w” (“I am a mountain now, among mountainy women” – para
manter a isomorfia, optei pela tradução “Sou uma montanha neste momento, misturada a mulheres
montanhosas”).
Também porque o que se anuncia nessa tradução é uma proposição: o som em Três mulheres (como
nos poemas “hospitalares” de Plath) é uma máquina de produção de semelhanças, a partir de uma
comunidade incomum não apenas entre personagens, mas entre as esferas da linguagem verbal e da
produção de sentido do mundo por corpos que se confrontam muito diretamente com as questões
fundamentais de vida e de morte.
Rafael Zacca
***
Três Mulheres
Um Poema para Três Vozes
Cenário: Enfermaria da Maternidade e entorno
PRIMEIRA VOZ:
Sou lenta como o planeta. Sou muito paciente,
contornam meu tempo adentro sol e estrelas
observando com atenção.
A lua se interessa mais de perto:
vai e vem, luminosa como uma enfermeira.
Sente muito pelo que está prestes a acontecer? Acho que não.
Só está atônita com a fertilidade.
SEGUNDA VOZ:
A primeira vez que a vi, a infiltração vermelha, não acreditei.
Vi os homens chegando perto de mim no escritório. Eram tão rasos!
Tinham qualquer coisa de cartolina, e aí eu pesquei,
tão rasos, tão rasos, restinga de onde ideias, destruições,
escavadeiras, guilhotinas, câmaras brancas de guinchos
[procedem
sem fim, procedem – e os anjos gelados, as abstrações.
Sentei na minha mesa com minha meia-calça, meu salto alto,
e o homem pra quem trabalho riu: “Viu algum fantasma?
Está tão branca assim de repente.” E eu não disse nada.
Eu vi a morte entre as árvores nuas, uma privação.
Não podia acreditar. Será tão difícil
para o espírito conceber um rosto, uma boca?
As letras procedem destas teclas pretas, e estas teclas pretas procedem
de meus dedos alfabéticos, ordenando as partes,
TERCEIRA VOZ:
Eu me lembro do minuto em que tive certeza.
Os salgueiros esfriavam,
O rosto na poça era bonito, mas não meu –
tinha um aspecto consequente, como tudo o mais,
E tudo o que eu podia ver eram perigos: pombas e palavras,
estrelas e chuvas de ouro – fecundações, fecundações!
Eu me lembro de uma asa gelada branca
SEGUNDA VOZ:
É um mundo de neve agora. Não estou em casa.
Como são brancos estes lençóis. Os rostos não têm traços.
São lisos e impossíveis, como os rostos de minhas crianças,
PRIMEIRA VOZ:
Estou calma. Estou calma. A calmaria precede alguma coisa
[medonha:
o minuto amarelo antes do vento que passa, quando as folhas
exibem suas mãos, sua palidez. É tão quieto aqui.
Os lençóis, os rostos, são brancos e parados, como relógios.
Vozes se distanciam e se achatam. Seus hieróglifos visíveis
achatam-se em painéis de pergaminho que desviam o vento.
E pintam seus segredos em Árabe, em Chinês!
TERCEIRA VOZ:
Sou uma montanha neste momento, misturada a mulheres
[montanhosas.
Os médicos se movem entre nós como se nossa grandeza
apavorasse suas ideias. E sorriem como imbecis.
São os culpados pelo que sou, e sabem disso.
Exibem o que neles é raso como uma espécie de saúde.
E se eles então se surpreendessem, como eu?
Ficariam loucos com isso.
PRIMEIRA VOZ:
Não há milagre mais cruel que este.
Sou arrastada por cavalos, cascos de ferro.
Resisto. Sobrevivo. Cumpro meu trabalho.
Túnel escuro, através do qual acontecem provações,
as provações, as manifestações, os rostos assustados.
Sou o centro de uma atrocidade.
Que sofrimentos, que tristezas terei de parir e cuidar?
SEGUNDA VOZ:
Acusam-me. Sonho com massacres.
Sou um jardim de agonias pretas e vermelhas, que bebo,
odiando-me, odiando e temendo. E agora o mundo concebe
seu fim e vai em sua direção, braços embalando o amor.
PRIMEIRA VOZ:
Quem é ele, esse garoto azul e furioso,
bizarro e brilhante, como se arremessado de uma estrela?
Parece tão zangado!
Voou para o quarto, um berro no tornozelo.
O azul empalidece. Ele é humano, enfim.
Um lótus vermelho se abre em vasilha de sangue;
costuram-me com seda, como se eu fosse um tecido.
SEGUNDA VOZ:
Lá está a lua, na janela alta. Foi-se.
Como o inverno enche minha alma! E essa luz calcária
deitando escamas nas janelas, janelas de escritórios vazios,
salas de aula vazias, igrejas vazias. Ai, quanto vazio!
E essa interrupção. Essa terrível interrupção de tudo.
Esses corpos amontoados me rodeando agora, estes chinelos de neve–
que raio azul e lunar congela seus sonhos?
TERCEIRA VOZ:
Eu a vejo enquanto durmo, rubra, terrível garota.
Ela chora através do vidro que nos separa.
Ela chora, e ela é furiosa.
Seu choro é um gancho que agarra e arranha feito um gato.
É com esse gancho que ela escala até minha vista.
Ela chora no escuro, ou nas estrelas
que distantes de nós brilham e retorcem.
PRIMEIRA VOZ:
O que é que a nós nos arremessa essas almas inocentes?
Olha, estão tão exaustos, estão arrasados
em seus berços de lona, nomes amarrados a seus punhos,
os pequenos troféus de prata pelos quais vieram de tão longe.
Alguns têm os cabelos pretos e densos, outros são carecas.
Suas peles são rosas ou pálidas, pardas ou vermelhas;
e começam a lembrar de suas diferenças.
SEGUNDA VOZ:
Não sou feia. Sou até bonita.
O espelho devolve uma mulher sem deformidades.
As enfermeiras devolvem minhas roupas, e uma identidade.
É normal, elas dizem, que coisas assim aconteçam.
É normal na minha vida, e na vida de outras.
Eu sou uma em cinco, qualquer coisa do tipo. Não estou perdida.
Eu sou bonita como estatística. Aqui o meu batom.
TERCEIRA VOZ:
Ela é uma pequena ilha, adormecida e pacífica,
E eu um navio branco apitando: Adeus, adeus.
O dia está fervendo. É triste demais.
As flores neste quarto são vermelhas e tropicais.
Elas viveram por trás de vidros toda a vida, cuidadas com ternura.
Agora enfrentam o inverno de lençóis brancos, rostos brancos.
Tenho pouquíssimas coisas na mala.
SEGUNDA VOZ:
Eu sou eu mesma de novo. Não há caminhos sem saída.
Sangrei e estou branca como cera, não tenho compromissos.
Sou rasa e virginal, isto significa que nada aconteceu,
https://escamandro.wordpress.com/2019/11/20/tres-mulheres-de-sylvia-plath-por-rafael-zacca/?fbclid=IwAR12WWHyXdL9w6fuG8lRGmT28wW… 9/12
21/11/2019
g , g q Três mulheres, de Sylvia, Plath, por Rafael Zacca | escamandro
nada que não possa ser apagado, extirpado e descartado, um novo
[começo.
Estes pequenos ramos não pensam em florescer,
nem estas secas, secas calhas sonham com a chuva.
Esta mulher que me encontra na janela – é pura.
Tão pura que transparente, como um espírito.
Quão timidamente ela superpõe sua pureza
no inferno de laranjas africanas, e porcos presos pelo calcanhar.
Ela adia a realidade.
PRIMEIRA VOZ:
Por quanto tempo posso ser uma parede, bloqueando o vento?
Por quanto tempo posso ser
abrandando o sol com a sombra de minha mão,
interceptando os dardos azuis de uma lua gelada?
As vozes da solidão, as vozes da tristeza
rondam-me inelutavelmente.
Como é que isso pode suavizá-las, essa cançãozinha de ninar?
TERCEIRA VOZ:
Hoje as faculdades estão bêbadas com a primavera.
Minha beca preta é um pequeno funeral:
mostra que estou séria.
Os livros que trago se comprimem do meu lado.
Certa vez tive uma velha ferida, mas está curando.
Sonhei com uma ilha rubra de gritos.
Era um sonho, não significava nada.
PRIMEIRA VOZ:
A alvorada flore o grande ulmeiro fora de casa.
As andorinhas voltaram. Estão gritando como foguetes de papel.
Escuto o som das horas
dilatando e morrendo nas cercanias. Escuto o mugido das vacas.
As cores se recuperam, e o feno
úmido ferve ao sol.
Os narcisos abrem seus rostos brancos no pomar.
TERCEIRA VOZ:
Meio-dia quente nos prados. Os botões-de-ouro
abafam e derretem, e os amantes
passam e passam.
São pretos e rasos como sombras.
É tão bonito não ter de apegar-se!
Sou solitária como a grama. O que é esta saudade?
Saberei algum dia, seja lá o que for?
SEGUNDA VOZ:
Estou em casa sob a luz da lâmpada. As tardes se alongam.
Remendo a barra da seda: meu marido lê.
Como é bonita a luz incidindo sobre tudo.
Tem uma espécie de fumaça no ar primaveral,
uma fumaça que colore de rosa os parques,
as pequenas estátuas, como a ternura acordasse,
a ternura que não se cansa, que cura.
https://escamandro.wordpress.com/2019/11/20/tres-mulheres-de-sylvia-plath-por-rafael-zacca/?fbclid=IwAR12WWHyXdL9w6fuG8lRGmT28w… 12/12