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Subterrâneos

Divanize Carbonieri

O mundo se dividia em dois. Nas camadas subterrâneas, reuniam-se duas castas de pessoas: as que
usavam jalecos brancos e estetoscópios e as que viviam nuas. As que viviam nuas não eram gente
como os doutores, mas robôs cujas engrenagens eram revestidas pelo que parecia uma pele mole e
macia. Tinham que se submeter a vários exames, conduzidos pelos médicos, todos principalmente
concentrados na região genital. Muitos aparelhos acoplavam-se em seus pênis, vaginas e ânus. Às
vezes era muito restritivo, os aparatos de metal entravam nas carnes de borracha e arregaçavam os
orifícios. Os médicos eram incansáveis. Estavam sempre preenchendo formulários presos a
pranchetas manuais. Sempre, não. Frequentemente eles também manuseavam as genitálias de seus
pacientes com bastante interesse. Horas e horas observando os buracos dos corpos dos robôs,
abrindo-os com as mãos quase até romperem. Os robôs eram escravos dos médicos, escravos não de
trabalho, porque ninguém trabalhava, mas de exames sexuais. Ficavam todo o tempo deitados em
camas ou macas, imóveis e expostos à meticulosidade das pessoas de branco. Nos subterrâneos, a
vida se resumia a isso. À noite, antes de dormir, ela assistia a tudo, a todas as operações, apalpações
e averiguações. Infinitas vezes. Por anos a fio. Durante o dia, ia para a escola. Era a jornada na
superfície. Mas tinha algo errado. As outras crianças cresciam exuberantes a cada estação. Ela, ao
contrário, estava em franca decadência, como se fosse velha. O corpo se deteriorava antes de
amadurecer, dentes, pele, músculos. Cheirava mal inclusive. Apodrecia a olhos vistos, mas o fato é
que ninguém parecia ver. Contrariando o costume de outros da sua idade, tomava muitos banhos,
demorados. Esfregava bem a pele toda até causar vermelhidão. Mas não sentia alívio. Não
conseguia deter a decomposição. Quando chegou à puberdade, aos doze anos, já estava bastante
estragada. O mundo dos subterrâneos passou a irromper, não mais só à noite, mas a qualquer
momento. Estava na aula, ouvindo a professora de ciências, e médicos e pacientes pululavam nos
espaços vazios. Esforçava-se para espantá-los e voltar a prestar atenção ao tópico ensinado, mas era
em vão. Sentia toda a região entre as pernas pulsando. No meio de uma prova de matemática, por
exemplo, algum dos exames realizados pelos médicos podia se mostrar especialmente invasivo.
Grandes objetos cilíndricos eram inseridos nos pacientes, que gritavam ou gemiam ritmicamente.
Nessas horas, algo em sua vulva latejava, quase que como uma campainha sem som. Era difícil
continuar com os cálculos ou o que quer que fosse. Ao mesmo tempo memórias difusas da primeira
infância começaram a lhe ocorrer. Luzes que giravam no teto ao som de um tilintar metálico. A
operação tornou tudo perfeitamente normal. O que estava em desacordo foi corrigido, a passagem
foi aberta e alargada. Você não precisa se preocupar. Assim os adultos tinham lhe explicado quando
ela indagou. Mas estavam errados. Em vez de um reparo, aquilo tinha funcionado como o gatilho da
destruição. A putrefação prosseguia inexorável, porém, ainda não era o suficiente para aniquilar o
corpo. Ele não se rendia tão fácil. Estava disforme como um organismo atingido pela lepra, mas
ainda vibrava e se agitava. Ela realmente teve que despender muito esforço para aquietá-lo e abafar
seus impulsos. Fazia isso enquanto se dedicava a lições intermináveis. O treinamento foi tão bem
sucedido que aos poucos as invasões do submundo foram minguando, minguando. Nos últimos
anos, só conseguia acessá-lo quando se empenhava, mas não se demorava, com receio de despertar
alguma reação violenta do monstro que tentava enterrar. Até que a esfera subterrânea povoada de
médicos e robôs desapareceu para sempre. A deterioração de seu corpo se completou, e ele foi
definitivamente soterrado, restando apenas a cabeça acima da superfície.

O conto “Subterrâneos” faz parte do livro Passagem estreita (no prelo).


A autora: Divanize Carbonieri é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, atuando como
professora de literaturas de língua inglesa na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É
autora dos livros de poesia “Entraves” (Carlini & Caniato, 2017), agraciado com o 2º Prêmio Mato
Grosso de Literatura, e “Grande depósito de bugigangas” (2018), selecionado pelo Edital de
Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, e da coletânea de contos “Passagem estreita” (no prelo),
selecionada pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2018. No Prêmio Off Flip, foi finalista na
categoria poesia nas edições de 2018 e 2019, e segunda colocada na categoria conto na edição de
2019. Também foi finalista no 3º Concurso da Editora Lamparina Luminosa em 2016. Atua ainda
como tradutora, tendo participado da tradução de “Hind Swaraj: autogoverno da Índia” de
Mohandas Gandhi e “100 Grandes poemas da Índia”. Integra o Coletivo Maria Taquara, ligado ao
Mulherio das Letras – MT.

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