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A

CLÍNICA
FREUDIANA

I<5IDOQO
VEGH


escuta
Equipe de realização

Capa; Yvoty Macambira


Tradução; Carolina Mc:riela Tarrio
Revisão técnica; Cláudia Bediner ,
Revisão: Maria Cristina Jardim Silva
Edição; Manoel Tosta Berlinck
M<U"ia Cristina Rios Magalhães
Produção: Araide Sanches
l~i do ro Vcgh

A CLÍNICA FREUDIANA
Traducãó de
'
Carolina Marieln Tarrío
© by Isidoro Vegh
© by Editor:t Escuta para a cdiçlo em l1ngua ponupcaa

I! edição: julho de 1991

Dados de Catalog~tção na Publicação (CIP) luternaàoaal


{Câmara Brasikira do Livro, SP, BruU)

Vegh, lsidoro.
A clln.ica freudiana/ lsidoro Vegh; tradução
Carolina Mariela Tanio. --São Paulo: Editora Escuta,
1989.

Bibliografia.

l. Freud, Sigmund, 1856- 1939- Psicologia 2. Lacan, Jacques,


1909-1981 3. Psicanálise 4. Psicologia clfn.ica I. Título.

ISBN 85.7137.022.2

CDD-150.1952
- 150.195
-157.9
89.2227 -616.8917

lodices para catil~go sistem.:itko:

l. Freud, Sigmuod: Sistemas psicanalíticos 150.1952


2. Lacao,lacques : Tooria psicanalítica 150.195
3. Psicanálise : Medicina 6L6.89!7
4. Psicologia clínica 157.9

l~itura Escuta Ltda.


Rua Dr. Homem de Mello, 3.51
05007 - São Paulo, S.P.
Fone: (011) 65-8950
19')1
Para
Agu.rtina
AJtqandro e Marin.a
c~UMÁRIO

PRÓLOGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO . . . . . . . . . . 13
A clínica freudiana: uma aposta perdida . . . . . . . . . . 15
Clfnica freudiana: as perguntas do pequeno Hans . . . . 31
Perversões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
Ao analista por seu desejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
A clínica freudiana, função do escrito . . . . . . . . . . . . 71
O homem da areia . . . . . . . ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

A CLÍNICA fREUDIANA E A PSICANÁLISE DE-


POIS DE .IFREUD . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
A morte de Freud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Psicanálise e psicanálise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Crises e mudanças na psicanálise . . . . . . . . . . . . . . . 119
Reencontro da psicanálise em Buenos Aires: os mitos,
o fantasma e a lógica do inconsciente. . . . . . . . . . . . . 127

A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO IN-


CONSCIENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....... 143
Interpretar, transmitir, traduzir . . . . . . . . . . ....... 145
A vontade da letra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....... 153
O sonho é uma escritura . . . . . . . . . . . . . . . ....... 163
A ética e o ato analítico ... .......•• • , . ••. •••• 171
Transferênc ias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....... 181
PRÓLOGO

Freudiana, a clínica à qual wn ensino desenvolveu o seu


lugar, relembra ao analista o impossível.
Por ela, diz e escreve, também o livro.
Assim proponho esta série de textos, dissímiles em sua
oportunidade e estrutura, próXÍJJX)s na trama que fia a causa
que os incita.
Do seminário, a chave se expõe na conclusão: um percurso
recebeu um estilo. Dirige-se a p sicanalistas de díspares po-
sições: de um tempo em que Lacan foi ignorado a outro, em
que sendo difícil desconhecer sua palavra, se reserva além de
uma prática que suspende suas questões.
Aposta perdida, inscreve o ceticismo do mestre; não rene-
ga o ato e por ele desliza nestas letras.
Nelas, propõe uma história e oferece uma lógica: do In-
consciente, estruturado como uma linguagem.
Questões da psicanálise, não me pertencem menos do que
as ofereço: recebê-las em tempo que não era moda, é ràZão do
que segue.

Janeiro de 1984
A CLÍNICA fREUDIANA:
$EMINÁQIO
A ClÍNICA fREUDIANA:
UMA AP00TA PERDIDA*

PELA CLÍNICA FREUDIANA

Vocês hoje acodem a wna demanda minha. Começo com


wna desculpa pelo título: .. A clínica freudiana: uma aposta
perdida", poderia dar a entender que vou lhes oferecer aquilo
que para mim é difícil, para não dizer inalcançável. Troco a
preposição e no lugar "da" clínica freudiana lhes peço que me
acompanhem "pela" (por + a) clínica freudiana. Esse "por",
pelo menos em duas vertentes: como defesa de uma vertente do
campo freudiano, não qualquer urna, mas wna principal em fa-
vor da qual foi proposto este dizer; e também "pela" (por + a)
clínica freudiana já que, se é possível dizer algo, é porque esta
clínica atua como causa. Vou partir de duas citações: "A clíni-
ca é o real enquanto impossível de suportar"1 , e "E é por isso
que a clínica psicanalítica consiste em reinterrogar tudo o que
Freud disse" 2 , Ambas foram ditas por Lacan na abertura da
"Seção clínica" em Vincennes 3 , e abrem para duas questões.

* Dissertação feita na Escola Freudiana de Buenos Aires em 16 de outubro de


1980.
I. •'La clinique estIe reél en tant que il est l'iropossible à supponer".
2. "C'est bíen pourquoí la clinique psychanalytique consiste à relnterroger
tout ce que Freud a dit."
3, Lacan, J., "Ouvertuce de la section clín.iquc", Ornicar?, n~ 9, Paris, Lysc,
1977.
16 A CLÍN ICA rREUDJANA

A primeira: por que a cl.Cnica é o real impossível de suportar?


A segunda: por que cl.útica freudiana e não clúrica Iacaniana?
Ao redor destas duas questões tentarei desenvolver a dissec-
tação desta noite.
Outorgando f~ à segunda afumação de Lacan, proponho
que me acompanhem na interrogação de um texto de Freud,
precisamente de um: o parágrafo dois de Psicopatologia da vi-
da cotid iana4, refiro-me ao "Esquecimento de palavras estran-
geiras", conhecido pelos psicanalistas como o exemplo de " A-
liquis". Antecipo uma afirmação: o que Freud nos conta t
um exemplo de uma boa sessão de psicanálise. Afm:nação que
suscita questões por se tratar de Freud e wn jovem que estão
viajando; nada do famoso setting, do âmbito reiterado de uma
~tina psicanalítica como se propõe a partir de wn certo enqua-
dre; ocorre numa viagem de férias que Freud realiza. onde en-
contra wn jovem com quem diz ter ocorrido um pequeno
episódio. A psicanálise trata disso, de pequenos episódios, na-
da mais alhéio à psicW1álise que a ordem da generalidade. São
pequenos episódios, pontuais, entretanto, com todo o rigor da
determinação. Acontece, diz Freud, em suas férias, e afiiiilei
que isto que Freud nos relata é uma boa sessão, com o que
questiono a definição empírica das férias de um analista, e in-
clusive digo que há ar uma pergunta: onde se situa o lugar, im-
possível, do analista? E, o que é o tempo em que se interrompe
sua eficácia, que poderfamos chamar de férias?
Para o analista não há férias quando o campo da linguagem
permite a função da palavra.
Em contrapartida, há férias para o analista, quando se ins·
tala na realidade. Um analista pode estar de férias em seu con·
sult6rio, e pode não estar de férias ao viajar. ·
Freud nos diz que se tratava de um jo vem - retenham "de
um jovem" - parece mencionado ao acaso, e no entanto, talvez
descubramos que no relato de um analista, quando conta un1
' caso, quando expõe, como estou fazendo neste momento, o

4. Fra~d, S., Pskopatologia dt lo vldo cotidiana, Madrid, Biblioteca Nueva,


1948, T omo I.
A CLfNICA fREUDIANA: SEMINÁRIO 17

analista não pode deixar de falar de si. Eis af a primeira difi-


culdade da clínica. Para o dizer do analista vale o mesmo que
para o dizer do aoalisante. A princípio tudo que diz é passível
de produzir um efeito de sentido. Freud diz, como se fosse uma
descrição banal, ..trata-se de wn jovem culto", e imediatamen-
te acrescenta que ambos pertencem a um mesmo povo - refe-
re-se ao povo judeu; comenta que o jovem parecia conhecer
alguns de seus textos - outro dado que talvez tampouco seja
anedótico. Começam a conversar e este jovem a se lamentar:
por pertencer ao seu povo via-se condenado a perder oportuni-
dades que, para os que não tinham essa marca, eram possíveis;
sua geração estava, a seu ver, destinada ao fracasso, excluída
do desenvolvimento de seus talentos e da satisfação de suas
necessidades. Ouçamos também a menção da "geração". Num
momento de sua argumentação contra a injustiça que ambos
compartilhavam, o jovem e Freud, o rapaz pronuncia wna sen-
tença em latim: "Exoriare ...", não pode continuar, falta-lhe
wna palavra e, como pode, constrói a frase dizendo: "~ oos-
tris O:Ssibus ultor!" Sancionado pelo riso do interlocutor, admi-
te seu erro. Pede a Freud que, se puder, lhe diga como 6 a fra-
se e Freud lhe diz: " com prazer: Excrim(e) aliquis nostris ex
ossibus ultor!" . Essa é a origem do pequeno episódio.
Este verso é de Enei~ de Virgílio quando no livro quar-
to, D ido expressa seu anseio de vingança contra o amante in-
grato que cumpre o mandato dos deuses, seu destino de funda-
dor do Novo hnpério, em troca do que abandona a mulher que
por amor lhe tinha oferecido asilo, a ele e aos que o acompa~
nhavam, mesmo pondo em risco sua fama. O jovem diz a
Freud: ..0 senhor goza com minha falha" - no momento em
que não pode pronunciar a frase - " Caçoa da minha falha" ,
"Por que não me diz a frase?" O que são estas perguntas:
"Goza o senhor com minha falha?, Caçoa o senhor de minha
falha?". É como se inaugura qualquer análise: "O que quer o •
Outro de mim?". Freud responde: "Direi a frase com prazer".
Existe um prazer de Freud em responder e completar esta frase.

S. Virgilio, La Eneida, Canto IV,


18 A CLÍNJCA FREUDIANA

Segunda questão: por que esse prazer? Uma exibição narcisista


do que sabia? Penso que, se continuarmos, teremos talvez ou-
tra resposta para esse prazer. Assim que Freud completa a fra-
se, este jovem que parecia ter algum conhecimento de sua obra
- fato importante - lhe diz: "O senhor - não eu - o. senhor sus-
tenta que estes pequenos episódios não são indeterminados,
que têm uma razão." E lhe propõe verific.ar se assim é. Pro-
duz-se um encontro sob as seguintes posições subjetivas, que
poderíamos definir como uma aposta.

UMA APOSTA

O sujeito, o jovem, desafia Freud a verificar o que seus


textos propõem em relação a este esquecimento. E este aceita,
tal como um analista pode ou não aceitar wna demanda de aná-
lise. Mas, como aceita esta demanda? Eis aqui uma das razões
pelas quais proponho ser este wn exemplo de wna boa sessão
de análise. Quando digo boa, não me refiro ao fato de ter re-
lação com algum bem, mas à eficácia conveniente ao objeto
que a ela conceme.
Há wna aposta, famosa na hist6ria da filosofia, proposta
por Pascal, em Os pozsarn.e.nto.l', texto publicado depois de sua
morte. Pascal diz a quem se apresente como descrente da
existência do Outro, chamado Deus:

Se DeDS existe. e portanto também a etcmídade, ou seja. a etc:·


nidade de sua alma., se o senhor aceita IIÍtuar-ae como CRD.te ou 110 ca-
Jnínho do aenz, o senhor tem a possibilidade de ganhar o infinito 110
lugar da fwitude da vida r.cnena. Peosaado na cliferetw;;a entre a finiiU-
de terrena e a infinlwde ewna que poderia aer ganha ae Deus existisse,
e que no caso de n§o existir, acria aquilo que se perde, convbn- diz
Paacal - que quem não estiver feclwlo a este raciocínio, aceite esta
apos1a como a propus: a favor da existência de Deus. MCS1110 que o se-
nhor não acredite, faça o que um crente faz c inicie-se nesse cam.inbo.

Pascal põe em ato o que já havia sugerido como possibili-


dade, para o sujeito, de aproximar-se da demonstração de wna

6. Pascal, B., PeTUÜ.s, Paris, Garnier Frerea, 1964.


A CLÍNICA fREUDIANA : SEMINÁRIO !9

verdade: é descoberta quando procurada; é demonstrada quan-


do possuída, ou é discernida quando exanúnada em relação ao
falso. No nosso exemplo, refiro-me ao exemplo freudiano, o
jovem propõe a Freud que demonstre a verdade que ele susten-
ta em alguns de seus textos. Tratar-se-ia de demonstrar a outro
wna verdade que se possui. Pascal escreveu dois textos, dois
pequenos textos que são O esptrito da geometria e A arte de
persuadir7 • Neles diz o que é, para ele, a arte de persuadir:
persuadir alguém de wna verdade que outro tem. Não é mais
que a conduta das provas metódicas perfeitas que consiste em
três partes essenciais, e que se baseia no método da geometria,
especialmente da geometria euclidiana: definir os termos que
serão utilizados, com definições claras; propor princípios ou
axiomas evidentes para provar a coisa da qual se trata; e subs-
tituir sempre mentalmente na demonstração o definido pelas
detunçoes. PUfurrna:

...é fácil ver que observando este método estamoo seguros de conven-
cer, já que es1ando todoo os tennoo entendidos e perfeitamente livres
de equ!vocos pelas defiruçõcs e estando os princfpíoo de acordo entre
si, se na demousll<IÇão subsúru.i-se sempre menlalmen~ o dcfwido pe-
las defiruç6es, a Corça ínvencfvel das conseq~ias não pode deixar
de ter IOdo seu efeito,6

Pascal parte de axiomas ou idéias claras e e videntes que


asseguram o alcance da verdade. Tese que inclusive a história
da geometria vem desmentir: uma dessas noções claras e evi-
dentes como era a noção de espaço, hoje, para a geometria de
nossos dias, nada mais é do que um dos tantos espaços possí-
veis, aquele que se relaciona com a intuição. Também questio-.
na a posição de Pascal o fato que, mesmo seguindo a ordem
por ele proposta, o sujeito possa responder com wna rejeição à
verdade que o atinge em sua crença, que nos leva a formular a
dificuldade de todo afã por convencer.

7, Pascal, B., L' esprit de la f:éométrie et De f art de persuader, Paris, Pédago-


gic Modeme, 1979.
8. Pascal, B., OfJ. t'it.
20 A CLÍNICA FREUDIANA

Não é este o caminho seguido por Freud. Se Freud tivesse


aceito opor suas razões a este jovem que lhe fala da dúvida so-
bre o que ele afmnava em seus textos, teria entrado nwna das
variantes da aposta que lhes proponho pensar em relação ao
jogo. Num livro muito interessante que recomendo, Teorfa de
los juegoSS, Roger Caillois nos lembra que poderia ser feita
uma classificação dos diferentes tipos de jogos: jogos de com-
petição onde os jogadores, para tnuntar, para se unporem ao
outro, têm que demonstrar suas habilidades que variam segun-
do o jogo, mas onde a destreza do competidor intervém. Jogos
de simulacro, de disfarce; jogos de vertigem e jogos de azar.
Os jogos de azar são aqueles onde a habilidade pessoal dos jo-
gadores fica colocada fora do jogo.

... PERDIDA

Se Freud tivesse aceito o desafio - que é como se inicia


este pequeno episódio - com vistas a convencer, teria entrado
nwna modalidade de jogo que envolveria as habilidades de wn
e de outro e que chamaríamos, segundo esta classificação, jogo
de competição. Freud poderia ter argumentado o que escreveu
no livro' desenvolvido, colocado
. a coerência teórica entre um
termo e outro. Não obstante nada disto faz. Que faz Freud?
Diz ao sujeito: "Pois bem, se o senhor quer alcançar a verdade
que eu proponho, só lhe peço que cumpra wna condição: diga
o que lhe ocorrer, sem omissão". Regra fundamental da análi-
se. O que implica o fato de Freud a propor? Que decide s~s­
pender a possibilidade de ganhar a aposta convencendo, deu:a
essa aposta perdida para propor outra onde não será ele quem
ganhe, mas onde convida o sujeito a entrar na roda do azar. Os
jogos de azar são os únicos, relembra muito bem Roger Cail-
lois, que só existem no ser humano; os outros, o simulacro -

9 . Caillois, R. , Teoda de w.rjuegos, BllJ'Celooa , SlliXBarrai, 1958.


A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 21

sobre isto escreveu em Medusa y compaiiio.10 -tudo o que tem


a ver com a mime~ão, os de vertigem, os de competição,
podem ser encontrados no reino animal. O jogo de azar dá-se
exclusivamente no ser humano. Como observação marginal,
Roger Caillois dizia que era possível concluir sobre algwnas
características de wna comunidade, determinando qual é o jogo
que lhe agrada particularmente: toma como exemplo os argen-
tinos, ele esteve várias vezes na Argentina: situa-nos em re-
lação a nosso gosto pelo truco.
Pois bem, Freud formula um único requisito, "diga o que
lhe ocorrer". O que implica dizer a ·alguém: de agora em diante
suspenda toda crítica, e diga tudo o que lhe ocorrer? Frase dita
tanto para o sujeito enquanto analisante como também para o
analista. Frase que diz a ambos: a partir deste momento tudo o
que é dito, a princípio, tem o mes mo valor. Esta frase inaugu-
ral de qualquer análise é, como nos lembra muito bem Miller11 ,
causa estrutural do início da transferência em sua dimensão
simbólica. Lacan propôs após vários anos de ensino um mate--
ma para o começo do jogo da análise. Esse movimento inicial
ele chamará de "Sujeito suposto Saber"12 • Implica que wn sig-
nificante, significante da transferência, por-se-á em movimento
porque foi colocada como anterioridade a regra fundamental.
Por quê? Porque propô-la ao sujeito implica, desde o início,
uma dimensão na qual seu dizer situará, além de sua intenção,
e também do analista, o efeito de sentido daquilo que brotar de
sua boca. Situa o lugar do saber do que é dito além de toda in-
tenção. A irregularidade do que pode se produzir na medida
em que diz o que lhe ocorre, determina que a regularidade que
assim se precipita seja efeito retroativo que escapa da intencio-
nalidade do sujeito; este pode apenas situá-lo em outro lugar,
precisamente no lugar do Outro que assim é produzido.

10. Caillois, R., Medusa y Cta., Baccelooa, Seix Barrai, 1962.


11. Miller, J ., "Algorithme",Omicar?,n2 16,Paris,Scuil, l 978.
12. ' Lacan, J., " Proposition du 9 octubre 1967" , SciJJcet, n9 I, Paris, Seuil,
1968, p. 19.
22 A CLÍNICA FREUDIANA

O JOOO DO OUTRO
O fato de que um analista fonnule a regra fundamental da
análise instaura a possibilidade do lugar do Outro, qualquer
que seja a teoria à qual adira.
Continuemos com esta pequena história. O sujeito diz:
"bom, o primeiro que me ocorre, mas é ridfculo, é decompor
aliquis em a e liquis". Ridículo, várias veres diz isto, e Freud
lhe diz. que não se preocupe com isso, que continue falando e
diz. aquilo que vocês já sabem: "Reliquien-liquefação-lfqui-
dos-flu!do" - em alemão é Reliquem-L iquidation-Flussigkeit-
Fluid - a ttadução de L6pez BaUesteros é bastante boa.
E af aparece uma pergunta. O sujeito diz: "Bom, já desco-
briu alguma coisa?" e freud responde: " Não, mas prossiga".
Dizer " Não, mas prossiga" tampouco 6 banal, é o modo como
o analista se situa, suspendendo todo saber desde um lugar,
que não é senão lugar estrutural, para que a análise alcance sua
eficácia. Suspende identificar-se ao saber suposto. Freud diz
"Não, prossiga".

S - - - - - - - - Sq

s (Sl, s 2, ..• sn)


Esta é a fórmula que Lacan escreve para o tempo inaugural
da transferência, em sua "Proposição de 9 de outubro"13 • Estê
S maiúsculo é o S da transferência ; sob a barra, o s minúsculo
fora do parênteses, sujeito que ex-siste a (S 1, s2, sn) séries
dos significantes que fazem com que se o analista não usurpar
o lugar de Sujeito Suposto Saber, se desprenda o saber sub-
posto, saber inconsciente, bateria dos significantes da qual o
analisante até o momento não sabe. É um saber que não se sa-
be. Diante da resposta de Freud - que não sabe, ainda que
prossiga - o sujeito continua: "relíquias, bom, me faz. lembrar
a relíquia de Simão de Trento, canonizado, segundo conta a
tradição cristã, por ter sido assassinado pel os judeus sendo

13. Lacan, J., Op. cil.


A CLf NICA FREUDIAI'A: SEMINÁRIO 23

ainda wna criança, segundo a crença que diz que os judeus pa-
ra a Páscoa coshunam matar os cristãos, ou algum cristão para
usar seu sangue para suas cerimônias".
Freud faz um breve comentário: "Como o senhor vê, isto
já tem alguma relação com o teiXUl de que falávamos antes". O
sujeito prossegue e se lembra de outro santo, Santo Agostinho,
e de algo que Santo Agostinho e screveu sobre as mulheres.
Também de um escóto de KJeinpaul que fala das vítimas dos
judeus que seriam reencarnações do Redentor: conta que viu
em sua viagem um velho - lembrem-se que Freud fala deste
senhor como de um jovem - um velho original, com cara de
ave de rapina. Ele fala de um velho original e Freud escuta,
dado que antes ~tavam Simão de Trento e Santo Agostinho,
Orígenes, um dos padres da Igreja. O que faz com que ali onde
o sujeito diz um velho original, a escuta do analista proponha
Orígenes? Que o inconsciente é um discurso que em meio ao
seu dizer produz sua escrita e que esta oão é senão uma escrita
hieroglffica.
Tomemos um exemplo que ·dá Ezra Pound no ABC de la
kcture 1• em antigos caracteres chineses,

Homem era escrito assim


1\
árvore,
t
o sol nascente, f
então sol ao despontar, como sol nascente, entre os galhos da
árvore,

14. Pound, E., a.b,c. de lo kcrure, PariJ, GaJ.J.imacd, 1966.


24 A CL{NICA FREU DIANA

o que acaba escrevendo apenas: o leste.

Assim fala o inconsciente, assim fala e no que fala escre-


ve. Se relembramos o que Safouan nos disse em sua visita à
Argentina fazendo uma analogia do inconsciente com o escri-
ba15 que estaria no quarto ao lado, é um escriba que pode dizer
o que quer, que s6 diz o que quer, s6 que não pode dizê-lo na
linguagem articulada como ocorre na conversa cotidiana. Se o
inconsciente quer falar de Orígenes, a Wlica coisa que não vai
utilizar é a palavra Orígenes mas pode apresentar a imagem de
um velho original.
Encontramo-nos com uma afinnação: .. Isso fala", diz La-
can; também Isso lê16, e a prova disto está no exemplo anterior,
o de SignoreUi, primeiro exemplo que Freud dá em Psicopato-
logia da vida cotidiana. Signorelli não pode aparecer no relato
manisfesto, nesse esquecimento de Freud, porque ..Signor"
servia como o hieróglifo, para substituir ..Herr". O fato de não
aparecer, está dizendo que Isso lê, e lê hieróglifos.
O sujeito continua associando, lembra-se também de São
Paulo, São Benedito, aliás, o nome deste velho original era
Benedito, e associa, continuando a série dos santos, com São
Genaro. Lembra-se do milagre de São GellJll'O: numa igreja de
Nápoles, o sangue de São Genaro, que está numa ampola, li-
quefaz-se numa detenninada data. Quando isto ocorre, o povo
se alegra porque se trata de um vaticínio de boaventura; caso
contrário há grande agitação: o atraso deste milagre pode ser
anóncio de desgraças. O jovem conta que certa vez houve wn
general, acha que foi Garibaldi, que exigiu que o milagre se
produzisse, "porque se não se produ..... • e o Jovem
. . ·-
se m~r-
rompe. Freud lhe diz que se não prosseguir ele não poderá
continuar mantendo a aposta, a condição é que prossiga, se ti-
ver vontade; senão, a aposta fica suspensa. O sujeito continua:

15. Sa.t:ouan, M., "E! trabajo dei sucúo", Cuade17103 Sigmund Freud ~ 8,
Buenos Aires, 1981.
Sa!ouan, M., L'inconscient et son S(;1'ÜJc, Pa.ris, Seuil, 1982.
16. Lacan, J., Encere, Pa.ris, Seui.l, 1975, p. 104.
A CLÍNICA fR EUDIANA: SEMINÁRIO 25

está à espera de uma notícia de uma senhora, que para ele é


muito importante, e Freud acrescenta: ..A quem faltou a mens-
troação" . Freud acrescenta. Freud acrescenta? Há dois sujeitos
na sessão? Digo que não. Há um s6 sujeito. Se o analista sus-
pende seu dizer e deixa que o outro fale, fala o Outro (ainda
que por sua boca).
Lembro-me de um fJ.lm.e que está passando, não há muito
tempo, em Buenos Aires, e que provavelmente muitos de vocês
já viram, Ensaio de Orquestra, o áltimo fume de Fellini. Para
os que viram: quando é que funciona bem a orquest::ra:, depois
da zoeira que no ensaio se produz? Somente num tempo, pon-
tual, no qual o diretor diz: "sigam as notas". É o único mo-
mento em que, o diretor e a orquestra, se submetem à lei do
significante, às notas, e produz-se o seu efeito, a obra de arte,
a sinfonia.
Freud diz ao sujeito que se pôde chegar a essa conclusão,
foi com as associações que ele havia produzido: sangue que se
liquefaz, uma clara alusão ao calendário, porque Agostinho em
alemão se diz Augustinos - é mais direta a relação entre o mês
de agosto e Augustinus, homenagem a Augusto - o Genaro
com JanuLZrius, do qual deriva janeiro.
Outra vez a dimensão do hieróglifo; não se trata de averi-
guar as qualidades pontuais nem de Santo Agostinho oem de
São Genaro, nem sequer sua dimensão de santos, embora isto
esteja em jogo enquanto significante que insiste . Ambos, agos-
to e j aneiro, Augustinus e Januarius, para Freud, o que di-
zem?: calendário. Poderíamos acrescentar algo mais; não do
calendário ern qualquer uma de suas variantes, porque pode-
riam ser os dias da semana, senão o mês. E podemos aventar,
embora isto não esteja no relato do caso, que talvez se tratasse
do mês de agosto. As férias, no verão, provavelmente tiveram
algo que ver com esta data - de qualquer modo é uma inferên-
cia minha. não está indicada no texto.
Freud diz ao sujeito: ..0 scnhof produziu um lindo súnbolo
com o milagre de São Genaro". Problema do sfmbolo que, po-
der-se-ia pensar, é produzido por analogia, sangue que se Li-
quefaz, menstruação. Pois bem, não é nada disso. A analogia
aparece como efeito das associações significantes. Não é ana-
26 A CLÍNICA FREUDIANA

logia sustentada no parecido, mesmo no parecido das fonnas, a


que faz do milagre de São Genaro representante da preocu-
pação do sujeito por saber se a mulher que ele ama menstruou
ou não; mas sim, o contrário. Se essa analogia precipita é por-
que está sustentada pela associação significante que a produz e
precede.

CONVICÇÃO DO OUTRO

O sujeito então diz: ·•Não me dei conta disso". Efetiva-


mente, se .se trata do inconsciente, é radicalmente inconsciente:
prodLU seu ato, mesmo o ato de dizer, em desconhecimento; só
eD) tempo de posterioridade (apres-coup) -pode estar fundado
pelo tempo da interpretação - alcançará o saber que lhe con-
ceme.
Questão, já não de convencer, mas de convicção: o Sujeito
do Outto, oposta à crença, como nos propõe Pascal. A con-
vicção é possível poxque o sujeito recebe sua própria mensa-
gem invertida desde o lugar do Outro. Para que isto se produ-
za, o analista deve suportar uma aposta perdida, aquela que se-
• ·ria jogada a nível da competição; não serão as suas razões as
que convencerão, mas sim a letra do sujeito que desde o Outro
retome.
O jovem conclui dizendo duas c~isas: "Mas o senhor crê
que é realmente assim?". "Não será uma casualidade?" E
acrescenta: "Mas quero lhe confessar (confiSsão, algo que se
dirige ao Outro) que efetivamente a mulher da qual espero essa
notícia é italiana e com ela visitei Nápoles há pouco tempo:•
Muitos anos depois em ..Construções em psicanálise"17, Freud
indica como pode ser lido algo que implica a verdade de wn
ato interpretativo: pelo discurso que vem em seguida. Como o
inconsciente se abre e se fecha, culmina dizendo: "Mas não
será tudo wna casualidade?'', ao que Freud responde com algo
que não vai produzir convicção alguma: "Casualidades como

17. Freud, S. , ''Construcci.ones en psicoaoálisis"' , O.C., Madrid, BlbUo~


Nueva,l948, Tomolll.
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 27

esta se produzem sempre que há associações"; letra da expe-


riência de Freud, já não do sujeito.
Quando Freud faz o comentário deste episódio: ..Este é um
exemplo que, diferente do esquecimento de Signorelli, não
tem, no lugar onde falta wna palavra, wna lembr..nça substitu-
tiva"; depois coloca em letra pequenininha como chamada:

Bom, na realidade houve uma lembrança substitutiva, porque


quando, depois, o preti&ionei para saber se no momento em que Diio
lembrava de aliqui.t, lembrava de alguma ouaa palavra, disae-.me que
linba pensado em ab, que é wna preposição que se utiliza no ablativo,
e· que produzira nele uma intensific:açio da palawa t'XCritlrt, mas que
ele atribuía Aoon~ de ser a primeira palawa da frase. Freate à mi-
uba i.nsisú!ncia, oonfeaou-me que lhe ocom:u cxotcismo.

Este diálogo com o jovem tenninou quando Freud não se


deteve na menstruação, mas insinuou uma referência do que o
jovem pensava fazer se a menstruação não viesse: ..Terá algu-
ma relação com o que aconteceu a Simão de Trento, essa
criança que foi assasSinada?", aludia à possibilidade de wn
aborto. O sujeito respondeu: "É melhor não falar disso'• e o
pequeno epis6dio foi interrompido.

EX-POSIÇÃO DO ANALISTA

Freud escreveu que não houve lembrança substitutiva.


Aqui, digo eu; Freud tem que ser lido. Freud diz: ..0 que hou-
ve foi wna mudança na ordem das palavras". Uma mudança na
ordem das palavras, nada mais? Digo que não, que no lugar de
aliquis apareceu um elemento substitutivo que, efetivamente, é
wn elemento que está na frase de Dido mas que aparece colo-
cado no lugar onde deveria ter estado aliquis. O sujeito disse:
"Exoriare ex nostris ossibus ultor•, quando deveria ter dito
''exoriare aliquis'•, ex aparece substituindo a/iquis. Estou
lhes dando a fonna da metáfora, tal como nos é proposta por
Lacan18,

18. Lacan, J., "Du traitement possible de la psychose", tcrits, Paris, Seuil,
1966,p.557.
28 A CLÍNICA FREUDIANA

ex
------------~_____
aliquis
?______
aliquis

aliquis é o significante que cai sob a barra e ex aparecerá como


o significante metafórico que o substitui, ficando um lugar, o
da interrogação que implica o efeito de sentido que atinge o
sujeito. Mas, que sujeito, o jovem? Proponho; também Freud,
já que Freud diz "não há palavra substitutiva". O que será esta
partícula ex? A p~ula ex em latim é também uma preposição
do ablativo, tem muitas traduções, uma delas, se seguinnos a
linha do exorcismo, "exoriare" - quer dizer tirar fora de si-
(a frase diz: tirar fora de si, · 'aliquis'' é alguém, alguém nosso,
alguém de nossos ossos, "ultor" como vingador; então, que
surja de nossos ossos alguém como vingador), o ex, numa de
suas possibilidades·, é fora de, e acontece que "fora de", e as-
sim começa o diálogo, fdra das possibilidades da sociedade
vienense da qual faziam parte o jovem e Freud, ficavam aque-
les que pertenciam à comunidade judaica. Este ex não só con-
cernia ao sujeito, mas também à Freud. Freud diz; "é um jo-
vem culto, ambicioso e judeu.. , não se poderia dizer o mesmo
de Freud: é um jovem culto, ambicioso e judeu? Não se lamen-
tava sempre Freud de que ele não podia alcançar os títulos que
o claustro universitário outorgava a seus companheiros, por
" que pertencia ao povo marcado pela segregação?
Este ex é a marca que neste caso situa não só o sujeito,
mas também Freud. E aí se lê o desejo do analista. Além disso,
não é qualquer um que diz. a citação, é Dido contra o império
que Eneas vai fundar e que, como Marthe Robert19 escreveu
em algum lugar. não é senão o império romano; Roma, a Igre-
ja, especificamente a igreja cristã, católica.
Outra questão, que apenas menciono: ex aparece confrr-
mando, pondo em ato, que o recalque não se diferencia do re-
A CLÍNICA fREUDIANA: SEMINÁRIO 29

tomo do recalcado, que o inconsciente não se encontra por


trás, mas ao contrário, joga na superfície de um só lado e de
uma única borda que é a banda de Moebius; que a distinção do
enunciado e da enunciação, que em seus grafos Lacan situa em
dois níveis diferentes, desliza no mesmo movimento do discurso.
Da famosa aforia que tanto entreteve os lógicos, o famoso
"eu núnto", Lacan diz que tem uma interpretação: "essa é a
verdade"20 , decomposta entre a enunciação que diz "eu te en-
gano" dizendo no enunciado "eu minto". O "eu te engano" si-
tua, no lugar da enunciação, a posição do sujeito, mas ambos
estão em jogo nesse "eu minto". Nesse ex no lugar de aliquis,
desse alguém que tem que cair, segundo um desejo de morte
que aparece no sujeito, nesse ex, está o termo que substitui o
que deve cair, mas também o que retoma disso que cai.

O QUE RESTA-A-CONCLUIR

Volto às duas questões do começo. Fizemos a pergunta:


por que a c.l.fn.ka é o real enquanto impossível de suportar? É o
real impossível de suportar porque não há relação sexual, ü n'y
a pas de rappo11 sexuel. O real da psicanálise não é a letra;
que a letra seja da ordem do real não autoriza a afmnar sua
recíproca. O real da psicanálise é o sexo e especificamente sob •
a fonna de "não há relação sexual", tampouco entre o analista ·
e o analisante. A clínica é o real enquanto impossível de supor-
tar porque o desejo do analista se choca contra a roda da fortu-
na na qual o sujeito faz seu lance. Se é árduo escrever casos' ,
clínicos é porque contar um caso é contar do analista assim
como do analisante, não é outra a dificuldade em falar da clíni-
ca, que na verdade é falar pela cHnica.
A outra pergunta: por que clínica freudiana e não clínica
lacaniana? Porque a psicanálise na medida em que reintroduz a
dimensão do sujeito na ciência, faz do analista parte do concei-

20. Lacan, J., La qw:zrre concepss fondomentaux de la psyclu:malylle, Paris,


Scuil, 1973, p. )28.
30 A CLÍNICA FREUDIANA

to do inconsciente e seu desejo, o de F~ud, o daquele que


fundou a psicanálise, intrínseco à eficácia do proce4imento le-
gado; sem o desejo de Freud não há psicanálise. A clfni.ca
freudiana não é persuasão racional, nem sugestão em qualquer
wna de suas variantes, embora a sugestão esteja presente na
análise, mas não é a mola mestra de sua eficácia. A convicção
alcança o sujeito pela letra que é sua mensagem invertida que
chega desde o Outro, se uma letra do Outro aceita sua queda.
O analista faz sembklnt do objeto petit a, é uma a·posta perdi-
da.
Por que alguém deseja ser analista se se dispor a sustentar
esse lugar impossível é apenas sustentar o lugar de uma queda?
Por que o analista não corresponde à demanda de amor de seu
anaJisante? Por ascetismo? Por imposição do supereu? Por sua
própria dificuldade de fazer esse trânsito? Digo que não, que
se o analista suspende o que está sendo jogado nessa demanda
de amor é porque existe outro desejo articulado em sua eficácia
que o leva a sustentar essa a·posta perdida: desejo de morte.
Desejo de morte que, se está s ubjetivado, supõe uma morte que
abre para o ·gozo. Mas se o gozo do analista está em jogo no
espaço da sessão, assísúmos ao espaço de uma perversão. On-
de se situa, então, o que permite ao analista sustentar esse lu-
gar impossível? Essa é a função do escrito; não há analista que
possa sustentar esse lugar impossível se não exercita o lugar do
escrito; função do escrito que é a ética da psicanálise, tempo
do apres-coup supõe uma ética do gozo, o lugar do gozo do
analista. Se digo escrito, entenda-se pelo que disse antes - se o
inconsciente produz no dizer wn escrito - o dizer do analista
em sua análise, na supervisão, na relação com outros analistas,
é também lugar onde produz um escrito, o que acontece é que
cada um desses lugares tem seus tempos e chega o momento
em que o escrito é inevitável, tamb6m por suas dificuldades ló-
gicas. A história da psicanálise nos ensina ~ue foi neoes~o
para aqueles que foram grandes analistas. Ética do gozo, supoe
um gozo da escritura intrínseco à função do analista. Freud es-
creve este texto como um exemplo a mais? Eu acho que não:
lhe é necessário, é tempo que conclui, para abrir outro tempo.
A CLÍNICA fREUDIANA:
A~ PERGUNTA~ DO PEQlJI:NO HAN~*

DE FREUD, O DESEJO

Noto que, em relação ao ano passado, somos menos, o que


não é mau. Não é mau porque a pergunta, ao menos para mim,
propõe a intinúdade; a pergunta desfaz a dimensão de muitos
para ser pergunta a cada wn.
O título tem duas partes: a clínica freudiana, as perguntas
do pequeno Hans. Em outro lugar onde, há pouco tempo, pro-
pus wn título que falava da cl6úca freudiana, citei, como agora
vou fazer diante de voces, duas definições que La.cao expôs
por ocasião da abertura da Sessão Clínica em Vincennes1: "A
clúúca é o real enquanto impossível de suportar"; outra onde
conclui: ..... é então aquilo pelo qual a clínica p sicanalítica
consiste em reinterrogar tudo isto que Freud disse". Duas defi·
nições sobre a clínica, uma remete a um texto, de Preud, outra
nos fala do real. Talvez possamos antecipar algo se dissennos
que o campo da psicanálise se sustenta, pelo menos em seu
movimento inaugural, porque nele se pós em ato não s6 a razão
nos termos que wna tradição científica promove como tal, mas

• VCIS!o CfiCrica do ttabalh.o apreaentado em Mayl!utica em abril de 1981.


I. Op. cil..
32 A CLÍNICA FREUDIANA

quando ela é sacudida desde outr'o lugar; talvez a articulação


das duas defmições possa começar a produzir em nós alguma
resposta se dissermos que a clfuica freudiana é possível porque
na sua origem se sustenta desde o desejo de Freud.

DE HANS, AS PERGUNTAS

Com o que implica a segunda parte deste título, •• As per:


guntas do pequeno Hans", esperamos dar prova de nossa pro-
posta. Não lhes disse o caso do pequeno Hans2 , mas especifi-
camente as perguntas do pequeno Hans, o que desliza para
uma ambigüidade precisa: por um lado, as perguntas que, no
caso chamado de o pequeno Hans, este formula, logo veremos
para quem; mas também as perguntas que o caso dirige a nós,
daí o adequado clima de intimidade. E desde esta perspectiva
as perguntas do pequeno Hans se dirigem a nós, psicanalistas,
são nossas perguntas, que nos chegam desde o lugar do Outro,
um texto que se escreve porque Freud suportou ..o real im-
possível de ·suportar".

PRlMEIRAS PERGUNTAS

Proponho aquela que, para mim, se situa como primeira:


quem fez a análise do pequeno Hans? Que se desdobra em ou-
tras duas: quem foi o analisante? Quem foi o analista? Freud
nos diz no começo do caso que, a rigor, não foi uma obser-
vação direta: "Dirigi, sem dó.vida, o conjunto do tratamento,
mas foi o pai quem levou adiante essa análise", se foi possível
- tentemos nos situar na época heróica em que pela primeira
vez se tentava a análise de uma criança- foi graças à afortu-
nada conjunção que uniu a autoridade paterna e a autoridade
médica, coincidência do interesse familiar com o interesse
científico.

2. Freud, S., "An4llsis de la fobia de un nilio de cinco afios'•, O .C. l\.ladrill,


Bíbliorcca Nueva. 1948, Tomo li.
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 33

Foi então, como se poderia supor, o pai .quem se situou no


lugar do analista? Teríamos que nos perguntar o que situa esse
lugar na análise de um neurótico. Dizemos que é uma demanda
que faz desse lugar assento de um saber possível, daquilo que
o sujeito sofre, que fala nele sem que saiba que fala. Se o pen-
sarmos desde esta perspectiva, Hans várias vezes propõe es-
crever cartas a quem sabe, ao professor. Questionaríamos,
então, ter sido o pai o analista do pequeno Hans; esse lugar foi
do ·•professor que sabe".
Que a mensagem que desse lugar retomou ficou mediada
pela voz que o pai lhe emprestou, é algo indubitável, como
também os efeitos que produziu no desenlace deste caso. Desse
desenlance deixo, por ora, em suspense, estas perguntas: foi
conseguido o que se desejava?; coincide com o que Freud es-
creve, em algum lugar, sobre a epfcrise?

OUTRA PERGUNTA

Outra pergunta: quando começa a análise? O relato do ca-


so nos conta que os pais do pequeno Hans eram ardorosos par-
tidários da nova técnica e disciplina que fazia sua irrupção no
começo do século, que o pai do pequeno Hans, como uma con-
tribuição a essa disciplina de cujos postulados compartilhava,
tinha recolhido e anotado uma série de alternativas da vida
de SeU filho. Essas anotações começam com uma pergunta: .
Hans diz à sua mãe: - "Escuta mamãe, você também tem uma
coisinha de fazer xixi?"- "Naturalmente"- diz a mãe- "por
que você está perguntando?"- "Não sei". O envio do mate-
rial, do pai a Freud, aparece como uma contribuição desinte-:-
ressada, coleta de dados feita por um pai que vê crescer seu fi-
llio e o escuta desde uma teoria que lhe interessa, a psicanálise.
É assim? Propomos outra resposta: Não será que a resposta na-
tural da mãe, quando diz que naturalmente tem isso que lhe
perguntam, situa a causa da demanda paterna? Sua mulher,
a mãe de Hans, fora paciente de Freud; o pai de Ha.ns lhe envia
essa observação supostamente desinteressada, àquele que havia
34 A CLÍNICA FREUDIANA

sido analista de sua mulher; situa uma pergunta e uma resposta:


que lugar outorga a um pai dizer de sua mulher?
Outra questão que nos propõe o início do caso, qüe pelos
desenvolvimentos que Lacan vem fazendo há mais de trinta
anos j á é amplamente conhecido, mas que convém retomar na
letra de Freud: em contraposição a uma suposta progressão li-
bidioal por etapas marcadas naturalmente, começa situando a
questão da ordem fática. Este começo da observação também
nos indica que a psicanálise implica algo da ordem do saber.
De um saber que não se sabe: o pequeno Hans não sabe por·
que formula essa pergunta, desconhece as condições da enun-
ciação do seu enunciado.

SIMBOLISMO, CASTRAÇÃO

A observação do pai continua com a preocupação do pe..


queno· Hans centrada na mesma questão. Relata uma afirmação
do pequeno Hans, o que poderia se apresentar sob o modo de
uma observação, quando o pequeno Hans diz: "a coisinha da
vaca dá leite". Aqui poderia muito bem vir alguém e dizer:-
..Está vendo, a equivalência ~nis-seio 6 indubitável, a obser-
vação o demonstra"; sim, sem ddvida nesta seqüência há uma
equival~ncio. pênis-seio, mas trata-se justamente de urna
seqüência e sobre isso vamos dizer algo na medida em que
avancemos: ~ uma resposta - pelo meoos assim propomos a
vocês - que é conseqü!ncia da resposta materna. Se o pequeno
Hans pode fazer uma equivalência pên.i.rseio é porque a partir
de um Lugar que não é qualquer um, aquele que se sustenta no
corpo primordial, o corpo matemo, foi dito: "sim, naturalmen-
te, tenho coisinha"; se essa observação propõe uma equivalên-
cia simb6.l ica, sustentada nas semelhanças, um libere semelhan-
te a um pênis, é porque existe um discurso prévio que torna is-
to possível.
O relato do caso prossegue contando, no anedotário - es-
tamos ainda numa etapa p~via, embora, pelo que dissemos an-
tes, questionwnos onde começa este caso - que o pequeno
Hans recebeu o que na terminologia freudiana é a ameaça da
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 35

castração, desde o lugar que Freud costuma dizer que ela· che-
ga: a mãe disse a Hans quando tinha tiês anos e meio que se
continuasse tocando na coisinha o Dr. A. a cortaria. Serve para
situar a posição subjetiva na qual o pequeno Hans acaba, de>-
pois deste movimento que decide a estrutura que o constitui.
Em Hans a ameaça da castração foi introduzida, e o fato de
que a mãe se refira ao Dr. A. nos permite inferir algo também
de sua estrutura: trata-se de uma estrutura neurótica.

PECADO DE S ABER

O pequeno Hans fala de seu gozo, seu entusiasmo ao ver o


pipi dos leões. Freud faz um comentário - não oculta suas sim-
patias - a respeito das aptidões do pequeno Hans como inves-
tigador e diz algo que, nestes tempos da psicanálise pelos anos
que esta já tem, não nos espanta mais: a relação entre o peque-
no Hans investigador e a curiosidade sexual~ para nos espan-
tarmos temos que tomar alguns desvios, por exemplo, acudic ao
mito bíblico. Fica diffcil, depois da irrupção da psicanálise en- ·
tre os discursos deste século, reduzir a religião ao ópio dos po-
vos; em princfpio, temos que aceitar que é um produto eminen- ~
temente humano, tanto quanto a piada, e o núni.mo que pode-
mos nos perguntar é : se certos relatos persistem em sua trans-
missão e na credibilidade que a eles se outorga ao longo de
dois mil anos é que algo neles logra esta eficácia. O que esta·
mos dizendo é algo óbvio, sabido, outro modo de interrogar
porque os mitos têm o valor que têm.
Se nos referirmos ao mito bfblico contado no livro do Gl-
nesi.i3 a respeito do casal Adão e Eva, lê-se q ue num detemú-
nado momento o Criador lançou uma proibição; no Eden onde
nada falLava, havia duas árvores diferenciáveis: da imortalida-
de e da ciência. A proibição recaiu sobre a árvore da ciência;
sua conseqüência: proibido seu fruto, a transgressão foi ine-
vitável; segundo diz a Bíblia, por isso continuamos pagando.

3. Sot;rtukJ Blblia, Madrid, Cat61ica. 1969.


36 A CLÍNICA FREUDI ANA

Adão e Eva descobriram o sentimento do pudor; o primeiro


que fizeram foi se cobrir. Saber foi proibido e se se sabe, algo
não deve ser visto, e ainda mais, por isso que se sabe, se vai
morrer. Daí em diante o relato diz que foram expulsos do Eden
e a mortalidade os alcançou como também nos aguarda. Com
uma dupla maldição; para ele, ' ' ganharás o pão com o suor de
tua fronte"; para ela, " parirás com dor" ; para ambos algo terá
de cair, entre suor e dor desprenderão seu produto.
Com Freud: no gosto pela investigação algo se articula em
relação ao sexo, algo do sexo convida à investigação. Freud
disse que o seu interesse era o de um investigador, também
dissemos, trata-se de Freud, seu texto e o real imposs!vel de
suportar, é pois tamb6m questão do sexo, de Freud.
O pequeno Hans, preocupado com a questão da coisinha,
insiste e ordena o mundo em objetos animados e objetos ina-
nimados; os animados ~m coisinha - não é Lacan, é o pequeno
Hans quem nos diz que o falo é ordenador do mundo. O pe-
queno Hans pergunta com o olhar à sua mãe, que acaba de di-
zm: que ela tem coisinha. A mãe lhe diz: "o que voc8 está
olhando?" O pequeno Hans insiste: "para ver se você tem uma
coisinha de fazer xixi". A mãe responde: "Naturalmente, você
não sabia?" A dimensão do saber atravessa de um extremo a
outro o movimento do caso. "Não", diz. Han.s, " pensava que
como você era tão maior voc8 teria uma coisinha como um ca-
valo".

O ENIGMA E AS IGNORÂNCIAS

O cavalo vai irromper no centro da sintomatologia decla-


rada do caso do pequeno Hans: será o objeto de sua fobia. É
oode o pai situa a origem do caso. O pequeno Hans tem medo
que um cavalo o morda na rua e o pai supõe que isto esteja re-
lacionado ao susto experimentado pela visão de um pênis de
gmndes proporções. Embom pareça diffcil perceber as impli-
cações da tese do pai, concordamos com o que propõe e já ve-
remos como.
Há algo que o paí diz que não ~ banal - hoje propusemos
A CLíNICA f;REUDIANA: SEMINÁRIO 37

que o tema não era o relato do caso, embora estejamos falando


o tempo todo dele, mas as perguntas do pequeno Hans: não
gostam, nem ele, nem sua mulher que Hans llies proponha
enigmas. É possível um analista que não suporte a dimensão do ·
enigma? É verdade, não é fácil suportar um enigma se nos
lembrarmos do que aconteceu com quem se confrontou algwna
vez com um enigma que fez história, Édipo e a esfinge.
Freud escreve: não se deve compreender instantaneamente
um caso patológico; parece resposta ao desagrado de wn pai
que não gosta que seu ftlho lhe px·oponha enigmas, que se opõe
à posição do analista sustentando a falta no saber.
Nicolau de Cusa, cardeal, escreveu por volta de 1400 em
De la Docta lgnorancict' que todo o conhecer supõe o exercí-
cio da proporção: aplica-se ao desconhecido aquilo que se co-
nheçe e dessa proporção, na medida em que se consiga, surgirá
um conhecimento possível. Mas como no mundo do finito a
igualdade não anula a diferença, sempre haverá uma diferença
entre o que se conhece e o que é. Ainda mais se se tenta co-
nhecer o infmito, o infmito absoluto, o infmito máximo, o infi-
nito em ato - para Nicolau de Cusa tudo isso remete a Deus -
nossa inteligência, qualidade finita, deve aceitar que o conhe-
cimento rigoroso está recortado pela distância que separa a es-
trutura de um e outro. Situar isto não é simples ignorância mas
ignorância que se reconhece como tal, nos limites da estrÚtura
que a propõe, ignorância douta.
O problema ocorre quando, na dimensão do sujeito, a que
nos conceme no campo da psicanálise, um saber primeiro se
propõe como saber que se sabe e não tem, por efeito de um
enunciado, possibilidade de cair enquanto tal. De outro modo:
se algo nos permite situanno-nos como psicanalistas dispostos
a suportar as ~rguntas, ficarmos diante da esfmge, tolerar a
dimensão do enigma, é porque se trata de nossa pergunta, de
nosso enigma, que s6 se produz como tal a partir do momento
que o primeiro saber que nos habitou, caiu. Qual? Que tock's
tinham coisinha porque, como dissemos, o qlle primeiro apare-

4. de C usa, N., De la D()Cta lgrwrcmct, Paris, Maisrúe, 1979.


38 A CLlNICA FREUDIANA

ce, como na ordem deste caso, é a preocupação pela coi..sinba;


primeiro a ordem fática. Que possibilidade existe de nos si-
tuarmos na dimensão do sujeito, na Douta Ignorlncia que faz
de cada um investigador do sexo, quando desde o lugar onde
teria que se produzir a queda do primeiro saber, este se reafir-
ma? A mãe diz: "todos temos coisinha... O saber materno é
causa da impotência do pequeno Hans. A "Douta Ignodocia••
• é a que transforma a impotência em passagem ao impossível. E
o impossível de inscrever-se, nio 6 senão - como diz Lacan -
''não há relação sexuar•s.

"NÃO HÁ PROPORÇÃO SEXUAL"

Em Caracas, num congresso que houve no ano passado, J.


A. Miller propunha como tradução de il n"y a pas de rapport
sexuel: "não bá proporção sexual"; não é a que eu mais gosto,
porque perde algumas das conotações que "não bá relação se-
xual" implica - do encontro amoroso, o relato, a relação lógica
-mas para nosso desenvolvimento pode servir; sim. o real. o
impossível de inscrever-se. é que não há proporção sexual en-
tre o Outro - entenda-se, em princípio, o Outro (A) primordial,
a mãe - e o filho como objeto parcial - digo isto assim, descri-
tivamente, embora não coincida com o objeto parcial ldeiniano,
na letra lacaniana o chamamos o objeto petit a (a)- não há re--
lação de proporção, há um resto, um irracional, um nómero que
continua ao infinito, que podemos chamar de cp (fi).

~ = cp

Sua condição é que nesse lugar A, se encontre um A barrado,


um lugar ondé o Outro se demonstre em falta.
Quando falamos da proporção no conhecimento, o saber
que não cai, que não dá lugar à "Douta Ignorância", é ele que

S. Lacao, J., "L'Etourdil" , Sc/Jicet, n~ 4, Pflris, SeuU, 1973, p. 30.


A CLfNICA FREUDIANA : SEMINÁRIO 39

sustenta a impotência imaginária, bane.ira contra o real ~


possível.

LIBERDADE E ANGÚSTIA

O caso, para o pai, começa com um sintoma: a fobia ao


cavalo. Sintoma que tem seus antecedentes: antes da fobia.
conta o pai, Hans teve sonhos de angt1stia. Quando lhe pergun-
taram, contou que neles sua mãe ia embora e n ão tinha quem o
acariciasse. Hans tinha quatro anos e nove meses e sua innãzi-
nba tinha nascido quando ele tinha três anos e meio. Saiu com
sua babá e teve acessos de angástia, quis voltar para sua mãe
para que o mimasse, de noite chorou e não quis separar-se de-
Ja. Poucos dias depois passeou com sua mãe e ao retomar disse
que teve medo de que um cavalo o moroesse: a fobia estava
instalada. Interrogado por seus pais confessou que, nesses dias,
todas as noites tocava na coisinha.
O relato do caso nos diz que antecedendo à fobia irrompeo
a angústia, angústia que a cronologia não relaciona ao nasci-
mento da irmã - interpretação que algumas vezes foi formulada
- e que o relato do caso inscreve em contigüidade com o relato
que o pequeno Hans fez de sua masturbação. Nos é proposta a
questão da angástia, retoma a sexualidade, mas também a di-
mensão. já que antes falei da Bíblia, do pecado.
Kierkegaard escreveu sobre a angdstia. 6 Em seu tratado
disse algo estranho: "Veio o pecado ao mundo e foi estabele-
cida a sexualidade sem que_pudesse, a partir desse .momeoto,
separar-se wna do outro. Sem pecado não há sexualidade'
sem sexualidade não há história". Que estranho, sexualidade
.
e pecado. Kierkegaard pensa o enigma do pecado original, se
pergunta porque aparece Iio centro da teologia cristã: desde o
pecado original todos somos pecadores. Sua preocupação
aparece manüestamente situada na dimensão do teólogo. O
fato de que se apresente segundo o modo do teólogo não quer

6, Kicrkcgaard, S., E/ conapro de la tJJtgu.ttiD, Madrid, Espasa Calpe, 1972.


40 A CLíNICA fREUDIAl"A

dizer que nos exima de ler af uma pergunta na dimensão do


sujeito. Kierkegaard escreve que há wn tempo prévio ao do
pecado: o tempo da inocência: quem não escutou alguma vez
que as crianças são inocentes, anjinhos? O que é um anjinho?
Alguém que não se angustia. Vocês imaginam um anjinho
angustiado? Isso também faz com que - como diz L..acan - te-
nham um pouco cara de bobos; se algum dia lhes faltasse algo
para viver, já não teriam essa cara de bobos; mas os anjinhos
não se angustiam. O que é a inocência? Diz. Kierkegaa.rd: " A
• inocência é ignorância do pecado" . Mas como essa inocência,
pelo menos na dimensão humana, não tem a extensão abso-
luta que pode alcançar na do anjo, algo vem antecipar que o
pecado é possível; esse algo, diz Kierkegaard, é a angústia e
o que o anuncia produzindo-a, é a proibição, porque se per-
gunta, o que terá significado para Adão, que o Criador - es-
tavam todos contentes, desfrutavam do paraíso - viesse um
dia e dissesse: "Dessa árvore não deves comer"? Deve tê-lo
olhado oom estranheza. Supõe-se que o amor a Deus era infi-
nito, por isto não deve ter dito, como diria qualquer wn de
nós: " O que será que deu nele"? mas, pelo menos, terá sig-
nificado algo estranho, algo de cuja dimensão não pôde ter
idé ia. " Ainda reina a inocência, mas basta que ressoe uma
palavra para que se ooncentre a ignorância... A proibição o
angustia pois a proibição desperta a possibilidade da liberda-
de nele e, portanto " - oonclui Kierkegaard -" a .angílstia é a ·
realidade da liberdade como possibilidade autes da possibili-
dade". Como falar de liberdade, pecar ou J).ão pecar, antes
que se instale a possibilidade mesma do pecado? É o que diz
• São Paulo na Epfstola aos romanos: sem lei não há pecado.
Angústia, realidade da liberdade, algo de sua dimensão está
em jogo.

O SEXO DO OUTRO

O pequeno Hans: a angústia, a não ser que tizéssemos


psicologia, dessa que Freud nos convida u não fazer, não co-
A CLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 41

meça com o nasciffiento de sua innãzinha. Começa com a ma-


nipulação do pênis. Por quê? O que é que essa manipulação
vem incomodar? Precisamente uma proporção: entre o Outro
primordial que se apresenta sendo tudo e o pequeno Hans
oomo seu produto. Na proporção que se estabelece entre o
Outro e o sujeito identificado· ao objeto a - quando Lacan es-
creve Outro, implica também o Outro subjetivado, o Outro
oomo a bateria dos significantes - PªI'a esse Outro, a é o
complemento fáJico que o toma completo; se a mãe diz "eu
tenho um pênis", ao mesmo tempo está dizendo "você é meu
pênis". O que acontece se quem se coloca sendo o falo de
quem diz que o tem, de repente afinna: "eu tenho pênis"?: a
proporção começa a se estilhaçar, para o pequeno Hans co-
meça a se abrir a via da passagem de ser o falo da mãe a ter
um pênis - sigo os desenvolvimentos que Lacan propõe no
Semirufrio sobre as relações de objeto7 - movimento ínsti-
tuinte em qualquer um de nós, enquanto neuróticos, e onde a
angústia aparece como a possibilidade do fracasso dessa pas-
sagem de ser a ter que implica, se se tem, a condição de não
sê-lo. Castração no ser que antecipa a castração no ter. Eis af
a angústia de castração: que a mãe não tenha é também para
Han:s deixar de ser o falo. A mãe insiste em que ela tem; a ní-
vel prático Hans pode entrar na sua cama, não é mais do que
um fato que vale na concatenação dos discursos. Digo isto
para ir contra wn certo rebaixamento do discurso psicanalfti-
oo onde se confunde o efeito com a causa e onde a função do
corte narcisismo-mãe fálica é rebaixado a uma ideologia de
um ideal de independênc ia.
As respostas que a mãe dá às perguntas que Hans formu-
la, obturam o movimento que lhe teria permitido atr.:wessar
esse desfiladeiro - o da castração - onde ele cairia como pê-
nis da mãe - relembrem a maldição dirigida a ela: "Parirás
com dor" - a dor de algo que se desparafusava - outra vez
entre aspas diz, efetivamente, " parcl consertá-la" - e pegava

7. Lacan, J., " La rclation d'objet et le~~ st:ructliJ'e.S Creudic:nnes", Bulletin de


Psychologie, Paris, 19.56,
42 A CLÍNICA FREUDIANA

uma chave de fenda muito grande e a espetava em sua barri-


ga.
As respostas da mãe enclausuram o pequeno Haus numa
• posição de identificação com ela: ele também terá suas filhas.
Na concatenação dos discursos esta fantasia reclama no
enigma que propõe: o que é a procriação? Se ela o tem, como
se produz o ato sexual? Como chega o que um homem dá a
uma mulher?
A segunda fantasia na qual Freud lê o êxito deste trata-
mento, diz assim: "veio o encanador com uns alicates e me ti-
rou primeiro o traseiro e me colocou outro e depois a coisi-
nha; me disse: 'mostra-me o traseiro' e tive que me virar e ele
o tirou de mim e depois disse: 'mostra-me a coisinha'." O pai
acrescenta: "e depois ele o tirou de você". Mas é o pai
que acrescenta, não o pequeno Hans. Freud lê nesta segunda
fantasia que aparece relatada no final do caso, wna prova de
que a casttação se produziu. Lacan - coincidimos com ele
- impugna esta conclusão, porque o que lhe foi tirado é o Q:a-
seiro; não é a mesma coisa. E onde leio algo qUe desmente a
aílrmação de Freud a respeito da posição viril a que o peque-
no Hans teria chegado, é no que a genialidade de Freud não
deixa de dizer por sua própria pena: diz Freud- retoma o que
disse antes sobre as marcas desta análise que sustenta o lugar
do SuJeito suposto Saber no professor mas que enuncia a in-
terpretação na voz do pai: ."se tivesse de~ndido s6 de mim,
teria .re arriscado a dar a Hans mais uma expllcação, que
seus pais silenciaram; teria confumado seus pressentimentos
instintivos revelando-lhe a existência da vagina e do coito,
com o que teria dimi nuído ainda mais o resto não solucionado
e teria posto fim a seu impulso interrogante".

POSiÇÃO QUE CONCLUI, E SE LÊ...

Estou de acordo com Frcud; a ignorância da falta, conse-


qüência da ausência de referência materna à vagina, pela difi-
culdade que introduz no fantasma da procriação e do coito,
. A CLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 43

deixa o pequeno Hans numa repetição int.em>gante que impe-


de uma dialética interrogante. Não teria acabado com suas
. perguntas mas teria lhe possibilitado prosseguir sua interro-
gação par-a além de o~ ela se deté~ A posiçlío na qual o
pequeno Hans termina não é uma pos ição psic6tica, a castra-
ção foi enunciada. mas tampouco supõe a articulação neuróti-
ca da diferença dos sexos: o pequeno Hans quer ter filhos co-
mo a mãe, até af chega a dialética de Hans. Porque para o
pequeno Hans ·~ há resposta para o interrogante do coito e
da procriação: se mamãe tem coisinha, parn o pequeno Hans
fica irresoluto o que é um pai.
Metáfora paterna, sua falha inicia o caso por wn sintoma:
a fobia ao cavalo.
Conhecida a interpretação de Lacan:
Wegen dtrm Pferd, disse um pái à sua filha (podes, se o
acaricias, perder teus dedos).
Wegen - Wiigen (vagão, carro, veículo - no plural).
Pferd (cavalo que puxa o carro).
Esta articulação significante consignada em sintoma, é
interseccionada pelo tratamento e produz sua nova conclusão,
também seu novo enigma: Hans estrutura seu fantasma: terá
uma mel$la que se chamará Lodí. Capricho do significante,
inscreve no enigma que se faz letra, os rastros dispei'S06 no
texto do relato do caso:
Capricho do acaso, sua ordem se faz lei da palavra e nela
ata o sujeito:
Liz.zi: nome da menina a quem um pai advertiu; Wegen
dmz Pferd (por causa do cavalo, podes perder teus dedos, se
o acaricias);
Loisl: nome do cocheiro vizinho de Hans;
Mizzi: nome da professora que sentava Hanna- sua ir-
mãzinha - num cordeiro;
Saffaladi: salsicha;
Soffilodi: como a chamavam - à salsicha preta - sua tia e
também sua mãe.
Su~ fll.ba, Lodi, chega na seqüência que sucede as duas
fantasias pr6vias; posição na qual o pequeno Hans desemboca,
identificação homossexual com a mulher, fantasma de parto
44 A CLÍNICA FREUD IANA

anal, Lodi articula a dupla série em que falha a metáfora pa-


terna na conclusão propiciatória aos emblemas de seu sexo.

(sua filha)
Lcdi
~ ~ Softilodi
(cocheiro)
Loisl
Lizzí Saffaladi
(salsicha)
Mizzi

Uma articulação significante é elucídável no sintoma: o


cavalo que se apresenta como signo da fobia, é descoberto na
cadeia que o produz, significante da metáfora paterna. Letra
que a partir do real inscreve o corte que o sujeito especifica.
Também letra - Lodi - que não alcança senão a eficácia pre-
cária da transação no fantasma final: seu desconhecimento,
encurrala Hans, mais do que nunca, ali de onde pede para
partir: o fantasma de procriação na identificação ao Outro
primordial.

ARROZ CON LECHE*

Para concluir: por que Freud o chamou pequeno Hans, já


que seu nome era outro? Em outro lugar o chamou Herbertr
diz Jones8 • Por que o pequeno Hans? Eu não sei porque o
chamou de pequeno Hans, mas o que posso ler graças a uma
amiga, Ula Seibert que está presente, é uma poesia que na
Áustria e na Alemanha, segundo me foi infonnado, tem o
mesmo valor que o arroz con leche* em Buenos Aires: não

8. Jonea, E., Vida y obra de Sigmund Freud, Buenos Attes, Nova. 1960, To·
mo 11, p. 276. -
• Arroz con lecM : canção infantil, muito popular na ArgentiDa. A canção
d iz assim;
·'Arroz con loche, me quiero casar
con una senorita de San Nicolás
que sepa coscr, que sepa bordar, que sepa abrir la pucrta,
A CLíNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 45

há criança que alguma vez não a tenha escutado. É wna sorte


que habitemos o Arroz con Leche e não esta canção, real~
mente é uma so~e, porque esta poesia diz:

Joãoililho pequeno
pequeno Joãozinho foi sozinho
ao amplo mundo
bengala e chapéu
fue caem bem
está com bom ânimo
mas a mãe chora tanto
já não tem um J oãozinbo
então reflete o menino
e volta para casa rapidamente."'

Como eu lhes disse: era mellior o arroz con leche se quer


casar, e até escolhe: "com esta sim, com esta não". Será por
isso que o chamou o pequeno Hans? Em última instância, que
importa? O pequeno Hans forma parte da língua alemã, onde o
pequeno Hans viveu, e Freud escreveu.

para ir ajugar.
Cou esta sf, coo esta no, con esta seoorita me caso yo."
on em português:
"Amn doce, quero me casar
com uma senhorita de São Nicolau
quesa.íba costurar, que saiba bordar, que saiba abrir a porta,
para ir brincar.
Com esta sim, com esta oão, com esta senhorita eu me caso."
Brinca-se em roda, com uma criança no meio, que ao fio.al da canção, esco-
lhe, apontando com o dedo, com quem ''vaí se casar" (outra criança da roda), que
ocupa então o lugar da que saiu do centro.
• Htinschenlckínl Ging alleín!ln die weile Welt hineinl St«k wtd Hurl Stehl
ihm gutl lst gar wohlgerrwtl Doch die mutter weínt so sehrl Hal ja num~ Hiins-
CMn mehrl Da besinntl Sich das Kind/ Kehrt tUJch Ha..s geschwindt.
PIRVt'll<9,Õt:0*

Espero que a de hoje seja essencialmente uma jornada de


trabalho. O que me faz começar por essa observação é o m<r
do como me foi formulado o convite: que falasse sobre wn te-
ma. esse que todos lemos no convite de hoje, e que mencio-
nasse quem mais poderia trabalhar comigo e junto a vocês
esta questão. Uma modalidade que pudesse ser freudiana.
Diferente de outra que Freud sempre criticou, esse painel de
discursos não encontráveis, quando posições absolutamente
divergentes tentam produzir um espaço impossível, porque
não há discurso que os aproxi.rre. Freud o dizia a seu modo:
"o urso polar e a baleia, é impossível que se encontrem"1•

Sou um enfermo, um bomem mau. Não há nada de atrativo em


mim. Acho que o meu fl'gado anda mal. Mas na verdade não sei abso-
lulalllente nada sobre minha doença. Nem ao menos estou muito certO
de q ual seja. Não estou em tratamento e nunca estive, embora sinta
grande respeito pela medicina e pelos nXdicos. Além do mais sou
morbidamente supersticioso, ao menos o bastante para respeitar a me-
dicina. Pela minha educação não deverin ecr supersticioso, nw; aou.

• Conferencia pronunciada nos Jornadas de Psicopatologia do Centro de


Sa4de Mental n9 3.
I. Freud. S., ..Hisldria de una neurosis infantil", O.C., Madrid, Biblio~ECa
Nucva, 1948, Tomo li, p. 713.
48 A CLÍNICA PREUDIANA

Não, eu diria que rejeito a ajuda mb:lica somenle por espírito de con -
t
lradição. Não espero que entendam isto, mas ~assim. claro que oão
posso explicar quem estou tentando enganar desta maneira. Tenho
plena consciência de que não~ possfvel prejudicar os médicos impe-
dindo que me curem. Sei muito bem que o prejudicado sou eu e mais
ninguém. Mas de q ualquer maneira, só por maldade me nego a IICeitar
sua ajuda. Dói o meu ffgado? Magnífico! Que ool}tínue doendo!

Assim diz, em seus parágrafos iniciais, um narrador que


fala desde a ratoeira. É o narrador de Mem6rias de subsolo. d e
um autor muito freudiano. refuo-me a Dostoie vsky2 • Se al-
guém pensou que era eu, logo verão, pelo que segue, que não é
questão de se propor a isto. Não é qualquer um que pode dizer:
"Sou um enleemo, um homem mau".
Por que esta remissão à literatura? Não seria melhor recor-
rer à nossa experiência, um exe mplo clfuico? Por que a litera-
twa? Dou uma primeira resposta; a última será. também a con-
clusão deste trabalho: a literatura é pertinente para expor a psi-
canálise porque algo é homogêneo a uma e outra; o campo da
linguagem que se oferece para a função da palavra.
Mas bem poderia meu interlocutor ainda continuar insis-
tindo. "Bom, está certo o que você diz da literatura, Freud o
fez tantas vezes ! Mas. e o exemplo clfuico?"
Vou citar outro autor que vai nos acompanhar nesta noite.
Como se trata do campo da palavra, pode ocorrer que um
morto nos acompanhe e trabalhe conosco. R efiro-me a um que
também Freud citava. Lacan, é claro! E talvez surpreenda por
que tantas vezes Freud tentou deslindar seu campo da persona-
gem que vou lhes apresentar. Freud o menciona no texto sobre
o masoquismo. Ali menciona o imperativo categórico kantiano.
Diz Kant em Fundanumtação da metajfsica dos costtones3:

O pior serviço que se pode prestar à UIOrali-dade l querer dedu-


zi-la de certos exemplos. f>orque qualquer exemplo q ue se a.p resente
dela tem que ser, por sua ve-z , previamente julgado segundo princípios

2. Dostoicvski, F., Memmias tkl ~ bsuelo, Buenos Aiica. Jorge Alvarez,


1969.
3. Kant, M ., F ~ntacit$n tk lo metajfsica tk las costl.llnbru, Madrid, Es-
pesaCaJpe, 1977.
A CLÍNICA FREUDJANA: SEMINÁRIO 49

da moralidade. E o exemplo não pode, de maneira alguma, ser o que


nos proporcione o conceito da moralidade...

Quem propõe wn exemplo supondo que é a realidade que


nos conceme, desconhece que situar algo em estatuto de
exemplo é pôr em ato uma teoria, reconheça-a ou não. Isto
quer dizer que o exemplo é descartável'l Certamente não, mas
tem que ser dado a ele o lugar que lhe convém. E aquele que
me ocorre propor a vocês é aquele desde o qual se interrogue
qualquer saber constituído.
Voltemos a nosso sujeito, esse que tem coragem de come-
çar dizendo: "Sou um enfenno.. , mas, em seguida, corrige e
diz: "um homem mau ... O que é "um homem mau?" Na lin-
guagem popular, mau poderia muito bem ser perverso. E al-
guém perverso poderia muito bem ser homologado a alguém
mau. O que supõe que um perverso mau ou que um mau seja
perverso? Poderíamos, talvez, pensar que se não é perverso
não seria mau. talvez seria bom. Bom. bondade, alguém que
faz o bem? Pergunta, então, pelo bem? O dicionário se atém à
raiz latina e diz: "perverter" provém de "inverter". Inverter o
bom pelo mau?
Alguém nos diz, desde o começo, ''sou mau". E além do
mais: "Me dói o fígado? Magnífico~ Que continue doendo!"
Se alivia, se consola na dor. Que bem pode encontrar este ho-
mem na dor? Mas, algum de vocês poderia me dizer, como dis-
se Lacan em algum momento à tradução que se fazia em fran-
cês do texto de Kant: "não estaremos aqui confundindo bem e
bem?" 4
Há wna frase em alemão que diz: Man fühlt sich wohl im
Guten (alcança-se o bem-estar no bem). A gente se sente
wohl - bem - im Guten - no bem. Mas, é o mesmo bem? Tal-
vez o castelhano nos ajude se pensannos: "Alcança-se o bem-
estar no Bem".
Diferenciamos uma questão que desde o começo interroga
os princípios éticos que. supomos. nos guiam. Quem não gos-
taria de crer que o bem-estar se alcan!fa no Bem? Pois bem,

4. Lacan, J ....Kant avec Sadc", Écriu, Paris, Seuil, 1966.


50 A CLÍNICA FREUDIANA

este senhor que começou falando no início desta jornada diz


que para ele é magnffico pensar que é wn homem mau e que
algo lhe doa. Sente-se magnüicamente bem no Mal.

E a~ora quero lhes dizer, damas e cava!heircs , gostem ou não,


pQr que oem sequer pude me oonverter em um inseto. Em primeiro
lugu. devo declarar oom toda solenidade qije muitas vezes telltci cbe-
gu a sê- lo. Mas eu lhes pergun to: quem pode sentir prazer QXl exibir
sua enfennidade e inclusive orgulhar-se dela? Mas, pensando melhor,
direi que todos fazem isto. As pessoa~ se oomprazem com seus defeitos
e talvez eu mais do que ninguém. Quanto mais consciência tinha do
oom e do belo, mais profundamente me afundava no lodo e mais pro·
wvel era que continuasse atolado. Cheguei a um ponto em que e:\pe-
rimentava certo prazer secreto, doentio, baixo, em arrastar-me até
meu buraco depois de alguma noite de$agradável em Peten;burgo e me
o brigar a pensar que tinha voltado a ser algo sujo, e que a coisa já não
tinha remédio, e por dentro me mordia, me de$garrava, me couoía,
att que a amargura se transformava nwna doçura vergonhosa, maldita
e, finahneotc, num grande prazer indíscuúvel. Sim, sim, decidida-
mente wn prazer, digo isto a sério. Por isso comecei com este tema,
queria descobrir se outros experimentam também este tipo de prazer.
Explicar-me-ei. EllContrava pra2;er precisamente oa ofuscante certeza
de minhA degradação ...

Trata-se de uma vontade de mal. Alguém quer o mal e nele


se alivia. Que razão pode levar alguém a se aliviar no mal, na
vontade do mal?
A razão, diz Kant na Crftica da razão prdtica 5 , se ocupa
dos motivos detenninantes da vontade. Acudimos a Kant que
interrogou: que razão faz com que a vontade procure o mal ou
procure o bem? Questão primeira se se trata de um discurso
perverso. Não fazemos outra coisa senão seguir uma estrada já
aberta por Jacques Lacan em seu texto "Kant com Sade" 6•
Pois bem, a razão da vontade, que determina alguém a produzir
tal ato, e não tal outro, pode ser o bem-estar, regulado pelo
princípio do prazer? É bom o que me dá prazer? Diz Kant:

Um principio que só se funda na oondiçáo subjetiva da receptivi-


dade de um prazer ou dor, que nunca pode ser reconhecido mais do

5. Kant. M., CrfliaJ tk itJ rtZZ6n pnktic4l, Buenos Aires,l...o&ada, 1%1,


6. Laam, J., Op. cú.
A C LfNlCA FREUDIANA: SEMINÁRIO 51

que empiricamente e não pode ser válido do mesmo modo para todos
os entes rac1onais, pode servir de mhima para o sujeito que a possui,
mas não de lei para esta ...

Que o bem seja o que me dá prazer, admite tal variedade


de respostas confonne a subjetividade de cada um, que toma
impossível a determinação da lei enquanto regente da univer-
salidade dos sujeitos. Grande mérito de Kant: retirar como pos-
sível resposta o que só serviria para a particularidade, no má-
ximo para a generalidade, mas nunca para dar conta do que
toma crível um enunciado que a ciência reconhece como le i: o
reconhecimento de uma estrutura vigente para todos os casos
aos que ela remete.
Pode isso ser pedido à psicanálise? Embor-.1 nossa discipli-
na não seja homologável à ciência popperiana, sua aspiração
de cientificidade, que Freud nunca renegou, exige que, se se
trata de dar conta de uma estrutw-a, esta responda em tennos
que possam situar a totalidade dos casos a que ela remete.
Trata-se, pois, de defmir a lógica do objeto que lhe conceme.
Introduzirmo-nos, nos metermos, como fazemos hoje, a traba~
lhar com a perversão, implica uma condição prévia, teórica e
também prática: decidamos primeiro o que sustenta a moral, o
que define uma ética, o que é o Bem. Quando digo o que é o
Bem, não é porque assim responda ao que é a moral e ao que é
a ética, mas precisamente porque é o que durante séculos foi
obstáculo para pensar esta questão.
É pois, para Kant, e também para nós, do bom sem res-
trição, do universalmente válido, o que pode colocar-se para
qualquer sujeito. É possível situá-lo na dimensão do objeto? Se
substituirmos: "alcança-se o bem-estar no bem" por "al~ça­
se o bem-estar com tal ou qual objeto", é possfvel alcançar
uma resposta? Que certamente nos conceme é algo da prática
de todos nossos dias. Quem não escutou algwna vez a ava-
liação de um tratamento efetuado em tennos dos chamados
" logros" (sucessos) de seu paciente? Mas, como bem nos ensi-
na Kant, a multiplicidade dos objetos possíveis está falando
também da variedade dos apetites e inclinações que estariam
em jogo, que tomariam difícil uma detenninação válida para
52 A CLÍNICA FREUT>JAJ\"A

toda ocasião. Nisto- coincidência com a teoria psicanal(tica -


implica queda de qualquer objeto da realidade. Implica uma
queda da ética dos bens, do bem-estar, também do conforto.
Por af não é possfvel uma resposta sustentável a não ser desde
o preconceito do analista.
Como sai Kant do atoleiro? Que, antecipo, não vai ser
nossa resposta. Kant dirá: não se trata de wna multiplicidade
de bens, mas do Bem válido para todos, enquanto entes racio-
nais. Portanto, o Bem Supremo. E qual é o Bem Supremo que
guia uma vontade? Pois bem, se trata de que essa vontade pos-
sa ser reconhecida como boa vontade. E o que é isto de uma
boa vontade? Quando a vontade tem o seguinte princípio:
"Age segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo
tempo, que se tome lei universal". Esta é a máxima kantiana.
A oposição entre máxima e lei, para ser rigoroso : máxima~ o
• princípio subjetivo do querer. Lei é o princípio objetivo do
querer, com validade universal.
Vou contar somente um dos exemplos que Kant propõe.
Suponhamos que alguém - além do mais é um exemplo muito
pertinente à realidade nacional - precise pedir dinheiro em-
prestado. E pense: "eu vou pedir embora não saiba se algum
dia vou poder devolver". Kant diz o seguinte: é sustentável a
máxima que autorizaria o sujeito desse enunciado, como lei
universal? Poderia alguém fazer desse enunciado: "peço em-
prestado embora não saiba se cumprirei minha promessa de de-
volução", lei universal? Kant diz: não. Por uma simples razão.
Se assim fosse ninguém acreditaria na promessa, a promessa
deixaria de ter lugar. Há uma razão intrínseca ao enunciado
que decide se se sustenta como máxima identificável a wna lei.
Nosso sujeito, desde um lugar menos elevado que a disci-
plina filosófica, precisamente desde uma ratoeira, escreve ab-
solutamente o contrário: ele se alivia no Mal. Ainda mais, há
vários exemplos no relato em que pede emprestado sem ne-
nhuma certeza da possibilidade de sua devolução. O que seria
nosso sujeito para Kant? Se morasse em Buenos Aires, como
se trata de alguém que fala desde a ratoeira, poderia fazer uma
piada e dizer: "bom, ele gosta do queijo". Mas tratava-se de
Petersburgo e da Alemanha. Kant diria: "não é uma boa vonta-
A CLÍNICA FREUDIANA: SE.MJNÁRJO

de, é uma má vontade". O que quer dizer uma má vontade? Que


·está submetida não à racionalidade, à dimensão de eficácia da
razão pura, mas à inclinação, ao apetite, porque o ser bwnano
está habitado por uma dualidade. Por um lado , é um ente ra-
cional e, por outro, é um ente da natureza, sensível, submetido
aos apetites e às inclinações.
Mérito de Kant: não faz antropologia, não faz act1mulo
empírico de qualidades, apetites, inclinações. Nesse ponto
coincidimos com ele. A psicanálise não é uma psicologia. Seu
tropeço: suspende a questão do objeto. Reduz a dimensão do
objeto ao objeto empírico da realidade. Iguala-o à contingência
empfrica. Aqui é onde nos afastamos de Kant e recorremos a
outro discurso.
Nosso sujeito diz: " ... fmalmente, um grande prazer indis-
cutível". Um grande prazer indiscutível além do bem, do
bem-estar. Para além do prazer. Ja ressoa algo mais. Além do
princípio do prazer? O que é além d9 princfpio do prazer? Cos-
twna-se dizer; não há masoquismo sem dor. A dor tem wna
qualidade: começa ali onde o prazer temúna. O que se inaugu- •
ra.ali onde o prazer tennina?: o que chamamos gozo. Nosso su-
jeito nos pergunta pelo gozo: qual é sua lei, a lei do gozo, que
pode também incluir este gozo que alcança um "grande prazer
indiscutível" precisamente no mal e mesmo na dor?

Ah! objetarão vocb, sarcúticos. Deste modo logo encontrará


PtaUl' numa doe de dente: bom - responderia cu - efetivamente,
tamWm ~ prazer numa dor de dente. Numa detenninada ocasião, so-
fri de uma dor de dentes durante um m& inteiro c posso Lhes dizer que
há prazer nisto. Neste caso,~ claro, as pe3SOaS nio ao~ em silencio,
se queixam. Mas não com gemidos comuna. São maliciosos e ne&a
mallcia res.ide a questão. As queixas expressam o prazer de quem so-
fre., pois, se não gozasse, não gemeria. Para começar, os gemídosex-
pressam a bunúlhante inutilidade da dor ..•

É verdade, o gozo é da ordem do inótil, e é por isso que,


como disse Freud em " O futuro de uma ilusão" 7 , aos psicana-

7. F~ud, S., ••El porvenír de una UusicSn", O.C., Bw:D06 Ain:s, Amorrortu,
1979, Tomo XXI.
54 A CLíNICA FREUDIANA

listas, que nos oferecemos para que o sujeito temúne wna aná-
• J.ise disposto à criação e ao gozo, é difícil que aJgwn governo,
seja qual for, ofereça wna medalha. Trata-se do im1til;

••.Para C:OmcçM 06 gcaúd011 expreaam a humilhante inutilidade


da dor - poder{a.m06 dizct do gozo - WDll dor q11e obedece oenuleis
da natureza para as quais a gente esct "se lixando", po~que é a gente
que tem que sofrer c a ~ não sente nada. Assim, 06 gcmidol in-
diwn que embota olo haja um inimigo, a dor exis~ Que a pessoa.
junto com seu dcotis1a esct oomplel3mellte l .merce de seus dcnti:S.
Ponanto CS1IC$ honfveü sofrimentos c hwnilhaçõrl; que a6 Deus sabe
quem~ inflige, engendram um prazer quels vezes cbega ao~-:·
to grau de volupluosidadc.lDcomodo-011, deslroÇO--lhcs o 00111Ç80, nao
deixo oinguim donni:r? Muito bem, oootinucro arordados, sintam a
cada instante que me doem os dente.s•..

Alguém se consola e alcança a mais alta voluptuosidade


preci.samente no mal na dor; exibe-se numa posição: está abso-
lutamente à merCê dos dentes. Pode ser a natureza, para outros
a Providência, o Destino. Em linguagem psícanalítica diríamos:
uma posição onde o sujeito alcança essa voluptuosidade colo-
cando-se absolutamente à mercê do Outro. Esse Outro situável
nos dentes, por que não? Vem acompanhada de um gemido,
também de um relato, que se dirige ao Outro, a vocês, a mim,
para destroçar-lhe o coração. Seria ousado dizer: que a angús-
tia seja a paixão do Outro? Desde um lugar tão baixo e execrá-
vel como uma ratoeira, impugna toda ordem.
Páginas depois de uma cena que logo relatarei, onde, com
companheiros de outra época de sua vida, homenageia um te-
nente, declamando: ..Tenente Sverkoff, quero te informar" - ·
em o brinde em homenagem ao tenente - ••que nao - suporto as
palavras altissonantes, as cinturas justas e os charlatães" - isto
depois das palavras do tenente - "Isso é a primeira coisa que
queria dizer. Agora a segunda" - todos se mexeram ínqui~tos
- "odeio as porcarias e quem as diz. Número três - e a 1sto
queria levá-los - gosto da sinceridade, da verdade e da hones-
tidade... "
Fala em nome da verdade! Que coisa incrfvcl! O paladino
do mal e da dor, o que se dirige a nds para destroçar-nos o co-
ração, nos impugna, diz ele, em nome da verdade.
A CLíNICA fREUDIANA: SEMINÁRIO 5.5

Trata-se efetivamente da verdade? De certo módo sim. De


certo modo tem uma vantagem sobre aqueles aos quais se diri-
ge. Impugna, jWlto com Kant. o mundo dos objetos do confor-
to, o mWtdo do bem-estar no bem. E a partir daí, algo da ver-
dade está do seu lado.

Qual pode aer o fruto natural, ldgico, da woscl!ocia madun


IICDio a ilá1:ia7 E por in&cia quero dizer catarcoiiiCieuteQ"leQtc acnta·
do, de braç011 cruzados. J4 meoclonci isto antes c o 1epito mala uma
vez. ~ pcsaoas espondneaa e 011 homens de açlo podem 11gir porque
são limiw!OII e estdpidOII. Como me explicarei'l Digamot- assim! por
causa de swu limiiiiÇõea, essas pcuoas oonfundem aa cauas ICCUJldá-
rias mai3 prclltimu com as causas principais. Desse mo<lo se oooven-
ccm, com mais rapidez e fllcilidade que outroa, de que CllCOlllranlm
uma razão iDconiM4vel para atuar e j& nAo r!m ddvidaa quanto l ação
e esta. logicamente, 6 importante. Mas me tomem como cxc.mplo, ro·
cno posso, alguma vez, estar seguro? Onde enco11trarei as razões pri-
mordiais para a ação e a justificativa delas? Onde as procurarei...

Um parágrafo depois:

Se meu umo fazer oada" IC d e - sd 1 preguiça, quanto ,_


peito teria então por mim ~Da~mol Sim, reapc.íto, porque entfo aabaia
que, pelo mell08, JlOII80 atr pn:guíço1110, que poliDO pelo menca- CliCO·
tem bem - uma TTIOTCa definido. Uma man:a. algo politivo, algo do
qual me é possfvel eaw ~eguro. À pei!Uilta: "quem é de'l., aa peuou
responderiam: ..Um homem pn:guiÇOIO". Seria maravilboeo ea:utar
isto. Implicaria ser p<lllll!vel CIIDIÇllerizar-mc com clan:za; que seria
possl'vel dizer algo de mim: um homem pn:guiÇOIIOl Mas IIC _ . 6 UIDa
vocação, um deatino e u.am carmta, llCilboru e ICOboral •••

Em nome da verdade impugna o mundo do bem-estar. Para


situar-se onde? Mais além de todo traço. O traço, a ~ a
marca para o Outro. Suportar a marca, aceitar que somos um
corpo int.ersectado pela palavm, é suportar que essa palavra
nos cinde, nos divide entre o que dizemos e o _que sabemos.
Há diferença entre o que o sujeito diz saber de seu bem e o
saber inconsciente que guia seu dizer. Isto que Lacan escreve
assim: % sob uma barra: representa o SUJelto
S posto · · dividido pela
p~11vra. Nosso sujeito n~ quer ser, ele próprio, sustentáculo
dessa dimensão, que oferece ao Outro. Qual é a sua posição?
Como quê se oferece ao Outro? Se não se suporta sujeito
! 56 A CLÍNICA FREUDIANA
'\(
cíndído pela palavra, é porque se oferece como objeto. Um ob-
jeto que está além dos objetos do bem ou da realidade. É um
objeto que na teoria psicanalftica - com algumas diferenças
que hoje podemos mencionar- se chamou objeto parcial, que
na terminologia de Lacan se propõe como objeto a, definível
em tennos topológicos8 • É um objeto que implica o Outro, in-:
clusive o Outro como corpo, algo que se desprende como uma
parte que aparece para o sujeito como aquilo que lhe convém,
que lhe conceme, e mesmo, que lhe pertence. Se tomássemos o
primeiro deles, o seio, para o bebezinho não é algo da mãe que
ela retira dele. É algo que lhe pertence que, em todo caso, ela
lhe subtrai. É um objeto que se constitui na intersecção entre o
• sujeito e o Outro. E disse parcial, entenda-se, em relação à to-
talidade do corpo, mas não porque progrida em qualquer mo-
mento para uma totalidade. Seu linico progresso possível é pa-
ta. sua .talta. .São os equivalentes freudianos da castraÇão: o
desmame, o controle de esfíncteres. É um objeto que defme a
qualidade da sexualidade que chamamos humana. Constitui-se
porque o corpo do homem falante é um corpo er6geno, não é o
corpo da medicina; nosso sujeito tem razão quando ironiza so-
bre a medicina.
Não é o corpo da medicina que poderá nos dar resposta ao
, gowque se produz maísalém do prazer. De um vivente que não
foge da dor mas que ali alcança sua máxima voluptuosidade.
É um objeto delineado pela série de representações. A mãe
dirá: "este menino não (me) come"'. Desde o Outro, o Outro
primordial, se quiséssemos fazer uma teoria que indicasse os
começos da subjetividade, é a partir de onde começa a consti-
tuição desse objeto que se produz entre o sujeito e o Outro.
Se escrevêssemos a posição deste discurso perverso no
qual situamos nosso narrador, o faríamos assim: a Op
Escrevi a, o objeto a, posição do sujeito; desenhei um lo-
sango - "poinçon" o chama Lacan - que podemos ler neste

!:<. Laca11, J., " L' Etourdil", Scilicet, n~ 4 , Paris, S~uil , 1973.
* No original "cl nene no me come" que conota um duplo :;entido que se
perde em português. (N, da T,)
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 57

caso como desejo de; S sob a barra. Se lemos a f6nnula: o suM


je!to, colocado em oposição de objeto a, deseja o sujeito cindi-
do, s6 que no Outro. O Outro será aquele que suporta a estupiM
dez do traço. "E no entanto''9, utilizando uma fórmula que OcM
tave Mannoni deu, de alguma forma, a conhecer, f6nnula que
funciona como modo de defesa - não dísse mecanismo de de-
fesa - primordial da perversão, algo nos situa em dívida com
este discurso. Não só pelo que impugna do mundo do bem-es-
tar, mas po.r.que propõe uma defesa da liberdade de desejar.

Quem foi o primeiro que disse que o homem faz coisas feias s6
porque não sabe quais são seus verdadeiros intel'CISCS? Que se alguém
o esclarecesse nesse sentido deixaria imediatamente de agir como um
porco e se tomaria nobre e bondooo? Ao se ver esclarecido, e ao per·
ceber no que consiste seu verdadeiro interesse, se daria conta de que
este tem seu centro na ação virtuosa. Oh, quanta inocência! Desde
quando , nestes dltimos milênios, agiu o homem exclusivamente por
seu próprio interesse?...
Um homem - diz páginas depois -sempre e em todos lugares
prefere agir como bem entende e não como lhes dizem a razão e seus
interesses, pois é muito provável que sinta desejos de agir contta seus
interesses e, em alguns casos, digo que deseja positivamente agir dcisa
maneir.t. Mas essa é minha ophúão pessoal, de maneira que a livre e
ilimitada escolha de cada um, o capricho individual, mesmo que seja o
mais louco, produto de uma fantasia levada às vezes ao frenesi, e&<>a é a
vantagem mais vantajosa. que não pode ser incorporada a nenhuma ta-
bela ou escala e que transforma em pcS, ao simples contato, todos os
sistemas e todas as teorias...

O desafio p.roposto pelo discurso perverso, na teoria e ain-


da mais na prática, implica o questionamento de todos aqueles
sistemas morais nos quais encontramos nosso bem-estar. Mas
se trata do ..capricho" do desejo? Nosso reconhecimento pela
liberdade do desejo. Mas, essa liberdade é homologável a um
capricho? Nosso sujeito disse: "a única coisa que o homem ne-
cessita realmente é a vontade índependente, a todo custo e se-
jam quais forem as conseqüências."
Pois bem, aqui é onde aparece nossa principal crítica a es-
se discurso que se propõe como paladino da verdade. Será que

9. MaJJliOoi, O., Ckfs pour fimaginaire ou [ autre scene, Paris, Seuil, 1969,
58 A CUNICA FREUDIANA

a vontade de gozo é o efeito do puro capricho de desejar? Ou


melhor, algo, como diria Arist6teles, funciona como " causa
eficiente" da vontade, dando conta de que também aí uma lei a
detennina? A vontade de gozo também tem sua causa: esse ob-
jeto a que indica que a sexualídade humana é institUída na co-
lisão do corpo com apalavra. Corpo mítico, inexistente corpo
puro da necessidade que pela palavra do Outro se torna corpo
erógeno. O corpo da psicanálise é um corpo er6geno, aquele
que o Outro significa como tal. Freud diz no terceiro prólogo
de seus "Três ensaios... " 10 que a ordem dessa obra foi decidi-
da pela sua própria prática, e vocês sabem por onde começa
Freud seus "Três ensaios ... ", precisamente pelas perversões .
Graças ao fantasma neurótico soube Freud a respeito da sexua-
lidade perversa.
Freud produziu duas teorias da sexualidade: uma em que
falou do trauma sexual, outra na qual o substituiu pelo Édipo.
Dizemos: o sexo é traumático porque o Édipo, como identifi-
c;~ção normatizante aos emblemas do sexo, não cobre a dife-
rença homem-mulher. No inconsciente não há representação
homem-mulher. S6 "há falo, não há falo", para marcar uma di-
ferença que se chama teoria da castração.
O masoquismo perverso - situamos nosso sujeito - res--
ponde impugnando o aforismo "não há relação sexual" que
Lacan nos propôs - entenda-se, não há relação sexual entre
dois seres falantes que tenluun no inconsciente inscrição ho-
mem-mulher; essa diferença s6 se dá entre "há falo, não há fa-
lo... O new-6tico o inscreve no fantasma, que fecha sua signifi-
cação a quem o porta. A fórmula do fantasma oposta à que es-
crevemos ontes: p<:> a; sujeito cindido "poinçon,. a, sujeito
cindido desejo de a; a como o que causa o movimento da
pulsão, a como o que causa o movimento de seu desejo.
O perverso não é um imaturo sexual. Está submetido ~ui­
lo em que culmina a instituição da sexualidade do humano fa-
lante. O perverso passou pela castração; o problema é o que
faz com ela: a recusa no real.

10. Freud, S., "Tres ensayoe de la teoda leltual", O.C., Buenoe A.il:a,
Amorrortu, 1978, Tomo VII.
A CLÍNICA f'RIW DIANA: SEMI~ÁRIO 59

No fetichismo, o fetiche, objeto irris6rio, virá propor em


tempo de metáfora, o falo da mãe. Curiosa definição freudiana!
Como para exasperar qualquer posição empirista: "fetiche é o
substituto do pênis da mãe".
No travestismo, identificado ao Outro primeiro onde se lê
a falta, obtura, com seu pênis, o significante que o outro não
tem.
Na homossexualidade, pelo menos em alguma de suas va-
riantes , se oferecerá como objeto a ao gozo do Outro.
Se se trata do masoquismo, o sujeito posto no lugar do dis-
simulado, objeto inconsistente, sofre a dor como marca da
submissão ao Outro, limiac de seu gozo.
Impugnação da proibição, a llnica que Freud propõe como
instituinte, proibição do incesto, põe o perverso no papel de
fiscal, questionando a metáfora patcma, a instância terceira
que produziria para o sujeito :sua queda como equivalência
criança = falo no lugar do Outro.
Lei da defesa "Franceses un esjuerzo más" da filosofia,
já cão kantiana, La filosqjia en el tocador de Sade11 • Diz o
educador à educanda:

Quero que as leis lhes pcnnitam - refere-se às mulheres ·· entre-


gar- se a tanto s homens quan tos queiram. Quero que o gozo de todos~
sexos e de todas as partes de seu corpo lhes seja permitido t.omo aos
homens, e sob a cláusula especial de enlregarcm-sc igualmente a todos
aquela que o desejem. t p.rcci.so que voe& tenham a liberdade üc go-
zar ig11A1n:ltnte daquilo que &CRditem digno de sa~f.ar!..las. Quais
slio, eu pergu.DIO, os perigos desta licença? Crianças que do ll:rilo
pais? E qual a i.mponincia disto numa repdblica onde todos os indívf-
doos não devem ter outra m1ie senllo a Pátria? Onde todos aqueles que
~ alo todos fli.hoG dn P4l;riA. Ah. como a amarii.o n-•clhor aquelco
que, nllo tendo jamais ooohc:cido outr.l senll.o ela. sabedo, desde o nas-
cimento, isto: que dela tudo dcven1 esperar!

Esperar tudo da mãe, não importa que não haja pai.


Dizemos que eltiste um modo de defesa primordial na per-
versão. Freud o chamou Verleugnung . Em castelhano, uma tra-
dução possfvel: renegación.

11. de Sade, D.A.F., La pltikJsopllil: c/an.s de boudoir, Paris, Jc:an-Jacques


Pauvert, 191\lt
60 A CLÍNICA FREUDIANA

Em português, "recusa da realidade". Existem outras t em


todo caso, o que interessa é sua estrutura. Leio-a num breve
parágrafo de nosso homem do submundo: "Sentir-me-ia melhor
se pudesse acreditar em algo do que escrevi aqui, mas juro que
não posso acreditar em uma 11nica palavra. Isto é, acredito, ele
certo modo, mas ao mesmo tempo sinto que estou mentindo
como um filho da mãe••• "
Disso se trata. Se há fetiche, ou se o sujeito se coloca co~
mo a, como objeto para o gozo do Outro, é porque sabe que
algo fàlta ao Outro. Houve um tempo de conhecimento da falta
no Outro. Houve uma primeira queda da premissa universal do
falo. Houve uma primeira aceitação de uma queda desse saber
primeiro: todos têm falo. E uma obturação no real do lugar da
falta; descrença redobrada, descrê sua prime ira decepção.
Às vezes invoca-se a estrutura masoquista como uma
questão que invalidaria as propostas de Lacan. Depois de um
tempo de desconhecimento absoluto de s ua palavra - tudo se
reduzia a dizer: este homem escreve difícil- começa a haver
alguns textos de alguns psicanalistas em Buenos Aires que de-
cidem responder à sua proposta. Um dos lugares de resposta
diz: "Senhores que se dizem lacaruanos, como que no incons-
ciente s6 se trata de significantes se o próprio Freud falou de
senlime111o de culpa, razão principal da estrutura masoquista?"
Por esse caminho fica diffcil impugnar a teoria de Lacan. Para
isso não~ preciso mais que voltar a Freud. Se lerem no " Ego e
o Id'' 12 , ou se lerem "O problema econômico do masoquis-
mo"1 2 vão se deparar com o que Freud diz textualmente: "O
" sentimento de culpa é wna percepção egóica. Não há sentimen-
to inconsciente. É wna percepção eg6ica de uma crítica - ou
seja, um enunciado, um significante - que provém do Supe-
reu".
Trata-se aqui do sentimento de culpa? Certamente, falar do
, masoquismo implica a instância do Supereu. O problema é o
seguinte: podemos avançar, nem que seja um passinho a mais,

12. Frnud, S., " f. I yo y el ello", "E I problemn ccon6mioo dcl masoquismo",
O.C., tluenos Aires, Amorrortu, 1979, Tomo XIX.
A CLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO til

na afmnação que a descreve como instância homologável ao


'' imperativo categórico" kantiano? Isto foi dito por Freud. Po-
demos dizer algo mais além de afJ.CIDá.Jo como reflexo de um
pai se ver(), dizem alguns, de um pai brando demais? O que é a
instância do Supereu?
Diz o narrador:

É digno de menção que, geralroenre, pensava no sublime e no


belo durante minha dissipação, freqüenremente qu:mdo chegava ao
fundo da abjeção. Estes pensamentos surgiam como flashes para me
lembrar da existência do sublime c do belo. Mas não constitufam
obsiAculo paca mi.oha dissipação. Muito pelo contrário, pareciam adi-
cionar-lhe pímenlll por contraste, e como num molho , ajudavam a
destacar o sabor. Este molho con1posto de contradições e sofrimentos
continha dolorosos auto -análises e as agonias e torturas resultantes
proporcionavam coodimentu a meus vfcios e ainda lhes outorgavam
sentido ...

Dizemos: trata-se do gozo que o Suspereu propõe. Porque


em "O Ego e o ld" Freud diz, referindo-se ao Supereu, que es-
te é o herdeiro, não de instâncias parentais, mas do Isso. Na
verdade, Freud não diferencia af rigorosamente Ideal do Eu e
Supereu. Mas há parágrafos onde diz esta frase mistenosa. Se •
quiséssemos homologar o Supereu a uma instância moral que
advoga pelo belo e pelo sublime, diríamos: herdeiro do Isso.
Pode advogar pelo belo e pelo s ublime mas somente para obter
um gozo obsceno e feroz.
Para me ater ao tempo desta palestra, deixarei de lado -
talvez sirva para que vocês tenham. vontade de ler este texto - •
as duas cenas finais - porque precisamente o ato perverso, o
ato masoquista, implica essa dimensão da cena - nas quais se
dá o cúmulo da humilhação.
O perverso, quando fala do capricho de seu desejo, propõe
uma disjunção, desconhece que lei e desejos são a mesma coi-
sa, não há desejo sem lei. Isto é dito por São Paulo na Epístola
aos Romanos13. Antes do llll:lndamento divino não existe peca-

13. San Pablo, "1-;p{stola a los ronlUJlos", Sagrada Hn>üo, Mniliiu, Cut.ólica ,
1969.
62 A CLfN!CA FREUDIANA

do. Só o pecado divide o bom e o mau. O perverso, de seu de-


sejo como capricho, faz dele lei do gozo.
Desde esse lugar impugna o mundo do Bem e dos bens.
Sua verdade fere o Outro em sua posição - destroça nosso co-
ração- e o dilacera na pergunta por seus fins: Che vuoi?, co-
mo d iz o autor francês na época do Terror; o que queres?,
ameaçadora quando dirigida ao neurótico pela diferença entre
o ideal que ele arvora e o objeto irrisório que o causa em seu
desejo.
Mas a verdade do perverso cobre-se no ato mesmo de sua
enunciação. A voz que a sustenta não faz senão desviar o olhar
da Górgona que petrifica no traço - lembrem-se àa rejeição ao
traço - pela falta que ela indica. Valor apotropático diria
Freud, que vem conjurar o que ao mesmo tempo indica. É A
cabeça de Medusa 14 • Quantas vezes recusa-se à castração,
tantas vezes a serpente a indica. o mesmo ocorre com o feti-
che, e com o sujeito identificado ao objeto que falta ao Outro.
Tempo de sideração em contntpartida, parn o perverso, tempo
de queda, será quando o Outro não convalide sua posição.
Tempo de retirada do Outro é também tempo de demanda pos-
s(vel de wt1a análise.
Fala-se também da relação entre o sadismo e o masoquis-
mo. Na cena final o sujeito humilha, maltrata urna prostituta,
após ter sofrido ele mesmo uma humilhação, que evidente-
mente pmvocou, com os amigos com quem brindava.
É uma relação sádica? São simplesmente simétricas uma
estrutura e a outra'? Dizemos que é somente o tempo necessário
para compor a cena perante a retirada do Outro. A prostituta -
no relato existem muitos índices que marcam isto - não é senão
seu semelhante, outro personagem do submundo, um persona-
gem destinado ao porão. A humilhação desta prostituta não é
mais que a condição necessária para sublinhar sua posição, a
do narrador, credor de crítica, sujeito de moral. Ao mesmo
tempo que o sujeito a hwnilha, alcança, como culminação da

14. Fceud, S., "la cabez:a de Medusa;;, O.C., Madrid, Biblioteca Nueva,
1968, Tomo lU.
63 ~
A CLíNICA FREIJDIANA: SEMINÁRIO

cena, sua própria degradação. Todos os argumentos possíveis


da piedade desmoronam, o livro chega a se tornar ilegível.
Tentemos concluir. A nosografia freudiana nos propõe três
grandeS modos de defesa que distribuem os quadros que ela
propõe. Três grandes modos de defesa - volto a esclarecer, não
mecanismos de defesa - perante a casttação. Se se trata de
Verweifung - foi traduzida por "forclusão", fazendo um gali-
cismo - trata-se da psicose. Implica a expulsão do significante
do Nome-do-Pai; como diz Freud no "Homem dos Lobos":
..não quer nem saber da castração" .15
Se se trata da Verdrangung - "recalque" - é o campo da
neurose. O neurótico é aquele que homologa a significação fá-
lica, a função da falta no Outro, à demanda do Outro. Por isso
é presa especialmente agradável do discurso perverso. Confun- •
de o objeto causa de desejo com os objetos da demanda. Re-
baixa o desejo à demanda do Outro.
Verleugnung- "recusa da realidade", propus: modo de de-
fesa para a perversão. Desconhece a castração que inscreveu
num primeiro tempo. O objeto a no lugar do Outro em falta.
Naquilo que proclama, o perverso desliga desejo e lei. Desco- "
nhece que sem mandamento não há pecado. Pois a castração
quer dizer, lembra Lacan, que é necessário que o gozo seja re-
cusado para que possa ser alcançado sobre a escala ínvertida
da lei do desejo.
Concluo por onde começamos: o exemplo literário. O texto
vale neste exemplo como relato dirigido ao Outro, cJa disjunção
entre o desejo e a lei. É efeito da estrutura que expõe, inerente
à sua eficácia. O leitor padece a angústia da condição que o
habita; presença do corpo e da morte.

Mas c:Kutem-me um momento, não tento me jllStificar quando


falo de tod05 nós. Da minha parte, só o que fiz foi levar ao limite o que
vocês nem &e atreveram a deixar a meio caminho andado. Confundem
sua covardia com espírito razoável e, graças a isso, se sen1em melhor.
De formaq11e, fmalmente, pode ser que eu esteja mais vivo do que vo-

I .S. Freud, S., "Hútdria de llDil neurosis i.n.fantil", O.C., Madrid, Biblioteca
Nueva, 1948, Tomo li.
ó4 1\ CLÍJ\<lCA FREUD IANA

cês. Vamos! Pensem oisto mais uma vez.. Mas se hoje oem sequer sa-
bemos onde est.4 a verdadeira vida, o q ue ~ e nem mesmo como se
chama. Se ficamos sem li~ratura nos· arrapalhamos e nos sentimos
perdidos. Não sabemos aquenos unir, o que tolerar, o que amar, o que
odiar, o que respeitar, o que desprezar. A~ mesmo nos parece incô-
modo .sennos homens, homens de verdade, de carne e sangue, com
nosso próprio corpo. Temos vergonha dele e ansiamos por nos trans -
formar em algo hipotttico denominado " O homem comum". NaliCe-
mos mortos e durante muito tempo fonos pos10s no mundo por pais
que por sua vez eslão mortos. E gostamos demais disso. Senúmos ver-
dadeiro prazer, por assim dizer. Logo inventaremos uma maneira de
sermos totalmente engendrados pelas idéias. Mas, basta! Já me cansei
de escrever estas memórias do submundo.

E culmina:

Na verdade - alguEm q ue aparece co1neotando ao narrador - as


memórias deste mercador de paradoxos não tenninamaqui. Não pOde
resistir e continuo u escrevendo- certl'.men~ sua escrita forma parte da
estrutura que lhe conccme-

e acrescenta:

... mas na nossa opinião é melhor co locar · lbe um pon!o final.

Também a nossa por enquanto.


AO ANALISI/\ POQ 0f:U Df~EJO*

Há não muito tempo, num Congresso realizado em Cara-


cas, que reuniu aqueles que se reconhecem devedores do ensi-
no de Lacan, alguém que merece meu afeto e respeito, mani-
festou seu desagrado em relação aos psicanalistas. Sua gentile-
za me permitiu oferecer-lhe uma resposta que poderia ser uma
ínterpretação: uma esperança - disse a meu interlocutor - deve
alguma vez ter antecedido seu desgosto atual: os psicanalistas
deviam ser melhores que o resto dos humanos. Com sua habi-
tual simpatia sorriu e lembrou uma frase de Lacan: "A espe- •
rança é o melhor caminho para o suicídio".
Hoje, relembrando aquele diálogo, penso, todavia, que o
desconhecimento de algo que especifica a função do analista,
na história pós-freudiana, não foi alheio àquela crítica.
O que é wn analista? Alguma vez propusemos: "Se diz
analista quem possa não sê~lo". Frase enigmática fora do con-
texto que lhe convém. Mas que antecipa que é preciso que algo •
do ser se desfaça paro que uma função se cumpra.
Cumprimento do desejo, realização, como dizemos habi-
tualmente, será que o desejo de ser analista se cwnpre no exer-
c ício de uma função?

• Trabalho apresentado no 32 Congresso Argentino de Psicopatolo8i.a reall·


uuo em setembro de 1981.
66 A CLÍNICA FREUDIANA

Tarefa impossível, disse Freud, nos convida a uma disjun-


ção que se toma pergunta duplicada: o que é o desejo de ser
analista, o que o consagra ou o separa do cumprimento de sua
função?
E isto nos recoloca no começo: a função do analista e seu
equivalente, a essência da análise, se quiserem, seu fim.
Que depois de Freud, ~ psicanálise percorreu por diferen-
tes escolas não é segredo para ninguém, seja ou não psicana-
lista. Todavia, há um ponto de coincidência ao qual nos con-
duz o procedimento por ele inventado: o analista se produz
numa análise, aquela na qual faz sua experiência do Incons-
ciente: que o desejo se diz ao modo do sonho, em condensa-
ções e deslocamentos.
O começo do século abriu as páginas de um livro estrdllho,
o livro dos sonhos, onde uma experiência nova abalou os pila-
res do saber, propondo Outro saber, o saber Inconsciente, ao
dizer do falante.
Fazer a experiência do Outro que fala em mim, eis aí outro
modo de dizê-la.
E nessa experiência, como no sonho, o Outro fala de seu
desejo. Que, como em a bela açougW!ira - feliz exemplo freu-
diano -pede que não lhe tragam caviar. Desejo de um desejo
insatisfeito, disse prontamente Freud, marcando a radical dife-
rença com a procura de um objeto da necessidade, ou do amor.
Pois se Penia é a mãe de Eros, como nos ensina Platão em
O Banquete1 , a pobreza que ela representa nos recorda que se
quer pelo que falta.
• O que quer quem quer ser analista?
Se, em princípio, wn analista é quem conduz uma análise,
a abstinência lhe é proposta como regra para a obtenção da
eficácia ansiada, o implica em sua aceitação. Se não basta
wna resposta em tennos de sua submissão a um imperativo
supereg6ico, ou então às limitações de sua neurose, ou ao
ideal que a ciência lhe oferece na suposta objetividade obser-
vadora, é que além das contingências que estas variantes pro-

1. Placlo, "E.l banquete, o del amor", O.C., Madrid, Agailar, 1972.


ACLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 67

põem, outra questão o faz decidir-se a ocupar esse lugar des-


tinado, ao fJID, à sua queda.
Lugar que se ofereçe para que o Outro, desde o anali-
sante, desdobre seu diz.er, e que no tempo em que a interpre-
tação advém situe o saber no lugar da verdade, que o analista
resguarda dos assaltos de seu desejo, o seu próprio.
Porque o desejo do analista, o que acompanha o trata-
mento em cada volta de sua dialética, é a razão do impossível
de seu oficio: o real do sexo, o do analista, se opõe, na duali·
dade pulsional tão grata a Freud, ao desejo de ser analista:
disposição por um lugar que enquanto se oferece corno vazio
que a palavra delimita, indica sua condição magna: desejo de
morte. Subjetivado, difereocia·se da destruição, do sadismo
ou da agressão com que um desvio corrente de seu oooceito
tentou homologá-lo, e se faz condição do ato. A castração -
pois este é seu conceito freudiano - em sua eficácia maior,
não é a h.mitação imaginária dos atributos do sujeito, mas
precisamente a castràção do Outro.
O analisante a alcança quando a reiteraçio suficiente do
ato interpretativo desfaz o lugar do analista como encarnação
de um saber sobre seu sintoma, para siruá-lo oomo um signi-
ficante a mais que se enlaça ao saber reprimido, verdadeiro
sustendculo de seu dizer.
Desejo de ser analista como subjetivação de um desejo de
rnorte, encontra em seu caminho em direção aos grandes fins
freudianos - relembro: criação e gozo - o desejo do analista.
sustentado na realidade sexual de seu lnconsciente2 • A ·partir
daí produz a resistência no tratamento: transferência erótica
onde o analista sustenta as oscilações possíveis do fantasma,
a partir do lugar do Ideal. Sua conclusão, o fim da análise
como identificação com o analista, consagra o molde anteci-
pado. Retomo da psicologia das massas nas quais a identifi-
cação ao Ideal posto no líder, substitui o abismo com que cada
sujeíto poderia se deparar se não existisse Outro disposto à
elisão de suas provas.

2. Em rouerapllltida, o ~jo do analista como X, que se o~ IW tma.ti-


sante como desejo da pura diferença, opõe· se à presença do llll4l.ista.
68 A CLfNlCA FREUDIANA

Ideal que não se desfaz pela chamada transferência nega-


tiva: basta lembrar que a análise k.Jeiniana, meritória na sua
insistência em resgatar o conceito de instinto de morte, presa,
todavia, na impossibilidade de diferenciá-lo da agressão eró-
tica, da tensão agressiva eg6ica, faz da reparação do corpo
materno o equivalente da sublimação: a criação e o gozo se-
gundo Melanie Klein têm sua condição na outorga ao Outro
primordial, a mãe, dos atributos que por cilime, inveja ou ri-
validade, lhe foram disputados. O Outro tem e assim reafuma
seu lugar do Ideal, pois o recorte quantitativo - a tão reitera-
da interpretação da onipotência = não desfaz a qualidade da
posse.
Se, em contrapartida, o movimento da análise faz com
que seja possível que o analisante alcance, delineie, a rocha
viva da castração que Freud mencionou em ..Análise tennina-
vel e intenninável"3 , sua condição se sustenta no ato do
analista que rubrica, com sua distância quanto à identificação
a qualquer Ideal, o lugar onde se lê que o Outro está em falta,
e sua inconsistência consagra a liberdade do sujeito.
Análise imita no tempo em que a convicção de sua infi-
nitude se oferece ao analisante pela reiteração suficiente da
queda do objeto de seu fantasma ou o desatamento de qual-
quer cristalização eg6ica.
Válida para qualquer análise, a lei de sua eficácia se faz
peremptória naquela que deveria se estender até seu limite: a
didática. Pois se o lnconsciente se produz" à torça de ser in-
terpretado, ·o analista é condição da interpretação que diz..
Relação de implicação recíproca entre o ato analítico e o
analista nos permite chamar didática a análise na qual um
analista se produz.
Conclusão de wn movimento que passa do "eu não pen-
so" do movimento inicial, ao "eu não sou" da castração no
qual o fun é tempo de des-ser, do analista.
Tempo de destituição subjetiva, do anal.isante em vias· de
se tomar analista, da razão do aforismo: "o analista não se

3. Frcud. S.,"Aoálisis terminable e intuminable", O.C., Madrid, llílio~


Nueva, 1968, Torno UI.
A CLf!\ICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 69

autoriza senão por si mesmo'' e precisamente por sua dispo.. •


sição de s uportar o que não é.
Se, em contrapartida. desde o começo, se antecipa ao su-
jeito que o analista irá outorgar-lhe o reconhecimento que o
autorize e o instale numa hierarquia institucional, pelo menos
dois efeitos serão conseqüência disto:
a) O analista se oonfirmará no lugar do Outro que sabe;
b) O analisante duplicam sua posição - a do analista -
numa dimensão que embora diminuída é qualitativamente se-
melhante: o que vier a autorizá-lo será o atributo que o Outro
lhe outorgue.
Se o procedimento se desloca para o cumprimento da
análise didática segundo a quantidade de horâS que são fixa-
das previamente, a arbitrariedade toma conta da experiência e
o Inconsciente freudiano, aquele que não iguala seu tempo ao
do relógio, procurará outro tempo para se expressar. Será, por
acaso, que tantos analistas reiterem que sua verdadeira análi-
se foi depois da didática?
O desejo não admite garantia; que o newótico a demande •
é a razão mesma de seu sintoma, que o conduz à análise.
Que a didática responda, precisamente, à estrutura da
demanda oferecendo a garantia que não tem, deixará o sinto-
ma vigente ali onde sua resposta impere: a instituição psica-
nalítica. Não é casual que Freud, que não foi alheio a este
procedimento justificado pelo tempo em que o propôs, pen-
sasse as massas artificiais segundo o modelo do exército ou
da igreja:. duas instituições que não admitem a mulher em sua
hierarquia.
Pois é nela, como Freud nos ensinou, onde se lê a verda-
de da falta que s6 é tal pela lei que a antecede.
Posição feminina do analista, dá o que não tem em troca •
do que não é.
Como no mito, o terror se afasta quando o caminhante
elude o o lhar petrificante da Medusa; assim, o holTOr do seu
ato convida o analista ao desvio de sua função.
Se o retomo é possfvel, a via freudiana desenha o signo:
a interrogação, que faz (a) o analista por seu desejo.
A CLÍNICA fREUDIANA:
fUNÇÃO DO E~CRITO*

Teoria, prática, clúüca, compõem o enunciado do convite


que me foi fonnulado paca uma reunião - a que nos situa
neste Congresso -por uma associação que se noméia de Psi-
cólogos.
Campo psi (psiquiatria, psicologia, psicoterapias, psica-
nálise), reclama, desde a indetenninação das espécies que o
abarcam, a tópica a partir da qual se oferece esta proposta.
Freudiana, a clúúca começa por seu objeto que vale na
diferença e oposição ao de outros discursos: o Inconsciente
tal coroo o fundador da psicanálise o definiu pelas leis que o
regem.
Que no retomo à sua obra, Jacques Lacan o enunciou es-
truturado como linguagem.
Objeto da psicanálise, faz do sujeito lugar de um discur-
so, e a diménsão em que sua eficácia se mede, aquela em que
desejante se institui a caminho do gozo. Rejeição das opções
pedagógicas ou instrumentais que propõem o ensino ali onde
a onipotência do desejo diz da vaidade de seu domínio.

• Versão escrita do trabalho~ DO I~ Congm;ao Metropolitano de


Psicologia em Buenoe Airea, de 21 a. 25 de outubro de 1981.
72 A CLÍNICA F!REUDIANA

Se a clínica é "o real impossível de suportar", , que seja


freudiana se articula na tradição que se inaugura por sua rela-
ção ao que. no primeiro exemplo da "Psicopatologia da vida
cotidiana", Freud chamou sexo e morte. 2
Ali onde outro fugiu do abraço que o' convidava para o
exílio do discurso ~dico do qual provinha - refiro-me a Jo-
seph Breuer - Freud respondeu na oferta do seu corpo que
arriscando pelo seu desejo prosseguiu para além do saber
constituído - pennitido - para wn homem de ciência.
Ali, onde para todo sujeito a morte de wn pai prossegue
nas marcas do sonho para esvair-se nos caminhos da realida-
de ou, nos casos privilegiados, estender-se nas malhas da
poesia, Freud suportou a dimensão do enigma em que a es-
f'mge foi seu próprio sonho e a resposta alcançável o seu des-
tino, na medida em que a morte do pai lega ao sujeito sua po- ·
sição inevitável, que é também sua liberdade: viver por uma
morte que aguarda. 4
Será que o que hoje lhes proponho se desenvolverá nas
questões que implicam a análise do analista?
Outra variante aponta que, se a clínica é o real impossível
de suportar, este real que a psicanálise descobre é que "não
há relação sexual".s
Porque Breuer não fugiu de uma relação, mas porque a.
verdade se insinuava além da ilusão do amor.

1. Lacan, J. "Ouverture de la section clinique", Omicar?, ne 9, Paris, Lyse,


1977,p.ll.
2. Freud, S., ..Psicopatolog1a de la vida cotidiaoa", O.C., Madrid, Bibliote-
ca Nueva, 1948, p. 629.
3. Breuer, J.~ Anna, O., Sigmwld Freud, Obras Cornplettu, B'UCDOB Aires,
Amonortu. 1980, p. 47.
4. Também viverpo.r umamonc que a guarda.
5. ""Puisqu'il s'agit pour nous de prendrc le Jangage comme ce qui fooctioODe
poursuppléerl'abaeoce de la seule part du téel qui ne piÚ88e paa vecia" A se former
de l'ette,l savoir le rapport BCAIJCl..••" ..14 quo • 1n11a, para u&. de IDrDal a lill-
guagcm como aquüo que .funciooa para llllplii a au..a..cl• da 'dniaa pane do real que
Dlo poaa vir a ae fotmar do aer, Ollltja, a~ IICIXual..." Lac:an, J.,Enoore, Pa·
ria,Seuil, 197S,p.47.
A CLÍNICA FREUDIANA; SEMINÁRIO 73
~;
(
Como no amor cortez, o obstáculo, a fuga, a distância,
são inventados para dissimular como impotência o que não é
senão da ordem do impossível.
Disto decorre uma proposta de definição da direção do
tratamento: passe da impotência imaginkia a um sujeito ad-

vertido do impossível.
x R y 6 poderiam ser as letras da relação sexual, se a mu-
lher existisse. Mas a rnullier não é senão o que a primazia fá-
tica lhe outorga.
A insistência freudiana, até o f'tm de sua obra, na falta da
represen~o inconsciente da vagina, seli'lpte deu lugar a es-
cândalo para a tradição que a ela se vincula. 7
Enigma que indicou, de fato, o que faltou oomo
articula-
ção lógica na teoria e desviou seus melhores discípulos: lem-
brem-se da polêmica com Jones sobre a sexualidade femini-
na.8
La femme n'est pas teute (a mulher não é toda) diz La-
can, fazendo do retomo a Freud ocasião da extensão de sua
teoria. 9
Se o sintoma é efeito da intromissão do simbólico no real,
foi no das histéricas, onde, ao psicanalista, se ofereceu o
acesso privilegiado à verdade: o corpo fala e diz que homem
ou mulher - lembrem-se da bissexualidade histérica - não é
senão um. significante ou outro, ao qual o sujeito se adscreve
segundo s ua relação com o significante da diferença, o falo.
Tê-lo, pagando por não sê-lo, castração que faz o ho-
~m; não sê-lo nem tê-lo, disposta a seu reencontro, situa
uma mulher. Entre um e outra, conclusão do aforismo que
torna vão o abraço de amor: "façamos Um de dois"; e res- •
ponde: "dar o que não se tem a alguém que não o é".

6. Op. cU., p. 36.


7. Fn:ud, S. "Sobre la sexualidad femenina", O.C., Madrid, Bibliow.ca'
Nuova, 1948.
8. Vegh,l., "Psicanálise e Psican4lise", Capítulo desle livro,
9. Op. dt,, " E11100re", p. 36.
74 A CLÍNICA FREUDIANA

Lógica que situa a falta, produto da articulação signifi-


cante.
Se a mulher não é toda, é porque o falicismo da cultura
produz sua eficácia. Por isso Jones tem razão: à mulher nada
lhe falta- no real.
É por ser falante que a anatomia se faz no corpo superfl'-
cie, e nos orifícios borda.
Como o cântaro sagrado que mencionara Heidegger, não
serão as paredes mas o vazio que estas envolvem, o lugar que
acolherá o vinho da oferenda aos deuses.10
x R y fracassa porque y não é.
Sem complementaridade, a sexualidade chamada hwnana,
dos falantes, faz seus caminhos divergentes, homem ou mu-
lher, e questiona toda teoria da intersubjetividade.
Não é a procu.ra do desejo do Outro, nem muito menos o
reconhecimento de outra consciência, o que situa o sujeito no
movimento de seu desejo. A variedade de seu objeto - o da
pulsão - tantas vezes reiterado por Freud a partir dos "Três
ensaios ... " . indica que a causa é outra.
. Cótica à dialética hegeliana da relação com o semelhante,
que descobre apesar do amor que se apresenta na ilusão dos
atributos do amado, o significante que o propõe como lugar
do Outro, onde a pulsão segue para além do prazer, à procura
do objeto causa do desejo.
Do objeto de amor, ao objeto causa do desejo, outro mo-
do em que é expressa a marcha do tratamento.
Que supõe a transferência e suas opções: campo da inter-
subjetividade ou discurso de um único sujeito em que o ana-
lista suporta a função de objeto (Lacan chama-o a) em tomo
do qual o discurso girct até o tempo de sua queda.
Porque se não há relação sexual, tampouco na análise. A
clínica supõe, portanto, o lugar impossível do objeto causa do
desejo; desejo que desliza ali onde a pulsão es~va; objeto
que atrai como um imã evanescente a série das palavras que

lO. Hcidegger, M ., LA cho.fe. E.ssai.s el Cotiflrences, Pari&, Gallimanl.


A CLÍNICA FREUDIANA: SEMI NÁRIO 7~

fazem discurso, para desfazer-se no momento preciso em que


a borda se completa.
Destino do lugar do analista que abre para duas questões
que se impõem: o desejo de ser analista e o desejo do analista. •
Da primeira surge uma resposta se se alcança a dimensão
lógica que supõe o conceito de pulsão de morte, tão enigmá-
tico para urna ética dos bens e até mesmo do bem-estar.
Porque se a pauta individual de uma tendência cósmica à
desagregação não nos satisfaz, é na lógica da pul.são, a se-
xual, onde lemos sua validade como um dos tempos lógicos
de seu percurso: tempo de queda do objeto que a move. 11 De~
sejo de nada, que faz seu gozo na inexistência do sujeito.
Tempo de silêncio, homenagem da morte, morte muda, causa
de outro tempo que relança outra volta do discurso e faz
existência de um sujeito pelo escrito, que se man;a primeiro
como epitáfio, não deve nos impedir de saber que o hwnano ·
falante é o único que da morte faz túmulo, e deste, monu-
mento, para a geração que se segue. Geração do discurso, ca~
deia significante pela qual o sujeito existe.
Verdade terrível que nos interroga enquanto analistas
dispostos a esse lugar, destinado à sua queda. Fim da análise
que supõe talvez a maior aproximação ao ato consumado do
suicídio estóico, nos diz que o analista é sustentado em sua ,
função, para além do amor, por um desejo de morte. 12.
Do desejo do analista, limite à realização ad integrum do
ato analítico, sua interrogação pennanente é condição do
avanço do tratamento.
Suspensão de seu desejo, submissão à letra do Outro, de-
sinteresse por todo anseio de reciprocidade íntersubjetiva: o
que é teito de seu gozo, o do analista?
Lacan pergunta em algum lugar: quando se goza também
goza aquilo de que se goza?13

11. Végh, 1., "A vontade da lefl'a", capftulo deste livro.


12. Vegh, 1., "A ética e o ato a.na.lfrlco", capítulo deste livro.
13. Lacan, J., Lo tercera. Actas tk la E~la Freudiana de PfJI'Ú, Madrid,
Pctrcl, 1980.
Laçan.J., Op. c:it.,'"EnCO!:C".
76 A CLfNICA FREUDIANA

Diz São João da Cruz:


e me abati tanto, tanto
que fui tão alto, tão alto,,.
Também wn homem pode se situar no lado fêmea dos fa-
lantes segundo a posição subjetiva que a articulação signifi-
cante determina.1s
Posição feminina do místico, posição feminina do analis-
ta, impossível de ser inscrita e por isso mesmo causa does-
critor que ainda assim se escreve,
São João escreve, os místicos escrevem e os psicanalistas
que foram marcantes na história da psicanálise, deixaram
textos, testemwthos de sua relação com o escrito.
Gosto, casualidade, vocação literária?
Uma face foi o lugar onde wna bofetada escreveu o ponto
final de uma análise que ali se fechou. ..Caso Dora" foi seu
efeito: Freud o escreveu e falou de seu erro.1s Por quê?
Sua insistência nwn amor que não era verdade de Dora-
sua insistência no final feliz com o senhor K - fechou a ela o
caminho para um saber, de seu sexo, que como na Douta ig-
norância teria lhe permitido, situado, ali onde todo saber cai,
antecipar as próprias linhas do caminho da feminilidade igno-
rada.H
Freud o escreve e diz da bofetada que o fi~ou no rubor
dessa face castigada. Pelo que escreve, re-situa seu lugar e
outras questões se tomam possíveis. Quando Doca volta a vi-
sitá-lo, Freud já não acredita na amável promessa de sua pa-
ciente. Aceita que não voltará, e sua queda, como analista,
exige wn escrito para suportar outra vez esse lugar que se
consagra como ato ao preço de sua ejeção.
Pela permanência que o fixa ou a subtração que o sancio-
na, por seu fracasso ou sua eiicácia, o analista escreve a par-

14. San Jwm de La Cruz, Urica, Bttell08 Aires, ~pclasz. 1975, p. 60.
lS. I...aam,. J., Op. cil., p. 70.
16. A.111.Dlburu, J.; Coeentino, J, C.; Vegh, I,. " Don a~lrc... el saber y cl se·
xo", Notas de lo E~lo Ff'f!UditJM 111, Buenos Aiml, 1977, p. 9.
17. Idem. Op. dt.
A CLÍNICA fREUDIANA: SEMINÁR IO 77

tir desse real. Pelo que escreve se taz existente a wn dizer,


que sua voz sustentou desde o lugar do Outro.
Que o sonho é uma escritura, nós, psicanalistas, o lemos
a partir da _Trawndeutung. Que o inconsciente é um discurso
que ao se dizer produz seu próprio escrito, é outro modo com •
que Lacan nos aproxima da letra freudiana.1e
Nossa pergunta, a que nos interroga: o escrito que o in-
<.:onsciente produz é idêntico ao que o psicanalista escreve?
Em ambos se escreve pelo que não cessa de não escrever-
se, a relação sexual que não existe.
A diferença passa entre a letra que sustenta um saber que
não se sabe e a letra que se propõe no limite de todo saber,
verdade pelo que ela capta do real.
Sua condição é o sujeito advertido do corte que o cons-
titui e que como sujeito da ciência - ou menos de uma disci-
plina que não renega a cientificidade - produz letras para
além do sentido.19
Por isso: clúrica freudiana função do escrito; se ela é o
impossível de suportar, pelo escrito existe.
Condição interna que faz da psicanálise o oposto a qual- '
quer prática esotéri<.:a.
.Porque a clínica é impossível, o escrito é necessário um
ensmo é possível.
.
Este texto se põe à prova: cabe a vocês consagrar, pelo
que ~~· o mesmo que o antecipava. Tempo imperfeito,
concllll ab onde o discurso de vocês prossegue.
Maio, 1981

18. Lacan, J., "D'un di.scoun qui oe sermtpasdu scmblant'', Au~ do dia 10
de março de 1971.
19. Vegh, 1., "Interpretar, transmitir, traduzir", capítulo de8te livro.
O HOMEM DA AQt:JA*

REENCONTRO

De novo aqui, na Escola, e verão pelo que se segue, que


começar deste modo não é alheio ao tema que nos redne. Po-
deria dizer, de novo no que para mim é mais familiar, o que
não quer dizer mais tranqüilizante.
Foi um percurso no qual alguns de vocês me acompanha-
ram no primeiro movimento, quando, faz mais de um ano,
também aqui, começamos um seminário estranho, que intitu-
larnos "A clfuica freudiana"; e naquela oportunidade con-
cluía: "Uma aposta perdida". Seminário estranho, aos meus
amigos costumava dizer delirante: não tinha, como é habitual,
uma geognúia que reiterasse o lugar de seu dizer; eu fui de-
senvolvendo-o ao longo deste ano em diferentes lugares, tal-
vez seguindo sem sabê-lo, o que de outra maneira foi aborda-
do nessa primeira conversa, quando dizíamos que no vagão
de um trem Freud podia fazer uma sessão de psicanálise
muito boa. Por que não, então, um seminário que passe por

* Ver,são escrita da conferênci. dada na EscoLa Freudiana de Buenos Aires no


dia 15 de Jeze mbro de 1981.
80 A CLÍNICA FREUDIANA

diferentes lugares geográficos, se existe um lugar que se rei-


tera, aquele que um discurso propõe.
~ao é casual que a abertura e o fechamento que hoje se
amarram aconteça na Escola. Será para vocês a oportunidade
de indicar-me se é válida a qualificação de seminário que, se
não a sustento pela empiria de uma geografia, é proposta por
mim por duas razões: eKiste senúnário se algo é proposto, um
ensaio, no qual se possa ler uma dialética, que para esta opor-
tunidade vale como um saber que não recusa ser revisto em ca·
da volta; também se a partir da posição que me conceme arris-
co no que digo ir além do que sei.
Mesmo que seja brevemente quero oontac-llies quais fo-
ram as suas voltas: a primeira vocês já conhecem: foi a que
tomou este texto freudiano, exe~lar segundo minha opinião,
que podemos intitular Aliquis. Pelo menos a minha pretensão
foi esclarecer o que poderia ser uma boa sessão de psicanáli-
se. Continuei tentando uma interrogação a respeito da neurose
fóbíca, quadro limite entre neurose e perversão; abordei-a
pelo lado do saber. lntítulei a conversa naquela oportunidade:
"As perguntas do pequeno Hans" e expus a diferença entre a
impot!ncia de uma pergunta e a dimensão do impossível, que
não tem resposta. Baseei·me num texto do discurso teológico,
A douta ignordncia, de Nicolau de Cusa. Sobre "As neuro-
ses"* foi outro tempo desse seminário no qual expus a di-
mensão da 'temporalidade, aquela que defme a colocação em
jogo da cadeia significante; qual é o tropeço do neurótico, na
medida em que, quando descobre que o outro é inconsistente,
que o outro não oferece garantias, demanda essa garantia im-
possível? Seu reverso que poderia colocar-se como objetivo
de um tratamento: o tempo no qual o sujeito percebe que, pre-
cisamente porque o outro é inconsistente, ali o ato precipita.
Tentava articular o det.ecminismo universal freudiano com um
conceito que Lacan mais de uma vez mencionou: o concei-
to de liberdade. Prosseguimos com a questão do desejo do

* Coufer!ncia dada na .Aasocíaçlo de Psic6logos de Rodri.o em meados de


1981.
A CLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 81

analista, onde mais além da conuaposição à presença do ana-


lista como realidade sexual que na transfer&lcia desempenha
a função de resistência, tentamos uma oposição entre o desejo
do analista quando este não se iguala ao desejo da pura dif~
rença, e o desejo de ser analista para além de qualquer atri·
buto vocacional quando supõe a ilimc:nsãu do passe, que algo
da morte ~tre nos teilllOS de uma subjetivação. Isto também
nos levou a formular quo não há clínica freudiana sem escri- •
to. O texto intitulou-se "A clCnica freudiana, fuoção do es-
crito"' ao modo de f(x) = y; continuamos várias conversas
sobre os grandes desvios p6s-freudianos tentando uma histó-
ria que não fosse da ordem da contingência, mas que, apesar
de não reconhecer nela, ao modo hegeliano, tão somente os
termos de um progresso- pensando bem, em mais de um dos
seus pontos essenciais, desliza para o retrocesso - escrevesse
a lógica que a detennina, legível por sua vez, ao menos essa
foi nossa proposta, desde a lógica do inconsciente tal como
Lacan a propõe.
Assim, em grandes linhas, ~ como chegamos à converSa
do hoje.

O HOMEM...

Vocês receberam, pelo correio da Escola, um breve texto


que me permito ler para os que não tiveram oportunidade de
t6-lo feito. Diz assim: "O homem da areia". 2
..0 estilo é o próprio homem", repete-se sem ver nisso
maldade, nem inquietar-se pelo fato do homem não ser mais
uma referência tão certa.
O estilo é o homem, aderimos à fonna, somente acres-
centando: "O homem a quem a gente se dirige?" 3

I. Ver capitulo correspondente, cf. pp. 7 l-77.


2. Ver capítulo correspondente. cf. pp. 79 - 9~.
3. Lacan, 1., Écrits, Paris, Seuil, l966.
82 A CLfNJCA FREUDIANA

homem dos ratos,


homem dos lobos,
homem da areia;
insistência que se lê na dissonância do atributo, suposto
para o humano que a suporta. Como refrescar, para o banho
de surpresa, o inaudito desses títulos - freudianos - que já
não causam espanto porque são conhecidos?
Qual é a razão dos títulos do mestre?: alcançc1-la, respon-
de o homem e - antecipamos - da letra.
Por enquanto me permitam que .isso da letra fique assim,
sem detenninar que letra tentaremos abordar.

A AREIA, AS BRASAS

Algo sem swpresa: vou falar de um texto que Freud tra-


balhou, aquele que determina o título que propus ~ esta
conversa: Der Sandman, "O homem da areia", texto do
grande literato Ernesto Teodoro Amadeu Hoffmann. Sobre
esse conto Freud escreveu uin trabalho em 1919, "O sinis-
tro". 4 Em alemão foi o Unheimli.che. O texto de "O homem
da areia" 5 , refiro.me ao de Hoffmann, apresenta uma seqüên-
cia que é, em si mesma, ilustrativa. Proponho-a deste modo:
trata-se de uma peça de quatro tempos. Os três primeiros são
três cartas do sujeito. Sua enunciação está enunciada. O últi-
mo tempo é de Outro: no texto literário, alguém se apresenta
como escritor, comenta a história do sujeito. As três cartas do
sujeito são efetivamente cartas, não foi preciso esperar Puíg
com Boquitas pintadas* para que esse gênero existisse.
Hoffmann já o tinha empregado. É uma carta do protagonista,
Nataníel, que se dirige - aparentemente, já que tem um lapso

4. Freud, S.; ••Lo Sinicstro.., O.C., Buenos Aira, Amonortu, 1979, Tomo
XVII. (Nesta edição o título 6 ''Lo ominoso,.).
S. Hoffmann, E. T. A., El hcmb~ de la arena, Buenos Aima, Noé, 1976,
* Puig, Manuel; escritor argentino, autor do livro Boquilils pintadas, que faz
uma crítica à classe média argentina, através de várias cartas que uma personagem
manda oucra. J:. autor de outros livroo como: O beijo do mulher aranhil, T M BueTI().f
AiresaffaireK.. (N. da T.)
A CLfNJCA FREUDIANA: SEMINÁRIO 83 .

- ao irmão de sua amada; a resposta inevitável desta e uma


nova carta do protagonista dirigida novamente ao ínnão de
sua amada Proponho chamar estes quatro tempos do seguinte
modo: o primeiro, a carta de Nataniel a Lotário, tal o nome
do irmão, tempo de uma sem-razao assinalada. A resposta dé .
sua namorada, fazendo honra ao seu nome, chamava-se Clara:
tempo da lucidez. A terceira carta não é mais do que uma
"antecipação" que conclui no "grande final". Final que é de
outro, em toda a sua precisa ambigüidade.
Desde o começo a carta situa-nos num clima de inquíetude.
A primeira linha diz:
Sem dá vida, estão vocês cheios de inquietudes pois oão fhe& escrevo há muico
tempo.

- é a carta do protagonista ao irmão de sua amada. Recorda


sua namorada e diz:
Seus olhoR transparentea me dirigem dcx:ea ollwes.

E logo acrescenta:
Algo espantoso penetro11 na minha vida.

Os "olhos transparentes que dirigem doces olhares" estão en-


tre a inquietude e o espantoso.
Os sombrios pressentimentos de um porvir cruel e ameaçador estendem-se
sobre a minha cabeça como oegras n11vens, impenetráveis aos alegres raios do sol.

O sombrio, o alegre, as nuvens e o sol. Talvez, quando


cheguemos à conclusão deste texto, até que voltemos a es·
quecê-lo, fique difícil para nós tomar sol acreditando que é
somente tomar sol.
Se você estivesse aqui, comigo, poderia ver com seus prdprios
olhoo, mas agora me lens, seguramente, por um absurdo visio!Wio.
Em poucas palavras, a horrível visão que tive e cuja ínfluênci.a mortal
lenlo em vão evitar, consiste simplesmente em que faz pouc:os dias, ou
seja, no dia 30 de outubro, ao meio-dia, wn vendedor de baróm«ros ·
penetrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumencos.

Estamos apenas nas primeiras vinte linhas do texto e os


olhos, o olhar, a luz, o sombrio, se repetem. A conversa de ho-
je estará centrada no espantoso, diremos melhor, para conti-
84 A ClÍNICA FREUDiANA

nuar uma tradição da tradução do texto freudiano, o sinistro, e


sua relação com o olhar.
O sujeito fala de um vendedor de barômetros, logo após
saberemos que se trata de wn vendedor de aparelhos 6ticos.
Lembra uma história que viveu na sua infância: quando era
muito pequeno via muito pouco seu pai, assim como seus
irmãos, mas costwnava ir acompanhado por sua mãe ao quarto
onde seu pai estava, fumava e envolvia todos com espessas
nuvens de fumaça que produziam uma espécie de neblina. Tu-
do coma bem, com essa neblina no meio, até que chegava uma
hora em que as crianças tinham que ir donnir sob a ameaça de
. que, se não o fl.zessem, viria o homem da areia. Interrogada a
mãe do protagonista a respeito do homem da areia existe uma
resposta sensata a outra que relata o mito. A resposta sensata
que certamente não serve para o sujeito, diz assim:
"Quando digo que vem"
-diz a mãe
"quero dizer somente que precisam dormir"
- a ordem na necessidade -
"e que tuas pálpebras se fecham involuntariamente como
se tivessem jogado areia nos teus olhos."
A versão que adquire eficácia é outra, a que oferece a
criada da casa, a velha criada:

Ah, queridinho, você não sabe? O homeni da areia é um homem


mau que vem proclll1II as crianças quando não querem se deitar e lhes
joga areia nos olhos ali fcl-las c horar sangue. Depois, enfia-as num
.51100 e aa leva para a lua para divertirem seus ítlhinhos, que t!m bicos
tortos oomo corujas e que lhes bicamos olhos ali que as mata.

Por que areia? Por que a areia a ponto de dar o nome a es-
se homem?
Desde então, o protagonista sofreu intensos terrores, até
que, premido por sua curiosidade, decide um dia ficar no gabi-
nete de seu pai no momento em que chega o homem da areia.
Quando iam domúr, todas as noites escutavam-se os pas-
sos de alguém que vinha reunir-se com seu pai. O sujeito es-
conde-se no gabinete do pai e descobre que o tal homerp da
areia não é senão um personagem que ele já conhece, suma-
A CLfNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 85

mente desagradável, amigo do pai, advogado, chamado Coppe-


lius.
Um homem que gostava de irritá-lo, a ele e a seus innãozi-
nhos.

O que mais nos chocava nele, criançaa, eram suas grossas mãos
peludas e ossudas e quando as punha sobre um objeto qualquer, to!N-
VIUIIO$ muito cuidado para não locá-lo em aeguida. Ele havia notado
esta repugnância e era pan ele um prazer tocar oe puteizinhos c aa
frutas que nossa mãe nos punha oo prato.

Gozava - trata-se de alguém que gozava -

Gozava então vendo que nossos olhos se eochiam de lágrimas e


deleitava-se com a privação que nos impunha a repugnância em re-
lação à sua pessoa. Costumava chamar-nos de a.nimaizinbos.

Observa como seu pai e o sujeito começam a fazer prepa-


rativos que não compreende e descobre no seu pai wna cara
satânica; horrorizado pela cena cai no chão e é descoberto.
Nesse tempo - diz-

Acredilava ver em torno roscos humanos, mas sem olhos; cavi-


dades negras, profundas e manchadas ocupavam o lugar destes. "0·
lbos, olhos! exclamou de repente Coppelius".

É nesse momento que o sujeito desmorona, "aniquilado por um


horror espantoso. Agarrou com as mãos um punhado de carvão
aceso que se dispunha a jogar no meu rosto".
O homem da areia é o que lança areia nos olhos. Areia,
carvões acesos, temos apenas um deslocamento do enigma. O
que é essa areia, esse carvão aceso que é jogado? Frente às só-
plicas do pai - pede-lhe que lhe deixe os olhos - Coppelius
suspende a ameaça mas, já que está al, vai verificar como estão
os mecanismos dos pés e das mãos.

SeU$ dedcc calram entio tão pesadamente sobn: mim qliC rodas as
articulações de meus membros estalaram. Girou mi.nhas mãos, depois
meus pé$, para lá e pam cL

Perde definitivamente a consciência e acorda como que do


sono da morte. Com wna sensação muito particular:
86 A CLfNICA FREUDIANA

A partir desse epiacSdio nlo se pode culpar meus olhos se tudo me


paw:e descolorido Dll. vida, porque uma nuvem sombria se estendeu
diante de mim sobre todos 011 objetos, e 86 a morte poderá dissipi-la,

O advogado Coppelius retomou mais uma vez, e houve


uma explosão na qual morreu seu pai. No fim da carta esclare-
ce-se porque lhe havia produzido tanto terror o vendedor de
barômetros. Era alguém que dizia chamar-se Giuseppe Coppo--
la, mecânico piemontês e em quem o sujeito reconheceu o ad-
vogado Coppelius.
Este é o primeiro tempo que lhes propus como a sem-razão
assinalada. Trata-se do olho, da visão e do olhar.

DOIS TRIÂNGULOS

Fig,l

Estes são os triângulos com os quais Lacan representa, no


texto Os quatro conce;tos fundamentais da psicaniJlisé', duas
funções que se entrecruzam: a visão e o olhar.
No. triângulo superior, campo da visão, desenha o sujeito
da percepção, coincidente com o sujeito cartesiano, sujeito da
consciência que se dirige ao objeto, como objeto do conheci-
mento. Sujeito da representação que na história da pintura, diz

6. Laran, J., La qlllJII'e CtD""f1# j'ruldorrwnl4ux tü la psychanalyJe, Paria,


ScuJI, 1964.
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 87

Lacan, obtém relevância na época em que se delineia e se ele-


va ao grau máximo, à mestria, o trabalho da perspectiva; sujei-
to da representação que recebe do objeto sua imagem segundo
as leis da perspectiva.
Lacan opõe a este triângulo outro que no lugar do objeto
situa o que, poc enquanto, chamaremos um ponto luminoso -
lembrem-se da incógnita: o que é a areia, o que é a brasa ar-
dente - no meio a tela e, do outro lado, o quadro.

A BORBOLETA

Lacan propõe wna pergunta: o que é um quadro? Algo


que, a princípio, se dá a ver. Qual é a posição do pintor, qual é
a posição do espectador perante um quadro? Lacan diz o se-
guinte:

Se colocado como espectador ~bo o que o quadro ae'" ave~,


é no fundo de um vaso, de um recipiente que é precisamente meu olho,
onde o quadro se forma. mas com esta qualidade: se saio da a.partncia
do ponto geométrico, ou seja, o lugar do sujeito cartesiano, o sujeito
da ~rspectiva, se posso alc:ançar a outra dimenslo do quiasma,,e&&e
quadro que se forma no fundo do meu olho, esse quadro sou eu, en-
quanto sujeito do iDconaciente, e esse ponto lumii'IO!!O do qual estou
separado por um anteparo (tela), esse ponto luminoso é o olhar que me
constitui como tal.

Como várias vezes tive a sorte de achá-lo, mais uma vez se .


dá um lugar de encontro entre dois discursos aparentemente
d!spares: a psicanálise de Lacan7 e a literatura de Borges.8
Ambos mencionam Chuang-Tzu, fJ.lósofo do século m oo IV
a.C., tao!sta, que um dia soó.hou que era uma borboleta; quan-
do despertou foi sujeito da dt1vida. Perguntou-se: serei um ho-
mem que pensa que sonhou que era uma borboleta, ou serei

7, Lacan, J,: les quatre concepu jiurdamen14UX de la ptyeltantJJy#, PariJ,


Seuil, 1964, pp. 72·13.
8. Borges, J. L., " SueAo de la lllllripoaa". Antologia tk la litemturr:~fan14.rti·
ca, Bucnoa Ai.ree, Sudamericana. 1976, P: ISS.
88 A CLfNICA FREUDIANA

uma borboleta que agora acredita ser wn homem? E Lacan diz:


"borboleta que ele era em sua essência, no tempo do sonho."
Em estado de vigília é sujeito da ddvida, o que gai:ante - diz
Lacan - que não é louco, não se toma por quem é, no sonho
não há dóvida; ela o assalta na vigflía. No sonho ele é a borb~
leta. Mas, o que quer dizer que é a borboleta? Diz Lacan "que
ele era em sua essência essa borboleta - e esta é a frase que
quero frisar - que se pinta com suas próprias cores."
O "Homem dos lobos"8 tinha fobia de borboletas. Por
quê? O que é a borboleta de que tem fobia? Trata-se - diz
Freud - de uma borboleta frente à qual recua aterrorizado
quando esta abre suas asas, do modo como uma mulher separa
suas pernas. Algo do gozo está ali indicado.
Trouxe para vocês uma borboleta que costumo ter em meu
consultório. O que é esta borboleta? Façamos um pequeno
desvio. Um quadro. Podemos definir um quadro como um
acómulo de manchas, manchas que chovem do pincel do pin-
tor. É uma depositação do pintor. Um quadro, como actimulo
de manchas, pode muito bem representar uma borboleta mas, o
que é uma borboleta? Roger Caillois nos diz, em .Medusa e
companhia1o, que uma borboleta é um quadro na natureza, é
wn acúmulo de manchas que excede a utilidade. Nenhuma teo-
ria darwiniana é suficiente para dai conta desse excesso. E
ainda mais, pode fazê-la especialmente apta para ser presa das
espécies predadoras. Uma borboleta é um quadro. O que é,
então, um quadro como este que lhes proponho que desenha
uma borboleta? É o quadro de um quadro. Mas com uma dife-
rença: apazigua o real. Por quê? Tentem me seguir nesta
ficção. Imaginem-se, cada um de vocês, a sós com este quadro:
num determinado momento começam a mover-se as asas. Algo
da ordem do sinistro seria possível? Se depois chegarem perto
ve.rão, no entanto, que não é precisamente um quadro, é uma
colagem. Está feito, em algumas partes, com retalhos de pano,

9. Freud, S. "llil;toria de una neurosi5 infantil", O.C, Madrid, Bibliotccn


Nueva, 1948, TomoU.
lO: Callois, R., Medu.w y Cia., Barcelona, Seix. Barrai, 1962.
A CLÍNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 89

tampas de garrafas, sucata, a dimensão do resto, do resíduo:


reintroduz o real. O que é essa borboleta com que sonha
Chuang-Tzu? Diz Lacan em Os quatro conceitos da psican4li-
se11:

Saá que a q~ Dio t tomar de maiJ; pccto iMo que chAmei a


cbuva do pincel? Saá que se wn pús.aro pintasse, não seria deixando
cair 3aas pliiiDIIll? Uma serpente SWI8 escamas, lllJlllárvore suas folhas?
O que se acumula aqui 6 o primeiro ato da deposítaçiio do olhar.
Quaudo o pintor pinta, algo se produz como depositaçio do olhar e se
oferece como o que se dA a ver, maa oom esta qualidade: que aquilo
que no campo da vislo aparece como objeto para o espectador tem,
mais ~ da imagem que se oferece, da tela, wn ponto lwnillollo.

O OBJETO

Se entrecruzo os dois triângulos, a função do quiasma que


Lacan menciona quando tenta abordar o campo da pulsão
escópica, haverá uma superposição da imagem e da tela. Tela
a quê? Precisamente a isto: ao ponto luminoso. Para que se
produza a dimensão do quadro; além da imagem que o sujei-
to recebe no ponto geométrico, essa imagem que funciona no
tempo do quiasma como tela, encontra-se o ponto luminoso.
Dou mais um passo e o nomeio: o objeto a, precisamente um:
o olhar.
Conta Lacan que, quando jovem, foi visitar um pequeno
povoado pesqueiro. Como bom burguês que era, quis ter a ex-
periência de estar com as pessoas que trabalham e foi com os
pescadores ao trabalho.
Alguém que estava com ele no barco, lhe disse, apontando
para wna lata de sardinhas que flutuava no mar: ..Olha a lata
de sardinha, ela não te vê". No discurso da lucidez é assim.
Noutro discurso, aquele que a psicanálise revela, fez Lacan
pensar que se a lata de sardinhas não o via, era porque o olha-
va. Para lembrar-lhe sua condição, sua düerença com aqueles
que estavam com ele. Ele era quadro - frente a essa lata de sar-

11. Op. cil.


90 A CLfNICA FREUDIANA

dinhas- diferente daqueles com quem estava. A lata de sardi-


nhas, na qual o sol se refletia, cumpriu função de ponto lumi-
noso, suporte do olhar, para o quall...acan foi quadro.
No ato em que o pintor produz seu quadro, a queda da
DWlcha é o tempo primeiro de depositaçã.o do olhar. No ho-
mem da areia, o protagonista, Nataniel, sofre a impossibilidade
dessa deposítação. Tentarei lhes contar, da fonna mais resumi-
da possível, como continua este relato.

CORTINAS

Logicamente, de uma namorada chamada Oara, só pode


receber uma resposta clara, lúcida, que irrita o sujeito, não se
sente reconhecido. Nesta nova carta o sujeito relata que che-
gou a esta cidade, onde ele está estudando - longe de sua na-
morada e de sua fanúlia - um professor de Física, chamado
Spalanz.ani, do qual descobre uma fllba chamada Olímpia.

Faz pouco tempo, subindo ao seu apu1llmenCo, obacJvci que uma


corti.oa. que DOJJD&lmente pennaocce fccbada sobre uma porta de vi-
dro, esrava um pouco aberta. Eu lllC8D10 ignoro como cheguei a olhar
attav& do cristal.
...pereceu nio se dar conta de minha p.rcaença. seus olhos pennane-
dam fi.X06, diria até que carecia de raios visuais, como se dol1llis8e de
olhos llberto8.

Abre-se uma cortina, no quiasma que acabamos de dese-


nhar, desgarra-se a tela; abre-se uma brecha, insinua-se o que
está além do que se dá a ver.
Do famoso desafio dos pintores gregos Zeuxis e Parracius,
Lacan faz esta observação: Zeuxis desenha umas uvas tão per-
feitas - conta a lenda - que os pássaros iam bicá-las. Diz La-
can, isso não é uma façanha especialmente notável, nem sequer
é necessário que sejam cumpridas as condições do relismo;
simplesmente satisfazendo algum signo suficiente para o pássa-
ro pode obter-se este efeito. Em contrapartida, Parracius ofere-
ce seu quadro e Zeuxis lhe diz: "Bom, corre o véu que quero
vê-lo": era um véu pintado.
Isso - diz Lacan - é o que ensina como se engana um ho-
A CL1NICA fREUDIANA: SEMINÁRIO 91

mem: oferecendo-lhe um véu que, mais além dele, indica o que


se quer ver.

MAIS ALÉM DO VÉU

Daqui para a frente já não é mais o protagonista que pode


jogar suas cartas: o relato prossegue em letra de outro, um es-
critor, que conta: "Considerem-se as três cartas que meu amigo
Lotário teve a bondade de me mostrar com esboço do quadro
que, durante o curso de minha narração, me esforçarei por
animar da melhor maneira que puder."
Também aqui está em jogo a dimensão do quadro. E por
que não? Nós psicanalistas não falamos também do "quadro
clínico"? Às vezes, escuta-se uma polêmica sobre se a apre-
sentação de tal caso foi a apresentação de um caso clínico ou
foi supen'isão. Numa posição, a meu ver equivocada, costuma
se acreditar que o caso clínico, na apresentação, não teria que
implicar o · analista que o expõe: ilusão de um quadro sem
quiasma.
No relato: a filha do professor não era senão um autômato
que o professor havia criado, do qual o protagonista se apaixo-
na perdidamente. O escritor nos conta que o jovem sofre um
momento de espanto quando recebe a visita do vendedor de
aparelhos óticos e este lhe diz:
'Wienti barometri - não tenho barômetros - ma tengo
tambene bello occo." Espanta-se até descobrir o equívoco: lhe
oferecia óculos.

Enquanto falava - diz - não parava de tirar óculos do bolso,


num tal nlimero que !i mesa onde os punha, iluminada por um raio de
sol, resplandeceu de repente como um mar de luzes prismáticas. Mi-
lhares de olhos pareciam dardejar cintilantes olhares para Naraniel mas
este não podia desviar os seus da mesa. Coppola, assim apresentava-se
este <Stico, oio par-.tva de amontoar 6culos nela, e aqueles olhares cada
vez mais inumerãvcis resplandeciam cada vez mais.

Co-incidência do ponto luminoso e do olhar.


..Formavam como um feixe de raios sangrentos que iam se
perder no peito de Nataniel."
92 A CLÍNICA FREUDIANA

Os óculos multiplicam os olhares. O sujeito se repõe, tenta di-


zer que tudo foi um equívoco, o vendedor de óculos os guarda
e lhe oferece, em troca, umas lentes para ver à distância, uma
luneta, que compra.
Com esta luneta aponta para a janela do professor e fica
fascinado ao ver sua ftlha.

S6 os olhos pareciam singularmente fixos c como que monos,


mas quanto mais a olhava com a luneta, mais lhe parecia que os olhos
de Olímpia se animavam com cinúdos raios. Aquilo era como se o
ponto visual se animasse repentinamente c os olhos se tornassem cada
vez mais vivos e brilhantes.

O sujeito fascinado por aquela que acredita ser filha do


professor, acode a uma festa onde fica deslwnbrado até que um
dia, indo à casa de quem seria seu futuro sogro, escuta vozes; é
a discussão entre Spalanzani e Coppola que, na verdade, é
Coppelius; quando chega descobre que há uma briga entre
eles, que Coppola, Coppelius, leva embora a boneca, o autô-
mato, e Spalanzani golpeado na discussão que havia tido com
Coppola grita-lhe:

Persegue-o. perxgue-o, o§o f1<1ue a! parado! Coppelius, O mi-


scrãve.l Coppel.ius roubou meu melhor autômato, trabal~ vinte anos
nele. Por ele sacrifiquei meu corpo e minha vida. O mecanismo, a pa-
lavra, tudo , tudo era feito por mim. Os olhos, os olhos eu tinha rouba-
do de ti. Bandido, corre atrás dele, traz de volta minha OIImpia, aqui
estio os olhos.

Nataniel viu no chão - como Édipo - um par de olhos en-


sangüentados que o olhavam fiXamente. Spalanzani os reco-
lheu e jogou-os contra ele.
Jogava-se areia, jogavam-se brasas ardentes, também o
olhar é jogado.

O REAL E O SINISTRO

A cena final; depois de ter estado num manicômio, recupe-


ra-se junto de seus familiares, todos contentes, parece que
aquela história flcou para trás, até que decidem passear, desco-
A CLlNICA FREUDIANA: SEMINÁRIO 93

brem uma torre, têm a idéia de subir e desde lá, o sujeito põe a
mão no seu bolso automaticamente, poderíamos dizer, ao modo
da pulsão, descobre a luneta, olha através dela e descobre na
multidão Coppola-Coppelius. Nesse momento volta a te.r um
acesso delirante, quer jogar sua namorada, lhe diz:
"Linda bonequinha, dança, dança."
Quer atirá-Ia, o irmão desta a salva e o sujeito dá voltas na
torre; alguém diz que teriam de resgatá-lo e Coppola-Coppelius
de baixo ironiza:
..Não é necessário, já descerá sozinho."
E, efetivamente, desce, mas não pela escada, atira-se e assim
morre.
É o olhar e o sinistro. O sinistro- diz Freud- não pode
ser situado senão num lugar do relato: os olhos separados, des-
prendidos, ensanguentados, aos ~s do protagonista. Trata-se -
dizemos nós - do olhar. Mas o olhar, quando este se articula
de um certo modo. Quem é Coppelíus? É um advogado, impli-
cação da lei; é também Coppola, wn ótico; outros dois signifi-
cantes foram oferecidos a Freud pela mulher de Rank, estão em
lalangue12: Coppello que quer dizer crisol, coppo, que quer
dizer cavidade orbital. Digo Coppelius, na medida em que não
é quem mediatiza a lei, mas quem a propõe; põe a mão na co-
mida. protbe e goza; oferece a luneta e o sujeito flca preso no
lugar do olhar: Coppelius não é senão quem representa emble·
maticamente o Supereu obsceno e feroz, o Supereu que diz:
goza. O olhar delineado por esta cadeia significante é wn pon-
to, um ponto lwninoso, que não se define como na axiomática
euclidiana, éarente de dimensão. Para que um ponto se recorte,
Lacan propõe o nó borromeano. Onde dois contínuos se inter-
seccíonam com um terceiro é possível' situar no espaço a di-
mensão do ponto. Não há objeto a se não se articula o real, o
simbólico e o imaginário.

12. Lacan, J., t:ncore. Paris, Seuil, 1975, p. 126. "'Lalanguc' serve para
qualquer outra coisa que não a wmunicação. e_ o que a e!l periência do inconsciente
nos mostrou, na meúida em que ele estã feito de ' lalangue' , e~Ul. l alangue que, v~s
~abem , escrevo em uma s6 palavra paro designar o que é o affuire de cada um de
nós, ' lalangue' ch:.mada materna. c nllo à toa a:;s im tli!Jl.."
94 A CLíNICA FREUDIANA

O que é isto que chamamos de o sinistro? Freud, desde o


começo, apresenta o sinistro como particularidade do angus-
tiante, incluído em sua generalidade, mas diferenciável. O que
é a angústia, o que é sinistro? A angústia é sinal que se produz
no eu. Se é sinal, é para alguém, para o sujeito, que assim é
advertido de algo, pelo sinal: o objeto se aproxima, objeto da
pulsão. Se está advertido, é porque é um objeto demarcado, al-
cançável para o sujeito, num tempo que não é qualquer. A
angústia implica um tempo prévio ao corte do objeto, prévio à
que algo que se produz na intersecção entre o sujeito e o Ou-
tro, caia. Prévio ao corte, também o anuncia. Mas eis aqui uma
diferença: não é a castração enquanto corte o que o angustia
mas enquanto possibilidade de que a castração não se produza. ·
Se o sujeito deseja , é pelo que falta. Enquanto tiver o que de-
veria faltar-lhe, ali fica fixado. Borboleta, para o homem dos
lobos; o olhar de Olfmpia para Nataniel que é também do sujei-
to, ou melhor, nem de um nem de outro, entre um e outro, na
intersecção de ambos e ali o aprisiona, enquanto não cair.
Mas isto não é o sinistro, isto é o angustiante. O que é o
sinistro? Coincidimos com Freud, é o tempo em que os olhos
estão a seus pts, ensanguentados, caídos. O objeto caldo, sepa-
rado, ao alcance do sujeito. Aparece no real. Na angústia, se
seguirmos os rnatemas de Lacan, se anuncia encoberto e por is-
to Lacan escreve: i (a) imagem especular; o objeto é indicado,
porém encoberto, objeto fant.asmático; no sonho de "O homem
dos lobos", estes presentificam para ele o objeto a, o olhar. No
sinistro o véu se ausenta, a cortina se abre. Uma rachadura se
produz. A tela que separa o sujeito, enquanto quadro, do ponto
luminoso, se desfaz. A realidade se desgarra.
Voltemos à questão do começo. O que é essa letra que si-
tua o homem a ponto de nomeá-lo " Homem dos ratos", " Ho-
mem dos lobos", "Homem da areia", inscrevem, a letra do go-
zo, o objeto a. Os ratos na pulsão anal, os lobos na pulsão
escópica. Qual então o atributo - como dizia no convite - que
esteja a altura desse homem? Qual o atributo que diZ de seu
ser? Se todo atributo do ser o desdiz, só aquele que situa a fal-
ta de ser, o faz ser de carência. Equivale a ser de desejo. Esse
é o objeto a. Talvez, possa se entender porque esta conversa, a
A CLÍNICA fREUDIANA: SEMINÁRIO 95

meu ver, ligá-se à primeira deste ciclo, que lhes mencionei. Na


primeira era uma a-posta perdida. Hoje , quando o analista, ao
invés de por o a como perda, joga-o contra o peito de seu pa-
ciente: o t1nico recurso que lhe resta é àtirar-se do alto da torre.
A CLÍNICA fREUDIANA
EA PSICANÁLISE
DEPOI0 D.E FQEUD
A M()QTt: 0[ IDEUD*

QUANDO A MORlE

Quando a morte sussurrou tranqüilamente o convite à 111ti-


ma morada, pensou o velho Jacó que seu fun não era senão ato
inaugural? Que seu eterno repouso se romperia na torrente de
sonhos do primogênito de suas segundas núpcias?
Muitos anos depois, na proximidade do exfiio forçado pe-
las forças que falam desse Deus obscuro do qual nenhuma pro-
va alenta, por enquanto, esperança de sua extinção, este fllho,
já pai e avô, escreveu sobre o líder religioso e político de um
povo ao qual se diz pertencente, não sem assinalar sua particu-
lar posição.1 Pertencimento que é causa de seu exfiio.
E escreve sobre um ex.Oio que se toma êxodo e rotomo à
terra prometida aos pais: Abraão, Isaac, Jacó, volta anunciada
na promessa divina.
Assim como o povo escolhido alcançou a terra do leite e
do mel, de um' modo nunca conseguido pelos ancestrais, Sig-

• Vetaão eacrita do trabalho apresentado em " Sigmund Freud: Jornadas de


Homenagens no quadnlg&irno anilve:rdrio de sua mort.e"a 22 de setembro de 1979.
1. Fm1d, S., " E I hombre Moisés y e1 monotefsmo" ,O.C., Madrid, Bibliore-
ca Nueva, 1948, Tomo III, p. 18 1.
100 A CLÍNICA FREUDIANA

mWld Freud retomou ao seio da tradição judaica, para marcá-la


com a obra de sua vida, com o corpo de sua letra.
Senhores - disse Freud: vosso lfder, vosso chefe, vosso
mediador perante a palavra de Deus, não era judeu. Era ftlho
do povo que abominais. .
Senhores: vosso lfder, a quem hoje venerais, foi despre-
zado e assassinado por vossos antepassados.
Duas afirmações escandalosas e pouco práticas para
quem sofria na carne outra das afrontas que a história dirigia
contra os de sua lei. Identificação com o agressor? Seria uma
resposta que só testemunharia a falta de nossa elucubração
para alcançar outra verdade maior: Freud, atirado pelas hor-
das nazistas à tradição judaica como gueto cultural de sobre-
vivência, retoma os próprios limites desse marco: a promessa
divina aos descendentes de Jacó. Povo eleito e por duas vezes
marcado nos grandes traços de sua tradição: a circuncisão,
pacto com o pai primordial; as tábuas da lei. palavra divina
trazida por Moisés. Entre ambas, o exílio, a escravidão e a
longa travessia pelo deserto.
História de acontecimentos reunidos pela força do arbi-
trário? Lendas que tecem vestígios de passados cumpridos,
esquecidos, remendados?
Numa outra dimensão situamos nossas perguntas: não se-
ria possível ler neste relato - e também no trajeto freudiano -
a forma nútica que poderia nos ajudar a desentranhar algumas
questões que nos implicam de várias maneiras?
O exílio, a mudança de lugar que a palavra divina requer
daqueles que a seguem, propõe, por sua própria reiteração,
algo mais do que a marca de um nomadismo provável ou
certo.
A partida para o exílio propõe outro espaço que o das
correrias infantis, o do calor materno e o resguardo patriarcal;
também outras línguas que a própria, que se toma corpo e s6
reconhecida como adquirível no contato mesmo com falantes
de outras formas. Distância do Outro primordial, o que legisla
primeiro pela lei do discurso que primeiro se diz.
Quando as ~uas se separaram para abrir caminho às
hostes hebréias, a fé no Outro e sua dependência absoluta en-
A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD IOI

cobriram, pela magnitude do ato rubricado na morte do ,per-


seguidor egípcio, que a alegria da salvação era apenas o re-
verso do abandono, sem retomo possível, ao lar que há sé-
culos em o próprio, mesmo que sua fonna fosse o laço social
da escmvidão. Tudo em troca de uma liberação prometida
numa senda incerta.
Repetição na genealogia: Abraão deixou a terra de seus
pais por mandato divino; seus descendentes - os descenden-
tes do fllho de seu fllho, de Jacó - abandonaram agom seus
lares. Cristo pede àqueles que queiram segui-lo que deixem
os seus para encontrar-se no caminho de Deus que ele pro-
põe.
A libemção é, para cada sujeito, um ato que o constitui;
libemção da palavm absoluta do Outro, supõe wna mudança
de lugar. Hoje dizemos, uma mudança topológica. Por que o
deserto é o antro imediato dos que partem? A geografaa não
nos satisfaz como única resposta.
Também Cristo caminha sem pertences e assim quer para
os que o acompanbam.

SE A PARTIDA É UM ATO

Se a partida é um ato, supõe um reordenamento signifi-


cante e este s6 é possível se caem os ·bens que o impedem,
aqileles cujo peso, pela pennanência dos anos, tomam difícil
o movimento que não é senão o do discurso. Um deserto é
despovoamento do peso das coisas, queda desse conheci-
mento fixado por desmultiplicação do primeiro objeto egóico;
queda do produto do Outro primordial que se não é passagem
ao ato é porque wn discurso Outro se propõe. Fé no lugar da
angústia.
Entre duas mortes transcorre uma análise. Entre as mortes •
de Jacó e Moisés a história de um povo, também a vida e a
obm de um homem. Na relação pendular que faz de um fan-
tasma individual um mito coletivo e sua recíproca, é aqui, nas
J·ustificativas da história de um povo do qual rt(ebé suas mar·
cas significantes, onde Freud desenvolve a principal articula-
102 A CLfNICA FREUDIANA

ção de sua história ou de sua obra: quem poderia dizer da di-


ferença? Produz o grande mito da modernidade inaugurado
em Totem e Tabu: o homem não se torna tal senão pela lei
qúe recebe de um pai morto. E que, entre outras coisas, vem
dizer que a mãe não deve ter pênis.
Estranha disciplina que se pretende científica e nomeia
objetos sem realidade, escuta mortos que legislam.
Lei, mandamento, assinalam que é o reino do discurso
que produz o impossível. O homem advém à sua condição por
um sexo que se constitui mediado pela palavra do Outro que
fala. A mitologia popular o nomeia e o numera: o quarenta e
oito, o morto que fala: sua fonna de lembrar que a letra é uma
cifra.
"Se Napoleão é astronauta, Caracas é a capital da Vene-
zuela." Quem propõe sua refutação?
Queda da adequação do discurso a uma realidade consti-
tuída e prévia, a referência se torna lei do discurso produtora
de um efeito de sentido, discurso metáfora do sujeito.
Surpresa perante tamanha audácia, contudo a magnitude
inesperada do continente freudiano, não preservou por si
mesma a continuidade do assombro. O hábito, inércia do pen-
samento e do corpo, levou esta letra a uma condição de morte
cotidiana ou a seu descobrimento mais radical. Ignorância do
mito freudiano sob a justificativa de teorias mais científicas
por sua suposta maior adequação à realidade. Lembremos os
melhores: Jones, Melanie Klein2 em seus esçritos sobre a se-
xualidade feminina que Freud se viu ·o brigado a rebater. Ou
então, repetição de um dizer que como ladainha fala do pai
morto e das demais molas da história, como um saber seguro
por si s6.
Atribuído o crédito que Freud merece, não é o apelo à
sUa palavr.t que inscreve quem o produz na continuidade de
sua obra. A história do p6s-freudismo é prova suficiente dis-

2. Jones, E., "La fale prccoz dei desarrollo de la se.xualidad femenina", La


senca&Wl f-nina, Buenos Aires, Caudcx, 1966. Klein, M. E/ p.sicoandJi.rls de
nii1o.r, Buenot Aba, Paid6s, 1977.
,.
A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 103 ~

to. Também. a valente proposta de quem, pagando com sua


exclusão da comunidade psicanalítica oficial, soube e sabe di-
rigir suas perguntas nos ensinando que um morto não s6 deve
ser escutado, como, ainda mais, que isso implica em inte~
gá-lo. Assim Lacan salda sua dívida c.o m Freud.

CONVITE

Convite, certamente, a situar nossas perguntas. Não supõe


isto o despojamento do nosso saber como bem-saber? Não é
nossa entrada na travessia, no deserto.
Sem garantias em relação ao que segue, mas com a con-
vicção de que a permanência nos excluiria do gozo e da cria-
ção (lembrem-se: os dois fins do tratamento), decide-se partir:
Por que um pai é eficaz se, e somente se, toma-se morto? •
Por que o sujeito não se institui senão por mediação de
uma lei'?
O que é a lei, o que é um pai morto?
Em seu texto sobre o sacrifício, Georges Bataille3 escre-
ve que a morte da vftima implica o anseio de sua negação
como coisa adiscrita ao mundo da duração, para advir pela
violência, à intimidade perdida. O sacrifício humano é a cd.s-
pide de uma série em que também estão incluídas outras enti-
dades que, sendo coisas, são passíveis do atributo espiritual :
vegetais·, animais. Mas a conquista dessa intimidade que con-
sagrct o sucesso do sacrifício não é o retomo à iriumência da •
animalidade. Só é possível obtê-la através da supressão da
consciência e do corpo como coisa da realidade.
Bataille deslinda a consciência articuladora da distinção e
da claridade dos objetos do mundo, da impossível articulação,
efeito do ato sacrificial. O que é, pois, essa intimidade alcan-
çada? Algo do ser nos é proposto e entrelaçado ao próprio ser
da religião.

3. Bataille, v., El erorismo, Buenos Aires, Sur, 1960.


104 A CLÍNICA FREUDIANA

Sacrif{cio do pai, negação qlle produz o illtimamente hu-


mano.
Pensemos: um pai morto é concebível fora da palavra que
o. nomeia? O mais além que o situa, lugar do real, se diz em
Nome do Pai, significante f~ndante 4a ordem simbólica.
Disjunção do pai morto e do Nome do Pai. A lei os articula,
proibição.do incesto, é também o ato de sua produção.

NO DIZER FREUDIANO

No dizer freudiano, Deus é o representante do amor in-


fantil ao pai idealizado.
Como do pai morto, algo retoma. Se o Real é o que re-
tOma sempre ao mesmo lugar, a questão é saber em que con-
siste essa mesmice. A religião judaica, apesar de sua negativa
a toda iconografia, sublinhada no dizer de Jeová: "Sou
aquele que · sou" 4 , ou seja, nada que pelas limitações do atri-
buto desminta sua condição absoluta, representa~ na sarça
ardente: milagre onde aquilo que está destinado ao consumo
abrasador, à extinção, se sustenta na duração antinaturaJ.
O real retoma, pois, no lugar da representação. Deus é
eterno como o amor infantil persiste no inconsciente.
O mistério criticável da imanente viscosidade libidinal,
opõe-se à insistência qe uma inscrição primeira que corn.o o
bloco mágico, melhor guarda · aquilo que mais apaga. Esque-
cimento do assas8Úlato primordial, condição da persistência
de seus efeitos.
Pode-se, então, articular o insistente lamarckísmo freu-
diano que, em oposição ao saber da biologia contemporânea,
afumou a transmissão genética dos caracteres adquiridos:
lembrança recalcada do parricídio primordial, ato primeiro
que persiste, testemunha do efeito mitogênico da língua que
se produz.

4, Sagr.ada Bfblia, M~ Catdlica, 1969.


A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD lOS

Porque o real se define essencialmente pela Iógica que o


produz. E esta, não é senão a do discurso.

MáuroDELACAN

Mérito de Lacan quem, com agrado, se reconhece no de-


sejo de articular a lógica jacente no mito freudiano.
U m pai morto, pai que fala na lei que é dita em seu nome,
instaura como tempo pré-histórico, o do pai terrível, ser vivo,
sem limites para o apetite de seu sexo, dono de todo gozo.
Tempo concomitante onde para todo outro enquanto .filho, to-
do acesso ao se,xo é pago com a perda do corpo corno totali-
dade.
A morte do pai, sua supressão como ser vivo, marca seu
limite e o autoriza a propor outro: todas as mulheres podem ser
vossas, menos uma.
O parricídio, a morte do pai primordial, instaura dois
tempos: o primeiro onde toda mulber foi sua e para todo filho
nenhuma era possível; e o segundo onde seu corpo suprimido
é pura lei que sustenta seu gozo no amor à sua palavra (Deus
gosta de oferendas e rezas) e institui cada fl.lho oomo sujeito
sexuado para quem toda mulher é possível em troca de uma
que não é.
A perda do pênis será a negação da totalidade do corpo,
como a castração pela morte do pai. Por isso dizemos que
se o falo é metáfora do pênis, o Nome do Pai é metáfora do
falo.
Dizer que uma mulher, sua mãe, lhe é proibida, não é di-
ferente de aíumar que ele é proibido para essa mulher. Sua
privação ao Outro primordial, aquele do qual provém dupla-
mente, no corpo e na língua que o constitui (a que pela sua
origem se chama materna) é a porta de entrada ao seu ser se-
xuado. Dali para a frente, esse Outro que está em falta tende-
rá ao encontro do perdido. A lenda do Don Juan será a prova
de que, mesmo que todas sejam provadas, nenhwna será sufi-
ciente e outra aventura será necessária e possível.
106 A CLÍNICA FREU!DlANA

Mas Totem e Tabu 5 não é senão o mito visto pelo falho.


Se o pai terrível é considerado como tempo primeiro, não é
menos, segundo aquilo que o precede. Se um, o pai, quis ser
para todas, outro, o fJ.lho, tentou ser tudo com uma. Somente
enquanto mãe a mulher é toda.

PERGUNTAS QUE RETORNAM

Perguntas que retomam nos afligem: por que um pai deve ·


ser morto, assim como um fllho castrado? Ou, o que dá na
mesma coisa, por que um fillio mata, enquanto que um pai
castra?
Se entre o s ujeito e a cadeia de significantes que o repre-
sentam e o excluem, a relação é circular mas não recíproca, é
porque o significante do Outro, inaugura pela sua marca o
estabelecimento da estrutura.
Assim, a falta do sujeito, seu ser de ex-sistência, será a
falta de um significante na cadeia, forçando seu deslizamento
por um-a-mais.
O significante fálico sustentará a função imaginária (- l9
na álgebra lacaniana, queda do pênis e seus equivalentes, no
dizer freudiano) que no fantasma será indicada por essa parte
separável.
Libra de carne que o sujeito oferece em troca de seu ser
sexuado. O(vida simbólica que só se paga no reconhecimento
da falta (do Outro), dom de verdade.
Freud não deixou de apontar as coincidências que apro-
ximavam sua obra da de Nietzsche. Na Geolcgia da moral6,
Nietzsche desenvolveu sua concepção sobre a origem da má
consciência. A dívida, material na sua origem, foi depois dí-

5. F~nd, S., "'Totem y tabd", O.C.,BuenosAirea,Amorrortu, 1980, Tomo


XUI.
6. Níct7.8Cho, F. W., La slrrloJosi4 de la momk tn Par-dela bien tt mal, Pa·
ris, GaJlimard, 1971.
A CLfNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREVO 107

vida e falta com a instauração de wna ordem, que se tomou


lei. ·
Também propôs um mito das origens: a horda melhor or-
ganizada, provavelmente de loiros guerreiros no exercício de
sua .ambição pelo poder, submeteu outros povos que tiveram
que transferir seus próprios anseios de poder, vingança, mal-
dade, para seu interior, voltando seu 6<Ho contra si mesmos.
A infração tomou-se, mais do que um atentado à vítima, um
atentado à lei. A dívida transformou-se em falta moral e so-
cial.
L.acan, no desenvolvimento de seus quatro discursos,
chamou discwso do amo àquele que põe no lugar do agente,
o significante unário. Do amo-guerreiro de Nietzsche ao sig-
nificante amo, um deslocamento propõe suas conseqüências: ,
a lei operante é lei do discurso (o que não exclui que todo
discurso institui um laço social).
Mas, o que é que decide que as marcas que no sujeito dão
prova da eficácia que a linguagem possui na transmutaÇão
que faz de um ser vivo um ser falante, seja produzida no des-
filadeiro delineado pelos atos da tragédia edípica, na articula-
ção das gerações?
Ou o ei}uivalente: por que, mesmo que a ameaça prove-
nha de outro, será o pai que sustentará o lugar do agente da
castração, fato que Freud não deixou de reiterar?
..0 dito primeiro decreta. legisla, 'aforiu', é oráculo,
confere ao outro real sua obscura autoridade".r
Lugar primeiro do sujeito, o campo do Outro o produz
em sua tríplice conseqüência: lugar vazio, ser de carencia;
articulação simbólica, inaugúrada na identificação primeira
com um significante; corpo erógeno, sustentáculo da unidade
imaginária.
Se o sujeito é o qüe um significante representa para outro
significante, tanto si.Ul falta, como sua irrupção na cadeia, se.
rá intetsticial.

7. t...can, 1., "Subverai.oo d» .ujot ct dialectique du de$V', tcril8, Paria,


Seuil, 1966,p.808,
108 A CLfNICA FREUDIANA

A relação entre parte e todo do fantasma articula-se logi-


camente na de um signiticante com a cadeia.
Sua recíproca: a falta na cadeia, produz a inconsistência
do Outro. Sua inexistência torna-se pai morto e Nome do Pai.
A lei que daí retoma é a lei do falta: o gozo está proibido e
• isto funda a lei. Magnitude do uúto freudiano, rigor de sua
lógica, torna compreensível sua crítica ao seu biógrafo oficial
quando o falocentrismo da teoria se viu ameaçado.

REITERAÇÃO DE FREUD

Mas em Totem e tabu já o tinha escrito. Por que esta


reiteração em "Moisés e o Monoteísmo"? Simples retomo do
recalcado, romance familiar do neurotico?8
Ou testemunho de que o passe não existe, mas que há
-1 passes e que em cada movimento volta a ser colocada a
aposta que decide se se vai ou não mais além do pai, com sua
dupla implicação: lugar do pai, lugar do mais além?
Não é por ocaso, então, que também um de seus últimos
trabalhos seja o que foi traduzido por "Análise terminável
e intenninável"9 • Porque uma análise é tenninável quando a
convicção de sua inf1nitude é alcançada.
A culpa, em contrapartida, será testemUnho de que a
morte paterna é insuficiente se no sujeito não se cumpre sua
conseqüência possível: subjetivação da morte que a angástia
assinala; rocha viva não pelo seu caráter intransponível como
por vezes toi dito, mas por sua pennanêncía como marco do
salto de uma série a outra (lembrem-se de Cantor e as séries
transfinitas) 1 0 •

··. 8. Robert, M., IYEdipe a Moísu. Freud et kt con.science juive, Paris, Cal-
man·Levy, 1974.
9. Freud, S.," AMlisis Wminable e intenninable", O.C., Madrid, Biblioteca
Nueva, 1948, Tomo ID.
10. Cantor, •Fondaments d'UDe théoric gm6rale des ensembles" in Calliers
pourf~.n~lO,Paris, SewU, l 966.
A CLfNJCA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 109

Seu fracasso, assinalado pela culpa, foi contado magis-


tralmente por Freud no caso clínico do " Homem dos Ra-
tos"11: pai morto que retoma na probição reforçada deixando
o sujeito na armadilha de sua espera e de sua partida, afasta-
do pela sua sombra das alegrias da vida.
Escreve Freud:

... não fui capaz de apagar as mareas da origem wn tanto insdlita que
este trabalho teve.
Na realidade, foi escrito duas vezes. A primeira há alguns anos,
em Viena, quando nem sequer pensava na possibílídade de publi·
cá-lo. Decidi não prosseguir, mas a tarefa nio concluída me IOrtura-
va como uma alma penada... 12

É verdade: isto não se escreve uma vez s6 e em cada uma


o sujeito sofre as conseqüências de seus titubeios.

PELA SUA LETRA

Pela sua letra, Freud concluiu - mais urna vez - e fran-


queou o obstáculo da culpa obscena no reconhecimento da
dívida que sua obra paga.
Transgressão do sagrado, . suas páginas somaram-se ao
texto fechado para abrir um rumo: por ele transitamos, e se a
detenção nos antecipa como "alma penada" também nos diz
que é aquela que não fala que decide o ponto final em que
uma obra se fecha.
Moisés não pisou a terra prometida: a falta invocada é a
verdade encoberta pela aparência do castigo.
Ela clama que não há identidade entre destino e residên-
cia.
Perdidas para sempre, nada resta da última morada de

11. Fn:ud, S., "Aoilisis de llD caso de IICIIn)Sjs obacaiva", O.C., Madrid, Bi-
blioteca Nueva, 1948, Tomo ll.
12. Fn:ud, S., "Moisés y la religidn mono~ta", O.C,, Madrid, Biblioteca
Nueva, 1948, Tomo lll.
110 A CLÍNICA FREUDIANA

Moisés; também somente vazio esperou os cruzados que pro-


curaram o Santo Sepulcro.
Não é a terra, lugar do Deus subterrâneo, Mtro de Jeová,
onde o resguardo da tradição será afinnado. Será no movi-
mento do ar onde se gestará o passo paia a espiritualidade
("o espírito deriva seu nome do hálito aéreo, anúnus, .spíri-
tu.s; hebraico: T'U4j - hálito ..). Coluna de ar vibrando na pala-
vra.
Hoje nossa voz a sustenta, não menos que vossa escuta.
E por ela vibra nosso corpo nos ritmos do destino que hoje
decidiu nos convocar na cifra magoa da morte: a aceitamos, e
é nossa homenagem.

Setembro de 1979
PSICANÁLISt: f PSICANÁLISE*

Estamos aqui reunidos sob esta conjunção que se propõe


em forma de paradigma: Psicanálise e filosofaa, psicanálise e
arte, psicanálise e escrita, psicanálise e semiótica. Em todas
elas cabe supor as articulações, encavalamentos, flexões, en-
contros e desencontros entre diferentes campos. Mas, e sobre
"psicanálise e psicanálise"? E, todavia, dizemos, é a que
sustenta a série.
Sim, senhoras e senhores: há psicanálise e psicanálise. A
apelação aos discursos convidados é uma forma de introduzir
esta diferença.
Ou, o que dá na mesma; a série precipita naquilo que a
organiza antecipadamente, tempo do Inconsciente onde o que '
está depois decide pelo que estava antes.
Também exemplo da impossível identidade significante:
uma psicanálise não é a mesma que outra. Reiteração que a
conjunção aproxima mas também separa como os dois braços
doY.
É também, disseram-nos, ocasião de homenagem àquele
que, morto há quarenta anos, continua falando na tradição

* Trabalho apresentado em Mayéutica-lnstitulclcSn PsicoaoaUtica- por aca-


sião das jornadas 44Memon~CicSo de Sigmund Freud" nos diaa lO e 11 de novembro
de 1979.
112 A CLfNICA FREUDIANA

que sua letra inaugura, sem por isto sofrer menos a exclusão
que esta lhe inflige.
Freud sabia sorrir perante os que acreditavam na bondade
humana. Tampouco avalizava oenhwna f'tlosoíaa do pessi-
mismo. Seu dualismo conseqüente não o fazia $lbrigar wna
esperança sem obstáculos no porvir da humanidade - lem-
brem-se de "O mal-estar na cultura"1 - nem na história futura
da psicanálise.
Freud, em vida, praticoQ o exercfcio deste painel: várias
vezes teve que sustentar sua palavra para apontar onde era
proposta wna opção que desdizia a disciplina que ele propug-
nay,Jl • . Digo: teve que s ustentar sua palavra; não foi mera
questão de gosto pela pol~mica - várias vezes reiterou sua
aversão ao confronto pdblico - mas resposta desde a ética
que está oos próprios fundamentos da psicanálise: sua relação
com a yecdade.
Numa carta que respondeu a Einstein não reconheceu
outro valor que tomasse digna de admiração qualquer teoria.
Convido-os, pois, a me acompanharem na ficção que lhes
proponho, por um tempo que os ponteiros do relógio não me-
dem: estamos sentados na frente de cinco cadeiras - número
ideaJ para wn pôquer - que aguardam cmco pessoas que irão
falar - irão jogar- para nós: Adler, Jung, Rank, Jones (até a
porta será acompanhado por suas mulheres) e Freud.
O primeiro 6 Adler e joga sua carta: segundo Freud, de
fato, a neurose resultaria do desenvolvimento de instintos
perversos e de seu '' frncassado recalque" ao Inconsciente; e
nesses dois fatores reside, na sua opinião, o primun movens
do psiquismo neurótico. De nossa exposição desprender-se-á,
no entanto, que a perversão, .na medida em que se manisfesta
na neurose e na psicose, é o produto não de um instinto mas
de um objetivo_ fmal fictício, e que o recalque é apenac; um
resultado secundário , detenninado pela pressão do. sentimento
de comunidade. Mas o aspecto biológico de uma atitude se-

I. Freud. S., " EI rnalestar cn la cultura", O.C., Buenos Aires, AmorroJ1U,


1979, Tomo XXI.
A CLfNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE fREUD 113

xual anonnal, o maior ou menor grau de sensibilidade, o au-


mento ou diminuição da atividade reflexa, o valor funcional,
a superestrutura psíquica compensadora, tudo isto tem a sua
origem, segundo demonstrei no meu Estudo, numa inferiori-
dade congênita do aparelilo sexual. 2
Freud responde: - O senhor sexualiza o recalque.
Jung irritado pela espera e por uma discussão que não
o interessa, propõe complacente : -Um estrato em certa medi-
da superficial do inconsciente é, sem dt.1vida, pessoaL Cha-
mamo-lo inconsciente pessoal. Mas este estrato descansa so-
bre outro mais profundo que não tem sua origem na experiên-
cia e na aquisição pessoal, mas que é inato: o chamado in-
consciente coletivo3 ••• Os cootet.1dos do inconsciente pessoal
são fundamentalmente os chamados complexos de carga afe-
tiva, que fazem parte da intimidade da vida anímica. Em con-
trapartida, os cootet.1dos do inconsciente coletivo serão deno-
minados arquétipos4 •• •
Apesar de sua afinidade com os ínstintos, ou talvez. preci-
samente por causa disso, o arquétipo representa o elemento
próprio do espírito, mas de wn espírito que não se identifica
com o entendimento humano, mas que, isto sim, representa
seu spiritus rector. 5
Novamente responde Freud: - O senhor espiritualiza o
Inconsciente. Não são as alturas o lugar que mais convém à
nossa verdade.
Animado pelas rodadas anteriores, Rank adere ao que
Freud está dizendo e lhe oferece aquela que supõe será, para
sempre, agradecida como a carta do triunfo: depois de haver
explorado o Inconsciente em todos os sentidos e em todas as
direções , seus conteddos psfquicos e os mecanismos compli-
cados que precedem a transformaç ão do Inconsciente em

2. Adlcr, A., El cardcrc ~urotico, Buenos Aires, Paldós, 1978, p. 56.


3. Jung, c., Arquetipos e inconscilmle co~ctivo, Buenos Aires, Paidós, 1974,
p.JO.
4. Op. cit., p. lO.
5, Op. cil., p.150.
114 A CLfNICA FREUDIANA

consciente, encontramo-nos em presença, tanto no homem


nonnal como nos sujeitos anormais, da fonte última do In-
consciente psíquico, e comprovamos que está situada ou des-
crita em tennos biológicos: é aquilo que chamamos de trawna
do nascimento, fenômeno puramente corporal, na aparência,
que nossas experiências, não obstante, autori_zam a e~c~
cotro uma fonte de efeitos psíquicos de uma lDlportâncla m-
calculável para a evolução da humanidade e no qual vemos o
último substrato biológico concebível da vida psíquica, o
próprio núcleo do Inconsciente6. .. De acordo com isto, não
considero inteiramente oportuno falar de "castração", quando
a única relação que existe entre a angústia e os órgãos geni-
tais é a representada pelo fato do nascimento, ou seja, da se-
paração entre o bebê e a mãe, através dos órgãos genitais
desta. 7
Breve silêncio cheio de expectativa ao qu~ se segue o
incrível: não só freud não lhe agradeoe como era esperado;
pior ainda, situa a oferta, a novidade, como algo que só tira
seu valor de uma variável já conhecida: Rank - diz freud
a111istosamente (gostava dele como de um filho) - o trauma do
nasci.mento é, no máximo, arquétipo biológico de outros
traumas que causam ang\istia, mais isto não decide sobre sua
eficácia psíquica. Se a tem é graças a um episódio posterior, à
ameaça de castração que, em última instância, não é senão
castração do pênis.
Rank, incômodo, faz menção de se retirar, volta, até que,
por fim, vai embora sem deixar de mostrar sua decepção.
Talvez um pouco de rancor?
Jones, calado até esse momento, circunspecto como de
costume, disse perante todos que não aceitava nem a proposta
nem a atitude de Rank.
Contente com a sua novamente proclamada fidelidade a
freud, lembrou-se das duas mulheres que o tinham cumpri-
mentado: Karen Homey e Melanie Klein, e decidiu dizer algo

6. Rank, O., El trawno del nac:imielllo, Buenos Aires, Paid6s, 1972, p. 14.
7. Vp. ciJ., p. 33.
A CLÍNICA f'REUDlA NA E A PSICAt-:ÁLISF. I>EI'OJS DE l'REL'D 115

por elas. No f1m das contas, seria uma prQva contra os difa-
madores mostrar que Freud aceitava que cada um jogasse à
sua maneira.
Assim, pois, arriscou sua cartada: - ... pois me parece ve~
rossfmil que a fase fática nas meninas normais s6 seja uma
forma atenuada da identificação com o pênis do pai que
existe nas mulheres homossexuais e, como tal, de uma natu-
reza essencialmente secundária e defensiva8 ... Vimos que pa-
ra proteger-se da aphanisis a menina levanta barreiras contra
sua teminilidade, especialmente a da identificação com o pê-
nis9 ... A "fase fálica" de Freud é, na menina, provavelmente
uma construção defensiva secundária, mais do que uma ver-
dadeira etapa do desenvolvimento. 10
Freud, a quem .láo haviam escapado as companhias femi-
ninas de seu discípulo e amigo, decidiu responder-lhes, tanto
a elas quanto a ele. Não havia descoberto faz tempo que a
voz se prestH pant sustentar as palavras do Outro?
- Obrigais-me a repetir o que já disse. Jones entendeu
que o plural onde o incluía não era uma formalidade. A reaJi-
dade anatõmica da vagina não decide sobre sua inscrição in-
consciente. A fase fática vale tanto no homem quanto na
mulher. A partir daí surgirão as diferenças.
Não à sexualização e seu complemento sociológico do
sentimento de comunidade ; não à espiritualização da libido;
não à biologia nativista; não à diferença sexual sustentada na
naturalidade anatõmica.
Em todas e cada uma de suas respostas, Freud reitera: pa-
ra o homem não há sexo sem Édipo, o objeto da pulsão é o
mais variável, a culminação é a castração que não é senão a
do pênis.
Giros em círculos monotemáticos próprios de certos delí-
. rios, ou delírio da ciência que quebra a "saudável" relação
com a realidade garantida pelo senso comum?

8. Jones, E., La sexuafidadJemenina, Buenos Aires, Caudex, 1966, p. 37.


9. Op. cit., p. 40.
10. Op. cit., p. 42.
116 A C LfNICA FR EUDI ANA

Todos seus opositores alegaram em algum rromento: co-


mo pode a castração do pênis ser o fundamento último, aro-
cha viva do Inconsciente'!
Quem já viu um pênis realmente cortado?
Entretanto, não há dúvidas de que o menino é alguém
desvalido e isto produz seu sentimento de inferioridade , base
do seu anseio por poder; que o ser humano não s6 tende a sa-
tisfazer seus impulsos, mas distingue-se do animal pelas suas
mais refinadas e altas espíritualidades; que todos nascemos en-
tre urina e fezes como disse um santo; que nada falta às mu-
lheres e que se os homens têm pênis só a elas cabe a possibi-
lidade de engravidar.
Disse que os ponteiros do relógio não serviam para marcar
o tempo da ficção. Parece passado para se fazer mais presente.
Quem não sente às vezes vontade de completar o magno
~ edli1cio freudiano com um suporte sociológico, biológico, es-
piritual, oferecido como humilde contribuição de um desinte-
ressado e nobre servidor?
Por acaso isto nega a necessidade que a psicanálise tem
de trabalhar e ser trabalhada por conceitos derivados de ou-
tros campos?
É que Freud nos ensinou antes de ir embora: existem
cartas e cartas. Algumas, mesmo que sejam coringas, nos fa-
zem perder a partida. Partida da verdade, que se quebra entre
letras e na sua relação com o saber.
Os analistas, pertencentes ao mundo dos falantes, também
sofrem seus efeitos: dizem mais do que sabem. Mas, uma lei-
nua de seu desejo, será suficiente para dar conta dos cami-
nhos de seu eno? Que Adler quisesse ser todo um homem,
que Jung pedisse lugar de profeta e Ferenczi o da mãe que
não teve, não basta para dar conta da particularidade de suas
contribuições, arti<;ulada em todos eles, à necessidade de pro·
por uma resposta de fundo ali onde a psicanálise freudiana
espreita a beira do abismo: a castração.
Devemos a Lacan a resposta necessária pela necessária
resposta de Freud que devemos.
Pois a castração é uma dívida. Lacan a suporta na cons-
trução da J6gica dos mitos freudianos.
A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 117

Lógica do Inconsciente, lei do disc~o. Não há Um sem


Outro. Aforismos lacanianos que colocam como prindpio:
"O Inconsciente está estruturado COOX> uma linguagem".
Campo da palavra posto em ato no dizer de Freud que
Lacan ex-põe em sua lógica do significante que jaz falta ao
texto que o implica.
"Se Freud então Lacan", vale para nós tanto quanto sua
recíproca.
A falta desta articulação é a causa que lemos na escolha
reiterada que a diferença absoluta do desejo precipitou, no
~smo ponto da teoria, aos melhores discípulos de Freud.
Se é verdade que ninguém viu wn pênis cortado, não é
menos verdade que o Inconsciente se sustenta na ordem da
ficção e que o pênis que cai não é senão o significante que o •
metaforiza.
Ficção não é fabulação: falamas de entidades necessárias
na e pela ordem do discurso.
Libra de carne que o sujeito oferece pelo seu advento
como ser sexuado, diz que a carne do corpo não é dita senão
pela medida que a nomeia, não sem apontar a insuficiência
que faz da operação, espaço do qual wn resto cai e pelo ,qual
ainda se fala.
Filosofia que ventila seu sistema pelo buraco que a psi-
canálise aproxima dele ali onde o objeto cai; parcialidade do
objeto onde a uni-versalidade tropeça. Arte que na reiteração
da queda de seu produto, alcança a sublimidade da obra que o
consagra - Picasso costwnava dizer que seu melhor quadro
ainda estava por fazer. Escrita que prossegue em seu desenho
necessário - pictografia, ideograma, alfabeto - porque tudo
não se diz.. Semiótica que renuncia ao paralelismo do signo e
da coisa em prol de wn discurso metáfora do sujeito.
Pulsação do lnconsçiente, aberturas e fechamentos que
prosseguem sua eficácia nas frases e nas letras da teoria.
Isto não pode ser lido inclusive em Freud, na sua relação
oscilante com a telepatia e o ocultismo?
Ou temos de nos contormar com a teoria da sugestão
proposta por Jones, onde Freud compensaria as inclinações
118 A CLíNICA FREUDIANA

nústicas de Jung e ocultistas de Ferenczi, graças a seus bons


conselhos extrafdos da carteira do empirismo anglo-saxão.
Fazemo!; outra proposta: Freud sabia que existe algo mais
do que o que por palavras se sabe: o que as palavras dizem. lo-
ter-dito, qualidade da verdade.
Técnicas do vidente para distrair a consciência ensinam
aquilo que Lacan propõe ao analista: " não compreenda, faça
palavras c ruzadas".
A mesma coisa disse Freud ao culto jovem que propôs seu
desafio no verso vigiliano: Exoriare (AJiquis)..•
Suspensão do que t entendido, espera subordinada ao an-
damento do discurso; tempo que permite a s urpresa incompre-
ensível, o estúpido esquecimento, a falta in-significante do
corpo do Outro.
Fui convidado para um painel; ofereço-lhes um favo* de
letras que zumbem, para quem ouvir:
De Sberaton** a Cher Aton: desde o francês te saúdo, di-
vino egípcio, ocasião para que Freud nos falasse do Pai pri-
mordial;
de Sheraton aSche h.e razade, nome de mulher que em mil e
uma noites faz ler o lugar onde o reino da morte torna-se o se-
xo da letra aberto ao gozo;
de Sheraton a Clze-ratón, gozação que o portenho propõe
às insígnias do presunçoso, lugar onde a letra quebra a ima-
gem.
Três grandes mitos, três. Para aquele que venha ao baile
das abelhas (ou das letras) ali o aguarda o mel da promessa.

Novembro de I 979

• Em espanholjavo se diz paN!!, ')Ue fw. Q contraponto com painel. pnlavra


usada anteS. (N. da T.)
u Lugar onde foram realizadas as JOrnadas.
1920: " Além do prindpio do prazer" 1 propõe-se, sob a
assinatura de Freud, como resposta ao esgotamento de uma
eficácia técnica que amortiza cada vez mais as fulgurações de
tratamentos bem-sucedidos, de modificações surpreendentes.
Razão principal de seu escrito, os reiterados fracassos te-
rapêuticos, levam o fundador da psicanálise a prolongar sua
teoria num re-trabalho de conceitos anteriores.
Daqui para frente se abrirá o que nós, psicanalistas, c~
nhecemos como segunda tópica, última etapa da elaboraçao
rretapsicológica de Freud.
Crise teórica que não deixa de assinalar sua correspon-
dência no questionamento da técnica.
Como disse Lacan em seu "Seminário sobre o Eu" - Li-
vro 112 - para muitos foi o alívio de uma restituição que os
devolvia à comunidade das instituições, das quais uma so-

• Texto lido nas jornadas organizada em novembro de 1979 pelo Cenlro de


Psicologia Profunda (Bli.Cil06 Aitea).
1. Freud, S., ..Más aUi del principio del placc:r'' , O,C•• BIICOOII Aires.
ÁmQmntu, 1979, Tomo xvm.
2. Laam, J., Le moi dans la IMorie tk Freud et dan.r la technlq* tk la p.ty•
chont:úy.Jtl, Paris, Senil, 1978.
120 A CLÍNICA FREUDIANA

bressafa do conjunto: o Eu voltava ao centro da questão; para


eles, ao centro da ess~ncia humana.
Se o Inconsciente não podia ser negado, sua submissão a
uma instância com ares de autonomia voltada a situar um
centro regulador, sintético, em contínua W11Jliação de conhe-
cimentos, annaz.enador de experiências e em progresso sem
fim.
A consciência como transparência imediata da leitura do
mundo em sua dupla vertente, objetiva e subjetiva, outorga-
va-lhe uma de suas propriedades essenciais.
Era isto que f-"reud lhes propunha? Tratava-se de uma no-
va psicologia atrelada a wna filosofia do otimismo?
. No trabalho mencionado, em contrapartida, lemos algo
diffcil de aceitar com um sorriso beatffico ou mantendo as aé-
reas virtudes do anjo: Freud nos diz que ~ roorte nos habita.
.. A pulsão de morte, num trançado com o sexo, decide, de cada
história, o destino.
Automatismo de repetição que excede os limites prazero-
sos da unidade proposta por qualquer Eu, produz em seu re-
tomo demoníaco, a quebra das ilusões de um poder regula-
dor.
No seu caminho para o Bem, lugar oode a felicidade se
encontra, o Eu não deixa de se embcenhar pelos caminhos do
erro.
Mas, ainda mais, wdo indica que algo prossegue para
al~m do bem.
Um psicanalista contava - Pontalis, no seminário que La-
can desenvolvia sobre a Ética da psicanálise;
"Estavam à beira de wna lagoa, a rã e o escorpião. Este
lhe diz.:
- Se você me levar à outra margem te darei uma recom-
pensa.
- Você acha que eu sou tonta?, rt.spondeu a rã. Ou acha
que não sei que você me espetará e me matará com seu vene-
no?
- Você é tonta mesmo. Você não percebe que se eu fszer
isto também eu saio perdendo: você morre e eu me afogo?
- Você tem ra.Uio. Sobe, eu te levo.
A CLfNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE r REUD 121

Ao chegar no meio do charco, o escorpião espeta seu fer-


rão. A rãz.inha, surpresa, exclama indignada:
- Você não me disse que não faria isto por conveniência
própria?
- Foi o que pensei. Mas como fazer para re-sistir à tenta-
ção?''
Como vocês podem apreciar, não por ser rã*, mas por
querer sê~l~, se perde.
As asttlcias da razão não garantem o resultado mais do
que a sorte, desde o lugar do Outro, conclui.
Mas não faltará quem, mesmo desde a comunidade que se
reconhece sob o nome de psicanalítica, nos responda com sua
técnica para ser mais rã:
''Trata-se da enganada tomar consciência do que lhe
aguarda."
Corra, lhe diremos, talvez chegue a tempo de escutar essa
verdade que agoniza. Se essa pressa servisse prua algo, ou vi-
ria:
Agradeço-lhe, Doutor , seu cuídado e seu eosino. Estava com ·
pleta.J:DCnte errada. Mas não esfreg ue a5 mãos como mostra de .satis-
fação: o erro que hoje reconheço é outro do que aquele que o senhor
propõe. O esrorpião me deu o melhor que tinha: p6s em risco seu ser
para que eu percebesse que oada er.t melhor do que espetar.

Por acaso não é isso que foi ensinado a Freud por suas
pacientes histéricas às quais bastava responder com indigna-
ção ao abraço de um homem para serem reconhecidas no
sintoma que as nomeava?
Gozo e criação, dois fins do tratamento que no discurso
p6s-freudi~o tomaram-se trabalho e amor.
Deslizamentos oode o que é proposto se dá ao preço do •
que é excluído: .a. morte como condição do gozo, a castração
como subjetivação da morte.
"Mas o senhor s6 nos fala do que é baixo, dos instintos"
- diz nosso interlocutor. " O ser humano não se reduz a isto,

* Na gtria argeotioa "rana" (rã) 6 usado para desígnAr alguém esperto, es-
pertalhão. (N. da R.)
122 A CLÍNICA FREUDIANA

ainda que isto seja parte de seu ser. Sua aspiração a fins mais
nobres, seu compromisso com projetos mais elevados, suas
obras mais sublimes, são prova de que s6 falta completar o
texto freudiano, propor à análise, uma síntese; à procura do
objeto da pulsão, um ideal que oriente seu destino; à repeti-
ção arbitrária. o saber de uma consciência que a guie; às pro-
fundezas que o amarram, a diáfana superffcie da comunhão
com a realidade e mais ainda com a realidade humana."
Certamente há algo com que concordamos no que o se-
nhor diz: não é o sujeito puro do prazer quem mostrará o pa-
radigma da felicidade. O século XVill abunda em sua pro-
posta e no texto mais bem acabado, o libertino do relato sa-
diano, culmina na própria prova de seu fracasso.
Mas Lacan nos lembra que tampouco Kant desde a lei
moral sustentada no bem universal, resolve a questão. No
exemplo da Crftica da rauw prdtica3 não duvida de que o
sujeito colocado frente à alternativa entre 'gozar sexualmente
de uma bela mulher ao fim do que oferecerá sua cabeça à
guilhotina, ou então, conservar sua vida em troca de absti-
nência, decidirá pelo último.
A breve fábula que contamos supõe seu questionamento.
Será Kant com Sade, a lei e sua transgressão que irão ar-
ticular urna e outra.
• Mas, que lei é esta senão a lei do discurso?
"Interpretação dos sonhos", "Psicopatologia da vida co-
tidiana", "O chiste e sua relação com o Inconsciente.,4 , três
textos cheios de jogos de palavras, equívocos, duplos sentidos
produzidos no e pelo movimento do discurso.
Superfície do texto leva-nos ao aforismo freudiano: a
anatomia é o destino - e n6s acrescentamos - da letra: ~to­
mia marcada pela letra, significante fático articulador primor-
dial da diferença dos sexos; letra condutora do trilho que de

3. Kant, E., Crl}ictz de la razdn prdctica, Buenos Aires, Losada, 1961.


4. Fletld, S., "loterpretacldn de los suciíos", O.C., Buenos Aires, Amorror-
tu, 1969, Tom01lV e V...Psioopatologia de la vida cotidiana", O.C., Madrid, Bí-
bliowca Nucva, 1943, Tomo I. "EJ chistc y su relación con lo inconsciente", O.C.,
Buenos Aires, Amorrortu, 1979, Tomo Vlll.
A CLÍNICA FREUDIANA .E A PSICANÁLJSE DEPOIS DE FREUD 123

um corpo da necessidade, produz um corpo erógeno, textura


de superfície e bordas.
O fascínio pela imagem especular, não caberia também
lê-lo nesse gosto pela linha vertical que considera progresso
os vaivéns da suposta profundidade às alturas sublimes'?
Se existem mudanças que servem para não mudar, outros
mudam sem que por isto garantam algum progresso.
A pessoa, no lugar do Inconsciente, é um exemplo disto. ,
Diz o dicionário, que em grego, persona* é máscara; em la-
tim remete a pessoa jurídica, entidade legal que não coincide
com a noção de indivíduo.
.Se pessoa supõe aquele que seria proprietário de suas
rnan:as, qualquer psicologia da pessoa é wna mudança com
respeito ao dizer freudiano.
Para a psicanálise - leia-se "A excisão da personalidade
psíquica"s de Freud - são as marcas significantes que deter-
minam o lugar do sujeito.
Ex-centricidade do sujeito, sua determinação pela palavra
não nega a liberação, mas esta não será a do livre arbítrio mas
a do levantamento de um efeito da articulação significante.
Nada do que é humano me é alheio, serve também ao psi-
canalista que, amparado em sua nobreza, descobre o social e
propõe sua incidência.
Terapias de grupo, institucionais, comunitárias, onde uma
teoria da comunicação sustenta a relação com o semelhante
que exclui essa tetceira instância onde o Outro que não se
identifica com nenhuma individualidade, sustenta ·como te-
souro dos significantes, o lugar que garante a verdade.
Se a breve história do começo disse algo a vocas, e con-
sagrou em alguns a dimensão que fez da· história wn chiste,
foi condição de sua eficácia que pertencesse a wna mesma

• Em espanbol a tradução~ dircca; pe.ssoa ae dizpersona, que ~ "máscara''


em grego. (N. da T .)
S. Freud, S., "La esciaicSo de la penonal..idad ps{quica", O.C., Buc1101Aires,
Amorrortu, 1979, Tomo xxn (~ edição o título~ "La det!oomposicioo de la
pcnoDalidad pa!quica").
124 A CLÍNICA FREUDIANA

l!ngua marcada até' as suas variedades c idadãs. Não há chiste


senão para os da paróquia. Também não há chiste a não ser
quando um terceiro o consagra. Nada mais distante de qual-
quer crença na relação bipessoal da qual o terapeuta distribui-
ria de forma adequada as mensagens e afetos.
Finalmente chegamos aos afetos. Suprema .essência da
condição humana para alguns, que transfonnam o tratamento
numa pedagogia sugestiva. Mas, não existe afeto- nos ani-
mais? O cachorro do vizinho não uiva de tristeza e pula de
alegria de acordo com a falta ou a presença de seu amo?
Em contrapartida, não se sabe de nenhum animal capaz
de contar uma piada. Não existe linguagem animal capaz de
produzir wna metáfora ou uma metonímia.
Se, em contrapartida, por afeto se nomeia a angústia, ou-
tra árdua capina nos é proposta para resgatar a verdade freu-
diana do rosário de propostas que a cobrem.
Em O sinistro6 Freud propõe a tese que lhe chega através
do relato de seus analisantes, de que ali onde aparece o sinis-
tro, o UnheimUch, é o lugar do Heimlich, do familiar. Onde
deveria se sustentar um vazio, algo retoma.
Por isso opomos ao aforismo que dizia " nada do que é
humano me é alheto", que somente pelo que permanece
alheio existe sujeito da palavra.
Alheamento do objeto que produz em seu retorno o sen-
timento da angústia e que abre em sua queda a dimensão do
gozo.
Crises e mudanças na teoria e na técnica psic~ticas:
sem dúvida, ho uve muitas e é de se esperar outras tantas. O
que . não é certo é o quanto ganhou e perdeu a verdade freu-
diana em cada uma delas.
Daí a magnitude da proposta que na sua aparente humil-
dade, renuncia a ser nomeada a não ser no retomo ao texto
freudiano: releitura que provoca a emergência do novo que já
estava antes como texto perdido. E que voltará a ser perdido.

6. Op.dt.
A CLfNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUO 125

P'ara que o sintoma, na sua insistência de palavra amor-


daçada, force a palavra a situar o saber no lugar da verdade.
Não é esta a ~ção do analista?
Novembro de 1979
RE:ENC()N'rQl) DA Pt~ICANÁLic~E EM
BUENO~ AIDEt~ : OS MITOt~. () f/\NTAt~MA
I A LÓGICA Dl") INCON~CII'N'IE*

INTRODUÇÃO

Reencontro da psicanálise em Buenos Aires: se fornos ao


encontro a que este enunciado convoca, é porque uma per-
gunta que ele contém tez de uma história, uma interrogação
que nos conceme; como se perdeu a psicanálise de que Bue--
nos Aires propõe o reencontro? .
História de contingências ou uma lógica liga a série que a
conduz, mesmo que desminta uma ilusão de progresso?
Que a dialética não seja hegeliana e que a evolução sofra
do orgulho que iguala o presente ao melhor, não impede ao re-
trocesso a análise de sua causa.
Antecipamos nossa tese; como já expusemos, os desvios
da psicanálise, assim como o que conduziu ao reencontro,
sustenta-se naqueles lugares em que no texto, não qualquer
um, mas precisamente no de Freud, indicou genialmente os
grandes marcos da teoria, mas não deu a lógica do que afu-
mava.

* Versão eterita do llabalho apreMntado no Primeiro Rccooon1ro da Plii-


can«lise realizado noTcalro Sha de 5 a 12 de outubro de 1981.
128 A CL/NICA FREUDIANA

O TEMPO DO MITO

Nenhum relato de anedotas encobrirá uma afirmação que


assumimos: a história implica não s6 o enunciado que a sus-
tenta, mas também a enunciação que a produz. Desde o tempo
posterior que se recomenda para s ua eficácia, lemos assim:
Se ..Moisés e o monotefsmo" 1 colocou um ponto fmal na
série dos grandes mitos f reudianos, é porque o mito de Totem e
Tabu2 que ele reescreve, tinha se perdido numa certa morali-
zação da tragédia edfpica.
O mal-estar na ctdturcr'l já o disse à sua maneira: não por
ser bom o sujeito vive melhor; a renúncia ao movimento que
se inicia na pulsão, deixa o sujeito mais inenne, à mercê do
supereu.
Inconsciente freudiano, três afirmações se oferecem à
perplexidade de seus discípulos:
no Inconsciente não existe não,
no Inconsciente não há representação da própria trorte,
no Inconsciente não há representação da vagina.
Sexo e morte retornaram no fim de sua obra - a de Freud
- situando na castração a subjetivação poss(vel e o limite do
impossível do que ~ dado ao ser falante determinado a partir
da articulação Inconsciente.
Afirmação maior , indicada até mesmo na polêmica com
seus discípulos mais queridos - lembrem-se da discussão com
Jones - foi também a mais questionada pelos que o seguiram.
É que Freud, como mestre que conbeoe o inevitável da
diferença entre o que se diz e o que sustenta esse dizer, indi-
cou o limite que chamou de rocha viva, para o avanço de wna
análise, talvez sem saber que indicava igualmente o lioúte de
sua obra para o tempo que era o seu.
Uma afirmação, aquela que foi i.n.iciada na trilogia dos
sonhos, o chiste e os tropeços do discurso cotidiano, esten-

1. Op. ai.
2. Op. dl.
3. Op. cil.
A CLfNlCA FREUDiANA EA PSICANÁLISE DEPOIS DE f'REUD 129

deu-se ao longo de sua obra, posta em ato nos mitos de seu


texto , pertUada no rigor de seus conceitos: se a verdade é dita
em condensação e deslocamento, uma estrutwa de unidades,
elementos, düerenciáveis, passfveis de serem opostos e, por
isto, combináveis e substituíveis, é condição de suas articula-
ções. É também causa de uma série de conseqüências:
Estas unidades desprende~se da estrutura articulada e
articulável da linguagem.
São insuficientes para abarcar a diferença dos sexos (à
maneira de uma atribuição qualitativamente diferenciada para
cada sexo). ·
Se inscrevem o ausente, só o fazem pela presença de sua
marca - que desfaz, mesmo que indique, a falta como tal.
Esta só é possível ali onde a série se detém (borda ou
ponto tlnal).
O limite de Freud foi a falta desta lógica que indicou sem
expor. Seus efeitos podem ser lidos em suas perguntas:
a. Será a biologia quem dirá, algum dia, a verdade sobre
a especulação teórica das pulsões?
b. É possível que alguém responda; o que quer uma mu-
lher?
c. Existe razáo necessária para que uma filha prossiga
para além do amor por seu pai?

PELOS CAMINHOS DO FANTASMA

A eficácia do procedimento inventado por Freud deixou


cada analista perante a manifestação dos mitos que indicou de
forma genial.
No dizer de cada paciente, independentemente das teorias
que habitam cada analista, o mito transformado em fantasma
subordinou a escuta aos efeitos de uma lógica, ainda que des-
conhecida, reconhecível na sua eficácia: os mitos transforma-
dos em fantasma individual do neurótico, fixaram a posição
do analista.
A partir daí marcaram as teorias que se seguiram, efeito
do desconhecimento das estruturas que teceram.
130 A CLÍNICA FREUDIANA

a. De um lado do fantasma: o objeto

Que, depois de Freud, continuemos desta maneira esta


leitura da hist6ria da psicanálise, é tamb6m uma demonstra-
ção da importância que atribufiilos a uma obra que tentou es-
tender a psicanálise freudiana sem renegar seus princípios
nem eludir seus obstáculos. Melanie Klein, audaciosa investi-
gadora da psicanálise de crianças, foi um destes analistas
pioneiros que, conseqüente com a atitude freudiana, aceitou a
aventura da investigação ali oode a verdade quei.ma.
Isto não exclui, mas requer, wna crítica que tente dar
conta das insuficiências internas da sua teoria.
Deixaremos, portanto, que Melanie Klein diga, nos diga
- como nos disse durante tantos anos - a sua maneira de oon-
ceber o Inconsciente e as conseqüências inerentes à ~sma,
teóricas e práticas.
Um de seus textos parece-nos oportuno como eixo da ex-
posição: "Efectos de las situaciones tempranas de ansiedad so-
bre el desarrollo sexual de la oifia"4 •
Diz Melanie Klein:

A divug~ncia entte o po010 de vista de freud e o apresc:nlado


aqui. enttelanto, 6 me~ Importante se penaan:nos que ambos ~
de acordo em dois pontos importantes: q~ a menina quer ter um pê·
nis e que odeia sua mie por nio ter lhe dado u.m. Mas, de acclfdo com
meu ponto de vista, o que a menina deseja prinçipalmente, não ~
possuir um pênis próprio 001110 atribulo de maaculini!àdc mas in·
oorporu o p6rus de seu pai como objeto de gratificaçio oral. Mais
aind., acbo que esce desejo nio E resultado de seo romplexo de cas·
tração, mas 6 a expreuão roais fu.odamental de suas ~nci.u edfpi-
c:as e, por conseguinte, ela çaj 10b o domCnio de seus impulsos edlpi-
oos nlo indiretamente atrav~ de 81188 tco<llnc:ías masculinas e sua
inveja do p6nis, mas sim d iretamente, como resulrado de seus com-
ponenteS inatintivos fanininos dominan~ea.(321)

Segundo este parágrafo a menina quer um pênis (nisto


coincide com Freud) mas com estas condições:
A CLÍNICA FREUDlANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 131

a. Como resultado de componentes instintivos femininos


dominantes.
b. Não o procura como atributo de masculinidade,
O que supõem estes dois enunciados? É muito ousado ler
~les a insinuação freudiana de que a biologia daria atgwna
vez c~nra ~ pulsões? Por que então teria de ser negada a
Melanie KJem a oportunidade de fundar sua teoria nwna na-
turalidade instintiva que faria a menina procurar o que uma
mulher precisa para seu sexo?
Sua rec(proca: por que apoiar a diferença dos sexos num
falicismo univecsaJ e primeiro que faria da menina um ser de-
ficiente à procura do pênis que só lhe faltaria por um abuso
da 6tica masculina?
Conseqüente com esta posição, esta pu!são vaginal não
f~ senão reforçar outra pulsão que a antecede, primária, di.ri-
gl<ia ao ~io da mãe: a pulsão oral. A frustração por sua per-
~· le~ana à procura de um equivalente simb6lico ao qual se-
na atnbuído seu poder: o pênis do pai.
Assim escreve Melanie Klein:

. Q~do a menina escolhe o p6nis de seu pai como objeto dese-


Jado, vários fatore3 concorrem para incensificar seu desejo. A de·
manda de seus impulsos orais de sucção exaltados pela frustra.Çio
q~ sofr~ pelos seios da mk c:ria nela um quadro imaginário do pê-
rus do pat oomo um órgão que, d iferentemente do seio, pode pro·
vê-la de uma tremenda e infin ita gntificação or.ll. (321)

Numa nota de rodapé diz, marcando sua diferença com


Hélêne Deutsch:
" .•. ~ minha opinião a equiparação precoce do pênis
com o seto surge da frustração que o seio lhe causou na sua
primeira infância... " (321)
~ continua: ..De acordo com minha experiência, as ten-
dências edípicas da menina começam com seus desejos orais
~lo pênis do pai. Estes desejos já estão acompanhados de
unpulsos genitais".(321)
Ou seja: que a procura do pênis vêm substituir o primeiro
objeto de gratificação perdido;
que não exclui a presença simultânea de impulsos
genitais.
132 A CLfNIC A FR EUDIANA

Não só a boca procura um pênis que substitua um seio,


mas a vag ina substitui a boca e procura um pênis.
Conseqüente com isto, escreve:

Nas suas primeiras fanwias de masturi>aç.ão, nas q uais trans-


fonn.a a vagina de sua mãe num instrumento de desttu ição, demons-
tra um conhecimento inconsciente sobre a vagina porq ue, embora
devido ao predomínio de suas tendências anais e orais a equipare
com a boca e eom o ânus, não obstante representa-a em seu incons-
ciente, como demonstram claramente muitos detalhes de sua fanta·
sia, eomo uma cavidade nos genitais destinada a receber o pênis do
pai. (333)

Para Melanie Klein, a vagina tem representação no In-


consciente da menina: a naturalidade da pulsão feminina ou-
torga representação à fonte e ao objeto da pulsão. O fato dos
tradutores kleinianos de ·Freud terem descartado a distinção
entre Trieb e Jnstinkt, não é, pois, casual. A pulsão freudiana,
entretanto, como é dito desde os "Três ensaios..." 5 , caracteri-
za-se pela variação do objeto ao qual a pulsão aponta. Se o
instinto, diferentemente da pulsão, é uma força que sabe o
que llie convém em termos de objeto (l...acan lembrou-nos em
Caracas da rã e do escorpião}, no ser humano, a pulsão rela-
xa, desfaz a rigidez que a ligaria a detemúnado objeto para
abrir o campo dos deslizamentos e das substituições.
Para Melanie Klein, a relação da fonte com o objeto está
naturahnente disposta no instinto. Para Freud, o ser falante se
defme pela fragilidade desse laço, condição mesma da criação
além dos limites rígidos que um esquema ·instintivo demarca-
ria paca a espécie.
O que em Melarúe Klein resolve-se naturalmente (a me-
rúna procura, deseja o pênis do pai), para Freud não é senão
ocasião de uma pergunta: como faz o ser humano para procu-
rar seu objeto sexual de modo que a espécie garanta sua re-
produção? O que faz com que alguém se diga homem, que al-
guém se diga mulher? Como se diz o ~xo?
Para uma teoria da gratificação das necessidades é facil-

5. Op. cil.
A C LÍN ICA FREUDIANA E A PS ICANÁL ISE DEPOIS DE FREUO 133

mente questionável uma masculinidade primeira almejada


pela menina. Para que procuraria um pênis, a não ser como
substituto do seio, este sim, gratificante (acalma a fome e é
prova de amor). Se também o procura pelo que ele vále será
porque a vagina tem naturalmente fome de pênis (pulsões ge-
rútais primárias).
Cbegamos ao centro da questão: quando Freud diz que
a libido é masculina, que "menino = falo", inaugura as equi-
valências simbólicas - é a ordem em que o escreve, não o te-
matiza - expõe os efeitos da 16gica que o pressionam: a série
das representações inconscientes não pode abarcar a diferen-
ça dos sexos a não ser por um atributo para os dois sexos: há
falo, não há falo.
Não disse por quê, s6 indicou: não há representação in-
consciente da vagina.
Se não é mais do que um fato, outros fatos podem des-
menti-lo.
Assim fizeram Jones e Melanie Klein6: a menininha
"brinca" desde muito cedo com sua vagina.
Se isto supõe uma razão, ela aparece por todos os lados,
mas por nenhum deles conclui.
O que ficou faltando foi o que Lacan produziu: o incons-
ciente está estruturado como wna linguagem.
Que seja como uma linguagem: é wna analogia como
qualquer outra ou nos remete à dependência que com ela
mantém efetivamente'? Para nossa leitura, trata-se do último
caso: se o inconsciente se produz nos tropeços do dizer, su-
põe wna l!ngua na qual se diga. Mas como uma linguagem
indica, na modalização, que não se iguala a esta. Por isso La-
can propôs alíngua (laútngue) e no lugar de lingüística falou
de lingüisteria.
E se está estruturado, retomou a tese de Freud que recla-
mou p am o inconsciente o estatuto de um objeto com suas
próprias leis - não a degradação ou o negativo da consciência
- estendendo seu pensamento ao dar a razão de seu estaluto

6. Op. cit.
134 A CLÍNICA FREUDIANA

no campo que a linguagem ofeRCe à função da palaVIa:


"porque há linguage~ há inconsciente''.
E, a partir disto, suas conseqüências, inexplicáveis para
os disdpulos de Freud: uma série constitui um conjunto pelo
elemento que fica fora. A impossibilidade do conjunto de to-
dos os conjuntos (a série dos números naturais só vale como
conjunto por AJ.eph )i primeiro número transímito que a
excede) situa um a menos na série que se quer toda.
Que a mulher não é toda inscreve o efeito da cadeia sig-
nificante quando tenta dizer o sexo de uma mulher. Que nos-
sa cultura é falocêntrica, é uma maneira de dizer que o pênis
sustenta a cultura, a metáfora do significante que falta à série.
Sua presença ou sua ausência servem para indicar a düe-
rença dos sexos, ali onde a vagina não pode ser representada
como vazio.
Porque se não é a gratificação instintiva quem rege o mo-
vimento do sujeito, o desejo alinhava seus pontos na procura
do que falta à série. E o corpo desfaz sua natureza biológica
para se fazer superfície e bordas (lembrem-se da frase freu-
diana: "a anatomia·(não disse a fasiologia) é o destino").
Como Di~tima ensinou a 'Sócrates7: ama-se pelo que falta:
ela pelo que não tem;
ele pelo que não é.
Outra questão que cria obstáculo, embora também tenha
sido Freud quem a indicou: a castração não se refere só ao
ter, mas também ao ser. Freud o apontou quando disse: criao-
. ça = falo da mãe. Perdeu-se quando o Édipo se reduziu à
historinha de sua wlgarização.
Portanto, quando com Freud e com Lacan, sustentamos
que no inconsciente não há representação da vagina, dizemos
que não há representação da vagina como lugar da falta que
lança o desejo; quando. dizemos que no inconsciente freudia-
no não há não, este pode aparecer como enunciado que chega
do inconsciente, como qualquer outro sigiüficante (ver exem-
plo em ..0 homem dos ratos..8 ) mas não vale como não quer

7. Op.cil.
8. Op.cil.
A CLÍNICA fREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 135

indique a falta de desejo; a verdade do obsessivo é guardada


pela histérica: a insatisfação do desejo sonhado não é mais do
que a inscrição do desejo de wn desejo insatisfeito; quando se
trata da própria morte, podemos sonhar uma imagem que nos
mostre mortos, mas esta não é igualável à representação in-
consciente da própria morte como falta absoluta do sonhador.
Qualquer marca, mesmo o caixão que o envolva, será signifi-
cante de wn desejo, mesmo que seja de morte, que o torna ex-
sistente à sua representação.
Por isso, da morte, a única representação possível é a
castração, queda de um significante.
E se este cai da série dos significantes, lugar do Outro,
será o Outro primordial onde se lerá a falta instituinte: outro
modo de dizer o requerimento freudiano do complexo de cas-
tração onde a ameaça complementa-se com a "visão" do ge-
nital da mãe ou um substituto.
Se a vagina é a verdade que a Górgona representa, não é
sua capacidade destrutiva que espanta (lembrem-se da fanta-
sia kleiniana da vagina materna destrutiva) mas o fato de que
ali se lê a falta no Outro, de onde o sujeito enquanto produto,
cai.
Para Melan.ie Klein o medo maior não é da castração mas
da destruição interna dos genitais como retaliação materna.
Desliza para a ansiedade e o medo ali onde Freud falou
de angústia; a falta- para Melanie Klein- só vale em relação .
ao objeto capaz de preenchê-la.
Objetos parciais, positivizados, portadores da gratificação
esperada, situam um sujeito marcado pelo que tem ou quer
ter. Na sua relação com o outro, produzem:
a. rivalidade: quem tem mais;
b. inveja: se o outro tem e eu não, que o outro não tenha;
c. ciúmes: se um semelhante é tido pelo outro, como seu
objeto, quero esse lugar: que o objeto-outro caia.
A pulsão de morte será equivalente a instinto de destrui-
ção, a agressão, a sadismo.
O perigo da cena primária será efeito da projeção na rela-
ção dos pais, de impulsos destrutivos.: ..que copulem sadica-.
mente (os pais) é o resultado de desejos destrutivos". (324)
136 A CLfNICA FREUDIANA

Por isso, como lemos na primeira citação, Melanie Klein


não aceita a tese freudiana que faz da castração na menina a
origem de seu Édipo, o comeÇo do desejo pelo pênis do pai.
Ao contrário, para ela será o desejo pelo pênis do pai, o
que produzirá o maior temor, "o medo mais profundo" à
destruição de seus órgãos genitais internos.
Diz Melanie Klein:
Os temore8 refera.ues a seus genitais são particularmente ín-
tensos, em parte porque seus próprios impulsos sádicos contra sua
mãe estão podaosamcnte dirigidos cootra os genitais e o prazer eró-
tico que ela oblém destes, e em parte porque seu temor de ser incapaz
de obter gratificação sexual serve, por sua vez, para aumentar o te·
mor de que seus genitais estejam danificados. (320)

Equiparação de introjeção e projeção, anuncia os possí-


veis canúnhos da sublimação: esta será a reparação do corpo
matemo. Outorgai à mãe a reparação de seu corpo (possibili-
dade de gozar com os objetos que lhe convém) é condição do
próprio gozo e da possibilidade de criar.
As equí valências simbólicas serão reduzidas a equivalên-
cias imaginárias sustentadas na semelhança. A interpretação
kleiniana será a interpretação da fantasia inconsciente como
representação mental dos instintos (Susan lsaacs) e a analogia
por semelhança, a operação primordial.
Continente e conted.do serão conceitos reiterados por seus
seguidores e baseados nas semelhanças corporais (objetos
parciais e fontes às quais satisfazem).
Objeto positivizado - vale pelo que é - desejo positiviza-
do e naturalizado - fonte natural instintiva de seu movimento
- consagra-se no fantasma materno.
•• A importância que a imago materna da menina tem para
ela como figura de 'amparo' e a força de seu apego à mãe são
muito grandes, já que, na sua imaginação, a mãe possui o seio
que nutre, o pênis do pai e os filhos, e desta maneira tem o
poder de gratificar todas suas necessidades". (331)
Ainda que o fim de wna análise kleirúana suponha a li-
mitação dos atributos do corpo matemo, este se define pela
realidade do que realmente tem: o seio lhe pertence, também
seus tilhos e o pênis do pai.
A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 137

A limitação na quantidade, não desfaz a qualidade da


posse.
Estaremos requisitando muiw de vocês se lhes pedirmos
que nos acompanhem nesta conclusão?
A teoria kleiniana é o efeito que o procedimento freudia-
no da análise produz no analista que, alcançado pelo fantas-
ma de seus pacientes, identifica-se com o lugar onde o objeto
a cobre-se das vestimentas que o fazem objeto parcial a ca-
minho da totalidade do corpo materno.

b. Do outro lado do fantasma: o sujeito

Se a identificação, em contmpartida, desliza para o outro


pólo do fantasma, o Eu, capaz de sintetizar e dominar as di-
versas instâncias psíquicas, virá cobrir a dimensão do sujeito.
Em A psicologia do Ego e o problema da adoptoção9,
Heinz Hartmann escreve que, uma vez que uma área sem con-
flito esteja situada no Ego, este Ego decide o caminho do
tratamento: o analista irá estimulá-lo a exercer sua aptidão no
domínio da realidade, "ou seja, a adaptação". (35)
A adaptação será "conceito central na psicanálise". (36)
"A adaptação está garantida tanto em seus apectos am-
plos como em seus detalhes sutis, por um lado, pelo equipa-
mento primário do homem e a maturação de seus aparelhos, e
por outro, por aquelas ações controladas pelo Ego que se
opõem aos transtornos e, de fonna ativa, melhoram as rela-
ções da pessoa com o ambiente". (38)
Será função do tratamento unir a disposição natural e a
maturação, com os controles exercidos pelo Ego. Como dei-
xar de ler aqui a demanda de todo neurótico no começo da
sua análise, quando acossado pelo risco do gozo e sua trans-
gressão, clama pela domesticaçáo do desejo, seu rebaixa-
mento ao nfvel da demanda?

9. Hltlifiãlm, Heinz, lA PsicoliJg(a dei Yo y el problmti:J u la adtJpttuiQ11,


Mtxico. Pu, 1962.
138 A CLfNICA FREUDIANA

"Seria também muito interessante estudar as diferentes


interações que acontecem na formação do caráter, nos cha-
mados 'interesses do Ego' etc. Por exemplo: a influência que
a habilidade pessoal tem na distribuição da libido...". ( 19)
Habilidade na distribuição da libido, não é este o sonho
do paraíso perdido no qual o sexo deixa a criatura na inocên-
cia, no tempo em que o chamado da angústia é o único que
lembra que a inocência, como nos disse Kierkegaard, não é
mais do que a ignorância do pecado? Não está de acordo, por
acaso, com a posição do analisante que não quer saber nada
sobre seu sexo?
Porque mesmo que a degradação do mito edipiano encu-
bra a verdade, o neurótico intui que Édipo sofreu, não pelo
incesto cometido, ou o parricídio bem sucedido, mas porque
quis saber.
Em contrapartida, esta psicanálise que se propõe a "che-
gar a ser uma psicologia geral do desenvolvimento" (15) nos
diz que "o conhecimento da realidade deve estar subordinado
à adap~o à .realidade". (95)
Conhecer para dominar a libido, é a própria confissão do
desconhecimento de wn saber: que todo saber é insuficiente
para abarcar o real do sexo. Identificação ao neurótico que re-
baixa o sintoma à dimensão do signo que seu Eu alimenta com
o sentido.
Todavia, esta insistência na função sintética do Eu. talvez
esteja nos indicando algo além das críticas que merece.

O EU, O ISSO E O SUJEITO

Que "fazer consciente o inconsciente" não é fórmula que


resolva o andamento de um tratamento, costuma confirmar-se
com a adição do requerimento transferencial. Todavia, a per-
gunta retoma: o que faz com que na transferência, a repetição
do mesmo obtenha uma rotação, uma mudança de discurso?
É o Eu que consegue o domínio da libido, como dizia
Hartmann, reduzindo a questão à oposição entre o demoníaco
da pulsão e o controle eg6ico'!
A CLÍNICA FREUDIANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 139

Hesitações que, entretanto, também podem ser encontradas


em Freud.
Dois anos depois de O Eu e o Isso, onde ao Isso de Grod-
deck se contrapõe e redefine o Inconsciente Egóico, quando se
interroga a respeito da responsabilidade do sonhador pelo con-
teddo moral de seus sonhos, Freud oscila entre a imputação e a
atenuação: "Se o conteWto do sonho claramente entendido não
é algo enviado por um espírito estranho, então, é wna parte de
llleU ser.• !'10

Posso inclusive averiguar que aquilo desmentido por mim Dão 86


está em mim, como também em certas ocasiões, produz efeitos desde
mim. é verdade que no sentido metapsicolcSgíco isto que foi w::alcado
Dlo pertence ao meu Eu- se devo ser considerado um homem irrepre·
em!vel moralmente - senão ao meu Isso sobre o qual se apcSia meu eu.
Mas este Eu se de8envolveu desde o Isso, fonna IIJll2 unidade biol6gi-
ca com ele, t s6 uma parte periférica dele, que sofreu IIJll2 modifi·
Cll!;io perticW.a.r...11 (135)

Onde está situado, qual é a tópica que convém a isto que


me pertence e, no entanto, não é identificável ao Eu?
Nossa proposta é a seguinte: novamente algo está indicado
embora falte sua articulação lógica: é o conceito de sujeito,
aquele que Lacan propõe como cindido entre o que diz cons-
cientemente, e o que sabe mais além de seu dizer. (ver graf.
pag. 141)
Por isso Wo Es war, solllch werden pôde ser traduzido a
partir de Lacan, ..Onde Isso estava, que o sujeito do Incons-
ciente advenha"; sujeito advertido de sua cisão, e que como na
carta de dissolução possa dizer, como Lacan, a vantagem de
saber que primeiro fala, depois pensa (Carta de Jacques Lacp.o
de 5 de janeiro de 1980),
Por ist~_propomos: o Eu, o Isso e o Sujeito.
Sujeito do discurso cindido entre o que diz e o que sabe,

10. Fr:eud, S., "La reaponsabilidad mOilll. por e! contenido de los sue005",
O .C., Buenos Aires, Amorrortu,1979, Tomo XIX, p. 13S,
l i. Freud, S., " La descomposicicSn de la personalidad psíquica" ,O.C., Bue-
oosAiRs, Amanottu,l979, TomoXXll.
140 A CLÍNICA FREUDIANA

sujeito desejante, que pelos trilhos da pulsão, avança para além


do prazer egóico, até o tempo do gozo.
Pulsão de 1110rte, tempo lógico da puls.ão sexual, marca sua
diferença para com a redução à dimensão agressiva, destrutiva.
Não será o controle egóico da pulsão que sustentará o fim
do tratamento, mas a passagem que, pelo ato analítico, permite
que pela castração se passe ao re-encontro do fim freudiano:
criação do gozo.

DE NOSSOS TEMPOS

Se a dialética hegeliana não situa nosso ideal, a conclusão


só é um convite pelo que vem a seguir. Nos alvores do que
continua do ensino de Lacan, a uma dissolução que saudamos
como ato, seguiu-se uma explosão a partir da qual parecem
perf1lar-se alguns discursos. Sua principal disjunção parece es-
tar situada num retorno à acentuação da clínica frente ao teóri-
co.
Disjunção que pode se duplicar nwna suposta oposição en-
tre o ato analítico identificado à inteq>retação, ou então homo-
logado na s ua eficácia maior à escansão, ao corte da sessão.
Simples retomo de uma velha aporia ou também signo dos
efeitos limites de um ensino? Se nos últimos anos se tratou ·do
nó borrorneano, a estrutura, como nó do Real, do Simbólico e
do Imaginário, não será por que ali está indicada uma relação a
ser desvendada?
Em Caracas, Lacan nos disse: "meu mérito é não dizer tu-
• do".
Lemos também ali, o seu convite, pela extensão de seu
discurso. Por LUDa causa que não pára de se perder, e que a
partir dali nos aguarda para o re-encontro da psicanálise.

Agosto de 1981
A CL(NICA FREUDJANA E A PSICANÁLISE DEPOIS DE FREUD 141

Tm

S(,#..)

Tm: Tempo do mito.

O mito é a indicação velada da eficácia da estrutura; saber


mítico, põe em ato - desconhecimento do sujeito- a lógica que
contém.
S (/.) No Inconsciente estruturado como uma linguagem, a
série desliza pelo significante que falta.
Tm, sem fechamento, tempo do mito que se fez teoria: m
(moi-Eu), cobrindo o $ (sujeito sob a bana);
i(a) Objeto especularizável, cobrindo i objeto causa do desejo,
objeto da pulsão.
A CLÍNICA fREUDIANA
EA LÓGICA DO INCON~CIENTI
INTEQPQETAQ, TQAN~MITIQ. TQADUZIR*

N"'ao por serem conhecidas insistem menos as sentenças


que situam o tradutor no inferno dos traidores, a transmissão
no limbo do que é vão, e no céu dos ingênuos o anjo errante da
interpretação.
Interpretar, traduzir, transmitir~ ttês questões situadas no
campo que a linguagem oferece à função da palavra. Primeira
condição que as rellne. A segunda correspoode ao sujeito da
operação - nomeável, esta, por um verbo - que nas três remete
a um texto.
Texto sujeitado, sofredor, em suposta passividade, inenne,
sem maior controle do produto do que o apego à verdade -
,medido em teiDlOs de exatidão - daquele que o conduz ao seu
novo destino.
E, todavia, é este llltimo quem recebe todas âs vozes que
clamam pela justa causa, boa e bela que como nos antigos, pe-
de·se que também seja verdadeira.
Salvação da verdade assentada em duas premissas: o texto
comunica e deve ser recebido com a maior exatidão.
Uma vez invertido o problema, reclamar·se-á ao agente a
justa passividade receptora que deixe aflorar a verdade.
Aporia que se mostra em seus efeitos: .sempre existe uma
traduçãó melhor, uma interpretação mais exata.
146 A CLfNJCA FREUDIANA

A réplica coloca o problema nwna encruzilhada não menos


insolóvel: generalizada a impossível exatidão (são argumenta·
das diferenças de sintaxe, léxicas, históricas, culturais)' , res-
tam duas opções: a remtncia à proposta ou bem a sua reali-
zação, porém precedida da qualificação de arbitrário, qualquer
que seja o resultado obtido. 2
Falhas como respostas, wna pergunta vai ao seu encontro:
o que seria destas d isjunções se ao invés de falar do texto, este
falasse de sua causa?
"Se o falar enquanto escuta da palavra se deixa dizer o Di-
to (Sage), então este 'deixar' não pode ser produzido a não ser
na medida - long(nqua e próxima - em que nosso próprio ser,
comprometido nele, entra fundo no Dito (in die Sage eingelas·
sen)'' . 3
O texto diz e como tal se propõe para ..ser., dito. O di.:c.er
do texto é um efeito das palavras que o propõem, assim como
estas são produto desse dizer. O texto se propõe e situa o lugar
de quem o alcança. Vontade do texto, quebra a ilusão do agen-
te onímodo que desde a exterioridade absoluta o selaria com
sua palavra.
Nova objeção: "é verdade que o textt>-guía será a volta à
transparência da letra que permitirá seu decalque traduzido,
seu duplo transmitido ou sua interpretação acertada?"
Pelo contrário, é da opacidade que irão surgir as faíscas
que serão sinal da pertinência à verdade.
O texto se dá com um sentido que oonvida para uma leitura
que capta: efeito de transparência.
Mas o texto enqucmto produto, é o real que se apresenta.
Encruzilhada onde o lugar se faz por um corpo de letras entre
as quais a verdade se diz atravessando o sentido que se mostra.

1. Mou.niJl., G ~, La problbnes thloriquu de la rraduction, Paris, Gal.l.imard,


1976. .
2. Sa.ochez. Soroodo, F.; Borges, J. L.; B.iaooo, J.; Glrri, A.; Pm.wnl, E., " El
oficio de traducir" ,In Problmuu t:k la troduccidn, l.lueoos Airca, Sur, 1976, p. 97.
3. Heidogger, M.,A.c~lllverslaparole, Paru, N.R.F.,1976, p. 242.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 147

Será esta a condição que desde os primórdios dos tempos,


pôs a letra na veneração do sacro, como lembra a sentença la-
caniana que aponta a religião como a realização simbólica do
imaginário-,.
Corpo do texto5 • feito de língua nas infinitas variações que
esta lhe autoriza, desdobra seu dizer que nunca termina do co-
bri-lo. A in-dicência, e ainda mais do texto que diz, aparece
entre as letras e força o sentido que tenta cobri-lo.
Já na comparação das diferenças, se a tradução, na ope-
ração que lhe corresponde, alcança uma verdade, será resposta
a wn trajeto que não foi qualquer um, mas aquele que seguiu,
que contornou, o real proposto.
Quando Lacan traduz a sentença freudiana Wo Es war,
solJ lch werderf> será a tradução de Lacan de Freud. De um, do
outro, de ambos. N~ é Freud, não é Lacan, é o texto de Freud
que se traduz em Lacan. Nem exatidão, nem arbitrariedade,
nem muito menos meio tenno. Tampouco identidade ou in-
venção que alternam no absoluto que as constitui e se conde-
nam ao impasse no qual se mostram: a primeira como ilusão da
exatidão em detrimento da verdade, a outra como miragem das
intenções, vontade de criação no repddio a seu antecedente.
A inovaçõc será a palavra que arrisque mais longe no lu-
gar onde as fronteiras iluminem as costas para instalar outras
que não serão menos pisoeeadas. Deslocado o problema, a crí-
tica da tradução se reverte numa crítica da leitura e numa teoria
do escrito. Não só o texto traduzido implica o sujeito da tra-
dução, mas também todo leitor posto como tradutor, definível
para além de suas intenções, como espaço de tradução.
Sua eficácia será função do conhecimento da obra e das
línguas em jogo. A impossibilidade de calcular a totalidade dos

4. Lacan, J., "Les non-dupes errent", Serrunaire 13, no v. 1973.


,c
S. l...acall, J., "R.adiophonio" , Sciliat, ni 'lJ3, p. 61: .. ~viens d'abord au
COfllS du symboliquc qu'íl fllut entmdre comme de nullc lllttaphore". " Volto de
infcio ao oorpo do simb<Slico que ~ prccúo entender como de ncnhama metUora",
Paria, Scuil, 1970. .
6. Lacan. J., "La Cbosc Freudlenne", icrlts, Paris Swil, 1%6, pp. 411 e
418.
148 A CLÍNICA FREUDIANA

efeitos da palavra, descarta a literalidade absoluta. Mas se o


efeito de sentido é segundo da relação significante (não tempo-
ral mas de articulação lógica), será trabalho de tradução pro-
d~ir o efeito de sentido essencial (aquilo que não pode não
estar), propondo as letras que o sustentem. Essência que se de.
fine, não por intuições mas pelo contexto que na medida em
que se despoja da adscrição referencial revela-se como contex-
to, ou seja, a obra em seu conjunto.

Também é obra o obrar do Inconsciente e a interpretação


se produzirá corno efeito do discurso e propondo seu efeito de
sentido: alcançar a função do sujeito.
Significante a roa.is, será ainda em demasia7 , já que o dis-
curso avança por esse que lhe falta. Enquanto tal, o discurso
pede sua interpretação que também o fecha para abri-lo a ou-
tro. Será, pois, a letra que dirá a letra que falta, também q~­
do e onde. O que não adscreve a estrutura da interpretação a
nenhwna literalidade idêntica. A interpretação é " uma interpre-
tação significativa. e que não deve faltar. ~to não impede que
não seja essa significação que é, para o advento do sujeito, es-
sencial. O que é essencial é que ele veja para além dessa signi-
ficação, a qual significante - não sentida, irredutível, traumáti-
ca - ele está como sujeito, sujeitado".6
Como no exemplo anterior, dirão: é a interpretação do psi- .

.
canalista do analisante. 9
A insistência do significante que se repete, é o lugar .que
aponta o que o discurso oculta. Se as formações do l nconscten-
te são matéria privilegiada, é porque nelas se manifesta esta
repetição em ato. Em "Signorelli"10, o SigMr abatido remete

7. LaA::an, J., "Logique dn Plwúaalne", Seminoire 1966167, I...eure8 de L'~­


cole Fm~dienne de Paris.
8. Lacan, J., Lu qualre concepts fo~ntaux dela psJChanalyse. Paria,
Seuil, 1973, p. 226.
9. Evoca-noa a frase de Absalon; Ab!alonnaqualfaulknerdiziObrc"oa~
pomai3 da palavra e do ouvido."
10. Freud, S., "Piicopatolog(a de la vida colidiana", O,C., Madrid, Biblio-
teca Nueva. 1948, p. 627.
A CLÍI':IC A FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 149}
ao Herr e representa o sujeito para o amo absoluto. Herr-Sig-
nor: lembra o significante como aquilo que representa o sujeito
para outro significante.
Condensação e deslocamento são figuras diferentes que ó
significante desenha no trajeto da repetição.

Mas a interpretação, assim como os palavrões, é irrepet!-


vel. E mais ainda porque se sustenta na voz, resto da antiga
união entre dança e canto11 , inversão em contraponto que no ·
ato analítico, à imobilidade dos corpos, responde com a polifo-
nia do discurso e suas modular .,.~s.
Se a interpretação é relatada, por exemplo, num caso clíni-
co, terá a estrutura do escrito; aquilo que se sustenta num dis-
curso. Sua lógica mínima se expõe no discurso conhecido onde
S (o saber) colocado no lugar da verdade, sustenta o agente
(l~gar do analista) como a, produzindo aquilo que a partir dos
mistérios da antigüidade ocultavam-se atrás do véu: a
emergência de 4> que se eocarna em S 1 , puro significante,
pas-<ie-sens.
..Discurso do analista", seu deslizamento a "discurso
analítico", serve para encobrir a função que o objeto esvaziado
de todo objeto e envolvido em sua aparência de ser, cumpre na
aparição impossfveL(no real) do sujeito cindido, representado
pela cadeia significante reduzida à sua mínima ex.pressão de S,
e S2 que tende , como objetivo, à causa que a produz.
Fundamento simbólico da uansfer~ncia, institui-se da pri-
mazia significante na medida em que as condições de seu fun-
cionamento requerem a queda, no começo, do que promove seu
deslizamento.
Ao analista em função de a, ser-lhe--á dito por meio de to-
do dizer: "porque te amo, procuro e m ti algo mais do que ti"12 ,
ao que falta acrescentar: "e se em ti o procuro é porque se sabe
que te foi dado".

11. Hegel, G. W. F •• Lecciona $Obre la jilosoj(a de la historio univusal, Ma-


drid, Revista de Oociden&e, 1974, p. 434. ,
12. Lacan, J., Lu quaJTe coiiCept.s fonda.rr~nltiUJC tiL la psyclllUIOiyst~ , Paris,
Seuil,l973, p. 327.
150 A CLfNICA FR~UDIANA

O alcance deste saber ~ conseguido pelo sujeito na sua


própria análise.13 Se o sonho é uma realização de desejos, c<r
mo diz Freud, e o desejo é a interpretação, segundo afinna L.a-
can, o mome.nto de interpretar será quando, no discurso, o In-
consciente for alcançado em seu estatuto do "não realizado''. 14
Isto que também é dito assim: S1 (S1 (S 1 (S1 - S2 ))).
Se este sigoif1eante ímpar se produz, será graças à função
de a que promove sua emergência (e mesmo no sentido de
momento crítico: aquele em que o discurso, por um efeito de
torção, produz o significante que, abolindo todos os sentidos,
situa o sujeito na sua liberdade).
Como conseqü8ncía, os interrogantes a respeito da inter·
pretação da transferência, podem ser lidos como a substituição,
na.estrunira imaginária de seu conteúdo, devido ao fato de que
• tCda interpretaçlic t transferenclal por suas condições de pro.
dução, já. que é a colocação em ato do discurso do analista.

Existe quem afume que é possível transmitir a teoria, mas


não a intetpretação que esta teoria contribuí para produzir.
Apar!ncia cativante que a própria língua promove com a ads-
crição fá.cil que faz da transmissão correia de passagem de algo
constitu!do que circula de uma origem a um destino.
Se aquilo que passa, parece manter-se na sua identidade,
paga um preço que os avatares da "conservação" do texto

13. Lacao, 1., ··Proposiúoo du 9 oaob~ 1967 surte psychanalysce de I' &o.
le", Sc!Jicet n!! 1, Paris, Scuil, 1968, p. 14. " Radiopbocic..: "c'c:st suppoeer lc sa·
voir de lastxw:turc qw daolle d.i.fc:ours de l'Malysu:, a plaoede v&ilE'. "i! supor o
saber da c:atrutura quem no dilc~ do aoalbta.liem lugar de verdade". Op. cit., p.
98.
14. Laca.o, J., "La double iucriptlon fieudienoe DC acrait doDC du rcsaort
d'aocunc barrià'e saii3SUlÍerule, IIllili de la practique m&nc qui en JlOIIC la qucstion,
l savoir la coupw-e dont l'inoonJcient a ae d&ister ltmoigne qu'il ne coiUiiBtait
qu'en clle, aoit que p1ua 1e discours est lnterp~lt, plus il ae coníume d'~tre inooiUI·
cient". "A dupla i.Nc:riçlo freudiana n5o seria, portanto, da competência de ne~
ar
nhuma blttein &aUSSuriM.a, ~Dio da própria prática q~W situa a quealio, isto 6, o
c.one do qual o inooOIClente ao deai.atir tc:atomunho que do conaisti.a maia do que
nele, ou seja, que quanto mais o discurso~ interpretado, mais se confirma ser in·
consciente." Radiophonie, Op. cit., pp. 70 c 7t.
A CLÍNICA fREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 151

freudiano testemunham nos efeitos de sua história, lembrand~


que a palavra essencial pode deslizar para a palavra bruta.15
A transmissão é um ato, implica o sujeito que não sai igual •
de sua experiência e, ainda mais, sem sabê-lo.16 Supõe, portao·
to, a ocorrência de sofrê-lo, tanto o emissor quanto o receptor.
(0 oráculo expõe-se duplamente: tanto na Púia que profere,
quanto no Mantis que decifra).
Se não existe outro sujeito a não ser aque.Ie que institui o
discurso, a mudança do sujeito, supõe a do discurso: "Direi
agora que deste discurso psicanalítico há sempre alguma
emergência em cada passagem de um discurso a outro" Y
Quando a verdade se produz, o destino se ~gita num ritmo
que quebra a rotina do imediato. Nova razão, outro discurso,
um novo amor.

Ensino e transmissão se relacionam no campo da inter-


secção do saber daquilo que se ignora, necessário e não sufi-
ciente, e o efeito de verdade que a letra alcança, mais além das
técnicas pedagógicas, por efeito do discurso que se produz
como Outro, diferente da identificação imaginária do seme-
lhante e marcado pela falta que o impulsiona para mais um sig-
nificante.
Haverá ensino sem transmissão. Mas também transmissão 4

para além do ensino. O ato analítico é seu principal exemplo1a,


e a interpretação, o instrumento de sua realização.
Interpretar, traduzir, transmitir. inflDitivos que eludem o
pronome para assinalar que o seu lugar não é de pessoa mas de
Outro, propõem a internação na sombra do real. As faíscas da
verdade serão balizas do impossível que é : o gozo como real.

Maio de 1978

lS. BlaDchot, M., El upaci.o lilerario, Blla)()l Ai.ra, Paid&, 1969, p. 32. Ci·
ta a distiD{;Io de M~ aolm o duplo estado da palaVIll.
16. t..c;an,I., "LogiqueduPhantume",Op.cit.,p.17.
17. t.acan.J.,E~,Paria,Souil, 1975,p,20.
18. Nuio, J. D., "Tnocmisaion et IDocmlcleot'', Omic.ar?, n'l4, Paria,
1978,p. 39. .
A VONTADE DA LtTQA*

E existe outra coisa que não podemos di.s-


sÍJ'I'UÚéJr: inadvertidamente cheganws ao porto
da fiJosofol de Schcpenhauer, para quem a
morte t o resultado genufno e, nessa medida, o
fim <ks vida; enquanto que a pulsão sexual é a
encarnação da vontade de viver.
Freud ("Jeoseits des Lu.stprinzips", G. W.
X Vlll, p. 53).1

Se nem sempre um porto é destino, mais incerto ainda é o


destino daquilo que dali em diante parte.
A citação mencionada pode sugerir uma identidade que fa-
cilitaria a substituição de um texto pelo outro.
A precaução conseqüente poderia se resolver na disjunção
absoluta.
Propomos, em contrapartida, a flexão que, de um texto ao
outro, nos abriu uma reflexão da qual este escrito é testemu-
nho.

.. Trabalbo apmJenlado na "Rcunión sobre la eoselíanza de Lacan y el Psi-


ooanalisi.s eu America Latina" em Caracas. janeiro de 1980.
1. Asci~ de Freudconupondc:m à edição da "Bibliote<:a Nueva".
154 A CLfNTCA FREUDIANA

Antecipamos a conclusão: se a instância da letra propõe à


razão um tempo que se separa em antes e depois de Freud, a
vida e a morte, grandes temas de wna filosofia mais do que mi-
lenária, sofrem pela mesma razáo e tomam-se lugares de wna
teoria que vale pela lógica que a sustenta, onde a causa irra-
cional - à maneira do número - existe ao acaso da série, que
na lei do discurso cumpre a obra de Bios na subjetivação da
morte.
Vamos, pois, ao lugar para o qual Freud nos convoca: Die
Weltals Wi/le und Vorste/lung .2
O título já é uma proposta: a vontade e a representação,
ambas implicadas na noção de mundo. É também o limite ex-
plícito da obra: nada oferece de outro mundo nem de sua ne-
gação. A eternidade desdobra-se positivamente antes e depois
do aparecimento e morte.do indivíduo. Quando o homem morre
passa a uma etenúdade, a mesma que precedeu sua vida. Disto
decorre a função moral da morte: ao transformar o homem do
que ele é: sua individualidade como o momento do erro, retor-
na-o ao indestrutível, sua essência como espécie.
Como Freud, não outorga à representação os direitos pre-
tendidos, na sua relação com a verdade, por uma tradição fi-
losófica à qual se opõe, inclusive aos seus desenvolvimentos
mais prestigiados. ·
"A morte é o verdadeiro gênio inspirador da filosofia". 3 A
metafísica consola o homem da certeza que sua razão lhe dá da
morte. A causa proposta está em outro lugar; a vontade como
coisa em si produz dois sentimentos: apego à vida, onde a vo-
luptuosidade aparece como um instinto ilusório, e medo da
morte. • Causa desconhecida, empresta ao indivíduo os chama-
rizes necessários para a conquista de seus fins.

AB condições expostas demonstram••. 1!!) que a vontade de viver


f a es&eDCia fnlima do homem; 22).que essa vontade é irrea>nhocfvel e

2. S<:hopenhauer, A., Die W~lt ais \Ville und Vonte/bmg (O mundo como
vontade e rcpreeentaçio), Zurique, Diogeoes, 1977.
3. Op. cit., Livro IV, capftulo 41, p. .542.
4, Op. cit., p. 584.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 155

cega ;m si mesma; 3~ que o conhecimento (die Eri:eNII!Iis) 6 primiti-


vamente eatranbo a essa vootade e que se junta a ela OOlllO adcDdo; 4~
que o coohecimcnto e&ti em luta contra a vonlade de viver c que nosso
jufw outorga-lhe &ua aprovação quando sai vltorioeo.5

Vontade e conheci.Jrento se opõem mas com uma ante-


cedência da primeira que é também a razão do valor, no senti-
do moral, que será outorgado quando o segundo triunfar.
..0 coohecimetúo não patrocina semelhante amor à vida
mas, pelo contrário, trabalha para combatê-lo, manifestando o
escasso valor da e.xist!ncia".6 Para o puro conhecimento, a
morte é apetecível. 7
Esta oposição à vontade que acorrenta o sujeito, é a possí-
vel liberação de mn determinismo que negando-se parcialmen-
te, rea.fuma, no entanto, o rigor de seu império. O conhecimen-
to que alcança a verdade das ilusões que o pretendem, renuncia
a toda ~piração, a toda gana de viver. O Nirvana é a liberdade
de se arrancar da vontade de viver. 8
Schopenhauer lembra

q ue foram proposw várias eúmologiaa da palavra Nirvana. Segundo


Colebro<lke, vem de Wa, vem de soprar oomo o vento, com o prefixo
negativo Nir. Obzy diz; Ntrwanam em slnscrito significa, ao pé da le-
tra, extinçio, como a de uma chama. Segundo o.Asiotic Joumol (vol.
24, p. 735), a verdadeira palavra Nerawona, composta de Nua, $CU1,
e Wana, vida, significa aniquilação. NoEa.stem Monachism, de Spen-
oe Hardy, se deriva Nirwana de Wana, deecjos culpáveis, com a ne-
gação Nir... é o contrário deS<VUQTa. que to nome dos reua.scimentos
perpélllos, dos desejos e daconcupi!dncia das iJus6es senstveis...9

Embora, por um lado, postula a debilidade de todo desejo,


a ilusória felicidade que anuncia seu objeto, propõe sua sus-
pensão e, até mesmo, sua conversão a um t1nico: aquele que
conduz à morte que se marca por wna especificidade: a morte

S. Op. cit., p. S46.


6. Op. cit., p. 546.
7. Op. cit,, p. 5&4.
8. Op. cit., Livro IV, capftulo 44, p. 6S6.
9. Op. c21., p. 596.
156 A CLfNJCA FREUDIANA

não alcança a espécie que se identifica com a Idéia. É a


tranqüilidade que se lê nos olhos do homem que caminha entre
desgraças diretamente em direção à sua morte. A alegria é uma
manifestação sentida da indestrutibilidade da espécie.1o
Suspensão de todo desejo, apetência da morte com suas
implicações de liberação de um acorrentamento cego, que só o
homem alcança alravés da mediação do conhecimento, que lhe
permite depurar o cálice da morte como saber antecipado, e o
conduz a uma eternidade que para além das transformações cf-
clicas, alU'llla o ser invariável.
Mesmo o corpo, sustentáculo da consciência, é "a vontade
considerada objetivamente como fenômeno no espaço".,,
Perguntamo-nos: é esta a proposta freudiana? Tudo parece
indicá-lo quando "o retorno ao inanimado" é proposto além do
princípio do prazer.
"A morte é o fim próprio da vida; é a hora em que se cW&
pre aquilo para o qual toda a vida foi preparação e prelúdio".12
O conhecido dualismo pulsional, parece também encontrar
as ressonâncias equivalentes: "Há na vida duas tendências
principais.... uma, a da vontade individual; outra, a mortifi-
cação da vontade (o aniquilamento da ilusão que nos mantém
acorrentados ao mundo)" .1:1
Como tantas vezes, o mesmo texto que produz a pergunta
- estamos nos referindo àquele que se sustenta na assinatwa de
Freud - também nos convida para o caminho de wna resposta.
A contigüidade que o articula lembra o apelo à biologia que
nos importa, em princípio, mais do que pelas conclusões que
sugere, pelas questões que introduz: O que é vida, o que é
morte?
C. H. Waddington, nas suas conferências Ballard Matheus
de 1966, 14 lembra que existem duas vertentes principais na

10. Op. cil., pp. 566, 567• 568.


11. Op. cit., p. 712.
12. Op. cil., p. 746.
13. Op. cit., p. 749.
. 14. Waddiugton , C. 11. c ou1ro~,//ucia 11na bíolo1:ía teórica, Madrid. Alianza
Umvcrsidad, 1976.
A CLÍNICA FREUDiANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 157

conceituação da vida; a) pela especificidade de sua estrutura:


"a matéria viva"; b) pela sua capacidade de reprodução: "Um
sistema é vivo se leva, codificada, informação hereditariamente
transmissível, se esta informação sofre às vezes alterações, e se
a informação alterada é logo transmitida"15,
Coincidência com a áltima fonnulação pulsional na qual
Freud incluiu as pulsões de conservação no conceito mais ~
plo de pulsão de vida, que compartilham, dai por diante, com
as pulsões sexuais. Conservação e reprodução, obra de Eros.
Não é por aqui que se introduzem as supostas aporias do ediff-
cio te6rico freudiano?
As pulsões de conservação opõem-se a todo momento ten-
sional que ponha em risco a conquista de seu íun: a permanên-
cia da estrutura. O mesmo vale para a libido narcisista e o Eu.
As pulsões sexuais, em contrapartida, mesmo que igual-
mente submetidas a um princípio maior de conservação - "to-
das as pulsões são conservadoras.. - só conquistam seu fim às
custas de um incremento tensional que contradiz o equilíbrio
sustentado pelas outras.
Dupla função de Eros que produz uma estrutura que se
opõe a um movimento, e gera um movimento que desloca uma
estrutwa.
Contradição que culmina na pulsão de morte que, enquanto
retomo ao inanimado, supõe a consagração do etemo, imodi-
ficável; e como princípio destruidor, separador, desfaz toda
unidade, quebra a rigidez de qualquer forma ou substância.
Dupla função de Thanatos que culmina seu percurso na de·
tenção sobressalente do inanimado e desprende em seu cami-
nho as partes que querem fazer Um do que vive.*
Mas situar uma contradição não equivale a resolvê-la.
Na sua discussão com Weismann sobre a presença da
pulsão de morte mesmo nos protozoãrios, diz Freud: "Então,

15. Op. cit,, p. 20.


.o Una em espanhol significa wnbém "a gente", eu mesmo, (como on em
frands) e oom islo o autor fa:z. um duplo sentido dizendo unc de kJ q11e llive. (N. da
T.)
158 A CUNICA FREUDIANA

se não quisennos abandonar a hipótese das pulsões de morte,


devemos associá-las desde o começo mesmo, com umas
pulsões de vida. Mas é preciso confessar: trabalhamos nesse
ponto coro uma equação de duas inc6gnitas"16.
Da biologia à equação, outro espaço se anuncia, onde a
lógica desenvolve suas leis.
Lacan falou de seu agrado em se reconhecer na produção
da articulação lógica subjacente nos mitos freudianos, não sem
lhe cobrar a dívida que assinala o limite do iropossCvel ali onde
ela sutura o assombro de seus paradoxos.
"O real não poderá se inscrever a não ser a partir de um
impasse da formalização" .11
Lembremos uma das mais conhecidas: O axioma da abs-
tração propunha que "dada uma propriedade, existe um con-
junto cujos elementos são precisamente aquelas entidades que
têm tal propriedade". Bertrand Russel o questionou com o con-
junto de todas as coisas que têm a propriedade de não serem
elementos de si mesmas. É o conhecido par!(ldox.o do catálogo
que todos os catálogos que não oontBm a si mesmos.

AEA-+A~A
A ~A-+AEA

Zermelo respondeu com seu ..Esquema axiomático de se-


paração" que permite os elementos de wn conjunto detennina-
do que satisfazem algwna propriedade e formam o conjunto
que consta precisamente desses elementos. 18
Entendemos a resposta de Zennelo, não como a extração
de um sub-conjunto, mas como produção de um conjunto se-
gundo wna propriedde, com a condição de um lugar onde essa
propriedade está em falta.
No seu seminário sobre "L'ldentification ..19 Lacan retoma

16. Op. cil., p. 62.


17. Lacan. J., EncoiV!, Paria, Seuil, 1975, p. 85.
18. Suppcs, P., Teorfa axiom41ica de conjrutlt:u, Colombia, Ed.. Nornla,
1968,pp. 4c5.
19. Aula do dia 17 de janeiro de 1962.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 159

um gráfico de S. Peirce, que consiste nwn cfrculo dividido em


quadrantes. Estabelecendo a oposição entre a proposição wú-
versal e a particular, a afirmativa e a negativa, lexis e fasis res-
pectivamente, a afirmação universal sustenta-se da negação
wúversal.

traÇo = sujeito

vertical• traço uoário

..Todo traço é vertical" se, e somente se, um quadrante si-


tua o lugar onde não há traço venical, nem traço nenhum.
Assim, o sujeito homologável ao zero falta de fundamen-
taÇão lógica de G. Frege à série dos números naturais e à pro-
dução do sucessor, aparece primeiramente, privado à cadeia
significante. O nlimero zero representa com o traço do idênti-
co, o lugar vazio do não idêntico a si mesmo.2° Seu lugar na
série, força todos os números a um-a-mais, lei do sucessor, fa·
zendo irromper sua insuficiência para nomear o conjunto de
todos os mlmeros que o antecedem, a não ser ao preço de sua
exclusão. Esse um-a-menos que decide a progressão da cadeia
é efeito da função opei:ante do sujeito. Com a condição de que
na relação circular que vai do sujeito à cadeia, a reciprocidade
não se cumpra na medida em que existe uma antecedência ló-
gica do signifteante ao sujeito.
" O significante produzindo-se no campo do Outro faz sur-
gir o sujeito de sua significação. Mas ele s6 funciona como
significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do
que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento
com que o chama a funcionar, a falar, como suje ito". 2 '

20. frege, G., Gnmd/Llgentkr AriJhmetik,llreslau, Max und H. Marcus. Mil-


ler, J. A., "La suture" ,Cahien pour(analy~.~~~ I e 2, p. 39.
2 1. L=, 1., ..Le signiflant se produisant au champ de I' Autre faitsurgir le
sujet de sa sigrufication. Mais. il ne fonctioMe conune signifllllll qu'à rédui.re le su·
jet en in.sta.nce à n'etre plus qu'un signifiant, à te petrifier du meme mouvementoil.
il p'appe llc à fonctioMer, à parler, commc sujct" ; LcS t{IUJtre conCI<Pt~fomlamen ·
tu lLt di• la psychnMlyse. Pari~. Scuil, 1973, p. i !j9.
160 A CLfNICA FREUDIANA

Petrificação do sujeito que através do inanimado da letra


vivifica na artiçWação do discurso.
Mas se um significante é o que representa o sujeito para
outro significante, a apelação a esta articulação mínima, lembra
a dupla função da letra que petrificaod().(), vivifica-o na cadeia
ou dando-lhe um sentido eclipsa-o na palavra do Outro,fading
do sujeito, relação letal ..de vida e morte entre o significante
unário, e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu
desaparecimento...22 .
A efic~ia da análise sustenta-se oa torção possível do dis-
curso que produz o puro significante, o sem sentido que é
também o passo do sentido (pas de stms) efeito metáfora do su-
jeito. Operação de separação que produz a queda de um. objeto
que se denomina a, e cuja realidade não é senão top_ológ~.
Se Eros tende à união, Thanatos separa. Mas eJ.S aqw uma
separação que é também tempo intersticial da p~ção d~ wn
sujeito, concomitante à queda do objeto que dal1 em d1ante
porá o Outro em falta, apto a reiniciar o movimento.
A puJsão, na medida em que implica, desde o começo do
ser humano vivo, isto é, falante, a captura da necessidade nas
malhas da linguage~ sustenta sua estrutura numa montagem
marcada pela letra que a produz.
$ <> D, fórmula da pulsão, é também a do tesouro dos sig-
nificantes e lembra que a demanda é, a princípio, demanda do
Outro, e produz:
1. Sua fonte numa geometria de bordas e superffcies;
2. sua energia na diferença entre a letra que se produziu per-
dida e a que se propõe ao seu encontro;
3. seu objeto nas e~ies que remetem à relação ao Outro que
na flexão do aparelho p síquico, tomam-se o mais fntimo do
sujeito;
4. seu fim na satisfação que nas vozes ativa, reflexiva e passi-
va escreve a gramática que a sustenta e que na queda do ob-
jeto contornado, alcança, para além do prazer, o espaço do
gozo.

22. Op. dt., p. 199.


A CLÍNICA FRE UDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 161

Este objeto (o objeto o) suporta o que, na pWsão, ~ detinído e


especificado pelo que a eolrllda em jogo do significante oa vida do
homem lhe pennite fazer surgir o 11Cntid9 do sexo. A saber, que panl o
homem, e porque ele conhece os signifJCanles, o sexo e suas ágnifi·
caç6es sio sempre susceptíveis de prcsentificar a presença da .IIIOrte.
A distinção entre pulslo de vida e puUâo de mom ~ verdadeira
na medida em q uc manifesta dois aspectDS da pulsâo. 23

Na reiteração da demanda, o objeto se produz como objeto


da pulsão; no fantasma sustenta a articulação do desejo não ar-
tic ulável; sua queda supõe o tempo escandido que intelpÕe en-
tre o desejo e o gozo a operação de sua cessão, presença de-
marcada, tempo de angdstia.
Se a própria morte não tem representação inconsciente, a
castração, queda do significante que marca a dupla ex-sistência
do sujeito e do objeto, falo metáfo~ do sujeito e metonúnia do
objeto, torna o gozo impossível. Subjetivação da morte que ~
ao sujeito, no mais-de--gozo, razão da estúpida existência. In-
trincame.nto de vida e morte que faz falar por uma causa perdi-
da: objeto a, causa do desejo.
O utros des--enlances, em contrapartida, concluem outros
destinos:
a. Narciso afogado em sua imagem, perde a palavra na vã
pennanêocia que se sustenta unicamente como vestimenta
do objeto que envolve. O olhar do Outro suporta uma·uni-
dade que confessa sua debilidade na afirmação reiterada -
"Eros faz ligações cada vez maiores.. - e limita na permanên-
cia da forma, uma vida que não é senão morte do sujeito.
b. Édipo em Colona, caminhante sem outro rumo que sua mor-
te, aquela a respeito da qual se sabe pelo que Outro diz e no
seu dizer produz aquilo que só o significante permite: a no-

23. Op. dt., p. 232. "Cet objel (Je a) 8Upport ee qui, dans la pulaíon. cst d6fi·
ni et &p6c:iM de ce que l'entt6eenjc:u do aigni.fiaDldlms la viede l"hommeloi pu-
met de faire surgir lca sem du scxc. A savoir que pour l'll.ommt, et parcc qu'il
coo.nait ta signiflllllts. 1e scxe ct a signi.fu:aôoaa aont loujoun SU8CCptiblea de
préscntifier la p~ de la mort."
.. La díslinction cnue pulsíon de víc et pulsion de mort C31 vm pollt autant
qu'elle mani feste deUJ- aspects de la pulsioo."
162 A CLÍNICA FREUDIANA

gação absoluta. Clamante, suplica pelo lugar onde ao nas-


cer, o Outro o quis morto.
Vontade de letra, a, lugar da causa, é escrita como lhe
convém: primeira pela lógica da série, não é, todavia, a que
inicia, a que nomeia a origem; o Zohar ensina que o começo se
escreve com be.
Não especularizável, nem inscritível, sustenta a imagem e
move o discurso.
Se Aleph condensa o mundo, como diz o poeta, é porque
não há mundo senão o do desejo e a é sua causa.

Janeitõ dê 1980
O ~ONHO t UMA E0CQITURA*

FICÇÃO PRIMEIRA

"Ano n, cidade Z: O célebre professor e investigador X,


concluiu, após três longos anos de reiteradas experiências, a
criação do aparelho T, que permite projetar numa tela, as ima-
gens do sonho no exato momento de sua apari9ão. Sem dúvida
esta descoberta pennitirá um avanço insuspeitado na investi-
gação dos sonhos, cujo enigma apaixona o homem desde as
épocas mais remotas. "
Deste anúncio possível (já foi produzido pela ficção), dois
extremos, mesmo da história, expressam a confiança na técnica
de nossos dias e o enigma que perpetua sua pergunta.
A objetividade do sonho, colocada na reprodução das ima-
gens, permitiria ao observador o registro simultâneo àquele que
o sonhador possui e em condições qualitativas ideais: identida-
de das imagens que o sonhador recebe e o pesquisador obser-
va; vigília do observador e registro-gravação do sonho, para
sua reiteração, decomposição, aceleração etc., segundo as ne-
cessidades da investigação.

• Versão eaerila de uma pale3tra do Sern.inhío "Hablar del Inconsciente"


ocorrida no ano de 1980 na Escuela Freudiana de Buenos Aires.
164 A CLÍNICA FREUDIANA

Tão somente uma objeção vai de encontro ao entusiasmo


jornalfstico: os sonhos são tão rebeldes a serem reduzidos a
imagens como os c6digos maias, ou os hier6glifos egípcios, a
uma representação pictórica de seus costumes.
Seu valor plástico só subsiste enquanto abarque a sintaxe
que compõe a série de suas unidades, determináveis pela dupla
referência à linguagem, que o sonhador compartilha com a co-
munidade falante na qual está inscrito, e à particularidade irre-
dutível de sua implicação subjetiva, a cifta que o nomeia.
Sem Traumdeutung, roseta que Freud nos legou, homolo-
gando o lugar que o situa ao do estudioso da letra egípcia, os
sonhos poderiam ser guanlados, assim como os murais faraôni-
cos ou os múltiplos papiros que nas penumbras aguardam, ain-
da hoje, a leitura que venha decifrá-los.
Que Freud nos indique, pela única vez, a placa que recor-
de a dimensão de sua obra, no lugar de um sonbo1, diz que es-
se lugar, a casa que o abrigou no tempo dedonnir, e o sonho
que o situou como sonhador, duplica na inscrição que o recor-
da, o lugar da letra na cena no sonho.
Sonho de hma, seu reverso: O que quer uma mulher?, rei-
tera que a verdade é de um corpo e que ali onde uma boca se
abre para anunciar o abismo onde o sujeito encontra o real que
o desperta, prossegue, tão somente, se o desejo que articula a
letra delimita e ali sustenta o sujeito.
Freud, pela sua paixão por saber - diz Lacan - oode outro
teria retomado à realidade da vigília, prossegue sem temor e
sem piedade até a verdade que lhe é oferecida: Tri.metil~
três que se repete no desenho de uma fórmula e diz que a men-
sagem que transmiste não é nem mais nem menos do que uma
letra. 2
Mensagem de Poe que, na Carta Roubada, escreve uma
carta (lettre) que não requer a leitura de sua mensagem para

I. "Aqui, no dia 24 de julho de 1895, se revelou ao Doutor Sigmlllld freud,


o eoígma dos sonhos". Carta a Fliess, do dia 12 de junho de 1900. O.C•• Madrid,
Biblioteca Nuev.a, 1968, Tomo 111.
2. Lacan,l.,Lemoi... ,P.aris,Seuíl, 1978,p.l90.
A cLfro;ICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 165

que sua eficácia alcance o destino que a aguardava desde o


tempo de sua escritura. 3
Porque se uma letra toma-se tal, o faz pelo discurso que a
precede logicamente. Tempo de retroação em que se cumpre
que a letra é o que o discurso, na medida em que supõe a im-
plicação do sujeito, toma emprestado da materialidade da lin-
guagem.
Duas conclusões: a) não há letra sem significante, ou me-
lhor ainda, a letra consagra-se como tal, pelo dito que põe em
ato seu valor de letra; b) por esse dito, o sujeito se escreve en-
tre as letras que o produzem.

CENÁRIO: IMAGEM E ESCRITURA

Perdida a imagem que o cenário, (Rücksicht auf Darstel-


lbarkeit), propõe na imediatez perceptiva e na lembrança cons-
ciente, seu valor hieroglífico, sua dimensão de texto, revela-se
no tempo do relato, quando o sonhador, ao dizer o sonho, des-
dobra-se entre saber e dizer. Saber que fracassa na própria me-
dida em que persiste no acordo da imagem com a coisa (refe-
rente ou significado), dizer que o excede ao produzir a repe-
tição significante pela qual a medida das utúdades que
compõem o sonho e as sintaxes que as encadeiam, darão a
chave do enigma.
Insuficiência explicitada por Freud, da bipartição manifes--
to-latente para indicar o Inconsciente que não equivale a ne-
nhum dos dois. Pois o texto manifesto diz o que não mostra.
Para que se entenda: mostra, oferece ao prazer da visão a ima-
gem de forma definível até o limite que a transborda (lem-
brem-se dos cometos daquela boca do sonho inaugural, a man-
cha branca que se oferece como inversão da ·mancha cega que
no olho diz ali onde se olha porque já não se vê). Para que seja

3. Lacan, J., Écrits, Paris, Scuil, 1966, p. 11.


166 A CLÍNICA FREUDI ANA

lido: condição para o analista. que algWDa vez escrevemos:


" esse cego que lê cem a orelha que não entende" ;4
A respeito da elaboração secundária (Selamdlire Bearbei-
tung) Lacan nos diz que ela põe o sonho num molde pré-fabri-
cado. Molde da coerência que, mesmo no disparate, mantém
geralmente a sintaxe normativa, e se transgride, persiste nas
unidades da língua ou na circunscrição da discordância a um
lugar do sonho. Ajuste à <Jimensão comunicativa onde a re-
lação ao outro - dimensão da conversa cotidiana - desliza pa-
ralelamente à verdade maior: que o sujeito fala, e porque fala,
recebe sua própria mensagem invertida desde o lugar do Outro.
A elaboração secundária coadjuva ao prazer da imagem fa-
zendo da letra, palavra que é compreendida, sentido sustentado
no signo que duplica na coerência discursiva a boa forma da
imagem.
O cenário, em contrapartida, produz a transformação .do
significante em letra (escritura) que culmina no tempo do rela-
to, quando a letra, attavés do dizer do sujeito, se põe em ato,
submetida às leis do significante: a metáfom e a metonímia.
Duas operações, leis do lnoonsciente, tanto em Freud
quanto em Lacan. Enumeração sustentada pela articulação ló-
gica que faz ou não escrito no relato do sonho, o tenno produ-·
tiver; metáfora e metonímia que se lêem respectivamente pel a
repetição significante que indÍca onde o tenno produtivo subs-
titui outro que continua operando, ou relaciona-se oom outro
que através dele se escreve.

4. "".que lc à gnifi6 n'a rien l falJ'c 11vcc Jes oreilles. mai& sealcment aveç la
lecCurc,la leçiW'e dece qu'onentend de aignifianL Leaignifit,ce n'est pucequ'oo
eoleod. Ce qu'oo entend , c'est le signifWlt. Le ligniti6, c' est J'effet du s1gnifWIL"
" •••que o lignificado não a:m Olda a ver com as orelhas. mas aomenll: com a
leitura, a leitura disto qoe se oove de &ignifiCIIJ1~ O significado nio 6 aquilo que t
ouvido. hto que t ouvido t o sigoificanle. O significado to efeito do significan-
te." Encore, P.ns, Seuil, 1975, p. 34.
5. "S' dé.signant dans le oontex.te 1e terme productif de l'effet signifiant (ou
sigpifiance), on voil que ce ~erme est latente dana la m.6tonymie , patent dans la m6·
laphorc." tcrits, p. 515. "S' designando no contexto o tenno produtivo do e feito
significante (ou signif'dnci.a), ve-se que esll: ll:nnO 61atcoll: na meton.fJnia e pata!-
11: na met4fora.''
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCO NSCIENT E 167

TÓPICA: SIGNO, SIG NIFICANTE E LETRA

Que se ofereça como relato consciente de uma imagem so-


nhada, ou como retrato " das coisas do mundo" a dimensão do
signo, da representação ( Vorstellung), p~onsciente, opõe-se,
na tópica freudiana, ao representante da representação (Vors·
U!llungsreprãsefllanZ) radicalmente inconsciente.
Como ler então, a afrrmação clássica de que o Pré-cons-
ciente se qualifica pela soma da Representação de palavra
(Wortvorstellung) e Representação de coisa (Sachvorstellung)?
A representação de palavra, diz Lacan, não é senão a pala- •
vra representada como escritw:a6 ; a representação de coisa, o
significante que inscreve através da sua marca a falta do objeto
perdido.
Propomos: o Inconsciente fala através da escritura que se '
tece no discurso do sujeito, verdade que o alcança no tempo
em que o signo7 se desfaz entre a letra e o significante.
Pela interpretação, a antecedência lógica do discurso ao
escrito, fará da imagem que se oferece, a letra que se lê na lei
do significante.

6. .....que l'ecriture en 110mme eat qudquc dlOIC qui se crouve, da f&it d'ette
cette repr&entation de la parole.••"
" ••Ja rcpr61enlation de moca., c'e.t 1'6:rlturc". "Alon. repr&entation de
mora, ça vcut din: Ie qudque cliJ.oae, ça veut din: que te mot e8t ~jlll avant que
voua cn faltlic:z la repr&cotation 6crill: avcc tout ce qu•elle comporte."
" •••que a eecritum t, afinal de contas, alguma coiaa que se enoontta pelo fato
de ser cata rcprcaentação da palavra. •• "
" ••.a repreeenlaçlo de palaVIlll 6 a e.aiQinl." "Entllo, rcpraeniBÇio de pala-
VIU. ino quer dizer alguma coisa, quer d.iz.cr que a palaVR jã cslá alf, anlel de q oe
voe:& !Içam a rcpreacnw.;io acrita dela com tudo isto que ela comporta." Uan.
J., "D'un d.iac:ows qui oe aerait pu du eembt.nt". Aula do dia 10 de março de
1971.
7. Se lembrannos a eq~ocia do signo e da rcpn:acntaçJo pd-cooacicll~
''Lc àgnifiallt a l etre eun:g~ cornme tel, il e8t au pôle oppoa6 de la aigDifica·
tioll. La aignification. elle, eaft en jeu dallS la Vomelbmg ." " O significante, ao
eer rcgiattado como til, CDCOOira·ae 1110 pcSI.o opoalO ao da signifu:açlo. A aignlfi-
c~ão, ela, entra em jogo na VorsteUuttg". Lacan, J., Les quatre concepts fonda -
menJaw: de la psychaMlyse, Paris, Seuil, 1973, p . 201 .
Tamb6JD.: "Lc prccolliCient. pour tout dite, e$t d'OI'C6 et ~jl dana le •1. et le
sGiut de l'i.Dcon.scient, !ui, s'il poe on prob~, c'cst pour autant qu'ils'eet 00118·
168 A CLfNICA FREUniANA

Cenário que se toma escritura, a tela do sonho não é senão


a página que a letra faz seu lugar.
Pois se a letra é da ordem do real, assim como o signifi·
cante o é do simbólico, a primazia da ordem significante sobre
o real e o imaginário (lembrem-se da dimensão atribuída a cada
wn no esquema R)8 insiste na marca de suas diferenças.
Se a ficção primeira nos pennite acumular registros, a ver-
dade das imagens oníricas armazenaruis, só seria alcan!Jada na
queda de sua adscrição como imagem no tempo do dizer - rela-
to do sonho- pelo ato interpretativo que as revelaria como le-
tra.
Armazená-las é metáfora do real que retoma sempre no
mesmo lugar. Ali desdobra-se o efeito significante, significân-
cia do sonho, efeito de sentido.

O SONHO E O REAL

Que a letra é do real, diz seu sem-sentido.


Mas a letra que se escreve não é homóloga àquela que cai,
embora na álgebra que Lacan nos propõe, todas sejam letras.s
Pois o significante que se produz, no tempo da interpretação é
o puro sem-sentido, traço unário, para o qual todos os signifi- .
cantes representam o sujeito.
Em contrapartida, a e a letra que escreve o lugar onde o
discmso, pela série significante, um buraco que no fantasma
produz o objeto imaginário que o substitui, marca o limite para
toda escritura.
Que a letra é da ordem do real não equivale à sua inversão.

tiblé à un tout autie niveau, à un niveau plus radical de l'emergeuce de l'acte d'ê·
DOnciation..,
"0 pfé.oonsciente, este, sim, se coloca wn problema ~ porque se coostituiu
num outro Dfvcl, num Dfvel mais radical da emerg&lcia do ato da emmciaçio." La-
can. l., "L'identification,.. Aula do dia 10 de janeiro de 1962.
8. lcrits, op. dt., p. 553.
9. Collentino, l, C., "El 'ombligo' dei sueiio: una 'letra' freudiana", Lacan y
elpsicoan46sis en Amlrica Latina, Caracas, 1980.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 169

O real, para a psicanálise, é o real do sexo, enquanto não há


relação sexual. 10
No sonho de Irma, a mucosa oral delimita (ou faz mar-
gem?) o excesso de carne real do corpo, mancha que marca o
que não deveria estar; proximidade da angástia, gozo do olhar;
o final do sonho desenha a fórmula trimetilamina onde o três se
repete e faz da letra, cifra do sujeito.
"A letr.l faz litoral entre o saber e o gozo. " 11
E não só no sonho, que se é a via régia, só o é como para-
digma que vale para além do sonho, nas diversas fonnações do
Inconsciente, na chamada associação livre.
Que o analista escute a letra, condensa que só há letra se
essa escritura que a oferece, se diz; também que só diz sua le-
tra pela repetição significante que insiste onde não se compre-
ende.
··Que o sonho seja um rébus", diz heud, ..naturalmente
não é o que me fará desistir por um só instante de que o In-
consciente está estruturado como uma linguagem. Só que é
uma linguagem no meio da qual apareceu seu escrito.'' 12
E seu limite, assim como sua causa, é o real que não cessa
de não se escrever.
Toda vida é sonho, diz o reiterado verso: trama significan-
te que desliza uma pergunta; despertar, é a morte? Morte subje-
tivada, encontro com o real, um buraco que se nomeia a. So-
nho, escritura e ponto final que, não obstante, é começo. So-
nho que insiste pelo "mesmo" que não se escreve, no discurso
que faz letra porque se diz. Limite do sonho, o pesadelo con-
clui pelo final onde o mesmo retoma. A vigília é outro sonho
que prossegue pelo despertar que se perde a(o) real.13

Buenos Aires, 1980.

10. " •••oommc réel., c'est-à-dire de l'impossible leque! s'annonce: il n'y a pas
de rapport sexuel." " ••.como real, ou seja do impossfvel, o qual se enuncia: não há
relação sexual." Scilicet, n~ 4, Paris, Seu i!, 1973, p. ll.
I i. Lacan, J., "D'uu dí.soours qui ne serait pas du semblant", Liturat.em:.
12. Idem, lO de março de 1971.
13.Miller, J. A., Omicar?, n~ 20121, Paris, 1980, p. 49.
A ÉTICA E O ATO ANAIITICO*

Qual é a razão, antecipo, necessária e suficiente que hoje


nos reúne? Pergunta duplamente pertinente - cabe em qual-
quer reunião - mas nesta é rubricada pelo que é, precisamen-
te, a questão destas Jornadas. Qual é? Da ética e do ato ana-
lítico? Proponho este trabalho: ..A ética e o ato analítico".
Sutilezas, coisas de palavras.
" Da ética e do ato analítico" duplica "do", que situa o
genitivo, seja este subjetivo ou objetivo, como j ustaposição
ou paralelismo: haveria jornadas da ética, haveria jornadas do
ato analítico. Se, em contrapartida, é "jornadas de - só um
'de' - a ética e o ato analítico", a conjunção "e" propõe que
se trata somente da ética que implica o ato analítico. Porque
certamente a ética excede aquilo que diz respeito ao ato ana-
lítico e do ato analítico podemos dizer outras questões que,
embora tenham alguma relação com a ética, podem tematizar
ódt.ros focos que lhe concemem. Portanto, digo que lhes pro-
ponho este trabalho: "A ética e o ato analítico", e penso que
poderíamos nos situar do modo mais conveniente: teríamos
que renunciar a wna velha questão, o que quer dizer um ve-

• Venio cecrila do trabalho apreeentado naa ••.Jonwlu de la Etica y delllllfO


ptjcoaa.lftiw" n'alizadas no 11:a1ro Sba 1101 dias 28, 29 e 30 de outubro de 1980,
172 A CLÍNICA FREUDIANA

lho discurso mas que de algum modo nos habita- me ocorreu


propor isto porque já o escutei antes, após o tra6aibo de Jor-
ge Goldberg1 - isto que é chamado a questão do enquadre.
Por que tanta preocupação com o en-quadre? Qual é o quadro
que queremos para situar isto que conceme ao ato analftico?
Proponho então que me acompanhem e ao invés de nos si-
tuarmos no en-quadre, situemo-nos à parte e façamos algumas
pontuações.
A ética como reflexão te6rica sobre o ato na medida em
que implica juízo, portanto, ato mordi. Leio um breve pará-
grafo do Seminário de Lacao A ~tica da psicanálise - é do
Seminário de 6 de julho de 1960 - diz Lacan: ..Pois a ética, no
fim das contas - é necessário sempre re-partir, partir nova-
mente de definições - consiste essencialmente, como ética,
num juízo sobre nossa ação, já que esta s6 tem alcance na
medida em que esta ação implicada nela implica ou comporta
juízo.
A presença de ju(zo dos dois lados deste objeto é essen-
cial à estrutura.
A ética propõe um juízo sobre o ato enquanto ato moral,
e o ato é defmido como moral precisamente porque implica
um juízo. O que quer dizer que implica juízo'? Que esse ato
supõe valor, criação de valor. Se a psicanálise pretende arti-
c ular algo da ética, propõe isto não como um decálogo de ar-
bitrariedades , mas como aquilo que se desprende da estrutura
do objeto que lhe concerne.
Quando Kovalovsky 2 fez a apresentação destas Jornadas
citou esta outra frase de Lacan do mesmo Seminário que aca-
bamos de mencionar: " ... os limites éticos da análise coinci-
dem com os limites de sua práxis considerada como prelúdio
de uma ação moral como tal. Esta ação sendo aquela através
da qual desembocamos no real." Portanto, não se trata de

1. Ver " Supl.etncnto <k las Notas", n~ 3, 1981, Bacucla F.mldiana de Buenos
Aires.
2. ldon .
A CLÍN ICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 173

pensar que a ética é o bom e a moral o mau. A ética implica a


reflexão teórica de um ato enquanto ato moral.
Tentaremos articular o que é a ética e o ato analítico. Este
"e" leva-nos a outro "e", a uma outra conjunção, à qual nos
dirigimos desde wn título, o título de um dos principais traba-
lhos dos Escritos de Jacques Lacan, que diz isto: "A
instância da letra no inconsciente freudiano ou a razão depois
de Freud." A que rãZão refere-se Lacan? Certamente à razão
cartes ia na, visto que se a psicanálise, sem ser ciência, preten-
de uma articulação com a cientificidade, ela s6 é poss(vel
porque sucede ao aparecimento da ciência tal como é pro-
pos ta a partir do discurso cartesiano. E esse discurso, como
situa a radicalidade que o coloca da fonna que o situa na
história de nosso pensamento?
Cogito sum, penso existo - eludo o ergo porque traria
outras questões que não ve m ao caso desenvolver hoje. Co-
gito stun supõe duas propos ições: P: penso; q: existo; 1\ :
este é o signo que a lógica proporcional nos propõe para a
conj unção.
p 1\ q penso e existo
Se proponho antecedê-lo pela negação:
-(p f\ q) não penso e e xisto

Pelas le is déa lógica posso continuar desta maneira:


-p v -q ou não penso ou não existo
ou não penso ou não sou

Porque certamente algo do ser está em jogo, ser do su-


jeito, ser do analista, ou não ser do sujeito, não ser do ana-
lista.
Tentarei fazer um contraponto, que pelo menos para mim
foi produtivo, entre a o.rdem das razões tal como Descartes
propõe e m suas Meditações filos6ficas3 e aquilo que pode ser

3. Deteattu, R., MediJ.aronesjlliMdjicas, Bueoos Ailu, Ag\lilar, 1964.


174 A CLÍNICA FREUDIANA

o movimento lógico próprio de um tratamento. Proponho o


seguinte quadro:
regra funda.me.r,tal
S.s.S. r -_ _ _ _ _ _......_ _...,_ _ _ Dimensão do sujeito
(Eu não penso)

K---------~~------~a
(Eu não sou) < > (recusado)
destituição subjetiva t eles-ser

Como começa Descartes sua meditação filosófica? Irei


rápido, o mais rápido possfvel enquanto menciono esta or-
dem, como disse, como a possibilidade de um contraponto
produtivo para o que certamente nos importa. Descartes co-
meça fonnulando que após ter estudado nos melhores colé-
gios, ter tido também a experiência da vida, como dizem al-
gWls, não encontra em lugar nenhum alguma verdade da qual
possa estar seguro. Decide então, na calma que a vida lhe
permite, repassar que possibilidade existe de alguma verdade
que se sustente. Examina aquela oferecida pelos sentidos,
descarta-a, o engano aparece por todos os lados; contrapõe
esta com a realidade do sonho, que quando a sonha acredita
nela como tal; levanta a possibilidade de um gênio maligno
que alterara sua certeza, inclusive nos valores da aritmética
ou da geometria; - vou rápido - estende essa dúvida a todas
as possibilidades e conclui que não há nenhwna verdade que
se sustente. Primeiro tempo, então, dúvida hiperbólica.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 175

Vejamos o primeiro tempo de uma análise: é inaugurado,


como sempre, por um dizer. O analista diz - foi mencionado
várias vezes nestas Jornadas - a regra fundamental. O que diz
esta regra fundamental? Diz, à sua maneira, a dúvida hlper-
bólica, diz - não estou me referindo à formul.ação específica,
digo que é isso o que implica - " tudo o que você disser tem,
a princípio, o mesmo valor" , o que equivale a "Tudo o que
você disser, a princípio, não tem nenhum valor, pelo menos
não o valor que você lhe atribui."
Segunda meditação cartesiana: Descartes diz: ' 'Pois bem,
nenhuma verdade é certa, minha dúvida varreu tudo menos
algo, isto é, que eu duvido. Se duvido, como ato de pensa-
mento -porque é wn duvidar pensado - rúnguém pode, por-
tanto, tirar-me o fato de que enquanto duvido sou sujeito da
dúvida, e pelo menos posso dizer que sou algo que pensa."
Vamos ao ato analítico. A regra fundamental supõe um
duplo efeito: por um lado, o sujeito, na medida em que aceita
iniciar wna análise, pelo fato de estar sob o dizer da regra
fundamental, suporta um efeito de destib.Jição, destituição do
sujeito enquanto "eu penso". A regra fundamental implica
··eu não penso", "isso fala em mim"; seu efeito concomitante
- não tem nada a ver com a crença na bondade ou não do
analista- é: "o Outro saberá a verdade daquilo que eu digo":
Sujeito suposto Saber.
Primeira diferença entre o movimento cartesiano e a ra-
zão depois de Freud pelo ef~ito da letra no inconsciente freu-
diano: onde Descartes afirma "eu penso" o analisante se situa
em destituição como "eu não penso" e o outro se apresenta
como Sujeito suposto Saber.
Terceiro tempo, terceira meditação cartesiana: "ante as
idéias que tenho" - diz Descartes - "há uma que é a que re-
mete a um ser infinitamente perfeito num infinito atual, não
potencial; se esta idéia me habita, a idéia de que sou finito
e imperfeito, deve ter sido colocada por outro." Prova sufi-
ciente e necessária, para Descartes, da existência do Outro,
da existência de Deus. Como já disse antest seu correlato na
análise é esse efeito estrutural que chamamos o Sujeito suposto
Saber.
176 A CLÍNl CA FREUDI ANA

Quarto tempo, quarta meditação cartesiana: Descartes le-


vanta a questão da verdade e da falsidade ou do erro. Verda-
de das coisas distintas e claras, claras na medida em que se
opõem às escuras, supõe o isolamento do objeto em relação a
outros objetos; distintas na medida em que supõem a concei-
rualização com os conceitos intrínsecos a esse objeto. Per-
gunta: qual será a possibilidade de wna distinção, wna vez
proposta a existência de Deus como esse ser que tem todos os
atributos positivos em grau errúnente, para que ele, um ser
imperfeito pela sua própria finitude, possa estabeleçer a dife-
rença entre verdade e falsidade ou erro? E esclare<:e: "enten-
dam que não falo do pecado", mesmo que depois o mencione,
visto que o pecado, para Descartes, é o erro na perseguição
do bem e do mal.
Quarto tempo - tempo lógico - numa análise: se se trata
da verdade, dizemos que a verdade é um lugar e que o discur-
so analítico - fazemos um deslizamento porque Lacan o cha-
ma discurso do analista já que o nome é dado por aquele que
está no lugar do agente enquanto causa - propõe, através do
ato interpretativo, pelo menos três efeitos que são diferenciá-
• veis: queda do objeto fantasmático; saber do inconsciente
p9sto no lugar da vet'dade e pt·odução da liníca coisa que uma
análise produz: um significante a mais.
. - ?
Como chega a se produzir este tempo mterpretabvo.
Duas articulações estão propostas: uma supõe a posição do
anaJista e o ato do analista; outra que se toma possível no ato
analítico: a conjunção de uma tarefa e um ato. Tarefa do ana-
lisante - por isto o analisante chama-se analisante, corno diz
Lacan, e não analisado - quem poderia pôr analisante no pre-
dicado? - que é seu dizer, que no tempo interpretativo produz
uma conjunção com o ato do analista. O tratamento, enquanto
analítico·, permite a conjunção de uma ~efa e um ato: tarefa
do analisantc e ato do analista, mas com esta diferença: que é
o ato do analista que torna possível, autoriza - dimensão da
ética- a tarefa analisantc.
Isto foi representado nas linhas diagonais (ver quadro)
onde escrevemos ato do analista, tarefa do analisante e o
ponto de conjunção.
A C LÍN ICA FREUDIANA E A LóGtCA DO INCONSCIENTE 177

Diz Descartes na quinta meditação:

Pois bem, se eu posso distinguir entte verdade e erro ê porque a


ceneu depende de Deus. Se Deus se defme oomo o ser perfeito, não
pode ser caracterizado senão por atribuiDS positivos;- que Deus en·
ganasse seria um atributo oegativo desse Outro que Descartes chama
Deus - portanto devo supor que aq uilo qw: a Jw: natural me faz rece·
ber como distinto e claro f verdade.

Vejamos como vão se separando o movimento da ordem


das razões cartesianas e o que constitui o rrovimento de um
tratamento. A certeza depende do Outro, o que acontece, ao
invés disto, numa análise? Quando a análise avança a ponto
de já terem passado uma quantidade de vezes suficiente para
o sujeito, o analisante, uma série de efeitos se produzem: um
deles fo i apontado por esta fleçha (ver quadro) onde diz eles-
ser, des~tre. Des-ser de quem?: do Sujeito suposto Saber. Da
destituição inaugural do sujeito, ao des-ser do Sujeito suposto
Saber.
Descartes conclui na sexta meditação colocando a possi-
bilidade da existência das coisas materiais. Certàmente conti-
nuará baseando a possibilidade de qualquer certeza nesse
Outro afirmado pelo movímento de suas razões: Deus, que
provocará a distinção, já clássica, entre alma, que remete à
substância divina, e corpo, que remete à substância do mun-
do. E em que conclui o movimento de um tratamento quando
se produz esse des-ser do Sujeito s uposto Saber? Foi repre-
sentado por estes dois pontos culminantes: $, a (ver quadro).
Produz-se o sujeito sob a barra, que passa de sua destituição
como "eu não penso" - perda do sujeito, falta do sujeito - ao
"eu não sou" -castração. Também podemos dizer: "Eu não
sou senão um sujeito cindido pelo objeto que rre causa como
tal, o objeto a".
Qual é o ato do analista? Que sua posição de início se
consagra pelo que ela antecipa como sua queda, flm da análi-
se, tempo em que o analista enquanto sustenta a função de a é
rejeitado, caído. Movimento lógico de um tratam~n~o: da fal~
do sujeito termina com a perda do objeto, e o SUJetto adveru-
do da cisão que o constitui. Alguém poderia objetar: "com o
178 A CLfNICA FREUDIANA

que o senhor formula já está proposto o matema de inicio de


wna análise, podemos também escrevê-lo como o fez Lacan
na proposição de 9 de outubro4 ; está proposto um materna do
fun da análise: sujeito cindido, advertido de sua cisão em re-
lação a esse a que o causa: para quê se coloca a questão do
passe? Do quê vamos falar se já está tudo dito e escrito?.,
Proponho um pequeno desvio por dois enunciados que a
hist6ria nos proporciona, história que, como Lacan nos ensi-
na, s6 vale quando é história da história, isto é, que remete ao
historiador e à sua enWtciação. Porque o discurso supõe um
' laço social e proponho um que tem a ver com a escola. Para
muitos, também pata mim, vir a este lugar, falo deste clube,
terá implicado um reencontro com algo de sua adolescência.
Talvez lhes seja então mais fácil dar mais wn p asso e se reen-
contrar com algo de sua infância. Vou lembrar algo da escola,
não da freudiana, mas da primária. Quem não sofreu este
enunciado que, não obstante, não é qualquer enunciado, ape-
sar de que muito dificihnente tivemos a oportunidade de vol-
tar a pensar nele. Devo reconhecer que s6 pensei nele a con-
vite de um amigo fúósofo. Refiro-me a um enunciado que
é instituinte no núto das origens - lembro-me da palestra de
Roberto Rubens5 - de nossa história: trata-se de um pai, o Pai
da Pátria, que leva pela mão a sua filha - qualquer um de n6s
poderia estar nesse lugar - e llie diz aquilo que vocês já sa-
bem: "Serás o que devas ser senão não serás nada". O que
disse San Martin?* Porque, por causa de algumas coisas que
acontecem na história, alguns preconceituosos acreditam que
não se deve escutar os militares, mas quando um militar fala ,
tem que ser escutado com muita atenção, algo do ato está em
j ogo. E San Martin dizia. O que é que San Martin diz quando
diz "Serás o que devas ser senão não ser.ls nada?" Primeira

4. Op. cil.
S. " Suplemento dG las Nollls".
"' San Martin é um líbenador argentino, muito mitificado por codos, e ao
qual se dá exuemo valor na escola, como um dos maiores homens da história ar-
gentina (fazendo as crianças decorarem e saberem tudo a respeito do qi!C disse) -
por isso o "sofrime-n to" do emmciado. (N. da T .)
A CLÍNICA FREUI>lANA E A LÓG ICA DO INCONSCIENTE 179

questão: alude à dimensão do ser, e diz que essa dimensão do


ser não é, que o sujeito não é, que s6 pode se pensar como
algo que será e que só será na dimensão moral, como dever
ser: "serás o que devas ser" . Dimensão kantiana do aforismo
sarunartíniano q ue conclui dizendo: "senão não serás nada".
N6s faremos nosso pr6prio uso desse aforismo. Perguntamos:
o que aconteceria se fosse nada? Porque certamente continua
atuando um preconceito que está em Descartes e também em
Kant: o positivo se define como aquilo que vale positiva-
mente, enquanto que a carência, aquilo que é da ordem do
nada é considerado imperfeito, o que é situado com valor ne-
gativo. Por isso digo: e se se tratasse de que o dever ser im-
plica a dimensão que corresponde a uma posição de nada?
Foi por isso que disse que se me acompanhassem e nos colo-
cássemos todos à parte - certamente é a banda de Moebius -
uma banda cujo centro n ão é mais do que um buraco.
Tomo outro aforismo, outro enunciado - não se escreve
s6 nos papéis, também se escreve nas paredes. Em alguma pa-
rede, em maio de 1968, numa cidade que tvdos sabemos qual,
escreviam-se muitas coisas. Entre outras, alguns escreveram
..Façamos o impossível''. Por que não? O t1nico problema é
que se o dissennos dificilmente o outro poderá nos seguir.
Ontem, jantando com vários amigos ap6s a jornada esgotante
que tivemos, surgiu esta piada: ''Goza. goza!", diz um ao
outro, e o outro responde: .. Não grita comigo."
Não se pode indicar a ninguém que passe para o lugar de
nada, passar, e aqui vem a questão, do lugar de analisante ao
de analista. O sujeito enquanto sujeito barrado foi advertido
de que a causa vinha do lugar de a, o lugar do analista que o
flm da análise lhe fez saber que como a cai, é o desfeito, o
rejeitado, o nada. Tínhamos dito: se isto fosse tudo, para que
o passe? Completamos agora a outra parte do poinçon: ins-
creve o momento em que este sujeito, sabendo o que alcançou
no lun da análise, não tem mellior idéia do que propor-se a
sustentar esse lugar (ver quadro).
Pois bem, disto não tem materna. Lacan dissolveu wna
escola, fundou outra que se chama Causa Freudiana e algu-
mas pessoas se surpreendem porque diz · que vai continuar
180 A CLfNICA FREUDIANA

com a questão do passe "Que pai severo é Lacan!" Que pai


severo ou será que persevera naquilo que o seu objeto llie
propõe? Deve-se pedir razão a um analista a respeito de como
passou desse lugar de sujeito cindido a sustentar a função de
a como esse nada que cai. Disto, volto a repetir, não há ma-
tema.
Eis aqui o real que toma necessário o passe como proce-
dimento. Fazer a teoria do didático é construir o matema
deste salto. Pois, se o sujeito retoma como desejo de ser psi-
canalista, não estou dizendo o desejo do analista, não é arti-
culável por um desejo de cwar que se lê- digo desejo,~
demos dizer vontade, anseio - quando se crê que se chega
a isto por algum afã reparatório. Não é esta a questão: pode-
remos ler af algo que podemos chamar a vontade de ser tera-
peuta, mas não analista. A mudança supõe articular o desejo
em sua relação com o nada, sustentar wn lugar destinado desde
o começo à sua rejeição, à sua queda, para que um sujeito ad-
~a. Desejo de morte, como dissemos há algumas semanas
na Escola, como o desejo mais puro; não há semblant, não há
fachada que o desvie. Em contrapartida, a perversão desse lu-
gar se dá quando o analista não renWlcia à pennanêncía como
a para o outro.
Como se advém a esse desejo? Pois bem, esta é a questão
do passe. Respondê-lo é o passe que diga de wn fazer anali-
sant.e que se produziu porque um ato do analista o tomou
possível, autorizou-o pela ética que o subt.ende.

Novembro de 1980
UMA DIFICULDADE

Na preparação deste texto, que espero concluir junto com


vocês, encontrei uma dificuldade: há muitos meses fui convi-
dado para uma mesa redonda sobre a transferência, que se rea-
. lizou na Escola. A dificuldade era produzir outra volta que
evidenciasse wn duplo tropeço: prossegui-la no ar, sem a base
suficiente, pelo menos para aqueles que não tinham acompa-
nhado aquela discussão, ou que fosse, para os que esúveram,
um convite à reiteração e ao tédio. Frente a esta dificuldade
ocorreu-me que sorteá-la era wna maneira de desdobrar aquilo
a respeito do que espero falar.

PLURAL

Propus: transferências, no plural. No núnimo duas: transfe-


rencia na sua dimensão simbólica, transferência enquanto re-

"' Vcr.são escrita do trabalho apre....::ntado nas Jornadas sobre '·La Translcrcn-
cia" realizadas no Teatro Sha do dia 25 a 28 de novembro de 1982.
182 A CLÍNICA FREUDIANA

sistência. De wna à outra, um movimento circular confinna a


revolução: como as órbitas dos corpos celestes girando no
mesmo lugar.
Transferência simbólica possível para o falante, efeito da
linguagem, que no exercício da palavra, torn.a-se discurso, es-
trutura , laço social.
"No princípio funda Deus ... " , é minha tradução do primei-
ro parágrafo da Bíblia. ..No princípio funda Deus"...; todo fa-
lante situa, aprisionado na série de seu dizer, a causa primeira
de seu movimento. Se ela é atribuída ao analista, Sujeito su-
posto Saber, chamou-o Lacan - Sujeito suposto Saber desse
dizer que se opaca - a transferência eficaz faz o seu jogo. Que
não é senão jogo da palavra. Transferências, no plurcu, assim
disse Freud na Traunuieutung para nomear as operações reite-
radas redutíveis ao mínimo de wna substituição ou wna combi-
nação, os restos diurnos no lugar das representações recalca-
das. Algo que rmo passa produz sua .substituição, transfere à
insignificância do núnio, a essência que o constitui. O que se
ttansfere? Onde Freud d isse: "desloca-se o afeto, transfere-se
intensidade" , nós coincidimos com este adendo: o afeto, efeito
de uma transferência de dizer. O que não é dito de wna manei-
ra porque a censura impede, é dito de outto modo e assim diz o
mesmo.
" Morro de vontade por poder lhes dizer o mesmo de outro
modo"; Lacan situava seu ensino na órbita conveniente. Disse
o mesmo: posso dizer também, o real, que sempre retoma ao
mesmo lugar, aH onde o simbólico o produz., pard além de seus
limites e do imaginário. Transferências que, de dizer em dizer,
avançam até os começos, regressão da demanda que aproxima
o sujeito, pela eficácia de seus giros, ao tempo de seus trope-
ços- nosso tango diz gira, gira* ... Quando o sujeito se apro-
• xima do núcleo pat6geno, lentifica seu movimento, bloqueia
suas associações, restringe a retórica até o ponto de seu silêncio.

• O auror faz menção ao tango: " yira' ' - A pala vra. yira, com y e niio girn ,
com 8· IJallsparentn n tlpica entonação ponenha e, também , significa, além do sen·
tido normal do girar, alguém que anda de porta em porta, uma pessoa perdida, que
" gira" de um lado p;u-a outro, cenc.ando encontrar algo. encontrar-~ . (N. lia T .)
A CLÍNICA FREI.: DIANA E A LÓG ICA DO INCONSCIENTE 183

ESCRITOS

Vou e screver, é do escrito, o oito interior, que inscreve a


borda da banda de Moebius, uma superfície que sofre wna tor-
ção únpar, e produz u~ efeito: p-clSsa a ser superficie de uma
cara só, uma só borda.

d~ desejo
n D : demanda
J: identificação
T: transferência

Qualquer ponto (x) é indiferente para matear o começo. É


um duplo cacho, se eu o esticar, cada um de seus pontos coin-
cide com um ponto da outrd volta; um giro, outro giro que leva
ao ponto inicial; o problema é como fazê-lo voltar ao ponto de
partida.
Transferência simbólica na medida em que filz. o jogo da
palavra, transferência que se institui na medida em que o anali-
sante progride em seu dizer. Dissemos na medida em que esse
dizer progride, wn ponto anuncia seu tropeço. Ali, o mesmo
que estava desde o começo mas na imperfeição do pretérito,
esse que se realiza pelo que vem em seguida, tempo primeiro
da pulsão, aproxima, na montagem que a constitui, o linúte de
um saber.
Uma das questões que foi formulada, me lembro, nessa
mesa redonda: como podíamos articular o oito interior, com as
pequenas letrinhas com as quais Lacan sustenta seus quadrípo-
des, aqueles que mencionou nos diferentes discursos? Vamos
supor que este ponto (x), seja por nós situado como ponto
inaugural, ponto de partida do desenrolar do dizer analisante.
184 A CLÍNICA l'REUDJANA

Isto que se inscreve nesta curva, D, não é senão o progresso de


seu dizer como regressão de sua demanda, é também o desen-
rolar do conjunto dos significantes, o saber inconsciente que
Lacan escreve S 2• Dizer que progride até seu limite, aii onde se
produz o tempo do fechamento, ponto de silêncio no qual situa
o T da transferência, com dois movimentos possfveis: para o
andamento ou a detenção do tratamento. -

RESISTÊNCIA, RESISTÊNCIAS

No progresso da demanda, o sujeito se aproxima ao que


estava desde antes na montagem da pulsão.
Tempo que tem seu nome, tempo de resistência, especifi-
ca-se pelo seu efeito. Freud assim a definiu desde o começo -
"Psicoterapia da Histeria" 1 - aquilo que detém o andamento
do tratamento. Sua oposição às resistências, Freud menciona
cinco em "Inibição, sintoma e angústia" 2 , nos convida para
uma leitura, que na alternativa excludente prefere o efeito de
sentido de wna e outras: há uma resistência e também há reM
sistências. Variedade das opções que se oferecem, enquanto
pluralidade, para apresentar como impotência aquilo que não
é senão impossível. Núcleo patógeno, é o mal que nos aflige,
• dfvida nunca paga pelo dom da palavra. Quando o verbo é
colocado no começo, convida o homem ao exercício da no-
meação - Deus e Adão deram nome às coisas do céu e da ter-
ra e assim fizeram um mundo. Seu preço, que o relato sagra-
do distribui em dois tempos, é contado em outro ato, aquele
no qual a coisa retoma, ali onde era proibida. A maçã, subs-
tituto nútico do objeto, objeto oral, objeto a, lembra pela sua
presença, sua exclusão na cadeia e torna visível a falta que
até então passeava na inocência. Seqüência do mito, diz na

I. Freud, S., ..Psioot.e:rapia de la Histeria", O.C., Madrid, Biblioteca Nueva,


1948, Tomo I.
2. Freud, S., ••lnhibici6D, &!ntoma y angóseia", O.C., Buenos Aires. Amor-
rortu, 1979, To1n0XX.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO lNCONSCIENTE l85

sua trama, na insignificante transferência de sentido: "tudo


por uma maçã", aquilo que -não pode ser dito, porque vem
inscrever o limite da palavra. Ponto T do oito interior onde a
palavra se toma silêncio, o objeto não inscritfvel nem imagina-
rizável, modo do real impossível de escrever.
Mas, no que implica o sujeito, o ponto de desviá-lo de
suas voltas, convidá-lo ao retrocesso, encadeá-lo à rede de
suas ilusões?
Estou dizendo a resistência de outro modo, que o criador
da psicanálise situava no eu. Em contrapartida, essência da
resistência, o núcleo do recalcamento, é o que não pode ser
de outro modo, porque seu modo não é do ser, por isso pre-
sentifica ao sujeito sua condição, aquela que o horroriza: sua
·falta de ser.

KERN UNSERES WESSEN3

Aqueles que alguma vez me acompanharam no ensino da


psicanálise irão escutar algo que lhes resultará conhecido.
Diz o poeta:

Estou morto
Estou morto porque não tenho desejo
Não tenho desejo porque acredito possuir
Acredito possuir porque não ensaio dar
Ensaiando dar a gente vê que não tem nada
Vendo que não se tem nada ensaia-se se dar
Ensaiando se dar a gente vê que é nada
Vendo que se é nada desejar-se advir
Desejando advir vive-se.

É de Renée Daumal, que deu em sua vida testemunho do


que escreveu.•

3. O mlk:lco do llOSIIO ser.


4. Da:wnal, R., "Je suia mort", Le lívrt ~ or la[Jf>~Mfrtlllfaise conumporai.·
ne, Paris, Muabou~ 1969.
186 A CLÍNICA l'REUDfANA

Metafísica?: Kem Unseres Wessen disse Freud, o núcleo


do nosso ser- disse isto na Traumdeutung: a partir dele espe-
cifica-se a função que nos reclama.
O poema diz, entre o início e o fim. os álibis possíveis.
Assim o aoalisante oferece-se ao analista em seu ser, tempo
de identificação ao objeto, persist!ncia, fixação do fantasma.
A abstinência inevitável do analista, tudo o que desse não se-
ria mais do que a prova da sua ignorância em relação ao fra-
casso de seu deslize, propicia as posições convenientes para a
conclusão do giro: por wna rotação de um quarto (passagem
do discurso histérico ao do analista), será este - o analista -
quem se tomará por sua presença sustentáculo de uma função
impossível, que corno no relato divino, s6 se toma saber do
limite como limite do saber em ato.

DISCURSOS

Vou escrever, como propõe l..acan, em seus quadrfpode~ .


duas barras e quatro lugares:s

S, : Significante unário
agente outro S 2 : Significante binário - Saber
verdade Produção '$ :Sujeito barrado
a :objeto - mais-de-gozo

O lugar do agente, no começo do discurso como estrutura;


o lugar da verdade, sob a barra; o outro, a quem esse discurso
se dirige; e o lugar da produção. Para o discurso da histérica,

$ $1

a~S2
impotência

S. Lac.an,J., "RadiopboDie", Scilicet, nP 213, Pari.oi, Seu1J, 1970.


A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 187

no lugar do agente está o sujeito sob a barra, dimensão do sin-


toma, que se dirige ao outro situando-o num lugar muito preci-
so, que Lacan chama de significante amo e que na sua tradução
freudiana, para este tempo em que estamos expondo, posso
nomear também, lugar do ideal. Sob a barra o significante 2,
significante do saber, um saber que é impotente - na flecha
Lacan escreve: impotência, que diferencia do impossível - para
dar conta de algo que se inscreve como a, aquilo que Lacan
chama o mais de gozo. Freud, diz, aparentemente como um
preconceito que lhe pertence, "o diagnóstico da histérica é
muito simples: uma mulher que se espanta ao abraçar um ho-
mem porque ali percebe o volume''. Lacan critica isso como
abuso, parece um preconceito. É possível, mas como sempre e
como Lacan nos ensinou, quando Freud diz algo, vale a pena
parar para pensá-lo. Direi que sim, que disso se trata: o que
significa esse volume para a histérica? Aquilo que ela não su-
porta: ser o objeto a, causa do desejo do outro. Duas opções
são possíveis aqui, rotação num sentido, ou no sentido oposto.

impossível

$ s,)~ -;:___
a------$
S
1

( a~ S2 ""' impossível
impotência " " ' ~------- s2
$ a

No dos ponteiros do relógio, por um quarto de giro, no lugar


do agente se colocará o analista, como semblant de a. No mo-
vimento oposto outro efeito é produzido, será este significante
- s, - que estará em seu lugar. Como inscrevê-lo no movimen-
to do oito interior: são dois os destinos possíveis, tendo chega-
do ao ponto T da transferência: retoma-se ao ponto de partida
188 A ClfNICA FREUDlANA

_ ___-
pela linha da identificação I (ver gráfico do oito interior), ou
então, continua-se pela linha pontilhada do desejo -d-.
_..;,
impossível ~

a
s,
A abstinência do analista, sua disposição para sustentar,
em resposta a essa presença que o reclama como tal, uma
função, semblant de a - em castelliano se traduz por sem-
blante, aparência - pennite um movimento que relança a ór-
bita. Lacan diz: só na análise, pelo ato analítico, é possível
., alcançar o conceito do objeto a . O analista, semblant de a,
produz em ato o relançamento do discurso; outra volta, outra
revolução, com uma possibilidade: que um significante novo
se produza, talvez - diz Lacan - menos imbecil. De wna for-
ma ou de outra, chegar-se-á novamente a este lugar x, com
uma diferença: se o giro se produz com S 1 no lugar do agen-
te, o analista identificado ao ideal, o sujeito se encontra como
quando começou. Se o analista suporta a função de a, o mo--
vimento é diferente, também volta a esse lugar x e o signüi-
cante 1 é produzido, mas com uma diferença - diz Lacan: é
possível que seja menos bobo. Por que será ~os bo~?
Porque há uma experiência que o sujeito fez; a linha pontl-
Ihada, aquela que sustenta o desejo do analista, é também a
que o ~ompanha num movimento pelo qual ele pen:ebe que é
o Outro que constitui o movimento da pulsão, também pode-
mos dizer, a .demanda com a qual ele gira. Presença do ana-
lista responde: com sua função ao tempo no qual a resistência
o reclama aquém de toda palavra.

NA CLíNICA

Eficácia da resistência que pela presença que reclama,


convida ao ato. Resistência à eficácia que, por seu progresso,
escança o vinho sagrado da palavra, vem do Outro, e revela o ·
A CL(NJCA FREUDIANA E A LÓGiCA DO iNCONSCIENTE 189

vazio; parede do cântaro, a língua castelhana faz anagrama de


padre* aquele que, mais além, sustenta a estrutura.
Petrificado, oa louça do monwnento, toma-se ídolo ou
barro, destino do analista colocado no lugar do ideal; alterna-
tivas que a dúvida obsessiva duplica na ambivalência dirigida
ao Outro. Adorado, em contrapartida, na faUcia de seu dizer,
esconde a verdade que o sustenta: a histérica se faz sua ben-
gala e assim proclama ao mundo a dupla verdade: dele, sua
castração, dela aquilo que transborda todo saber, o sexo que
não se diz e goza na dor de seu sintoma.
Em contrapartida, a estrutura psic6tica será a aventura de
um tempo prévio, prb-liminar; se a psicose é estrutura, ela
depende, tanto quanto a neurose, dos enfoques da linguagem.
Linguagem sem palavra, disjunção da letra e do significante,
letra do Outro fon;lu!do que retoma no real, aguarda o su-
plemento de uma fWlção ausente: Nome do ·pai, ..çhama-a La-
can, para que a transferência seja possível.
Preliminar da transferência, não há Sujeito suposto Saber
ao qual se dirija a demanda por um saber não sabido. Propi-
ciá-Ia é seu objetivo. Ali onde o real da voz ou do delírio
restitui o significante extraviado, a intervenção do analista vi-
rá suplementar a função que amarre de outro modo: como se
fará ato numa topologia diversa do dizer neurótico. O n6-bor-
romeano, propôs Lacan, homólogo à estrutura - aguarda-nos
por urna resposta; hoje, ainda, é aventura.
O perverso diz saber do gozo do Outro. Sua vantagem é
que a lei do desejo o tem de seu lado e desde ali supera a es-
tupidez se nela se afJlllla o analista, como lugar do senso co-- ·
mum. Sua armadilha, também a tem, 6 que esse desejo tam-
bém o toma sujeito do desejo do Outro, habitado por um sa-
ber que desconhece. Problema, pois, de posições, como su-
portará que o Outro diga sobre seu ser e, ainda mais, que se
subtraia - presente como o objeto que o identifica? Porque se
há wna posição perversa, é a do objeto, causa do desejo pela •

• Refere-se ao anagrama de partd (parede). "Padre" em cut:clh.aoo signi-


fica pai e padre. (N. da T.)
190 A CLÍNICA FREUDIANA

qual o Outro gira. Rotação do discurso, se o analista é colo-


cado em posição de a,
qual será o seu lugar? Angústia extre-
ma. o objeto que era. na cena de seu gosto, torna-se presença
que sobra; suportar a sua queda será a cwa; outra opção, é a
sua saída da análise e seu verso costuma ser de amor - Oh!
paradoxo da poesia negra - para encobrir a verdade insupor-
tável: não há relação sexual como nas rãs, por mais rã que se
faça; porque se do sexo não se escrevem dois, menos ainda
três, tão somente o fracasso de fazer Um de dois. .
Questões de lógica sustentam a questão: não -existe uni-
versal que não contenha wna existência que o contradiga.
Também o político, como o humorista - Clemenk do Caloi*
não está hoje no real~ - sabe da lógica que na sua máxima
potência toma-se ciência do real.
Tempo de abertura, dizem os jornais de nossos dias, con-
vidam o político a se desdobrar, ou, mais freqüentemente, a
se fechar. Massas, artificiais ou não -depende do lugar que
foi outorgado à linguagem: se nela reconhecemos a natureza
do humano - parlêtre, chama-a Lacan- todas serão tão arti-
ficiais ou naturais, como se queira, na medida em que forem
possíveis acravés de wna ordem que s6 a palavra instaura.
Massas, artificiais ou não, a relação com o lfder foi o centro
da descoberta freudiana para sua psicologia. E nas duas mas-
sas que exemplificou - Igreja e .Exército - não encontrou lu-
gar para a mulher: a relação sexual especifica-se pela sua ex-
clusão. Corpo de mulher, disse Freud, a condição necessária
para que a castração se cumpra. O que acontece se isso que se
exclui retoma no real?

TRAGÉDIA

Permitam-me desenvolver perante vocês algo que tive a


oportunidade de dizer há um ano, pela primeira vez, com ai-

• "Clemente" t um pe.rsonagem de Cirinbas, do humorista ug.en1iDo Gakli,


que aparece diariamente em um jornal de grande tiragem, satirizando sempre a
conjuntura nacional, ou entl\o caracter!slíca& do país e de seus habitantes. (N. da T.)
6. Vcr chamada de pfgina.
A CLÍNICA FREUDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 191

guns colegas de La Plata*, por ocasião de wna reflel(ão sobre


a tragédia de Euópides, lfigenia en Aulis7 • Naquela ocasião,
este texto me serviu para tentar uma resposta que Freud de-
mandou. Uma das perguntas que Freud não pôde responder -
houve várias e a maioriu oom relação à mulher- que propicia
que wna filha desfaça suficientemente o laço amoroso com
seu pai? Hoje quero desenvolvê-la numa certa extensão, para
nosso tema. Lembrarei brevemente a tragédia. O exército
grego. a caminho de Tr6ia, sofre por causa de suas naves de-
tidas~ os deuses decidiram retirar-lhes seu favor e os deixaram
sem o vento que conduziria suas velas ao lugar desejado.
Agamenón, general-chefe do exército grego, consulta o adi-
vinho Calcas, que responde que os deuses reclamam uma ofe-
renda: Artemisa, deusa rodeada de jovens virgens, pede em
sacrifício, a fllha de Agamen6n, Ifigênia.
Agamen6n envia uma carta à sua mulher, Clitenmestra,
na qual "mente" pedindo-lhe que traga sua filha, Ifigênia, pa-
ra casá-la com um dos generais do exército grego, Aquiles.
Clitemnestra chega com sua filha, descobre a verdade e a tra-
gédia transcorre até o tempo final em que Ifigênia é sacrifica-
da.
O que é que sustenta o interesse do espectador por esta •
tragédia? Tem que ser sacrificada, cumpre-se a oferenda, não
há maiores alternativas na peripécia e, mesmo assim, algo nos
mantém presos a ela. O essencial ocorre entre Agamen6n, .o
pai, e Ifigênia, a filha. Vou ler somente três breves parágrafos
do texto. O primeiro, onde Clitemnestra, mulher de Agame-
nón, mãe de lllgênia, diz ao seu marido:

Dci-te uts filhliS e este varllo e agora prelendcs marar uma de


minhas ftlhas, a primogêniiA, por qul? Por quê? Não respondes, mas
respondo eu; para resgatar Eleoa. a mulher desleal de Menelau, teu
i.rmão. Uma filha pura, morta por uma mulher sem vergonha.

• La Phta: capital da provrncia de Buenos Aires onde se encontra a cidade


universi:túia. (N. da T .)
7. Eurfpede.s, "lfigenla en Aulis", Las t/Uctnuev~ trag~diaa. Mtxico, Porrd,
1977.
192 A CLÍNICA f'REUDJANA

Aquilo que odiado deveria 5er, recupera-se às custas do que deve ser
amado.

Uma mulher por outra. Como conta o mito, as hostes gre-


gas vão fazer cwnprir um pacto violado. Elena foi raptada por
Páris, seduzida e raptada, e os gregos acodem para resgatá-la e
castigar os culpados. Por um àcordo prévio entre os preten-
dentes de Elena, aquele que a obtivesse teria para sempre a
ajuda dos demais frente a qualquer ultraje que alguma vez
acontecesse_ O que diz este mito à s ua maneira? Aquilo que
Lévi-Strauss disse ao modo do mito moderno: as mulheres
circulam. Um homem, Menelau ou Agamen6n, Menelau não
é, no fim das contas, mais do que o senelhante de Agame-
n6n, recebe uma mulher do seu sogro e, em troca, entrega sua
ftlba ao seu genro. Tal conx> Freud encontrou verdade nas
histéricas, ali onde a medic ina não p<,>dia ouvir senã,o a menti-
ra da dor que sofriam, lemos a verdade no engano da tragé-
dia: a tragédia conta como um pai casa sua fllha. Agamen6n
pe.diu que lfigênia viesse casar-se com Aquiles. É verdade,
para um pai, o casamento de sua fl.lha é wn ato de sacrifício,
é o tempo em que a perde. Como transcorre este movimento
que tem dois tempos? No começo, a verdade é dita por Cli-
temnestra: - Queres matar nossa filha porque somente anseias
levar o cetro e o comando desta expedição. Agamenón no lu-
gar do S 1 , Significante amo, tem uma razão unfvoca, quer o
comando. Informado o povo grego da condição para conti-
nuar sua viagem, reclama o sacrifkio; Agamen6n não tem
oportunidade de escolher, já arrependido de sua decisão. Se
renuncia ao sacrifício de Ifigêoia, será sacrificada pelo povo
grego junto com a sua famflia. "Não é Menelau, minha filha,
não é ele quem me domina para cheg ar ao fato que pretendo,
é toda a Grécia quem pede este sacriffc io. Querendo ou não
querendo tenho que sacrificar-te ante o altar, deves consen-
ti-lo, temos que agir como detenninam os deuses. Deixaremos
que troianos vencedores venham roubar nossas mulheres?"
Já não é Agamenón, significante unívoco que diz e sabe
o que diz; substituído por outro significante que se chama
Grécia, este vem presentificar aquilo que sustenta a socieda-
de: as mulheres circulam segundo uma ordem.
A CLÍNICA FRE UDIANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 193

1ROPEÇO FREUDIANO

Por que Freud não pôde responder por que uma rllha se
separa do pai? Uma resposta, não pretendo esgotar a questão, me
servirá também para dizer para que servem essas pequenas le-
trinhas chamadas matemas. Se o Édipo é como diz a histori-
nha: ..ao menino mau que quer donnir com a sua mãe, o pai
vem, castiga-<> e lhe corta o pintinho", não se sabe como re-
solver a questão quando é a menina quem quer donnir com o
pai: tal era o problema como Freud o colocava. Mas, se ao
invés desse modo empirizado essa estrutura, o Édipo, for es-
crita com letras, a princípio trata-se de Outro para quem sua
filha <>u seu filho aparecem corno o objeto que vem tomá-lo
precisamente Outro, senão seria Outro com wn significante a
menos -S(Jj..); no lugar do Outro pode estar uma mãe com seu
filho ou um pai com sua filha.
Agamen6n no lugar de A (Outro), I1igê nia, objeto a -
Lacan lembra que quando se vê wn menino de mão dada com
seu pai, ali está o objeto a - sua separação, o corte, é a cas-
tração. Qual é a instância que reclama isto? Grécia, a oniem
social.

A
a

Agamen6n ---.~---- Grécia


si a
s2

N<> tempo em que lfigênia decide aceitar o destino que os


deuses redamam, sua mãe pergunta: - "Não lamentarei a tua
morte '! " " Não" - diz lCigênia, como Sade - "porque nenhu-
ma tumba me lembrará. " - " Não bwsta que morras, não é pre-
ciso chorar um morto?" - "Não" - responde lfigênia -
" quando morre no alw dos deuses."
Segunda morte, chama-a Lacan, quando o herói da tragé-
dia pCOS$egue sem temor e sem piedade o seu des tino. Segun-
194 A CLÍNICA FREt:DIANA

da morte que ao contrário do fantasma sadiano, na realidade é


primeira: o sujeito antecipa, por obra do signiticante, seu de-
saparecimento. Itigênia, como a para o Outro, cai. Não é
aquilo que encena a cerimônia nupcial, quando a noiva entra
de braço dado com o pai e sai de braço e com o sobrenome de
seu marido? Altar do sacrif(cio, altar da cerimônia.
Toda psicologia individual é social, disse Freud. Toda
psicologia social é individual, disse Lacan.
Se Agamen6n conduziu como conduz um analista o tra-
tamento, o preço, que é também pelo que cobra, lhe exige sua
prenda: lfigênia também é ele e o tratamento s6 alcança seu
destino se cai no tempo que o analisante relança seus navios,
desdobra suas velas e volta a girar para além dessa oferenda,
que também antecipa o seu final e assim dá sentido - através
da morte - à vida que é sua.
Também é o horror do analista por seu ato que s6 se
cumpre quando cai por wna bandeira que não é senão do Ou-
tro -já não é Agamen6n, é a Grécia, são os deuses.

COMÉDIA

Então: final de tragédia? Somente se nas voltas do trata-


mento, percebe-se que também se trata de comédia; pelo en-
contro falhado, o verso prossegue:
Dois anciães sentados no banco de uma praça. Ele lhe
diz: ' 'Tenho a impressão de que foi ontem quando no reser-
vado para famílias da casa de chá Ideal - que nome para uma
casa de chá! - decidimos deixar de nos ver por um tempo pa-
ra ver se a nQssa relação melhorava. Confesso-te, Ernesta,
que nestes setenta e oit9 anos de separação compreendi que
não posso viver ~m ti ... "
(Obrigado Fontanarrosa!)B

8. O humorista não desdenhll a lógica q ue faz da ccn.swa ocasião para a ver-


dade.
A CLfNJCA FRE UDI ANA E A LÓGICA DO INCONSCIENTE 195

A verdade da piada é o seu re-verso: se não há sistema


que diga a verdade de todos seus axiomas, o Outro não dá ga-
rantias e por isso, precisamente por isso, ali do sujeito um ato
é possível.
Ato do analista, o amor de transferência que a ele se opõe
sem deixar de ser seu produto, é também ocasião do que se
segue: ..porque te amo procuro em ti algo mais do que a ti: o
objeto que me causa sujeito do desejo" .
A pressa da conclusão limita o tempo extenso de uma
compreensão que se torna piada: s6 precisa convidar ao ato
pela lembrança de um tempo que se acaba.
Em outro lugar. não faz muito tempo. propus um título que
falava da clínica freudiana. Citei. como agoràvou fazer avo-
cês. duas definiçÓes que l..acan expôs por ocasião da aber-
tum da sessão clínica em Vincennes: ..A clínica é o real na
medida que é a ·impossível a suportar'·; outra. onde con-
clui: ··... é. então. aquilo pelo qual a clínica psicanalítica con-
siste em reinterrogar tudo o que foi dito por freud ··. ...
Talvez possamos antecipar algo. se dissermos que o cam-
po da psicanálise se sustenta. ao menos em seu movimento
inaugural. porque nele foi colocado emato não ·só a razão
nos termos que uma tradição científica promove como tal.
senão quando ela é sacudida desde outro lugar. Talvez a ar-
ticulação das duas definições posSa começar a produzir em
nós. alguma resposta se dissermos que a clinica freudiana
é possível porque. em sua origem. se sustenta do desejo
de freud.


escuta

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