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PULSÃO DE MORTE NA CRIANÇA, ONIPOTENCIA, O TRAUMA E SUAS

CONSEQUENCIAS

Aline Domingues Lopes


Curso de Formação em Psicanálise Clinica
ACADEMIA ENLEVO, BRASILIA/ DF

RESUMO
Observamos situações em que doenças orgânicas importantes como asma,
epilepsia, entre outras, aparecem sem qualquer motivo clínico na criança, enquanto
no adulto, dependências químicas podem ser reflexo de algo vivido, mesmo sem
que se tenha consciência. Este tema vem sendo amplamente discutido na
contemporaneidade girando em torno do fenômeno psicossomático caracterizado
pela lesão orgânica.
Segundo Ferenczi, em muitas situações a manifestação deste tipo de doença ou
dependência está ligada a forma como uma criança é acolhida por sua família; já
segundo Freud, interferem nesta questão a constituição da instancia do EU
(Narcisismo), a construção da fronteira entre o somático e o psíquico (Pulsão) e a
relação com o corpo.
Neste estudo, abordamos também sobre a diferença de linguagem entre adultos e
crianças e o quanto interpretações erradas podem ser prejudiciais assim como
causadoras de traumas.
Nosso objetivo é nos aprofundarmos nos temas descritos, dando destaque a ótica
Ferencziana e seu viés sobre o acolhimento, sem deixar de mencionar importantes
passagens de Freud.

Palavras-chave: Criança e Pulsão de morte; Diferença de linguagem entre adulto e


criança; Pulsão de vida; Trauma psíquico.
II

ABSTRACT

We observed situations in which important organic diseases such as asthma,


epilepsy, among others, appear without any clinical reason in the child, while in
adults, chemical dependencies can be a reflection of something experienced, even
without being aware. This theme has been widely discussed in contemporary times
revolving around the psychosomatic phenomenon characterized by organic injury.
According to Ferenczi, in many situations the manifestation of this type of disease or
dependence is linked to how a child is welcomed by his family; according to Freud,
the constitution of the ii instantiation (Narcissism), the construction of the boundary
between the somatic and the psychic (Pulsion) and the relationship with the body,
interfere in this issue.
In this study, we also addressed the difference in language between adults and
children and how harmful misinterpretations can be as well as causing trauma.
Our goal is to delve into the themes described, highlighting the Ferencziana
perspective and its bias on welcoming, without forgetting to mention important
passages from Freud.

Keyword: Child and Death drive; Language difference between adult and child; Life
drive; psychic trauma.
III

INTRODUÇÃO

Em meados de 1920, Sigmund Freud, em sua teoria das pulsões descreveu


duas pulsões antagônicas: Eros, uma pulsão sexual com tendência a preservação
da vida, e a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o que é vivo,
à destruição. Ambas as pulsões agindo de forma isolada, estão sempre trabalhando
em conjunto segundo o princípio de conservação da vida. Haja visto o exemplo de
se alimentar, embora haja pulsão de vida presente – sendo a finalidade de se
alimentar a manutenção de vida – ela implica-se à pulsão de morte, pois é
necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo. Desta forma encontramos
um elemento agressivo que se articula a pulsão de vida, como sua necessária
contraparte na função geral de conservação.
Neste mesmo período, Sándor Ferenczi questiona sobre as bases pulsionais
ditas por Freud, onde segundo ele, a pulsão de morte não é apenas
biológica/adaptativo ou natural, mas está relacionado a um estágio de onipotência
incondicional, característico a seu ver da vida intrauterina, com um estado de
quietude originário, uma tendencia a regressão e uma concepção do narcisismo
primitivo.
Também abordamos sobre a diferença de linguagem entre adultos e crianças,
os traumas que podem ser gerados quando uma criança é mal interpretada e como
isso pode ser penoso senão for bem acolhido.
Nossa intenção com esse estudo é nos aprofundarmos principalmente na
visão de Ferenczi para os temas acima, sem deixar de mencionar Freud – o pai da
psicanálise - focando sobre como uma família acolhedora pode refletir no
desenvolvimento e consolidar um adulto saudável do ponto de vista psicológico.
IV

SÁNDOR FERENCZI

Antes de iniciarmos nosso estudo, é importante conhecer (de forma resumida)


sobre este importante nome. Muitas pesquisas feitas por Ferenczi foram iniciadas a
partir de questionamentos feitos a psicanálise, procurando sempre aplicar seus
limites terapêuticos. Em suas pesquisas, privilegiou o tratamento de psicóticos,
pacientes psicossomáticos e casos-limites; sua produção teórica teve início logo
após seu contato com Freud em 1908 e muitos de seus textos foram feitos a partir
de estudos com base na produção feita por este. Para Ferenczi era muito importante
em uma psicanálise de sucesso a empatia e a contratransferência na relação entre
analista e analisando.

PULSÃO DE MORTE SEGUNDO FERENCZI

Ferenczi ressaltou em seus estudos que a pulsão de morte está presente em


todos nós, desde quando estamos no útero da nossa mãe e que esse fato não é
apenas biológico, mas que o meio influencia nesta questão. Segundo ele, a criança
registra bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou impaciência de
seu cuidador. A “força vital” capaz de resistir às dificuldades da vida não é tão forte
no nascimento, mas se reforça por meio de injeções de afeto, contrabalanceando as
tendencias para a auto destruição.

“A “força vital” que resiste às dificuldades da vida não é, portanto, muito forte
no nascimento; segundo parece, ela só se reforça após a imunização progressiva
contra os atentados físicos e psíquicos, por meio de um tratamento e de uma
educação conduzidos com tato. De acordo com o declínio da curva de mortalidade na
meia-idade, a pulsão de vida poderia, na maturidade contrabalançar as tendências
para a autodestruição.” (Ferenczi, Sándor, Obras Completas: Psicanálise IV, p.58/59)

Para ele as crianças que são recebidas de forma rude e sem carinho, em
muitas ocasiões encontram mecanismos para deixar de existir e, caso isso não
aconteça poderão crescer com uma personalidade pessimista, conservando em
seus pensamentos uma aversão a vida.
V

“Eu queria apenas indicar a probabilidade do fato de que crianças acolhidas


com rudeza e sem carinho morrem facilmente e de bom grado. Ou utilizam um dos
numerosos meios orgânicos para desaparecer rapidamente ou, se escapam a esse
destino, conservarão um certo pessimismo e aversão à vida.” (Ferenczi, Sándor,
Obras Completas: Psicanálise IV, p.58)

Com essas suposições, Ferenczi buscava tratar sobre a eficácia das pulsões
de vida e de morte em diferentes etapas da vida, é comum pensarmos que nas
pessoas que acabam de nascer a pulsão de vida tem uma representação maior que
a pulsão de morte, mas, segundo seus estudos não ocorre bem desta forma; como
citado acima, embora ao nascer os órgãos se desenvolvam rapidamente; apenas em
condições favoráveis de amor e proteção é que a criança encontrará meios para
desenvolver essa “força vital” e evitar que as pulsões de destruição entrem em cena

“De qualquer modo, no início da vida, intra e extrauterina, os órgãos e suas


funções desenvolvem-se com uma abundância e uma rapidez surpreendentes - mas
só em condições particularmente favoráveis de proteção do embrião e da criança. A
criança deve ser levada, por um prodigioso dispêndio de amor, de ternura e de
cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual
era a sua intenção, pois, caso contrário, as pulsões de destruição logo entram em
ação. (...) Deslizar de novo para este não ser poderia, portanto, nas crianças,
acontecer de um modo muito mais fácil.” (Ferenczi, Sándor, Obras Completas:
Psicanálise IV, p.58)

Com base nisso, em um de seus estudos feitos a partir de uma atribuição de


Freud sobre um fenômeno patológico onde realiza a separação da pulsão de vida e
de morte na sintomatologia da epilepsia, Ferenczi, chega à conclusão não definitiva
quanto a própria natureza do ataque, mas que o deixa convicto quanto à
plausibilidade da concepção:

“(...) Tenho conhecimento de casos em que a crise epilética seguia- se a


experiências de desprazer, as quais davam ao paciente a impressão de que a vida
não valia a pena ser vivida. (Ferenczi, Sandor, Obras Completas: Psicanálise IV,
p.56)

Não apenas no estudo da epilepsia, mas em outros distúrbios circulatórios e


respiratórios, de origem nervosa além de casos de emagrecimento,
“anatomicamente inexplicáveis” que segundo ele possuíam a tendência à
autodestruição. Exemplos como: asma brônquica, espasmo da glote infantil como
VI

tentativa de suicídio por auto estrangulamento.

Também são abordados reflexos, mesmo depois de adultos, em pacientes


que foram hóspedes não bem-vindos na família. Conflitos internos que
desencadeiam em problemas de relacionamento como frigidez e impotência.

“Todos os indícios confirmam que essas crianças registraram bem os sinais


conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua
vontade de viver viu-se desde então quebrada. Os menores acontecimentos, no
decorrer da vida posterior, eram bastantes para suscitar nelas a vontade de morrer,
(...) Pessimismo moral e filosófico, ceticismo e desconfiança tornaram-se os traços de
caráter mais salientes desses indivíduos (...) um certo grau de infantilismo emocional
(...) problemas de adaptação à vida conjugal que, por acaso, mostraram ser de uma
dificuldade pouco comum; a paciente permaneceu frígida; do mesmo modo, os
rapazes “não bem vindos” que pude observar sofriam de distúrbios mais ou menos
graves de potência.” (Ferenczi, Sandor, Obras Completas: Psicanálise IV, p.57/58)

Um outro ponto sensível abordado por Ferenczi é a respeito da continuidade


das demonstrações de carinho e cuidado; existem casos em que a criança é bem
recebida, porém, ao longo do tempo deixa de receber o amor necessário o que
acarreta a diminuição do prazer de viver.

“a constatação das diferenças mais sutis entre a sintomatologia neurótica das


crianças maltratadas desde o começo e a daquelas que são, no início, tratadas com
entusiasmo, até mesmo com amor apaixonado, mas que depois foram “postas de
lado” (Ferenczi, Sandór, Obras Completas: Psicanálise IV, p.59)

Desta forma, podemos subentender um equilíbrio entre uma tendencia


regressiva de morte e uma tendencia progressiva de vida, cuja origem estaria na
impossibilidade de total e absoluta inatividade frente a um ambiente que, por revelar-
se não continuamente harmonioso com o ente, é estimulante e traumático.
VII

SIGMUND FREUD

Acredito que este nome dispensa qualquer apresentação, mas não poderia
deixar de falar, nem que seja de forma resumida, sobre o pai da psicanálise. Criador
da Psicanálise, personalidade mais influente da história no campo da psicologia,
iniciou seus estudos pela utilização da técnica da hipnose no tratamento de
pacientes com histeria, defendendo a tese de que a causa desta era de ordem
psicológica e não orgânica. Tal hipótese serviu de base para vários outros conceitos
desenvolvidos por ele. Fatos como a descrição de pacientes curados pelo diálogo
levaram Freud a largar a hipnose, assim como o uso de medicamentos em
detrimento de um novo método: a cura pela fala, ou seja, a psicanálise. Para tanto
usou técnicas para acesso ao inconsciente de seus pacientes (ex.: interpretação de
sonhos e livre associação). Seus tratamentos clínicos e teorias continuam a ser
debatidos até hoje e, concordando com ele ou não, suas teorias servem de base
para diversos debates.

PULSÃO DE MORTE SEGUNDO FREUD

O conceito de pulsão descrito por Freud teve seu aparecimento em 1905, no


artigo Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, sob o termo trieb, onde podemos
observar a experiencia clínica da agressividade na elaboração da primeira teoria
pulsional, cujo Freud se recusa a admitir a hipótese de uma pulsão agressiva
especifica. Para ele, as pulsões existentes dividiam-se em dois grandes grupos:
autopreservação e sexuais (teoria da libido), a oposição entre elas funciona como o
eixo em torno do qual gravitam os temas e as questões dessa época.

“Propus que se distingam dois grupos de tais instintos primordiais: os


instintos do ego, ou auto preservativos, e os instintos sexuais. Mas esta
suposição não tem status de postulado necessário, ela não passa de uma
hipótese de trabalho, a ser conservada apenas enquanto se mostrar útil, e
pouca diferença fara aos resultados do nosso trabalho de descrição e
classificação se for substituída por outra.” (Freud, 1915/1996, p.139)

Em 1915 Freud afirma que toda pulsão é uma parcela de atividade, sendo,
portanto, definida como capacidade de iniciar movimento, onde reafirma a primazia
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das pulsões “são as pulsões e não os estímulos externos constituem as verdadeiras


forças motrizes por detrás dos progressos” (Freud, S. 1915, p.140). Neste momento
ele ratifica a distinção entre estímulos internos e externos onde, no seu entender, a
pulsão é um estímulo aplicado a mente – de origem interna – onde por ser
constante, não é possível fugir de seu impacto

“Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo quase


inteiramente inerme, até então sem orientação no mundo, que esteja
recebendo estímulos em sua substância nervosa. Esse organismo muito em
breve estará em condições de fazer uma primeira distinção e uma primeira
orientação. Por um lado, estará cônscio de estímulos que pode ser evitado
pela ação muscular (fuga); estes ele os atribui a um mundo externo. Por
outro, também estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não tem
qualquer valia e cujo caráter de constante pressão persiste apesar dele;
esses estímulos são os sinais de um organismo vivo terá assim encontrado,
na eficácia de sua atividade muscular, uma base para distinguir entre um “de
fora” e um “de dentro””. (Freud, 1915, p.139 – o grifo é nosso)

No entanto, em 1920 Freud revê a divisão inicial que havia feito das pulsões
(sem invalidar a primeira) e, em Além do Princípio do prazer (escrito a partir da
observação realizada de seu neto de 1 ano e meio após perder sua mãe), ele
propõe a existência de duas forças opostas: uma que impele à ação e outra que leva
à inanição. Sendo então a pulsão de morte (tânatos) entendida por ele como uma
tendencia que levaria à eliminação da estimulação do organismo, tendo como
objetivo a falta de vida, não tendo em sua base constitucional o desejo pela
mudança, buscando apenas um objetivo antigo através de caminhos novos, ou seja,
enquanto Eros busca unir e conservar a vida, além de satisfazer a libido, Tânatos
busca satisfazer impulsos agressivos e destrutivos.

"De nossa parte, nós temos abordado não a substância viva, mas as
forças que nela atuam, e nos vimos levados a distinguir duas classes de
pulsões: as que pretendem conduzir a vida à morte, e as outras, as pulsões
sexuais, que aspiram continuamente a renovação da vida, e a realizam. Isso
soa como um corolário dinâmico da teoria morfológica de Weismann." (Freud
1920/1975)

Enquanto Eros ou energia vital libidinosa facilita a união e a ação, Tânatos


tende a ser mostrado indiretamente por meio de projeção por agressão ou por não
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conexão com o mundo, isso porque, embora parte da pulsão de morte permaneça
desarticulada, gerando uma tendencia gradual para a morte, a função dela com Eros
tem como consequência manifestações externas, projetando-se para fora de
maneira agressiva. Sendo assim, Eros e Tânatos não são impulsos separados, mas
interagem continuamente, embora como forças opostas.

“O ser humano não é um ser manso, amável, no máximo capaz de


defender-se se for atacado, mas é lícito atribuir à sua dotação pulsional uma
boa dose de agressividade. Em consequência disso, o próximo não é apenas
um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele a
agressão, para usá-lo sexualmente sem seu consentimento, para despojá-lo
de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo”
(Freud, 1930, p.108)

Em sua obra O Ego e o ID (1923/1996), Freud afirma que a pulsão de vida


precisa encontrar formas de manter a vida ante a tendencia à pulsão de morte, com
isso ele afirma que uma das soluções seria o desviar da pulsão de morte para fora
do organismo para não provocar a destruição interna, fazendo-a voltar-se para o
exterior onde se apresentaria, pelo menos parcialmente, em forma de destruição. Já
para a parte que permanece no ego/ superego, Freud (1923/1996) afirma que parte
poderia chegar à descarga por meio da fusão a pulsão de vida (quando aliado ao
ego) e parte poderia encontrar no superego a forca que precisa para ter uma ação
excessivamente punidora voltada ao ego, fazendo-o sentir culpa, chegando ao
julgamento de ser merecedor de sofrimento. Segundo Freud, a todo momento a
pulsão de vida e a pulsão de morte dá sinais de assumir o controle, desde ações
mais simples ou eventos determinantes.

“Uma pulsão seria um impulso inerente ao organismo vivo no sentido


de um restabelecimento de um estado anterior que este ser vivo teria
abandonado sob a influência perturbadora de forças exteriores, seria uma
espécie de elasticidade orgânica ou se preferirem a expressão da inercia na
vida orgânica” (Freud, 1920)
X

A ONIPOTENCIA DO BEBÊ
No artigo “Estágios do desenvolvimento do sentido da realidade” (Ferenczi,
1913/2011) percebe- se uma preocupação em organizar um crescente de estágios
que vai do funcionamento exclusivo do princípio do prazer a outros com maior
premência do princípio de realidade. A passagem de um estágio a outro envolve
uma maior consideração pelo mundo externo

Com relação a essa dimensão ambiental, o meio que recebe o recém-


nascido, as pessoas encarregadas de seu cuidado, que instintivamente procuram
reestabelecer condições próximas aquelas experimentadas no útero materno,
buscando manter o bebê satisfeito e protegido, tem uma especial importância pois,
mesmo assim, com todos esses esforços, o bebe encontra-se numa nova situação,
algo colocado por Ferenczi como desagradável “(...) depois da perturbação
desagradável que subitamente ocorreu, em virtude do nascimento, na situação de
satisfação que usufruía até então” (Ferenczi, 1913/1920a, p.50)

“É somente a ausência persistente da satisfação esperada, a


decepção, que leva ao abandono dessa tentativa de satisfação de modo
alucinatório. Em seu lugar, o aparelho psíquico teve de resolver-se a
apresentar o estado real do mundo externo e a procurar a modificação real
deste último. Deste modo, foi introduzido um novo princípio de atividade
psíquica: o que era representado não era mais o que era agradável, mas o
que era real mesmo que tivesse que ser desagradável.” (Freud, Formulações
sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, 1911, vol. V, p.409)

De encontro com a visão de Freud, segundo Ferenczi, o nascimento é um


momento nada agradável para a criança, realmente o bebê não se sente feliz com a
nova situação daí seu choro, onde manifesta com todas suas forças o desejo de
retornar à situação vivida até aquele momento, é aqui que os cuidadores
representados pela figura da mãe/ pai) buscam reproduzir o ambiente até então
conhecido pelo bebê: reduzindo ruídos, embalando-o, aquecendo-o, etc...

“(...)a existência tranquila no calor e na placidez do corpo materno.


Por conseguinte, o primeiro desejo da criança não pode ser outro senão o de
se reencontrar nessa situação.”(Ferenczi, S. Obras completas, Psicanalise II,
p.50)
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Desta maneira, ao encontrar-se nesta nova situação a criança percebe que


sua onipotência continua porém de forma diferente... agora ela deve “investir o que
deseja de modo alucinatório (representar)” sem ter a real noção daquilo que esta
fazendo, a criança se sente capaz de uma força mágica apenas por sentir-se capaz
de realizar todos seus desejos, é o período chamado por Ferenczi como “Período da
onipotência alucinatória mágica”, onde os cuidadores adivinham seus desejos e, ao
ser atendida, a criança dorme calma e satisfeita.
Com o passar do tempo, para ser atendida a criança vai precisar produzir
outros sinais.... sinais motores por exemplo; desta maneira precisará realizar um
trabalho, porém, sem perceber a ligação de uma coisa com outra, a criança entente
que seu gesto trouxe o objeto desejado – como se fosse mágica.
E então, com o passar do tempo, seus desejos ficando cada vez mais
complexos não serão todos atendidos como magia, e a criança aprende a se
contentar com a realização de apenas parte dos seus desejos; sendo os mais
difíceis aqueles que dependem do mundo externo, onde ainda assim, isso “não a
impede de continuar investindo”.

“Se até então o ser “onipotente” podia sentir-se uno com o universo
que lhe obedecia e seguia os seus sinais, uma discordância dolorosa vai
produzir-se pouco a pouco no seio de sua vivência.” (Ferenczi, S. Obras
completas, Psicanálise II, p.53)

Segundo Freud, a onipotência representa-se de certa forma, como um


narcisismo primário onde o narcisismo do bebê e o narcisismo remanescente dos
pais se interseccionam. Desta forma, o desenvolvimento dito “natural” do EU do
bebê consistiria exatamente em distanciar-se deste narcisismo primário e esse
distanciamento ocorre a medida que o bebê é progressivamente exposto ao mundo
externo.
Para Freud, essa incerteza com relação a satisfação dos seus desejos faz a
criança perceber que existem forças maiores que ela e, de forma gradativa, o
sentimento de onipotência vai cedendo lugar ao pleno reconhecimento do peso das
circunstâncias, onde o sentido de realidade atinge a ilusão de onipotência e chega
ao seu nível mais baixo dissolvendo-se e reconhecendo que seus desejos e
pensamentos estão condicionados, caminhando assim para a projeção normal.
XII

TRAUMA
Freud sustentava que toda histeria era traumática, na medida em que
implicava em um trauma psíquico, e de que todo fenômeno histérico era
determinado pela natureza do trauma; Ainda na década de 1980, Freud elaborou a
teoria da neurótica, segundo a qual o trauma era essencialmente de natureza sexual
e a cena traumática se baseava em uma ação real de um adulto – na maioria das
vezes uma figura paterna – que seduz uma criança. Segundo sua tese, o trauma
influenciava diretamente no surgimento das neuroses, assunto que Freud tratou
depois em Estudos sobre a histeria (1985).
Na neurótica, Freud se baseia em uma evidência clínica, que a lembrança de
traumas das crianças que são vitimas de abusos sexuais é tão penosa que todos
preferem se esquecer, recalcando-os.
No entanto em 1897 Freud constata a importância da fantasia incestuosa para
as histéricas. Neste momento Freud tenta sustentar a ideia de que o trauma era na
verdade uma cena fantasiada. Para ele, a chave das neuroses histéricas não está
mais nas seduções e sim nas fantasias de sedução pelo pai, por exemplo. Neste
momento o trauma, mesmo quando acontece na infância de determinado sujeito,
não serve mais como forma exclusiva de esclarecimento para a gênese da
constituição do sintoma histérico, mas como um elemento explicativo a mais.

“O aspecto que me escapou na solução da histeria reside na


descoberta de uma fonte diferente, da qual emerge um novo elemento da
produção do inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas,
que (...) remontam sistematicamente a coisas que as crianças entreouvem
em idade precoce e que só compreendem em uma ocasião posterior” (Carta
Freud-Filies de 06/04/1987 apud Masson, 1986, p.235)

Em 1932 Ferenczi e Freud tiveram uma divergência de opiniões com relação


ao que diz respeito ao trauma, isso porque durante o congresso de Wiesbaden,
Ferenczi apresentou seu artigo “Confusão de língua entre os adultos e a crianças”,
onde Freud mostrou-se contrariado com o amigo e discípulo, chegando a pedir que
reconsiderasse suas posições.
Neste texto, Ferenczi dá especial ênfase à questão do trauma:
“(...) nunca será demais insistir sobre a importância do traumatismo e,
em especial, do traumatismo sexual como fator patogênico (...) A objeção, a
XIII

saber, que se trataria de fantasias da própria criança, ou seja, mentiras


histéricas, perde lamentavelmente sua força, em consequência do número
considerável de pacientes, em análise, que confessam ter mantido relações
sexuais com crianças.” (FERENCZI, 1933, p.101)

Segundo Ferenczi, os casos em que se pratica uma violência sexual contra a


criança tem implícito uma diferença de línguas entre o adulto e a criança. De um dos
lados, a criança com sua ternura e do outro, o adulto com seus desejos maduros.
Neste caso, o adulto confunde a ternura infantil com amor sensual.
Por outro lado, existem os casos em que a criança pratica inocentemente um
“delito” e é repreendida grosseiramente por um adulto, a partir deste momento
apareceria na criança o sentimento de culpa, algo que seria próprio do adulto.
Tanto no primeiro exemplo como no segundo o que prevalece é uma
confusão na comunicação entre os mundos da criança e do adulto, Ferenczi dá o
nome de língua da ternura para a ilusão da onipotência lúdica infantil e língua da
paixão para o adulto que perde seus limites por sua onipotência narcísica adulta.

“O que a criança deseja, de fato, mesmo no que diz respeito as


coisas sexuais, é somente o jogo e a ternura, e não a manifestação violenta
da paixão.” (FERENCZI, 1930, p.64)

Nesse sentido, uma das problemáticas levantadas por Ferenczi é o trauma


patogênico que acontece em dois tempos: O primeiro momento de choque e em
segundo momento o desmentido.
O choque é um acontecimento que, de forma esmagadora, age sobre o
sujeito de modo que ele não pode oferecer resistência súbita e diante do desprazer
gerado, uma possibilidade de escape é oferecida pela autodestruição gerando
inclusive um estado de paralisia sensorial.
Neste momento o sentimento que sobra é a confusão, este estado de choque
também pode ser considerado como paralisia sensorial; por sorte que as origens do
choque se tornarão inacessíveis a memória “contra uma impressão que não é
percebida não há defesa possível” (FERENCZI, 1934/1992, p.113).
Após o choque, a criança está confusa e pode buscar junto a alguém de
confiança algum sentido ou apoio, nesta ocasião pode ocorrer o segundo momento
do trauma: o desmentido. Novamente aqui Ferenczi reforça sobre os estímulos
XIV

externos na criança, neste ponto é que o “comportamento dos adultos em relação a


criança que sofreu o traumatismo age diretamente no modo de ação psíquica do
trauma” (p.111).
“O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu
nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e
repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou
dos movimentos.” (Ferenczi, 1931/1992, p.79)

Neste ponto, os adultos e suas possíveis reações tornará ou não o trauma


patogênico. Se agirem de modo como se nada tivesse ocorrido, “(...) a criança cede
e deixa de poder sustentar sua própria opinião a tal respeito” (Ferenczi, 1932/1990,
p.58). Por outro lado, a criança quando acolhida, pode ter o trauma patogênico
anulado, sendo que neste momento a reação do adulto não é o desmentido.

“Tem-se mesmo a impressão de que esses choques graves são


superados sem amnesia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente
com toda a sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro, uma total
sinceridade” (Ferenczi, 1931/1992, p.79/80)

Existe ainda uma outra consequência: a de identificação com o agressor.


Segundo Ferenczi (1933/1922), criança diante de uma experiencia de violência,
considerando sua personalidade fracamente desenvolvida “reage ao brusco
desprazer, não pela defesa, mas pela identificação ansiosa e a introjeção daquele
que a ameaça e agride” (p.103). Neste momento, diante da forca e da autoridade
dos adultos, sentem-se inibidas por um medo intenso e, esse medo faz com que a
criança se submeta automaticamente a vontade do agressor, esquecendo-se de si
mesma com objetivo em preservar o adulto que a agrediu, onde é mais suportável
para a criança tornar-se, ela própria a culpada, já que perder seu objeto idealizado
neste momento equivale ao risco de aniquilamento ou despedaçamento psíquico.
Ferenczi ressalta que para ocorrer um trauma são necessários que ocorram
os dois momentos: o do choque e o do desmentido. Porém, esses acontecimentos
traumáticos permanecem inacessíveis a memória de quem os vivenciou, deixam
visíveis apenas as cicatrizes no sujeito.
XV

CONCLUSÃO

Se para a medicina o corpo funciona como uma máquina, algo que possa ser
manipulado, aberto pelo olhar da ciência, para a psicanálise o corpo é um organismo
marcado pela linguagem e pelas pulsões, ambas interligadas como em uma
engrenagem. Mesmo antes do nascimento, a criança já sente coisas e já existe para
si e para seus pais que criam expectativas e com atitudes interferirão (querendo ou
não) na sua constituição futura.

Inicialmente a criança é marcada pelos cuidados maternos e pelo desejo


parental, com o passar do tempo ela vai crescendo e tomando suas próprias
atitudes, sob esta ótica o “adoecer” aos olhos da psicanálise é diferente de aos olhos
da medicina porque não se manifesta apenas em um sintoma, mas em um corpo
marcado pela linguagem e pela pulsão (sua e de outros).

De uma forma simplista, os temas aqui abordados são, de certa maneira


distintos, e ao mesmo tempo convergentes. Por exemplo:

A pulsão de morte, tão discutida por vários pensadores, e que existe em todos
nós, pode se transformar em explosões agressivas, pode ser responsável por
sentimento de culpa, autojulgamento excessivamente desnecessário, doenças
respiratórias ou até mesmo levar a morte.

A onipotência, se excessiva e não assimilada, pode trazer reações neuróticas


como por exemplo; Tornar a pessoa supersticiosa de forma desmedida, trazer
sentimentos de inferioridade (reflexo de pacientes que fixaram-se na sua infância e
que mais tarde são impedidos de suportar qualquer frustração). Em um grau mais
sério, se a pessoa se fixar na época em que deveria renunciar a onipotência, uma
doença psíquica como a paranoia pode vir a se manifestar.

O Trauma, quando não assimilado pelo psiquismo deixa traços fixados que
mais tarde, por associação, são assimilados a outras experiências, encontros com o
real que são ressignificados enquanto trauma a posteriori, ocorrendo de maneiras
diferentes em cada sujeito, o que pode levar o individuo ao padecimento e a doença.

Segundo Ferenczi, por onde acabamos enviesando nosso trabalho, se


olharmos em separado para cada um dos temas, além de todos caminharem para
XVI

doenças psicossomáticas, todos eles se relacionam quando abordamos sobre como


uma criança foi acolhida por seus cuidadores ao passar por cada uma dessas fases,
dando especial atenção ao afeto, sendo este considerado como um antidoto em
muitos casos.

5 REFERÊNCIAS

FERENCZI, Sandor. Obras completas... (varias edições) São Paulo: Martins Fontes.
FERENCZI, Sandor (Editora Martins Fontes) “A criança mal acolhida e sua pusao de
morte”. Psicanalise IV
FERENCZI, Sandor (Editora Martins Fontes) “Confusão de língua entre os adultos e
a criança”. Psicanálise IV
FERENCZI, Sandor (Editora Martins fontes) “O desenvolvimento dos sentido de
realidade e seus estágios”. Psicanalise II
FREUD, S. Além do Principio do Prazer (1920-1923).
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914/1996)
FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915/1996)
FREUD, S. Tres Ensaios sobre a Teoria da sexualidade (1905)
FREUD, S. O ego e o ID (1923/1996)
FREUD, S. As psiconeuroses de defesa, 1893 (Ges. Schr, vol I)
FREUD, S. Estudos sobre a histeria (Freud, 1893 – 1895)
FREUD, S. Obsessoes e Fobias, 1895 (Ges. Schr, vol I)
WIKIPÉDIA, pt.m.wikipedia.org; Sigmund Freud
WIKIPEDIA, pt.m.wikipedia.org; Sandor Ferenczi

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Acadêmico: Aline Domingues Lopes

São Paulo, 19 de março de 2023

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