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SUPERVISÃO DE UM MATERIAL CLÍNICO DE ANÁLISE DE

CRIANÇA UTILIZANDO A TÉCNICA DE ANNA FREUD.

Vera Márcia Ramos


Membro efetivo e didata da SPRJ

O objetivo dessa supervisão foi contribuir com a minha visão a respeito do

material clínico apresentado, e também divulgar a técnica da análise infantil de

Anna Freud, que penso ser pouco conhecida entre nós. Em geral, quando se

referem a sua técnica, vários autores falam dos primórdios, quando ela ainda

postulava uma fase “preparatória” para análise e acreditava que a criança não

fazia transferência .(A. Ferro, 1995).

Ana Freud representa o modelo freudiano da psicanálise infantil. Em vários

trabalhos tratava das questões do método psicanalítico, das diferenças entre

análise de adulto e análise de criança e tentava dar os fundamentos da análise

infantil. Procurava demonstrar a importância não só da patologia, mas dos

fenômenos normais do psiquismo. Ela chama atenção para o fato de que uma

certa dificuldade encontrada na análise de crianças, podia ser contrabalançada

por uma “urgência em completar o desenvolvimento”, estabelecendo a

importância do aspecto maturacional.

Anna Freud modificou a sua técnica ao longo do seu percurso como analista

bem como desenvolveu sua teoria, mantendo-se fiel aos fundamentos freudianos

. Ela não desenvolveu um novo modelo psicanalítico, mas teve alguns

seguidores e fez uma escola tanto em Viena, quanto em Londres. Desenvolveu

vários trabalhos de psicanálise, o mais conhecido é O Ego e os Mecanismos de


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Defesa, escreveu vários livros sôbre psicanálise de crianças, e teve um importante

trabalho comunitário tanto em Viena, como em Londres com crianças órfãs de

guerra , e criou a Clínica Hampstead de Psicanálise Infantil que formou analistas,

além de pesquisadores.

Importância da 1ª entrevista.

No material clínico apresentado, o fato de que vieram os três a primeira

entrevista foi importante, pois dessa maneira a analista pode compreender a

dinâmica do funcionamento familiar. Muitas vezes o analista tenta seguir regras

pré estabelecidas, por exemplo, realizar a primeira entrevista com os pais, e

depois com a criança.

Como Rosana aceitou atender os pais e Susan, conseguiu perceber a

interação entre eles . O pai é quem falava, a mãe se mantinha distante, e a filha

Susan mantinha-se no divã toda encolhida. Além disso pode sentir, o mal estar

que era expresso através dos sintomas psicossomáticos da criança. Esses

sintomas que expressavam dor, eram também um mecanismo de defesa contra

uma outra dor, como será visto adiante. A aceitação desta situação inusitada

como Rosane descreve, a atitude afetiva com que se aproximou da criança,

permitiram o estabelecimento de uma aliança entre eles.


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Disse Anna Freud quanto ao papel dos pais na origem da doença. “O analista

infantil tem que exercer grande atenção para não ser iludido por aparências

superficiais, e sobretudo para não confundir o efeito da anormalidade de uma

criança sobre a mãe, com a influência patogênica da mãe sobre a criança. O

método mais seguro e laborioso para avaliar a interação é a análise simultânea

de pais e filhos. Dessas análises emergem muitas descobertas sobre as relações

patológicas pais filhos, como as que citarei a seguir.

Existem pais cuja dedicação ao filho depende deste representar para eles,

quer um ideal deles próprios, quer uma figura do passado de ambos. Para reter o

amor parental nessas circunstâncias, a criança permite que a sua personalidade

seja moldada num padrão que não é o dela, e que negligencia ou conflita com

suas potencialidades. Alguns pais e algumas mães atribuem ao filho um papel nas

patologias deles próprios, e é nessa base que se relacionam com eles, e não nas

bases das necessidades dos filhos.”

Assim era com Susan. O pouco cuidado com a roupa da escola, a mamadeira

que a deixava mais ligada a mãe com dificuldade de se separar, o fato de que ela

dormia no quarto com a mãe, enquanto o pai dormia na sala, atendia as

dificuldades do casal. Os pais davam tudo que Susan pedia.

O que parecia atender aos desejos da criança , na verdade servia às

necessidades dos pais, já que ambos pareciam infelizes em seu relacionamento

de casal. Além disso demonstravam sua dificuldade de lidar com as ansiedades e

frustrações da criança.
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Segundo Anna Freud , “A técnica dos analistas infantis para lidar com os

pais varia amplamente, desde o extremo de um lado de os excluírem totalmente

da intimidade do tratamento, de mantê-los informados permitindo-lhes que

participem das sessões com crianças muito pequenas, tratando-os ou analisando-

os simultaneamente mas separadamente e até o extremo oposto de tratá-los de

preferência a analisar a própria criança.”

A escolha de Rosana da participação dos pais no tratamento mostrou-se

adequada. Atendendo a mãe de Susan para orientações, funcionou como ego

auxiliar da mãe ou ainda exercia a função de mãe da própria mãe. Além disso,

com o afastamento do pai, a analista funcionou como um terceiro naquela relação,

ou seja, substituiu temporariamente a função paterna .

Primeira Entrevista.

De acordo com Anna Freud, o analista de adultos devido às impressões que

recebe em seu trabalho cotidiano não corre o risco de se tornar um ambientalista .

O poder do mundo interno sobre o externo, é lhe apresentado numa série

interminável de exemplos pelos seus pacientes. È a transferência que explica a

facilidade com que o analista acredita que também na infância do paciente

agiram forças semelhantes, e que fatores internos e não externos são

responsáveis pela causa da doença. O analista de adultos é um crente

inabalável da realidade psíquica em oposição à externa.

Para o analista de criança, por outro lado todas as indicações apontam na

direção oposta, atestando a poderosa influência do meio ambiente. No


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tratamento, especialmente a criança muito pequena, revela a extensão em que é

dominada pelo mundo dos objetos, isto é até que ponto seu comportamento e

patologia são determinados pelas influências ambientais, tais como as atitudes de

proteção ou rejeição, de amor ou indiferença, crítica ou admiração dos pais,

harmonia ou desarmonia sexual da vida deles. O jogo simbólico da criança na

sessão analítica comunica não só suas fantasias internas mas também os

eventos familiares, tais como relações sexuais entre os pais, brigas e

preocupações conjugais, ações frustradas e geradoras de ansiedade. O analista

infantil que interpreta a exclusivamente em termos de mundo interno, corre o risco

de passar por alto a atividade relatada pelo paciente, respeitando as

circunstâncias ambientais igualmente importantes.

Porém não se pode acreditar que os fatores externos por si podem ser

agentes patogênicos. Tal suposição contradiz a experiência do analista. Ele tem

de lembrar-se que os fatores externos prejudiciais que estorvam a sua visão,

alcançam significado patológico por meio da interação com a disposição inata e

as atitudes libidinais e do ego adquiridas e interiorizadas.

Em conjunto, a análise adulta e infantil podem encontrar e manter a

perspectiva equilibrada, exigida pela fórmula etiológica de Freud, que existem

pessoas “constituição sexual não as teria levado a uma neurose se elas não

tivessem tido certas experiências, e essas experiências não teriam efeito

traumático sobre elas se a libido dessas pessoas tivesse sido disposta de um

outro modo” (Freud 1916-1917).


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Dessa forma, na primeira entrevista, a menina que se apresenta mal cheirosa ,

de roupa suja, cabelos em desalinho e parecia uma menina abandonada e mal

cuidada ao longo da sessão verbaliza suas defesas, seu medo de crescer, medo

de que os pais morram ou que a mãe tenha um surto psicótico. Representa

esses temores através da construção da torre que em determinado momento cai.

Expressa também através da queda da torre um ego frágil, pelos efeitos dos

impulsos cocô, ou seja, os impulsos pré-genitais agressivos em relação aos

objetos primários, que são os barulhos que existem dentro dela, como foi

interpretado, por Rosana e confirmado pela comunicação posterior.

Sessão de agosto de 2002.

Ana Freud, se refere a respeito do contato físico e da gratificação. “Ao fazer

análise o analista tem de agir como faz uma pessoa quando deseja pescar um

peixe puxando-o apenas quando fisgar. Se o analista se atém de modo inflexível

a uma regra, não consegue aprender o material. O analista alterna entre

concordar com o desejo do paciente e concordar com a regra analítica, algumas

vezes cedendo, outras interpretando. Todavia, duvido que se possa analisar uma

criança recusando constantemente todos os seus pedidos. Não vejo como

qualquer pessoa possa realizar análise infantil, sem dar algo concreto que uma

criança deseje num momento ou outro da análise. A situação pode ser vista da

seguinte maneira a criança necessita de estímulos, motivações para prosseguir o

trabalho analítico.”
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Nessa sessão, Rosana ao satisfazer o desejo da Susan de deitar, oferendo-

lhe um cobertor e deixando-a adormecer, fisgou um sonho sobre o vulcão ou seja,

material do inconsciente. O que poderia ser entendido como resistência da

criança, na verdade com a tolerância da analista pode ser mais bem entendido,

resultando em trabalho de análise.

O vulcão em erupção representa no inconsciente , o início da atividade da

pré-adolescência , demonstrando o caminhar do desenvolvimento. A sexualidade

e agressividade em ebulição, os aspectos do id aflorando com seus

componentes libidinais e agressivo mas preservando o contato com a realidade.

Os bombeiros representam a análise, objeto cuidador que restaura permitindo o

ego e o mundo interno virem a tona.

Ainda Anna Freud, falando sobre a aliança de tratamento, ou seja a

disposição da criança em colaborar com o tratamento. A razão mais madura é o

desejo de ter ajuda para lidar com as dificuldades internas. Algumas crianças

realmente expressam a necessidade dessa ajuda. No entanto, encarar a aliança

de tratamento, como algo que se baseie apenas em elementos mais maduros é

simplificar a situação. Um outro motivo é a transferência positiva. O analista é o

representante do adulto importante a quem se obedece, que é amado, é em quem

se acredita como alguém que auxilia e portanto a criança está disposta a

cooperar.

Em outros casos a razão central pode ser o desejo de agradar o terapeuta. A

aliança ainda pode basear-se no relacionamento com uma mãe que tenta

entendê-la.
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Segundo ela, a meta do analista é manter a boa vontade do paciente de

trabalhar em conjunto, num nível que torne possível lidar com o que aconteça. Há

momentos em que o analista pode interromper o trabalho analítico para dizer “.

Acho que trabalhamos bastante hoje agora vamos brincar um pouco”. É

importante não pressionar muito a criança nem suscitar muito a ansiedade dela.

Deve ser mantida num nível em que a criança tenha disposição para suportar .

A meu ver isso é o que ocorreu nessa análise. A aliança de tratamento e a

transferência positiva permitiram o estabelecimento de uma boa comunicação

verbal com o relato do sonho, que permitiram as associações ao sonho, e a

elaboração do material.

Rosana fazia a criança associar e ia interpretando o material que surgia. Ana

Freud teria apreciado a sessão por ter o relato de um sonho. Lembro que no

início de suas teorias questionava se a técnica do brinquedo substituía a

associação livre do adulto e utilizava sonhos e devaneios dos pacientes.

Na evolução do tratamento há o relato do progresso de Susan na análise e o

seu crescimento. A aproximação maior com o pai e a nova namorada, o

desaparecimento da encoprese, e a tolerância à frustração, demonstravam na

prática a melhora obtida com o tratamento. As modificações da puberdade, que já

se faziam anunciar no sonho, agora tornaram-se físicamente explícitas. O broto

mamário e os pelos pubianos e interesse pelos rapazes anunciavam o caminho

para a adolescência. Ao mesmo tempo surgem angústias e inseguranças em

relação a esse crescimento, e as separações. Essas se manifestam tanto em

relação à mãe, como na viagem que fez com o pai a namorada e o filho, quanto
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em relação a viagem e afastamento do pai. Nesse momento surge o material

edípico, em que expressa seus ciúmes e rivalidades com a figura feminina,

representada pela namorada do pai.

Sessão de 3/11/2003.

Impressões de Anna Freud sobre o insight e a auto observação .” Insight

tem a ver com entrar em contato com os próprios sentimentos, motivações e

comportamentos, que é possível mesmo sem análise. Esse contato com o

sentimento, sem raciocinar sobre eles está mais próximo da experiência analítica

da criança do que o adulto. O desenvolvimento do insight depende em certo grau

da auto observação, mas é possível ter auto observação sem insight.

O primeiro método de criação que lida com sentimentos, faz com que o

ego amadureça mais cedo, o que se liga à importância do papel da verbalização

na primeira infância. A verbalização facilita o amadurecimento do ego e a

aquisição da capacidade de auto observação.

A auto observação e a consciência do que sucede são capacidades

normais do ego maduro. A análise tenta ajudar o uso dessas capacidades e

estendê-las as áreas inconscientes da mente.”

Sua visão sobre a transferência de relacionamentos atuais na análise de

criança.

“As preocupações atuais, transferidas ao terapeuta podem estar amplamente

relacionadas com a realidade. Os critérios para essa transferência são que as

preocupações da criança se relacionam com um objeto real ou objetos na


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atualidade e suas manifestações na análise representam uma extensão ou um

deslocamento desse objeto. Esse relacionamento com o terapeuta tem a

finalidade predominante de um desdobramento ou extensão do presente mais que

uma revivenciado do passado”.

Ainda segundo Ana Freud a ênfase nos brinquedos, como instrumento da

análise foi supervalorizada. Qualquer coisa que se forneça é um adjunto a

situação de tratamento, e o que realmente importa, é o que paciente e analista

dizem e como se relacionam um com o outro.

A sessão transcorre de forma verbal o que demonstra o desenvolvimento da

análise de Susan e da relação analítica. Rosana ao longo da sessão vai ajudando

a menina a entrar em contato com ela mesma e com seus sentimentos. Surgem

as questões ligadas a dificuldades com a feminilidade, relacionadas com a

menstruação, a vinculação com o pai e a rivalidade com a substituta materna.

Seus sentimentos amorosos são de tal intensidade que a ameaçam com a perda

de identidade. A analista vai interpretando ou clarificando de forma simples,

usando frases curtas, trabalhando as defesas bem como os conteúdos,

contribuindo para o aprofundamento da análise e desenvolvendo a capacidade de

pensar.

Para concluir, Ana Freud diz que os analistas devem distinguir entre a

meta e o método do tratamento analítico. A meta do analista se afirma em termos

da necessidade do paciente. O método do analista não é concentrar-se nessas

necessidades no decorrer do tratamento, mas voltar à atenção para o próprio

processo. Ela utiliza a metáfora do carro. “É algo assim como estar dirigindo um
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carro. A meta é chegar , mas se em vez de olhar a estrada a gente pensa como

vai ser bom quando a gente chegar, provavelmente haverá um acidente .

Concentrar-se no processo de guiar implica dirigir o carro.”

Referências;

Ferro, A (1995)- A Técnica da Psicanálise Infantil, Imago, Rio de Janeiro.


Freud, Anna (1971)- Infância Normal e Patológica, Zahar Editores, Rio de
Janeiro.
Sandler,Joseph e colaboradores (1982)- Técnica da psicanálise infantil, Editora
Artes Médicas, Porto Alegre.
Young-Bruehl, Elisabeth (1992)- Anna Freud: uma biografia, Imago, Rio de
Janeiro.

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