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O lugar da criança

no discurso analítico
Maria Cristina Vecino Vidal

O
tratamento da criança pode ser abordado na conjunção histórica que
precipitou neste século o lugar da criança no discurso da ciência —
pensemos, por exemplo, na pediatria de recente emergência na clínica
médica. A incidência de Freud com a descoberta da sexualidade infantil, até então
repudiada e ignorada, é primordial. Por sua vez, a psicanálise com crianças teve
um percurso particular na história do movimento psicanalítico, pois a princípio o
próprio Freud não considerou inicialmente a aplicação de seu método ao tratamento
com crianças.
Sophie Morguenstern foi a pioneira no caso de mutismo. Sua posição instiga a
pensar a ação do desejo do analista que sustenta a palavra do sujeito ainda quando
ele não consegue falar. Com a utilização do desenho como suporte da palavra e
com o desejo decidido de articular o pequeno sujeito ao campo da linguagem,
Morguenstern inaugura uma insuspeitada região de interrogações e verificações
na psicanálise.
Na década de 1920 há um início de sistematização do saber da clínica com
crianças, em torno de duas posições antagônicas, a de Anna Freud e a de Melaine
Klein. Ambas analistas propunham uma direção da cura específica com a criança,
mas com abordagens teóricas e clínicas bem diferentes.
Anna Freud postula a realização de uma "análise pedagógica" com a criança.
Considera indispensáveis a existência de medidas educativas, o que ela denomina
"adestramento para a análise", uma preparação necessária para a entrada da criança
no dispositivo analítico, onde terá eficácia a operação do analista. Esta abordagem
supõe uma impossibilidade de estabelecimento precoce da transferência, cuja
causa, segundo Anna Freud, se encontraria na relação ainda muito intensa que a
criança mantém com os pais e a família. Dever-se-ia, assim, produzir uma sepa-
ração pais-criança para que o sujeito possa entrar na "neurose de transferência".

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Eis aí um paradoxo: o analista produziria essa separação enquanto educador,


subtraindo-se do discurso analítico a partir do qual se sustenta a transferência do
sujeito numa análise.
Melaine Klein, em uma posição radicalmente diferente, destaca uma direção da
cura com a criança dentro do marco da psicanálise. Nesse sentido, trata-se da
primeira psicanalista a considerar a criança enquanto sujeito do inconsciente que
pode ser abordado através de sua atividade espontânea — o brincar: "a criança
expressa suas fantasias, seus desejos e sua experiência atual através do jogo e de
um modo simbólico"1. Essa atividade, incluída na transferência da análise, tem
para Melaine Klein o mesmo valor que a associação livre do paciente adulto. É por
essa via que o pequeno sujeito entra no trabalho analítico. Considera as medidas
tomadas por Anna Freud para adaptar a psicanálise às crianças como um obstáculo
insuperável para o estabelecimento da situação analítica. Para Melaine Klein
orientação pedagógica e análise são radicalmente antinômicas. O processo analí-
tico não se fundamenta no projeto consciente nem no ego do paciente.
A posição destas duas analistas tornara-se uma querela insolúvel a partir da
exposição de suas teorias no Congresso de Insbruck (1927) ante a presença do pai
da psicanálise. A psicanálise com crianças não constituía uma preocupação para
Freud. Apesar da intervenção no caso Hans, esta criança não foi considerada como
o início de uma nova abordagem na psicanálise. Freud resiste a generalizar na
descoberta do universo infantil, o que se revela nas suas palavras introdutórias a
esse caso clínico: "Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam
numa só pessoa e, porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse
científico é que se pode, neste único exemplo, aplicar o método numa utilização
para o qual ele próprio não teria se prestado".2
Ernest Jones, na biografia de Freud, se surpreende com o fato de que o "homem
que explorou a mente infantil até um extremo tal como jamais teria sido possível
antes dele, tivesse conservado, no entanto, certa inibição que lhe impediu de
aproximar-se mais ao tema"3. É importante para nossa interrogação partir daquilo
que ele escreve sobre a criança no percurso de sua teorização.
Antes de mais nada, para Freud a criança é uma construção feita a-posteriori a
partir do discurso do analisante. Isso implica um corte com o evolucionismo
biológico da psicologia. A história não é a cronologia. Não há no sujeito um
desenvolvimento linear que o conduza desde o nascimento até a idade adulta. Os
conceitos de sexualidade infantil, complexo de Édipo, narcisismo, enquanto cons-
trução a-posteriori, não têm o caráter de momentos evolutivos senão de estruturas

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constituintes do sujeito. Freud não precisou da observação da criança para inferir


o inconsciente. O inconsciente está estruturado como uma linguagem e a cons-
trução tem como suporte o retorno de significantes de fixação do sujeito. É a partir
da retroação da demanda no discurso que Freud procede a estabelecer as pulsões
parciais. A ação do tempo lógico, do só-depois, permite escrever algo defi-
nitivamente perdido na origem do sujeito.
O significante criança remete também à origem, na medida que em a causação
dos sintomas são referidos à sexualidade infantil. Freud fez a partir dessa des-
coberta um percurso, desde a procura do trauma sexual real à consideração da
sexualidade como o real traumático inerente à constituição de todo ser falante. Para
abordar esse real, o sujeito constrói o que Freud denominou os "fantasmas
originários" — Urphantasien: cena originária, castração, sedução. "Esses fantas-
mas originários constituem o tesouro das fantasias inconscientes que a análise pode
descobrir em todos os neuróticos e em todos os filhos dos homens". Eles são
organizadores da vida fantasmática e independem das experiências pessoais do
sujeito. A sexualidade da criança está implicada no texto do fantasma.
A criança constitui uma interrogação de todo sujeito enquanto presentifica o
enigma sobre sua própria origem, formulado na pergunta "De onde vêm os bebês?"
Freud fala então do pequeno sujeito, e aí está Hans, confrontado com a cena
primária, montagem para o desejo do Outro encarnado no par parental. Não pode
dar resposta à questão que suscita o nascimento da sexualidade. Carece de signi-
ficantes para dizer ou escrever a ordem do sexual. A ausência de relação sexual na
linguagem é suprida pela construção das teorias sexuais infantis que buscam
circunscrever o real impossível; daí o caráter universal e o valor estruturante da
teoria sexual na constituição do sujeito.
Desde o ponto de vista das "equações inconscientes", Freud destaca a criança
como "DasKleine", "o pequeno", enquanto representante privilegiado na econo-
mia psíquica: o bebê é um objeto separável, intercambiável, segundo a dinâmica
inconsciente, por pênis-fezes-presente-dinheiro. São equações estruturantes em
cujas redes circulam os desejos do sujeito. Freud define a estrutura do inconsciente
pela composição dos elementos materiais relacionáveis e intercambiáveis. A
criança à qual se refere está inserida no sistema simbólico; é um significante a ser
substituído na cadeia. A relação de múltiplas equivalências tem como suporte a
primeira e mais fundamental: bebê = pênis, que se sustentam num mesmo signi-
ficante: "DasKleine", "o pequeno". É a que privilegia a referência ao falo enquanto

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signifícante da falta. O sujeito do inconsciente realiza as cinco equivalências em


cuja produção esteve sempre A mulher, lugar simbólico da falta e ponto de partida
do desejo. O desejo é sempre desejo do Outro e a criança se constitui antes de tudo
como enigma no desejo da mãe. À falta na mulher—o desejo de uma falta—vem
o signifícante "bebê", e na equação, a criança se faz equivalente ao falo faltante.
Constitui nessa relação sua falta-a-ser, pois nunca poderá sê-lo, ou seja, satisfazer
o lugar de falta a qual o Outro o condena. Por esta via, a criança participa do
fantasma materno e está sujeita a todas as capturas imaginárias que se lhe oferecem
para responder à falta do Outro.
Freud, ao abordar o narcisismo, situa o lugar fantasmático da criança no desejo
do Outro: ^His majesty the Baby". Freud toma esta frase como representação
inconsciente da "criança maravilhosa" que existe em todo sujeito e reaparece
renovada nos filhos: "a criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram — o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai,
e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe"4.
A expressão traz à tona, na linguagem, o retorno do fantasma de perfeição e
completude que fundamenta a ilusão de completar-se no Outro. Situa de modo
paradoxal o advento do sujeito em sua dimensão de pura perda. É a nostalgia do
olhar materno, do objeto irremediavelmente perdido, que subjaz ao fascínio de uHis
Majesty the Baby, a imagem, i(a), recobrindo o objeto faltante.
Lacan redimensiona o lugar da criança na psicanálise. Sua teorização possibilita
o questionamento de uma prática freqüentemente atravessada por efeitos ima-
ginários, que acabam na proliferação da técnica como forma de abordá-la. A
afirmação categórica "a psicanálise com criança é psicanálise" testemunha a ética
que coloca a criança no discurso analítico, isto é, deve ser escutada como sujeito
do inconsciente que fala independentemente de sua idade cronológica.
Lacan destaca dois lugares possíveis da criança na economia libidinal que se
presentificam na clínica:
— como sintoma, sendo este o representante do que há de sintomático na
estrutura da família. Através dele fala da verdade enlaçada à trama de
desejos do par parental.
— como fantasma, a criança encarna com seu corpo o objeto a, articulada
ao real do gozo. Freud identificou a criança com "o pequeno", substituto
da falta materna: -cp. Lacan a situa também no real, como objeto de gozo
obturando o acesso possível da mãe à verdade do desejo: a.

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A criança entra no dispositivo analítico como sujeito do sintoma, endereçado a


um Outro a quem lhe supõe um saber, o analista. Na transferência possibilita-se o
percurso da alienação ao significante do Outro — o significante do desejo da mãe
que ele sustenta com seu sintoma — à separação de sua posição de objeto no
fantasma materno, que permite o acesso a seu próprio desejo, localizando-se na
estrutura, em relação à falta do desejo do Outro, ao a no campo do Outro. A partir
da torção operada pelo discurso analítico, o a passa a funcionar como causa e
suporte da construção fantasmática do sujeito em análise. É o vetor que orienta
para o momento de concluir uma análise com uma criança.

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CITAÇÕES

1. Klein, Melaine. El Psicanalisis de Ninos, Cap. II


2. Freud, Sigmund. Análise de uma Fobia de um Menino de 5 Anos, vol. X, p.7
3. Jones, Ernest. Vida e Obra de Sigmund Freud.
4. Freud, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, vol. XIV, p. 108.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund
— Sobre Teorias Sexuais das Crianças (1908). Edição Standard Brasileira,
vol. IX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Edição Standard Brasileira,
vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Construções em Análise (1937). Edição Standard Brasileira, vol. XIV,
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
JONES, Ernest.
— Vida y Obra de S. Freud. Buenos Aires, Editorial Nova, 1960.
KLEIN, Melaine.
— Psicoanalisis de Ninos. Buenos Aires, Ediciones Hormé, 1964.
LACAN, Jacques
— Discurso de Clausura de Ias Jornadas sobre Ia Psicosis en ei Nino; Notas
sobre ei Nino, in El analiticon. Madrid, Correo Paradiso.

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