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RESUMO
Neste artigo sobre as “entrevistas preliminares” nos tratamentos com crianças, pretendemos mostrar
que a presença inicial da demanda dos pais coloca sempre o psicanalista diante do risco de conduzir
a análise da criança no sentido de responder a essa demanda, perdendo de vista o que há de mais
fundamental nessas análises: a singularidade da posição subjetiva da criança. Pretendemos mostrar
que as “entrevistas preliminares” com a criança só alcançam seu verdadeiro objetivo quando o
psicanalista considera tal singularidade para além da demanda inicial dos pais.
Em Freud, três casos servem de inspiração para nossa reflexão sobre a presença
dos pais nas entrevistas preliminares às entrevistas com a criança: o caso Hans e as análises de duas
jovens, Dora e a jovem homossexual. São casos que têm, em comum, o fato de que a formulação da
demanda de tratamento não é feita, inicialmente, pelo sujeito em questão, mas pelos pais.
No caso Hans, é o pai quem demanda o tratamento. Depois de um período inicial(5)
em que, a pedido de Freud, enviava-lhe cartas com observações sobre o filho que comprovavam a
existência da sexualidade infantil (baseadas, principalmente, no interesse de Hans pelos grandes e
pequenos “pipis”(6) dos seres a sua volta), o pai de Hans é surpreendido pela emergência de um
sintoma: Hans receia que um cavalo possa mordê-lo na rua. Ele escreve então a Freud: “Meu caro
Professor: estou-lhe enviando mais alguma notícia a respeito de Hans, só que desta vez, lamento
dizê-lo, se trata de material para um caso clínico. Como o senhor verá, nesses últimos dias ele vem
apresentando um distúrbio nervoso que nos tem preocupado muito, a mim e a minha esposa, pois
não temos sido capazes de encontrar meio algum de corrigi-lo.”(7) O pai se considera incapaz de dar
solução ao sintoma, de corrigi-lo, como ele sugere. “Não posso saber o que fazer desse aspecto” (8),
é o que declara a Freud. Mas isso não o impede de formular hipóteses sobre a origem do sintoma do
filho, que ele relaciona ao excesso de atenção da mãe. A pergunta que endereça a Freud nessa
carta-demanda que marca o início do período de tratamento de Hans é: “Será que ele viu um
exibicionista em alguma parte? Ou tudo isso está simplesmente relacionado com sua mãe?” (9) De
certa forma, trata-se da mesma pergunta que se apresenta a Freud em 1918, em relação ao caso do
homem dos lobos(10): o sintoma teria sido desencadeado por um trauma real, algo que a criança
teria visto realmente, ou trata-se de uma fantasia (cuja origem estaria, na hipótese do pai de Hans,
relacionada com a mãe)?
A posição de Freud diante da demanda paterna é clara: “Não iremos acompanhar o
pai de Hans, nem em suas ansiedades, facilmente compreensíveis, nem em suas primeiras tentativas
de encontrar uma explicação.”(11) E se o papel do pai na análise de Hans não foi questionado por
Freud (tendo, inclusive, se tornado comum nos primórdios da prática psicanalítica os pais
analisarem os próprios filhos), a demanda paterna permanece uma evidência ao longo de todo o
tratamento do menino.
Freud, entretanto, não deixa de observá-lo. Ele nos faz notar em seus comentários
finais sobre o caso que, até um determinado ponto do tratamento de Hans, “(...)foram os pais que
extraíram do material patogênico observado nele o tema particular do seu interesse por pipis. Hans
seguiu a orientação deles nesse assunto, mas não tinha tomado ainda nenhuma linha própria na
análise.”(12) Segundo Freud, “(...) a análise havia passado longe do assunto de cavalos”(13) – esta
sim, a queixa formulada pelo próprio Hans no único encontro com Freud. De um lado temos,
portanto, a demanda paterna e o material que os pais recortam do discurso da criança. De outro, o
que Freud chama a “linha própria” da criança na análise e que, no caso de Hans, remete ao “assunto
de cavalos.”
No caso Dora, a sombra da demanda paterna se encontra igualmente presente ao
longo de todo o tratamento, sendo inclusive o tema de muitas das queixas da jovem. Logo no início
de seu relato, Freud nos conta que quando Dora ficava aborrecida, “costumava ser assaltada pela
idéia de que ela fora entregue a Herr K como prêmio por tolerar ele as relações entre sua mulher e o
pai de Dora; e sua ira por seu pai fazer tal uso dela era visível atrás de sua afeição por ele.” (14)
Também neste caso, Freud não ignora a presença da demanda do pai, chegando a tecer alguns
comentários sobre seu papel no caso – justamente quando menciona a interrupção do tratamento.
A interrupção ocorre na ultima sessão do ano. Dora se despede calorosamente de
Freud, desejando-lhe sinceramente um feliz Ano Novo, mas não retorna. O comentário de Freud é o
seguinte: “seu pai, que me procurou duas ou três vezes depois disto, assegurou-me que ela voltaria e
deu-me certeza do desejo de Dora de que o tratamento continuasse. Mas devo dizer que seu pai
nunca foi totalmente sincero. Ele apoiara o tratamento esperando que eu pudesse convencer Dora de
que nada havia além de amizade entre ele e Frau K. Seu interesse desapareceu quando percebeu que
não era minha intenção chegar a este resultado.”(15)
A intenção do analista não é a de atender à demanda paterna, nos ensina Freud.
Não deveríamos entender esta como uma recomendação geral, válida para todos os casos em que o
sujeito em questão não é aquele que demanda, inicialmente, o tratamento? Afinal, sabemos que
quando nos deixamos seduzir pela demanda dos pais, o sintoma do qual eles se queixam pode se
tornar o foco de nosso trabalho, antes mesmo que tenhamos oportunidade de escutar a criança.
Corremos o risco de nos atermos ao sintoma de que os pais se queixam (procurando-o na criança),
esquecendo-nos assim de que o sujeito de que se trata é a criança. E, como bem ressaltou Nominé
em suas Conferências em Belo Horizonte, “analisar um sintoma e analisar um sujeito são coisas
distintas.”(16) Mas como nos desvencilhar dessa demanda inicial dos pais, se é ela que traz a criança
até nós? Como desatá-la disso que Freud nomeia a “linha própria da criança” na análise?
No caso da jovem homossexual há uma intervenção valiosa para essa discussão,
que evidencia o esforço de Freud em evitar uma sobreposição entre a demanda trazida pelos pais e a
demanda da filha. Os pais da jovem homossexual se queixam da relação da jovem com uma certa
dama, dez anos mais velha que ela, e cuja índole é por eles posta em questão. Seu pedido é,
claramente, o de recolocar a filha no caminho de uma heterossexualidade “normal”, longe da
influência da dama. A resposta de Freud é a seguinte: “(...)me abstive por completo de oferecer aos
pais qualquer perspectiva de realização de seu desejo. Simplesmente lhes disse que estava
preparado para estudar cuidadosamente a moça durante algumas semanas ou meses, para então
poder julgar em que medida uma continuação da análise teria probabilidades de influenciá-la.”(17)
Freud, ao mesmo tempo em que coloca em suspenso a demanda dos pais – pois se
abstém de oferecer-lhes qualquer perspectiva de resposta a ela – ressalta a necessidade das
entrevistas preliminares com a filha a fim de avaliar, nessas entrevistas, a presença das condições
necessárias ao trabalho analítico.
Uma formulação como esta é, certamente, uma boa maneira de dar início às
entrevistas com a criança, embora com a ressalva de que ela talvez seja ainda insuficiente para
considerar encerrado o trabalho com os pais. Afinal, apesar de distinguir com precisão a demanda
dos pais e a do sujeito em questão, resta ainda a pergunta sobre o destino da demanda dos pais, que
tende sempre a insistir, caso não seja recolocada na única dimensão que interessa à análise: sua
articulação ao desejo e a implicação do próprio sujeito (neste caso não a criança, mas cada um dos
pais) nesta demanda. Trata-se de manter tal demanda em suspenso, como parece sugerir Freud, mas
na condição de que seja possível re-situá-la para além da queixa inicial, em relação à posição
daqueles que a enunciam.
Talvez essa seja a forma mais eficaz de nos livrarmos da tentação de supor que
podemos eliminar um sintoma que, em muitos casos, não aparece sequer na queixa da criança. Pois,
afinal, quando nos referimos à entrada em análise nos tratamentos com crianças, não podemos
perder de vista que se trata das entrevistas com a criança e de seu manejo no sentido da articulação
de uma queixa e de uma demanda ao analista, formuladas pela criança.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, Sigmund –
– “Fragmento da análise de um caso de histeria”(1905), vol.VII.
– “Análise de uma fobia em um menino de 5 anos”(1909), vol.X.
– “Sobre o início do tratamento”(1913), vol.XII
– “História de uma neurose infantil” (1918), vol.XVII
– “Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”(1920), vol.XVIII.
LACAN, Jacques –
– “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”
in Outros Escritos, Jorge Zahar, RJ, 2003.
– Seminário 8(1960-61), Jorge Zahar, RJ, 1992.
– Seminário 17(1969-70), Jorge Zahar, RJ, 1992.
– O saber do psicanalista(1971-72), seminário inédito.
– RSI(1974-75), seminário inédito.
NOTAS: