Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
com/lacanempdf
As Profecias de Lacan
Entrevista realizada por Christophe Labbé e Olivia Recasens para O diário Le Point
(18/08/2011)
Le Point: Jacques Lacan nos esclarece sobre um dos defeitos de nossa sociedade
democrática: o individualismo reinante. Podemos falar de uma tirania do Um?
JAM: Nossa época está marcada pela influência crescente da cifra, da contabilização:
quer-se quantificar tudo. Ora, o princípio do tudo-quantificável é o Um. Sem o Um,
nossos cálculos não existiriam e eles, hoje em dia, estão por todas as partes: na vida
cotidiana, na política – pelo menos, quando se vota-, na ciência, na medicina, na
economia, nas livrarias, nos espetáculos, em todos os campos da atividade humana. O
Islam é a religião que coloca mais acento sobre o Um único. Agora, na sexualidade,
tradicionalmente, é a dualidade que domina. Tudo está fundado na complementariedade
dos sexos. Freud concebia ainda a relação sexual sob o modelo platônico e evangélico: o
homem e a mulher, e logo se fazem uma única carne.
Essa gangrena do narcisismo não dá razão a Lacan: “A relação sexual não existe”,
já que se dispensa o Outro?
Lacan havia deduzido que o modelo antigo não se manteria de pé, que a
sexualidade iria passar do Um da fusão ao Um-sozinho. “Cada um na sua” [chacun son
truc]. Cada um com seu modo de gozar. Até Lacan, isso se chamava autoerotismo. E se
pensava: normalmente, isso se reabsorve, porque os dois sexos são feitos um para o outro.
E bem... de modo algum! Isso é um preconceito. Fundamentalmente, no inconsciente, seu
gozo não é complementar ao de ninguém. As construções sociais sustentavam todo esse
imaginário em seu lugar. Agora vacilam, porque o empuxo do Um se traduz sobre o plano
político pela democracia a todo custo: o direito de cada um ao seu próprio gozo se torna
um “direito humano”. Em nome de que o meu seria menos cidadão que o teu? Não é
compreensível mais. É também porque o modelo geral da vida cotidiana no século XXI
é a adição. O Um goza sozinho com sua droga, e toda atividade pode virar uma droga: o
esporte, o sexo, o trabalho, o smartphone, o Facebook...