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Questão sexual, liberdade de amar, educa-

ção sexual, emancipação sexual da mulher, amor-


camaradagem, amor plural — palavras que as-
sustam às almas sensitivas dos monsenhores e
abades, aos moraliteístas virtuosos e cavalhei-
ros puritanos que só podem ver a verdade da
vida através do véu espesso e difuso da " m o -
r a l " , da " l e i " , dos "bons costumes" e da " b o a
i m p r e n s a " da " g e n t e honesta", piedosamente
vestida com a folha de parra do p u n d o n o r . . .
Contudo, antes de mais nada e apesar de
todos os mais pudicos pudibundos das conven-
ções — a capa que encobre o t a r t u f i s m o , a bes-
tialidade e a impureza das vestais da virtude
social — o problema humano é uma questão
sexual.
O sexo é cosmos: está na base da vida, t a n -
to no plano físico, como no plano mental e psí-
quico.
" O sexo contem todas as coisas", diz W a l t
W h i t m a n . E todas as coisas contêm a sexuali-
dade: poderíamos inverter a tese e iríamos
muito longe, fecundando no plano e s p i r i t u a l . . .
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Fomos projetados no mundo físico — pela Meu livro Amai e... não vos multipliqueis
aproximação de dois sexos, cuja dualidade esboçou o problema da população e defende a tese
transformou-se em nossa unidade. Y Drysdale: o problema humano é uma ques-
A razão de ser, que claramente vemos na tão sexual.
natureza, é a reprodução da espécie. Antes de Este novo livro estuda, em toda a sua pro-
tudo, é uma questão sexual. fundidade humana, a questão do Amor, sob o as-
Mas si, biologicamente, tudo é sexo, no cos- pecto psicológico.
mos incriado nem tudo é puramente questão Aqui, no Brasil, esses problemas fazem fe-
sexual. Todavia, si não é pansexualismo, si o diar os olhos aos puros e aos ingénuos, aos ca-
cosmos não é apenas o sexo, é um problema de valheiros sérios que exploram o próximo e às
Amor... gentis gatinhas de sacristia.
E ' um problema de Harmonia, de vibração
Essa gente se sente indignada, porque,
ondulatória... ra os parasitas e ruminantes das convenções
Porque — só para amar foi feita a vida. ociais, o amor é uma paixão romântica, a qual
E aqui estamos: para aprender a amar.. . eve ser enquadrada na tradição da família e
O homem, por se ter afastado da lei natu- os costumes seculares e cujo desenrolar deve
ral, vê a sua espécie degenerar-se. E o desejo obedecer aos ídolos da hierarquia social e
de todos é a felicidade, a força, a alegria de vi- joelhar-se diante dos símbolos vorazes: Re-
ver. E a felicidade só a consegue quem apren- ligião, Pátria, Família — até às tragédias do
der a a m a r . . . punhal, do revólver ou do veneno.
As organizações sociais se desviaram da lei
Mas, fechar os olhos para um problema,
natural.
ão é solucioná-lo. Nem êle desaparece por
A lei natural da nossa vida planetária nos so.
aparece quasi sempre como tendo por objetivo
E por este mundo afora, homens de valor
a seleção.
ebruçam-se sobre o problema dos sexos, es-
A organização social dividida em família, tudam-no sob todas as modalidades, em busca
religião, pátria ou classes — esbarra de encontro de meios para o subtrair à barbaridade das re-
à lei natural e é esse desvio, é esse choque que ligiões, à crueldade do capitalismo e à degradação
cria a escravidão, a prostituição, a guerra e a dos prostíbulos.
degenerescência humana.
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Havelock Ellis, Wells, (para que citar in- diversos livros (entre os quais se destaca, pela
terminavelmente?) reuniram na Associação In- erudição, Libertinagem e prostituição, (ver-
ternacional, para o estudo de uma nova moral dadeiro repositório de documentos para a inter-
sexual, mulheres e homens de ciência, filósofos, pretação sexuológica da história), combate, há
artistas, sociólogos contemporâneos. longos anos, por uma transformação das rela-
ções sexuais.
Reúnem-se todos os anos em Congressos e
publicam o resultado das suas investigações e O choque das ideias tem ateado polémicas
dos estudos feitos, através do mundo, em torno interessantíssimas. E uma luz nova ilumina a
do problema dos sexos. questão sexual.
A Alemanha, a França, a Inglaterra, Portu- Curiosíssimo é que, modernamente, há
gal, Holanda, Suécia e Noruega, a Argentina, a como uma transposição de valores no domínio
Espanha, a Rússia publicam livros e revistas e da chamada moral.
jornais focalizando o problema do Amor. O que até hoje era imoral, amoral ou desho-
Dr. Juan Lazarte e Júlio Barcos, na Argen- nesto, à luz da ciência e das especulações socio-
tina; Dr. Maranon, na Espanha; Kollontai e lógicas mais recentes, nos aparece como natu-
Nemilov, na Rússia; Haverlock Ellis, Jaime Bra- ral ou como indício de superioridade indiscu-
sil, Valentin Camp, E . Armand, Meidel-Hess — tível. . .
seria interminável a lista das obras mais recen- Carpenter, C. Spies, Havelock Ellis, Tar-
tes e mais momentosas em torno do problema nowsky, E . Armand, Han Ryner, Freud, Wol-
dos sexos. E enumerar ao correr da pena, barst, André Gide, trouxeram, cada qual, e
é sempre cometer a falta de esquecer nomes muitos outros, uma originalidade filosófica, cien-
ilustres. tífica, sociológica ao problema dos sexos.
Han Ryner, esse procursor genial, na Fran-
ça, publica O Amor Plural e Prcnez-moi tous!, Os pioneiros se defrontam e a história da
evolução humana é iluminada por outro prisma,
livros que alcançaram enorme repercussão nos
até então calculadamente obscurecido pelo mo-
meios cultos de intelectuais livres e proletários
raliteísmo farisaico dos que se locupletam atra-
concientes — pela originalidade com que focali-
vés da ignorância humana.
zam o problema dos sexos no porvir.
Na França, um publicista de valor, Emile E . Armand, por exemplo, na sua interpreta-
Armand, na admirável revista l'en dehorsw em ção sexualista da história, nos diz:


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"Sabemos de uma história oficial, escrita Para Emile Gante, "a história da Prosti-
para uso do público que tudo engole, na qual se tuição é a história da Humanidade considerada
explicam todos os acontecimentos passando-os •»i »l» o seu aspecto mais íntimo, e, por conseguin-
pela peneira das virtudes que a Igreja e o Estado i i , mais interessante."
querem que o povo respeite. I >aí a conclusão neo-maltusiana de Drysda-
Há, porém, outra (a história verdadeira) Ir, aplicada à tese geral: o problema humano c
que se encontra à margem das virtudes religio- wihi (jiiestão sexual e que pode servir para a con-
sas ou laicas, e, nessa outra história, a sexuali- (lllsão histórico-sociológica de Armand:
dade representa papel de primeira ordem. "Para nós, além de tudo, na base da histó-
ii.i intima da unidade humana, seja qual for a
Como separar, por exemplo, o século de Pé- •IInação social que ocupa, por detrás de sua fa-
ricles, das Aspásias, das Frinéias, do lado da po- chada e de seu verniz de moralidade e de virtu-
litica e da arte? Como separar a história de de, encontra-se o apetite do gozo sentimental-
Roma de Aca — Laurência, a prostituta que re- Rrxual, e não somente o instinto genésico — um
colhera e alimentara os fundadores da cidade, apetite que, por outra parte, pode ser utilizado
do rapto das Sabinas? Como separar Cleópa- pura fins sociais melhores que as formas sociais
tra da fundação do Império Romano? Como Atuais e que nos querem obrigar a nos confor-
separar o cisma da igreja anglicana do tempe- marmos com a sua tirania."
ramento extrassensual de Henrique V I I I ? Como No correr deste livro — Han Ryner e o Amor
separar a revogação do Édito de Nantes da união Plural — estudarei a nova orientação amoro-
de Luiz X I V com a senhora de Maintenon? III e sexual, expondo o meu ponto de vista indivi-
Como separar a Pompadour da política colo- dual. E veremos defrontar-se o pensamento de
nial e europeia de Luiz X V ? Como separar a Han Ryner e o de Armand, cada qual defenden-
Santa Aliança da influência que sobre o impe- do um aspecto interessante do amor plural.
rador Alexandre tivera a senhora de Krude-
E nem por isso se afastam com hostilidade
ner? Como isolar a guerra de 1870 da impe-
intransigente os contendores. Armand cita,
ratriz Eugênia? Como separar Rasputin da
por vezes, nos seus ensaios, o pensamento pro-
queda da dinastia dos Romanov?
fundo de Han Ryner, como, por exemplo, aqui:
Cito somente uma página dos acontecimen- "Aqueles que consideram o ato do amor como
tos históricos e podia encher cem páginas. coisa vergonhosa, ah! pobres, como são dignos
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HAN RYNER E O AMOR PLURAL 19

de lástima! E u os vejo corar envergonhados Com a aridez científica da psicanálise, ciên-


por terem vindo ao mundo, virando as costas, cia eminentemente individualista, céptica em
com repugnância, ao seu pai e à sua m ã e . . . " relação às coletividades, defensora incondicio-
Também Han Ryner, discordando de Ar- nal <la liberdade individual, casa-se, admiravel-
mand, faz propaganda da camaradagem amo- mente, o lirismo filosófico de Han Ryner, cépti-
rosa da cooperativa dos compagiwns de Ven co em relação às organizações sociais, pessimis-
dehors... ta quanto a todas as tentativas de associacionis-
Ambos sentem que muitos são os cami- ino dos espíritos, mas, pessimista desse pessi-
nhos... para substituir, no subconciente indivi- mismo que semeia a alegria de viver, porque
dual, as "verdades mortas" do mundo burguês descobre o caminho para a libertação desejada
agonizante, pelas "verdades vitais" das leis r Freud: a deserção social.
A psicanálise e a filosofia ryneriana se har-
biológicas.
monizam e se completam na defesa integral do
Por outro lado, a psicanálise nada promete
indivíduo, pela razão, — contra toda e qualquer
à humanidade, porque é ciência individual, só organização social e contra todos os prejuízos e
diz respeito ao indivíduo isoladamente. E há convenções esgueirados sorrateiramente no sub-
uma psicanálise para cada a l m a . . . conciente individual.
E ' precisamente uma ciência individual,
nascida da interpretação dos erros das "organi- Quem pudesse aliar, vivendo-as, a ciência
de Freud à sabedoria de Han Ryner, teria nas
zações" sociais.
mãos a chave da v i d a . . .
E ' uma ciência de aridez trágica para os
Freud sabe que "as energias da alma são
que pretendem "organizar" a coletividade den- deslocáveis". Sabe que "no subconciente deve
tro de normas científicas... A psicanálise pro- existir uma força ativa que metamorfoseia os
vou e afirma que toda tentativa de "organiza- sentimentos detidos em seu curso natural, e os
ção" social é anti-biológica e a humanidade há encaminha para outras manifestações psíquicas
de pagar cada vez mais caro os crimes barba- ou físicas".
res perpetrados desse modo contra a liberdade Porque, a sexualidade existe no plano físi-
individual. , mental e psíquico. Não é demais repetir
A psicanálise é justamente a análise do pro- que o universo é sexual. E que a sexualidade
testo biológico contra os detetives sociais. o quer dizer órgãos sexuais.
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Nietzsche tem razão: "o grau e a nature-


za da sexualidade de um homem se manifestam
até nos cumes mais elevados de seu espírito".
Freud e Han Ryner, caminhando por estra-
das convergentes — ciência pura e sabedoria —
ensinaram o respeito à dignidade humana mani-
festada pelo direito à liberdade individual.
Freud e Han Ryner, analisando os abismos l. a Parte
profundos da alma humana apontaram as orga-
nizações sociais como a fonte de origem de to-
dos os males, de todos os crimes de lesa-felici-
dade humana.
Freud e Han Ryner ensinaram, científica Han R y n e r e O A m o r P l u r a l
e filosoficamente, a necessidade indispensável
da tolerância incondicional e do respeito inte-
gral às fraquezas humanas.
O Amor Plural e Prcnez-moi tous! são dois
livros profundos de psicanálise, ou melhor: cons-
tituem a psicossíntese do lirismo filosófico "do
sorriso da dúvida e da música dos sonhos"...
ciência e sabedoria, rir e beber: os símbolos ra-
belaisianos.
ne demande ce qu'il faut faire:
il faut vouloir le plus beau geste!

dans la joie ou dans la détresse:


il faut oser le plus beau geste!

Fils de la terre, sois ton sculpteur;


pétris 1'argilc de la matière.
pitris ta pensce et ton cceur:
fais de ta vie une ocuvre altière,
qu'cllc soit le tcmple lumineux.
dont un dieu jaillit cn splendcur!

BANVILLE D'HOSTEL
O filósofo do Amor e da sabedoria do sorriso, pen-
Iftdor profundo, homem livre, incorruptível e doce, in-
idnalista sereno como o estóico, imperturbável como
um cínico, humorista delicioso e príncipe dos conteurs,
• n I/Amour Plural, romance de hoje e de amanhã, es-
hlou as alturas geniais da Arte criadora, que a concep-
çfio ryneriana do Amor Plural é única na sua bondade
c, nté aqui, nem uma concepção, nem uma filosofia foi
I.IM alto, nem uma pairou por sobre as misérias e as
paixões com essa piedade estóica do mimetismo amoro-
no — para iluminar um raio de luar em cada coração.
Só a beleza simples de um Cristo, naquela admirá-
vel passagem: Mulher, os teus pecados estão perdoados
por ti mesma, porque muito amaste...
Amor Plural é um "sorriso de arco-iris", deliciosa-
mente irónico, um dardo florido atirado à face dos mo-
nliteístas da monogamia.
O grande pensador e artista francês não escreveu
um livro de considerações no género de Amor e Matri-
mónio e as suas conclusões se afastam das conclusões de
Eilen Key.
«Escreveu belíssimas páginas de verdades, envoltas no
humorismo risonho do seu estilo único, fresco, delicioso
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como um banho nágua corrente, profusa e cristalina, em roiiliii i i fraqueza de rins do macho por ela escolhido;
dia tropical. », o que repudiou não sabe conversar; e ela não en-
Logo nos primeiros capítulos, Han Ryner re- iit.i. em parte alguma, o meio de satisfazer os seus
•rtiiidos glutões e sua alma vazia.
constitue
"A<livinha-se a que sexo pertence o autor do conto,
mi mulher teria feito permanecer no Paraíso perdido
A Lenda do Paraíso. ii verdadeiro homem. E somos nós, macacos mal des-
|ilil«»s, peito ainda cabeludo, que teríamos arrastado à falta,
Fantasia um conto lido não sabe onde: "O livro men- ii dengraçada, a muito confiante Eva".
tiu: Deus não fez a sovinice de dar apenas uma mulher
Bela página de profunda psicologia humana. São
a Adão. Noaso primeiro pai. no Jardim das ;Delícias,
||o radicais as diferenças entre os dois sexos, e, à me-
possuía seu pequeno harém. A serpente tentou, uma
• I M I . I <|ue se civilizam, acentuam-se tanto mais as diver-
após outra, cada qual das esposas do homem: nem uma
girias que estamos em frente de "duas raças sociais".
sucumbiu.
A imaginação riquíssima de Han Ryner dando-nos
"Uma macaca, porém, tendo experimentado do fruto
m luiicepção edênica da nossa mãe-macaca, nos faz lem-
da árvore da ciência, i>erdeu seus pêlos, espantou-se, re-
brar a passagem bíblica — luta entre os anjos e conse-
gozijou-se de se ver nua e exercitou assaz a sua sagacida-
quente queda do Paraíso, e as lendas religiosas — os f i -
de para seduzir o homem até o pecado da curiosidade. As
lhos dos deuses seduzidos pelas filhas dos homens, a con-
mulheres inocentes ficaram no Eden. Imortalmente
Mpçfto orientalista do povoamento da Atlântida, os deuses
jovens e belas, esperam lá, com suas filhas, hurís paradi-
rui'los na ilusão, os Assuras seduzidos por Maya, os
síacas, os melhores, dentre nós. Filhos híbridos de duas
filhos do Sol e as filhas da Lua, — a união de dois seres
espécies, almas despedaçadas, instintos pouco seguros, in-
diferentes e vindos, cada qual, de uma evolução diversa,
teligências incertas, sentimentos sem fraternidade, somos
#m ontrando-se em situação absolutamente oposta, em es-
descendentes de Adão e da macaca.
Hfíos de desenvolvimento em ciclos de encruzilhadas
" A luta é principalmente profunda entre o homem e
divergentes.
sua fêmea, animais muito diferentes e, por isso, cada
qual recrimina ao outro como o responsável das suas Diferença apenas fisiológica? Características anató-
desgraças. A nossa união é um combate tanto quanto micas desviadas pelo curso forçado da vida social?
um beijo. O homem sente surdamente que não possue Não haverá profundo antagonismo, entre as duas
a sua verdadeira fêmea. A macaca desnudada irrita-se t nnentes de vida bi-cósmica?
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Pretendemos trazer o amor para a terra... e a luta Ale aonde nos pode levar a civilização, a ciência a ser-
entre o instinto animal e os sonhos nas alturas — eis a • I " i-iogresso material!
tragédia. E mais: e a tragédia biológica da mulher ? E o N.io! Positivamente não pensa assim o nosso filó-
homem que não quer ver essa tragédia ?... ln, tão cheio de sonhos, tão amorosamente terno e ca-
E quando Han Ryner diz que ficaram no Éden as Mulioo (« humano.
mulheres inocentes, esperando, "imortalmente jovens e Ouanto à fecundação artificial — porque não deixar
belas, com suas filhas, as huris paradisíacas, os melhores outros processos para uma linha de evolução mais
de entre nós" — como é profundo o pensamento do f i - llu •' — mulheres aladas, alimentando-se de perfumes e
lósofo.
E' um voo metafísico, para além do tempo e para além ...
h" i i . formas saídas do pensamento criador, consórcio de
I.H

iir. l u m i n o s a s . . .
do espaço, ondulando no humorismo e na fantasia. Sim, que não estamos no mundo descrito em Les Na~
Teria pensado na ideia utópica de Remy de Gour- VigHliurs de VInfini, no qual o nascimento de uma criança
mont, na vitória do feminismo integral, absoluto ou em um poema e não uma dilaceração das entranhas mater-

Havelock Ellis: a mulher é mais criança, o homem é mais IINU, uma "catástrofe fisiológica". Envolvida em um halo

macaco... ou ainda em Ives Delage: na partenogênese dr hi/ que, condensando-se por sobre o peito materno, se
IMIU.I vapor luminoso, a mãe suspende à altura dos om-
humana, que o cientista já aceitava?
liroH uma concha, espécie de flor pálida, onde a criança
Quem sabe a sua fina ironia penetrou toda a fantasia
lulcnsa-se e toma a forma da sua espécie, nutrindo-se, a
de Remy de Gourmont, idealizando uma sociedade colmeia
princípio, de nutrição invisível, emanada de sua mãe, ema-
com o predomínio da mulher-mãe, e, de tempos em tem-
nla talvez do Amor.
pos, os homens superiores, tipos selecionados e geniais vin-
hso é qualquer coisa de divino, de alado, de impon-
do fecundar as eleitas, espécimes de estirpe?
Étrável... Feliz a imaginação de Rosny-Ainé.
E mais repugnante, mais positivamente prático, des- Mas, a nossa matéria é por demais densa, e, si a linha
provido de poesia, de emoção, si a ciência vier com o seu humana de evolução no planeta em que habitamos não nos
contingente desagradável de processos mecânicos para a permite o direito a processos mais delicados de reprodu-
fecundação artificial. ção, cm harmonia com as leis cósmicas de atmosferas me-
Não! Han Ryner não sonha essa coisa horrível. Sou no-» carregadas, si o nosso pensamento, os nossos sonhos
eu quem leva o pensamento do Artista a essa fantasia ab- liados contrastam, de muito, com o peso da nossa ma-
surda. téria, porque inventar mais um meio de privar a mulher
E que sociedade monótona! • Ir viver, humanamente, a sua vida integral de ser huma-
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no? Já lhe não bastam a tragédia biológica do sexo e a M nanda-Armagnac — a oculista pretensiosa, cujo
ÉJMiiln uondicional queria impor, certa da sua indiscu-
t ragédia social ? .
llv.l I I | M I I . M idade, exclusivista em amor como exclusi-
Como me afastei da ideia do filósofo!
ííalM na s u a pretensa superioridade mental de gnóstica —
Mas, o livro desse Artista do pensamento nos faz
é Um tipo apanhado admiravelmente e encontrado fàcil-
pensar. Hirnle n o s meios espiritualistas. A verdade está fechada
i mãos eleitas. Só ela possue a chave do enigma
•l> • i itência. Só ela decifra (!) o problema do ser e do
A Psicologia Feminina. d< i m o . Ela também é "o caminho, a verdade e a vida"...
A Condessa de Noisy talvez faça lembrar a fidalguia
Ninguém conhece mais profundamente e ninguém
ti|;u da nossa poetisa Rosalina...
traçou mais elegantemente e com tanta graça e tanto equi-
líbrio a psicologia feminina. lima — a que cura hérnias pela imposição das mãos,
Os seus tipos movimentam-se cheios de vida e vive- pcil virificar-se nos meios espíritas.
mos, com todos eles, esse momento de leitura irresistível. Moísia — a filóloga, me dá a ideia de uma estudante
As heroínas do romance (que poder formidável de 1 dncito, hoje advogada, e que conheci nos tempos que não
interpretar a alma feminina, que critica serena e que doce iiiiis hão de voltar, quando frequentei uma associação fe-
ironia!) são tipos adoráveis na diversidade do seu tem- minina.
j>eramento. das suas manias, das suas pretensões — sem- I ' bem uma amostra do pedantismo, ò outrance, da
l o l i . v literária, da parkipatice dos que já estão em caminho
pre as mesmas almas femininas primitivas, no princípio
d e s s . i interessante profissão.
da sua linha de evolução, porém, adornadas de todos os
prejuízos sociais: — a fé do carvoeiro, a pretensão lite- Esse mesmo tipo eu o vi, sob outro aspecto estudado
rária e filológica, o orgulho da fidalguia, a certeza da afir- tlii Han Ryner, na desenvoltura de uma "emancipada"...
mação no campo da metafísica, o dogmatismo, a certeza da Só Maria Luíza é única, indivíduo de certos meios
superioridade mental, o mimetismo em amor ou, ao inverso, (lllritários dos grandes centros, com alguns exageros dos
o espírito de autoridade e exclusivismo. que vão abrindo caminho para uma moral natural, entre-
tanto, o tipo admirável da precursora que divisou algo, ao
São páginas de psicologia feminina e páginas de crí-
loi^e.
tica social nas quais Han Ryner vai até aonde é possível
ir o estilete agudo de quem penetra bem no fundo da con- Euridice e Denise — as mulheres delicadas, meigas,
ciência humana para esverrumar as causas do mal-estar amorosas, plasmadas pelos sonhos e pelas ideias do bem-
ainado: mimetismo amoroso.
do indivíduo no seio da sociedade.
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Teresa — o tipo comum, razoável, sensato, pretestan- jêlhHjuéêS, preciosas, dogmáticas, enamoradas de si mes-
do um ano de diferença de idades, procurando o conforto, HtM
o luxo, o casamento de conveniência económico — ou so- I ni <mtros livros seus, em Le Drame d'être deux, por
cial, caso único em que a idade não tem importância. i p l " . encontramos certo nome respeitável de mulher,
Sente-se que Han Ryner, como todo grande artista, re- (•«Mliloiiimo d/ uma grande escritora francesa — Jacques
signa-se estoicamente, por não ver realizar-se o Amor wl nome que amamos profundamente, em home-
profundo, esse imenso Amor, essa "afinidade eletiva" de III .10 filósofo e em homenagem à própria romancista,
dois seres superiores, a compreensão mútua de duas cria- nome que resume os sentimentos amorosos de Han Ryner.
turas em igualdade de condições sentimentais ou afetivas finques Frchel foi a sua companheira durante 19
e mentais. Sinão, vejamos: mio*, c cm todos os livros do artista e do filosofo há refe-
itiu mi .iliamente significativas à beleza moral e ao talento
"Nem uma mulher, talvez, compreenderá jamais ii.i bem-amada.
meu individualismo e meu respeito à sua liberdade. As me- M>.. si Han Ryner fala dela em as Viagens de Psy-
lhores, Euridice e Denise, matérias ricas e plásticas, mode- ore, em Parábolas Cínicas, em outros de seus livros,
lavam-se pelo bem-amado. As outras queriam modelar por HAII II quis, certamente, num romance de humorismo e
si mesmas ao bem-amado. A superficial Aloísia se conten- llinihi . no qual a sabedoria pode ser comparável à
tava em me submeter à gramática e ao estilo de Aloísia,
para cuja estreiteza isso parecia, necessariamente, a sintaxe lluridicef... E, analisada a psicologia feminina,
absoluta e a escrita absoluta. Miranda-Armagnac me ar- • IMK.IIIIOSà evidência de que as sociedades são forma-
rastava, com todo o seu possível esforço, para a loucura dr ,
mística, a qual constituía toda a sua monstruosa vida in-
terior.
"Irma também sentia, si ouso dizer, a divisa conciente IMIIIN grandes raças sociais.
ou inconciente da maior parte das mulheres: "Quem me
ama me segue! Quem me ama crê no que eu creio". Desgraçadamente, sentimos que essas diferenças pro-
Sente-se que o Artista faz a psicologia de alguns t i - luinlr. e as exigências mútuas nos afastam, positivamente,
pos de mulheres, para dizer que ainda não chegámos ao In outro.
limiar do amor. l£ c verdade a conclusão de Tito Lívio de Castro:
"~" E' uma observação em torno de criaturas que se crêem "Nfto são, homem e mulher, companheiros humanos, são
superiores e que são vulgares como toda gente, às vezes 1 s que se exploram, e, nessas condições, as im-
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periosas necessidades do homem asseguram à mulher uma Continua dando conta ao homem de todos os 9CÚM
vida sem luta, isto é, sem progresso". pa .< is e até do seu salário. E' outra espécie de exploração.
Com a desordem louca do progresso material, a luta E' o caftismo em família.. .
entre os dois sexos, luta de competição, tende a se multi- São as mesmas escravas brancas da sagrada institui-
plicar em formas ainda mais acentuadas, e as diferença-, ção e da sociedade.
entre as duas metades do género humano cada vez mais E' a razão por que o verdadeiro amor, o amor-misté-
hão de separá-los, dolorosamente, pela incompreensão rio, o amor-"atinidade eletiva" só se verifica mui rara-
mútua. mente, entre indivíduos de grande elevação.
Até aqui, temos vivido a civilização uni-sexual; a mu- Esse encontro é quasi um milagre; escapa à com-
lher não passou de espectador no cenário da vida. Agora, preensão humana.
as divergências aumentam com a civilização standardizada. E convém não deixar de estabelecer a diferença entre
e um caos, a concorrência, tende a cavar mais o abismo os conflitos sexuais, o amor fisiológico apenas, o amor-
entre o homem e a mulher. higiene, o amor-desejo sexual e o amor-sentimento, o amor
— essa fatalidade, esse mistério profundo e que a nossa
Isso toma as proporções de verdadeira calamidade, si
mentalidade ainda não explica, o Amor que tem as suas
não houver entendimento entre os dois companheiros, am-
raízes nas Leis não escritas, Amor que é a fusão de duas
bos dentro das contingências da vida e atrelados um ao
almas no magnetismo das correntes de "afinidades eleti-
outro. E só as criaturas superiores, os que viveram e an-
vas" espirituais, Amor — sistema planetário cuja órbita
daram pelas vias dolorosas, tentam essa harmonia difícil,
talvez se perca nos primórdios de todas as eras...
que depende de esforço, de vida interior, de desejo intenso
de progresso moral, de muito e profundo amor. Não há superioridade de um sexo ou inferioridade do
outro. Há seres sensivelmente diversos e que deveriam se
A mulher desperta, para a luta económica acirrada e,
esforçar muito para procurar comp!etar-se pela compreen-
para os torneios da cultura intelectual: e a reivindicação são mútua.
dos seus direitos chocam-se com o autoritarismo mascu-
Nem mesmo parecemos animais da mesma espécie, na
lino ancestral. Lutas económicas, lutas de competições,
diversidade dos temperamentos, na irritabilidade provocada
lutas de ideias, lutas de direitos humanos individuais.
de um para outro, dentro ou fora do amor. No fundo, há
E o homem continua a querer entravar-lhe os movi- verdadeira revanche, perseguição aberta, luta contínua en-
mentos e, portanto, a cercear-lhe o progresso. A mulher tre os dois sexos, que se querem, apesar de tudo.
só tem o direito de sair, de se locomover — si vai traba- Daí o sadismo, daí o masoquismo — o lado doentio
lhar, ganhar dinheiro. do problema, morbidez que tanto se refere ao corpo como
36 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 37
se pode dirigir para o sofrimento moral provocado de tanto para dar, como para receber carícias: exige tudo para
outrem, ou para fazer sofrer. t i e está inteiramente voltada para a sua ternura única.
D'Annunzio é o tipo selecionado do sádico moral. Os homens sensíveis, os que têm muito da natureza
Que o diga a Duse. feminina, supõem amar assim, supõem-se exclusivistas to-
Que o digam todas as suas vítimas femininas. talmente, porém, o são apenas para^eceber: são cavaleiros
E' mais comum do que o imaginamos essa espécie de andantes e desejam não uma só castelã à sua espera, inde-
sadismo moral no homem. finidamente, mas, algumas castelãs preocupadas unicamente
E, com a civilização industrial, trazendo a emancipa- tom a sua volta e as suas trovas.
ção económica da mullur, a luta de dominismo do homem Donjuanismo espiritual rcquintadamente perverso.
se vai transformando nesse sadismo satânico que procura, O homem, "passados os primeiros beijos, não é mais
por todos os meios e formas, destruir o arcabouço da ener- protegido pelo seu amor, contra o desejo vagabundo".
gia feminina, através do sofrimento moral.
E \e fato, uma observação de cada instante, e, quem
Luta nova, para a qual a mulher não está preparada,
sabe quanta razão tem a natureza, nas suas leis da multi-
e muito mais trágica.
plicação da espécie, fazendo tão cruel, tão despedaçadora
E' o espírito de autoridade no fundo da natureza
diferença?
humana. E o hom.m o exerce sobre o outro homem e por
sobre a sua companheira indefesa. Exercia-o pela força Quem sabe, também, não c apenas questão de hábito,
bruta; civilizando-se, exercê-lo-á pelo maquiavelismo me- de sugestão, de rotina, educação, concepção exclusivista
fistofélico do sadismo moral. do Amor ou mesmo das relações sexuais, transmitida às
Quando chegaremos, homens e mulheres, a sufocar gerações, através dos séculos?
esse espírito de autoridade, no desejo santo da "vontade O fato é que, daí, advém a luta terrível, e as maiores
de harmonia"? desilusões femininas nascem dessa lancinante diferença de
A conclusão a que chegamos é a de Han Ryner: amar.
"Que absurda tirania exigir que a mulher se modele O homem conseguiu a "fidelidade feminina" através
pela fantasia do homem ou o homem pelo capricho femi- da força bruta, da exigência, da ferocidade bestial.
nino. Aceitar a diversidade como irredutível e chegar, por Mas, a poliandria e a poligamia é que são naturais.
um supremo esforço feliz, a amá-la, a se regozijar por ela, O homem continua polígamo. A mulher foi forçada à " f i -
eis o único caminho e a salvação". delidade" ao senhor e possuidor único, pelas leis, pelos
Uma das diferenças primordiais — "a mais espinhosa costumes, pela força da selvajaria do macho, pela razão
e lacerante" — é que, no Amor, a mulher é exclusivista económica, pela maternidade.
38 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 39

Tanto um quanto o outro são exigentes e exclusivistas E' profundo esse pensador-artista, esse visionário de
e ciumentos. O fato se verifica alternativamente. Wilmles estranhas, cuja intuição anda mergulhada no vasto
O maior escolho está justamente no exclusivismo do HlMk) cósmico da mais alta espiritualidade, colhendo so-
homem — o matador de mulheres na defesa sagrada da Hlinn nas alturas e transmitindo-os a nós outros, nas suas
honra. |wiiihiilas encantadoras, decifrando-nos o sentido desse
Como resolver o problema psicológico da tragédia de "|i|iréd<> aberto" á sua intuição maravilhosa, à sua cultura
ser dois c o problema social do instinto exclusivista da pro- |MHlriilosa e disfarçada na delicadeza simples do seu estilo
priedade privada da carne humana, dentro do que denomi- # MN delicadeza complexa das suas fábulas, na deliciosa
nam Amor? IfTMnu da sua pena rica de humorismo,
Será possível, no correr dos tempos e mediante uma f E ' estranho esse pessimismo que ensina a amar a vida
educação ao inverso, será possível conseguir o abranda- nascer em nós a alegria de viver.
mento ao menos, ir mais longe, o desaparecimento do ex- E Han Ryner conhece e analisa profundamente
clusivismo em amor, em ambos os sexos, olhado o amor
sob qualquer dos seus aspectos, cada qual satisfazendo,
como entender, os seus sentimentos ou as suas experiên- 1 » I 'rama de ser dois.
cias amorosas?
E' o sonho desse "romance de hoje c de amanhã", Nesse romance, Han Ryner mostra, a nós mulheres,
em que o Autor, num ponto de vista largo, desdobrado, H» diferenças primordiais entre o amor para cada um dos
nos mostra tipos evolucionados realizando a mais com- •Mos e ensina os homens a amar a todas as mulheres,
pleta liberdade de vida amorosa, às claras, sem subterfú- HM que elas têm de puro e individual.
gios, sem hipocrisia, sem mentiras convencionais, ao lado K' um ensaio de entendimento...
um do outro, lealmente, amorosamente, ambos cheios de Tara as mulheres, raciocina:
desejo que o companheiro realize a mais ampla liberdade "Todas as mulheres têm ciúme?
de sentimentos afetivos, a mais absoluta alegria de viver Terei encontrado muitas que não exijam nem a men-
integralmente. iiin ilo amor único nem o primeiro lugar no coração?
E' ousado o sonho, e Han Ryner o desfralda de ma- "Quando pretendo que todos os lugares são iguais,
neira atraente e convincente, e cada uma das suas páginas •I". todo amor verdadeiro é um grande amor, que êle se en-
é sonora e maliciosa risada de quem conhece a psicologia |tl ii .ma pelo que a amada tem de pessoal, de particular,
feminina na mais deliciosa intimidade e de quem sabe. ex- 1 Único, quando noto que certas mães amam igualmente
trai todo o perfume da vida. " o s seus filhos; quando explico que cada um de nós
40 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 41

ama a muitos poetas (e, poetas ou mulheres, preferimos, "Querer separar a cabeça e o coração — é querer des-
enquanto o não relemos, o que estamos lendo; embriaga- harmonizar-se.
mo-nos com o beijo atual até não mais pensar nos outros); " E não é a cabeça que cede. Ela vê mais longe. Aliás,
quando louvo a glória do presente, sua luz vitoriosa e sinto aqui, o que denominamos o coração, não é mais do que
que sua profundidade infinita vale a distância de uma tradição. Aqueles que conseguem ouvir verdadeiramente
eternidade; parecc-me que nem uma quer ou pode com- seu coração, recolhem as mesmas palavras que recolheriam
preender". de sua razão.
E essa incompreensão perder-se-á na noite dos tem- O que se despedaça dentro de si mesmo ainda não é
pos, na própria natureza feminina ou é fruto da educação, ele próprio".
das tradições, dos costumes, da rotina, do instinto da pro-
E um desses dilacerados na luta titânica, na tragédia
priedade privada, da monogamia indissolúvel? interior, o definiu admiravelmente na seguinte frase pro-
Mas, será que o homem o compreende melhor ? funda e sincera: "Eu tinha todas as ideias no cérebro, po-
O homem só compreende que é livre, que tem direitos rém, não as tinha no coração".. .
outorgados pelo sexo, que pode amar muitas vezes. Mas,
Para os erros dos homens, diz Han Ryner em Le Dra-
a sua compreensão está fechada para a mulher que lhe
me d'être deux: "A união não se realizará com toda a
toca mais de perto o coração.
beleza e toda a plenitude possíveis sinão quando delibera-
Os mais adiantados, os mais cultos, os que se julgam
damente excetuar-se o pensamento.
mais libertos dos preconceitos sociais, os "homens de ideias
avançadas", também esses conservam o espírito de autori- "O que vos engana, querida Amiga, (diz êle a Aurel)
dade e exclusivismo por sobre a presa feminina. é que os homms. esses miseráveis, esqueceram, até aqui, o
E' o mesmo Han Ryner que m'o diz em uma carta r\c acordo dos pensamentos, por desprezo para com a mulher.
14 de maio de 1931 : ""Ensinemo-lhes a renúncia a tal acordo, pelo respeito
" A h ! sim; é difícil, mesmo aos homens de boa von- ao indivíduo, que deve florescer na mulher como no ho-
tade, fazer passar uma verdade da razão para o coração mem".
e para a ação: os prejuízos e a rotina dos séculos nos sub- E acrescenta o pensamento profundo:
jugam, ainda quando já vimos. " . . . uma tentativa de fraternidade, desde que é feita
E, contudo, o esforço de fazer com a luz do espírito em torno de um dogma ou de uma fórmula, suscita, inevi-
a flama do coração e o motor da ação, é a única coisa que tavelmente, guerras inexpiáveis. Não repitamos, no amor,
dá sabor à vida. A teoria não tem valor sinão quando as falhas abomináveis das religiões positivas e das revo-
arrasta à prática. luções".
42 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 43

Admirável lição em cada uma dessas palavras. Aqui (IN I tossivel loucura ou desespero de um ser mutilado pela
é o drama de ser dois, o esforço ingente para a compreen- |M*I «Li da fé, resolve simular uma prece ungida de piedade,
são mútua, para o respeito à individualidade, tanto quanto |ue fala alto o que deveria impressionar ao inconciente
possível, desde que outra individualidade não queira des- frfeptivo e sugestionado ante o quasi milagre, e, de novo,
virtuar ou submeter a nossa individualidade. E' o acordo |H< tenra trazer à loucura do seu fanatismo uma criatura
entre dois temperamentos diversos, entre duas vontades, i|lie não poderia viver sem essa loucura inofensiva e
entre dois sentimentos e duas ideias, o amor a tudo que niiinsa.
vem do outro, incondicional, ilimitado. Isso é ser grande, é saber penetrar no coração e na
E não pretender fazer à nossa semelhança aquele ou ia de outrem, já é o "Conhece-te a ti mesmo para apren-
aquela a quem amamos. hres a amar". Porque Han Ryner sente que muitos são
E, no capítulo admiravelmente humano, em que trata • ' caminhos...
de Irma, a espírita, nos dá exemplo desse quasi mimetismo,
*
desse escafandrismo amoroso das criaturas que primeiro
* * •
se realizaram para poder penetrar na realização de ou-
trem.
Como esse céptico genial, esse sonhador de muitos so- Finda a série feminina de 6 ou 7 tipos, destacando-se
os perfis mais delicados de Euridice e Denise, vem Maria-
nhos, esse metafísico de poemas, livre de quaisquer mu-
I .Mi/a — esboço vago, inquieto de um tipo de mulher pre-
lheres sorri para a fé e as lendas de Irma!
nirsora, a viver uma ética de indivíduo livre.
Que bondade, porém, que amorosa ironia no seu doce
Orfeu encontrou-a em uma festa de arte na sala Ray-
sorriso!
mond Duncan, o irmão de. Isadora, o célebre Duncan que
"Não gosto de contradizer os seres ternos e susceptí-
toda Paris artística e intelectual conhece c que se veste à
veis". grega, vivendo à maneira dos gregos, esse neo-parisiense
Só por tais processos é que conseguimos penetrar no original, individual como a célebre artista que dansava a
coração de outrem. •tia vida trágica.
Que grandeza de alma, que imensa generosidade, que Maria Luíza, da escola de Raymond, trazia a túnica
Sentimento de ecletismo neo-estóico, que tolerância evan- dos gregos e os pés em sandálias, aliás como diversos audi-
gélica, que delicada a cena em que, céptico, chega a fingir tores e auditrizes da sala de conferências.
uma súbita conversão para, de novo, trazer à fé uma cria- — "Maria Luíza — a pluralista", apresentou-se.
tura alucinada pela perda de tudo quanto constituía a ra- " A Condessa fez, com os braços, um gesto de espanto.
zão de ser de sua vida interior. Para evitar a catástrofe
44 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 45

— "Pluralista? exclamou. Amais a muitos homens ao linda -Mi talvez jamais terão a força de se desembaraçar.
Nfto doentes". ( 1 )
mesmo tempo?
— "Certamente. Tem-se grande o coração. Mas, geralmente, querem que renunciemos ao essen-
I (kl de nós mesmos — que é a nossa própria liberdade.
— "Sois a primeira que encontro.
E é Han Ryner quem acrescenta: "Somos doces para
— " A primeira que confessa, sim, senhora.
• •> doentes, jKirém, não consentimos no contágio". ( 1 )
— "E* tão pouco feminino...
Não consentir no contágio e não renunciar ao essen-
— "Confessar?..."
Seguem-se as cartas de Maria Luíza a Orfeu, lindas • i.d d • nós mesmos sem fazer sofrer aos que nos querem
cartas em que Han Ryner pôs toda a sua alma de artista e iluminar — isso é impossível.
de amoroso, de pensador e de precursor de uma maneira Acima de nós mesmos, acima do Amor, acima da feli-
de vida mais humana, mais livre, mais doce, mais feliz. •dade — está a liberdade. Mesmo porque, não nos po-
Na primeira carta há logo a luta terrível de sentimen- •tmos conhecer, não nos podemos realizar, não seremos
tos ante a dificuldade de se conciliar a felicidade de todos felizes e não sabemos amar em uma atmosfera de com-
aqueles a quem se ama. pressão e exclusivismo, ciúme ou autoridade e despotismo.
"Um amor não deve nunca excluir outro amor. O E' a tragédia interior entre dois pontos de vista opos-
que exclue o amor não poderia chamar-se amor". ' loa, entre dois princípios e dois temperamentos, entre duas
Mas, e si outrem se obstina em afirmar que o excluí- •Mineiras diversas de sensibilidade afetiva. c de qualquer
mos e, consequentemente, em não aceitar o nosso amor, iRaneira existirá o sofrimento. E' o choque entre dois de-
tal como lh'o queremos oferecer, integral, segundo a •tjos, duas vontades, dois sentimentos, duas ideias, duas
concepção positiva da fidelidade? Inibas de evolução.
Sofremos infinitamente por vê-lo sofrer, porém, o A solução de tal problema (quando há solução...)
nosso coração amoroso pode revoltar-se, pode protestar nY|)cnde de realização interior profunda, de muito amor,
ante o exclusivismo ciumento, o instinto de propriedade •Ir pan-humanismo. E' individual, e, sem paralelismo men-
de uma riqueza afetiva anterior que pretende sufocar ou- tal e sentimental, sem uma superioridade equivalente, é
tro grande afeto nascente ou outro amor espontâneo, súbito, fonte de muita dor, é insolúvel, é o drama dc ser dois em
um desses amores profundos, inesperados, agasalhado pelo tí»da a trágica extensão de nunca sermos compreendidos.
nosso complexo afetivo e vindo ao encontro do nosso des- Em qualquer circunstância, "a sinceridade inteira e
tino. recíproca é a condição absoluta de um equilíbrio elegante.
E Han Ryner diz: " E ' preciso, sem renunciar ao es- (1) Carta dc Han Ryner — autógrafo de 14 de maio de
sencial de si mesmo, evitar fazer sofrer àqueles que não têm 1931.
í

HAN RYNER E O AMOR PLURAL 47


46 MARIA LACERDA D E MOURA

Até mesmo a bondade é rrienos indispensável". Mas, até Quando deixamos de atender a um desses ser«;s pro-
fundos, interiores — é o sacrifício na accepção da palavra,
a sinceridade e principalmente a sinceridade pode fazer so-
e quasi sempre o sacrifício inútil para a nossa felicidade e
frer no amor... E é a verdade que provoca tragédias. . .
pua a felicidade de terceiros.
O homem não gosta da sinceridade feminina.
E' a renúncia, quasi a morte moral.
A astúcia foi a arma que a mulher encontrou para
E a vida é uma fanfarra de luz e de calor, é a vibra-
tentar evitar o sofrimento. Mas, também fere...
ção, é a transfusão, é o aproveitamento de tudo, é a trans-
formação, é o dinamismo das cores e dos sons na sinfonia
da criação universal incessante.
Han Ryner "evapora" o Amor Plural. A renúncia é contra a natureza.
A "Censura" recalca, sufoca essa multidão de seres
Sim. Han Ryner não estabelece um dogma, uma tese, cheios de desejos e aspirações, — na idiotice, no precon-
uma doutrina: sonha. E, nos seus sonhos vagos, nebulose ceito, na rotina de uma moral, de uma autoridade que exi-
luminosa e diáfana, sobe tão alto que só as conciências l i - ge o sacrifício do indivíduo em benefício dos prejuízos
vres o podem seguir ou tentam seguí-lo nesses alados deva- sociais.
neios de poeta precursor sonhando sonhos indecisos para Freud, digamos de passagem, é genial, é intuitivo
um dos mundos de amanhã, para um porvir menos dis também, na sua multiplicidade de seres interiores em con-
tante de nós. cito com a "Censura". Pena é ter dogmatizado, consti-
Humanamente bom e individualista, deixa que cada tuído um corpo de doutrinas, si o sonho foi tão alto no
alma busque a sua realização, por si mesma, através do es- vago da sua beleza ondulante, indecisa, de hipótese quasi
forço interior, para escalar uma perfeição sempre e cada metafísica.
vez maior.
E' que, dentro dele, também há lutas. No fundo, A Fidelidade da alma.
7)1 sente o sofrimento das almas, esse drama da conciência,
essa contradição dos seres interiores para os quais, se- Não se confunda o amor plural da concepção ryne-
gundo êle próprio, também o pluralismo tem o seu lado riana com promiscuidade ou volubilidade.
bom. Para Han Ryner, amor quer dizer escolha:
Si pudéssemos satisfazer a todas as nossas almas, a "Não sou (diz Eros Poli fálico — criação de Han
todos os seres que palpitam a vida, que vivem uma con- Ryner) — não sou filho da banal necessidade de variar.
ciência dentro de n ó s ! . . . Não sou nostalgia e fuga de mim mesmo. Sou o coração
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generoso e jamais cansado de dar. Sou plural para ser ver- A concepção negativa da fidelidade feminina tem o
dadeiramente Amor, para jamais exilar as amadas de On- Mráter da passividade, geralmente. Nesse particular de
tem, para não fechar o acolhimento a quem me amar • lumes e tragédias sexuais ou amorosas, os homens batem
amanhã. E quando a l>em-amada não compreende a sua | ffiorj nos assassínios de cada dia, nos dramas conjugais
linguagem: " . . . grande e sã em tudo mais, minha Euri- •lf todos os instantes, nos quais se julgam cheios de direi-
dice, por ciúme, continuava a ser uma criança e uma doen- I " . , proprietários e senhores da esposa, da amante e até
te. Poupemos aos doentes e às crianças. Tenhamos a 'l 1 prostituta de ocasião.
doçura, quando a verdade lhes fizer mal, da lhes mentir Matam-nas a cada passo, e vão entregar-se gloriosa-
tanto mais quanto mais as amamos". | r » polícia, certos de que defendem a honra sagrada,
E, como consequência ou causa: "Donde nos vem o HMiKpurcada, quando não o fazem exclusivamente para dar
direito e a cruel corag.m de repelir um amor sincero?" Upnnsão à bestialidade, aos baixos sentimentos de vin-
(Note-se a expressão do Autor — amor sincero). "Eu o 1 e egoísmo sórdido ou simplesmente por* sadismo
acolho desde que se não manifeste nada exclusivo e mau Plótico ou mental.
para as minhas outras amadas". Concebendo verdades inéditas, criando uma ética nova
Noutra página, a Aloísia, que se lhe oferece, Aloísia (porque se aproxima da natureza de que nos afastámos de
— a pedante, filóloga, "terrível^preciosa e refrigerante", I tantos milénios. . . ) , Han Ryner fala a uma elite limita-
Orfeu responde, e essa resposta é bem a síntese da con- •llv.ima, a indivíduos livres, a seres em busca de realiza-
cepção amorosa do príncipe dos narradores filosóficos: — »,ílo interior.
"Não quero que a nova riqueza me empobreça, prejudi- Aceitando ou não os seus sonhos (Han Ryner tem
cando minhas riquezas anteriores. Principalmente não 1 " às doutrinas, às teses, às afirmações sentenciosas),
r

quero que uma alegria à direita se traduza por um sofri- •mitos obrigados a prestar a esse filósofo e artista genial a
mento à esquerda. 1 homenagem máxima de ternura e admiração.
" A mãe não abandona o seu filho mais velho para se E vejamos a concepção ryneriana da fidelidade "po-
dar inteiramente ao que nasceu por último". ilva".
Mas, o que Han Ryner diz dos sentimentos exclusi- Passemos, por um instante, a outro livro de Han
vistas femininos, aplica-se, talvez, com mais forte razão, |(yiier, Le Drame (Vetre deux.
aos homens — donos, proprietários legais ou não, senhores E' um admirável livro em estilo epistolar, escrito de
absolutos da sua companheira, de quem exigem a posse ' " U M . r a ç ã o com Mme. Aurel.
exclusiva e a fidelidade do corpo, dos sentimentos e do Muito diferente, muito fraca relativamente à genial
cérebro: a fidelidade da conciência! epÇão de Han Ryner, a parte da escritora francesa,
50 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 51
cuja igenuidade na segurança dc si mesma, nas suas afir-
A mulher só aceita a concepção "negativa", é exclusi-
mações decisivas — Notre Dante de Súreté — é uma en-
(como o homem, aliás. . . ) menos exclusivista talvez
cruzilhada definitiva que a separa do filósofo do sonho e
que o seu companheiro, porque "perdoa", aceita ainda o
do sorriso da dúvida. Uc a "traiu".
O contraste salta aos olhos: Han Ryner é anacionalista
O homem a repudia, tem ciúmes, mata-a, considera-a
e Aurel é bem francesa, nacionalista como toda boa fran-
de«l»uurada, desgraçada, perdida, e todavia é polígamo e
cesa. Mme. Aurel dogmatiza, tem "certezas", Han Ryner
kcha natural e lógico e necessário desejar todas as mu-
sorri de dúvida e ouve a música de sonhos metafísicos. Beres do próximo.
Só mesmo esse grande amoroso, esse maravilhoso
K' exclusivista para receber, é pluralista para dar.
estilista, esse cavaleiro andante do Amor e da vontade de
ais interessante: em teoria, não compreende, não sente,
Harmonia, esse neo-estóico poderia encontrar expressões
Itâo aceita o pluralismo, mostra-sc todo sentimental, e, na
tão ricas, tão genialmente amorosas para a colaboração
prática, vive-o diariamente.
com a .scritora francesa cheia de prejuízos e ideias comuns,
Esse é o pluralista prático, inimigo da "teoria", que
embora o seu talento e a sua maneira de escrever original, Considera imoral.
c, por vezes, muito agradável.
' O outro tipo é o "homem de ideias avançadas", o
Han Ryner, humano, escafandrista das almas, tentou
bertário: prega as ideias, bate-se pela liberdade integral
colocar-se à altura de Mme. Aurel, mas g.-nial e único, não
mulher, escreve em jornais, fala em público, aplaude a
o consegue apesar de toda a sua imensa boa vontade de tinancipação sexual de todas as mulheres.
grande amoroso... Mas, quando a coisa lhe toca de perto e lhe pergun-
Mme. Aurel é católica, conta milagres, consegue bati- tamos : — Para onde foram as suas ideias de amor plural ?
zar o marido, e Han Ryner é, simplesmente, o autor ini- — "Eu as tinha na cabeça e não no coração", res-
mitável de Parábolas cyniques e de Voynges de Psychodorc. ponde. E continua dentro da mesma atitude intransigente
é neo-estóico, homem livre de quaisquer muletas, é indi- t exclusivista.
vidualista, é auto-didata. O primeiro, pluralista sexual, não é o pluralista do
Que abismo -entre o dogmatismo e a música do sonho, Amor. Goza da generosidade de todas as que lhe esten-
entre a fé religiosa e o sorriso amoroso da dúvida! tlrm as mãos, mas, si cresce na sua vaidade de conquistador,
Mas, cada período de Han Ryner nos arrasta a consi- despreza, ridiculariza, desmerece aquela que lhe proporcio-
derações infinitas. Voltemos à sua concepção da fidelidade MI prazer.
positiva. O segundo é ainda mais exigente e tem os mesmos
frutos de desprezo e sadismo mental, além de querer domi-

i
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 53
52
nar no corpo, no coração e no cérebro. E diz que é re- \a do Amor Único,
pugnante o ciúme!.. . Tudo isso prova que nem um nem
outro conhece o Amor. Como é complexa a alma humana! próprio dos corações medíocres, das inteligências de hori-
E* bem diversa a liberalidade amorosa do neo-estóico: Bontes medidos, da imaginação pouco rica, exclusivista, fe-
" . . . nenhuma ruptura jamais partiu de mim. c, em meu chada dentro de um egoísmo mesquinho, capaz de ódio, po-
coração, nenhuma se realizou ainda. As bem amadas que me rém, incapaz de amar verdadeiramente. Os homens amam
pareciam ter a força de conduzir a minha verdade, eu a todas as mulheres, no sexo ou na inteligência e conde-
dizia: nam o amor plural... " feminino.
— "Sou fiel, i>ois nem um outro amor diminuirá em Vamos sorrir com La Fouchardière: "O casamento é
lima preparação para o adultério; o adultério é o corolário
mim a tua parte".
do casamento. E, em verdade (eu me dirijo à conciência
Essa é a ooncepçfo positiva da fidelidade. E' a fideli-
dos homens), é mais fácil observar a castidade absoluta
dade da alma, realizada mais ou menos ]>elos homens que
q u e a fidelidade relativa.
a aceitam praticamente para o seu sexo aj)cnas, porém, em
teoria, consideram-na imoral e utópica... "Facilmente chegamos (dirijo-mc à conciência das
mulheres) a nos abster completamentemente de fumar;
Han Ryner o concebe para todas as criaturas hu-
mas, quando começamos (ou recomeçamos) é muito mais
manas. difícil nos contentarmos com um cigarro apenas".
Aliás, a moral medieval dos nossos cavaleiros de capa Quem fala, minha gente, não sou eu: é a ironia tre-
e espada, é só dos países bárbaros como Portugal, Espa- menda de La Fouchardière contra a instituição desmorali-
nha, Itália e suas colónias. . . Brasil c Repúblicas sul-ame- sada do casamento e contra a monogamia criminosa.
ricanas, exceto o Chile, talvez. Países clericais... da "go- E há seres que se encastelam no amor único para pri-
vernança e da fradaria". varem a outros seres da liberdade de serem livres.
Rússia, países escandinavos, riem SC de nós, dos nos Têm como consolo a vaidade de haverem cortado as
sos dogmas sexuais da noite de mil anos inquisitorial. asas de alguém no duro cativeiro da monogamia indisso-
Os Estados Unidos foram mais longe: exigem in- lúvel.
denização, vão aos tribunais, e, solucionado tudo com o di- O Amor, para Han Ryner, deve ser recebido sempre
nheiro, as coisas voltam naturalmente à situação normal. .. pomo uma bênção de luz:
Gente positivamente prática... "Quem quer que seja que marche para o meu Amor,
|»or esse fato somente, torna-se para mim um deus".
Han Ryner lastima.
54 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 55

"Saber amar é dar-se inteiramente". Hl mulheres compreendem, si se não elevarem às alturas da


"Nosso amor é muito grande para conhecer o ciúme". HMKTpção amorosamente genial do filósofo.
"Toda alma é andrógina e pode amar à direita como I Confessa que as mulheres a quem amava irritavam-se
à esquerda". unte tal linguagem, como si tivesse êle pronunciado uma
"Só o Amor arrebata um ser ao rebanho". llijúi ia
Si eu fosse respigar nessa seara de sabedoria amo- Para elas, era como si as deshonrasse, maculando-as:
rosa, teria de citar toda a obra genial do filósofo. |wdignavam-se diante da sua liberalidade transbordante.
A única revolução pregada, amorosamente, sem vio- Hfaessiva também para nós outros, os emparedados den-
lência, por esse Don Quixote do Amor — é a revolução ^|fo da rotina, do exclusivismo, do amor-ódio, amor-vin-
pelo Amor e para o Amor. gança, amor-paixão criminosa, amor-ciúme. amor-proprie-
ilmli privada.
"O Amor que queremos é o que há de mais necessário
ao mundo de hoje e de amanhã. Tentando criá-lo, tenta- Aliás, a mulher, escrava do homem, objeto de compra
mos a única revolução eficaz, a que poupará cincoenta re- B venda, coisa escolhida ou rejeitada em todas as civiliza-
fArn. habituada ao servilismo, à obediência a um senhor,
voluções sangrentas e inúteis".
dificilmente -e conforma com a lil>erdade. . . E* a razão
E' o Amor amplo, às claras, sem subterfúgios, sem
|Mti que gosta apaixonadamente do homem forte, do bruto,
hipocrisia, sem mentiras convencionais, platónico ou inte-
do militar, do hoxeur, do esportista em geral, gladiadores,
gral, mas. o Amor sem exclusivismo sexual ou afetivo. sem lidadores romanos, dos que vencem pela força, pela selva-
ciúmes, sem paixões, simultâneo ou sucessivo, conservando JNtia, pela violência, mesmo não sendo a "doce violência"
sempre a deliciosa recordação da felicidade anterior. ||a que fala Anatole.
"Quando se ama bastante não se sofre porque não se
O seu homem, si não é ciumento, não gosta dela.. .
é amado. Dar em excesso é mais necessário que receber.
B i as vezes, vai mais longe bate no que é seu...
Nem todos podem subir até lá. Seja. Que os mais fracos
Esse é o resultado da educação de gineceu, educação
ao menos se livrem dessa fealdade tão baixa, sofrer porque
• l galináceos, de conventos e rebanhos.
outro é amado". E' o resultado a que quis chegar o homem — para
"O amor deve sempre espalhar a sua generosidade". Hwior proveito do autoritarismo próprio e instinto de pro-
E, um dia, disse à sua amada: "Ama a quem quiseres, priedade privada, adquirido com as primitivas civilizações.
a quem puderes. Si sabes amar, não terei menor lugar no Às vezes, fico a pensar que as mulheres violadas bru-
teu coração engrandecido". talmente devem guardar recordação agradável da força
E' uma linguagem estranha que nem os homens nem Plliicular dos braços que as subjugaram, tal a degradação
56 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 57

a que chegaram. E* o caso descrito por Zola em O Tra- Os outros os corrompem, maculam, mutilam. Do
balho. .. Elas não opõem a resistência da revolta e do pro- Cristo naceu o Cristianismo; de Jesus, o jesuitismo e os
testo, sinão em casos de exceção. E, a mim me parece que, autos de fé; da sobriedade d* Epicuro, o sibaritismo e o
na maioria, si protestam no momento, depois se lembram jdutonismo indigestos.
da aventura talvez saboreando-a. Amam a força e o poder, Que farão do Amor Plural de Han Ryner?...
a brutalidade e o jugo do dominador.
Desgraçadamente, é da psicologia do escravo.
Nasc u com a mulher essa domesticidade inata ? Não * *
creio. E' uma hereditari:*dade de harém, adquirida, imposta
à serva e aceita humildemente, pela sua docilidade senti- Como os pontos de vista são infinitos, o que para
mental, sob o império da força masculina, toda poderosa e mim constitue, como na passagem citada a propósito de
coesa em torno da sua presa mais preciosa. Irma, altruísmo e realização interior profunda, talvez, para
Ambos atados à geena desse doloroso cativeiro, criado certos lil>ertários intransigentes, dogmáticos no seu vão
pela ignorância, pela perversidade do senhor absoluto, ba- contra os dogmas de qualquer fé, pareça fraqueza ou idio-
seando-se no desfibramento comodista, no servilismo da tice de quem ajxmas quer sorver o perfume do sensualismo.
sua companheira. Para os académicos e moraliteístas, é possível que esse
Substituir essa mentalidade de escravos pela conce- livro seja considerado imoral e pornográfico; para mim,
pção d" liberdade — é trabalho de titãs, e só o génio tem a as suas páginas de realismo, bem diversas da tendência
coragem para arrostar com o passado reacionário e brandir neo-romântico-lírica de Han Ryner, bem diversas da sua
o camartelo das verdades vivas contra o peso milenar das ternura amorosamente delicada, constituem uma crítica for-
"verdades mortas". E' o que Han Ryner faz em todos os midável e admirável a essas mulheres cruas, "emancipa-
seus ensaios, em todos os seus romances filosóficos e so- das", "sem preconceitos", cuja emancipação se resume em
ciológicos. conversar pondo os pontos nos i i , em dizer expressões per-
* feitamente dispensáveis a propósito dos assuntos mais de-
licados, em procurar, agressivamente, satisfazer "atos de
higiene pessoal", fisiológica, sem envolver todos os gestos
Como as palavras são deturpadas entre os lábios e os da vida no "manto diáfano da fantasia"...
ouvidos e dos ouvidos para outros lábios, todos os sonhos O amor è a mais palpitante das razões práticas. E'
precursores só podem ser vividos pelos sonhadores que os a razão de ser da vida; por êle é que a espécie se multi-
idealizaram. plica, por êle é que nos destacamos do rebanho social,
58 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 59

é cie quem diviniza a carne na Maternidade conciente, é


quem nos ensina o caminho da realização interior. 11 i.i/.er sofrer.
Por isso, Han Ryner o trata, carinhosamente, amoro-
Man Ryner sonha bem diversamente de Çakya-Muni:
samente, sob todos os aspectos, num livro profundo e sutil
RAo prega (Han Ryner tem até mesmo horror à persua-
que nos obriga a pensar, que ensina a refletir.
| | i > . . ) . não prega a doutrina da renúncia, pelo contrá-
rio procura reali/ar-se pela satisfação interior, integral
^ B t o quanto possível. Em toda a plenitude, quer viver
"SOU O SER INCAPAZ DE ZELOS"
ii .imente as suas aspirações de cada hora. satisfazen-
H k aos desejos de cada instante: ser sincero par;: consigo
Falando da inconstância, à sua interlocutora (Aurel.
MM"MOO, sendo sincero, bom e generoso para com os outros.
em Le Drame d'êtrc dcux), falando de volubilidade, Han
Esse neo-estóico tem tudo de Epicuro, mas chegou
Rynfcr responde:
*U- Kpicteto e vive o Cristo interno.
"Tanto peor para vós, si não sabeis usar, por mais
Por isso. a sua filosofia se "evapora", como todos
tempo, do poder de renovação que trago em mim. para
lia «eus sonho>. como a sua metafísica livre de pagão dc'
mim e para todos os que me amam. Ainda que não
Um panteísmo interior.
queirais, tenho em mim. inesgotável riqueza para sempre
Deus. para Han Ryner, é a perfeição interior, e a
"Amo-vos bastante para que vossa frieza me não
pfrírição, pua neo-estóico, é o Amor. Amor desdo-
esfrie e para não sofrer por vós. H i d o , largo, infinito, eterno, vindo de profundidades do-
"Sou a constância personificada e o ser incapaz de lui.i.a-. voltado para dentro do próprio ser, para poder
zelos. voltar-se imediatamente |>ara as criptas profundas ou para
"Os ciúmes constituem o grande sinal demonstran- Hf abismos desconhecidos dos outros seres.
do que ainda não se chegou ao amor. Por isso. Han Ryner completou o aforismo do tem-
"Mas, que mulher é capaz de compreender que entre- plo <le Delfos: Conhece-te a ti mesmo "para aprenderes
gar-se c o grande processo de enriquecimento?
"Pão maravilhoso que um deus parte e multiplica E' a razão por que, aproveitando-sc da classificação
a todo aquele que reclama o nosso amor." • Epicteto, coloca o passado entre as coisas que não de-
bandem de nós.
Até aonde eu iria, si me entregasse ao prazer de res-
Procurar satisfazer sempre, na medida de todas as
pigar nessa seara de amor ?
|6rças, evitar o sofrimento de qi* m quer que seja e o
60 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL (.1

sofrimento próprio, esquecer-se de si para pensar na ale- nviUH aos que buscam a realização interior: Vivei, cada
gria, na felicidade que se pode e se deve dar, sem mes- a vossa vida; procurai o prazer, a alegria de sentir a
mo esperar retribuição, amar como o andrógino — à tude das vossas forças, dos vossos desejos, sem
direita e à esquerda — é quasi colocar todo o destino rangimento, às claras, lealmente, porém, não façais
entre as coisas que d.' nós não dependem. r a quem quer que seja, cujos direitos são os vossos
"Eu, tudo o que sei, em circunstâncias ord: I, a menos que vos queiram reduzir a renunciar ao
rias, é me afastar o menos possível do que se me oferece, ciai de vós mesmo, a menos que vos queiram de-
responder ao maior número de apelos. D.sde que a esco- r atentando contra a vossa liberdade.
lha se impõe, sou desgraçado. Eh! estarei certo de haver Façamos o possível para conhecer, para realizar a
escolhido uma única vez em minha vida? Si foram sem dadc interior e para fazer felizes aos outros.
pre as coisas que escolheram por m i m . . . " Dentro desta sociedade, como dentro de qualquer
Que grandeza ética a de se dar sempre, a de espa- nização social, o indivíduo pode ser livre, uma vez
lhar a alegria de viver. E' quasi a renúncia de si mesmo, sinta a conciência de ser livre, e ninguém tem o di-
e é esse artista-filósofo quem prega a satisfação, tanto dc impedir que outros também realizem a liberdade,
quanto possível, de todos os nossos seres interiores, dr ria de viver, antes, temos o dever de contribuir para
todos os seres que sonham no recôndito do nosso ser lidos se realizem, si as possibilidades de cada um o
múltiplo. Paradoxo? Contradição? — E' só Amor. Si rciii a essa realização interior.
o indivíduo se preocupa quasi ou exclusivamente em es-
parzir as suas dádivas afetivas, é apenas como instrumen- O único empecilho à conquista dessa libertação está
to para a felicidade dos outros, e, mais alto, da própria próprio indivíduo, si se não alçou à altura dos seus
felicidade — intj grando-se em si mesmo. •es profundos, si não desceu às suas próprias criptas,
Não sei si consigo, de algum modo, interpretar o filo mediu a profundidade dos abismos desconhecidos
pensamento, o sonho amoroso do filósofo amado e admi lima humana. Também não nos cabe o direito de nos
rado, mas, o meu Amor a essa grande alma de poeta d< ar esmagar pelo egoísmo dos que nos querem impor
Amor me dá tanta alegria que suponho divisar ao loofl ioi idade do amor único, despótico, de um amor ex-
a sua filosofia do sorriso, soluço de dor e de piedade pd vista. mesquinho de avareza e de egoísmo.
sobre as misérias humanas. K não nos esqueçamos de que, não sendo felizes,
Em resumo, o sonho amoroso de Han Ryner, csIxV |Kxlemos aspirar a realizar a felicidade de ninguém.
ço flutuante, indeciso de um individualismo risonho, pan "Não fazer sofrer" constitue a síntese de uma ética
indivíduos de uma evolução mais alta, traduz-se nesta Amor, mas, não se refere somente aos outros, refe-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 63
62 MARIA LACERDA D E MOURA

Niquele ou daquela a quem amamos, não será realizar já


re-se, mui principalmente, a nós mesmos, ao respeito, ao
grande felicidade?
culto devido aos seres superiores que povoam o nosso
Não será contribuir diretamente para a felicidade de
mundo subjetivo. OUtrcm ?
E imando amamos bastante, não teremos prazer em
Ajudar o bem amado a realizar a sua felicidade?
Mimetismo: a lealdade amorosa e a doce
Quando sabemos amar, não gozamos uma alegria
mentira. terior harmoniosa, si vemos aquele a quem amamos
amcolado do amor de outro ser?
Cartas de amor tão lindas, tão profundamente hu-
Não será desejável chegarmos a amar aquele que
manas ! Em uma delas, Maria Luíza procura levar
o nosso amor? j .
Orfeu a "fazer a educação" de Denise antes do seu en-
contro, porque é indigno "enganar" a quem quer que seja, Que superioridade moral a de quem sabe amar
mim, dizendo com Han Ryner:
quanto mais a quem amamos ou a quem nos ama, pois,
"por tua culpa, o que deveria ser pura harmonia, torna- "Si eu estivesse perto de vós, seríamos três a vos
se aventura." lar. E, longe de sofrer pelos vossos outros amores,
me regozijaria com a liberdade e a plenitude de vosso
Si o amor plural tende a suprimir os crimes passio-
ração".
nais, o exclusivismo do ciúme animal, já seria admirável
a sua força renovadora do caráter, da dignidade huma- E quando não houver segredos, quando somente a
na, ao fazer desaparecer a mentira, as mentiras sem con- •uldade predominar no complexo afetivo, todos nós se-
ta, o hábito de. enganar, a necessidade de iludir para ad- •Olos ligados por um reconhecimento indefinido, pela
quirir uma liberdade truncada, para viver aventuras que piais deliciosa das gratidões: é o respeito à dignidade
deixam na boca, talvez, o amargo do remorso e do des- humana. Desaparecerá a ironia perversa com que a so-
prezo de si mesmo, o receio e o pavor de despedaçar uma ledade trata o que é "ludibriado", o que é considerado
felicidade anterior, quiçá insubstituível. liam ou tolerante.
E, suprimir os crimes passionais, o infanticídio, ensi- Serão invertidos esses valores morais: o que tole-
nar o respeito à vida do semelhante não é o suficiente i i i . o que sabe e se mantém no equilíbrio estóico do que
para fazer admirar e desejar que o amor plural entre nos •(Cita o inevitável e respeita a liberdade do companhei-
costumes ? fu, esse é que realiza a verdadeira superioridade.
Ignorar o ciúme, saber respeitar a liberdade integral
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 65
64

A mulher, geralmente, porque não tem outro remé- — Tenho o direito e o dever de não dizer o que ma-
d i o . . . pratica tal estoicismo. la. — responde Orfeu.
Resignadamente, percebe c finge não ver as esca- E é sempre essa certeza da sinceridade e essa dú-
pulas do marido ou dc companheiro. vaga, doce, piedosa, do mimetismo amoroso, essa
O homem tem que tomar essas lições, e, ambos, con- «idade complexa de uma bela conciência vivendo a
i mi ima das criaturas para amá-las segundo o seu
cientemente, si querem chegar à felicidade, devem reali-
iperamento, a sua força de caráter ou a sua fraqueza
zá-las pela razão, pela sabedoria estóica.
apaz de compreender.
Mas, Han Ryner desnuda a sua sinceridade para
quem tem coragem de ouvir a sinceridade e mente com "As mais fortes diante do trabalho, do poema, da
doçura a quem prefere a mentira. ia, ante a dor ou a morte, mostravam-se fracas
m si me enganares (obstinavam-se em dar à pa-
Em relação a Denise, quando se despede para ir ver
na "enganar" o sentido pueril) pelo menos que eu
Maria Luíza: "Doce ser, fácil de contentar-sc, porque
saiba. Amor ou piedade, trata.de bem mentir".
te perturbar, segundo o ideal de Maria Luíza e te for-
Não há mulher que não tenha dito estas mesmas
çar a ver, quando, por instinto ou voluntariamente, tu les, perfeitamente idênticas.
te desvias?"
"Minha Euridice nunca desconfiou dos meus outros
A propósito de Irma com suas exigências descabi-
res. A mentira me era penosa, era a ela, porém,
das e a quem teve dc mentir:
a verdade ia ferir cruelmente. r
"Esse género,de mentira me irrita contra quem me
"Por vezes, eu tinha, como depois de um crime, a
força a praticá-lo. Uma das minhas ocupações, durante
nu idade do remorso. Nas horas claras, minha con-
a viagem, foi procurar ter algum remorso: não o con-
> la se revoltava contra as coisas aprendidas e eu via,
segui".
sua justa luz, a minha sorridente inocência".
Mas, quando passou a Denise um telegrama des-
Que força interior formidável é necessária para que
culpando-se com uma evasiva para ficar um dia mais com "mos distinguir, no íntimo da nossa conciência, o
Maria Luíza, foi Maria Luíza quem, indulgente, disse a nos ensinaram, o que a educação, a rotina, fez de
Raymond: i c o que vem das nossas criptas, do Eu profundo,
— Deixemos aos doentes o tempo de se curarem s contrárias em luta, vencendo, nas criaturas fra-
e cedamos sem muito espanto aos seus caprichos. En- ou nas vulgares, a tradição, o passado, a influência
vie os telegramas. Na sua próxima visita, Orfeu saberá trai deprimente, narcótico para adormecer o que
não mais mentir.
66 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 67

vem de nós mesmos, o que é natural e humano e sin-


Sendo profundamente religioso, dessa religião da
cero. h/ação interior, religião do "espírito livre que medita,
Toda gente' se vê nessas páginas simples e admi- e ama e que sorri", Han Ryner fez Maria Luíza so-
ráveis de psicologia humana. ar um Orfeu místico c metafísico nos seus devaneios
telares, vagos, ondulantes, procurando os seres que so-
Todas as mulheres têm as mesmas expressões dc
am c aspiram a realizações mais altas, nas catedrais
fidelidade negativa, fidelidade da carne, e todos os ho-
sonhos reflctidos nas miragens da nossa vida afetiva
mens têm essas frases dc remorso e dúvida e essa indul-
^Adeuses involuidos em procura de si mesmos...
gência clara e risonha para as suas "fraquezas" de cada
Cuidado, ó almas que vos buscais...
dia, para os seus "pecados" de impenitentes.
Às vezes, é essa mesma beleza interior, essa inquie-
Mas, pensar dá trabalho. Revolver a conciência
tação tormentosa, essa procura de si próprio que nos
em um banho de luz, analisar-se a si mesmo, examinar
In/ deixar escapar a hora presente, correndo atrás de
os erros de lesa-felicidade humana, tentar realizar-sc, é miragens que se evaporam e criam outras miragens,
só dos seres que percorreram os caminhos da dor e fo- Boubando-nos o momento que passa, na angustiosa pro-
ram arrebatados ao rebanho humano pelo Amor. pelo • I t s ã o da dúvida e da ansiedade de quem se perdeu no
puro e santo Amor que redime e eleva e santifica e di- labirinto de si mesmo.
viniza.
E' a razão por que também os grandes amores nem
* Blinprc se entendem. Muitos são os caminh is e as an-
* *
llcdades, as torturas são tantas que as encruzilhadas se
liilurcam em direções que se afastam...
Em Les Pacifiques ( 1 ) , define bem a sua religi
Como é difícil a realização interior e como é bela,
de Harmonia, o seu lirismo ante o Amor Universal
•1 queremos, ao mesmo tempo, espaihar a felicidade e
na realização interior de cada ser evolucionado: deixe lliaiitcr um equilíbrio elegante e harmonioso na defesa
mos essa adorável e luminosa perspectiva para quan IIH nossa própria alegria de viver.
analisarmos Les Pacifiques e a maravilhosa concepç
E que boa vontade é preciso, que Amor profundo
da Atlântida, imaginada pela bondade, pela delicadeza
deve existir para dois seres superiores se quererem
filósofo.
limito amorosamente, apesar das circunstâncias da
Vida, mau grado a inquietação angustiosa da tormenta
(1) Traduzido para o português, sob o título: No pais d
Interior de cada um, embora a conspiração de tudo quan-
homens livres.
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 69
68

to contribue para os afastar após o primeiro beijo e as Ficará, porém, a super-amizade e b doce recordação
primeiras deliciosas intimidades. ilr mais uma ilusão bem viva ainda, transmutada na de-
J}da intimidade de duas almas que continuam a se que-
Os grandes amores das criaturas de elite são os amo-
j livremente, que se não esquecem, que se prodigali-
res da idade madura. E' preciso ter vivido.
m alegrias de natureza também superior, nobres, du-
E a tragédia é inominável porque o deslumbramen- ' .louras.
to psíquico coincide com a crise fisiológica, com a ida-
de crítica, tanto no homem como na mulher, nos anos Podem ser tão amigos, tão super amigos que se tor-
que precedem à velhice, e que podem variar entre cinco rão confidentes dos seus outros amores. Tornam-sc
e dez, conforme a natureza orgânica e o temperamento. fdadeiramente irmãos. Moram na mesma casa e po-
E é necessária a fusão das duas almas no desejo fii dormir no mesmo quarto: os sentidos morreram de
intenso de agradar, de acariciar, de se despersonalizar, II para o outro. São positivamente amigos. Cito o
rmplo.
mantendo a individualidade, de evitar qualquer atrito
capaz de deixar a mágoa, a dúvida, a incerteza da sin- Mas, vejamos Han Ryner:
ceridade recíproca. "Sempre me feriu a tua carência de misticismo e o
E burilar, cada qual, as suas arestas... E fazer consentimento à mentira social.
calar o orgulho, o mais feroz inimigo do Amor. "Um Orfeu que sonhasse sonhos metafísicos e que,
vida, subisse até à sinceridade... eh! pois bem, eu
Quando o Amor morre... Riria dele com medo de tombar no amor único.
" Pus muito do meu coração em t i , de sorte que
O verdadeiro Amor não morre: renasce cada dia ou
ipre a minha feroz independência se revoltou contra
trans.orma-se, puriíira-se numa forma ou manifestação Agora que teus defeitos me estão sempre presentes,
mais alta, mais pura, talvez, mais bela, mais profunda ou • i . i que me fazem sofrer, agora qu? te não posso per-
mais espiritualizada. lar o haver tornado esse nobre Rayrrond cúmplice das
Mas, desde que apareçam, que saltem aos olhos a«| • i s mentiras : minha revolta está vitoriosa.
diferenças profundas entre dois temperamentos de in-
"Em um mês, em um ano, não sei quando, quando
divíduos, desde que a afinidade não vá aos mais rccóiw
pi«K ar a olhar com a mesma calma sorridente com
t e
ditos sentimentos, e às ideias mais gerais, parece irr«
•Ur olho os outros homens, tornar-meei sensível às tuas
conciliável esse grande amor entre os dois seres, quá
•iipi i ioridades <• te não pedirei mais a perfeição. En-
se não conheciam bem, que se enganaram talvez.
70 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 71

tão, meu amor renascerá. Mas, o teu, sem dúvida, es- Einstein irá, talvez, mais longe. O erro gravissi-
tará morto, sem ressurreição possível. < .i.i em confundir o Amor com a sexualidade e o
"Não se faz o que se quer; mesmo os perigos que é inevitável... daí a tragédia: Animalidade e es-
lidade.
distinguimos dc longe, não são todos evitáveis".
E' admirável essa página de psicologia humana. E' E' preciso chegar a admitir a absoluta independên-
tão sensível que a analisamos de perto, em torno de dc praticar os atos inerentes à sexualidade — como
çlo orgânica simplesmente, ou como gesto de gene-
nós ou dentro mesmo da nossa própria inquietação ator-
dade.
mentada de amorosos.
Han Ryner, como Edward Carpenter, talvez, vê o Isso evitará confundir Amor com instinto. Evitará
Amor no seio das correntes cósmicas do Cosmos Uni- ar o Amor no ponto onde colocam a honra da mu-
c também... do homem, quando a quer lavar... em
versal, isto é, um sistema planetário na sua órbita me
MjMir.
tafísica.
Si, dando a liberdade sexual à mulher, não apenas
Os nossos sentidos grosseiros nada percebem. Mas,
o aspecto teórico, prevalecer ainda o Amor senti-
Cosmos, para Han Ryner, é criação nossa...
to, o Amor ideal, o Amor integral — aí está o
Cada um de nós é um Deus que sonha e soluça e r plural.
canta — Prometeu acorrentado ao Cáucaso da Matéria.
Si não prevalecer fora dessa concepção de liberda-
Correntes bi-cósmicas, Bi-Cósmos é que se deveria
v plenitude — esse amor, si não é simplesmente ani-
dizer: Matéria e Força. Matéria e Energia, Matéria c
\i tem algo de ideal, de afetivo, de espiritual, pre-
Ideia, Matéria e Espiritualidade, Matéria que se trans-
iiuia nele o exclusivismo do reino animal que reclama
forma incessantemente e Evolução Infinita através do
lialmente a presa que lhe pertence como a um se-
Tempo e para além do Espaço. Duas coisas opostas, r absoluto e único dono e proprietário pela força,
sempre antagónicas — daí todos os nossos erros. brutalidade.
Somos animais e pretendemos escalar os c é u s . . . Essa força e essa brutalidade tomam diversos as-
Interpenetram-se na aparência da vida humana. os, segundo a educação do homem ou da mulher, o
Quem dc nós será capaz de decifrar o enigma do prramento ou o requinte da sua perversidade de ani-
Amor ? I • ivilizado.
Quantas hipóteses para estudar o problema! Freud 'Só é possível admitir o Amor plural, sob a primor-
não saiu do plano físico. I condição de se respeitar a liberdade integral de
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 73
72
outros seres e de se fazer respeitar na sua dignidade de E as coisas se baralham e. se confundem no nos-
ser livre, cujo coração tem direito à plenitude afetiva e WÊ cérebro, no coração e nos senti.lo--. .
cujo cérebro tem o dever de ser razoável e considerar Que luta maravilhosa!... Quando chegaremos a
a inversão teórica dos sexos, considerar a mulher com l i . - , decifrar?
os mesmos direitos orgânicos do homem, e a sua ne- Orfeu e Maria Luíza separam-se naturalmente,
cessidade afetiva, sentimental; e ainda o direito à evo- •IriN.im de se corresponder, guardam a recordação de-
lução mental, através de todas as experiências da vida. Ijlota de uns dias que se foram, mas, também, parece-
O Amor não pode viver em uma atmosfera de com- uardariam a dolorosa incerteza da possível reali-
pressão e servilismo. peçAo desse milagre de Amor integral, Amor que tem
B' o que há de mais livre: sufoca si lhe querem Mlfes no eterno e no infinito, livre, invencível, Amor-
impor a mais pequenina restrição. H l t c r i o de duas almas que se buscam em todo o ser,
Daí, o Amor ter fugido da terra... Daí todas as Hliituamente, que se tornam indispensáveis uma à ou-
tragédias passionais, daí todas as desilusões- amortalhi- Ha, que se bastam na sua vasta mentalidade afim e na
das estupidamente pela incompreensão das leis fisio-psi- Pltlibilidadc estética, duas almas que se reconhecem
cológicas dos seres humanos. • i i , que se queriam antes, que se buscavam no mis-
I f i o de todas as almas c que, talvez, se reconhecerão
*
llravés do tempo e para além do espaço...
* * Wk Mas, o Amor grande assim, não pode basear-se no
•flusivismo. A sua grandeza é tal que domina toda a
Os nossos sentidos grosseiros se enganam. ' Itureza inferior do ser.
O instinto inferior de bestialidade pertence à ma-
téria, na sua ferocidade de defesa orgânica. Só uma grande evolução paraleia, um milagre de
I E nós supomos que os instintos são as forças, é a filução de dois seres, dentro da largueza ondulante
energia para a evolução... verdadeiros princípios libertários, dentro dos mes-
E a matéria procura abaixar, reduzir, aniquilar a 1 sonhos de redenção humana pelo individualismo l i -
força que a domina; si quiserem, será a vontade, a ener- e nobre e generoso, dentro da mesma finalidade es-
tica e do mesmo ecletismo amoroso, só duas gran-
gia, etc.
ÉN almas cheias de sonhos e de ideal renovador, seres
Na matéria está a sexualidade animal.
HY elite, harmoniosos dentro de sua própria conciência,
Na vontade, na força interior, na energia, na no-
k podem realizar esse Amor profundo, eterno, força
breza, no altruísmo, na generosidade é que está o Amor.
HAN RYNER E O AMOR PLURAL
74 MARIA LACERDA D E MOURA 75

de renovação cuja potencialidade criadora deve ser O equilíbrio entre a razão e o coração, entre o ce-
imensa, infinita, bênção de harmonia emanada de nos- ro e o sentimento, a harmonia do pensamento e da
sos deuses interiores, iluminando dentro e fora de nós 0 no indivíduo conciente, clarividente — só assim
mesmos, aureolando-nos de bondade, fazendo do ser, possível um equilíbrio elegante e o respeito à dignida-
que ama assim, um canal por onde atravessa a beleza de humana, através da lil>erdade outorgada a todos os
IMilios seres.
para a realização interior dos seres em quem transbor-
da todo esse amor. Procuramos inutilmente esse ser realizado, esse
Como é difícil, porém, a solução do problema amo- •fttplexo múltiplo de Pxlos os seres, capaz de desper-
IHI lodo o nosso entusiasmo afetivo e mental, capaz de
roso, como cada ser tem as suas preferências e uma
• i c r vibrar, em uníssono, duas naturezas superiores,
criatura sozinha não pode reunir o complexo afetivo e
piai, não temos o direito de exigir de outrem o que
psicológico de todos os seres e duas criaturas dificilmen-
Win não fomos capazes de obter de nós mesmos...
te se completam em um todo harmonioso, só o amor
plural nos ensina a colher o ser ideal através dos seres
a quem amamos.
Amemos ao Amor. . .
Não é indispensável sempre entrar a sexualidade: no
verdadeiro Amor, a sexualidade vem em terceiro lu- No Amor, nós nos buscamos a nós mesmos. Pro-
gar. A ordem é a seguinte: cérebro, coração, sentidos; ramos a nossa própria realização, sempre e cada vez
ou, segundo outros temperamentos: coração, cérebro, l i aproximada, tanto quanto possível, da Harmonia,
sentidos. Também há amigos que se amam... Itcleza, no sentido mais amplo, mais integral que as
Aliás, toda essa linguagem é apenas forma pela isamos conceber ou idealizar.
qual nos manifestamos. Tudo se passa pela mente em Por isso. amamos ao A m o r . . . E, si nossa vida
um processo individual. No ignorante e no indivíduo krior está povoada de almas, contraditórias às vezes,
conciente não se verifica o mesmo grau de manifesta- li sempre, — é no pluralismo amoroso que encon-
ção do estado amoroso. Cada criatura se realiza atra- nios afinidades para a multiplicidade dessas almas em
vés do conhecimento. Conhecer — eis a questão. ica de uma euritmia mais doce na fantasmagoria de
O excesso de sensibilidade prejudica a razão. Daí la" as nossas aspirações interiores.
as paixões, a cegueira do ciúme, a loucura do exclusi- Buscamos o "viver harmoniosamente"... dos an-
vismo, as tragédias passionais.
76 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 77

Que cada qual ame como puder, e os gestos que nos Corremos atrás dc uma realização mais sutil e mais
parecem mais baixos, quem sabe não serão o transbor- >rosa, até percorrermos a órbita desse infinito sis-
dar de um desejo inconciente de subir para a escalada, ia planetário todo feito de luz, to lo animado em ar-
através do Amor? •D-iris de sonhos e bolhas de sabão de novas ilusões,
O que é preciso, o que é indisper sável é amar. lurquc cada Amor e cada etapa de realização interior
Também os meus poemas interiores metafísicos me M l faz entrever uma realização mais bela e uma ale-
aproximam de Han Ryner. •rlfi mais doce e uma serenidade mais imperturbável e
Só para amar foi feita a vida, ou melhor: vivemos Mina purc/.a mais harmoniosa.
— para aprender a ainar. E' por tudo isso, parece-me, que Han Ryner não
K penso que amaremos tantas vezes quantas forem Iftde aceitar a concepção do amor plural tal como a cn-
necessárias à nossa evolução, para Uma finalidade mais Pldcm Emile Armand e os "camaradas" de l'en dehors.
alta.
Essa finalidade mais alta, nós a antevemos pela lei
de causa e efeito: quem semeia, colhe. Amor Plural ou Comunismo pluralista amoroso?
E, no mundo das ideias, como no mundo físico: na-
da se perde... A concepção do amor sexual de Armand, Han Ryner
O Amor é a escada de Jacó: leva-nos ao céu dos Irefereria o amor único e talvez ate mesmo nenhum
nossos sonhos, à iniciação das dores (pie exaltam, divi- Hbr.
nizam, redimem, e nos mostra os deuses que aspiram e
<) pluralismo comunista de Armand é "a peor das
amam nos templos abertos da nossa religião da realiza-
rvidões". E' a escravidão da mulher, o servilismo, a
ção interior, contínua e harmoniosa: tem degraus e as
B l t e do Amor, a promiscuidade, o comunismo sexual
visões se cruzam, multiplicando-se à medida que subi-
Pajfradante, repugnante, no qual a mulher continua re-
mos . . .
bentando papel dc coisa, objeto de prazer, escolhida
Buscamos a perfeição e a perfeição é profunda,
inprc e nem sempre com o direito de escolher...
mente interior. Vem dc dentro para fora e colhendo, na
inca sem muito direito a eleger e obrigada a se pres-
vida, através de cada etapa de evolução, um amor novo
r à imposição de todos os que formam a congrega-
— para povoar de sonhos e de dores outros caminhos
o dos associados de "Vcn dehors".
e outros ciclos de atividadc afetiva e sentimental es-
tética. Será sempre a prejudicada, a explorada. E esse pa-
78 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 79

pel é humilhante, é deprimente, é indesejável, repugna j Qm Armand me perdoe, mas, sou desconfiada como
às conciências livres. i Luíza...
A mulher superior escolhe: não se submete às im- ©epois, sufoca-se a ternura carinhosa, a própria
|ltii|*.itia que elege. e. desertamos, em nós todos, os
posições de um indivíduo, quanto mais de todo um
Htalmtos puramente carnais, mal adormecidos nas nos-
grupo.
criptas profundas.
Si caminhamos para a maternidade livre, para o Diz E. Armand, nesse jornal admiravelmente bem
Matriarcado conciente, como impor aos indivíduos, que mi (1) "ne montrez pas en public — et parfois en
fazem parte de um grupo, o compromisso da promiscui- J | . — plus de préférence qu'il n'est nécessaire pour
dade ou do comunismo sexual? I, trile ou tels camarades particuliers."
Depois, essa é a ética do "après moi, de dêluge"1 Então, sob o pretêsto de que não devo fazer sofrer,
ninguém pensa na seleção humana. Pode mesmo resul- 0 posso eleger os meus amigos particulares em meio
tar daí o naufrágio de todos os embriões. Tão longe mm "camaradas" em geral?
não vai o neo-maltusianismo... E são os homens livres Isso é regra dc conventos, de asilos de freiras,
e as mulheres concientes os que devem deixar descen- pois, que espécie de sofrimento eu provoco? Os que
dência eugênica. freriam, seriam os ciumentos e exclusivistas (e Ar-
~Hd não combate o exclusivismo, o instinto de pro-
Demais, a mulher, a natureza a fez apta a servir
•dade amorosa e o ciúme?). Os que sofreriam se-
a muitos homens, e o homem é menos capaz de satis-
m aqueles que não têm o direito de privar a quem
fazer a algumas mulheres...
r que seja da sua liberdade. A amizade, a simpa-
Além de tudo, talvez Maria Luíza tenha razão: 1 o amor não se impõe.
"Suspeito, por vezes, que no seu amor plural (de Ar- São sentimentos espontâneos, e, regular e fazer co-
mand) e dos seus companheiros de "Ven dehors", haja irativas de produção e consumo dos sentimentos, do
uma simples precaução de viajante que não gosta de lu- imo modo como se faz cooperativas de calçados ou
panar. O que passa, pede a todas as flores que se ofe- I""dutos agrícolas (l'en dehors — outubro de 1929),
reçam a suas mãos e suas contínuas viagens lhe fa- Considerar o amor analisávcl como qualquer outro
zem evitar, sem pena, as que lhe poderiam desagradar. oduto do organismo, é desconhecer a psicologia hu-
Assim, o "todas dc todos" tem, para êle, um sentido
generosamente prático; o "todos de todas", um sen-
(I) Traduzido para o português, sob o título: No pais dos ho-
tido prudentemente teórico." h. Orlcans — França.
78 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 79

pel é humilhante, é deprimente, é indesejável, repugna Que Armand me perdoe, mas, sou desconfiada como
às conciências livres. |aria Luíza.. .
(Depois, sufoca-se a ternura carinhosa, a própria

I
A mulher superior escolhe: não se submete às im-
ilpatia que elege, e, despertamos, em nós todos, os
posições de um indivíduo, quanto mais de todo um
Iftatintos puramente carnais, mal adormecidos nas nos-
grupo.
criptas profundas.
Si caminhamos para a maternidade livre, para o
Diz E. Armand, nesse jornal admiravelmente bem
Matriarcado conciente, como impor aos indivíduos, que
: ( 1 ) "ne montrez pas en public — et parfois en
fazem parte de um grupo, o compromisso da promiscui-
I — plus de préférence qu'il n'est nécessaire pour
dade ou do comunismo sexual ?
elle ou tels camarades particuliers."
Depois, essa é a ética do "après moi, de deluge": Então, sob o pretêsto de que não devo fazer sofrer,
ninguém pensa na seleção humana. Pode mesmo resul- posso eleger os meus amigos particulares em meio
tar daí o naufrágio de todos os embriões. Tão longe "camaradas" em geral?
não vai o neo-maltusianismo. • . E são os homens livres Isso é regra de conventos, de asilos de freiras,
e as mulheres concientes os que devem deixar descen- pois, que espécie dc sofrimento eu provoco? Os que
dência eugênica. freriam, seriam os ciumentos e exclusivistas (e Ar-
Demais, a mulher, a natureza a tez apta a servir *fld não combate o exclusivismo, o instinto de pro-
a muitos homens, e o homem é menos capaz dc satis- M d.idc amorosa e o ciúme?). Os que sofreriam se-
I H I I aqueles que não têm o direito de privar a quem
fazer a algumas mulheres...
"r que seja da sua lil>crdade. A amizade, a simpa-
Além de tudo, talvez Maria Luíza tenha razão: , o amor não se impõe.
"Suspeito, por vezes, que no seu amor plural (de Ar- São sentimentos espontâneos, e, regular e fazer co-
mand) e dos seus companheiros de "l'en dehors", haja rativas de produção c consumo dos sentimentos, do
uma simples precaução de viajante que não gosta dc lu- Imo modo como se faz cooperativas de calçados ou
panar. O que passa, pede a todas as flores que se ofe- produtos agrícolas (l'en dehors — outubro de 1929),
reçam a suas mãos e suas contínuas viagens lhe fa- Considerar o amor analisável como qualquer outro
zem evitar, sem pena, as que lhe poderiam desagradar. éuto do organismo, é desconhecer a psicologia hu-
Assim, o "todas dc todos" tem, para êle, um sentido
generosamente prático; o "todos de todas", um sen-
( I ) Traduzido para o português. Sob o título: No pais dos ho-
tido prudentemente teórico." li Orléans — França.
80 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 81

mana, é pôr os "complexos afetivos e psicológicos no nlo do instinto animal, da força bruta, da bcstialida-
mesmo nível da plantação de batata* ou da secreção selvagem ?
biliar ou renal. A vida afetiva ou mental não pode ser Os homens repetem as lutas dos tigres, dos touros
analisada em retortas. As pesquisas dos gabinetes dc • dos galos. Nada menos.
antropologia psicológica experimental têm dado as con- I Armand combate, com justa razão, admiràvelmen-
clusões mais disparatadas, quando as querem levar ao I tr. o ciúme, o exclusivismo sexual, o proprietarismo
domínio do pensamento puro ou das afeições: cada " s á - j amoroso, mas, não creio que a sua cooperativa seja ca-
bio" as tira conforme os seus princípios defendidos, osj p.i/ de pôr termo a tais sentimentos inferiores, pelo
seus dogmas ou as suas doutrinas e "descobertas". •Ontrário, parece a mim que os instiga, os estimula ou
ilurá aos jovens uma espécie do cinismo vulgar dos
As manifestações da vida sentimental ou psíquica
aproveitadores de todas as situações.
escapam às mais graves e sutís investigações científicas
de pesquisadores abalizados. À mulher, que papel lhe fica reservado?...
E' só o reinado do erotismo nos seus estremeci-
E, cada dia, descobrimos e estudamos esses com-1
ientos mais grosseiros e nada há de delicado c gene-
plexos como realmente complicadíssimos, efeitos de cau- [|0lo em as criaturas se entregarem indistintamente
sas cujas leis não chegámos a perscrutar. • M s às outras, a cada instante, sob a capa de um com-
O homem interior é um mistério. promisso dc grupo cooperativista ?m amor, ou sob a
E a verdadeira sabedoria põe um ponto de interro»' pipa de um princípio livre, comunista, defendido aliás
gação diante das incógnitas que se debatem em a nossa bor individualistas...
mente estreita, servida por sentidos grosseiros para Um jovem defensor de tal "cooperativa", ufana-
apreenderem os delicados estremecimentos da natureza se, contando a um "camarada": "Minha irmã já te-
humana. mais de 300 amantes!..."
Fazer cooperativa amorosa sujeita à lei da oferta c Necessariamente, si não vive da prostituição, é uma
da procura é despertar em nós apenas o erotismo, <»i Miormal essa mulher. E' um caso clínico.
instintos puramente animais que devem ser regrados E, porventura, também não o será seu irmão?...
pela razão. O amor é a escolha não deliberada. E' uma como
Não é cultivando o amor puramente animal q t l Vedileção das nossas forças interiores sacudidas por
se chega a combater o exclusivismo cm amor. Dondi uni não sei què de misterioso, é a liberdade absoluta de
vêm o ciúme, o exclusivismo, as tragédias passionais. llfger espontaneamente, inconcientemente digamos,
82 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

nunca, porém, a promiscuidade ou o servilismo galiná- No amor plural dc Han Ryner, é a mulher quem
o seu companheiro e êle deve estar à altura de
ceo.
• • nupn <-nder o seu gesto.
Exigir ou submeter-se — avilta, humilha, deprime
• "não fazer sofrer*' de Han Ryner, tem significa-
a ambos, igualmente. lu-m mais alta, é dc mais alcance ético, de alcance
E não é preciso defender nenhum princípio ou ser Itlmental-afetivo.
associado de congregações para fazer o que todos os
Km Les Pacifiques, Meloé, a jovem atlante não se
homens fazem ou desejariam realizar: ter muitas mu-
^fc Jacques — o civilizado europeu — nem lhe dá ao
lheres à sua disposição. .1 mão para beijar, porque "tu tens uma alma de
E como o homem a natureza o fez fácil de conten- III mm e de escravo", diz ela; porque "tratas o ser vivo
tar-se, e como a mulher é quem plasma, cria uma nova "• a uma coisa sem vida" : "tratas o que pode gozar
forma de vida no seio carinhoso, Han Ryner, no seu • «olier, como si tratasses o que é insensível",
romance dc hoje e de amanhã, faz o contrário de Ar- i "Não é a concessão desdenhosa que te deveria fe-
mand : é Orfeu o escolhido, o eleito, e, novo Don Juan Não soíreria.s nada, si, sob a tua emoção, a mu-
de um amor novo, aceita o amor sincero de qualquer i permanecesse sem e m o ç ã o ? . . . "O encontro de
mulher — uma vez que essa nova fortuna não venha iliiitt .ilividades humanas não se parece em coisa algu-
prejudicar suas riquezas anteriores. Na concepção do MM «oin o encontro de uma atividade humana e de uma
amor plural de Armand, a mulher é passiva, continua |«HI\nladc material. "Emana de t i um odor odioso, o
vítima da sua passividade de escrava de harém, afim de Mtloi "cruel", o que os poetas chamam arcaicamente
realizar o sentimentalismo sofista da ordem: "não fa- ' lor do tigre".
zer sofrer".
I — "Mataste?
Dentro desse lema, tomado ao pé da letra, a mu-
I I —• "Uma vez, em uma batalha.
lher não tem tempo para coisa alguma, sinão para mi
I r —- "Estás condenado por toda a vida. O odor
tigar possíveis sofrimentos... e evitar dores futuras
te perseguirá sempre. Vai-te, assassino!
problemáticas. E se perderia na teia do autoritarismo r
I I "Essas palavras eram pronunciadas com melanco-
da vontade de domínio de todos os componentes do
lia, n.10 com dureza. A jovem parecia se exilar ela
grupo, tornando-se a presa da angústia e do servilismo
Mifin.i de uma esperança tão querida já, de um sonho
* H | mnado.
I "Protestei: — Não sou assassino. Corri perigo.
MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 85
Obedeci a ordens, a sentimentos nobres e p a t r i ó t i c o s ^
IMH liberdade humana, praticados pela civilização bur-
a uma necessidade. l capitalista.
" Covarde! — disse Meloé, com acento decisivo."
I Mscordar, nesse ponto, de Armand, não quer dizer
E Meloé começou a se elevar nos ares, nos seus
qm o não admire enormemente e lhe não preste todas
voos ritmados e ligeiros, como uma grande ave que sou- a« minhas homenagens de reconhecimento, admiração e
besse tirar partido da sua beleza harmoniosa e da ener- Kttia.
gia cósmica — para equilibrar os seus voos pelo cinto
captador de forças naturais e de que os atlantes se uti- Mas, mulher, defendo-me, e aos indivíduos do meu
•»»o, de uma escravidão quiçá tão deprimente quanto
lizavam para alçar seu corpo até às estrelas, ou pairar I
• M< i.ividão da moral do industrialismo desta sociedade
como uma bela flor suspensa. E Meloé, embora todoij
d« . iItens e proxenetas.
os brutais sofrimentos de. Jaques, não cedeu aos dese-
jos do civilizado raffiné. I E* a mesma razão por que Han Ryner combate,
E' um pequenino trecho desse bvro maravilhoso e ^HpJ o coração e com a razão, o pluralismo sexual de
único, e só estes períodos dão ideia do quanto Han Sim.iiid. Além de tudo, uma associação dessas, um
Ryner exige do homem para estar à altura do Amor iHtupt omisso dessa ordem atrai, para o ambiente, indi-
à altura de ser o eleito de uma mulher conciente dc ii UMuos e mesmo aventureiros de toda espécie e, como as
mesma, conciente do seu individualismo renovador, M MM H ni ic ias são elásticas, aonde poderão ir as conces-
voado de sonhos. ^ H | , deprimentes e dolorosas até a alma? Decidida-
^H|Me, por mais boa vontade que eu possa ter para Ar-
O "não fazer sofrer", de Han Ryner, tem limitei
H M I H I , repugna-me, como a Han Ryner, o seu amor plural.
circunscritos na relatividade das realizações interiorci
mais ou menos paralelas. Mais interessante, mais original é que Han Ryner, ,
|MU palavra de Orfeu, critica a sua própria concepção
O pluralismo sexual de Armand parece desconhe
t|o iinior plural, a sua atitude de teórico c estabelece
cer essas delicadíssimas nuanças de arco-iris da concew
H»Mi|i o ação entre as ideias de Armand e a sua própria
ção do amor plural de Han Ryner, embora Armaiv fUlKepção do amor plural.
tenha também o grande valor de ser um dos paladino
mais corajosos da emancipação sexual da mulher, & 1 K* já uma velha divergência entre os dois defenso-
o seu ponto de vista, já se vê; embora Armand cotl »•« de verdades de a i>ecto idêntico, si as olharmos
dene, igualmente, todos os crimes de lesa-felicidade e dl •Mpríicialmcntc, e de finalidade oposta. Pelas colunas
• "en dehors", o sorriso malicioso e doce de Han Ryner
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL
86

e o sorriso ''áspero" de Armand se tem batido na are-


na da imprensa livre, em torno do problema. Prcnez-moi tous!"
Han Ryner, com muita graça, tirando uma desfor-
E' um romance de Han Ryner, publicado em 1930,
ra da última polémica a propósito do amor platónico,
qual o autor estuda "as duas éticas que se dispu-
em que Armand o atacou sem piedade, amor platónico rAo o próximo futuro."
de que Han Ryner é partidário também, como aliás o é
de todos os amores, desde que sejam Amor, — com E' a angústia e a tragédia das lutas entre a natu-
la humana e as instituições sociais. E' o problema se-
aquela ironia risonha, coloca o pluralismo sexual de Ar-
I, o problema do amor livre e das "organizações"
mand no seu devido lugar.
amor nos meios "avançados"...
E' admirável a crítica e a auto-crítica. Corajoso I
jovial na apreciação forte em torno do pluralismo "no- E' a continuação ao romance de hoje e dc amanhã:
Amor Plural.
jento e i>esado" de Armand, a sua própria malícia Han
Ryner a carateriza dc poesia e riso de arco-iris; a dei Sigamos por ordem, as páginas de Prenez-moi tous!
fjamos, à vol a"oiscau, trechos da sua audaciosa análise
Armand: "recusa de olhar mais alto. Recusa ou i n v l
ológica :
potência, não se sabe nunca."
E' que Han Ryner "evapora" o amor plural Han I "Pela primeira vez na sua vida. Denise procurara
ter alguma coisa pelas lágrimas.
Ryner não estabelece dogmas nem "organiza" nenhum I
sentimento: que cada qual resolva o seu problema como I " A h ! meio deplorável: raramente eficaz no presen-
lhe aprouver. , envenena sempre o futuro. Como o sorriso conse-
Para Armand, o amor é puro instinto: põe-sc-llirl te melhor e se irradia para mais longe! Os sucessos
idos pelo choro são disputados à irritação do homem,
apenas a máscara transparente de ligeira fantasia semi
les, o homem conserva a lembrança mais desagra-
timcntal.
vei c a mulher experimenta não sei que desprezo pe-
Para Han Ryner, filósofo profundo, metafísico l i - | fraqueza do que cedeu. Mas o insucesso irrita por
vre, metafísico de poemas e de sonhos para além <l<i| luito tempo contra o homem que, pelo fato de haver
tempo e para além do espaço, o Amor é algo de gran-l •iltido à comédia ou à infantilidade, aparece como in-
de, e, como tudo que é grande, escapa à nossa comprei ii ivel.
ensão limitada, para Han Ryner o Amor tem as suaa]
" E a mulher sempre se apresenta desfigurada na
raízes na noite dos tempos e nos abismos de luz <l|j
lembrança masculina. Só nos escritos românticos as lá-
nossa vida interior.
88 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

grimas embelezam. Na vida real, quem as chora, cal- os os homens, dc que "o homem é poligamo por na-
culadamente ou por despeito, torna-se ridícula, desde- Nza; mas, a mulher é, por instinto, monógama."
nhada nas profundidades mudas, ao mesmo tempo co- y E a atitude do homem, sendo pluralista mas re-
mo uma criança e como meio louca." fTtndo, para si só, uma ou algumas mulheres de elei-
\a que "parece reservar para si aquelas que
* ima e estima, e desprezar as que êle mesmo busca."
* * Dai os escolhos em que se bate a mulher dentro
| atual hipocrisia social e diante do exclusivismo mas-
Por que razão Han Ryner faz duas mulheres orga- •lilmo. Só o homem pode escolher; c, buscando a mu-
nizarem a religião do Amor Plural ? Si chega quasi à Uirr, despreza-a, porque foi " f á c i l " . . .
conclusão de que a mulher, por instinto, ama a um só "Respeita" a sua esposa legítima, elegendo-a só
homem ? ^Hra si, reservando-a exclusivamente para a sua posse,
O exagero emotivo da mulher, o despeito pela per- ^•"desrespeita" as esposas dos outros homens, si as
da do homem amado que busca ou aceita outras aman- Ifthquista!. . . i*. ai da esposa que se permite o capri-
tes, o desejo de gozar o mesmo que êle goza, o desejo Wko de tentar a escolha e a liberdade!...
de imitá-lo, de pensar e agir como êle — é que faz com Então, si uma mulher busca um homem, por amor
que ela pense organizar o amor plural em religião. A EMI por simpatia, êle se aproveita dela e a despreza —
mulher, apaixonada e emotiva, tem o instinto da imi- KVque "não se respeita", porque " é fácil", porque "não
tação, por ser conservadora... e por egoísmo. A pro- IMM vergonha" de se dar ao homem. . .
paganda da promiscuidade no amor vai levá-la ao exa- Inútil. Duas raças sociais... A moral do homem
gero de erigir o amor em religião organizada, por amor B de uma baixeza e de tal egoísmo para com a mu-
a um homem. \WÊt, que parece impossível o entendimento entre os dois
Por sua vez, o homem quer ser pluralista, embora B o i . E é ainda a delicadeza feminina, o esforço pa-
queira reservar para si as mulheres da sua intimidade, fft ser feliz que a faz tolerar a ditadura masculina.
as amantes mais próximas, a esposa c as queridas. HMmo porque, a vida lhe deixa tão pouca coisa que é
Han Ryner estuda bem e maliciosamente a atitude H ^ i s o abdicar de tudo... por amor.
assustada de Orfeu quando ouve Denise e Irma propo- Demais, a experiência feminina milenar prova que,
rem o amor plural 'organizado", também elas tomando imf toda parte, é a mesma coisa e que, si não tiver es-
parte na organização... Orfeu estava convencido, como Wcismo, roubam-lhe ainda o pouquinho que a vida lhe
90 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 91

concede. Dai, o perdão feminino eterno e infinito, dai I ^Hbder a sua liberdade, mas vai perder, mesmo a con-
a sua resignação estóica. E* sempre o superior quem | •Incia dessa liberdade e torna-se autómato.
cede... O homem só sabe exigir. Ceder, nunca. A me- 1
A inquietação de Orfeu cm torno da possibilidade
nos que se deixe dominar. ||M libertação sexual de Denise, é bem a análise de que
Então, é o servilismo, a sujeição Í- tirania do amor j (I homem é ainda mais exclusivista que a mulher. E não
único. Mas, a situação se vai esboçando muito diversa. m conforma facilmente com as perdas dos direitos de
Cansada de ser vítima, a mulher se vai transformar em •Mio e possuidor de um indivíduo do sexo feminino.
algoz! Declara-se cientificamente, biologicamente, fi- A atitude distraída de Denise para Orfeu a faz mais
siologicamente, com as mesmas necessidades do homem. MSejada aos seus olhos: isso é bem da psicologia mas-
Já faz vida de garçonne. E os mieos avançados pen- •tllina.
sam "organizar" o amor livre (!), como si o amor ou E é tão absurdo o amor a três ou a quatro, aberta-
como si a liberdade pudesse existir dentro de qualquer mente, é tão contrário ao caráter reservado do amor,
organização! "O homem em partido é parte de ho- |Ur, mesmo as palavras, a ironia, o sorriso e a análise,
mem", dizia Ibsen. A liberdade e o amor não supor- i *Mcs estados de alma, entre três pessoas (Orfeu, De-
tam nenhuma organização. E a mulher, de vítima, pas- «•. Irma) que se querem amorosamente — "soam como
sará a dominar a situação e pensará em "organizar" • • i hoque de espadas... "

a vida afetiva a seu modo... O homem, receoso de No nosso grau de evolução mental, o amor é a
perdê-la, aceitará o j u g o . . . tornar-se-á seu cúmplice. ||ois; sucessivo ou simultâneo, não pode suportar o
Será dominado como instrumento nas mãos da mulher, *»o de uma multidão dc t r ê s . . . Saindo disso, é o "cho-
rebaixada pela promiscuidade "organizada" do amor BUc de espadas" ou a libertinagem c o deboche a três.
plural. Impugnante.
Em vez dos indivíduos se elevarem pelo amor, vãd A mulher esposará, daqui a pouco, docilmente pri-
identificar-se no rebanho da "organização" ou coope- Íto, depois, apaixonadamente, religiosamente, essas
rativa amorosa. Vão rehaixar-se até o crime e as mi- ias de organização do amor plural. Fará delas uma
sérias próprias das religiões organizadas para massa- ligjão, a "sua" religião, mas, por amor a um homem,
crar as possibilidades latentes em busca de uma liber- ra esposar o seu pensamento, para penetrar no seu
dade mais alta. Uaráter, contundir v com o seu temperamento, para
Orfeu duvida si é pluralista ou si apenas gosta dl pintar reconquistá-lo.
variar. Dominado, tem de recorrer a subterfúgios pari. O seu poder de adaptação — para conservar — re-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 93
92 MARIA LACERDA D E MOURA
"Todo ser é único.
duzirá o amor à promiscuidade organizada e a socie- "Todo beijo tem um sabor inédito.
dade a um caos dc miséria moral e mais ódio e mais "O amor pertence ao reino sutil da qualidade, não
baixezas. E' um perigo a ideia da "cooperativa" do «o domínio grosseiro e ingénuo da quantidade.
consumo amoroso, de que se faz apóstolo Armand. "Não digas jamais que amas a um de teus ama-
Amanhã, dentro de pouco, a semente lançada neste caos los mais que a outro ou menos que a outro. Porque,
de sociedade dará seus frutos. O amor é uma força rada amor é todo o amor e cada amor enriquece o
cósmica desconhecida: brincar com o amor é tornar-se fcinor de nuances novas."
o joguete inconciente de energias inacreditáveis que nos
O amor único é tão exclusivista que cada qual quer
podem reduzir a um trapo... Não se trata de tabu ou
iluminar o pensamento do outro. E a franqueza não
totem. Não se cogita dc deuses ou de espíritos irrita-
KKJC viver entre duas pessoas cuja exigência procura
dos : falamos de forças naturais, de energias cósmicas.
Violar a conc'cncia do bem-amado.
A mulher vai esposar tais ideias do homem a quem
Belas páginas Han Ryner escreve, nas quais estu-
ama, vai j>enetrar-se delas, divulgá-las, vivê-las, por
da a inquietação de Orfeu diante da transformação de
amor a um homem, e ambos se vão perder num labi- Denise que esposou, atrevidamente, as ideias apenas es-
rinto de forças desconhecidas e perigosas. E' uma ar- Bçadas na sua mente, e vividas indiferentemente no
ma afiada nas mãos de uma criança inexperiente. Não l | U egoísmo de homem que ama, cm liberdade, e que
temos a superstição do papú, mas confessamos desco- híio pode conceber a ideia dc que sua mulher legítima
nhecer as energias universais. nu suas amantes façam o mesmo. E, nessa transfor-
Notem os indivíduos dos meios avançados como • a ç â o , é ainda Orfeu que elas admiram no seu novo
todas as mulheres que os frequentam compreendem lo- entusiasmo.
go o seu direito de amar. Mas nada. Continuam geral- Denise supõe ter sido liberta dos preconceitos mo-
mente impermeáveis a todos os outros conhecimentos, BDgáinicos e agradece tal liberação a Orfeu. "Orga-
continuam burguesas, explorando naturalmente e im- nizando" o amor em "cooperativa de produção e con-
pertinentemente outras mulheres, mas. compreendem o • I I I I I O " , segundo a lei da oferta e da procura, sempre
amor livre, o amor plural. Entretanto, como o homem, •itrumento do homem, sempre a serviço do seu cor-
seriam exclusivistas para receber do bem-amado e gene- mo, da sua emoção ou da sua ideia, a mulher é quem
rosas para se dar a todos... Vai forjar novas cadeias no amor "organizado" por ela
Não compreenderiam* contudo, as regras de ouro liicMua, ou, quando for catequizada pelos "camaradas"
do pluralismo:
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL
94 95
organizadores, e há de se ver envolvida no duro cati-1 0, como também, desde que amo, elevo o bem-ama-
veiro do servilismo e da promiscuidade sexual que a fa- ) acima de todas as conveniências e de todas as con-
rá mais escrava c mais desgraçada, si se não tornar dições, como, desde, que penso, coloco-me acima de
cínica e libertina. • M as convenções e de todas as conveniências."
Vejamos, em síntese, o pensamento de Han Ryner
«
esboçado em " Prencs-moi tous!":
"O pluralista deve dar-se todo inteiro ao presente".

"A única imoralidade que eu conheço e que cen-


* * to, é a pretensão de impor a outrem costumes que
I - I H ou que se não tem."

Falando da organização do amor plural :


*
"Elas me pareciam esmagadoras, as servidões * •
tua obra de liberação".
"Toda regulamentação religiosa ou civil do casa-
* to e todos os ritos nupciais têm origem totêmica.
* * é, constituem sobrevivência de velhos costumes, os
II formaram um estúpido conjunto, porém ligado e
"O ciúme, esse egoísmo intolerante e agressivo.., tmático: e hoje, não são mais do que ilhotas de
BOS.
Zelos c amor são contraditórios. O ciumento não ama
uma pessoa. Nem mesmo se educou e civilizou-se até A aproximação de uma mulher para os primiti-
amar a volúpia. Ficou sendo o bárbaro, pronto pan ^ é coisa temível, porque sacrílega. O beijo subleva
dominar. Querer diminuir um ser: a peor maneira d« | i * misteriosas e irritadas. Ofende aos ancestrais
desprezar e detestar esse ser. O ciúme é bem um ódio Hnicos, os Espíritos. Para desarmar o seu ciúme,
pois que, "si for preciso", mata o que pretende amar cerimónias complicadas são úteis; a resistência real
Quem ama quer a felicidade do ser amado. Quem ama simulada da mulher é indispensável. Tudo o que se
toma o bem-amado como fim e não como meio. Náo riona com o sacramento, com as momices diante do
somente o amado é o ser cuja liberdade cu mais rvs I dc Casamentos ou mesmo a coquetterie defensiva,
96 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 97
no justo sentido, é superstição." Porque, superstição
atribuir a entidades misteriosas as consequências
*
nossa ignorância e o domínio de leis naturais desc
nhecidas. * *
"A pretensa nobreza concedida ao casamento mo-
Mas, c a coqucttcrie dos animais? Não será pa
^ • U n o provém do tormento da unidade que diz úni-
estimular ?... liainrntc a fraqueza e a estreiteza intelectuais do ho-
Hftm. A monogamia pertence à mesma ordem de lou-
íttirns que os sonhos de monarquia uuuersal; que a teo-
HpPPPF logia criadora dc um deu- único; que o monismo, o qual
Hjir que toda substância seja homogénea; que a al-
" A paixão exclusiva e ciumenta por uma únicfl • l i m i a que congraça todos os metais cm um único mc-
pessoa, o pretenso amor tal como nossa absurda UnS H{ que esse absurdo monogenismo, o qual faz descen-
versidade ensina aos nossos desgraçados jovens, atrai
iln de um casal único todos os homens de todas as có-
vés dos poetas trágicos, é, com efeito, a mais terrível kf.ii."
das tragédias.
Na página seguinte, Han Ryner faz Orfeu certifi-
"Dá em resultado o crime de Fedro e a morte I» Hf*ie de que são forçadas essas aproximações... E
Hipólito, a loucura visionária de Orestes, o assassíni Hpque o nome de monomania a essa tendência ?...
de Pirro ou de Bajazet, a ridícula e triste subida de Mal
garida ao Paraíso, o suicídio de Romeu e Julieta, a a l *
pressão de Desdêmona, as mil catástrofes que acariciai
ignobilmente e deliciosamente o nosso sadismo. Naj
digam principalmente que os poetas exageram e "M "Que fantasia esquisita, quando se ama a liberda-
imaginem a vida menos brutal que ) drama. Todos Ê K de se divertir, em organizar, isto é, em destruir a
dias, qualquer jornal de informação vos oferecerá, frei InVidade."
cas como ao sair do matadouro, uma dúzia de tragediei
e nossas ogras ideológicas frequentam o tribunal â * *
juri com menos interesse que a Comédia Francesa M {
Grand Guignol? " " 0 amor plural me parece a verdade enquanto é a
br idade e enquanto se conserva amor. Eu lhe oponho,
98 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 99

dc boa vontade, dc uma parte, o deboche; de outra, pluralista, em cada mulher que ama, aprecia o que
amor tirânico e constritor. Mas, Vcn dehors e L'Ell I tem de particular e dc único. O verdadeiro plura-
bore ensinam, há alguns anos, e vós ensinais, hoje, u I é um individualista que ama indivíduos".
pluralismo de volúpia que, si não escorrega aviltado att
ao deboche, tornar-se-á, com o uso, tão perigoso e
criminoso como o amor único."

* Desde que tu le encantas pelo que outro tem de


[crente e dc- pessoal, tu és, segundo o sexo da pes-
I amada, um amigo ou um amoroso.
"O amor plural é sempre, tanto para o homem c Essa liberdade, que é um elemento de todo verda-
mo para a mulher, o desabrochar da lil>erdade, da iro amor c que, si a escolha se impõe, é mais precio-
bedoria e do individualismo. Mas, a camaradagem am que o próprio amor, cm que se transforma ela em
rosa de UEllébore ou vossa Fraternidade do Amor, ê lias associações ?
contrato que esposa um grupo inteiro, conhecidos
Os anúncios do jornal UEllébore, no período em
desconhecidos, é infinitamente mais servil que o co
I seus colai>oradores tateavam ainda na constituição
trato banal e o casamento diante de um ventre enfai
grupo, pediam companheira ou companheiro "parti-
do de tricolor. Que idiota de elléborista sustentou q
ndo as ideias de UEllébore." O amor plural, longe
dentro do grupo, é preciso obedecer ao apelo de am
se preocupar em confundir as ideias, regozija-se com
tão lealmente como o colono do agricultor vai, qu Mouro das diferenças. O banho de amor deixa livres
do recebe ordem, colher batatas. Tirania nojenta! duas cabeças, as duas respirações, as duas vidas,
francamente, ao colonio do coração será sempre \ •usa o que quiseres, o que puderes. E deixa-me pen-
sível realizar a tarefa?" r, como diria o sábio camarada La Purge, o que exi-
1 meu determinismo cerebral. Um pensamento ver-
* jleiro ama os outros pensamentos "erdadeiros. O in-
Icrante é o repisador fastidioso, o espírito gregário,
|Ucle que repele um catecismo ou um manual. Não
"A Fraternidade exige que ames todas as tuas l i l i o amar um autómato nem ser amado por êle. Nem
mãs no que elas têm de semelhante. Mas, o verdadfj manequim católico nem o fonógrafo que me recita
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 101
1 0 o MARIA LACERDA D E MOURA
11 A lei — essa estúpida celerada...
UEllébore ou as fórmulas rituais que, sem dúvida, en
sina a Fraternidade de Amor. *
O amor é mais profundo e menos idiota que a ade < *
Amo o pensamento de vinte filósofos. Desprezo a |
breza sem pensamento de mil discípulos. Mas, os p "Os peores terroristas foram, por vezes, na vida
samentos que me encantam, eu os amo na harmonia nte, seres de doçura." Denise chega a matar M i -
uma doutrina e de um homem e lhe não permito, n. para salvar a organização da Fraternidade de
maneira alguma, que me perturbem o ritmo inteleetu f...
Ou teu pensamento não existe ou é uma harmonia *
qual nenhum elemento poderia entrar, tal como se ap * *
senta, na minha harmonia.
Eu te peço não ser nem o escravo que repete, ne
Han Ryner sabe que. em nome do Amor, em nome
o tirano que exige que eu o repita. Deixa-me ver*
Justiça, da Solidariedade Humana, em nome da Or-
e te amar em t i ; mas, permite que cu me realize out
, da Pátria, do Progresso, da Liberdade, Igualda-
diverso de t i . Não exiges que cu tenha a côr de te Fraternidade, em nome de Deus. da Religião ou do
olhos ou a forma de teu nariz; porque exigirás que tr, em nome da Civilização, da Bandeira ou do Di-
arremede a tua palavra? — os homens se estraçalham como animais fero-
— para "salvar" a Humanidade... o Amor, a Pá-
* ou a Religião, a Família ou a Sociedade.
* *
*
"Consentir em deixar adulterar ou banalizar n * *
pensamento conduz a deixar adulterar ou banalizar
nha conciência. E' o escorregar em direção ao legf "Só tenho dois amores: amo o indivíduo com to-
lismo estúpido e opressor, ou é o escorregar em J as suas preciosas singularidades inatas. Amo a hu-
reção ao crime. Idade, tão singular também com sua linguagem ar-
lada e suas faculdades de abstracto; com sua pele,
udada de proteção, toda entregue às brisas e aos
1 0 2 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 103

*
frémitos do prazer como às rajadas do inverno e às pe-
* *
netrações da dor; com suas mãos hábeis para o traba-
lho e para a volúpia. Todo agrupamento, aos meus olhos
c um duplo crime: diminuc o indivíduo e divide a huma- "O único refúgio é o amor livre e plural não or-
nidade. Agrupar os homens — é sempre fazê-los inimi- izado. A organização estraga tudo. Organizar a l i -
gos de outros homens. de é criar a servidão. Organizar o amor é criar os
es c os ódios. O amor plural é um sentimento in-
* uo c natural, doce e inocente como meu gosto pela
tia na qual dei os meus primeiros passos c onde fixei
s primeiros olhares. A organização faz, de um, o
Irintismo belicoso; de outro, uma religião intoleran-
"Católico tem o mesmo sentido que internacional
que, como todas as religiões, assassina cm caso de
* ICessidade."
* * *
* *
"Estouvados 1 Vocês imaginam que é preciso com-
bater, por não importa que meios, o mal verificado. I Han Ryner desce às criptas profundas da alma hu-
não olham vocês si as suas armas são tão nefastas Hftna ou do instinto: Orfeu prefere que Denise vá com
como as do inimigo. Todo agrupamento é um mal. mas miii.i mulher, afim dc não estabelecer preferência para
a guerra entre essas maldades hostis é o peor de todof H m os homens, os irmãos da Fraternidade de Amor...
os males. Lealdade, liberdade, pátria, quantos crimes •Mwja-a, antes, viciada... E' bem do exclusivismo mas-
cometidos em vosso nome! E tu, amor fraternal doi ' IO.

cristãos, és menos assassino que o amor sexual único ?..J


« *
*
« *
As exigências de Miranda provam que o exclusi-
vismo é taml)ém inherente à natureza feminina.
"Toda organização vencedora torna-se abominável Aliás a Fraternidade de Amor é fundada pelas
como um Estado ou uma Igreja. Bnantes de Orfeu, certamente para tiscalizá-lo em con-
104 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 105

junto... tuna vez que cada qual não o conseguiria iso- limo — resumem todo o ódio, ioda a perversidade
ladamente. • ) toda a indiferença com que pode agir um apaixo-
A atitude de Orfeu quando se sente pai, o seu or- I nado para chegar ao seu objctivo, e o despertar de ins-
gulho satisfeito, prova também que o filho arrasta a lllitos ao calor de tal organização amorosa. Belas pá-
Bnas dc psicanálise Han Ryner estuda em Kersos e na
ambos para a tirania do amor único, pelo menos antes
H»i-ologia do homossexual.
de nascer... e tudo isso significa que organizar o amor
em sociedade é matar a liberdade e a alegria de viver. Este livro, Prenec-nwi tous!, merecia a pena douta
E , cada grupo social organizado é inimigo dos ou- • I um técnico da psicanálise. Que admiráveis páginas
ifV psicologia humana! Orfeu acariciado por Kersos,
tros grupos, hostiliza os indivíduos e o resto da hu-
B ó i haver desprezado, com repugnância, a sua decla-
manidade.
lin.ii» amorosa; depois, passividade adormecida, — dcs-
Todo indivíduo, isoladamente, é doce, amável,
fttrta, por fim, sob instintos atávicos paralisados; e co-
atraente, humano: Maria Luiza, Denise, Irma, encanta-
• 0 l i dentro dele acordassem fantasmas para dispu-
doras, individualmente; tornam-se hostis, tirânicas, au-
tarem a sua parte no festim da vila animal. Afinal,
toritárias e até servis no seu despotismo, quando na
fltfeu é quem se oferece a Kersos...
Fraternidade de Amor. Porque, desde que um grupo se
reúne, organizado, — é para hostilizar outros grupos ou Esse estudo confirma a análise científica de Ma-
Wanou,
outras verdades. Só pode haver harmonia entre dois
indivíduos, apenas dc dois em dois.. . Tratando de ami-
I , * — Todas as criaturas tem, dentro de si, os dois se-
zade ou dc amor, três é multidão.
xos, em luta para o predomínio do mais forte; é
* o atavismo hermafrodita.
* * — O Don Juan. o "corredor" atrás de mulheres, o
que gosta de variar — é justamente o insatisfei-
Organizar a liberdade não é libertar-se, é pesar por
to, o que não realizou aquilo que Maranon deno-
sobre a liberdade de outrem, é ir ate ao crime. mina "a sexualidade específica."

« * Han Ryner é admirável nesse livro cheio de sabe-


loria que, para muitos, é loucura e imoralidade. Mos-
As páginas em que Kersos fala a Orfeu do seu amor )fa que a organização do amor, como o amor dos sen-
homossexual'c discorre em torno do masoquismo e do • 0 1 apenas, quando não tem um sentido mais alto —
106 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 107

pode despertar instintos atávicos adormecidos e acor- ftl sal>edoria popular diz muito bem quando assim se
dar a volúpia grosseira da natureza inferior em seres IMprime: quem brinca com o amor, brinca com fogo...
evolucionados, sentimentais e cerebrais. Mostra o pe- * Não é apenas Freud quem o descobriu através da
rigo e o ridículo do intelectualismo na loucura das or- | n i c i a , é também a sabedoria rosacruciana:
ganizações dos sentimentos ou das emoções. Porque
não se pode organizar aquilo que, por sua natureza, "O sexo é onipresente e onqxmetrante no Universo,
oda criação é geração, e toda geração procede do
escapa a toda espécie de organização.
|XO."
Lânguido, em estado vertiginoso, cambaleante na
sua vontade dominada pelas mulheres a quem ama, Or- O sexo existe no plano físico, no plano mental e no
Hino espiritual.
feu se deixa arrastar por todas, por Kersos, faz todas
as concessões da sua vontade incerta, torna-se um au- "As atividades dos eléctrons, dos átomos e corpús-
tómato, torna-se bruto nos instintos, fraco, impotente Vlllos de que a matéria se compõe, são puramente ati-
na vontade, no domínio próprio, é um morto vivo, um Mdades sexuais; toda atração é atração sexual; toda
"fantoche" inerte. Bllvidade cósmica depende da atração: o sexo é o po-
l i r motor atrás das atividades cósmicas."
E' o que "brincou" com o amor, o que se deixou
levar, descuidoso, até perder a individualidade, no tur- Magnetismo, fascinação, sugestão, hipnotismo —
bilhão das vontades que se desencadearam por sobre a •etlo dentro da teoria do Sexo Mental.
inércia da sua individualidade dominada, primeiro, pela O Universo é bissexual.
necessidade banal de variar, aceitando as dádivas afeti- Assim como "há uma geometria que aplica ás na-
vas de algumas mulheres; depois, embalando-se na ca- M C H uma equação de suas curvas evolutivas, e estas ne-
rícia multiplicada de todas elas, vaidoso e descuidado nhum mortal pode alterar", — também há um deter-
até se perder no labirinto das vontades alheias à sua •jnismo de leis de causa e efeito, desconhecidas, mis-
vontade. kriosas, que regem o amor nos planos físicos, mental c
E* muito profunda a alma humana para que a gente m>{ritual. Sinão. que cada quaf busque divertir-se com
se deixe levar, divertindo-sc... com os sentimentos, ou 0 amor ou que se deixe levar, como si penetrasse na
mesmo com as emoções. Divertir-se à custa dos outros ! •ftrrente de um rio e se deixasse arrastar ingénua, de-
ou tirar partido dos sentimentos e das emoções, pró- •iosa ou descuidadamente... A experiência mostra-
prias ou alheias, como passatempo e, às vezes, até mes- iii, é fatal, mais dia, menos dia, o punho de ferro de
mo enfarado já, é um perigo de que ninguém escapa. ima lei de sofrimentos capaz de "arrebatar um ser ao
108 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 109

rebanho" ou capaz de desencadear a angústia da tra-


sentidos, da emoção, do amor — para procurar de-
gédia amorosa. Que o digam os experimentados... írar os segredos da esfinge humana.
Si o Universo é bissexual, e si tudo é vibração no Para Han Ryner, o que os civilizados denominam
Universo, si o sexo é onipresente e onipenetrante, si o ito é apenas um crime social: lembrança atávica da
sexo fecunda ou é fecundado no plano físico, mental e •pjOgamia das clans primitivas, é tabu, é totemismo, tein
espiritual, si "a diferença das coisas bascia-sc somente origem na superstição dos ancestrais.
na diferença de suas vibrações", si a nossa vontade po- "E* sempre o social, primitivo que fez o sagrado;
de adquirir um grau superior de domínio próprio ou pode sempre o sagrado que se tornou o social atual.
dissolver-se na impotência e deixar-se dominar por "Contudo, não convém arrancar brutalmente tais
outras mentes ou outras vontades — como negar a in- es profundas de certos corações e de certos espí-
fluência das leis cósmicas de atração, gravitação; como ios".
negar que o amor é todo poderoso e que pode redu- Demais, o homem, pai ou irmão, abusa da sua auto-
zir a um trapo, a um farrapo inerte aquele que se dei- Hp*de, da força: só a mulher teria o direito de optar,
xou arrastar nas correntes universais circulares do seu porque é a fraqueza sem defesa e emocional e senti-
determinismo? mental. O homem aceita sempre: é mais instinto. Mes-
A regra de ouro está no principio da polaridade, hto assim, as naturezas delicadas de certos homens, re-
pelo qual o equilíbrio é encontrado no centro do círculo, Hfilem a ideia. Tabu? Superstição? Mas, há uma re-
entre os poios opostos... a mente neutralizando os ex- pugnância instintiva da mulher, principalmente. E há
cessos, pela serenidade e pelo repouso vigilante. Nem (Unta beleza pura no amor fura da sexualidade. De-
dominar, nem se deixar dominar. Liberdade interior. mais, quanto abuso por parte do homem dentro mesmo
Conhecer-se. Dominar-se. Realizar-se. Ma sociedade que estabelece um código para punir o in-
• festo! Imaginemos si o incesto fosse "organizado" no
• f t o r plural! Que servilismo, que degradação, que
* * i para a mulher, sempre a serviço e convencida
féje que se havia libertado, de que se havia emancipado!
" A Esfinge Vermelha", de Han Ryner, estuda
Han Ryner não entra nessas considerações, mas,
I m>is detalhadamente o problema do incesto.
como tudo é previsto na observação psicológica desse
mago do coração!
Como Han Ryner viaja pelas criptas profundas da
A sabedoria hanryneriana penetrou todos os arcanos
r «Ima, como sabe escalpelar as nossas contradições inte-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL \\
110

riores e como revela o mundo de almas contidas dentro Seria uma tragédia muito mais trágica que a pró-
dc cada ser humano! |a monogamia!
Por isso mesmo, sente que a organização do amor Contentemo-nos em viver o "drama de ser dois".
é o maior absurdo contra a natureza, qualquer que seja > nos basta a tragédia das raças sociais dos sexos?
a organização — dentro ou fora da lei. Quero muito a Armand. Sou-lhe profundamente
São magistrais as páginas de psicologia analisadas Onhccida pelo esforço imenso da sua vida dedicada ao
pela palavra de Kersos. Essas páginas por si valem »blema da emancipação sexual da mulher, pela sua
um tratado da alma humana. Como é profundo o es» " admirável publicando todos os seus opúsculos e l i -
tudo de Han Ryner nesse livro, que é a voz do subcon- M e conferências contra o exclusivismo em amor, pela
ciente! Pensamentos que são reflexos de profundida- iblicação de l'cn dehors que é, sem favor, uma das mais
des desconcertantes. Todo o livro é um admirável es- Itressantes revistas de arte e pensamento que se publi-
tudo do amor — resíduo animal de força e de domínio; Iftin na Europa, por toda sua imensa reserva de energias
amor — ternura e carícia sentimental exclusivista e exi- lerviço da emancipação humana. A E. Armand, a
gente ; amor — abismos de sombra e de luz refletindo Henagem máxima da minha sensibilidade reconhecida
na mente humana. E' todo o problema natural, pro- lo muito que faz pelo individualismo e pelo meu sexo.
fundo e misterioso do Amor. penas, não concordo com o amor plural organizado, nem
Que de problemas propõe Han Ryner neste livro imo livremente... numa cooperativa de "camaradas".
trágico e que faz r i r ! Fico ao lado de Han Ryner.
Um estudo maravilhoso de psicanálise. Lamento a
Isso não diminue; em coisa alguma, a minha estima,
escassez de tempo e de valor para analisar esta obra-pri-
• niru reconhecimento e a minha admiração por E. Ar-

r
ma do amor, cuja observação desce aos instintos mais re-
tn ni.l
cônditos em busca das razões de ser das nossas contra-
dições sentimentais, provando que, fruto de flutuações
indecisas, vindas dos milénios ancestrais, do sagrado an- * *
tigo e do social antigo e moderno, o amor não pode
obedecer a nenhuma espécie de organização, sob pena Antes de terminar o ensaio em torno de O Amor
acrescentar, à loucura social, uma demência trágica: mural de Han Ryner, façamos uma pequena digressão
loucura reflexa de todos os instintos, animais e huma Aliando polo livro de Alexandra Kollontai. Será o com-
consolidados no despertar dos tabus de todas as socie- limento da nossa tese, contrária ás organizações do amor
dades primitivas em luta com o ambiente social moder- •pt associações, partidos ou lutas de classes.
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL n 3

112
di.unas femininos não têm outra causa sinão a psicolo-
gia simplista com que o homem se aproxima da mulher,
"A Nova Mulher e a Moral Sexual".
•Urologia formada nas casas de lenocínio.
0 5 1 3

Kollontai, no seu livro admirável, estuda o papel des- O homem, uma vez habituado à prostituição, que
•xtingue as múltiplas vibrações da sensação amorosa, não
gastador da prostituição sob o aspecto tremendo da de-
| | entrega sinão a um pálido e uniforme desejo físico que
formação da alma humana. E analisa a obra extraordi-
• l i x a em ambos os seres um estado ÚS insatisfação e de
nária de Grete Meissel-Hess (A Crise Sexual) — Ale*
fome psíquica".
manha — Lena iDiederichs), em torno da influência que
exerce a prostituição sobre a psicologia humana. Porque, o amor não é simplesmente o contacto de
Ipidermes. Daí as crises femininas: crises sexuais e desor-
"Não há nada que esterilize tanto as almas como a
láens orgânicas; crises afetivas, desordens morais; crises
compra e venda obrigatória de carícias de seres que nada
•Rltais, desordens psíquicas.
têm entre si de comum. A prostituição extingue o amor
A influência da prostituição, conclue, se estende para
nos corações. l é m dos seus domínios e apanha todas as mulheres, em
Pod: haver alguma coisa mais monstruosa do que o Mieio, e todos os homens: é a degenerescência física e o
ato amoroso degradado ao ponto de tornar-se uma pro- Ailtamcnto moral e a dor inominável da insatisfação psí-
fissão?" qui< .1.

Todos ridicularizam o amor, ninguém mais acrediti Kollontai observa muito bem que o problema, pro-
nessa flor exótica e foi a prostituição que esterilizou o ! pnMo por Meissel-Hess, da deformação da psicologia mas-
coração masculino e envenenou a alma da mulher através •tihna pela prostituição, nos fornece a chave de outro fe-
do sofrimento infligido pela brutalidade amorosa do pòtneno cujas causas até agora não nos tinham sido re-
homem. l f Lidas: a incapacidade do homem para compreender os
Diz bem Kollontai, sintetizando o pensamento d l ttiitimentos femininos; o pouco caso com que considera
Grete Meissel-Hess: " A vida psicológica das sensações! | | mulher sob o aspecto psicológico, a indiferença ou a in-
na compra das carícias tem repercussões que podem pro- fnmpreonsão das sensações psicológicas femininas, exci-
duzir consequências muito graves na psicologia masculina, tada a mulher pelo homem e não satisfeita nas necessi-
O homem acostumado à prostituição, relação sexual dl lladrs sexuais. Kollontai se esquece ainda de uma coisa
qual se excluem os fatores psíquicos capazes de enobrecer Importante: a deformação mental do homem cristão como
o verdadeiro "êxtase amoroso", adquire o hábito de apn* muçulmano, judeu ou hindu vai ao ponto de achar que o
ximar-se da mulher com desejos reduzidos, com uma psM atii sexo deve tirar o máximo proveito do prazer sexual
cologia simplista e desprovida de tonalidades. Muitoi
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 115
114
e que qualquer demonstração de sexualidade na mulher Mier, mata-a si o "traiu": ciumento e vingativo, só
é feio, deprimente, deshonesto e imoral. Ainda lhe cul- uc uma escrava.
tiva a hipocrisia e a deforma também na sua natureza E a emancipação económica da mulher não a eman-
orgânica, e na sua estrutura mental; porque, a mulher •ii da escravidão sexual.
"pura" e "superior" e "espiritual" deve ser apenas a Kollontai, intuitiva, descobre que: "todas as refor-
"musa inspiradora" e não pode fazer caso "dessas coisas" sociais, indispensáveis às novas relações entre os
s, serão insuficientes para resolver a crise sexual, si
e se deve colocar acima "dessas porcarias" e contentar-
1 memo tempo não se formar uma força criadora pode-
se em dar o prazer sem o receber. . . ou fingir indife-
i, capaz de aumentar o "potencial de amor" da Huma-
rença.
lide."
Porque, para a moral do homem, si a mulher procura
satisfazer a sua necessidade sexual é que é uma "viciada". Todos querem amar verdadeiramente, mas, pouquís-
De tudo isso, resulta a incompreensão mútua, a de- M os que realizam a possibilidade interior da sabedo-
formação mental de ambos, a degenerescência física pela dc amar. Poucos os eleitos do amor. Porque os
ens ainda são animais ferozes e as mulheres animais
insatisfação, a tragédia de duas raças sociais que se atraem
nésticos. . .
pela natureza e se repelem pela deformação psicológica,
e o ressentimento recíproco do mal-estar do corpo e dos Diante dessa tragédia, surgem, na sociedade defor-
dramas da alma. E a correria para a manutenção da ^ H | t e corrompida, novas formas de amor corresponden-
subsistência ou a sociedade capitalista industrial cava, I a essa deformação: "amor-divertimento" ou "amiza-
cada dia mais, o fosso terrível para o abismo que separa I 1 rosa". E' uma transição para o "amor plural".
e desgraça os sexos na deformação física e psíquica. I "Essa relação sexual protege os homens contra os
>s mortais do amor, ensina-lhes a saber resistir à
E dentro do casamento legal como na união livre per-1
.lo que degrada e oprime o indivíduo.
dura a tragédia da deformação mental para a desgraçai
Porque Meissel-Hess já percebeu que o amor úni-
de ambos. com o seu espírito autoritário, é a desgraça da huma-
E como "não há tempo para amar", todos procuram I ^ M r f e : "Esse ato espantoso que podemos qualificar de
ridicularizar o amor e todos têm medo de amar... PorJ Hfcetração por violência no "eu" de outrem, não pode
que o tempo não chega para a correria-louca em busca dol H r * e no "amor-divertimento". O "amor-divertimento"
pão c do "amor sexual"... sem amor, para não dar tra-1 ^Mlic o pecado maior do amor: "a perda da individuali-
balho nem tomar o tempo dos negócios. M|I|I- na corrente arrasadora da paixão".
E dentro do casamento, como do amor livre, o homem
; "A Humanidade contemporânea vive sob o signo
é o mesmo troglodita: tem o direito de propriedade dl]
MARIA LACERDA D E MOURA
116
HAN R Y N E R E O AMOR PLURAL 117
sombrio da paixão, sempre ávida de devorar o "eu", unf
dos outros". Mas, si entre os anglo-saxões já é possi lário que a mulher aceite o lema de Goethe: "Saber
vel o "amor-diversão" ou a "amizade amorosa", por ora? Jir o passado no momento em que se queira, e rece-
entre os latinos, que levam tudo ao trágico e querem sem- 0 vida como si a gente acabasse de nascer".
pre impor a sua autoridade, isso é quasi utópico.
V A crise sexual só poderá ser resolvida dentro da
O amor, entre os latinos, é a posse absoluta de talai
i/ação interior, quando o autoritarismo animal do
as liberdades. E os homens superiores, os intelectuais,
k em e da mulher for sufocado pela atitude serena da
inventaram outra forma de ciúmes: os zelos, os "ciúmei
violência e da absoluta tolerância para com todos os
da conciência" da mulher amada... E tentam violar at"
de um e outro sexo.
mesmo aquele pequenino mundo interior que cada um
' Todos querem violar a alma do ser amado "pela pe-
nós tem e é absolutamente inviolável... E' a evolução
rnção" absoluta e violenta, pela posse da conciência e
do instinto de propriedade animal para uma forma men«
U autoridade. Isso agrava a crise sexual e a deforma-
tal de deformação perversamente sádica. E' a desculpe
D mental. Na Idade-Média, o marido apenas exigia a
para continuar a dominar e gozar com a sua posse ibfljl
Jtdade do corpo e as castelãs podiam dar a alma aos
luta e com o sofrimento e a submissão feminina.
1 poetas e cavaleiros, podiam morrer por eles ou vê-
E' a tentativa ousada para não perder a presa mi- morrer de amor. A deformação espiritual do homem
lenar. l sua perversidade requintou-se: hoje o homem tem
O "amor divertimento", a "amizade amorosa" ou o •nthém ciúmes da conciência da mulher amada e exige
"amor-plural" são as etapas de educação do homem e <U isa conciência se modele pela sua conciência... E
mulher, afim de que conquistem a possibilidade de amafj que não se diga que exagero, vejamos o mesmo
e possam merecer alcançar o "verdadeiro amor", depoil Jlamento no estudo de Kollontai:
que aprenderem a amar, deixando de ser autoritários, chi» "Os amantes de nossa época, apesar do seu respeito
mentos, exclusivistas e brutais. fico" pela liberdade, só se satisfazem com a conciên-
Para chegar lá, a mulher deve fortalecer a razão | da fidelidade psicológica da pessoa amada. Penetra-
impor ao coração menos sensibilidade, ou melhor: devi de maneira violenta na alma do ser "amado", com
procurar o equilíbrio entre a razão e a sensibilidade. Kol- crueldade e uma falta de delicadeza que será incom-
lontai apreende admiravelmente o problema e o resuma n si vel à Humanidade futura; do mesmo modo, pre-
numa frase: "E* necessário que a mulher aprenda a *aif jtfrmos fazer valer nossos direitos sobre o "eu" espi-
dos conflitos do amor, não com as asas partidas, nuij| mais íntimo. O amante contemporâneo está dis-
como saem os homens, com a alma fortalecida. E' Mo a perdoar (!) mais facilmente ao ser querido uma
Uelidade física do (pie uma infidelidade moral, c acha
118 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 1 I 9

que lhe pertence cada partícula da alma da pessoa ama- l mais de um, ora do outro; e todas as nuances delica-
da, que se estende muito além dos limites da "sua" união rfns dessa escala complicadíssima — é um dos mais pro-
livre. Considera tudo isso como um desbarato, como fundos mistérios da natureza humana. Não basta ape-
um roubo imperdoável de tesouros que lhe pertenciam las afirmar a origem biológica do amor. A tragédia
exclusivamente." •rxual tem as suas causas em razões mais profundas ain-
Esse autoritarismo masculino vem do preconceito d.i da e mais misteriosas: são as razões psíquicas, as razões
inferioridade feminina: "Para nós, observa Kollontai, las criptas mais íntimas do subconciente, agravadas pelas
a mulher não tem outra espécie de valor sinão o de acces4 deformações sociais. Essa dualidade do sentimento amo-
sório do homem. O homem, marido ou amante, projeta lo, fusão de "Eros sem asas" — amor físico — e "Eros
sua luz sobre a mulher; é êle e não ela, quem merece • I — amor psíquico — não encontrou ainda na l i -
nossa consideração como verdadeiro elemento determi* teratura nem na filosofia a sua explicação. Kollontai erra
nante da estrutura espiritual e moral da mulher. Ao con Umbém quando dogmatiza que a Rússia resolveu esse
trário, quando valorizamos a personalidade do homem, fa« problema através da nova ideologia da classe proletária.
zemos abstração total de seus atos relativamente às rela*
ções sexuais." Uma ideologia que, precisamente, procura destruir o
aentimento da individualidade e a noção dos direitos in-
Autoritarismo ou despotismo animal ou o conecit
•viduais, substituindo a conciência individual por uma
brutal da violência e do domínio j>ela força bruta; o pre
•Onciência coletiva, essa ideologia não pode ter a preten-
conceito da inferioridade feminina latente no subconcicn«j
l l o de solucionar o problema do amor — que é eminen-
te mesmo do homem "superior" que cultiva o prejuiz
Innente individualista e exige o direito à escolha, baseado
animal da superioridade da força bruta; o instinto <M princípio individual da eleição, da atração, que, além
propriedade entre os dois sexos mutuamente — enquant 't tudo, vem dos domínios estranhos e desconhecidos do
predominar essa mentalidade carniceira, impossível qur' Inconciente humano.
quer solução para os problemas humanos e mais se agr
vara a crise sexual e a tragédia de ser dois. A camaradagem amorosa ou o amor camaradagem é
A complexidade do amor, amor físico: "Eros se uma forma de amor <L determinada etapa da evolução
asas", ou atração física de origem puramente biológi Humana — não é a solução do problema do amor, pro-
animal, para a multiplicação da espécie, através do p blema transcendental que exige solução individual. Da
zer da carne; a atração psíquica ou o "Eros alado", an mesma maneira que o comunismo soviético é uma etapa
espiritual, atração mental ou ideológica; o amor sent| •a evolução económica da sociedade e não a solução dos
mental que paira entre os dois primeiros, participandí oblemas humanos. Demais, uma simples revolução de
120 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 1 2 1

alguns anos não pode extirpar do inconciente humano as tom o profundo e complexo problema humano do amor
raízes profundas do atavismo milenar. Não vem do pri-
(pie não se deixa fechar dentro de uma classe nas ma-
vilégio da propriedade privada, como pensa Kollontai c
• M U de uma casta dominadora. Como toda gente se
como pensam quasi todos, o autoritarismo da posse do
MDpcnha em dar proporções insignificantes às mais
homem para a mulher amada ou vice-versa. Vem de mais
Hlatas e mais belas razões da nossa alta espiritualidade !
longe, vem das lutas animais dos macho's para daí resul-
tar a posse da fêmea pelo mais forte. E a revolução, a Demais, os homens e as mulheres não são bons nem
HMIS pelo fato de estarem rotulados dentro de uma
violência, o domínio da força e do poder só fazem con-
(Ml ile outia (lasse social.
solidar esse instinto. As tragédias passionais são inheren-
tes à classe burguesa e à classe proletária. Os operários Muito se teria que dizer em relação aos problemas
batem o record de matadores de mulheres... nas crónicas f à ideologia proposta no livro de Kollontai. Mas,
policiais. •gora não se trata de um estudo crítico. Demais, si
•icordo quanto ao sectarismo ideológico na defesa in-
Realmente as ideologias proletárias (não apenas tondicional de uma ideologia "fora da qual nao há sal-
uma ideologia única) vêm abrindo caminho para maior B ç l o " , admiro extraordinariamente essa grande mulher
e mais ampla liberdade de amar. São etapas da evolução atecursora.
do amor. Não a solução do problema do amor. Aliás,
a própria Kollontai afirma: " A ideologia da classe ope- Seria ideal que a ideologia amorosa do proletariado,
rária não pode fixar limites formais ao amor"; depois de H | que fala Kollontai, fosse vivida em vez de ser apenas
^ H t teoria. . . porque o homem ainda tem dentro de
afirmar: " A solução do problema do amor se acha, pre-
H | o troglodita fero/, e autoritário. Enquanto estiver
cisamente, nas mãos do proletariado, pertence à ideologia
Ion vencido de que se deve armar para impor ou de-
e ao novo género de vida da Humanidade trabalhadora".
|rnder as suas ideologias de classe ou não — haverá
E' absurdo pretender que o amor também passe a ser |llmento para o instinto de autoridade animal e von-
problema de classe! O Amor é problema humano, é de tade de domínio e intolerância e sectarismo e penetra-
origem cósmica e apresenta as suas complicações em qual- WÊO violenta no "eu" dos outros — para a imposição
quer regime social, dentro ou fora dos partidos políti- l a » "suas" verdades contra as verdades dos "•outros"
cos, dentro ou fora do Estado, dentro ou fora de quais- |nntidos ou das "outras" classes, para a absorção total
quer ideologias. m predomínio absoluto.
Não se confunda uma etapa da evolução humana Mas, quando Kollontai deixa o sectarismo do "seu"
ou uma fornia de amor dc determinada corrente social Éartido e entra, livremente, a analisar o problema do
122 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 123
amor dentro da evolução social, a sua alma se transfi- Estamos de pleno acordo. Entretanto a expres-
gura de humanidade e a sua pena mostra os tesouro» | o "amor-divertimento" é muito fraca, irreverente c
inegualáveis do seu alto espírito de sabedoria. expressiva para dizer da camaradagem amorosa ou da
E tem razão quando tece um hino de louvor ao izade-amorosa.
amor-camaradagem — que é o amor-plural e que não Kollontai se admira da indiferença com que os
nasceu da revolução bolchevique... nem da ideologia do Hdrrcs proletários passam pelo problema do amor.
comunismo russo.
Vão mais longe, não é indiferença apenas que os-
Mas, o que não há a menor dúvida é que o amor entam: é hostilidade. Aqui, no Brasil, muitos deles
camaradagem há de conseguir que "das relações amo- | t admiram de como me preocupo tanto com "essas
rosas desapareça o cego, o exigente e absorvente sen- Coisas" de amor. Choveram os ataques: E as censu-
timento passional; conseguirá que desapareça também "is me chegam de todos os lados. Agora, não tanto:
o sentimento dc propriedade, do mesmo modo que o de- uma estrangeira, Kollontai, uma comunista tendo tra-
sejo egoísta de "unir-se para sempre ao ser amado"; udo tão amplamente do assunto, já abre caminho para
e que se extinga a fatuidade do homem e que a mulher , i m . . . Também me sobra margem, uma vez que o
não renuncie criminosamente ao seu "eu"; e é incon- |>artido" iniciou a "batalha" do amor... Não só co-
testável que a supressão de todos esses sentimentos unistas, mas também anarquistas (ce sont des liber-
fará com que se desenvolvam outros elementos pre- ircs qui ont les idées de ma grand-mère!...) purita-
ciosos para o amor. "s se ofenderam com as "imoralidades" de "Religião
Assim é que se desenvolverá e aumentará o res- Amor e da Beleza". Hoje me confessam alguns,
peito à personalidade de outrem, do mesmo modo que depois de lerem a Kollontai. que já evoluíram...
se aperfeiçoará a arte de contar com os direitos dos A mentalidade, por aqui, é colonial-portuguesa —
demais". dentro de quaisquer ideologias avançadas... Curioso
E ' a conclusão do magnífico livro de Kollontai. E , è que os homens precisam se fechar dentro de um
conclusão puramente individualista! partido para compreenderem o amor...
"Desenvolver esse imprescindível "potencial de amor", Vejamos Kollontai:
educar, prejwrar a psicologia humana para que fique em " A indefinível inquietação da crise sexual transpõe,
condições de receber o "verdadeiro amor", essa é preci- cada vez com maior frequência, o umbral das habita-
samente a finalidade que o "amor-divertimento" ou "ami- ções proletárias c provoca aí dramas que nada ficam a
zade amorosa" terá de cumprir". Invejar em intensidade dolorosa, aos conflitos psicoló-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 125

124 MARIA LACERDA D É MOURA


íRússia, há quasi um século, sinão mais. Além disso,
gicos do "esquisito" mundo burguês. Mas, precisa- há quantos anos E. Armand, individualista-anarquista,
mente porque a crise sexual não ataca só os interesses cn l'en dehors, se faz o porta-voz de todas as aspirações
"dos que tudo possuem"; precisamente porque afeta dr emancipação sexual?
também uma classe social tão extensa como o proleta- E Fourier (1772-1837) na sua Théorie universelle
riado do nosso tempo, é incompreensível e imperdoável lie 1'Association — "que cada um dos homens possa ter
que esta questão vital, profundamente violenta e trági- todas as mulheres, e cada uma das mulheres todos o4
ca, seja encarada com tanta indiferença". lunnens"?
O amor não é um problema proletário ou burguês: E Platão? — todos de todas, todas de todos.
é cósmico, é biológico e é uma questão humana. E será Isso para não citar os sexuólogos de cada século.
insolúvel dentro da nossa mentalidade de trogloditas Kollontai cita várias vezes em seu livro o nome de
civilizados. Não basta que uma ideologia de classe o George Sand como um dos "pioneiros" mais ardentes
emancipação sexual. E para mostrar como os in-
envolva em uma nova moral: para que o problema do
ctuais são "ruminantes", diz ela:
amor deixe de ser trágico, é necessária a transformação
psicológica de homens e mulheres para a transfigura- "Na mesma época em que Flaubert escrevia Madame
ção de Eros. \ry, vivia ao seu lado, em carne e osso, George Sand,
O ideal do amor-camaradagem não foi forjado pela mais luminosa precursora do novo tipo de mulher
ideologia proletária como quer Kollontai, referindo-se que despertava para a vida".
ao marxismo: Pois bem. George Sand viveu de 1804 a 1876.
"O ideal do amor-camaradagem forjado pela ideo- Mais de um século antes do marxismo russo e da ideo-
logia proletária de que fala Kollontai! George Sand
logia proletária para substituir o amor conjugal "absor-
nasceu da burguesia. O amor não é um problema de
vente" e "exclusivista" da moral burguesa, repousa no
classe. E' a questão humana por excelência. E a re-
reconhecimento de direitos recíprocos, na arte de saber
percussão da obra de George Sand na Rússia?
respeitar, mesmo no amor, a personalidade de outrem,
num firme apôío recíproco e na comunidade de aspi- Kollontai traça o perfil da luta interior da mulher
rações coletivas". precursora, em poucas linhas. E' George Sand:
Conclusão puramente individualista, embora a pa- " A mulher do novo tipo, independente, inteiramen-
lavra de ordem contra o individualismo que, para os te livre, tem que lutar continuamente com uma ten-
marxistas, é tudo quanto não é marxismo... dência atávica que a ameaça de converter-se em "som-
Mas, o amor-camaradagem existe em embrião, na
126 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 127

bra do marido", em seu eco. São bem conhecidos os rge Sand presta à soluçante Aurora. Conclue-se
esforços ingénuos e concientes da mulher para "adaptar- •tapa. Um ponto termina o episódio".
se", inclusive o seu mundo interior, aos gostos do ho- Que de esforços fantásticos para a realização fe-
mem amado; para "corrigir-se", segundo o ideal de seu iniua! Si Kollontai folheasse o livro magistral de
eleito. Como si, por si mesma, a mulher não tivesse ora Duncan, Minha Vida, palpitaria a emoção ina-
nenhum valor, como si sua personalidade só se medisse itável da nova mulher em luta consigo e com o au-
pela atitude que os homens assumem perante ela. E' fitarismo masculino, e sentiria que o problema é hu-
esta característica atávica da mulher que fez com que ino c não cabe na moral de uma classe. E' verdade
uma personalidade tão magnífica, luminosa e sedutora ipe "o amor é precioso fator social e psíquico, mas "a
como a de George Sand, tivesse sido tentada, algumas Humanidade o maneja, instintivamente, segundo os in-
vezes, a abandonar a terra com o entusiasta Musset, e fcrêsses da coletividade" ? — Não. Até aqui, resíduos
outras a renunciar ao voo para o mundo estrelado da •ligiosos e sociais, tabu, totem, exogamia, etc, é que
criação artística. Mas, a forte individualidade dc ifneeram; nunca os interesses individuais ou coletivos
George Sand sentiu que começava a perder a individua- l"i.nn pesados na balança dos costumes e rituais das
lidade, e, como consequência da adaptação, a mulher, diversas espécies de moral das clans ou das civilizações.
nela, Aurora Dudevant, acabaria por devorar, esmagar A* superstições religiosas e as organizações sociais,
o audaz, o rebelde, o ardente sonhador, o poeta George •rversamente, segundo os instintos primitivos de sa-
Sand. crifícios humanos, exigiram a obediência a ritos e a
Hfincípios absurdos contra a liberdade e a alegria de
Então, reagindo repentinamente, rompeu, cheia de
ilver. Daí a "Censura" de Freud, daí as neuroses e as
energia, com a antiga união. Quando em sua alma
Contradições interiores.
amadurecia semelhante propósito, não havia forças hu-
manas, nem mesmo sua própria paixão, capazes dc Tudo errado até aqui. E' razão para que se "or-
torcer a vontade dessa forte personalidade. Quando Jpnize" de novo o amor, numa outra moral c moral dc
Aurora Dudevant, num sombrio outono, deixa sua casa Misse ?
para uma última e breve entrevista com seu amante, E' continuar indefinidamente o erro e criar novas
com o propósito de romper com êle, não tememos por •turoses c novos servilismos.
George Sand, porque sabemos que a entrevista não po- Diz Kollontai: "E* a humanidade trabalhadora,
derá fazê-la mudar de resolução, porque atende a esse minada com o método científico do marxismo e com
encontro como último tributo da agonizante paixão que | experiência do passado, que há de compreender o
128 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 129
lugar que a nova Humanidade deve reservar ao amor
Mo passado e conservar indefinidamente o mesmo caos
nas relações sociais. Qual será, pois, o ideal de amor
Iftcial.
que corresponde aos interesses da classe que luta par»
'. Si Kollontai está convencida de que "o amor é um
estender seu domínio pelo mundo inteiro?"
aantimento de feição orgânica" — como imaginar "or-
Porque Kollontai acha que "o amor não é umi
Jaiúzá-lo" segundo o s interesses de uma classe? Si as
questão privada", logo, para ela, que está dentro de uni
' lades vivem em luta aberta contra a biologia, con-
"partido", o amor deve ser "organizado", de acordo
Ifa todas as leis naturais? Si a burguesia compreen-
com os interesses desse partido. deu também o poder que tem o amor de aproximar os
Tem razão meu amigo A. Néblind, quando escre- Bmens uns dos outros e, nessas condições, procurou
ve muna carta particular: " A luta de classes me apa- lltjcitá-lo aos seus interesses, — não será um erro, a
rece como outra guerra, outro despedaçamento da hu- repetição de uni crime contra a natureza, o marxismo
manidade, tão doloroso e sangrento como foram as fo- forjar e organizar uma moral nova em relação ao amor,
gueiras e as torturas da inquisição. paia a impor a todo o orbe, como defesa de luta de
"Não há classes: há um imenso mal-entendido, um.i •asses? Si a burguesia errou, não é razão para o mar-
horrível confusão entre o género humano. llauio seguir caminho idêntico, perpetuando os erros e
I «umes de lesa-humanidade.
" A luta pela força é o triunfo do instinto contra a
razão. E' a. própria Kollontai quem j>ergunta, num instan-
N de dúvida:
" A luta do homem cujo espírito desperta para a
compreensão, deve ser uma luta pela ordem natural, | "Libertámos o amor das cadeias da moral burgue-
pela harmonia universal, uma conquista do espírito •M, não corremos o risco de criar-lhe outras?"
sobre a matéria, afim de que, no seio da natureza, a Imediatamente o "partido" fala mais alto:
espécie humana, enfim reconciliada, possa viver na be- "A ideologia proletária, ao repelir "a moral bur-
leza, no amor e na fraternidade". ", no domínio das relações matrimoniais, forja
Mas, sonhar com o "domínio" de um partido oU tàvelmentc, sua própria moral de classe, suas
de uma ideologia para todo o orbe e "organizar" o as normas regulamentadoras das relações entre os
amor segundo os interesses desse partido ou dessa ji que melhor correspondam às tarefas da classe
rária, que sirvam para educar os sentimentos dos
classe ou ideologia — é sufocar a liberdade, é forjar c
IUR membros, e que, portanto, constituam até certo pon-
cultivar a luta sem tréguas, desprezar as experiência»
m as cadeias que aprisionam o sentimento de amor. O
130 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

que não poderá fazer o proletariado, porque signiiic.ir E o Cosmos é bissexual: fecunda no mundo f isi-
não perceber o futuro, é lanientar-se de que a classe opt B c no espiritual ou mental, conforme a escolha das
rária imprima seu selo às relações sexuais com o fim < •pressões.
fazer com que o sentimento de amor corresixmda às suanj A natureza biológica do homem ou o homem animal
tarefas de classe." (ve em constante luta com o homem psíquico ou com a
Inútil. E' a espiral. O único meio de resolver o latureza mental do homem "que há de vir", isto é, do
problema do amor (si é que tem solução dentro da igno- luueui que se vai realizando, dominando a sua natureza
rância e da "organização" da violência e da força e da líerior de bruto animalizado pela ferocidade.
"vontade de dominismo") — o meio seria deixá-lo livre, Diz Kollontai que "o amor se transfigurou e se dis-
absolutamente livre, e ensinar a resi>eitar a sua liberdade. inciou de sua base biológica". Pelo contrário: o homem
limalizou o princípio psíquico do amor. Distanciou sim
E, quando a Kollontai se esquece do "partido" e da
amor de sua base biológica, pois desceu em tirania e em
ideologia da classe, diz coisas sempre interessantes. Aqui,
nos — abaixo do irracional. Não houve nenhuma
por exemplo, é francamente pluralista, e contra a "organi- insfiguração do amor. Houve, antes, aviltamento, de-
zação" do amor: io, justamente, à "organização" do amor através da
"Da mesma fornia que a mulher, o homem experi-j lioral.
menta um sentimento de ternura cheio de consideraçõi••>,
Precisamente por isso é que o marxismo já come-
de compaixão cheia de solicitudes por uma mulher, en
ti! errando, embora apele para as experiências do pas-
(manto que, em outra, encontra apoio e compreensão para do, pretendendo que uma classe solucione o problema
as mais elevadas e melhores aspirações de seu "eu". A lo amor, pretendendo criar uma nova moral de interesse
qual dessas duas mulheres deverá entregar a plenitude de classes, pretendendo de novo "organizar" o amor
"Eros"? Será obrigado a mutilar sua alma, arrancan- sociedade organizada segundo princípios ideológi-
do um desses sentimentos, quando só consegue integrar- de classe para dominar o mundo.
se na posse do seu autor, com a manutenção desses dois E* essa terrível confusão, é esse delírio de luta e de
laços de amor?" únio a causa da morte do amor. . .
O amor humano esteve sempre em luta contraditória Kollontai, numa admirável interpretação da psico-
com o instinto biológico da reprodução. E a razão r H a masculina e feminina tem uma frase que é um sim-
clara, mesmo pondo de parte os erros sociais de moral
e organização inefável... do inorganizável. Já ouvi um intelectual de valor dizer a outro a ma-
O homem é bi-cósmico: é biológico e psíquico. l f i r a como fez a conquista de algumas almas femininas.
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 133
132 MARIA LACERDA D E MOURA

l mulher, entre nós. conversar livremente com os amigos!


Porque, são todas ingénuas e buscam alguém que lhes dê
Si estamos em plena idade da pedra lascada, em que os
atenção.. . E' bastante lhes afirmar que êle chegou no
Imachos se estrangulam pela posse da fêmea! E' irrisó-
momento oportuno, porque nunca ninguém as com-
frlo falar de amor plural, de liberdade, de realização inte-
preendeu . . .
• p r , si ainda vivemos no século mental das cinturas de
A frase de Kolontai é a seguinte:
feastidade. . . e do- cavaleiros de capa e espada!
"Os Don Juan experientes não tomavam apenas o
corpo da mulher, mas, também se apoderavam de sua! Daí surgirem as ideias das organizações... Como a
alma, representando hipocritamente a comédia da "com- hvolução da mulher faz "perigar" o despotismo exclusi-
| Vista do homem, será melhor tudo às claras, para me-
preensão"; afetavam um interesse cheio de amor para
lhor fiscalização. . . Si a mulher se deixar levar pelo
com o "eu" insignificante da mulher, ao qual seu marido,
•Cântico da sereia da "camaradagem organizada" — cairá
mais sincero, não prestava a menor atenção".
Aplique-se o sentido à nova organização... numa armadilha mais feroz.
Não seria mais humano, mais sincero, tirar a máÉ O homem, exigindo que ela lhe peça licença, avisan-
cara da "compreensão" — a "organizar" a nova moral •o-lhe do seu novo amor, (todos os homens "liberais"
segundo os interesses de um "partido"?... Irin teoria só exigem que a mulher lhes communique
Deixem o amor livre, absolutamente livre. Homens • t i d o . . . ) não se deixará vencer facilmente: o seu espí-
e mulheres encontrarão, nas leis biológicas e nas neces- r i t o autoritário apenas mudará a fórmula de despotismo.
sidades afetivas e espirituais, o seu caminho, a sua ver- D a vingança não se fará esperar...
dade e a sua vida... A solução só pode ser individual. Inútil. Primeiro, a transformação da mentalidade
Cada qual ama como pode... •pseulina e feminina. Conheeer-se... Realizar-se. . .

* B
* *
A QUEDA DA M U L H E R
Como Han Ryner é grande, e profundo e harmo- O GRANDE CRIME
nioso!. . .
Sob o titulo acima, Ven dehors (fevereiro de 1933,
* * 248-249) publica um trabalho magistral de J. William
Lloyd, que passamos a estudar em síntese, como comple-
Demais, é insolúvel o problema dentro da nossa men- mento ao nosso ensaio.
talidade de açougueiros. Si nem mesmo é permitido à
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 133
132 MARIA LACERDA D E MOURA

mulher, entre nós. conversar livremente com os amigos!


Porque, são todas ingénuas e buscam alguém que lhes dê
B estamos em plena idade da pedra lascada, em que os
atenção. . . E' bastante lhes afirmar que êle chegou no
niiuhos se estrangulam ]>ela posse da fêmea! E' irrisó-
momento oportuno, porque nunca ninguém as com-
• O falar de amor plural, de liberdade, de realização inte-
preendeu . . .
•or, si ainda vivemos no século mental das cinturas de
A frase de Kolontai é a seguinte: •Utidade. . . e d o s cavaleiros de capa e espada!
"Os Don Juan experientes não tomavam apenas oJ
corpo da mulher, mas, também se apoderavam de sua Daí surgirem as ideias das organizações... Como a
alma, representando hipocritamente a comédia da "com- •Volução da mulher faz "perigar" o despotismo exclusi-
vista do homem, será melhor tudo às claras, para me-
preensão"; afetavam um interesse cheio de amor para
•or fiscalização. . . Si a mulher se deixar levar pelo
com o "eu" insignificante da mulher, ao qual seu marido,
ântico da sereia da "camaradagem organizada" — cairá
mais sincero, não prestava a menor atenção".
Uma armadilha mais feroz.
Aplique-se o sentido à nova organização...
Não seria mais humano, mais sincero, tirar a mal O homem, exigindo que ela lhe peça licença, avisan-
cara da "compreensão" — a "organizar" a nova moral Ihe do seu novo amor, (todos os homens "liberais"
segundo os interesses de uni "partido"?... teoria só exigem que a mulher lhes communique
Deixem o amor livre, absolutamente livre. Homen udo... ; não se deixará vencer facilmente: o seu espí-
e mulheres encontrarão, nas leis biológicas e nas neces- autoritário apenas mudará a fórmula de despotismo,
sidades afetivas e espirituais, o seu caminho, a sua ver- a vingança não se fará esperar...
dade e a sua vida... A solução só pode ser individual. Inútil. Primeiro, a transformação da mentalidade
Cada qual ama como pode...
ilina e feminina. Conheeer-se... Realizar-se...

* *
A QUEDA DA M U L H E R
Como Han Ryner é grande, e profundo e harmo- O GRANDE CRIME
nioso!. . .
Sob o titulo acima, Ven dehors (fevereiro de 1933,
* * • 248-249) publica um trabalho magistral de J. William
\e passamos a estudar em síntese, como comple-
Demais, é insolúvel o problema dentro da nossa men- to ao nosso ensaio.
talidade de açougueiros. Si nem mesmo é permitido à
134 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 135
Está subordinado ao tema sintetizado na fras» d<- 1 rw|"*itavam e lhe obedeciam em lembrança de sua mãe,
Walt Whitman: "o sexo contém todas as coisas". implorando-lhe os favores e a amizade.
William Lloyd exprime o seu pensamento nestes dois E' o matriarcado e a idade de ouro do respeito à dig-
períodos admiráveis: nidade humana representada nos direitos da mulher-niãe.
"O amor, que todos nós imploramos, entrou na vida" Depois, vieram as "organizações" sociais do patriar-
humana pelo sexo". [fado. Organizada a sociedade, a mulher tornou-se escrava.
" E o princípio cósmico de Dualidade — o que aciona J. William Lloyd reconstitue o fato, apresentando o
e o que é acionado — que é o princípio essencial da obra e,u.idro teóric- <:
cósmica, é igualmente a característica do sexo". "Minha teoria é que o acontecimento adveio em con-
Daí passa a estudar os velhos ideais do amor, básculos •iquência da evolução da guerra. Primeiro, os machos se
no princípio da servidão feminina, ideais nascidos das guer- •iteram diante das fêmeas. Eram movidos por um istinto
ras, e, em seguida, trata dos novos ideais de amor para o de ciúme, instinto cujo objetivo prático era fazer sobres-
porvir, c que terminarão na paz. f Mir aquele que JJOSSUÍSSC mais saúde, força, coragem, por
Nota que os animais, não constrangendo as fêmeas, pnnsequéucia. virilidade, o (pie engendrasse a mais bela
sendo elas livres de os escolher entre os mais fortes e fcrogenitura e se mostrasse o melhor protetor; por conse-
mais aptos e livres de os afastar quando já não satisfazem guinte, esse instinto ajudava as fêmeas a fixar a sua es-
as condições oV sujxrioridade |x»r elas exigida, inconcicn- folha e a fazê-la na linha dis necessidades naturais. Os
temente, através do génio da espécie, — "todas essas coisas Combates não eram nunca fatais, provavelmente, e, durante
têm por fim ideal uma superioridade eugénica na sua pro- kuito tempo, tudo foi bem. Mas, duas raízes perigosas —
genitura direta e na evolução de sua espécie. Si refletir- • do ciúme e a da combatividade implantaram-se e se pu-
mos alguns instantes nesses fatos, veremos, como si um laram a germinar".
traço de luz nos penetrasse — a razão por que os animais Os combates tiveram outros motivos: assegurar o mo-
se conservam sãos e vigorosos — os animais selvagens iio|K>lio dos bosques, das árvores frutíferas, de praias
quero dizer — e porque os seres humanos, tais como os ibundantes em coqueiros, de sítios enriquecidos de ninhos
conhecemos, são tão doentes e tão desgraçados, a razão da aves aquáticas, etc. etc.
por que tantas vezes retrogradam em vez de evolucionar".
•Descobriram que, si dois ou mais combatentes luta-
A humanidade pre-histórica deve ter passado pela vam cooperando entre si, como companheiros — pai e f i -
fase animal etn que a mulher era (piem escolhia o homem lhos, irmãos, uma família — a vitória era mais provável e
ou o pai ou pais de seus filhos, c em que os homens a 0 monopólio quasi garantido.
136 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 137

E nasceu o combate do núcleo de cooperação e a ma- Depois, os chefes, os combatentes mais fortes e ro^
nutenção mútua na posse da coisa pela qual se batiam. Ií bustos, reclamaram a exclusividade dos escravos por eles
a prática do combate em bandos se generalizou. As mãos mesmos capturados.
descobriram pedras, toros de madeira, a pedra cortante, a Estava criada a propriedade privada.
ponta aguçada, e as armas apareceram em auxílio do ho- E o senhor tinha o direito de vida e de morte sobre
mem . Os seus cativos.
A caça em bandos se generalizou. Essas guerras desenvolveram assombrosamente a emo-
Tirando a pele dos animais, descobriram as vesti- tividade dos homens, meio-homens e meio-béstas, e desce-
mentas. Foram raptados dos ninhos e das tocas os filhos ram abaixo dos animais carniceiros, praticando crueldades
das feras: começou o trabalho da domesticação dos ani- inimagináveis.
mais domésticos. E os homens começaram a cobiçar as escravas, total-
Daí em diante, apareceu a propriedade: o homem já mente em seu jxxler e sem mais o direito à recusa altiva
possuía armas, vestimentas, instrumentos de caça, gado. •té então concedida à dignidade feminina. Diz William
E houve batalhas para as conquistar e os conservar. Lloyd:
0 homem não tinha outra preocupação sinão o combate: "Durante muito tempo, devemos supor, o respeito
para caçar — nutrição; para conservar o objeto de posse: animal instintivo pela fêmea se manteve, mas, finalmente
nutrição mais fácil. odeu e a primeira violação foi cometida. A faísca acen-
"Organizaram-se" os combates. Os mais fortes fo- deu um incêndio c logo todas as fêmeas escravas foram
ram sendo os chefes, ou por imposição da força bruta in- submetidas ao prazer de seus possuidores masculinos.
dividual, ou pela imposição e escolha dos bandos. "Até esse momento, as mulheres da tribu tinham sido
Nasceram as guerras "organizadas". companheiras respeitáveis, livres de escolher ou recusar,
Nasceu o comando, a tirania. Nasceu o governo. mas, de aí em dinate. tiveram que rivalizar com as concubi-
Os vencidos de guerra eram mortos. nas. Os homens preferiram as mulheres por eles subju-
Depois, os vencedores perceberam que, si são domes- gadas e que se submetiam aos seus caprichos.
ticados os animais, por que razão não escravizar e domes- "Por consequência, foram prefcridas as escravas às
ticar os vencidos? E a escravidão apareceu. Companheiras livres, e, aos poucos, perdeu-se todo o res-
Daí em diante as guerras tiveram mais outro objetivo; peito à pureza da mulher. Pediam às companheiras livres
procurar escravos. para ceder a todo momento, de boa ou má vontade. Na-
Entre os cativos, havia mulheres e meninas. A prin- turalmente, elas se recusavam e, naturalmente também, o
homem luxurioso, detentor das armas, e acostumado a se
cípio, os escravos eram de todos.
138 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 139

apoderar do que queria, pela força, combinou com os seus Até hoje, é mais ou menos esta a condição da mu-
•ar. E' a tese de William Lloyd.
semelhantes — reduzirem todas as mulheres ao estado de
escravidão, estado em que qualquer recusa seria impos- Si os homens de novo não "organizarem" o amor,
sível". riu uma nova moral de amor livre, — parece, voltaremos
Seguramente foi um processo lento e gradativo. E •O matriarcado moral, isto é — ao respeito à dignidade
Ifininina manifestada no direito à escolha e à recusa —
desapareceu o matriarcado sob o reinado da luxúria san-
•ara a maternidade livre e conciente e radiante.
grenta de um ciclo de guerras tão acesas que fizeram de
•aparecer o vestígio da dignidade feminina no respeito a Mas, já se eslxjça o novo espírito de "organização" do
maternidade, no poder do sentimento nobre e na beleza da intnc e a mulher não se quer preparar para reivindicar o
eugenia instintiva. MMI direito de ser humano e até o direito dc animal livre
Por ser mulher — era livre a mulher para a materni- • escala zoológica.
dade sã e forte e bela. A mulher quer ficar gostosamente a serviço. .. E o
William Lloyd denomina a esse brutal atentado O Wnero humano perde uma oportunidade de se redimir a
||i mesmo -• integrar-se na felicidade a que teria direito —
(iratidc Crime.
ill não atentasse contra os direitos do próximo. E nova
Nasceu o Patriarcado — fruto desse abominável aten-
leia de crimes c erros começa a |x?rpetrar em nome dos
tado, fruto do abuso da força organizada. in.os belos princípios de Liberdade e Igualdade e Frater-
E os costumes, e as leis decretaram que a mulher era nidade!...
a propriedade do homem.
A educação, a rotina, a repetição dos atos de violência * *
sancionaram o fato. A opinião masculina consolidou-o e
criaram-se ritos religiosos para o sancionar em punições,
Han Ryner, em Songes Perdus, também descreve a
em moral e em obrigação, e, por fim, as próprias mulheres
queda da mulher, mas. segundo a tradição da Génese Bí-
admiraram a sua condição e até a encareceram. . .
blica. . . Já entra diretamente no Patriarcado.
. Nasceu o casamento, o amor "organizado". A mulher
era escrava, ou objeto do marido que a comprava do pai. A existência do matriarcado, plenamente demonstra-
li o senhor a jxxlia dar, emprestar, vender, maltratar, d.i nos estudos experimentais modernos da história, através
repudiar, matar, à vontade, e ela se devia submeter incon- Me grande número de cientistas e investigadores, põe por
dicionalmente, trabalhar para êle, servir-lhe para sempre, Iwra a g é n e s e bíblica da criação do mundo, si ainda é
como serva e objeto de prazer. preciso... discutir essa monstruosa infantilidade na inter-
140 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 141

prctação da linguagem cabalística das iniciações esotérica! j Não a ginecocracia, não a preponderância de um sexo,
ou dos mitos astronómicos. • l o o governo nem a organização — mas, a liberdade in-
Bachofen, depois de tantos outros (Lafitan, Ekstcin, lagi.d dos indivíduos de ambos os sexos — para o comu-
etc.) e precursor dos que lhe seguem nas mesmas investi- H Í N O das mãos, segundo a fórmula feliz de Han Ryner.
gações (Mac Lennan, Morgan, Fison, Howit, Giraud Teu- > 1'ondo de parte as investigações científicas em torno
Ion, Lublxxrk, Spencer. Quartara, etc), deseja a volta ao ^•matriarcado. voltemos ao sonho de Hipatia descrito por
matriarcado. porque, diz êle: Mau Ryner em Sonyes Verdus.
" A época ginecocrática é a poesia da história; e é ' Estou tentada a traduzir essa página magistral como
por sua sublime beleza, pela heróica majestade que im- Idas as páginas desse livro profundo e alado do grande
prime ao caráter feminino, i>elo impulso que dá à bravura Hkaofo. Vejamos como Han Ryner concebe a expulsão
e à generosidade dos homens, pela importância que, com do paraíso i>erdido e a organização social do Senhor todo-
isso, se proporciona ao amor da mulher, pela castidade poderoso. .
que ela exige do homem jovem... Em nenhuma época Tara lhe não tirar o sabor original, não quero resumir
se cuidou tanto da beleza do corpo, nem se há velado c< >m I |Mgina do pensador, traduzo-a na íntegra:
tanta firmeza por sua inviolabilidade. Nunca houve seme-
lhante florescimento intelectual... O género humano teve, " U M SONHO DE H I P A T I A "
com o matriarcado, destinos que superpassam o aleaner
de nossa imaginação. "Em um oásis embelezado por quatro fontes, um ho-
" A época ginecíKrrática, com suas figuras majestosas, • j m vivia com sua família. Cliamava-s.- Adão; sua mu-
seus gestos magníficos, suas emoções ardorosas, não podr n r , Eva; seus primeiros filhos Caim, Abel e Set. Mas a
ser igualada pela poesia dos séculos requintados, porém Mstúria ignora os nomes de seus filhos mais moços e os
degenerados. Não podemos desmenti-lo: o vigor do espí- •ames de suas filhas.
rito vai perdendo-se à medida que se olvida o cultivo do "Raramente iam até aos limites do oásis. Voltavam
físico". Ada vez mais horrorizados com o ar tórrido, o sol brutal
Mas, o cultivo do físico não se consegue pelo espor- • a luz que cega, a aridez da areia, e a monotonia infinita
tismo profissional dos indivíduos já degenerados. Mb horizonte. Concluíam:
O cultivo do corpo só é possível pjla eugenia: \>c\u — A terra é má e inhabitável, à exceção do Jardim,
maternidade livre, limitada, conciente, "radiante" — se- tpir é o país das delícias.
gundo a expressão neo-maltusiana. "Não acreditavam na existência de nenhum outro jar-
Só no reinado do matriarcado moral... dim: em parte alguma havia a doçura fresca da água,
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 143

a doçura perfumada dos frutos, a doçura repousante da» "Eva cada vez compreendia melhor: o estrangeiro
sombras e das verduras. Ignoravam que, para além dos prezava a vida que ela levava no Jardim. De sorte que
areais, viviam outros homens, mas, proclamavam-se os rava repetidamente e começou a se desprezar a si pró-
únicos da sua espécie. e tudo o que, até ali, fizera a sua vida.
"Certa manhã, Adão andava ao acaso, Eva cochilava "O estrangeiro dizia com entusiasmo-de outras terras
ainda debaixo de uma árvore balouçante que parecia can- js, falava de homens dispersos nas vastas florestas,
tar uma berceuse. De trás do tronco, saiu um estrangeiro. homens industriosos como deuses e numerosos como
Ela o olhava imóvel, pálpebras pesadas, cílios entreabertos, ores nos vales do Nilo, do Tigre e do Eufrates. Dizia
e não sabia si via um sonho ou um ser. Algum medo a do mar retumbante, ilhas próximas, as quais são
paralisava e muita curiosidade que espreita. E havia nela spostas a nado, outras ilhas onde só apenas os olhos
outra perturbação cujo nome não existia na sua língua ; mas, os pés sonham transpô-las e um dia lá irão.
simples. ue o homem é feito para realizar, após mil derrotas,
"O estrangeiro não estava nu como os habitantes do um de seus sonhos.
Jardim. Cobria-se de pele de animais. Era maior e pare- "Êle agitava um pesado bastão recurvado e elogiava
cia mais forte que Adão. Seus olhos eram poderosos conu» 0 poder das armas: matam os animais maus; matam as
ordens. Eva o achou não somente mais belo que Adão, presas que se comem; matam, e é essa a sua grande glória,
porém, mais belo que Abel, seu filho preferido. E' a ra- pê homens inimigos ou revoltados.
zão porque seu temor, sua curiosidade e a perturbai,.!" "Eva compreendia bastante e muito pouco para admi-
sem nome se acompanhavam de uma perturbação cada ver i r e para sonhar com outra vida. Teria querido ser ara -
mais precisa cujo nome a mulher não ousava pronunciar Iwt.ida como uma presa para essa outra vida pelo homem
com os lábios imóveis nem no fundo de seu coração te Itlc era forte e que era belo.
meroso; mas, sabia ela, embora o quisesse ignorar, que "O estrangeiro prometia ensinar a Eva e à sua famí-
essa perturbação se chama desejo. , depois da língua, a ciência do bem e do mal. Ensinaria
"Falaram-se. Gesticulando, por onomatopéias. Com que leis agrupam os homens sob um chefe; que disciplina
palavras também. Mas, as palavras, muito diferentes, os u» faz poderosos e semelhantes aos deuses. Mas — disse,
separavam; enquanto os gestos os aproximavam e as ono | seu gesto foi claro — vós me obedecereis.
matopéias, e os sorrisos cada vez menos amedrontados, »•
"Eva resjKjndeu, e a graça meio submissa, meio co-
os olhares cada vez mais abertos e luminosos. E, si as j»-
lavras conservavam-se como trevas sonoras, o acento coflj pttltc de sua atitude iluminou as palavras obscuras:
que eram pronunciadas, iluminavam alguma claridade. "— Eu te obedecerei e aprenderei — si me amas.
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 145
MARIA LACERDA D E MOURA

"O caçador arrancava as penas, mordia na carne


"Mas, o estrangeiro, deixando cair seu pesado bastão
^ttltnte, como viva ainda, apresentava-a a Eva. Lina re-
curvado, agarrou Eva pelos pulsos, a apertou brutalmente.
pugnância sublevava essa comedora de frutas. Mas, sen-
Suas mãos e seus olhares a vergavam. Entretanto, êle pro-
I (tu estranha volúpia em vencer seu desgosto. Mordeu o
clamava :
pedaço arrancado. Como a árvore sob a qual a possuíra
"— Eu não sou aquele que ama; sou aquele que é ii < 11 angeiro era estéril, ela declarou:
amado e a quem se obedece. Sou teu senhor e tu serás I W " — A carne é o fruto da árvore da ciência.
minha serva.
"Depois, desbordante de admiração e amor, ela pediu:
"Ela chorava, tão feliz e tão desgraçada... Parecia- "— Esconde-te, ó todo-poderoso. A Adão e a meus
lhc que sua vida começava, despedaçamento e alegria. • h o s eu direi, com as coisas importantes que me disseste,
Disse: llgumas das coisas espantosas que fizeste. Mas, ninguém
"— Eu sei, desde que te olho e que te escuto, a ciên >IH , (jue beleza vive debaixo das tuas roupas e com que
cia do bem e do mal. O l>em, é o que tu queres; o mal ^•ticias inundaste a tua serva. Adão e meus filhos conhe-
é o que tu não queres. % riu In uma parte de teu poder, tornar-se-ão, como eu, teus
"O estrangeiro possuiu Eva debaixo da árvore que ^prvidores e tu serás o senhor da terra.
depois se chamou: a árvore da ciência do bem e do mal. "Eva cumpriu sua promessa. Explicou à sua família
"De seus braços, de seu corpo sinuoso, de seus lábios luj.eiiua a necessidade das leis, a beleza da obediência a
mudamente estendidos ou suspirosos e murmurantes ou em um chefe. Pouco depois, o estrangeiro se apresentou e a
palavras rápidas como a água de uma torrente, Eva pedia I «uxiliou nesse ensino. Quando todos estavam bastante
novos beijos. Mas, o estrangeiro tomara de novo seu bas- Instruídos da ciência do bem e do mal, o estrangeiro afir-
tão curvado. Queria mostrar o seu poder maravilhoso e Miou que o Jardim lhe pertencia e os tocou do Jardim. Mas,
que fere ao longe. Queria mostrar também como as coisas V multiplicou suas bondades para com eles. Confiou-lhes
e os seres lhe obedeciam. I I r n a s ; ensinou lhes a semear e a colher para eles e para
Assobiou. Um grande gato acorreu aos saltos apres- • l< Ensinou-lhes a obter o fogo, a esmagar certos grãos
sados, e olhou o senhor como atento servidor que espreita H a cozinhá-los. Comiam também, seguindo o seu exem-
o momento de servir. ' pio, animais crus ou tornados tenros debaixo de pedras
"O estrangeiro lançou no ar o boomerang. Caiu um • i aldantes.
pássaro. A arma volta por si mesma, dócil, às mãos do "Escolheu Caim, aquele dos adamitas que, pela robus-
caçador e o gato traz a caça. • Vp* c costumes duros, mais se lhe assemelhava. Dando-lhe
"De joelhos, assombrada, Eva murmurava:
"— Oh todo-poderoso!...
146 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 147
armas, êle o estabeleceu na orla do oásis para impedir qu«
A história estava mal contada... Foi assim que o
alguém, de ora em diante, penetrasse no Jardim.
lltianismo libertou a mulher... Foi assim que os santos
" U m dia, Abel, o irmão que Caim mais amava, qiún I rganizadoro" do livro sagrado poluíram as tradições do
entrar e colher frutos. Mentirosamente ou sinceramente, I rdim das Delícias e expulsaram do Éden os "impuros"
êle afirmava que ofereceria esses frutos ao Senhor. Mas, I t% rebeldes, organizando o poder da Igreja, da Moral e
Caim era um guarda fiel. Repeliu seu irmão replicando: j Estado.
"—Tudo pertence ao Senhor e nada lhe temos quel Foi assim (pie reduziram a mulher à prostituição e a
oferecer. leram eternamente a serviço da moral e dos bons cos-
"Abel insistia com a sorridente obstinação dos senti Hes — para o prazer do Senhor todo-poderoso... re-
doces. Caim acabou j>or se irritar contra o ser absurdo qur I lentado hoje nas quatro castas dominantes: o político,
tão mal compreendia as necessidades da diciplina e o feriu I lero, o militar e o industrial.
com o seu bastão. Teve medo vendo-o cair jx)r causa da Será possível que a nova "organização" social do
pancada; curvou-se sobre o corpo; horrorizou-se mais r | jndo proletário, detentora hoje da ciência do bem e do
mais, porque Abel ficara imóvel e não resjxmdia às pal.i ll, uma potência de ciência e indústria na larga difusão
vras cada vez mais apressadas e inquietas de Caim. materialismo histórico em busca da solução do problema
"Ora, o Senhor, passando por esses lugares, excla- •' Jnómico, prometedora de uma cornucópia de felicidades
mouj ra o povo — será possível que vá "reorganizar" a moral
— Caim, que fizeste de teu irmão? amor para o coletivismo?...
Porque estava furioso: tinha perdido um servidor.
"Mas, Caim respondeu:
"— Tu me fizeste guarda do Jardim, não de meu * *
irmão. Porque acreditei na tua palavra, aqui está meu
irmão morto. Por isso, fugirei para longe da tua face e E, por ser grande o amor, é simples, e deve ser olhado
para longe dos lugares onde dei crédito à tua palavra. solucionado individualmente — com a simplicidade do
Procurarei uma região inocente, si é que ainda há na |e é natural e humano e espontâneo.
superfície da terra, não corrompida por tuas leis, pela ser- [ Os sonhos mais altos, sonhados pela grandeza ética do
vidão e por tua odiosa ciência do bem c do mal". I subjetivismo iluminado de bondade, Han Ryner os
ipora para fazô-los mais flutuantes, mais vagos, mais
ponderáveis, mais distantes e mais ondulantes na sua
jita incomensurável em torno das verdades cósmicas...
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 149
148 MARIA LACERDA D E MOURA
"No inferno real. abaixo do deboche, não há mais do
criadas pelas nossas possibilidades interiores, dentro d* o abominável círculo do amor único com seus mons-
nós mesmos. s demónios: Ciúmes e Exclusivismo.
Fugir das afirmações categóricas, das teorias e do*] "'Quanto a mim, sou o céu. O céu nunca foi egoísmo
conceitos sistematicamente concebidos, para aproximarmo- ou a dois.
nos, tanto mais, das verdades interiores. Fugir das organi- "Sou o único vingador do tempo. Todos os meus
zações. dos ficam no meu presente e não quero nunca que
Evaporar um sonho é chegar mais perto da verdadeira ha riqueza nova me empobreça dos meus bens antigos,
realidade, que é a realização interior, sempre imprecisa c| ar livre e Panteon aberto. Ah! A h ! A h ! o amor
, pobre igreja fechada... ,
ondulante.
E* respeitar, é amar os sonhos alados daqueles qu« "Mais numerosos são os altares, mais o Panteon é
, e as suas nobres colunas deixam penetrar o sol, o ar
também os sabem construir no impreciso das bolhas de
vida.
sabão da sua fantasia.
"Eu sou o que cura do ciúme, da crueldade, da men-
E, para evaporar êssc sonho de bondade, numa forma |
do crime passional. Sou saúde e equilíbrio. O Mar-
vaga, Han Ryner cria um novo deus, de Sade nunca me conheceu e ainda menos Sacher
soch.
Eros poli fálico, "Meu inimigo único, Anteros, tem dois nomes: às ve-
, chama-se Devassidão, por vezes, Amor Único.
— simbolismo que talvez não exprima bem, quiçá de difí- " E ' tirania ou servidão, a menos que não seja o di-
cil interpretação para traduzir a delicada ideia afetiva com rar de tirania e servidão.
a qual o artista envolve o seu sonho amoroso. "Quando se chama Devassidão, meu inimigo Anteros
Deixemos falar esse novo deus da nova Religião do pensa sinão nas posses físicas, nas "conquistas" e na
Amor, Religião pagã, desse panteísmo profundamente hu- sidade dos estímulos de epiderme. Quando se chama
mano e subjetivo: r Único só pensa em dominar e aniquilar um ser ou
"Alguns me chamam devassidão; outros dão meu se fazer dominar e aniquilar. E' possuído ou possue.
nome à libertinagem. Nem estes nem aqueles sabem da sacerdote sabe amar.
nobreza de Eros poli fálico. "Si uma única se voltasse para êle. saberia êle encon-
"O deboche é o círculo do inferno e da servidão r tudo nela. Si nem uma se voltasse, sua expectativa,
Abaixo da libertinagem, só conheço a espécie de ódio a endo ou não esperanças, encontraria tudo em si mesmo.
que chamais amor único.
150 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PI,URAL 151

Mas, muitas se voltam para cada um, para cada uma| amado, para o que ama, para com todos. Só êle é
que cada um. pois, seja coroado de várias pérolas; cada íto de mentira, êle que, único, prevê o futuro.
uma. de vários florões. Que cada um seja um botão cnt "Engrandeço, alargo dois corações, de sorte que on-
várias coroas; cada uma, uma j>érola em vários diade* pni aí não seja diminuído e que fique o lugar para
mas. São muitas as que desejam a tua palavra, o tctl Imanhã.
beijo. . . ou a tua abstenção. Eros polifálico dá, a cada) "Ouvc-me nas profundezas de teu coração, mais ainda
uma, por vários de seus sacerdotes; a cada um, por muitas] lo que nos frémitos de teus nervos. Graças a mim, tua?
das suas sacerdotisas, tudo de que cada um ou cada uma rilórias. que te não empobrecerão, não mais hão de dila-
tem necessidade. trar-te, nunca serão as derrotas de ninguém".
"Quando um de meus padres acolhe uma bem amada, Assim fala o deus desse pagão helenista. No templo
evita o crime de desapropriar a quem quer que seja. Náq Eros polifálico não houve, nunca haverá sacrifícios hu-
quer que ela exile aqueles que, antes dele, se haviam refu- inos: em vez das vítimas de todos os deuses de todas as
giado cm seu coração. E não expulsa ninguém do seu tligiões, só penetra nesse templo, só vai ante esses alta-
próprio coração. O coração de meu sacerdote ou de mi- les o que procura compreender os segredos das almas, o
nha sacerdotisa é um vasto templo: entre os altares qal que busca penetrar os sentimentos mais recônditos dos co-
ali se multiplicam, fica sempre um altar dedicado "ao( baçóes — para satisfazer-lhes todos os desejos, todos os
deuses desconhecidos". sonhos, toda- as aspirações, todas as necessidades, quer
"Nenhum amor verdadeiro há que não seja imortal.I ffejam de ordem afetiva ou mental ou emocional.
Ignoramos que deuses e que emoções nos visitarão ama.fl E' a Religião da Liberdade, do altruísmo, da digni-
nhã. Prometer ao deus de hoje um sempre exclusivo : • Idade humana, do respeito mútuo.
loucura ou mentira. Prometer-lhe um sempre, entre ou-P O Amor é o que há de mais rebelde, o que há de
tros sempre, mais antigos estes, mais recentes aqueles: ge-l •lais livre: sufoca, morre numa atmosfera de despotismo,
nerosidade e fidelidade que podem ser mantidas. Ide violência, de autoridade, de ciúmes, de exclusivismo.
"Pois que não és o meu único deus, és o meu deus ]iel|| Já Eilen Rey, no seu formoso livro Amor e Motrimô-
mto, diz. com aquele profundo conhecimento da alma hu-
eternidade.
•lana e aquela intuição penetrante de quem palmilhou os
"Si pedes demais, pedes a parte de outrem e pedes a
verdadeiros caminhos da dor: "Entre todos os princípios,
paralisia daquele a quem crês amar; és o inimigo de ttxlo» da monogamia indissolúvel é o que mais sacrifícios hu-
e és o inimigo daquele que crês amar. Wianos tem produzido. Dia chegará em que os autos de
"Só o amor plural é isento de crueldade para com p fé conjugais >ç tornarão tão inúteis para a verdadeira mo-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL |'5J
152
ralidade, como o foram os da Inquisição para a verdadeira ixando-nos insensíveis a nós mesmos, tornando-nos in-
fé". capazes de ouvir as nossas vozes interiores.
E a monogamia indissolúvel está enquistada nos c
tumes, tanto dentro como fora do casamento: é o exclu-
sivismo do amor único, o autoritarismo animal. Revolução pelo A m o r o para o A m o r .
A monogamia indissolúvel — fruto do autoritarismo,
do princípio da propriedade privada e da superstição r* Mas. si o Amor plural suprime os crimes passionais
ligiosa, é a causa de todos os crimes pássionais, do ciúme rivados do ciúme criminoso e bestial, si evita as miríades
do exclusivismo sexual e amoroso, do infanticídio — I mentiras e concessões indignas, nada disso representa o
a fonte de renda fabulosa dos "humanitários" clí- tt valor ético c humano — si o vamos realizar o milagre
nicos da clientela rica das senhoras elegantes e das jeunes exterminar a prostituição, de suprimir o caftismo, o
filies seduzidas e que frequentam os consultórios clínicos rcado da carne feminina, o intermediário do comércio
ou as casas de saúde, de tempos em tempos, para se libe» pugnante — com a dignificação da mulher, livre de ele-
r o companheiro, o amigo, o ser que lhe fala ao coração
tarem ida "carga" dos filhos do acaso ou do descuido.
e aos ideai-, ao sonho de viver a alegria de se sentir dona
E' a causa do infanticídio: o lucro das faiseuses d'an-
de si mesma, capaz de se bastar a si própria na luta pela
(/es acobertadas pela sociedade dos "bons costumes".
Mibsisténcia c capaz de fazer a felicidade de outros seres
O Amor esteve sempre em luta com a monogamia,
Igualmente livres.
afirmamos com Eilen Key.
Que direito tem a sociedade, que se diz civilizada, de
Nenhum ser se realiza, si está sob a compressão d»
Uxigir que certo número imenso de mulheres se preste a
dogma, da lei, da rotina, dos prejuízos sociais, do sectaris
aervir de pasto à sensualidade de milhões de homens, insen-
mo sob qualquqer aspecto ou do amor absorvente e domi-[
Mdor de outro ser. •ibilizando-se na profissão mais "necessária" e mais de-
A evolução exige liberdade e valor. gradante, sofrendo a humilhação dolorosa dc cada instante
Realizar-se é ser livre. Realizar-se é conhecer-se. RJ |C a dor de insatisfeitas, enquanto outro número imenso de
"só o Amor arrebata um ser ao rebanho". mulheres, igualmente insatisfeitas, não pelo excesso, po-
Ninguém pode penetrar dentro do próprio santuário, rém, pela carência, se estiola no tipo "solteirona"?
pela conciência de outrem ou pela autoridade, ainda nus São elas, as solteironas, as guardas do relicário da
mo a "doce violência" do amor exigente e exclusivista. honra da família, acabando nas sacristias, nos manicómios
E o espírito de autoridade da nossa civilização vai ou na dolorosa angústia de uma vida inteira a amortalhar
muito longe, envenenando-nos até ao mais íntimo do ser, Ilusões e a servir de ridículo para o divertimento da pró-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 155
154

pria família que exige, brutalmente, criminosamente, esse que dor inominável a criação calculadamente egoísta e má
do tipo "solteirona", e que tragédia feroz a tragédia so-
sacrifício inútil, e da sociedade por quem se sacrifica e de
cial do infanticídio!
quem recebe, por esse mesmo motivo, o prémio dc tã<>
Todos nós, civilizados, temos o "odor cruel", o odor
bárbara mutilação — nas chacotas de cada esquina e de
dos tigres e dos chacais.
cada bairro.
Enlameados até à alma nos crimes de toda espécie.
Só o amor plural será capaz de pôr termo à explora-
Inclusive as guerras, inclusive o patriotismo sanguinário,
ção da mulher, só o amor plural acabará com o infanti-
nfio queremos ver que nenhuma revolução pregada, até
cídio, só o amor plural terá o condão de fazer desaparecer
hoje. por todos os revolucionários de todos os séculos,
o tipo "solteirona", mutilado no coração e na razão, só
leni o valor da revolução pelo Amor, tal como sonha Han
o amor plural terá o poder de exterminar a prostituição, Kyner.
dando liberdade à mulher, dando-lhe a noção da dignidade
humana no direito a ser livre, a se bastar a si mesma e a E' a única sem armas, sem crueldades, sem ódios,
•cm assassínios, sem sacrifícios, sem luta de competição.
divinizar a carne na Maternidade conciente — fora dos
códigos ou dos prejuízos sociais. E' a única solução capaz de assegurar ao género
humano um pouco de paz social e aos indivíduos, aos se-
Só o amor plural ensinará a mulher a não explorar
res superiores — uma grande alegria de viver.
outra mulher para conservar-se virgem à espera do "espo-
so" e "protetor" diante da lei e do sacerdote, atirando sua Han Ryner é metafísico livre: sonha, porém, não
irmã, irremediavelmente desgraçada, na torpeza do pe- »c deixa levar por um sonho único, nem se prende às
cadeias de sonhos que constituem escolas ou teorias, sei-
lourinho das casas de rendez-vous ou de tolerância, pros-
tas ou igrejas, dogmas ou princípios sistematizados.
tituta ou solteirona — igualmente ludibriadas, igualmente
desgraçadas, igualmente exploradas, acorrentadas à geena E* místico diante da beleza interior, ante os deuses
do capitalismo e dos preconceitos sociais. que cantam e sonham por entre os nossos abismos de luz.
Que bárbaro o crime dos bordéis e dos lupanan E' pagão, panteísta de um panteísmo humano na
que inconciência a transmissão da sífilis; que brutalidade multiplicidade das almas ou dos seres ou dos anhelos que
vagam, flutuantes, uns indecisos, realizados outros, den-
a imposição da maternidade não desejada; que selvajaria
tro da nossa conciência misteriosa ou da nossa super-
a do preconceito da maternidade legalizada: que covardia
COnciência intuitiva.
a da sociedade cujos prejuízos impõem à mulher "sedu-
zida", ou o suicídio ou a deshonra e a prostituição ou o E é dentro da l*ei Cósmica de Gravitação Universal,
casamento obrigatório com o perverso que abusou da sua dentro das leis atómicas de "afinidade eletiva", dentro
generosidade; que absurdo uma moral para cada sexo; • las Leis Naturais electro-magnéticas e no mistério in-
156 MARIA LACERDA D E MOURA

sondávcl das forças que regem o mundo psíquico, os com-


plexos afetivos — que o Amor traça as suas órbitas inco-
mensuráveis e desconhecidas para nós, e vive o maravi-
lhoso das correntes de atração — sistema planetário cuja
majestosa beleza trágica escapa à percepção da nossa
mentalidade — fechada para subir a alturas tão surpreen-
dentes, curta para escalar esses nimbos de luz e de eter-

2 P arte
nidade.
a

Uma voz foi feita para falar


IDentre os poemas de Han Ryner, impressionaram-
vivamente Les Paraboles Cyniques.
Han Ryner procurou "restituir a beleza do pensa-
nto cínico" e nos apresenta a mais bela das suas cria-
Psychodore, discípulo de Diógenes, maior que o
tre, maior que Antístenes, Crates e Mênipo, parecen-
Ihe que o filósofo teria manifestado o seu pensamento
meio de parábolas.
O cristianismo, na sua santa piedade iconoclasta,
deixou de pé nenhum monumento da sabedoria
»» •
Não quis que a civilização dos castos e dos santos
sse que "cinco séculos antes do Evangelho, tantas
•irúbolas haviam sido pronunciadas com uma significa-
mo muito evangélica para ser ortodoxa".
Quantos crimes de lesa-felicidade humana foram e
•ntinuam a ser perpetrados pela piedade irreverente da
I ni idade cristã !
E Han Ryner, ressuscitando, genialmente, a maravi-
mbtka filosofia de Psychodore, provou, si é preciso ainda,
•ha vez mais, êle, o poeta da "música do sonho e do
•HM is<> da dúvida", que nada afirma, provou que as ver-
Stdcs são como a fénix da lenda: renascem das fogueiras,
| 0 i autos de fé, da proibição de falar ou de pensar, que
MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL
160

as verdades estão dentro dc cada conciência e. uma a u b além, como a de uma figura excelsa dos maiores
de todas as almas chegará a realizar-se, a decifrar-se, Irutores da humanidade.
adivinhar o enigma da sua esfinge interior, a encontrar | Proclama que há muitos caminhos e muitas verda-
a solução para o problema do seu próprio ser. E cada qual tem o seu problema c a sua esfinge
lacifrar.
Fala-se tanto em Krishnamurti — o novo instrut
do mundo — pois bem: a filosofia de Han Ryner e Parábolas cínicas, segundo a expressão de outro
beleza de sua vida simples o colocam muito mais alt nde artista, Florian-Parmentier, constituem "une des
como um grande instrutor da humanidade. três qui met le mieux cu relieí la subtilité de pensée
Han Ryner nunca se proclamou "a verdade, o ca la surprenante magie du style de Han Ryner".
minho e a vida... " Os amigos dc Han Ryner procuram fazer conhecer
E não tem fanfarras para anunciar o seu verbo •cu humorismo delicado, a sua filosofia do sorriso —
ra o despertar interior, para a alegria íntima dos que
Amor.
vantaram l>em alto o coração nas mãos, afim de acari-
Han Ryner já disse tudo quanto Krishnamurti vem •lo na umbela dos sonhos humanos a espiralar pelas
proclamando como verdades. Eu amo e admiro profun- uras.
damente a Krishnamurti e à sua filosofia, mas, a filoso.
fia ryneriana e principalmente a vida estóica de Han Eu quis pertencer ao número dos amigos de Psycho-
iloie (Han Ryner tem tanto medo dos discípulos!...) e
Ryner são como lampadários de bênçãos por sobre M
avi dos primeiros, ou ser o primeiro a anunciar, entre
nossas tormentas interiores.
Ha, o ressurgimento, mais alto, da filosofia da chamada
E Han Ryner, em uma carta de 12 de julho de 1930,
Bola de Diógenes ou dos cínicos.
me diz duas palavras em torno desse moço nobre, dêssf
esteta da elegância moral: Ouçamos, pois. Han Ryner. Vejamos uma das suas
pfinas, respigada na seara de beleza de " Les Paraboles
"Amo muito a Krishnamurti, cujo pensamento me
('\niques:
parece quasi sempre próximo dorn^eu,e, quando quer ex-
primir suas ideias libertadoras, acha sempre belas ima
gens de poeta. tEu o amo principalmente quando penso "UMA VOZ F O I FEITA PARA F A L A R . . . "
na pureza e na força que lhe permitiram não submeter- A fonte
se ao papel deslumbrante que lhe haviam preparado".
Ambos o amamos profundamente. Mas, a mentali- "Um dia, entre os ouvintes, achava-se outro velho
dade cíclica de Han Ryner será considerada, pelos sé» lllósoío. Sentado bem perto de Psychodore, Lycon, a
162 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 163

cabeça baixa, escutava gravemente, e ia traçando sina iis sem conta caem, também, inúteis, na lama ou no
misteriosos com a ponta de seu bastão. nuco. .Entretanto, ó Lycon, tu não persuadirás ao
"No centro dessas linhas havia uma figura parec a se extinguir ou ao orvalho a secar-se para sempre.
da com o orador, porém, tinha um dedo por sobre < "— Acredita-me, ó Psychodore. Vem à minha so-
lábios cerrados. o, onde os pensamentos imitam o silêncio desabrocha-
"Quando Psychodore calou-se, Lycon, o velho sáb 0 das flores. Olharemos juntos ou alternativamente as
que muitos acreditavam mudo, perguntou: jlRiuas coisas. Quando os nossos olhos se encontrarem,
"— Porque falas? Ada qual amará a beleza do olhar amigo. Mas, nossas
"Sem esperar resposta, continuou: llUjuas ficarão imóveis na feliz humidade da boca, e, si
"— Nada é tão inútil como a palavra. E nad l emoção for muito forte, as nossas dextras se apertarão.
muitas vezes, é tão prejudicial.
"— Não irei hoje à tua solidão, disse Psychodore.
"As palavras que pronuncias são, para os ouvid I.yi-.n Kvantou-se para partir sozinho, porém, Psycho-
que te ouvem, ruidos vãos e estranhos. O sábio fala a |orc fê-lo parar com um gesto e com estas palavras:
homens, com as palavras de sua língua, uma língua qt "— Antes que te afastes, ó muito sábio Lycon,
não entendem. As palavras têm, nos seus lábios, u vc uma parábola.
sentido cheio e nobre; porém, o espírito da maior parti
dos homens, vaso de gargalo estreito, não deixa penetr
os sons sinão como envólucros esvaziados do seu con
teúdo. "Parei perto de uma fonte caudalosa e clara e ela
" E no vaso infame fermenta um tal mau cheiro qu" tava como uma adolescente. Alguns passos mais longe,
o que aí cai se torna podridão. solo faltava bruscamente diante do regato, mas a cas-
"Mais de uma vez, ó Psychodore, as máximas qu era um salto de alegria.
disseste nobremente, eu as ouvi repetir para desculpar oj| "Ora, chegava eu dos países inferiores e disse à
glorificar gestos vis. te o que vira lá embaixo. A avidez dos homens divi-
" E tremo de haver ousado, eu mesmo, algumas pe ra o nobre rio em canais retilíneos; e da sua limpidez
lavras, porque, talvez, o nobre preceito tenha contribuíd nsparente eles faziam uma fealdade lodosa e pesada
para determinar o gesto vil. se arrastava.
"— Também o raio de sol ou a gota de orvalhfll "Não sei si a fonte ouviu as minhas advertências
nutrição e mel para as veias da figueira, tornám-se vtl Iristadas. Mas, não respondeu sinão continuando o
neno nas flores da cicuta. Numerosos raios de sol { movimento generoso e o seu cântico.
164 MARIA LACKRDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 1 6 S

"Alguns anos mais tarde, passei de novo poi essa


ecera. Uma cidade banhava os seus pés no rio magní-
região. E vi embaixo um espetáculo inédito. Subi para 0 c flexível. E o povo bebia as águas, as quais osten-
dizer à fonte o que vira. Vam, como as mulheres ostentam jóias, reflexos res-
"— ó fonte, gritei, pára. Cesse um labor inútil. mdecentes e metálicos.
Não passes mais.
" E os homens morriam fantasticamente como em um
"O murmúrio da água por sobre os seixos parecia
lhate, porque, em um plano mais elevado que a cida-
rir de mim. , havia, entre os cortumes, não sei que outras fábricas,
Detém-te, ó fonte. Alguns loucos fizeram da quais tornavam jxsadas de cores duras e de venenos
tua vida que corre, uma morte imóvel. No meio do teu águas até ali sãs e claras.
vale, teu rio, comprimido em um dique espesso e alto, "Subi uma última vez. E gritei desesperadamente:
extravasa em pantanal pestilento. Pára. ó fonte, porque "— ó fonte, ó inocente assassina, aprende: a lou-
te transformam, querida vivificadora, em sementeira dc ira e a avidez dos homens fazem de ti uma envene-
moléstias e de morte. dora.
" A fonte continuava a correr com a mesma canção
"Mas a fonte continuou a correr por entre murmú-
zombeteira. felizes.
"— ó fonte, detém-te. Um dia, arrebatarias, pelo *
acúmulo de tuas águas, o dique que os homens construí- * *
ram com j>edras e com a loucura.
"O obstáculo destruído sob o teu peso tornar-se-ia
"Psychodore calou-se. Lycon, sem uma palavra,
impotente para reter a tua queda impetuosa e, em vez do u um passo para se afastar. Mas, Eúbolo, o mais
rio fecundante, lançarias nas planícies, o transbordar e a mado dos discípulos e o melhor, disse
devastação.
"— Dependia da fonte dar a água que vivifica. O
" ó fonte, tu. cujas águas são risadas, detém o riso
faziam de suas dádivas não dependia mais dela.
das tuas águas, que acabariam por fazer chorar os pobres "— Escuta, exclamou Psychodore. Tu ouves, Lycon.
Efémeros. tece que uma palavra é compreendida por alguém,
" A fonte, sem responder, continuava a deslizar. vês: acontece que um homem sobe à fonte para beber
Afastei-me, triste da sua obstinação e da loucura dos scura e pureza. Mas. aqueles a quem as minhas águas
homens. zzn mal, outras águas os matariam em lugar das mi-
"Muitos anos mais tarde, novamente jiassei por lá. s. Aquele (pie consente em permanecer em baixo,
() país havia ainda mudado de aspecto. A represa desa- i destinado a ser envenenado.
166 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 167

rópria civilização de excessos e de vícios, de grande-


* * material para o gozo dos sentidos já embotados; a me-
'na, que deveria caminhar ao lado da estética e da so-
O filósofo busca satisfazer a si próprio, procurando I ~~ia — evitando, prevenindo a sífilis, a tuberculose,
conciliar o seu individualismo anti-social com a sua ati- J tóxicos e as taras, evitando as moléstias sociais por uma
tude de suprema resistência «às forças reacionárias, resis-l mais larga compreensão dos direitos das criaturas
tência expressa pela pena, pela tribuna, pela ação, por I nas, até mesmo a arte de prevenir o desequilíbrio
toda a sua vida filosófica de neo-estóico, sempre a ser-l sistema nervoso e de curar as doenças do corpo e da
viço da solidariedade e do fraternismo humano. tade — tornou-sc indústria rendosa envenenando o
ero humano através de preparados e fórmtdas e dro-
Si a sociedade é a limitação, a fatalidade inexorável
e privilégios para arruinar a saúde, empurrar mais
contra o indivíduo. Han Ryner é tão anti-social quanto
ssa a humanidade para o abismo da corrupção e do
possível, e, por ser anti-social. o filósofo fala a quem
Inio mental, pesando ainda na fórmula dantesca da
tem ouvidos para entender, embora saiba que os discípu-
pela vida.
los sempre prostituem a voz dos Mestres — como de
Cristo fizeram o Cristianismo. . . E ainda mais: a ciência é hoje o Moloc. As guerras
Han Ryner se justifica com esta delicada expressão:! feitas nos laboratórios. E a vivisecçáo "cria volun-
"Unta voz feita para falar..." mente o sofrimento" e pretende indagar "das per-
Nunca vi protesto mais sentido, mais profundo, mais dões da agonia os segredos da vida harmoniosa", para
is declarar, como Claude Bernard, a insuficiência
delicado, nenhum tão expressivo contra a civilização in
método. E' "a ciência sem conciência" de que fala
dustrial e capitalista que entesoura para a minoria e é a
lais, "o crime mais negro do homem" na opinião de
causa da escravidão dos tiranos e dos assalariados, a
hi.
causa da miséria moral de déspotas e escravos dessa tre-
menda gleba de ferro das fábricas e dos teares. E Han Ryner, estóico, generoso, protesta: — " H á um
Vivemos a civilização que desviriliza as conciência\ o pelo qual não quero nem o prazer nem o alívio das
matando o individualismo nas máquinas de trabalho, dc has dores". E mais: "Salvar a vida de alguns ho-
ambição e comercialismo, na exploração do braço humano s destruindo no homem o respeito à vida c a doce
nesta sociedade brutal em que predominam c "vencem" de, seria atirar fora um tesouro para apanhar um
os chamados homens práticos. ém enferrujado".
Até a medicina, que se deveria limitar à higiene, pre- Que mais esperar da civilização dos homens práti-
venindo as doenças e a degenerescência cujas causas vêm da indústria e do capitalismo?
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 169
168
Han Ryner protesta serenamente, estoicamente, e vê tilo possa voltar-se, em toda a plenitude das suas neces-
um caminho, uma única solução, individual, como pontfl sidades de ordem física e de natureza mental e estética,
de partida para uma nova orientação social, soluçãd para a vida simples e saudável, cantando a aleluia da l i -
quasi impraticável, pela incapacidade de ver: — a volta) [berdade e do amanhecer, a visão serena, encantadora, das
à natureza. Miadrugadas orvalhadas. <> ocaso esbatido das cores nos
E diz, em " Le Père Diogène": poentes perturbadores, orando a alegria de viver, de sen-
"A sociedade invadiu tudo. Enredou todas as coisas* tir o mistério das coisas, sem constrangimento algum, es-
Tornou impossível, a quem quer que seja, a obediência àj perando, como os lírios e como as rosas, a realização in-
natureza".
E. na réplica à controvérsia entre êle e o abade VioH O que chamamos civilização é uma corrida de loucos,
let, sob os auspícios da revista L'Idée Libre, na sala dai a ferocidade e a barbaria, é a exploração do fraco
Societés Savatttes em Paris ( 1 9 2 4 ) , disse Han RynerI oficialmente organizada pelos fortes, é a partilha de leões,
" . . . quando estamos de acordo em pregar a volta à IUM i pirataria legal, é a horda de preconceitos e privilégios
tureza. não o fazemos como uma coisa definitiva. A na4 aniquilando o indivíduo, são os "mil impostos brutalmen-
tureza é encruzilhada e ponto de partida. ExtraviamoH te diretos ou sutís ou dissimulados" e que fazem de cada
nos dela em uma direção má; voltemos para a naturezaJ pessoa "um cúmplice de todas as infâmias do Estado",
afim de nos afastarmos novamente, dei>ois de haver to4 Inclusive as guerras, impostos que servem para pagar aos
nado boa direção". funcionários venais incumbidos de explorar duplamente
o povo e "para entreter seus soldados c seus generais,
Han Ryner, sentindo a inii>ossibilidadc da volta à olttJ
para sustentar toda a sua imensa horda de malfeitores".
diéneia às leis naturais dentro desta organização de pr
(Le Père Diogène).
juízos e privilégios, individualista da "vontade de harni
nia". prefere levar "uma vida tão anti-social quanto po O que chamamos civilização e sociedade é a confu-
sível" (Le Père Diogène), sem paradoxo: por amor Iflo, a superficialidade, o tédio irrequieto das grandes me-
próximo. . . trópoles, a gleba do trabalho forçado nas minas, nas fá-
Porque, para amar a humanidade, é preciso distan bricas, nos arsenais, a miséria de um lado e a <x:iosidade
Vagante onde imperam o constrangimento, a hipocrisia, a
ciar-se dos homens... O seu convívio tem a aspere
deslealdade, onde pontificam imbecilidades "oficiais" —
dos "cardos de Baragan"...
Os chamados literatos e artistas de nome feito, os meda-
Deixa, pelo menos, o seu protesto conciente contra
lhões de Academias de múmias, onde discutem e acumu-
atentado da civilização dos homens práticos, amontoando
l.mi palavras, frases estudadas, sentenças desconexas e as
dificuldads por sobre dificuldades para que o homem
J70 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 171

asneiras carinhosamente cultivadas — os tontos, os vul- '"A palavra de Exciclo tornou-se áspera:
gares e os presunçosos. "— Si compreendo bem, ó meu Mestre, nesta res-
A vida só pode ser vivida integralmente, dentro da ta pouco precisa com a qual tu te dignas me honrar,
liberdade e do amor à natureza, em harmonia, cada qual. Jroinetes neste momento uma injustiça, e, em dois atos
consigo mesmo. 1prniclhantes, condenas úm, porém, aprovas o outro.
A solidariedade humana só poderia ser realizada com "— O inventor da moeda, ó meu filho, não se pa-
a volta à natureza. Nunca se verificará dentro da civi- Ifrce com a fonte alta. Era preciso, para chegar ao ex-
lização da indústria, do capitalismo. tr. mo de tal invenção, um pensamento singularmente apli-
E no meio da corrupção intelectual, prostituem-se Ifado às coisas baixas. E não deu nada que correspon-
também os sonhos e as palavras dos Mestres. ilesse às necessidades sãs do homem. Que produziu êle
Embora: "uma vos foi feita para falar"... para satisfazer tua fome, ou te proteger contra o frio
E deixemos que fale Han Ryner. ou te colocar acima do temor e do desejo?
" E ' antes, o envenenador que, entre a fonte e a ci-
[dade, interpôs a fábrica; e profanou as águas, tornando
O DINHEIRO •asado de reflexos metálicos o que vem para a nossa
boca.
"Exciclo — o discípulo vaidoso e obstinado, pergun-
"Psychodore calou-se um instante e seus lábios de
tou a Psychodore. no dia seguinte ao da partida de Lyon:
fejKMite retorcidos como em náuseas, foram desenhando
— ó Psychodore, a moeda produz menos males que a
itamente um sorriso.
fonte envenenada de que falavas ontem.
"Ora, recebeu êle esta resposta: ' "— A natureza, continuou êle, quis que as frutas,
• carnes e outras coisas necessárias se conservem pouco
"— A moeda produz males por si só, mais que todas
tnnpo. Esta sábia previdência estabelecera entre os
as fontes e todas as torrentes que caem das montanhas.
homens uma fraternidade e como uma necessidade de
"— Mas, replicou êle, aquele que a inventou, pensou
benefícios recíprocos. Outrora, aquele que tinha muito
somente em certas vantagens por ela realizadas. Quis alimento, o repartia com seu vizinho, mesmo si o
ser o benfeitor dos homens; quis facilita^ is permutas que vizinho nada possuísse para objeto de permuta. A ge-
B troca tornava penosas e incertas. Suponho, pois, que nerosidade era o único remédio ao sofrimento de ver o
tu o absolves como à fonte. Ou talvez, tu o amas e o pem apodrecer inutilmente.
admiras.
"Os olhos do filósofo pareciam rever um horizonte
"Psychodore sacudiu os ombros.
172 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 173

longínquo e feliz. Uma tristeza, ao contrário, quasi os


fechava, enquanto terminava o seu discurso:
"— Hoje, ai de nós! a moeda permite trocar o qu
"Um homem disse a um rebanho de carneiros: —
se estragaria, por uma matéria durável, sem uso e sem
inai-me, porque afiei com arte a faca que vos cortará
valor \x)r si mesma, porém, que a nossa loucura aceita
10 pescoço. Aclamai, pois, o vosso benfeitor.
como riqueza real. Sob uma forma tão dura como um
"Ora, os carneiros balaram todos juntos. Mas, não
coração de rico, aquele que tem muito, acumula o que falta
Hdivinho si o balar aprovava. ( ) balir dos rebanhos e dos
aos outros, e edifica, com a fome dos nobres, o edifício
novos aclama quasi sempre os magarefe s e os afiadores de
de seu poder e de sua servidão.
•"O inventor da moeda aperfeiçoou alguma coisa:
"Algumas vezes, entretanto, seu sentido é duvidoso,
aperfeiçoou a tirania e a escravidão; tornou durável, só- (invoco e obscuro.
lida e crescente a desigualdade, que era precária, ligeira e
"Muitos afirmam que a voz do povo é a voz dos
incerta. E' o pai de miríades de assassínios, de miria- Hcuses. Talvez tenham razão e — enquanto um padre ou
des de mentiras, de miríades de violências, de miríad- um orador não os interpreta de maneira a agradar aos
de baixezas. tiranos — o ribombar do trovão, o voo dos pássaros, o balir
."Teria previsto éle, alguns de seus crimes e os teria Ipa carneiros e os gritos dissonantes do povo não signifi-
querido, salteador que ri sob uma máscara? Não o creio. ram absolutamente coisa alguma".
Era mais. talvez, aquele cujo pensamento vil prejudica,
mesmo quando quer servir, aquele que não tem para dar
sinão — sujidades e que espalha as suas excreções ao
* *
acaso, tanto no pão que acabam de cozer como no campo
que se vai semear. . . Assim termina o filósofo a sua segunda parábola, que
"— Contudo, objetou Exciclo, os povos o louvam • a continuação da primeira.
e eternamente o louvarão. Profunda sabedoria diante da qual os homens práti-
•Oa sorriem a sua malícia, cavalgados na força do poder
"— Nobre argumento para um filósofo! exclamou
Industrial, certos de arrastarem, por milénios, talvez, a
Eúbolo. •hbecilidade humana, traduzindo como aplausos o balir do
"Mas, Psychodore: rrhanho social, domesticado até ao servilismo inconciente
"—Ouvi uma parábola: •os que se abaixam a adorar as efígies dos Alexandre, dos
174 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 175

Napoleão ou dos Mussolini — magarefes de carne humana conservar, felicidade reduzida talvez, porém durável,
alegria larga e fugidia.
ou afiadores de facas...
Ouçamos, ainda, Psychodore, na sua admirável paJ I — Ouvi uma parábola, disse Psychodore:

rábola:

A toupeira. "As toupeiras, hoje, são cegas. Si alguém as examina


"Alguns discipulos falavam com animação. Dirigi* rficialmente, acredita nunca ter havido cabeça de tou-
que conhecesse a luz.
ram-se, finalmente, a Psychodore.
[•""Contudo, levantando-lhes os pelos cerrados como
lE Eúbolo disse:
tecido, percebem-se-lhes os olhos, sumidos e incapazes
"—Mestre, fizemos esforços sinceros para compreen- ver, opacos, tristes, como reis destronados.
der a tua atitude concernente às coisas divinas e aos mais "E imagina-se que essa cabeça não foi desguarnecida
profundos segredos humanos. la vontade da natureza, porém, pelo crime lentamente
Todos esses pensamentos, porém, que estão para stinado do hábito ancestral.
além da física, parece-nos que, ora os desprezas e os detes- "Eis, pois, ó meus filhos, o sonho pitagórico que
tas como prejudiciais à ação, ora os amas como a betir sonhei em um dia de melancolia olhando uma dessas
raros e preciosos. as empobrecidas.
".— Si podes, confirmou Exciclo, explica-nos a conJ "Há uma miríade de anos, eu vivia no corpo de uma
tradição que Eúbolo acaba de iluminar. pcira. Semelhantes, em tudo mais, às toupeiras de
"Mas, Eúbolo protestou: je, gozávamos ainda da luz. Muitas, entre nós, anda-
"— Exageras e deformas meu pensamento, ó per- 1 pregando: "Tende o cuidado de não abrir os olhos,
verso: transformas o que é uma inquietação de amoroso olho não é órgão, é uma armadilha, que recebe no tra-
em acusação de inimigo. Mesmo, ó Psychodore, creio! t O poeira e a dor".
perceber, por vezes, no fulgor de um relâmpago ou no] "O povo escutava essa covarde sabedoria. Aquelas
vislumbre de um sonho, a unidade de teu pensamento re- , em primeiro lugar, a repeliam, com generosa indigna-
lativamente a essas coisas. Mas, não consigo penetrá-la o, depois de muito sofrer nos seus olhos, acabavam por
assaz fortemente para fechá-la em palavras estreitas ai submeter à necessidade.
quais a tornariam sensível a estas e as quais me permiti- "Algumas, todavia, se obstinavam, proclamavam, com
1 7 6 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 177

desprezo, a loucura de sua geração e conservavam, corajo- rceber as verdades cósmicas. Si temos dc comer,
samente, os olhos abertos. A i delas! a terra que feria, a o animais, devemos fazer o serviço de animais, po-
cada instante, as suas pupilas chorosas, as cegava mais , si diminuirmos as nossas necessidades, as nossas exi-
depressa que às outras. ias materiais, diminuiremos esse esforço de besta de
"Instruído pela sua desgraça, fiz, para mim, uma a e poderemos, então, reservar todo o tempo disponí-
regra de conduta e a explicava a quem me quisesse es- para abrirmos os olhos às verdades eternas escondidas
cutar. Mas, censuravam-me por ser sutil, desigual e di-i criptas profundas da nossa vida interior.
fícil de compreender. Por outro lado, pelo individualismo, o homem pode
"Vós a achareis fácil, vós, meus filhos, por toda a ir-se da sociedade e trazer os olhos bem abertos, afim
parte de vosso espírito que não se assemelha ao espírito m conhecer-se. afim de realizar-se.
da toupeira. I Nem ouvir, confiante, as sabedorias da vulgaridade,
"Enquanto procurava, tateante, a nutrição, cruzava ^Bpedoria covarde dos apóstolos e sacerdotes, nem en-
as minhas galerias subterrâneas trazendo fechados os meus ^Bliar o papel de mártir e herói ou sacrificado, inútilmen-
olhos inúteis e dolorosos. B 110 meio do balar das multidões que aprovam ou truci-
"Empregava, i>orém, o menos tempo possível no tra- lliiin com a ni >ma inconciência.

balho da excavação. I Ser tão antisocial quanto possível, deixar todas as


E todos os meus lazeres, deixando as galerias subter- galerias subterrâneas da geena social e subir aos abismos
H f luz da vida subjetiva para sonhar, para crescer, para in-
râneas para subir ao solo, eu os ocupava em sorver, com
-sc em si mesmo.
os meus olhares bem abertos, a alegria e a luz".
I Encontramos nessa parábola, as duas hipóteses me-
^Blicas, tal como são concebidas na filosofia ryneriana: a
* *
BpTdadc e o determinismo. Essa é a faceta principal, pa-
E* uma das parábolas de maior número de facetas I H|-me, do j>ensamento da parábola, segundo as indaga-
\whê de Eúbolo e Exciclo.
desse livro magistral.
Por um lado, a parábola ensina o desprezo às coistfl I E, acima do determinismo e da liberdade, a relativi-
materiais e ao labor brutal excessivo para as obter. dade mesmo dessas duas hipóteses metafísicas: acabando
B a , quando a outra começa. . .
A vida simples, natural, sem exigências, não nos arras-
taria a um esforço penoso e perene, ccgando-nos de dorj Liberdade e determinismo aplicados à Ciência, apli-
o corpo e cegando a nossa intuição, tornando-a incapail B o * à sabedoria de viver.
178 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 179

Em Parábolas Cínicas e em As Viagens de Psych 1 aos quais dizemos tudo, nunca sabem coisa algu-
dore, muito antes de Einstein, há o princípio da rcl.it i
vidade. •
Han Hyner não nega £ nem afirma: sonha.
Mas, os sonhos metafísicos não devem influir na vid
Escolhi, propositadamente, parábolas que envolvem
na ação. Para a ação, o neo-estoicismo, ou o "positivisn to sentido em tomo da questão social e daquilo que chã-
da vontade", a liberdade de querer. os, por veaes, a *'tara congenital" da espécie, a me-
A metafísica que se faz regra de conduta, afirmand ridade.
é dogma religioso, é covardia, é medo do além, é meio r Mas, será a mediocridade, a incapacidade para ver,
domesticar, de aviltar... para explorar. si mesmo, a vulgaridade das massas, o servilismo —
Mas, nem sempre o determinismo científico basl tara irremediável, congenital, ou essa tara foi o re-
mesmo para a ação. tado da ignorância de uns e da esperteza, da astúcia,
A metafísica toma o seu lugar, quando a ciência e requinte para o mal, da autoridade, do despotismo de
ns outros, exercitando-se no poderio, no domínio da
ética são insuficientes.
de maioria ainda inexperiente e em plena fase da in-
Na ação, Han Ryner ouve, por vezes, as consideraçõ
tilidade?
cientificas, por vezes, os sonhos metafísicos.
Quem nos vai responder é Psychodore, com a sua pa-
Quando a ciência é impotente para preencher os W la magistral:
zios da sua conciência, resolve as suas ações pela met
física.
Um exemplo: Han Ryner nunca recorria ao suict
Povo Cego.
dio, em todos os casos por êle previstos, e essa deci: "Eúbolo, saindo de longas reflexões, perguntou:
da sua vontade não é de ordem sentimental, nem de ord "— Tu a vés, em toda a sua espantosa riqueza, a íá-
ética, porém, de ordem metafísica: "Suporta e abstém- que nos contaste ontem?
que a vida é um círculo eterno e os destinos, todo-pode "Psychodore exprimiu uma dúvida:
sos, inexoráveis, e é em vão procurar negá-los". (L —" (E' possível que a tenhas enriquecido com alguma
Voyages de Psychodore). reza, na qual eu não poderia ter pensado. Fala, pois,
Para que diminuir a grandeza da parábola com o| nu de que o saibamos. Eúbolo, entre gestos de entusias-
comentários ? que um andar por vezes cambaleante tornava estranhos,
Basta fazer pensar. Tem razão o filósofo: "Os hl
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 181
MARIA LACERDA D E MOURA
180
[ "Que diria aqui um Euclides aplicado, não em conhe-
exclamou — e a sua voz ressoava como a voz de um
k r as propriedades dos triângulos e dos círculos, porém
mem que liebeu vinho muito forte: •tu distinguir a natureza dos homens?
"— Irei para a minha cidade. 'Direi, aos cidadãos f "Psychodore respondeu:
mentes, a j>arábola da centaura e de seus filhos. Min "—Ouvi uma parábola:
pátria, compreendendo-a, tomar-se-á nobre, o que fará n
bres e bons aqueles de seus filhos de quem ela se lastin
' *"Ora, Psychodore meneou a cabeça:
"— Falo, disse êle, aos homens que encontro ou q
vêm a mim, j>orque jxxle acontecer que um homem ten "Nesse país a luz é mais doce que na própria Grécia.
ouvidos, mas uma pátria, ó meu filho, nunca tem ouvid< • ) clima. ali. é tão igual que ninguém tem necessidade nem
nem mesmo aprumados e jxmtudos. vestimentas nem de casas. As bagas silvestres ali bro-
"E ela não é feita para entender parábolas, poréntj H m fartamente e mais saborosas que os mais bem culti-
j>ara escarnecer, como um louco, daquele que lh'as procin Hldos dos nossos frutos. Uma planta orna. por si mesma,
dizer, e, si êle tenta explicá-las, para o exilar ou par \m margem de todos os caminhos, dez vezes maior que o
matá-lo. •Rosso trigo e, em vez de espigas, dá pães deliciosos.
"Eúbolo parou e gemeu: "Mas, os grandes e os padres são de natural invejoso:
"—Creio ouvir Anaxágoras, creio ouvir Sócrates t m§ bens que não constituem privilégios e superioridades
todo um coro de sábios cantar que Cens razão. E me en | M I ; I eles. perdem todo preço.
tristeço e não compreendo. "Organizaram a cidade de maneira a gozarem sozi-
"— Porque tratam os homens como inimigos, os nhos, livremente, das vantagens do país.
lhores dentre eles, aqueles que, si fossem ouvidos, lhes "Proíbem aos outros homens de colher os pães e as
trariam felicidade e justiça? IfUtas e deixam apodrecer enorme quantidade de nutrição,
•atribuem víveres insuficientes aos pobres. Tara eles,
"Porque se privam eles das palavras que lhes cura
••cobriram a arte de "deitar cargas ao mar" <• de comer
riam os males? Porque exilam os oradores dessas pala
•ediatamente após. Aliás, são desgraçados, sempre entor-
vras nos países bárbaros ou até nas regiões da morter
•cidos e dolorosos de indigestão, sempre inquietos com a
Esse problema me parece desesperador não só por scf
l.lna de que, sem dúvida, em algum canto mal policiado do
benévolo aquele que não se sentisse feliz sinão na felicidade imenso país. lhes roubem um pouco do que, afirmam eles,
de todos, mas, também, por ser menos ambicioso quem meu pertence.
sònlente quisesse compreender.
182 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

"Encontraram, entretanto, há alguns séculos, um i "O povo canta com eles o seu devotamento e a doçura
B | viver com os olhos fechados, sem o trabalho de se con-
dc se tranquilizar em parte.
I., o
"Logo que nasce um filho do povo, as suas palpei)
f l "Aliás, a morte, afirmam, abre os olhos dos pobres
são fechadas com uma pasta que sabem preparar os ptd
H n uma bela região, amável como um beijo que nunca
e certos servidores dos ricos, denominados sábios. Ass
B|i<* terá fim.
os grandes, os padres e os sábios, só eles gozam da lux,
I [ "Os ricos, os padres e os sábios têm, entre todas as
"Muitas vezes, fustigam os outros homens, os qua r

inquietações, uma terrível angústia.


reconhecendo a sua inferioridade, curvam a cabeça.
| "Algumas vezes, com efeito, um homem do povo sente
"Mas, os pobres, são entre si, de espantosa brut ^ H i olhos se abrirem.
dade. "Dá-se o acidente de dois modos. As vezes, durante
"O ouro parece inútil em tal país. Entretanto, •••do um dia. um miserável escapa às ciosas vigilâncias, e.
muitíssimo apreciado. Algumas vezes, as mãos tateant Hfavés das suas pálpebras fechadas, procura ver um mes-
e investigadoras de um cego encontram um tesouro. E Wmn objeto. As pálpebras, pouco a pouco parece adelga-
tão, os magistrados se reúnem. Examinam algumas d fcirm-se transparentes c o objeto lentamente se torna dis-
circunstâncias que precederam ou acompanharam a dr Hftto. A hora em que o crepúsculo incendeia o céu, o ob-
coberta. Essas circunstâncias parecem fúteis e indifere Iffo, pacientemente observado, toma. enfim, linhas precisas
tes a quem quer que seja que não tenha estudado as sua • OH olhos se abrem. O homem que goza, de repente, à
leis. .1 do conjunto das coisas, agita-se em uma felicidade
"O magistrados, porém, descobrem nelas o que de B l i t o violenta e grita maravilhado.
minam justiça e proclamam que o inventor do tesou "Outra vez, também, um pobre diz:
deve ser condenado à morte ou que é preciso trazê-lo pa i "— Quanto a mim, aceito a minha condição, uma vez
a classe dos videntes. Então, com uma água da qual ipir tenho a força de a conduzir. Mas. porque os deuses dão
padres guardam o segredo, descolam as suas pálpebras. Brdos tão pesados a tantos seres fracos que ouço gemer
"Entretanto, os grandes, os padres e os sábios í tombar?
sinam ao povo que o país é horrível de se ver, e que, sr "Si essa piedade é assaz forte para fazer chorar, eis
a sua sábia administração, a calamidade pública, a misér • r o misericordioso sente suas pálpebras se levantarem
seria aí, contínuo flagelo. Hfes e vê. trémulo, em uma emoção, misto de amor e pie-
"Desolam-se, em altas vozes, pelo fato de serem obrl B e desolada, vê as coisas e os seres se agitar m em der-
gados a conservar os seus olhos para conduzirem, atravét
dos horrores da região, a seus irmãos mais felizes.
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL
184
"Ora, si os novos videntes se calam diante do p l ias regiões mortíferas de todos os degredos oficiais, que
ou si consentem em louvar a condição dos cegos, são digam os cubículos das prisões odiosas e infectas e os
jxjrtados. Muitas vezes mesmo, são convidados a cm litios" permanentes, os fasci tragi-cómicos, ferozes, ou
ptra um colégio de padres ou de sábios." Os ridículos nacionalismos ditatoriais.
Si um deles pratica a imprudência de louvar públi Que o digam Sacco e Vanzetti. Que o digam Amen-
mente a luz, a sua boca é fechada com uma mordaça c dola c Matteotti.
arrastam para o exílio. Mas, si atrai o ódio da sua pát
e da organização social até querer explicar por que m
*
os olhos se podem abrir, então os grandes, os padres c
sábios dominam a sua voz com os seus gritos.
"Acusam-no de enganar o povo e têm o consolo de
a multidão, em um impulso magnificamente unânime, a Vejamos ainda uma parábola em que Han Ryner fala
rar-se por sobre o mentiroso e o matar". das leis, da autoridade, do sectarismo, do exclusivismo de
classes, e, com esta, encerraremos o número das que mais
* Wtniràvelmente se referem à questão social.
* *

E assim termina Han Ryner a sua maravilhosa pa |Ds escultores de montanhas.


rábola com a qual focaliza c critica a organização socii
de privilégios e prejuízos, de lobos e cordeiros, dc protet< •"Alguns homens partiram para fundar uma colónia,
res e protegidos, de senhores e vassalos, de donos e esen encontraram Psychodore e. dispersando-se em torno dele,
vos, de capitalistas exploradores e operários explorado ouviram lhe a - palavras. Ficaram alguns dias com o filó-
— todos igualmente acovardados, todos igualmente deprl s o f o e seus discípulos. Algumas vezes, entretanto, falavam
midos. inquietos, infelizes, aviltando-se no predomínio <M entre si. , m segredo. Finalmente, aquele que parecia ser
na servidão. Demais, que o diga Sócrates, que o diga Hl P chefe, disse:
patia e Cristo e Giordano Bruno e Galileu e Ferrer e 11 "— ó Psychodore, não conhecemos nenhum sábio
radentes, — a caravana dos heróis, dos apóstolos e dflj fuja sal>edoria seja igual à tua sabedoria. Vem conosco.
mártires de sonhar trazer uma nesga de felicidade e benj E quando tivermos construído a nossa cidade, tu lhe darás
estar e independência para todos os seres. Que o digal •s leis.
as procissões de "indesejáveis" nos porões dos navios 0 I " . — O u v i uma parábola, respondeu Psychodore,
186 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 187

* "Outros se aplicam a modelar somente uma cidade, e a


s, eu os denomino, propriamente, os esctdtores de mon-
has.
"Um escultor disse a Alexandre:
"— Assim, recusas um trabalho e uma glória acima
"Dá-me o monte Atos, afim de que eu faça dele, uma tua coragem?
estátua à tua glória. Terá ela na sua mão direita, larga-
mente aberta, uma cidade, porém, a sua mão esquerda "— Acima do poder de um homem, ó homem. Mas,
fechará a urna donde um rio se extravasa. própria certeza do revés não me deteria, não me faria
"Quando Alexandre não estava embriagado pelo ál- ixar de empreender, si empreender, aqui, não constituís-
cool como um pobre homem qualquer, ou bêbedo de in- um crime.
censo como um imbecil, que se acreditava filho de Zeus. "— Os colonos dobraram-se em gargalhadas.
tinha a sabedoria, comum, aliás a muitos loucos, de re- " — U m crime! exclamou um deles. E contra quem?
conhecer as loucuras estranhas. "— Contra a montanha e contra o escultor.
"Ridicularizou a ambição desse homem e lhe recusou
"A montanha e a multidão têm não sei que beleza fe-
seu pedido. Dz. Mas. a montanha esculpida ou o povo policiado, que
rformidades ridículas... ó Lacedemônia, no teu ran-
er de dentes, és a caricatura de Licurgo. ó governo de
* * Atenas, careta ridícula e tagarela de Sólon...

"O chefe dos colonos replicou: "Por mim. não me tornarei culpável de tais deformi-
"— Desta vez, ó sábio, não falaste segundo a tua sa ides. Com que direito, cu, que não ol>edeço a ninguém, go-
bedoria, e nada nos ensinaste. «rrnarei a alguém? Com que direito, eu, que considero
"Conhecemos a história que acabas de contar e ela violência como o único mal e que desprezo toda su-
não corresponde absolutamente ao pedido que acabámos eição. hei de constranger os outros? Si é com dificuldade
lie, algumas vezes, quando me pedem, ouso dar o con-
de te fazer.
selho que faz agitar as mãos. Não sou inimigo da tirania
"—Alguns, diz Psychodore, quereriam reformar todos
lom a intenção de me tornar tirano. Sei que o cidadão
os homens e esculpir, segundo eles, o sonho da huma-
•MO é mais que o cadáver de um homem, e o legislador, o
nidade. Eu os comparo ao operário insensato que se es-
rmlnver de um sábio.
forçasse por fazer, com a terra que habitamos, uma imen-
"—Contudo, Platão.,.
sa estátua de Demetér,
188 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 189

"— Eu me indigno contra Platão quando nos livafl t "Assim, Alexandre teve, nas suas mãos fortes, po-
das Leis. aconselha ao magistrado a ajustar os casamen- jHllaçõe> bárbara> e e-íorçou-ae por as modelar segun-
tos por meio das trapaças, dos ardis e das mentiras,/ iwK o povo grego. Êle, porém, é que se tornou barba-
Fico indignado cada vez que Platão esquece a grande §0 pela vestimenta, pelos costumes, pela loucura capri-
palavra de Sócrates: kliosa, j>ela irritabilidade, pela incapacidade de se tornar
"Toda ordem que se apoia no constrangimento e •enhor de si mesmo e por toda a sua alma de subter-
não na persuasão, eu a denomino tirania e não a chamo fúgios.
Hf Psychodore acrescentou, em ar de ameaça profé-
de lei."
Voa:
"Fico indignado quando êle envolve as suas ordens
•L**— Cuidado, ó homem. O espírito do escultor é,
em ameaças, castigos, juízes e homens armados.* Nãd
loasi inteiramente, <. trabalho de suas estátuas. Não digo
o vês também? o fato de sonhar esculpir a montanha
Otie é somente o trabalho daquelas que êle realiza. Tam-
constitue, por si só, um ar mefítico, e, como saímos fe«|
kém aquelas em que vê malogrados os seus esforços, seja
bris de um país de pantanais. Platão sai de seus sonhos]
Buque o seu sonho se desenvolva muito largo e difuso,
legislativos — mentiroso e violento. ou em razão de se aplicarem as suas mãos em matéria
"Assim, cada vez que, mesmo só em pensamentos, inuito imaneável e fugidia, fabricam o escultor, pobre es-
um filósofo torna-se rei ou magistrado, há um tirano látua dolorosa e tão fácil de se deformar."
de mais e um sábio de menos.
"Psychodore calou-se um instante. Depois, reco- *
meçou com acento ainda mais firme: * *

"— Não, a aventura de Platão não é um acident


E' profunda e de extraordinária multiplicidade de sen-
único. Não ignoras em que animal feroz a tirania tran •Jos e facetas esta estupenda parábola de Han Ryner.
forma o sábio Periandro. Mas, não conheces, talvez, Nada mais sábio que o conceito de que, quando o
história de Nioba. homem desce a governar os outros, se torna tirano e escra-
"— Eu a ouvi contar muitas vezes. mo ao mesmo tempo: tirano dos seus súbditos, escravo dos
"— Contam-na mal. Nioba. hábil e forte como F fljasalos e das suas próprias paixões. Abdica de si pró-
dias, porém, louca de orgulho, quis esculpir uma mon prio ao considerar-se acima dos seus semelhantes.
tanha. A montanha foi mais forte que ela, e Nioba foi «Esquece do seu eu, esquece de que ninguém pode ter
quem se transformou em rochedo. ("Wtoridade moral sobre quem quer que seja, si não a teve
190 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 191

para consigo mesmo. Perde a noção da liberdade para 0 HMSO ou dentro de uma escola, do sectarismo de classe ou
semelhante e cresce no dominismo cego dos paranóicos, doêj H a um dogma ou de um partido.
covardes e dos conquistadores. Os governos, as leis, go«j E o género humano não é um bloco, um todo homo-
vernam e legislam para os rebanhos homogéneos, e cada fcéneo como a terra. Cada criatura é um mundo, é uma
criatura humana é um universo, é uma unidade que .u Blpiração espiralando para o Infinito, é um sonho inco-
deve bastar a si mesmo e cuja disciplina vem de dentro mensurável sonhado por um deus interior.
para fora, uma faúlha que despertará através do amor Cada qual tem a solução do seu enigma, cada qual
do sofrimento. mtm a sua esfinge e o seu problema.
Qualquer governo, temporal ou espiritual, deprime Cada criatura se vai realizando, dia a dia, a seu tem-
BM>, livremente.
avilta, imbeciliza, escraviza o vassalo e o senhor. Daí
megalomania dos poderosos, duplamente culpados do cri Nem governo temporal que imbeciliza através da t i -
me de conduzir rebanhos amordaçados e cegos e do alti •ania, das injustiças, das leis e da mediocracia, nem go-
crime de abdicar do seu próprio ser. verno espiritual (pie n ã o menos imbeciliza e constrange,
•Violentando a razão, amordaçando o livre pensamento, su-
Resulta disso que os povos são sempre governadoi Bocando a lure expansão da conciência.
l>ela mediocridade: só os que se não conhecem, os inca
Os demagogos, os sectaristas das lutas de classes tor-
pazes de se dominar aceitam os postos de dirigir e legis-
Bam-se déspotas, quando vencem no seu apostolado de es-
lar e governar os outros. I Cultores de montanhas: políticos demagogos, deputados so-
O sábio, o lifósofo lev*a a vida inteira a trabalhai. .1 líialistas arrogam-se em tiranos e ditadores, obreiros de
lutar para aprender a conhecer-se a si mesmo, para tentar fastátuas de Demetér... Mussolini, Hitler...
governar-se, dominar os seus próprios impulsos.
Nós mesmos, quando nos tornamos patriotas e de-
Sinão, passemos em revista todas as ditaduras impla- fensores da "ordem" e da lei, — matamos a nossa indi-
cáveis, fantoches mussolinescos, arlequins hitleristas, ca« vidualidade para nos transmutarmos em cidadãos da
ricaturas de escultores de montanhas. Ipatria.
Impossível esculpir com o bloco imenso da Terra a "O cidadão é. pois, o cadáver do homem".
estátua de Demetér, do mesmo modo que é impossível Platão renegou a Sócrates, quando concebeu as suas
louco, o sonho de querer que os homens todos, toda a \Leis.
humanidade conceba ou realize uma única aspiração, um Enquanto os homens quiserem regular, por meio de
único sonho ou que evolucione sempre pelo mesmo pro- leis, os "complexos psicológicos", os "complexos afetivos",
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 193
MARIA LACERDA D E MOURA
1°2
Si dogmatizarmos para os outros, caímos na arma-
a natureza humana se revoltará — imbecilizando-os atra»,
dilha da qual nos queríamos livrar mais rapidamente, ce-
vés das multidões acarneiradas, domesticadas, que si
Bando-nos d 'ntro desse mesmo dogma que não representa
subn»etem ao jugo incrível de um ditador epiléptico ou |>a«
H n ã o a ignorância, a tirania e o servilismo.
ranóico, como Napoleão ou Mussolini, ou revoltando-sc,
í Sócrates, na sua sabedoria profunda, afirmava como
loucamente, na luta de classes em que cada grupo sectá-
Hm filósofo incapaz de conceber leis: "Tudo o que sei
rio tem a pretensão de esculpir uni sonho único para toda
Hque nada sei" — sábia máxima aplicável a todas as cir-
o orbe terrestre.
Hlnstância.s da vida. tanto no terreno teórico como na
Enquanto houver legisladores, haverá quem se subn ^ B o , sem nos aproveitarmos dela para capa á covardia,
ta ao guante dos governos autoritários e quem esteja di í|o comodismo dos incapazes de assumir uma atitude no-
posto a sacrificar a própria vida e a vida dos outros Brc, ante as contingências da vida social.
para substituir ou modificar, interminavelmente, as leis...i
A verdadeira sabedoria nos ensina que o meio não á
a compressão ou o servilismo, nem a lei tem o poder dc
despertar as nossas energias latentes.
As leis a que devemos homenagens são as leis cós- Para terminar, ouçamos Han Ryner na delicada pa-
Ithola:
micas, as leis naturais, as leis não escritas nos códigos dos
governos.
A luta que temos de travar é conosco mesmos, é do As ortigas
domínio interior.
Os nossos maiores inimigos (estamos fartos de o sa- "— Ordinariamente, disse Exciclo, sinto em mim uma
ber) são as nossas paixões, os nossos instintos inferiores, maldade galhofeira, mais jovial talvez e mais jovem que
a ambição, os preconceitos ancestrais, é todo o imenso •irversa: meu coração, meus lábios e meus olhos sorriem,
cortejo dos nossos demónios interiores. | | minha palavra pica como a ortiga, ou si, como a sarça,
A estátua idealizada através dos nossos sonhos, len- lia agarra com os seus numerosos espinhos, e, no impre-
tamente nos há de modelar. hfiHto das suas laçadas, consegue embaraçar. Hoje, não
l | l porque, meu pensamento, parecendo-me mais forte e
Realizando ou não a nossa obra de Arte — nós nos,
kais rico que jamais, não tem maldades, não tem espi-
esculpimos com o cinzel da dor de criar, do esforço ou
phos, nenhum desejo de atormentar ou de fazer cair.
do sonho de a conceber.
4 MARIA LACERDA D E MOURA
195
1 9
HAN RYNER E O AMOR PLURAL

"— E \, disse Psychodore, porque o teu |>*ffl Hpios sem sofrer coisa alguma. Si te é possível, meu
samento está em flores. • l i , explique-me esse mistério.
"E acrescentou:
"— Não vês, meu filho, que hoje estão floridas?
"— Ouvi uma parábola: "Palpitantes de alegria e de amor generoso, esquecem
l i s de odiar. Elcvam-se belas e felizes para darem per-

[fuines de mel e pensam nos grãos que semearão, para o
nturo, jardins sem limites. Hoje, não têm elas nenhum
•rutimento de inveja a apaziguar por meio de gestos im-
"Um pai e seu filho passeavam pelo campo, •rtinentes ou pela dor que geram."
ziam um manto curto e seus pés e suas pernas esta
nus. Houve um lugar em que deixaram o caminho
rido para andarem na frescura das ervas. Em breve,
• •
rém, opôs-se diante deles uma passagem eriçada de
tigas. Ora, o pai continuou a caminhar resolutamente
não parecia notar as hostilidades dissimuladas que o Han Ryner é um Poeta Anunciador. A sua sabe-
peravam. O filho o advertiu: loria socrática, a magia de sua linguagem, a limpidez do
"— Cuidado, ó pai, são ortigas. MU estilo helénico, toda a sua serenidade imperturbável
H estóico, na defesa desse sábio individualismo reivíndi-
"Mas, o pai, sem voltar, nem responder, com num
Mdor da posse de si mesmo, tudo, em Han Ryner, faz
sua marcha, como dantes. léle excepcionalíssima mentalidade, dessas que falam
"O filho tocou timidamente uma planta. ftra todos os séculos, para todas as épocas históricas,
"Tocou com a ponta do dedo, depois com a palma, rfl Mira todos os povos, para todos os ciclos da evolução
seguida, com as costas da mão. E espantou-se pelo fal •mana.
de não experimentar nenhuma dor.
A sua bondade é quasi inconcebível, a sua cerebração
"Finalmente, entrou também êle por entre essa pa
•volve todos os problemas do ser e do destino, a sua
perturbadora. Correu para seu pai. filosofia abarca todas as filosofias, o seu sonho acaricia
" E quando se lhe acercou, perguntou lhe: • todo o género humano, cada uma das suas parábola-, é
"— Essas ortigas, há poucos dias, cobriram de •«• forno um foco de luz a desvendar os arcanos de todas as
pente, minhas pernas, de borbulhas e de picadas. Hoji limas, a esverrumar os crimes e os prejuízos de lesa-fe-
ondulam sob o vento em sorrisos inocentes e as atravel Mdade individual.
196 MARIA LACERDA D E MOURA

A sabedoria de Han Ryner de tal modo penetrou, rffl


minhalma, o conforto delicado de uma oferenda dc boi
dade, de um sonho de beleza que, a mim mesma, proiiK-tt
prestar-lhe a homenagem máxima de profunda admiraçM
e do amor profundo, entrelaçando os meus sonhos n i
música suave dos seus sonhos.
Aceita, ó Han Ryner, ó Psychodore, o tributo d e f l
homenagem carinhosa que o meu coração cheio de tcM 3/ P a r t e
nura te pode prestar, através desse amor que tu pm
clamas como a fonte única, a raiz perene da felicidade
humana.
Nos altares esfumados das nossas catedrais de so*]
nhos, onde exaltam a liberdade e o Amor, os deuses subje. )ue cada qual se realize...
ti vos das nossas criações mais altas, também idealizamos,
ó Filósofo, também esculpimos, com o pensamento enjj
flores, semeando ao léu, uma obra de Arte, de Fraterni»]
mo e Subjetivismo, de Individualismo e SolidariedadeJ
procurando conceber, tentando viver a tua máxima de SM
bedoria: "Conhece-tc a ti mesmo, para aprenderes ê
Amar". <I
Porque nada afirma com a absoluta certeza de
honvicções dos "homens de muita fé e pouca inteligên-
c i a " . . . e porque nada destrói com a obstinação devas-
ladora dos negadores de "espirito forte" — Han
Ryner é o mais completo, o mais harmonioso, o mais
[Claro, o mais filosófico de todos os filósofos até hoje
fconh eidos no ocidente, e, de todos, por certo, o mais
largo porque é o mais flutuante, o mais próximo, tal-
Sfez, das verdades cósmicas. Não é sem justa razão
que Banville dTIostel afirmou: "Dia virá em que Han
Ryner será reconhecido como o maior europeu de seu
lempo" — (Le Semeur) — número especial em home-
nagem a Han Ryner — França.)
E, Han Ryner não faz filosofia: vive filosofica-
mente.
Este "Sócrates do Século X X " , cuja harmonia in-
terior, cuja euritmia nas proporções fantásticas dos
teus sonhos alçados a alturas inconcebíveis, transborda
no seu estilo flexível, fascinante, no seu pensamento fe-
cundo c transparente, — é sempre uma ascenção através
dc cada página saída do seu imenso coração de visio-
nário dos cimos iluminados do nosso mundo interior,
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 201

extravasado do seu génio fulgurante e nobre, da s Idas fogueiras até ao martírio degenerescente das má-
sabedoria incomparável. quinas triturantes do corpo e da inteligência; — tudo,
E' preciso ser genial como Han Ryner, para c desde o ensinamento máximo de Buda: "O ódio não se
parzir em cada período, esse doce encanto envolventl lata com o ódio, o ódio só morre com o Amor"; até
essa penetração dos que souberam ver algo de mall sabedoria socrática: "Tudo o que sei é que nada sei"
profundo e que faz dc cada um dos seus livros um mo» >| — e que constitue a base ondulante, imprecisa, vaga e
numento de Arte, de pensar filosófico, de reconstrução luminosa do seu sonho metafísico, até o monumental
social, dc ciências naturais, da ética do sonho, de cultu» aforismo do Templo de Delfos e que o filósofo admira-
ra despretensiosa e formidável, de individualismo nco» rei enriqueceu portentosamente, indo além de Sócrates:
rConhece-te a ti mesmo para aprenderes a atnar", —
estóico-ryncriano.
tudo está contido na obra imortal desse sonhador feliz
Han Ryner é a síntese de tudo de grande que ai
do Amor e da Beleza, da Sabedoria e da Bondade.
civilizações conservaram dos seus maiores.
E' a súmula da mentalidade de todos os nossol Nunca ninguém subiu tão alto para poder abranger
séculos, da altivez de caráter de todas as épocas, do •assim o pensamento humano.
sonho e do Amor de todas as mais belas concepçõc Jamais alguém poude resumir, numa síntese tão
humanas. Udmirável, tão profunda, o problema da vida.
Cristo e Epicteto, Sócrates, Pitágoras, Epicuro
E que sublime ironia a desse neo-estóico, destruin-
todas as mais belas e mais heróicas revelações do que
do, docemente, as forças mantenedoras desta sociedade
é grande c nobre e santo na alma humana; todas a
Bue absorve e aniquila a vontade individual e desper-
mais ternas manifestações do Amor largo, desdobradi
tando o indivíduo para a análise de si próprio, para rea-
até ao infinito a que é capaz de atingir o sentimento
lizar-se, para edificar o seu mundo de felicidade por si
as mais altas concepções das verdades inatingíveis
•esmo — dentro desse caos de misérias e de baixezas
tudo o que alarga o horizonte da razão; tudo o que li-
Bue se chama civilização.
berta o pensamento e o coração; tudo o que tende a
despertar as almas numa clareira imensa de ternura Não tem "le pessimisme lâche dWnatole France":
para conter as outras almas; tudo o que estimula o pro- m o seu pessimismo encara a sociedade como uma ener-
testo silencioso mesmo diante da cicuta, da cruz, dos gia de efeito retroativo, cujo resultado, conciente ou
instrumentos de suplício dc todas as Inquisições — meoncientemente, consiste em adormecer o indivíduo
políticas ou religiosas ou sociais — desde o martírio bera se deixar explorar, também, a sua alta clarividên-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 203
202

cia sabe que, isolando-se o indivíduo, reagindo, protes- >— dentro do paradoxo da não-violência individua-
tando, ao mínimo ou ao máximo, contra a organizarão Ktâ-estóica.
social de prejuízos e preconceitos; si o individualista E' camartelo formidável a sua frase lapidar, a sua
isola e se defende pela não-violência, não pela resii.ua Hronia doce, penetrante, adorável, mais terrível (pie o
ção passiva ou pela covardia sob a capa de circun B l t o p i m revolucionário dos que pretendem impor a jus-
pecção, porém, pela atitude decisiva de quem se absté B l ç a à íórça dc barricadas e baionetas ou bombas e exér-
de contribuir para a perpetuação dos crimes e dos err c i t o s vermelhos.
de lesa-felicidade humana; si o individualista reag Mas, si Han Ryner, em cada ironia sutil, perfuran-
dentro de si mesmo, contra os efeitos do peso secula mk/t e acariciadora, derruba o edifício dessa sociedade hi-
dos dogmas políticos, religiosos e sociais; contra os efe fcócrita e brutal, o filósofo amado e admirável levanta,
tos da "deseducação", fechando a mente humana num Bk)S corações dos que sentem a vastidão da sua sabedo-
círculo de ferro; contra as diáteses provocadas pela he- Vria profunda c deliciosa, edifica na razão dos que conse-
reditariedade, pela loucura coletiva desse delírio fre- Huem ver o amplo horizonte das suas maravilhosas con-
nético de progresso material, — por certo conseguirá Htpções — síntese do mais alto monumento dos sonhos
êle uma nesga de liberdade, de alegria e paz e ilusão, e' B e todos os nossos séculos, — levanta, edifica um sonho
transmite o exemplo vivido e fecundo de ser nobre e Inaior. uma esperança mais alta, porque é a única a se
herói e reconstrutor de um mundo individual, em que Htalizar no meio do caos em que se contorcem e se
se sentirá livre de pensar e querer e agir dentro da in- Ipiebram as energias impacientes dos apóstolos, dos
finita amplitude da sua vida interior. mártires e dos heróis.
Han Ryner é o que se pode denominar uma men- I Os que supõem construir uma sociedade nova atra-
talidade cíclica, dessas que aparecem em determinados í r e s da ingenuidade do -eu sacrifício infecundo, inútil,
momentos históricos e vêm iluminar de sonhos, dc es- Ha defesa dos "sagrados princípios" de Liberdade!
tímulo e de conforto os que já descreram de tudo, os l e a l d a d e ' Fraternidade!... na defesa de todas as fór-
que não mais esperam sinão as revoluções sísmicas... luilas, de todos os pavilhões esfarrapados e que só scr-
A literatura burguesa domesticada, vendida, defen- l i r a m e servem e servirão ainda para que os fortes
sora das pátrias, das fronteiras, dos bandos políticos, Aviltem c escravizem a si mesmos, escravizando e avil-
dos dogmas, das leis e dos governos, das armas e dos tando os fracos, os indefesos, os acovardados: — os im-
capitalistas, essa literatura a soldo e a prestações — pacientes heróis e mártires e apóstolos das fórmulas
sabe que Han Ryner é o mais perigoso dos demolido- •Kteriores e das multidões vorazes, esquecem-se de que
204 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 205

as massas humanas, imbecilizadas, servis, acarnciradas, a sua verdade, — todos se sentirão feridos, lesados,
estão sempre dispostas a aplaudir e a aceitar o jugo felizes c acorrentados uns aos outros, pela geena da
do senhor absoluto, dos Alexandre, embriagados de escravidão social, da ignorância, da concorrência e das
poder, dos Napoleão epiléptico, "Himalaia de infâmias", guerras em todos os campos de batalha.
ou dos paranóicos mussolinescos, ébrios de imperialismo I Porque há verdades até ao infinito c cada qual tem
caricatamente à romana, como estão sempre dispostos ttn si mesmo a possibilidade dc realizar-se, de escalar
a crucificar Cristo, dentro do sectarismo estreito do as suas verdades interiores.
espírito político e do dogma religioso, a envenenar Só- Mas deixemos falar o Filósofo dileto e amado na-
crates dentro da estreiteza dogmática do espírito reli-1 quela página magistral de Les Voyages de Psychodore.
gioso e do sectarismo político.

ma guerra dc Religião.

"Psychodore atravessava uma vasta planície. Pen-


Que cada qual se realize e terá, em si mesmo, o java nas doutrinas dos filósofos. Punha de parte a opi-
mundo novo que sonha para o advento da fraternidade nião dos cínicos que, sem explicar as coisas, limitavam-
humana. € a aconselhar a viver em simplicidade e sinceramente.
O problema da paz universal, da serenidade es- "As outras doutrinas lhe pareciam todas belas e
tóica, da alegria interior, do "amai-vos uns aos outros" frágeis. Admirava todos os homens que conseguiram
olhêr seus sonhos em mãos mágicas, impondo-lhes
— só pode ser solucionado no coração e na razão do
|ima forma visível.
individualista que se vai realizando, cada dia, em busca
da sua verdadeira vida, do "eu" profundo, dos deuses "Ia dizendo com amor:
solitários que passeiam por entre as alamedas dos seus* "— O' Demócrito! O' Heráclito! O' Parmenides!
sonhos delicados e fugidios. ( »! Platão!
Enquanto cada qual procurar defender, agressiva- " E dizia ainda:
mente, o seu ponto de vista, a sua teoria, a sua tese, o "— O' criadores de Beleza!
seu dogma, a sua bandeira, a sua pátria, o seu nome, "Mas, o seu pensamento desaprovava os negado-
os seus bens exteriores, a sua cobiça ou a sua vaidade, res, aqueles que, com um gesto perverso separam a be-
o poder temporal ou espiritual, a sua justiça, o seu amor leza disposta em ordem pelos outros.
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 207
206 MARIA LACERDA D E MOURA

ou Herpilis e a verdade de Platão vale bem a tua vçr-


" A um dêlcs, dirigia estas censuras:
klade.
"—i O' Zenon, ó brutalidade engenhosa, porqijH
"Pensava também nos soldados dc Xerxes que, pelo
negar o movimento? Não bastaria afirmar a imohilM
lato de adorarem um deus mais vasto c impreciso que
dade? Parmenides e Heráclito olham, cada qual, 1111M
s deuses da Grécia, queimaram, na Grécia, a beleza de-
lado da montanha e não tens razão de negar o qufl
finida dos templos.
vê Heráclito.
" E dizia:
"O ser é. Mas, o vir-a-ser tornar-se-á. No todfll
"— O' Zenon, ó Aristóteles, do mesmo modo que
imóvel, cada minuciosidade sc agita. Cada aparência
os bárbaros, conduzis tochas sacrílegas para os tem-
participa do ser, pois dela o ser se reveste. Ou anteaj
blos edificados por Heráclito e por Platão.
o ser é a soma invariável das aparências inconstantes,!
Proteu é, agora, este fogo; há bem pouco era estai "Sereis punidos, entretanto. Odiosos disputadores,
água; em breve será este touro ou êste cão. ProtciM |de vós nascidos, vos acometerão. Sereis os progenitores
não é sinão o total das formas de Proteu e mais o| Be numerosos parricidas".
poder de mudar de forma. Proteu sem forma, não m
mais nada. Cada fenómeno não é o Ser, é, porém, mnl *
pouco dc ser que se colora e que vive. JDesguarnecidoj * *
de toda côr e de toda vida, o ser não mais seria.]
"Enquanto ia assim discorrendo com seu pensa-
Dizia ainda: ^
mento e com o pensamento dos outros, um grande
— Como meu mestre Diógenes teve razão de tc
ido o exortou a olhar o mundo exterior.
refutar sem palavra e de andar adiante de t i que, pelol
"Viu avançar um número fantástico de homens,
movimento de tua língua, negavas o movimento.
|oda uma armada sem armas. Aqueles que marchavam
"Depois, reprovava Aristóteles:
i frente, conduziam, sob pálio magnífico, uma estátua
"— Ama a tua verdade e a tua amante, ó Aristó- leia como a beleza.
teles. Faça que uma e outra concebam e ama os teus
filhos. Mas, com que direito bates nos filhos dos "Todos cantavam o louvor da estátua. Psychodo-
outros? Ama Nicomaque e a consequência de teus prin- re sorriu aprovando-os. Em breve, porém, meneou a
cípios. Tu tc tornas, porém, grosseiro e vulgar quando Cabeça com tristeza, porque os cânticos proclamavam
negas a existência ou ^ beleza das amantes ou das dou- ^ue nenhuma outra estátua era bpía.
trinas de outrem. Athénatinae é tão bela quanto Pitias "Ora, do outro lado, rpuito longe ainda, outros ho-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 209
208
mens chegavam, em número do mesmo modo conside i E ' dc magnanimidade assombrosa a sua clarividên-
rável, conduzindo com piedadcs não menos agressiva! I cia de intuitivo a escalar muito alto para olhar as planí-
um mármore de beleza maravilhosa. Quando cheg" •Cies áridas dos sectarismos e da concorrência absorvente.
ram tão perto para que Psychodore pudesse compar» | {Sempre dentro do preceito socrático: "Tudo o que
as estátuas, êle não sabia verdadeiramente a qual <lan« • Iaci é que nada sei", nunca afirmando, jamais negando,
o prémio. Amava com o mesmo amor as duas belezatl •partidário incondicional da não-violência física ou men-
E lhe parecia que a aproximação as tornava ainda m a i i l Ital, nem mesmo procurando persuadir — o que já é vio-
belas. •lencia, — livre, absolutamente livre para pensar e dizer e
"As duas armadas sem armas, longamente t r o c a i lagir, serenamente estóico, Han Ryner espera que cada
•qual desperte a seu tempo, individualmente, é claro, espe-
ram propósitos hostis. Depois, os que conduziam as cs« I
I r a que cada qual se realize, iluminado na integração cm
culturas, marcharam, uns contra os outros, e fizeram!
l a i mesmo.
abalroar as estátuas, no meio de terríveis clamores.I
Os mármores se entrechocaram muitas vezes. Os bra»! Na sua conferência genial, Les Artisans de VAvenir,
ços foram triturados. Fronte e faces sarjadas, as ca»! diz o filósofo:
becas sem nariz, ficaram reduzidas a duas fealdade», "Nós outros que queremos que um dia a humanida-
Os próprios corpos não saíram sem estragos da luta de se nutra do trigo da fraternidade, saibamos que esta-
abominável. imos em dezembro e que não se colhe sinão em agosto.
"Os dois exércitos enfim se voltaram as costas. "Nós, que queremos, um dia, os homens agrupados
Ho Paraíso fraternal, saibamos que as grandes árvores
"Cada qual reconduzia, triunfalmente, os despojos •Crescem lentamente e não exijamos, uma vez plantadas, que
informes do que constituiu a alegria dos olhos. •dêem sombra.
" E , dos dois lados, os cânticos bárbaros procla* "Meus queridos amigos, cada um de nós pode uma
mavam : •coisa, cada um de nós pode produzir em si mesmo um
• homem tal como sonha os homens futuro-.
"— O' tu, única Beleza, aformoseada ainda por tu*
"Que cada qual realize esse ato, entretanto medíocre
vitória sobre uma fraca rival"!
• na aparência, e a mais maravilhosa e mais rara das obras
I primas.
"Que cada um de nós se esculpa e se realize como
I sonha o homem de mais tarde. E, em meio das fealdades
210 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 211

e das tristezas do presente, formaremos já um bem ma* 1


flb de todas as chamadas civilizações, e, certamente, o
ravilhoso oásis de bondade e amor". Indivíduo, no silêncio e na solidão de si mesmo, acenderia
Cada período desses relicários de grandeza ética mio I Lâmpada maravilhosa de Aladino — para a procura das
são os seus livros, é a conclusão de toda a obra imortal] fcrdades interiores que palpitam em todos os sonhos altos
do Filósofo dileto. Jr Amor e de Beleza.
Que cada qual sc realize. Mas, para que uma criatu»!
Para que cada um de nós se realize, é necessário, an-
ra humana consiga realizar-se, é preciso que se conheça, m» de mais nada, o desprezo aos bens materiais, às neces-
"Não consigo me conhecer sinão com a condição de Bdades inúteis, ao supérfluo, a tudo quanto se divorcia
me realizar; não chegarei a me realizar sinão com a con- •a vida simples, da volta à natureza e da obediência às
dição de me conhecer". B s cósmicas.
A primeira luta interior é para deslindar, do caos de
A civilização cada dia complica mais a vida e, nessa
nós mesmos, o nosso "eu", de envolto com o que nos
•Micorréncia bárbara de objetos inúteis, nocivos às vezes,
inocularam, o que nos enfaixa, o que nos manieta e en*j
•esnecessários para a felicidade humana; nesse acúmulo de
trava o desenvolvimento normal. Temos mais alguma
mifórto material para cuja obtensão nos esquecemos de
coisa de nosso e temos o que fizeram de nós, pela educa-
• ó s mesmos num sacrifício, num esforço inaudito em di-
ção sufocante, pela hereditariedade mórbida, pelos pre-
•eção ao exterior; nesse amontoado de necessidades su-
juízos milenares.
pérfluas, de luxo. de enervamento, do desfibrar da fór-
A herança de miríades de ancestrais, os preconceitos
• I viril, da iniciativa criadora — cada um de nós é aba-
esgueirados sorrateiramente na comunidade social, o pre-
lado na sua individualidade, é sufocado dentro de si mes-
juízo secular da "deseducação" desvirilizando o indivíduo
Ho, é reduzido a uma máquina insuficiente por si, de-
em proveito dos dogmas estatal e religioso, todas as con-
fcndendo de uma série infinita de pequenas engrena-
sequentes contradições interiores, tudo é entrave para
•tns para jxxler funcionar sempre deficientemente.
que nos encontremos a nós mesmos.
E, assim como a semente, lançada à terra, aprofun- E' a morte moral, é o degenerar de todas as nossas
da-se no desejo de ir buscar no silêncio e na solidão de •acuidades por falta de exercício, c o aniquilar da en r-
si própria a seiva que a deve nutrir e desenvolver até à • a individual — tudo para a partilha dos leões dessa
sua realização — para dar sombra e alimentar, assim, não nremenda gleba industrial e económica.
fosse toda a perversidade imbecil da intervenção do auto. Tem razão Han Ryner ao tecer um hino em home-
ritarismo dominador, em torno da criatura humana, atra- nagem à atividade intelectual e ao poder de invenção do
212 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 213

homem prehistórico — muito superior a nós outros, 1


huins, de idiotas e fantoches e domesticados do grande
vilizados". Buignol que é a sociedade!...
E, à medida que o progresso material cresce, Que mentalidade a do homem do elevador, como a
nos distanciamos da superioridade inventiva dos hon Bo operário encarregado interminavelmente de colocar
das cavernas ou das habitações lacustres, cujo insti ieterminado parafuso nas peças do automóvel nas colos-
dc nutrição e defesa produziu a mais admirável das iuis oficinas de um Ford!
vidades criadoras individuais, dos que se bastam a si n Todo o grande interesse da nossa civilização indus-
mos na luta pela subsistência. •rial é aniquilar o indivíduo em proveito da mercadoria,
Ho capitalismo.
Que prodígio de paciência, de perseverança na
mesticidade dos animais e na cultura dos primeiros v Nenhum esforço é permitido a não ser o esforço bra-
kal mecânico, sempre o mesmo, delineado antecipada-
tais nutritivos 1
mente, ritmado pela qualidade ou pela quantidade do pro-
Hoje, toda a atividade da indústria, do capitali •uto, na racionalização da técnica moderna.
tende a substituir o homem pela máquina, tende a inu
lizar o cérebro humano, a desvirilizar a vontade cria' l A mercadoria tem mais valor que o operário. Su-
ra, a abafar a razão, o pensamento — nas engrenag locado o produtor, resta adormecer o consumidor. In-
feitas, nas máquinas de cálculos, na iniciativa reali?- •entam-se os adornos, multiplicam-se os objetos supér-
no trabalho mecânico de fazer mover uma alavanca, i fluos. As escolas, as universidades, o Estado se encar-
tcrminàvelmente, pela mesma criatura, nesses movin Hga do que ainda falta para edificar a muralha que há
tos sempre idênticos e monótonos, entorpecedores e s" l e emparedar o indivíduo dentro de si mesmo e dentro
lentos em que cada operário trabalha os dias inteiros l o quadro geral da mediocracia legalmente constituída.
rante uma existência inteira. Essa complicação de coisas enchendo os armazéns in-
•tistriais e os mostradores dos armarinhos, esse conforto
Que mentalidade a do guarda-civil com o cassc-t
laterial multiplicado ao infinito do supérfluo — faz es-
apontado para a direita ou para a esquerda, às vezes
luccer o verdadeiro "cu", a vida criptopsíquica e nos vol-
cima de um animal (nem ao menos lhe deixam o dire
m para todas as necessidades perfeitamente desnecessá-
de aplicar a sua atividade de defesa em uma praça i
H s . E, dessa concorrência brutal, desse assalto às posi-
vimentada — poderia ser esmagado), e isso através
Bes ocupadas, dessa correria de loucos nascem as guerras.
anos e anos da sua existência aniquilada pela imbe
Vivemos artificialmente uma vida que não correspon-
dade de toda gente, nesta organização social de ma
Ic de modo algum às nossas verdadeiras aspirações, às
214 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 215

nossas verdadeiras necessidades que são de ordem pura* I io alcance do único trabalho que faz multiplicar a vida,
mente subjetiva. daquela ocupação sagrada que sustenta todo o edifício
E toda a ciência, todas as descobertas no mundo objfjl tocial.
tivo constituem um entrave a mais, contribuindo direi». I E' o luxo, a ociosidade, o enervamento, tudo o que
mente para que continuemos fechados, adormecidos, nt\M Icontribue para a expansão das necessidades do vício, do
paredados dentro de nós mesmos, desconhecendo ou <!<•»• 1 Éensualismo, dos lazeres parasitários, dos gozos mate-
prezando as fantásticas possibilidades das nossas cnenl riais, dos requintes perversamente sorrateiros, em con-
gias latentes, dos nossos sentidos psíquicos. clusão : da degenerescência do organismo e da mente, no
Mas, si apenas considerarmos com atenção os moffl marasmo, na estagnação, no desfibrariiento do corpo e das
tradores das casas comerciais, nos espantamos ao veriffl energias, adormecidas nas criptas profundas do "eu".
car que quasi todos e, às vezes, todos os objetos expotufl Tudo é artificial, é fictício, é enervante, desde a con-
são desnecessários, perfeitamente inúteis, absolutamente! corrência louca no afã de assaltar um lugar no "coche
dispensáveis, nocivos muitos, e grande parte rescrvadfJ rociai", até aos perfumes artificiais e afrodisíacos, os ci-
para fins inconfessáveis, para os vícios ou para a imouJ jrarros de ópio ou os aperitivos do estômago e dos senti-
lidade da moral social. los: tudo, absolutamente tudo tende a degenerar a es-
£ a energia louca das grandes casas de modas, otxhl bécie humana, a desfibrá-la inteiramente no organismo e
centenas de criaturas se esfalfam a vida inteira em tórJ na individualidade.
no de rendas e fitas e flores e adornos e plumas e uiM Dentro dessa engrenagem sórdida, feroz, assassina,
infinito de quinquilharias absorventes?! urguesa, capitalista, — denominada civilização — não
E coisa para lastimar: alguém já observou que, enJ ', para o individualista, sinão um meio de defesa: a fuga,
quanto se inventam e aperfeiçoam máquinas para conJ 1 deserção da sociedade, o colocar-se inteiramente iso-
plicar a vida e mui principalmente para matar o semclhanil ido contra a corrente, desafiando-a com a sua. altivez, a
te, embora o rótulo cristão e o "Não matarás", embora lua nobreza de caráter, com o desprezo aos preconceitos
o "Ama ao teu próximo como a ti mesmo", enquanto * às exigências do meio social.
inventam os gases asfixiantes e os "Raios da Mortc"| Ser livre, absolutamente livre das leis e de todas as
tanques e submarinos e aeroplanos para despejarem f perstições políticas, religiosas e sociais — para sentir
morte, a desolação, o incêndio, a destruição sob todos <a alegria íntima de viver, para vibrar em harmonia com
aspectos, — os instrumentos agrícolas estão ainda no pd leis naturais, um sonho mais alevantado.
ríodo rudimentar e são insuficientes e não foram postoj E são os individualistas, os desertores como Sócra-
216 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 217

tes, Cristo, Epicteto, Epicuro, Han Ryner que deixam WÊr no paradoxo do mais pesado que o ar; assim também,
ainda, generosamente, um traço de luz do seu génio fecun- b e r a resolver o problema da fraternidade, é preciso con-
do a iluminar as inquietações das almas atormentadas. Kentir no paradoxo do desprendimento de seus irmãos, da
E esse evangelista de um Evangelho maior, esse após* •eparação, é preciso consentir no paradoxo do individua-
tolo do Sonho, do Amor e da Beleza, símbolo da Bon- lismo". (Les Arlisans dc YAvenir).
dade, esse grande amoroso cuja sabedoria fascinante em» í 'E está com Cristo (mito solar?) naquela passagem
polga, arrebata, emociona, santifica, cujo apostolado todo Admirável dos Evangelhos Cristãos:
subjetivo é como uma bênção de luz por sobre as nossas — "Eis aí tua mãe e teus irmãos que pedem para
dúvidas c as nossas amarguras, esse maravilhoso estilis-, lar.
ta é conhecido apenas pela minoria intelectual dos não "Mas Cristo respondeu:
domesticados, porque uma campanha de silêncio tem sido
— "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?"
feita em torno da obra-prima desse genial amoroso,
cuja voz irradia-se do alto dos seus sonhos de pre- " E espalmando as, mãos para o lado dos discípulos,
•disse:
cursor dc uma ética maior e desce até à planície da
nossa pequenez, essa voz primaveril às vezes, às vezes r Eis aqui minha mãe e eis aqui os meus irmãos".
fluídica como a própria sabedoria, profunda e ondulan- "Aquele que ama a justiça e a misericórdia como
te como a vida que se agita no seu mundo interior de fcu amo a justiça e a misericórdia, este é meu irmão; e
sábio, de filósofo e de artista, forjador dc um Sonho Bem o mesmo Pai que eu; e nosso Pai vive em nosso co-
maior — a síntese dos sonhos sonhados por todos 01 I ração e vive nos céus". — (Le Cinquièmc Evangile).
precursores. E' a condenação da família e da sociedade que pro-
Não podem perdoar a Han Ryner o haver culmina- •uram entravar os movimentos, a ação, os pensamentos e
do a essas alturas incomparáveis, aonde apenas sobem os k s sonhos individuais — para rebaixar o génio, o indi-
Mduo ao nível da mentalidade coletiva, da mediocridade
eleitos do Amor e da Beleza.
ê Irulgar.
E' a negação dos laços do sangue e da carne —
Dentro da concepção luminosa do individualismo [para exaltar a afinidade espiritual, a "afinidade eletiva"
neo-estóico, Han Ryner resolve o problema da sua vida, do sentimento e da ideia.
o problema da vida humana. E a conclusão ryneriana è Nada cresce, ninguém se realiza sinão no silêncio de
científica: "Do mesmo modo que, para chegar a resol- ili mesmo.
ver o problema da navegação aérea, era preciso consen. A família e a sociedade vivem em guerra aberta de
218 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 219

competição e mandonismo contra a liberdade individual | f l Mas, ouçamos uma página de Han Ryner e com-
é entrave ao desabrochar das nossas energias interiores. Wetemos a maravilhosa parábola anterior com outra pa-
Han Ryner está com Epicteto, com Sócrates, cmtt 1 rábola cínica:
todos os verdadeiros individualistas cuja deserção da so)fl
ciedade constituiu o mais belo legado de toda a civilização»
lr\a em contenda.
mental.
tE a mentalidade dos intelectuais a serviço do Esta»! "— O' Psychodore! — exclamou Exciclo, — jamais
do, das Academias, dos dogmas e das conveniências do I dirás sinão sonhos...
ocasião, intelectuais vendidos ao capital e à glória efémc*fl "— Si eu pudesse dizer bastantes sonhos, talvez dis-
ra dos ministérios e dos salões — lhe não pode perdoar I sesse tudo o que chamas realidade.
a energia persistente dc demolidor que sabe empunhar I "— O' contador de sonhos! — perguntou Teóma-
contra todos os prejuízos a mais perigosa das armas -1 Ho com amargura, — que injustiça te permite, pois, cen-
a não-violência-individualista-estóica; não lhe perdoa a | surar meus ixmsam.ntos, denominando-os sonhos?
ironia elegantemente sedutora e formidável do estilo, a | "— Nunca censuro um pensamento por ter asas e
propriedade das expressões, a conclusão de aço em csjii-1 por ser um sonho. Eu o reprovo muitas vezes, pelo fato
ral com que envolve os sofismas mantenedores das mcn«J Ide ignorar que, em torno dele, outros sonhos vivem e
tiras seculares, e, principalmente, não lhe perdoa a alti voam. Quando acreditas que a linha que desenha um
vez, o desassombro com que investe, docemente, contra a objeto sobre um muro, ou a sombra que o projeta sobre
deslealdade, o cabotinismo literário, o farisaísmo morali-1 0 solo é o próprio objeto, então eu te censuro. Censuro-
teísta e a mediocridade dos nulos e dos vulgares covardes I itc, principalmente, si tu afirmas que as dimensões e a di-
ou académicos. reção da sombra não variam de modo nenhum.
Nunca lhe perdoarão o crime de ser genial e pro- "Mas, ouvi antes uma parábola:
fundamente humano as sociedades dos proxenetas do pen- "Na minha mocidade, em um dia de verão, passei
samento, dos caftens da literatura, dos piratas patriotas ou por Mégara. Deu-me prazer saudar o velho Euclides,
das bas-bleu dos salões chies, idiotamente mundanos, ondol discípulo de Sócrates e o maior dos geómetras.
se cultivam a imbecilidade, o servilismo e a cretinice. ""Euclides tinha saído, porém seus escravos me afir-
maram que voltaria cm breve.
"Esperei-o, pois, no páteo, onde o ar era mais agra-
dável que nos aposentos.
* *
HAN RYNER E O AMOR PLURAL
220 MARIA LACERDA D E MOURA

"— Vós sois os sonhos de Euclides. Eu, porém, eu


"Mais ou menos no meio do páteo, um grande bloco
sou, eu existo.
de mármore esperava um busto de Sócrates, prometido
"Ambas replicaram:
a Euclides por um escultor de entre os seus amigos.
"— Não és sinão um conjunto daquilo que a tua
"Ora, eu olhava fixamente esse mármore e em breve ingratidão ousa chamar sonhos.
meus ouvidos acreditaram ouvir ruídos saídos da pedra,
"Quando Euclides chegou, eu escutava sempre. Ago-
tal com contam da estátua de Memon. Esses ruídos, a
ra, Sócrates, não esculpido ainda, e que subiiia àquele pe-
princípio indistintos, foram, a pouco e pouco, tomando
destal, me falava. Sua voz era longínqua e flutuante,
no meu espírito um sentido perturbador.
vinda do país daquilo que existirá, talvez. Contudo, eu
" E percebi que a Linha, a Superfície e o Bloco al- o ouvia.
tercavam, porque a Superfície acabava de cantar, inso-
"— O' meu filho, — dizia, — as linhas e superfí-
lentemente, os seus próprios louvores. Mas, o Bloco, com
cies são pensamentos e sonhos do homem. Mas, o bloco
uma expressão pesada, impusera-lhe silêncio.
é um rendez-vous de linhas e de superfícies. \z do
"— Cala-te, — dizia, — ó pobreza, ó nada de es- Sol ilumina alguma delas. A luz de teu espírito pode
pessura, ó Nada! iluminar sucessivamente miríades de outras.
" A superfície replicou:
"Mesmo si a isso se obstinasse durante toda a eter-
"— Si eu desaparecesse e si nenhuma de minhas
nidade, jamais ela esgotar» o número das linhas que se
irmãs consentisse em me substituir, tu serias, pobre Blo-
agitam na mais insignificante superfície, as superfícies
co, um nevoeiro que o Sol dispersa. A t i é que convém que, no mais pequenino volume, se cruzam e se penetram.
o silêncio, tu que não és sinão o concurso e o total dc
" A voz longínqua e amiga, numa leva ironia grace-
minhas irmãs. jadora, continuava:
""A Linha irritou-se por sua vez:
"— Acredita-me, Psychodore, o que tu chamas reali-
"— Estou fatigada de tuas jactâncias, ó Superfí-
dade é, como o bloco por ti observado, uma encruzilhada
cie! Si eu desaparecesse e si nenhuma de minhas irmãs de pensamentos e de sonhos. Não afirmes nunca um
consentisse em me substituir, eu te pergunto, ó orgulho- dos pensamentos ou um dos sonhos como a realidade
sa, que restaria de ti? total.
"— O' pobreza insolente! — exclamou a Superfí-
"Não afirmes, não menos, a realidade como sendo
cie, — ó nada dc largura, ó Nada! distinta do conjunto de sonhos.
"O Bloco afirmou, com o acento esmagador das cer- "Exciclo perguntou:
tezas :
222 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

"— Repetiste a Euclides os diversos discursos que [ Essa é a verdadeira filosofia.


i Esse é o caminho dos que buscam as verdades eter-
acabavas de ouvir?
"— Tive bem cuidado em não fazê-lo, — respondeu HftS e flutuantes, dos que procuram a chave do "segredo
Berto"...
Psychodore sorrindo.
"Euclides, geómetra admirável, era um pobre filó
sofo; gostava de discutir, de demonstrar, de refutar, cm * *
vez de se aprazer em pensar.
"Algumas vezes, asscmelhava-se ao asno obstinad< Mas, passemos ao aspecto máximo do problema
que não quer, de modo algum, passar para o outro lado luniaiií). sob o ponto de vista da organização social.
da montanha; e a certeza ensurdecedora de seus grito» A civilização do dólar vai morrer de apoplexia.
nega o que recusa ir ver". Que número insignificante de vozes para se insur-
• r contra a prepotência das mediocracias organizadas em
* Kstados e armadas permanentes!
• * Que podem essas vozes vibrantes, porém abafadas
lias sereias estridentes das fábricas e teares ou pelo ron-
Que portentosa riqueza de conceitos nesta parábol ir surdo, impressionante, monótono das chaminés indus-
admirável e que imensidade de horizontes! rtais, pelos ruídos provocadores, pela ostentação metálica
Não afirmar o que nos é inatingível no nosso esta is cofres fortes do capitalismo assassino, cuja máxima
do de evolução, o que impressiona levemente a sensibili I resume naquela expressão célebre: "Depois de mim,
dade fugidia da nossa intuição maravilhosa, o que o su \?
pra-conciente vê, através de relâmpagos indecisos e rá- Que podem essas vozes prometedoras, fascinantes,
pidos, mas, também, não negar os sonhos imponderáveis •idas de Amor e de ternuras, carinhosas, envolventes, si
que perpassam através do supcr-conciente dos visionários • progresso científico está todo canalizado para os cam-
das alturas incomensuráveis do infinito além. b a de batalha, para o destroçar dos corpos e das ener-
Has humanas, nas fórmulas rijas do patriotismo — mira-
Nem afirmar, nem negar: escalar sonhos sobre so-
gem com que os tigres e chacais seduzem as massas igna-
nhos para a subida ciclópica aos cimos ondulantes, vagos,
b t , os rebanhos sociais para o matadouro feroz das trin-
indecisos das verdades cósmicas, através dos nossos sen-
cheiras, movidos exclusivamente pela ambição torpe de
tidos latentes, das faculdades adormecidas nas criptas inte- governar ou de acumular?
riores.
224 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 225

Que puderam as pouquíssimas vozes generosas e ^•tpressiva fórmula de todas as civilizações de senhores e
cííicas contra a loucura coletiva da 1914 a 1918? ••cravos: "Os que vão morrer te saúdam"'...
E que de horrores, que de fantásticos horrores
*
dessa dansa infernal sem precedentes na história da ci
* *
lização!
E que perspectiva sangrenta divisamos através
I Os jornais europeus e os políticos e estadistas do ve-
ciência aplicada à mecânica! l h o mundo discutiram, acaloradamente, há muito, a neces-
Que mais esperar dos dirigentes, dos patriotas lidade d.- ensinar às populações civis o uso das máscaras
guinários, dessa perversidade legalizada que se chama • contra os gases asfixiantes e a possibilidade de coloca-
tado? em essas máscaras ao alcance de todas as populações das
E todas as nações se armam, cada vez mais, até idades e mesmo do campo, cada individuo usando-a como
dentes, numa concorrência louca, desculpando-se com im objeto absolutamente indispensável à toilette mais
ataques de defesa nas próximas guerras, no meio da imples de todos os dias.
cenação, da hipocrisia parlamentar das Sociedades das Discussão inútil, porquanto quasi todas as 1.000 es-
ções convocadas pelos Governos, os defensores perpét lècies de gases asfixiantes ou tóxicos lacrimogênios, etc,
dos interesses do povo, na fábula de Menênio Agripa. té hoje descobertos para as próximas guerras, quasi todas
E toda gente continua acreditando piamente na a tiseram as máscaras fora de combate. Nada mais re-
desse ou daquele partido político regenerador, nos itte à ação dos gases.
mentares de palavras mágicas e convincentes ou nos Os "sábios" a serviço da perversidade, organizada
checos governamentais, em o fetichismo das leis e vai Bgalmente (é fenomenal o prestígio da lei!), e a serviço
um rebanho às urnas ou parte em defesa do Moloc da D Estado defensor da causa do povo (é assombroso o
tria dos histriões políticos, além de viver uma existên festígio das palavras retumbantes!), resolvem nos labo-
inteira de espinha recurvada e chapéu na mão — • Irttórios as próximas guerras químicas.
todos os nobres representantes do povo, nas embaixa Daí a conclusão lógica: a paz não é sinão um meio
e nas câmaras governamentais. l e preparo mais sólido, mais eficaz para a guerra, para
Coliseu ridículo em que os sacrificados ao prazer 1 crueldade organizada sàdicamente dentro da lei.
tial dos donos e senhores, repetem sempre sorrident Paz?! Que farsa pronunciar tal palavra dentro do
idiotamente sorridentes, deliciosamente imbecilizados, legime capitalista!
226 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 227

E é fantástico o imaginarmos que ainda há quem mar«l •ovemos e para obedecer àqueles que têm muito pouca con-
che para o serviço militar ou para a guerra com a convicçaflf •ência para terem a pretensão de chefes; si o homem
de estar cumprindo um dever! •bntinua sendo o ser diciplinado que se deixa conduzir
E toda a atividade, intelectual, económica, industrial, | lomo rebanhos e como exércitos, é a própria humani-
governista, religiosa, patriótica, social, todas as embaixadai, I Uade que, graças à ciência, fará hara-kiri."
as escolas, todos os arsenais, as fábricas, os laboratórioiJ E, parece, no National Zeitung, de Basileia, Han
toda a imprensa, tudo, absolutamente tudo, dentro desta I •byner, esse grande amoroso da paz, da não-violência, do
civilização de concorrência, caminha para a guerra de com-J Iraternismo de Cristo, do estoicismo de Sócrates, de
petição, para a luta armada. Kpicteto, fala das próximas guerras, descrevendo o suicí-
A civilização é a guerra. O progresso material não • o da humanidade, cujos meios estão sendo, macabra-
é sinão um imenso matadouro, quer em tempo de guerra | mente analisados nos laboratórios químicos dos tais cien-
ou de revoluções, nos campos de batalha ou atrás das bar- tistas a serviço das fórmulas religiosas de vísceras e pá-
ricadas, na devastação pela fome e pela peste, trincheiras, pias e bandeiras.
aviões ou torpedos e submarinos, quer em tempo de paz.i
E' um quadro empolgante no qual o sociólogo tem
nas fábricas, nas minas, na degenerescência orgânica e men- • voz trágica dos profetas anunciadores de formidáveis
tal de todo o género humano — submetido a uma seleção ovimentos cíclicos e a serenidade estóica dos que olham,
que dá em resultado o aniquilamento total da humanida- J'cima, a fatalidade social:
de, a mcdiocracia organizada facilmente através do fetichis-
" A guerra acaba de ser declarada bruscamente.
mo das leis, a ditadura, as tiranias mussolinianas, as diáte-
ses nervosas e o delírio de poder que produz os cônsules c " Nenhuma dificuldade urgente, insolúvel parecia
os primeiros ministros embriagados de dominismo e que dão rná-la jminente. Ao contrário, as últimas notícias eram,
à luz o servilismo e a cretinice das multidões. ntes, tranquilizadoras.
Vejamos o que diz Han Ryner, em agosto de 1926, '" A condenação à morte, da Europa, não é conhecida
em um manifesto à população de Paris: do Governo sinão há 5 minutos.
"Ciência sem conciência... não é sinão a ruína da " A imprensa ainda não sabe de coisa alguma, nem o
alma", — escreveu Rabelais. Mas, a ciência progrediu e, búblico tão pouco.
si a conciência não desperta no homem, a ciência não ar- " As ruas estão repletas de uma multidão ansiosa, ex-
ruinará somente a alma. citada, porém inteiramente ignorante do que se passava.
"Si o homem permanece assaz vil por deixar fazer os I De repente um odor de violeta, muito leve a prin-
228 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL . 229

cípio, depois insuportável, invade as ruis e as praças. J f l


o ar não é respirável. * *
" Quem não consegue tugir a tempo — e bem pourofl
o conseguem — torna-se cogo rapidamente, perde <> «o I E' absolutamente desnecessário acrescentar qualquer
nhecimento, deixa-se cair redondamente, sufocado. entário à justa previsão de Han Ryner.
" () céu está perfeitamente sereno, azul, sem nuvenffl E estamos em frente ao dilema: aplaudir incondicio-
" Nenhum avião à vista. 1 Imente o industrialismo moderno e a sociedade legal-
" Entretanto, a quatro ou cinco mil metros acima dojl hente organizada que tendem a afogar o indivíduo em
solo, fora do alcance da vista e do ouvido, uma esquadrfl 'eito da mercadoria e dos cofres fortes, e sermos fa-
Viente esmagados com a civilização capitalista na luta
lha evoluciona, sem piloto, sob a ação de ondas hertzianafl
|e competições, cuja culminância se verifica nas guerras,
e deixa fluir sobre o solo a sua carga de gás lacrimogêM
a deserção, a fuga dessa sociedade — para o protesto
nio (o gás mais "humano"), ou de levisite, menos agrai
nciente, a não-violência-neo-estóica, a atitude decisiva de
dável já ou mesmo de bicloruro de etilo sulfúreo, o gafl
Buem não quer pactuar com a loucura coletiva da vulgari-
mostarda, rei dos venenos.
•ade organizada e legal, não se prestando, de modo algum,
M Começou a guerra dos gases. A ação do gás moafl I servir, a ser cúmplice dessa organização de malfeitores,
tarda, dernier cri da técnica moderna, não poderia n u n f l
•e fantoches, de salteadores, negando-se terminantemente
ser descrita em termos excessivamente atrozes. I matar o semelhante, a alistar-se nas fileiras armadas
" Das dezesete espécies de gases utilizados até aquij Iara defender os interesses inconfessáveis das hienas (pie
com sucesso, é, de há muito, a mais perfeita. • nutrem nos campos de batalha.
" E' a própria morte. Dentro do princípio individualista da não-violência-
" Nenhuma máscara protege contra ela. Corrói as carj •Èo-estóica. guerra à guerra, guerra ao patriotismo, guer-
nes. Quando uma região foi saturada pelo gás, cada p a I ra às bandeiras e aos jwrtidos sectários, guerra aos dogmas
so, cada trinco de porta, cada faca a ser fabricada, duranJ| opressores tia razão e do sonho, guerra ao Estado orga-
te meses, estão impregnados do veneno mortal. Hzado, guerra às leis pequeninas dos homens — para o
" Os alimentos não podem mais ser consumidos, fã itspeito às leis naturais, às leis cósmicas, às leis da evo-
água está envenenada. Toda a vida se acha aniquilada. | lução individual.
" Ainda duas ou três guerras utilizando tais processod "Não matarás!" — é o preceito evangélico.
e ninguém ficará para dizer: "Eu não quis isso". E' a atitude de Han Ryner, dentro da delicadeza do
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 231
MARIA LACERDA D E MOURA
230
o como um escravo preguiçoso surpreendido por um
seu sonho fugidio, vaporoso, toante como o honzond
hor implacável.
dentro do seu sorriso doce, carinhoso e , ummado, *rú
"Nesse país, não havia noite. Contínuo era o traba-
vés do seu amplo ideal de fraternidade, apostolo pagão d l dos braços franzinos ou possantes. Nenhuma doçura
culto à Liberdade, ao Amor e a Beleza. sono, nenhuma paz no silêncio das trevas. Sobre a
"tacão infinitamente múltipla de cada corpo, a imobili-
dade de um Sol, sempre a mesma adustão perpendicular.
"Nem casas, nem vestuário. Contra as mordeduras
tausticantes do Sol, nenhuma outra proteção além de al-
Para terminar, vejamos ainda uma página extra.* "umas árvores. Esses homens, por vezes, disputavam-se
dinariàmente significativa desse grande amoroso: sombra em breves combates. Necessidades inexoráveis
e urgentes separavam logo os adversários: ambos fugiam.
"Frutos silvestres, glandes amargas, animais de captu-
Os Laboriosos. Jração difícil, por entre as múltiplas preocupações de cada
espírito — a nutrição era rara.
"Eram muitos homens. Andavam direitos sobre oà "Quando dois desses homens encontravam o mesmo
seus pés e falavam uma linguagem articulada. Sua [<j jilimento, a luta durava mais tempo que para reivindicar
ma, porém, espantou a Psychodore. A primeira singula* li sombra, um minuto mais, talvez. Depois, um dos com-
ridade precisa que impressionou o seu olhar, foi a mult' batentes, pelo menos, caía morto.
dão de seus braços e de suas mãos. Fez esforços pa
"Muitas vezes, os dois adversários cobriam o solo
os contar. Mas, esses membros numerosos, uns vigoro
bom duas breves agonias, gesticulando desordenada e louca-
e longos, outros curtos e delgados, eram muito irregular
mente.
mente distribuídos pela cabeça, pelo busto, pelas perna
Outros, ainda menores, os cobriam como os galhos, "Alguns, contudo, se levantavam e se afastavam en-
raminhos e as folhas cobrem as ramagens. raquecidos, por entre um labor dos braços, mais rápido
ue nunca.
" E todos esses braços era um povo em trabalh
"Ora, sem dúvida, nenhum deles parecia sucumbir
Algumas vezes um deles tombava prostrado, era obri
golpes impotentes do inimigo. Mas, sem dúvida,
do a se deter em um repouso tão afadigado...
viam esquecido, no ardor da luta, alguma necessidade
"Quasi imediatamente um sobressalto de novo e ni
'tal, do mesmo modo que homens vulgares, batendo-se
via pela necessidade. Apressava-se, cansado e enverg
232 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 233

muitos dias e muitas noites sem tomar alimento e sem r * | Ima ordem do pensamento inquieto, do mesmo modo que
pousar. • o comprimidas esponjas pesadas de água suja, deviam
"Sob a incessante agitação das mil mãos, adivinhai •premer os pulmões entumecidos de ar impuro. Depois,
va-se que os corpos apresentavam outras singularidade^ •latavam elas as esponjas vivas, expandindo-as na pureza
Nada se podia distinguir de preciso: as mãos irrequieta* Itstiva do ar.
cobriam a nudez desses homens, como a agitação dc mil " E logo era preciso expulsar esse ar novamente vi-
farrapos a cada instante levantados, a cada segundo CÊ •ado.
dos novamente. t "Quantas necessidades, em todas as partes do corpo,
"Psychodore procurou interrogar os laboriosos. Nãoj Irrastavam as mãos e o espírito a tais círculos inexo-
dispunham de tempo para conversar. Gritavam doloio. Irávjis!
sos ou coléricos a preocupação que os atanazava de mil "Algumas das mãos, recebendo ordens inquietas do
lados: pensamento, deveriam abarcar a inércia elástica do cora-
"— Eu, — ululavam eles, — eu, minhas miríades dc jb para fazer correr o sangue purificado para as arté-
"eu"! ^s, para fazer subir aos pulmões o sangue impuro que
"Contudo, o filósofo conheceu todas as esquisitices ar lavaria.
de seu corpo, porque estudou alguns dos cadáveres que "Também era necessário, mediante mil pressões fra-
eles deixavam com indiferença apodrecer sob a imobili- sôbre as artérias imóveis, fazer correr em todo o
dade do Sol. Tpo o sangue nutritivo; por mil pressões sobre as veias
" A maior parte dos órgãos ocultos em nós, neles era Breguiçosas, reconduzir ao coração o sangue pesado e
visível. Os pulmões, como seios grotescos, eram sobre d Arivado de suas virtudes. Entretanto, outras mãos, as
peito. O coração, o fígado, o estômago, os intestinos, mãos grandes, procuravam, sob a direção dos olhos sem-
rins, ignobilmente nus, eram suspensos às vértebras, como »re perscrutadores, incansáveis e aterrorizados, a nutri-
quartos de carne em arpéus de magarefes. ção incerta.
"Nervos, veias e artérias, como cordas sujas, reu- "Quando os dentes a pilavam, pequenas mãos a con-
niam todos esses horrores. duziam ao longo do tubo digestivo, trituravam-na no es-
"Psychodore compreendeu o trabalho prodigiosa- tômago, apertavam o fígado, comprimiam diversas glân-
mente horrível ao qual eram condenadas as mãos, o tra- ulas para verter sobre os alimentos os líquidos que os
balho medonho que sacudia e dilacerava o pensamento em im assimiláveis.
razão dessas mil necessidades simultâneas. As mãos, a " A cada instante, o espírito, ocupado com tantas coi-
234 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 235

sas, esquecia algumas delas. Uma dor vaga murmurava sofista enriquecido e que ia por toda parte dizendo: —
um apelo, e si o apelo não era ouvido imediatamente, ciai ["Multiplicai vossas necessidades, para multiplicardes os
gritava a necessidade, depois urrava até à morte. ivossos prazeres".
"O espírito se apressava em dar as ordens; as mãoi "O desgraçado inventara, para si, mil necessidades
voavam para aliviar. Por vezes, os gritos da dor vinham artificiais e tinha, para servi-las, mãos inumeráveis de
de pontos diversos. O espírito era um general que vê t i escravos. Seu espírito, porém, tristemente engenhoso como
sua armada enfraquecer de todos os lados e não sal* um pobre, movia, com dificuldade, para saciar um pouco
mais o uso que deve fazer de sua reserva. Um momento de matéria que era o seu corpo, tanta matéria incoerente.
de perturbação, de hesitação, uma das dez ordens urgen- Dava a seus membros, a alegria lenta da ociosidade, a ale-
tes dada alguns segundos mais tarde, e o corpo não seria gria curta do prazer. Mas, sua alma era o mais tiranizado.
mais que um cadáver. dos escravos, o mais acabrunhado de necessidades loucas.
"Aliás, as almas, da maior parte dos homens, pare-
*
ciam a Psychodore, tais como os corpos deploráveis dos
* * Laboriosos. Também elas eram feitas de mil perturbações,
torturadas por mil necessidades e mil tarefas, dispersas em
"Psychodore afastou-se de um espetáculo penoso mil mãozinhas febricitantes. Mas, a alma de Sócrates ou
até ao desespero de coração. Lastimava os Laboriosos. a alma de Diógenes erguia-se harmoniosa como o lazer de
"Felicitava a si mesmo: todas as necessidades a que uma bela estátua, como o pensamento sereno de Atenéia ou
eram eles condenados, executavam-se nele sem a sua in- como o sorriso facilmente triunfal de Afrodite". — (Les
tervenção ou eram inúteis ao seu corpo. Voyages de Psychodore).
"— Sou feliz, — dizia, — que meus pulmões saibam
respirar sem que eu me preocupe com eles. Sou feliz, *
que meu sangue seja imóvel ou corra tão espontaneamente * *
que eu possa considerá-lo imóvel. Sou feliz porque meu
coração faz por si mesmo os movimentos necessários. Sou A parábola dos Laboriosos é bem o símbolo da ativi-
feliz pelo fato de ignorar o labor de meu estômago e o dade material da civilização da indústria e do capitalismo.
trabalho de meu fígado e a atividade de todos os meus Todos se acotovelam pelas ruas e praças movimenta-
órgãos. das, todos se abalroam pelos bondes, pelos cafés, pelos tea-
"Sorrindo desdenhosamente, êle se lembrava de um tros, pela Bolsa, todos se entrechocam nas repartições pú-
MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 237
236

blicas e nos jogos esportivos, cada qual procura esmagar, r pisando a quem quer que seja, êssc delírio fascinante de
triturar, comprimir, tomar de assalto as posições já ocupa- brandeza material, essa demência coletiva embriagada do
das — para "vuncer na vida"! (desejo de gozo e ociosidade parasitária e viciosa, esse ener-
iVamcnto de excesso de atividade inútil, esse triturar de
"Vencer na vida" é uma expressão elástica, das con- ,
todas as nossas energias criadoras, esse escachoar da me-
ciências elásticas e que significa para os emparedados, para
galomania dos paranóicos, dos degenerados e ambiciosos,
os superficiais — alcançar honras, riquezas, posição social,
das torpezas e iniquidades, — é isso a causa das guerras
poder, autoridades.
alucinantes num tropel crescente e fabuloso de crueldades
Mas, não nos esqueçamos de Epicteto: "Para julgar
inimagináveis — para o suicídio coletivo da humanidade.
si um homem é livre, não olhemos para as suas dignidades;
porque, ao contrário, mais está elevado, mais é escravo". Esse é o resultado da correria desenfreada. E Han
Ryner, sereno, estóico, grande como os maiores, do alto do
"Vencer na vida" é precisamente o inverso do que
aeu génio de asas abertas, pairando como uma bênção de
imagina essa superficialidade emparedada dos que reinam
luz, olha, contristado, amorosamente, o desfilar dessa lou-
idiotamente nos salões chies ou nas Academias, pontifi-
cura infrene de todo o género humano — em busca da fe-
cando vulgaridades, dogmatizando tolices, assumindo ati-
licidade no mundo exterior, quando a felicidade está tão
tudes de símios grotescos.
perto de cada um de nós!
"Vencer na vida" é integrar-se em si mesmo, é enca-
minhar-se para a sua realização. E no gesto delicado c generoso do semeador, espalma
as mãos e ilumina um sorriso doce de bondade e deixa fluir
E que felicidade maior cresceu com as miríades de ob-
nos corações uma palavra sedutora, um gesto dc carinho,
jetos de luxo e de conforto ou comodidades com as quais
um beijo amoroso a acariciar rodas as almas, buscando des-
envolvemos a nossa vida diária de complicações absor-
pertá-las para a verdadeira vida, para o conforto dadivoso
ventes ?
de espalhar um pouco de si mesmo na escalada infinita
E, à medida que a ilusão dessa pseudo-felicidade se dessa espiral fantástica da evolução espiritual, subjetiva,
esvai num carregado nimbo de desconsolo, mais a atividade em que há lugar para todo gente, em que não pode haver
louca das nossas mil mãos procura apegar-se furiosamente, concorrência, em que ninguém galga um passo à custa de
agarrar-se, atemorizada, febril, a coisas e a preocupações se opor a que outros também o escalem.
incapazes de nos dar o que só pode vir de nós mesmos, do
E, como no alto mito solar do Cristo — que é o
profundo silêncio, do mergulho ás nossas criptas inte-
Cristo interior, — como os super-homens da "vontade de
riores.
E é esse esmagar social, essa ansiedade louca de ven- harmonia" — Sócrates, Epicteto, Pitágoras, Epicuro, —
238 MARIA LACERDA D E MOURA

Han Ryner esparge, ao léu, o exemplo grandemente CM


tóico, edificante, da sua vida incorruptível e a palavra ma-
gica do seu verbo criador de energias — para o despertar
interior de quem tiver olhos para ver e ouvidos para in-
tender . . .
E todos os seus poemas e evangelhos libertadorci,
iluminados pelo "sorriso da dúvida e a música dos sonhos",,
cantam, maravilhosos, a sabedoria profunda do Templo do 4 Parte
a

Delfos:
— "Conhece-te a ti mesmo, para aprenderes a amar".

Han Ryner - "O Sócrates Moderno"


Quem sentiu o sonho delicado e profundo de Han
Ryner — começa a realizar-se, para apronder a amar.
Doce como um carinho, sereno, imperturbável e forte
e ondulante, o afirmar de uma realização interior conti-
nuada e calma e profundamente humana, elegante na sua
limplicidade espontânea e altiva, suave, o seu estilo má-
gico é envolvido numa auréola de sabedoria a sorrir num
halo de Amor.
Por isso, André Fage teve razão ao dizer que Han
Ryner tem os seus fiéis, os seus apóstolos, os seus discípu-
los, os quais "lhe dedicaram um templo", vasto templo en-
volvente porque é feito de ternura, do Amor que os cora-
ções transbordantes de reconhecimento sentem nascer, das
criptas profundas da vida interior, para quem é capaz de
tenta bondade, para quem se elevou tão alto que poude
esparzir por sobre nós outros, já descrentes de tudo, a
bênção de amor da sua "vontade de harmonia".
André Fage tem razão, mas, talvez, não completasse
o seu pensamento. Han Ryner não tem discípulos (os dis-
cípulos crescem para prostituir a ideia e o sonho e a dádiva
interior de cada Mestre...), e nem o que chamamos seus
discípulos ou amigos fizeram dos seus poemas de sonhos
filosóficos uma religião, a religião hanryneriana, e sim,
242 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 243

todos aqueles que tiveram a ventura de sentir a beleza lu*J bloca além da indiferença, das agressões ou das homena-
minosa dessa clarividência de Homem Livre, amam a iUftj gens dos honuns.
Ryner e o admiram como alta, genial mentalidade, servidij I "Uma voz foi feita para falar"... diz Han Ryner,
pela nobreza de sentimentos de um caráter de estóico capafl • não seria o despeito ou a admiração dos humanos que po-
de despertar, em nós, o esforço maior de uma realizaçM leria fazer calar ou aumentar a capacidade de dizer, quan-
interior cada vez mais bela, cada vez mais profunda. fdo uma conciência é feita para iluminar.
Que desejo eu tenho, não apenas de comentar a filai O Massacre das Amazonas é a sátira contra a lite-
sofia iluminada de sabedoria e doce dc ternura e lirismÉ fctura feminina de boudoir, a literatura chie, profunda-
do Artista querido, e sim, de a traduzir toda — para a i mente idiota, das marcchalas da elegância, a literatura da
que tiverem coração para interpretá-la na sua delicade/a, •orma e das expressões colhida-; no vocabulário da moda.
na sua harmonia encantadora, — essa nota de beleza sua vil I t literatura dos salões c das "eleitas" que elegem os-aca-
e ondulante, perdida no caos da invasão dos novos h f l • ê m i c o s . . . e louvam os poderosos que estão de cima. ba-
baros, os incendiários das ideias — intelectuais, jornalista! l e m palmas à populaça "de arriba", literatura sem ideias,
c cientistas domesticados, os "trapeiros do pcnsamento"J [patriótica, nacionalista, rotineira, defensora do passado,
vendidos à violência, ao sectarismo, à política, à moral c6*J • a preocupação mundana, da vida social, do snobismo l i -
moda do bezerro de ouro, à polícia c à glória académica, i Brário.
Esse livro valeu-lhe o ódio das mulheres de letras.
Prostituídos contém cruéis verdades proclamadas con-
A CONSPIRAÇÃO D O SILÊNCIO. ra a literatura académica, a literatura oficial, contra os
homem de letras.
Ninguém foi poupado: Han Ryner atravessou as fron-
O Massacre das Amazonas, publicado em 1899, liras dos medalhões e pegou pelas orelhas a D'Annunzio
Prostituídos, em 1903, asseguraram a Han Ryner a hl a outros prostituídos.
talha do silêncio em torno da sua deliciosa filosofia ne< Nesse livro, não houve consideração nem para com as
estóica, até que a juventude francesa, a Academia Gol pnveniéncias sociais e altas posições no cenário das letras,
court, tendo à frente o seu presidente J. H . Rosny-Ain tm respeito a reputações literárias já estabelecidas in-
o proclamaram, em \9\2,"le prince des conteurs". ernacionalmente.
Aliás, tal fato nenhuma significação tem para Hl Prostituídos são todos os que vendem às convenções
Ryner, cujo estímulo é todo interior e cuja sabedoria inndanas ou à.-> posições no cenário grotesco da sociedade
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 245
244 MARIA LACERDA D E MOURA

legalmente constituída ou ao capitalismo industrial e .1 |MIIW Han Ryner desvia-se, cautelosamente, dos prémios
tica — o pincel ou a pena, o cinzel ou a Musa, a uéui-H le qualquer natureza, foge das homenagens, defende a sua
aplicada à destruição, à guerra ou a filosofia ad.q>i.it|aj jtitude anti-social de individualista livre e sorri, deliciosa-
aos dogmas e ao sectarismo religioso, dominador d a s H U M nte, diante da santa ingenuidade ou da santa malícia
sas e destruidor da razão humana: jornalistas, advogadfl a humanos ao estabelecerem prémios para o que vem
médicos, químicos, poetas, pensadores, filósofos, escullH los abismos de luz da conciência profunda, para o que
res, cientistas, pintores, patriotas, áulicos e militares -»i "ta, do fundo de cada ser evolucionado, num lampadário
homens de letras, cortesãos académicos... A lista é i*J verdades propostas em cada um dos problemas hu-
terminável. São quasi todos... nos.
Seria como si nos lembrássemos de premiar o Sol,
Daí a conspirata do silêncio em tomo da obra £cn\m
rque semeia, por toda parte, a luz, o calor, a vida, a fe-
desse artista, filósofo e sociólogo.
ndidade ou o Amor.
Toda essa gente que se não pode defender e nrfl
Competir com o talento genial e com a superioridade inoifJ
ruptível de Han Ryner, calou-se, pondo os seus l i v r o s u«| ríncipe dos narradores filosóficos.
Index d a literatura oficial académica.
Prostituídos é um livro forte, cheio de verdades diM Os romances inéditos Printentps fane e Pauvre petit
ras que Han Ryner tem o condão de dizer, às vezes <-<M gucillcux são, parece, os primeiros trabalhos da sua j u -
tanto amor, com tanta piedade, que nós outros baixaofl tude.
a cabeça, parasitas dos que produzem com o seu suai Chair voincue, em 1888, é o seu livro de estreia.
aceitando o que nos cabe, cheios de gratidão... O sociólogo e crítico — M. M. C. Poinsot — classifica
Mas, desde 1920, a França reconhece, embora o u l i I obra genial de Han Ryner em quatro maneiras de expor
confesse, que é esse filósofo lírico, esse novelista filosóficJ as ideias:
esse polemista vigoroso e jovial, esse orador extraordufl 1. " — Exposição direta do pensamento.
rio, esse poeta-pensador, esse pacifista da não-violêiicli 2. * — Exposição simbólica do pensamento.
heróica, esse sábio e neo-estóico — o escritor franca 3. ' — Exposição mais romanesca.
atualmente mais digno do prémio Nobel, prémio da pazl 4. ' — Ensaio de romances "históricos" do pensa-
da sabedoria. mento. ,
Mas, si o prémio Nobel da paz é dado a Briand I Do primeiro grupo fazem parte: O Subjctii>isino,
a boxeurs?... Pequeno Manual Individualista, Os Forjadorcs do Porvir,
246 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 247

Das Diversas Espécies dc Individualismo, O Drama de SM velho, em O Filho do Silêncio, em Os verdadeiros entre-
Dois, A Verdade a Respeito de Jesus, A Verdade a rtm tenimentos de Sócrates, etc. etc.
peito do Suplício de Jeanne D'Are, Jcanne D'Are term Para onde iria Diálogo do Casamento Filosófico"?
sido Vítima da Igreja?" etc. etc. Han Ryner procurou interpretar a filosofia do Cristo,
São do segundo grupo: Viagens de Psychodore, PcA dc Sócrates, de Pytágoras e, baseado nessa filosofia doce
rábolas Cínicas. e profunda, "criou" um Cristo individualista-estóico que
ainda se buscava a si mesmo na inquietação de uma dúvida
Constituem o terceiro: O Crime de Obedecer, A 1'idé,
atormentada; idealizou um Sócrates maior, desmentindo
Eterna ou o Romance do Mistério, O Aventureiro dé
bor vezes a Platão; sonhou um Pitágoras ondulando por
Amor, O Amor Plural, A Torre dos Povos, O AutodidattU
[tntre a sua própria filosofia de neo-estóico e fê-los falar
O Homcm-Formiga, Os Pacíficos, A Esfinge Vermelha,
o sentimento humano, através do caráter individual e atra-
Carne Vencida, Humor Inquieto, A Loucura de Miséria, A\
íres da beleza harmoniosa da ética ryneriana, e tudo isso
Suspeita, O Pai Diógenes, O que morre, A Patina e o P(A
U - envolvido naquele estilo mágico de Han Ryner, aureo-
Ictó, Os Supcr-Homcns", etc. etc, muitos outros romance»
lado pelo sorriso da dúvida e pela música do sonho, en-
ainda, cujos títulos me escapam no momento, cheio- dn
volvido no halo da sua bondade infinita e da sua profunda
humorismo uns, contendo, todos eles, verdades filosóíical
sabedoria.
sonhando uma metafísica livre, cada qual realizando (A
modelo do estilo na sua beleza jovial, diáfana, de quent Talvez seja a reconstituição histórica mais próxima
tem algo a dizer, após a purificação interior de uma alta da verdade interior de cada uma dessas grandes individua-
realização subjetiva vivida, não apenas teórica. lidades livres, de cada um desses belos tipos de conciência
clarividente, mergulhada no infinito das verdades cós-
Ao 4.° grupo da classificação de Poinsot pertencem oi micas . . .
seguintes livros admiráveis, únicos na história da litera-
Reconstituição histórica?... Nada disso. Cada um
tura filosófica: O Quinto Evangelho, O Filho do Silêncio,
de nós "cria" a imagem do "seu" Cristo, sonha um Pitá-
Os Cristãos e os Filósofos, Os Verdadeiros Entreteni-
goras ou um Sócrates segundo as suas possibilidades inte-
mentos de Sócrates, As Aparições de Ahasvcrus, O En-
riores aliadas à sua cultura.
genhoso Fidalgo Miguel Cervantes, Diálogo do Casamento
O Cristo de Han Ryner é maior do que ó* de Renan,
Filosófico, etc. etc.
mais alto do que o dos próprios Evangelhos, por mais hu-
Não aceito essa classificação. Não é ensaio de ro- mano, e porque luta tendo no cérebro "o sorriso da dú-
mance histórico o que faz Han Ryner em O Quinto Evan- vida" e ouvindo no coração "a música dos sonhos"...
24S MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 249

Os Cristãos e os Filósofos, As Aparições de Ahasvê* ard ou Do Humorismo à Arte Clássica, Alfred de


rus, Crepúsculos, Sonhos Perdidos não cabem no quadro 'igny, O Massacre das Amazonas, Prostituídos, Elisée
de Poinsot. éclus, etc, etc.
São diálogos filosóficos, ou interpretação de doutrina» E as peças de teatro? Lembro-me, no momento, de
ou da vida de filósofos e pensadores, envolvendo a critica yiva o Rei! Ate a Alma, Os Escravos, O Veneno. O
também filosófica, a critica hanryneriana, traduzindo o setlj leatro ryneriano, como o teatro ibseniano ensaia o verda-
pensamento e os seus sonhos, a metafísica de uma con- neiro teatro, indo ao fundo da psicologia humana — para
denas, livre, individualista, estudando, criticando as mo- a realização subjetiva.
dalidades da filosofia cristã, a vontade de poder de Nietzs- Ambos geniais, perscrutam os abismos da conciência,
che, Marco Aurélio, diálogo da ciência, diálogo da re- Indagam, apresentam problemas individuais sem procurar
volta, diálogo do tempo e do espaço, diálogo da crítica da Bolucioná-los: que cada qual tem o seu problema e a sua
razão pura, Ahasverus e Galileu, Ahasverus e o Povo, «sfinge interior e cada indivíduo que o resolva e a decifre
Ahasverus e Séneca, Ahasverus e Kant, Ahasverus o Neo- dentro das suas possibilidades.
Estóico ou o diálogo da Justiça, diálogo do sonho, diálogo E' o teatro anti-social, o teatro do individualismo, o
do Amor, etc. etc, estudando sofismas, a vaidade ou o teatro do subjetivismo neo-estóico.
tartufismo. São páginas maravilhosas de sabedoria e bon- E, incompleta a lista dos trabalhos desse filósofo lí-
dade, nas quais o estilo de Han Ryner se apura num im- rico, do crítico, do ensaísta, do poeta precursor, do indivi-
previsto de imagens e de flutuações que encanta, assom- dualista, do príncipe dos narradores filosóficos, do soció-
bra, ilumina os desvãos obscuros das nossas cogitações. logo, do metafísico de poemas livres de todas as muletas
religiosas, ocorrem-nos ainda os nomes de outras obras:
A literatura filosófica ryneriana eleva-se a aituras in-
Vs Cânticos do Divórcio, Vida dc Criança, A Paz para a
concebíveis em que a sua meditação de neo-estóico- desce
Widi, O Livro de Pedro, Patriotismo c Humanidade, Um
aos abismos da alma humana ou sobe até pairar acima do
frlogiato Póstumo, Um Artista Ignorado, A Poesia (dis-
tempo e para além do espaço.
fcursos em versos-humorismo), Contra os Dogmas, So-
Diálogo do Casamento Filosófico é um belíssimo pa- mos Perdidos. As Sínteses Supremas, Liberdade ou
radoxo amoroso de que O Drama de Ser Dois nos dá no- Determinismo, Pequeno Entretenimento a Respeito da
tícias mais minuciosas e interessantes. sabedoria, Banvillc D'Hostel, e dezenas de conferên-
Poderíamos acrescentar ainda um grupo: o das obras cias e mais livros que não conheço e cujas edições esgota-
de ensaio e crítica. A esse grupo pertencem: Um grande das nos privam do prazer imenso de viver alguns momen-
Humorista — Claude Tillicr, A filosofia dc Ibsen, Jules tos mais perto desse neo-estóico, de gozar desse maravi-
MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 251
250
lhoso lirismo, do seu estilo inimitável, cheio de belcz líorte razão, quando o publicarei. Chama-se Crepúsculos e
perfumado de sabedoria. •faz encontrar o pensamento mais belo de diversos filóso-
Bos, como prolongamento de sua doutrina, no momento em
Han Ryner nos promete uma série de estudos pel
que vão morrer".
quais nós, os seus grandes amigos, esperamos amorosa-
mente. Em outra carta, a 12 de setembro de 1927, fala-me de
Mas, parece incrível que esse pensador, depois de s povo desse livro que o preocupa: "Sob o título Crepúsculos
mear tantas obras-primas em todos os ramos da atividad •escrevi algumas mortes de filósofos que, na hora derradei-
filosófico-literária, quer como metafísico, quer como en |ra, encontram os seus maiores pensamentos. Essa matéria
saísta ou crítico, novelista ou orador, polemista ou drama •huito linda e muito generosa, não deu tudo quanto dela
turgo, poeta ou entomologista, filósofo ou lírico amoroi fcspero. Entretanto, com muito trabalho obterei um belo
livro".
esteta ou criador de uma ética mais alta, parece incrívc
que Han Ryner ainda hoje lute com dificuldades para pu Nessa mesma carta me dá o prazer imenso de falar em
blicar algumas das suas obras ou para reeditar os seus mai butro livro seu: "Esbocei um romance A Sotaina e o Pa-
belos trabalhos. letó, que, na minha modesta esperança, não seria sinão
Comprcende-se todavia: Han Ryner semeia pensa uma fantasia divertida. Um livre-pensador de rebanho e
mentos, não vende sonhos, não soluciona problemas, não um paire percorrem, em sentido contrário, o mesmo ca-
cria nem sistematiza doutrinas. E os seus leitores se con- minho: o primeiro acaba por se fazer padre, o segundo,
tam por entre uma elite limitada e a literatura oficial, a Ipor atirar às ortigas a batina".
literatura académica lhe move uma guerra surda: a resis- "Porque, o sim dogmático e o não dogmático estão
tência do silêncio. bem perto um do outro; sem o sorriso da dúvida e a mú-
A Esfinge Vermelha, j>ara ser reeditado, há pouco, foi sica do sonho, nenhuma liberação é completa. A ideia me
preciso que os amigos de Han Ryner adquirissem certo interessava, mas, a fórmula desse romance me desagradava
número de assinaturas, subscritas antecipadamente e por um pouco como excessivamente matemática e não podia ser
realizada, a mim me parecia, sinão com o auxílio de ma-
iniciativa de LTdce Libre.
fionncttes dóceis. Ora, tive a alegria de ver minhas per-
Em carta de 13 de junho de 1927, Han Ryner me
aonagens tomarem vida e ornarem-se sob a minha medi-
anuncia Crepúsculos: lação.
"Quanto ao livro no qual trabalho neste momento,
creio, será um dos melhores que tenho escrito e dos mais "Creio agora que A Sotaina e o Paletó será o meu
melhor romance contemporâneo.
amplos. Não sei quando o terminarei, nem, com maii
252 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 253

"Dentro de alguns dias volto a Paris. Levarei os doii e, o que é mais raro, cada uma das frases que êle abandona
esboços a polir em "detalhe". ao jogo do improviso, é um modelo de estilo mais delicado.
Crepúsculos já o tenho — uma beleza profunda, da Fala assim, ao coração e ao espírito ao mesmo tempo. E',
que falaremos um dia. E mais o romance, e ainda um talvez, o único homem, na França, que pode, fora das
livro trágico: Dans de Morlier. igrejas, falar às multidões, de alta moral, e enunciar as
Em duas palavras, Han Ryner analisa O Aventureiro verdades cruéis, sem nunca fatigar o auditório, sem o irri-
do Amor, quando mo anuncia: " E ' um descanso mais qual tar ou fazê-lo sorrir".
um trabalho: a narração romanesca em que eu quis so- E é toda essa obra de serenidade, de não-violência, de
mente me divertir e divertir ao leitor. Talvez, entretanto, estoicismo, profunda, grande e delicada, alta na sua ex-
a psicologia lhe interesse e o choque de um orgulho de ho- pressão humana, é toda essa obra genial do maior dos f i -
mem contra um orgulho de mulher. lósofos vivos que a crítica dos boulevards, das academias e
"Em outubro publicarei outro romance, O Amor Plu- do jornalismo burguês condena à campanha do silêncio,
ral. Este, eu o quis humorístico, mas, contém, sob o riso, invejosa do seu ritmo, da sua erudição assombrosa e ve-
úteis verdades". lada, da sua imaginação criadora infatigável, originalíssima
e única, e principalmente despeitada ante essa portentosa
Contém, como já vimos, por entre o humorismo jo-
realização — vivendo a obra de fraternismo sonhada pelo
vial, uma ética nova. E' todo o esboço, a concepção ma-
estóico de conciência incorruptível — que é mais fácil ser
ravilhosamente boa e generosa e grande de uma nova filo-
artista que realizar o Homem Livre.
sofia da vida sob o ponto de vista amoroso.
Pluralismo é outro ensaio que os seus biógrafos nos Em carta de 11 de maio de 1928, diz Han Ryner, fa-
anunciam: é talvez a concepção da Unidade na aparência lando de La Sagessc qui rit — esse evangelho de sabedo-
da multiplicidade, aliás, admiravelmente estudada essa con- ria e bondade, de que tratarei em ensaio subsequente:
cepção da estética universal ou de cosmogonia em Viagens " E ' o livro ao qual me dei mais diretamente. Talvez
de Psychodore e em Parábolas Cínicas, estes dois livros porque eu o fizesse e refizesse durante vinte e cinco anos;
únicos na história da filosofia ou na história da literatura, há nele, aqui e ali, alguma ondulação. Quando a flutuação
esses dois marcos da sensibilidade humana divinizada pelo é importante, eu o confesso. De toda maneira creio que
estoicismo. aí me encontrará mais completo que em meus outros l i -
"Orador positivamente genial (diz Florian-Parmen- vros".
tier), Han Ryner improvisa, às vezes, duas, três, quatro Esse livro, por interesse dos editores, foi dividido em
conferências no mesmo dia. Os acentos são irresistíveis 2 partes. Uma não dependerá da outra. Cada uma contém,
254 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 255

por si mesma, a ideia integral de Han Ryner. A segumlft "Crepúsculos dirá, em relevo, toda a minha filosofia.
não foi ainda publicada, e se chamará: Le Rire du Sagc. j Sonhos Perdidos a exprimirá, si ouso dizer, em profun-
Em carta de 26 de agosto de 1928, escreve-nos o i\A didade".
lósofo: Em carta de 9 de agosto de 1929, falando ainda nesse
livro que o preocupa sempre, diz: "Sonhos Perdidos é um
"'Em outubro, espero publicar o que Wells denomina
livro muito filosófico. Mas, não o creio mais difícil que As
romance de antecipação, o que, com mais prazer, denomino
Parábolas Cínicas, por exemplo.
um conto profético. "Chama-se Os Super-Homcns. A dl
versidade de nossos desejos tem criado muitas sortes do "Neste momento, trabalho em dois outros livros. Am-
super-homens. pos discorrem em torno de mortes. Crepúsculos apresen-
tará dezesseis agonias de filósofos, dos quais, a maior
" A avidez nietzscheniana de dominar criou os Do*
parte descobre, em sua hora derradeira, o seu mais belo
minadores ou Superelefantes; a tímida avareza, cujo medo
pensamento na linha que seguiram e que ultrapassaram.
de morrer não é sinão uma forma, criou os Imortais; mas,
"O Touro de Phalari (Dans le Mortier), contará
o Amor criou os Superanjos. Amará, creio, os' diversos
oito ou nove martírios. Repousarei desses graves traba-
cânticos dos Superanjos, nos quais procurarei exprimir,
lhos, recomeçando, desde que volte a Paris, um alegre ro-
com graça, o essencial de minha filosofia."
mance em continuação a O Amor Plural, e no qual mos-
Les Surhommes é um dos mais belos e dos mais pro- trarei o absurdo e o perigo da organização do amor".
fundos livros de Han Ryner, si é que todos eles não são E termina alegremente, numa ironia dirigida a E.
belos e profundos. Armand: "Quand celui-là paraitra, qu'est-ce que je pren-
Na mesma carta me anuncia Chère Pucelle de France. drai à Yen dehors... Ça mamuse d'avance".
Romance de crítica histórica e humorismo.
Esse romance é Prenez-moi tous!
Em carta de 17 de Setembro de 1928, me diz, ao en- Já l i Songes Perdus e maravilhei-me. Sínteses Supre-
viar-me as Sínteses Supremas: mas é a sua metafísica pluralista.
"Lastima não possuir Sonhos Perdidos. E' um livro Uma Conciência durante a Guerra trata de 1'affaire
terminado, porém, inédito. Atribuo-lhe a mesma impor- Gaston Rolland.
tância de Viagens de Psychodore, Parábolas Cínicas ou Naturalmente se me escapam nomes de outras obras
Aparições de Ahasverus. São filósofos que sonham so- de Han Ryner.
nhos que completam ou refutam as suas doutrinas — e os Escreveram esboços biográficos do filósofo e estudos
esquecem ao despertar. OU ensaios em tomo da sua filosofia, os seguintes pensa-
256 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 257

dores e homens de letras, dentre muitos outros: Louli loria do sorriso e a filosofia que soluça piedade através
Pratt, Vigné D'Octon, Rosny-Ainé, Manuel Devaldít,' de uma ironia acariciadora e generosa.
Poinsot, Barbed-tte, Pierre Larivière, André Lorulot,' Em Parábolas Cínicas, notou bem Florian-Parmen-
Georgette Ryner (sua filha), J. Elizalde, Florian-Parmcii- lier, Han Ryner indicou "as revelações que Einstein nos
tier, Aurel, Jacques Frehel, Georges Vidal, etc. etc. Beveria ensinar mais tarde, em torno do tempo e do es-
Le Semeur publicou um número especial e linda />/<!•• paço".
quette de ensaios em torno da figura admirável dêssil Esse livro é a mais bela jóia literária e filosófica que
"príncipe dos narradores filosóficos" e "Sócrates mo-1 a minha modesta sensibilidade estética sentiu, a mais com-
derno". pleta, a mais harmoniosa, a que abrange todos os proble-
bias da vida humana e todos os sonhos da metafísica livre,
* a que abre caminho às incógnitas que constituem o pesa-
delo da ciência positiva.
Livros como Parábolas Cínicas, Viagens de Psycho-
Em Viagens de Psychodore e em Parábolas Cínicas, \4ore, Aparições de Ahasverus, Sonhos Perdidos, Crepús-
Han Ryner nos faz entrever, por vezes, o mistério da eter- culos, A Sabedoria que ri — levam-nos além do tempo e
nidade ou a desharmonia das esferas... ora com as suas [para além do espaço, além de toda a vida humana e além
formidáveis perturbações, ora no seu ritmo profundo e de todos os milénios, e nos fazem escapar de nós mesmos,
ondulante. .num voo acima da conciência limitada da nossa mentalidade
Esse metafísico livre de escolas e de filosofias defini- jde Prometeus acorrentados ao Cáucaso da Matéria...
das ou positivas ou reveladas ou dogmáticas, esse sonha- Como que vogamos por sobre o Cosmos, num grande
dor de sonhos vagos, que nada afirma e nada repele a não bairar de asas abertas.. . para a luz interior. E mesmo
ser o sectarismo ferrenho dos exclusivistas e detentores por isso, profundamente humanos... são os seus poemas
das verdades e ignorantes de si mesmos e exploradores dos divinos.
rebanhos, esse sonhador que ouve a música dos sonhos com
o sorriso da dúvida — deve conceber e deverá traçar ainda, 0 Individualismo neo-estóico de Han Ryner.
poemas sinfónicos de uma força e uma doçura infinitas, e
espalma, de-certo, por entre as páginas dos seus livros, f • Fraternismo e Subjetivismo, Jesus e Epicteto, Amor
ansiosamente esperados, a carícia perturbadora e amorosa e Sabedoria, Realizar-se — para aprender a amar — eis
da sua grandeza de homem livre e semear ao léu, a sabe- 1 filosofia de Han Ryner.
258 MARIA LACERDA DE MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 259

"Jesus, como lEpictetO, me quer livre, independenie de que Cristo falava: "Vou para o Pai que está nos céus",
desprezando os bens exteriores e aqueles qu os adoram e que "descobrimos no céu do nosso coração".
Césares ou ricos, com sua criadagem de padres, jui/e\
Deus, Cosmos, Beleza — tudo é criação nossa... E
soldados, doutores, oradores e poetas...
as palavras (que pobreza!. . . ) as empregamos em relação
"Estarei obrigado a escolher entre as duas grande» ao espaço ocupado pelo nosso corpo!
palavras? Jesus quer que eu me dê. Epicteto quer que eu Cristo e Epicteto são os dois grandes marcos do pen-
me realize. Dar-se é, talvez, um meio de se criar. Co« samento, na filosofia ryneriana.
nhecer-se e realizar-se sempre e sempre, permite dar-se "Um diz mais comumente e mais naturalmente:
melhor e ainda mais. "Ama". O outro, antes, recomenda: " S ê " ou "Sê tu
"Salve, Vós, entre os quais um homem pode hesitar, mesmo".
Amor e Sabedoria, "fraternismo e subjetivismo"; ou, si "Mas, são semelhantes os seus sentimentos, seme-
preferis os nomes antigos, salve cristianismo e estoicismo; lhantes são os seus gestos, tão forte é o heroísmo da sua
ou. si gostais mais dos nomes de homens, salve Jesus c paciência, do mesmo modo é profunda a sua misericórdia
Epicteto. para os carrascos que "não sabem o que fazem". Que im-
"Vossas vozes se entrelaçam harmoniosamente, fra- porta que, em um, os pensamentos diretrizes parece subi-
ternismo e subjetivismo". rem do coração para o cérebro; que, em outro, parece des-
Le Subjectivisnie é uma síntese admirável de toda a cerem do cérebro ao coração!... "
filosofia ryneriana. Todo o lirismo, toda a doçura, toda a força de Han
O Pai que está nos céus, expressão repetida a cada Ryner ondulam em torno desses dois sentimentos vividos
passo pelo Cristo e que o Cristianismo traduz interpretan- na piedade e no heroísmo dos dois gestos semelhantes.
do "Pai" como sendo Deus, para Han Ryner é a perfeição
interior, porque Deus, para esse neo-estóico, é o "Eu"
profundo, é a realização, é a perfeição ética, a harmonia Subjetivismo.
interior. Interior... dentro de n ó s . . . profundo... nada
Quando, em 1904, publicou o Pequeno Manual indi-
significam em filosofia. Como exprimir o inexprimível?
vidualista, deu à sua filosofia o nome de "Individualis-
Palavras, para limitar mais a nossa percepção. . .
mo"; em 1922, porém, foi impresso Le Subjectivisnie, e,
O Deus de Han Ryner só existe subjetivamente, está Han Ryner nos dá a entender a razão por que prefere dar
dentro e não fora de nós, e são as nossas vozes, é a nossa essa denominação à sua filosofia, condensada em torno dos
super-conciência que nos dá uma ideia dele, desse "Pai" dois mandamentos que se completam e se harmonizam:
260 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 261

"—mais alto que todas as espécies de moral, creio truindo todos os indivíduos em proveito aparente de um
entrever dois cumes: o Amor e a Sabedoria, o Cristianis- só, não és sinão empobrecimento e egoísmo.
mo e.. . como direi?... o Individualismo. "O moço disse ainda:
"Vestidos de longas roupas negras, fantasmas povoa- "—Afastai-vos, tigres, chacais, raposas. Afastai-vos,
ram o pequeno quarto. E gritaram: todas as cobiças e todas as mentiras. Meus ouvidos têm
"— Somos os padres. Somos o Cristianismo. Vem sede de vozes sinceras.
até nós, tu, cuja cegueira nos repele. "Afastai-vos para que eu ouça a Jesus e a Epicteto".
"—Jesus também vos repeleria. Padres, não fostes Assim fala Han Ryner, repelindo também e mui prin-
vós que o crucificastes? Ora, não sois esses brutos que cipalmente, ao filósofo dansarino, à vontade de poder, ao
matam sem interesse, mas, ao contrário, sois os mais super-homem que não passa de bêsta-fera do autoritaris-
sutís ladrões. t mo, do orgulho, do dominismo, do individualismo da me-
"Escamoteastes o cadáver e deformastes a. palavra. galomania, do egocentrismo, da opressão, do mais forte,
O nome de Jesus, grande porque foi inimigo dos padres, da vaidade intelectual, da loucura do snobismo literário,
dos tiranos e dos ricos, porque proibia de julgar, porque dos que atacam a tirania para se fazerem tiranos, dos que
destruía a moral que então chamavam Lei ou Thora, que são inimigos da autoridade enquanto se não tornam déspo-
foi feito dele? Dele vos servistes para fazer inclinar os tas e autoritários.
simples diante das potências e das mentiras. Liberdade para si, escravidão e servilismo para os de-
"—Tens razão, disse uma voz forte — e essa voz mais. . .
saía da boca de um homem que dansa. Toca as morais de Han Ryner realiza a mansidão de Jesus e é profundo
escravos, as doutrinas de rebanhos, os senhores do bom como Epicteto. E, de ambos, tem a força que dá a doçura
sono. Compreende-me, a mim, e à minha dansa. Sou a e a sabedoria que faz nascer o amor, a grandeza ética, a
sabedoria, o poder e a vida. Chamo-me Nietzsche, ou superioridade e a coragem de convicção da palavra que
ainda Dionisos, ou, si preferes, Individualismo. Ainda faz estremecer, até aos alicerces, tudo quanto não foi as-
agora, tu me repeliste porque me não conhecias. sentado por sobre as bases sólidas do Amor e da Sabe-
"— Repelí-te, porque te conhecia, besta loura que te doria.
acreditas um Deus, fera que te intitulas super-homem. Es La Sagesse qui rit — ( 1 9 2 8 ) , de que Le Subjectivis-
a última moda da loucura. nie é o esboço, completa, realiza esse pensamento.
"E te recuso o nome de individualismo, tu que, des- "Em fins do século X I X e no começo do século X X ,
262 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 263

o sucesso de Nietzsche permitiu à sua doutrina açambar- Em As Aparições de Ahasverus c em A Sabedoria


car o nome de individualismo. que ri, mostra as contradições de Nietzsche. E em Diver-
"Quando Brunetière e alguns outros combateram o gias Variedades de Individualismo (Conferência pronuncia-
nietzscheísmo. vangloriavam-se de haver combatido o in- da a 10 de dezembro de 1921. no grande salão da Casa
dividualismo. Nessa época, em diversos meios populares, Comuna de Paris), diz: "O nietzscheísmo, o individualis-
eu expunha, sob o nome de individualismo, uma sabedoria pio da vontade de poder, a não ser em sentido muito
vizinha da ética estóica. Sempre algum nietzscheniano se grosseiro, só é individualismo no ponto de partida".
levantava para me interdizer o titulo glorioso. Assim, para E, com aquela sua atitude sempre ampla e generosa
os discípulos como para os adversários, não havia outro in- como a sabedoria — Han Ryner volta até compreender, até
dividualismo sinão o do dansarino Zaratustra. sentir a Nietzsche grande como um sonho incomensurável
"O torneio da discussão tem as suas regras: eu res- não atingido:
pondia ao meu contraditor recusando-lhe o que éle me re- "O que é preciso é chegar a harmonizar-se. Devemos
cusava. Eu sorria durante a inútil e superficial contro- procurar tudo em nós mesmos e respeitar a tudo. Tal é o
vérsia; éle, porém, ficava sério. pensamento dos primeiros estóicos, quando aconselhavam:
"Todo nome de doutrina torna-se, ao menos por al- IViver harmoniosamente".
gum tempo, aqui, um título de nobreza; ali, uma injúria; "Pouco importa dc qual individualismo procedo, si
e é difícil, em certas épocas, pronunciar, sem paixão, certas chego ao cimo donde se divisa todo o horizonte. Enquanto
palavras em ismo". subo, estou de um ou de outro lado; uma parte do cume
O último período é para mostrar o pouco caso que 'se me oculta. Porém, pelos diferentes caminhos, de ani-
Han Ryner concede ao rótulo, aos nomes de doutrinas, si lhos os lados, chega-se ao alto pico donde se descobre todo
organizadas sistematicamente sob uma expressão batismal. o horizonte e toda a vasta verdade.
Han Ryner recusa a Nietzsche o nome de individua- "Mesmo o nietzscheísmo que parece havermos re-
lista ou acrescenta, em vez de tirar: é individualista da von- cusado, poderia defender-se. Afastámo-lo porque, enquan-
tade de poder ou de dominismo. to Epicuro chegou ao individualismo completo, enquanto
Mas, continua a expor as suas doutrinas (como as os grandes estóicos e os grandes corações chegaram à mes-
palavras são pobres! Han Ryner tem horror às doutrinas ma altura, Nietzsche se deteve no caminho. Quem nos
e pavor dos discípulos.. . ) continua a sonhar o seu indi- impede continuar a trilha abandonada? Si não tivesse en-
vidualismo sob o aspecto da realização interior e sob a louquecido, pelas razões orgânicas, não teria continuado?
denominação de "Subjetivismo".
264 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 265

Não teria também êle chegado ao cimo em que habitam definidas, o sim ou o não dogmático, a brutalidade do sec-
Epicuro e Epicteto? Seguramente que, si Epicuro tivesse tarismo religioso ou científico ou filosófico, a tirania dos
ficado louco aos trinta e cinco anos, não haveria chegado credos que se querem impor aos rebanhos humanos pela
à verdade total, ter-se-ia quedado em os pântanos e os pra- força ou mesmo pela "doce violência" da persuasão.
zeres de baixo. Si Epicteto tivesse morrido jovem ou si E, por isso, acha estranho que Sócrates quisesse dis-
tivesse ficado louco, teria chegado, pela razão, até à ver- cutir ou encontrar adversários, e considera lógico e natural
dade do coração? que os seus chamados discípulos exagerassem e prostituís-
"Si Tolstoi tivesse morrido ou enlouquecido bastante sem os seus sonhos e os seus princípios — fundando a
jovem, não teria chegado pelo coração, à verdade da razão erística vazia de Mégara.
"Os que se sentem atraídos pela doutrina de Nietzsche, O Subjetivismo é uma das maravilhas filosóficas
para os seus caminhos, que terminem, pois, a estrada que e literárias de todos os tempos — pela concisão, pelo estilo,
êle não poude terminar. A vontade de poder, erro, si deve porque condensa tudo quanto de humano e belo e impre-
oxercer-se brutalmente sobre outros homens, torna-se ver- ciso e nobre se possa encontrar em Cristo ou em Epicteto,
dade, si esse império me é todo interior, si é a mim mesmo e, ao mesmo tempo, realiza os princípios do neo-estoicismo,
que quero criar, que quero dominar. uma doce e poderosa orquestração, a harmonia entre o fra-
"Torna-se também verdade, si essa dominação quero ternismo de Jesus e a sabedoria de Epicteto.
exercê-la sobre a natureza das coisas e não sobre meus Desses dois picos culminantes a que atingiu a con-
semelhantes. Há aí duas maneiras de continuar a Nietzs ciência humana, um. subindo ao coração pela razão; outro,
che, para completá-lo, para fazê-lo tão formoso individua- subindo à razão pelo coração, Han Ryner extraiu todo o
lista como Epicuro, ou como os grandes estóicos e os gran- seu sistema (como as expressões nos falham para dar
des corações". ideia do pensamento genial de Han Ryner!), extraiu todos
De propósito citei este trecho, para que se veja o po- os seus sonhos de perfectibilidade, de harmonia e de
der de criação de Han Ryner, ao interpretar o pensamento beleza.
de outrem — pelo ritmo empolgante da sua generosidade, E, já se vê, não pode ser sinão contra a violência sob
da sua vontade de harmonia e esforço de compreensão. qualquer aspecto, contra o militarismo, contra os governos
Pairando por entre a névoa macia e ondulante dos seus — a violência organizada legalmente —, contra o despotis-
poemas de metafísico livre, Han Ryner não pode suportar mo, contra a sociedade em suma — a fonte de todas as
a rigidez das afirmações categóricas, a crueza dos siste- limitações à liberdade individual e ao verdadeiro progresso
ma . doutrinários, as teses metodicamente organizadas e humano que é a evolução do indivíduo para uma beleza
266 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 267

serena <le sentimentos — cada vez mais próximo do Amor as mesmas águas cantantes despejando-se do alto numa
e da Sabedoria. torrente luminosa e resplandecente, com reflexos de arco-
iris.
* *
Si lemos O Homem-Formiga — essa maravilhosa vi-
são facetada, em que descobrimos a penetração do filósofo
E' admirável, nesse filósofo lírico, a sequência harmo habituado às mais altas cogitações, o pensamento sutil do
niosa das suas conclusões, sem a rigidez das afirmações entomologista. a observação do sociólogo, do novelista, do
chocantes da presunção cientifica ou filosófica, e sempre poeta-lírico; (Han Ryner não consegue revelar só uma
acordes com os seus princípios. Harmonioso esse enca- dessas facetas e se nos oferece todo ao mesmo tempo, numa
deamento rítmico, o equilíbrio ondulante da sua Arte pro- dádiva de amor que é uma oferta lírica aureolada de sa-
funda de sobriedade ática, de um néo-aticismo mais colo- bedoria) ; livro publicado em 1901. e, si lermos A Filoso-
rido, mais jovem e menos infantil, mais experiente, mais •fia dc Ibsen (1923), ou O Amor Plural (1927), ou A
movimentado e mais forte de sabedoria, mais leve e Torre dos Povos (1919), ou, por último, A Sabedoria que
mais sutil, e mais perfumado de Amor. Admirável a jus sorri (1928) ou Sonhos Perdidos, e Crepúsculos — (esses
teza de todas as suas páginas vividas na sua vida interior, dois livros magistrais, em que não se sabe que mais admi-
tanto nos livros como na ação — sempre dentro do frater- rar, si a magia do estilo e a fecundidade da imaginação
nismo doce de Jesus e do estoicismo vasto de Epicteto. criadora, si a profunda sabedoria, si a grandeza ética, si o
Si abrirmos, ao acaso, um capítulo do Pequeno Ma- poder de síntese, si a expressão da bondade, si o arrojo
nual Individualista publicado em 1904, qualquer período da ideia, si a visão filosófica, si a intuição do artista) ; —
desse cântico filosófico se entrelaça harmoniosamente por si abrirmos, ao acaso, qualquer desses livros, é sempre a
entre os períodos dessa outra alvorada de luz que é o .S/Í/ mesma vontade de harmonia, a mesma realização interior,
jetivismo, publicado em 1922. e se casa esplendidamente o mesmo individualismo néo-estóico, o mesmo subjetivis-
com todos os capítulos desse evangelho de bondade que é A mo e o mesmo fraternismo, o mesmo sorriso de dúvida
Sabedoria que ri, publicado em 1928. aureolado da música dos sonhos. — embora a riqueza nova,
tratada magistralmente, em cada uma dessas obras-primas
Não há desacordo, a mais ligeira divergência ou con-
do pensamento humano.
tradição, um ponto de vista menos harmonioso ou um
ritmo transviado noutros ritmos. E' o mesmo poema de E, tudo isso, emlialado pelo ritmo do seu estilo envol-
amor, é a mesma voz profunda de compreensão, as mesmas vente, mágico, diáfano, luminoso, por onde transparece a
cumiadas de luz de onde saímos orvalhados de beleza, são beleza interior, a clarividência do Homem Livre.
268 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 269

E' que Han Ryner olha sempre para a frente. Cada do homem. E não é ao beber e às suas chances incertas
dia mais penetra as suas próprias verdades. E ouve, mais que pediremos o indispensável riso."
distintamente, as vozes profundas que palpitam sonhos Feita a escolha, Han Ryner passa a analisar as eta-
inéditos nas suas criptas interiores ou nos recôncavos de pas do riso.
luz da sua super-conciência de intuitivo das verdades do
E' quando exalta e saúda a Cristo e a Epicteto e des-
oceano cósmico da evolução humana.. .
preza a todas as espécies de moral, de servilismo, de do-
Como Sócrates, ouve o seu demónio, ou, como Cris-
minismo, até Nietzsche e até o Cristianismo (Cristo não
to, procura ir ao Pai que está nos céus...
é Cristão... )
E é humano e é jovial.
Para isso, segue os dois caminhos: E chega ao riso harmonioso, ao sorriso doce e bom,
luminoso e sóbrio do neo-estoicismo, chega à sabedoria do
sorriso.
Liberdade e Sabedoria: Rir e Beber... Han Ryner examina as relações entre a metafísica e
o bom riso, entre a liberdade e o determinismo. E chega
— os dois símbolos ralxdaisianos ocultos em Gargântua <- à conclusão de que "as negações verbais são feitas de in-
em Pantagruel. conciência".
Riso — Sabedoria, Liberdade.
Beber — Ciência. Afirma-se metafísico, sim, porém, livre de escolas
"Sou obrigado a um esforço para sentir que o riso filosóficas, livre de quaisquer métodos ou sistemas ou
me é mais indispensável". preocupações sistematizadas em teorias — na razão ou na
Han Ryner não tem dúvidas quando se trata de optar fé, na ciência positiva elevada a dogma ou na religião im-
por uma vereda. Não se deixa colher nos laços da ló- posta como revelação indiscutível.
gica sofística, em se tratando das coisas que de nós de- Han Ryner é Homem Livre. Faz metafísica so-
pendem ou das que não dependem de nós, segundo a clas- nhando. Mesmo a religião ryneriana, si algum dia os seus
sificação de Epicteto. Não se debate, como os filósofos discípulos ou amigos pretendessem fazer do seu subjetivis-
de gabinete, no caos da escolha entre o rir e o beber. mo um culto, ainda que fosse um culto ao individualismo
"Beber, sim, todas as vezes que pudermos. E' o — para a realização interior, mesmo essa religião Han
grande luxo humano. Ryner a repeliria como uma violação aos seus sonhos de
"Mas, rir e desprezar as eventualidades, sempre. E' individualista, ao seu direito de viver o neo-estoicismo,
a grande necessidade humana. E' a característica mesmo anti-social — fora de toda e qualquer organização siste-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 271
270 MARIA LACERDA DE MOURA

mática de princípios ou de ideias ou de meditações filo- " A maior parte dos sábios adota uma imagem me-
sóficas. cânica da causa e aderem ao determinismo, nós, porém,
Essa organização seria a própria negação da sua sentimos que há no mundo outra coisa além do mecanismo.
filosofia que é contrária inteiramente a esse espírito de "Que será? Não terei a audácia de a definir. Deixo
sistemas. tais ousadias pueris aos papagaios: padres e espiritualis-
tas de academia. Mas, tenho uma tendência a conceber
o não-mecânico à imagem da vontade que sinto ou creio
Liberdade ou Determinismo. sentir em mim."
" A necessidade de nobreza é da mesma ordem que
Han Ryner estabelece o acordo profundo e admirá-
vel entre a Liberdade e o Determinismo, aparentemente as necessidades orgânicas?..."
contrários, acordo considerado impossível na filosofia "Os outros homens continuam a ser determinados:
teórica positiva. o sábio se determina."
"O determinismo tem o seu domínio, a liberdade tem Como os filósofos complicam e enfeiam esses assun-
o seu, e, entretanto, um e outra enchem magnificamente tos e no-los fazem áridos e infecundos e nos deixam a
o universo." alma vazia, sempre insatisfeita, emaranhada na nebulosi-
Sempre o metafísico a procurar a harmonia interior dade da sua dialética, filosofias de definições, de citações,
dos seres, a buscar as suas veredas, as suas verdades, e de palavras, vazias de sentido e cheias de afirmações ou
nunca o dogmático a negar com a mesma deplorável incon- de negações categóricas!
ciência, nunca o filósofo do Não-Ser, do mundo exterior.
Os poemas ondulantes da metafísica ryneriana são
"Os sonhos têm flexibilidadcs que se casam. As
como gotas de orvalho batidas pelo sol na pétala de uma
afirmações são brutalidades que hediondamente se atro-
rosa ou a cintilação do arco-iris por entre os últimos pin-
pelam."
gos de chuva da borrasca, seguida de um sol de pureza
"O* beleza larga e sinuosa, como te cantar por pala-
como a saudade...
vras assaz precisas para te designar, assaz vagas, contudo
e acariciadoras para te não destruir?" "O determinismo — metafísica exclusivamente lógi-
ca — me dá uma impressão de pobreza e de morte. Deixa
Em poucas palavras consegue dizer o que sistemas
filosóficos inteiros são construídos para complicar. insatisfeita minha necessidade de explicar psicologicamen-
" A Ciência, mãe do determinismo, é filha da liber- te o macrocosmo. A filosofia da liberdade — metafísica
dade. psicológica — deixa insatisfeitas muitas das minhas neces-
272 MARIA LACERDA D E MOURA IIAN RYNER E O AMOR PLURAL 27ò

lidadea lógicas. Subjeti vãmente, nfnfmma metafísica velação" organizada em igrejas e, princípios e autorida-
satisfaz todas as minhas necessidades intelectuais. de hierárquica de privilégios, é monopólio de verdades,
Objetivamente, que é que me engana mais: a lógica como si as verdades cósmicas se deixassem apanhar de sur-
ou meu sentimento interno de liberdade? Não sei e não presa, nas malhas de ferro dos dogmas aniquiladores da
tenho nenhum meio de o saber, pois que aqui, meus pobres razão humana ou nos sofismas dos "doutores" das cas-
meios de saber se contradizem. tas sacerdotais.
" £ ' pois unicamente para me dar alegrias alternadas Assim, Han Ryner chega a esta conclusão:
que eu me represento o mundo, por vezes, segundo o rigo- "Consente, pois, que te dêem a tua parte, determi-
roso encadeamento determinista, por vezes na luz transpa- nismo cego que te destruirias a ti mesmo e ao univer.so
rente da liberdade. E, si procuro uma conciliação impos- contigo.
sível, não é ainda para variar o j o g o ? "
"Fica sendo o soberano do mecanismo da matéria,
Essa atitude de pesquisa, imi>arcialidade incorruptí- da passividade. Orgulha-te: por toda parte, há peso e
vel, é admirável e única e é um gesto puro de esteta. E' matéria."
precisa uma alta realização para se não deixar arrastar
Ficamos convencidos de que o determinismo, para
para a afirmação ou a negação categórica.
Han Ryner, rege o mundo físico, a matéria.
E o período que vou citar vale por um poema:
"Humilha-te: em parte alguma a matéria é tudo.
"Aqui. meu amigo, creio bem que entramos na me-
Amo o teu esforço heróico, determinismo, balbuciar da
tafísica. Ora, os trilhos que conheço nesta montanha de
pobreza material.
sonho são encantadores, porém, estreitos. Tenho receio
de que aí não se possa passar a dois de fundo. "Tu. porém, liberdade, cântico da riqueza formal,
tu espalhas por toda parte uma luz e um sorriso de
Aliás, não conduzem a parte alguma. Quando os
humanidade.
percorro, é pelo prazer ativo do passeio, pelo prazer
desabrochado e inconstante do espetáculo." ; "Não separeis nunca no meu espírito, vosso enlace
Han Ryner tem razão. Ciência sem metafísica é nobre e flexível.
afirmação inconciente na sua cegueira culta de dogmati- "Porque eu quero me conhecer a mim mesmo —
zar a respeito do que escapa aos nossos sentidos grosseiros, matéria e objeto de ciência; porque eu me quero reali-
fechados pelo progresso material, deseducados j>ela roti- zar a mim mesmo — forma, harmonia e objeto de amor."
na, ensurdecidos pelo orgulho. A liberdade, para Han Ryner, rege o mundo psíquico,
Metafísica sem ciência é sectarismo religioso, é "re- a vontade.
274 MARIA LACERDA DE MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 275

Matéria c Força, Matéria e Energia, Matéria que


não dogmático. Todos firmam doutrinas c estabelecem
se transforma sempre, ficando sempre a mesma...
princípios — e vivem a vida divorciada do pensamento.
.Evolução da força, impulso <la vontade, evolução
para além do tempo e para além do espaço... Ou melhor: escrevem uma coisa e executam outra.
A natureza humana é bi-cósmica... Dizem coisas lindas e praticam as mais vis baixezas.
Determinismo e liberdade — cada qual tem o seu Han Ryner paira muito alto, por sobre todos os
domínio na vida, e, às vezes, simultaneamente, obedece- partidos, todas as doutrinas, todas as teses e todos os
mos ao impulso interior e a um determinismo vago, de princípios.
origens quiçá remotas, indefinidas e indefiníveis. Diz êle:
Como é admirável essa singeleza de Han Ryner, "Em face da metafísica, há duas posições clássicas:
essa humildade ao confessar a nossa fraqueza sensorial e cépticos, positivistas, agnósticos, si ouso dizer, ortodoxos,
mental ante os problemas profundos da vida. repelem toda metafísica. Mas, o dogmático adota uma
Que diferença entre essa sabedoria e a ciência dog- doutrina e combate por ela como pela verdade absoluta.
mática ou a fé ortodoxa eme afirmam com a certeza pe- "Nenhuma dessas duas posições me convém. O po-
sada, ignorante e inconciente da autoridade das retortas sitivismo tem razão como crítica de nossas potências pre-
infalíveis ou da autoridade da revelação. cisas; nossos desejos, nossa avidez, nossas aspirações o
Templos e altares para a Deusa Razão, a Deusa condenam."
Ciência ou quaisquer fantoches aureolados de santidade "Sua metafísica são todas as metafísicas", disse, de
ou infalibilidade: a diferença não é grande... Han Ryner, Louis Pratt.
Nem uma, por si, o satisfaz. E todas reunidas tam-
bém, nem sempre o satisfazem.
Han Ryner Metafisico. E os sonhos metafísicos são poemas "desconcertan-
tes"...
Em Sínteses Supremas — opúsculo que é um poema
Cada metafísica é o sonho de um poeta, é obra in-
(1926), Han Ryner tem o poder da síntese e encanta, e,
dividual.
nem um filosofo, que eu saiba, se colocou nessa atitude
Han Ryner é metafísico pluralista: admira todas as
de sonho e expectativa, em toda a sua obra. E ainda:
metafísicas — sonhos de outros grandes sonhadores, poesia,
estoicismo, positivismo da vontade — em todas as suas
lirismo de outros grandes líricos do infinito e da eterni-
ações, na sua vida cotidiana. dade. . .
Todos tomam partido: ou o sim dogmático, ou o
"Em cada uma dessas maravilhosas e monstruosas es-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 277
276 MARIA LACERDA DE MOURA

pécÍQS, amo a mais de uma maravilhosa, paro espantado e física — depois de um esforço, em aparência vitorioso, foi
admirativo ante mais de um monstro". mais vencido que qualquer outro; construiu mais que uma
"iDestruir a metafísica será preparar novas metafísi- metafísica: fez uma religião.
cas. O homem é um animal metafísico e o roseiral não "Mas, não há fracasso em satisfazer uma das neces-
pára de florir porque as rosas de ontem estão mortas". sidades essenciais do homem; não há derrota em ser poeta.
Não há espaço aqui, para dizer das metafísicas de A derrota está em se emaranhar e se perder por entre nos-
Han Ryner. E que belas páginas as de Sínteses Supre- sas necessidades diversas ou recusar-se a algumas dentre
mas ! elas. Tenho necessidade de alimento e preciso de ar. Um
A sua posição é a do Esteta dos Sonhos nas alturas, não substitue ao outro. Eis o que ignoram aqueles que
" A metafísica não poderia tornar-se ciência, conheci- condenam metafísica ou ciência, os que confundem ciên-
mento positivo. Por que razão não amarei nela o mais cia e metafísica. A derrota no reino jovial das antinomias,
profundo e o mais fugidio, o mais sedutor e o mais deli- é o dogmatismo. Não afirmemos a realidade objetiva de
ciosamef)te desconcertante dos poemas?" nossos sonhos.
"Uma metafísica é obra pessoal, como um poema; "Atenção! Respiro quando como, e minha ciência se
ela procura satisfações pessoais. Impô-la, é loucura sa- mistura de metafísica. Por toda parte onde vivemos, deve
cerdotal ; propô-la, ingenuidade paternal. E' preciso con- penetrar o ar e o cepticismo."
tentar-se em a expor". Não é possível mais simplicidade e maior clareza. E
Para Han Ryner, a escolha de metafísica talvez de- mais beleza...
penda da raça. A sede da unidade "é uma doença semita". E, sendo a metafísica, para Han Ryner, "a arte de
O mundo como um combate — é dos Persas, no Zend- apaziguar as antinomias, a arte de acalmar as nossas
Avesta. , contradições internas", o filósofo não procura demonstrar
"Há metafísicas infinitistas, que têm, como todas as coisa alguma em metafísica. »
outras, sua poesia e suas impossibilidades lógicas. Há ain- "No alegre domínio das antinomias, toda demonstra-
da o pluralismo, poesia e sentido da diversidade." ção me aparece como muito ingénua ou muito hábil. Aqui,
"Como os monismos, — poesias da unidade, — os o louco é aquele que não duvida; porém, aquele que nada
dualismos, — poemas do combate — embriagam-me por deixa transparecer de suas dúvidas é um charlatão."
vezes, não me satisfazem nunca."
Que cada qual dirija para as alturas as bolhas de es-
Conclue provando que ninguém escapa da metafísica.
pumas auri-verdes dos seus sonhos, segundo as próprias
"O próprio Augusto Comte — e entretanto é em nome
possibilidades interiores, e goze com as suas flutuações in-
da sua doutrina que apelamos para a recusa a toda meta-
278 MARIA LACERDA DE MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 279

decisas, transparentes, ondulantes, coloridas e luminosas, A questão económica é o contrapeso do problema


umas seguindo as outras, algumas afastando-se, outras se humano.
desfazendo, de todos os tamanhos e de todas as nuances, dc "O problema económico torna-se tanto mais cerra-
todos os matizes e em todas as direções... do e angustioso quanto maiores são os esforços para o
A metafísica livre de Han Ryner não procura des- desatar diretamente. No dia em que o sorriso despren-
truir as bolhas de espuma de outros sonhos, quando dido dos homens o negligenciasse, em breve se espan-
o sonho é l>elo. Sua metafísica é um poema de harmo- tariam eles ao ver dissipar-se o pesadelo. A fome c
nia, de luz e de beleza. a sede do grande número são criadas pela inquietação
Han Ryner conclue: "Não prego. Exponho sor- que vai dizendo: "Que comeremos nós? Que bebe-
rindo ; conto a mim mesmo, com uma inquietação diver- remos?"
tida, meu último sonho, o mais belo a meus olhos dc "Não é verdade, aliás, que possam amar aos ho-
hoje". mens, aqueles que amam ainda as coisas pelas quais os
"Não digo a ninguém: Adote a minha metafísica. homens se odeiam e se matam. Como espalharei em
Eu diria, antes, a cada um: Experimente ver si não go- torno de mim a felicidade e a serenidade, antes de as
zará um grande prazer, procurando construir uma me- possuir eu mesmo? Como me darei, antes de me
tafísica à sua medida". desembaraçar de minhas cadeias ?.. . "
Desapego aos bens exteriores e domínio próprio —
são as etapas do bom riso ryneriano.
O problema económico. Não sei si Han Ryner chega à conclusão da Lei de
população, da Lei genial de Malthus e ao neo-maltusia-
Sendo Han Ryner contra toda espécie de violência, nismo de Drysdale, por exemplo.
porquqc pensa com Buda: "O ódio não se mata com o Não conheço todas as faces do problema ryneria-
ódio, o ódio só morre com o amor", e sente com Cris- no: as suas obras esgotadas nos privam do seu conví-
to: "Não matarás", e, como a revolução social mais vio mais íntimo no desenrolar do seu sonho dc cava-
sincera é pregada com o fim de estabelecer condições de leiro andante da "vontade de harmonia".
igualdade económica e social, o filósofo lastima a inge-
Pelo Essai sur Han Ryner, de F. Jean-Desthieux, sei
nuidade de uns e a malícia de outros ao se fazerem após-
que o filósofo indica "a obra maravilhosa que podia
tolos de uma causa que só consegue sobrecarregar de so-
realizar um homem de génio".
frimentos a todo o género humano.
"Como romance, O que morre é absolutamente inde-
280 MARIA LACERDA DE MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL

pendente. Como estudo social, é o primeiro fragmento de destaque, a concorrência sob qualquer aspecto — in-
de uma trilogia na qual examino o grande problema telectual, afetiva, esportista ou económica.
"francês": a despopulação. Os cães se mordem e se estraçalham por uma côdea
"O que morre é a aristocracia esgotada. de pão.
"O Suicídio dirá «da maltusiana burguesa. Quando nos sentirmos felizes, mesmo sem água e
"O Grande Esmagado exprimirá o povo atropelado sem pão, mesmo sofrendo, como Epicuro, a mais dolo-
sob as fatalidades humanas". rosa das moléstias e privados de qualquer socorro,
Este terceiro conteria o problema da lei de bronze mesmo injuriados por todos e supliciados, quando sen-
maltusiana? tirmos que a felicidade está dentro de nós e não depen-
O problema da despopulação não interessa exclusi- de de nenhuma circunstancia, de nenhum recurso exte-
vamente à França, aliás. rior, então estaremos bem próximos do Amor e da Sa-
E' o problema humano. E* problema imediato, bedoria.
sempre momentoso. A preocupação de comer e beber mata a felicidade,
Não sei a que conclusão chegaria Han Ryner. Pa- o bem-estar interior. Habituámo-nos a comer em ex-
rece-me que o filósofo não terminou esse projeto, não cesso e a ter excessivo zelo pelas horas das refeições.
executou esse programa, ou ficou em um terço apenas. E' a herança animal das naturezas apegadas ainda a essa
absorvente tendência dos que não encontraram outra
E nem mesmo o primeiro romance me é dado co-
maneira mais alta de se absorverem em preocupações
nhecer : as edições esgotadas, da sua obra é uma das
dc ordem mental.
injustiças imperdoáveis dos privilégios da civilização in-
dustrializada. Mas, procuremos interpretar o jxmsamento E o pão nosso de cada dia cresceu tanto que hoje
ryneriano, pelo que nos é dado conhecer da sua obra tomou as proporções de um transatlântico, de um ar-
genial. ' ranha-céu, ou de uma Fordlândia...
Ora, um osso atirado entre dois cães, entre dois A questão económica não só não tem importância
amigos ou mesmo entre pai e filho, (é o exemplo dc para esse neo-estóico, como até o faz sofrer em vendo
Epicteto): só isso — e isso é tudo! — basta para re- homens e mulheres, todo o género humano se esgade-
conhecermos como longe estamos do Amor e da Sa- Ihar numa concorrência diabólica, armar-se até aos
bedoria. dentes para arrancar do próximo o pão que o vizinho
Esse osso tem tantos nomes quantas são as ambi- leva à boca ou o conforto material ou o luxo absorvente,
ções dos homens: reinos, heranças, mulheres, posições escravizador de exploradores e explorados.
2X2 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 28J

Do miserável que rouba um pedaço de pão para Porque Han Ryner, sem necessidade absoluta de
matar a fome, até às nações patrióticas que decretam a defesa, não consente, a si mesmo, matar até o inseto.
guerra através da "Honra" da sua "diplomacia ultra- E a expressão vegetalismo, para Han Ryner, vai
jada" — tudo é questão económica, é a concorrência além de vegetarismo ou vegetariano: nem ovos, nem
comercial, é o assalto aos mercados, às posições já leite, porque lesamos criminosamente a outros seres.
À galinha, que, obrigada à postura excessiva, pela do-
ocupadas, é a miséria moral e a fraqueza individual do
mesticidade, adquire uma moléstia inflamatória doloro-
que se não basta a si mesmo para o esforço de não ser
sa. Aos bezerros, privando-os da sua alimentação na-
parasita e explorador, para o esforço sagrado da pró-
tural.
pria subsistência — fazendo brotar da terra o alimento
Um homem que leva a sua liberação ética (Han
para satisfazer às necessidades orgânicas.
Ryner tem horror à palavra moral...) tão longe, que
Heróico o que semeia e cultiva a terra, conciente-
vive em uma pequenina habitação mais do que modesta,
mente, não se deixando arrastar pela vida fictícia das
cuja vida é tão simples quanto se possa imaginar, tem
cidades trágicas, em que cada qual é esmagado si se não
o direito de considerar a solução para o problema da
deixa cair por sobre os que se lhe avizinham.
vida — depois de pôr de lado a questão económica.
"Evitar a fome e a sede ou o frio, as privações
" . . . Ou antes, o luxo me fere como um grito, e
que me arrebatam as alegrias de pensar, de sonhar, de o conforto, si êle quer que eu o suporte, deve ser assaz
amar, e que perturbam o meu ritmo natural, isso basta perfeito para que não o note. Aceito, com o mesmo
para que eu permaneça uma flama em ascenção contínua sorriso indiferente, conforto ou simplicidade. O que eu
dc felicidade. Esse resultado, que me iguala a todos os quero é que o meio não tome nenhuma parte de meu
deuses de todos os sonhos, como cu o obtenho barato pensamento, nenhum elemento de minha atenção".
e com medíocres recursos estranhos: um pedaço de Assim fala Han Ryner, pela boca de Orfeu, em
pão, e, no côncavo da minha mão, algumas gotas dágua". O Amor Plural.
Han Ryner desembaraçou-se de todas as necessida- E assim vive, realiza a sua filosofia, a sua liberação
des perfeitamente desnecessárias da civlização, e, pobre, ética esse pensador profundo, homem livre que não faz
e simples, a sua alimentação é vegetaliana: " S ó o ve- literatura nem filosofia... para os outros.
getalismo livra o coração do horror das cumplicidades". Para Han Ryner, não há, portanto, a questão
"Só o vegetalismo dá. depois da liberação nobre, a social no sentido de questão operária, no sentido econó-
liberação fraternal'*. mico, nem êle se preocupa com os ideais revoluciona-
284 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 285

rios — para uma organização social mais equitativa:


Às vezes, quasi sempre, são incapazes (por inca-
há, o problema humano, o problema da liberação ética
pacidade ou covardia) de protestar contra os explora-
individual, o problema do subjetivismo.
dores, contra os vampiros sociais, antes, por vezes,
" A violência revolucionária é inteiramente impoten-
quasi sempre, são cúmplices do parasitismo ocioso,
te para resolver a questão social. A questão social é
pactuam diretamente com a organização social: — mi-
precisamente a supressão de toda violência, de toda
litares (os militares são positivistas, teósofos, pacifis-
autoridade. Não se cura o alcoólico mudando a forma
tas, pregam a fraternidade. . . nada mais incoerente...)
de seu copo." (0 Pensamento dc Tolstoi).
homens do governo, políticos humanitários... sacerdo-
tes piedosos, capitalistas que espirram somas fabulosas
A questão social. para hospitais e creches...
Em sua maravilhosa conferência Os Artífices do Por- O dinheiro da filantropia é roubado aos proletá-
vir, Han Ryner trata do problema humano da maneira rios, aos que produzem. A caridade é revoltante. E'
mais bela, como uma luz imensa que vem das alturas, a espoliação dos miseráveis, revertida miseravelmente,
iluminando tudo numa claridade serena, imperturbável, insuficientemente aos que, lesados, se vêem na contin-
de quem o realizou no fundo de si mesmo, desbordando- gência de estender a mão aos espoliadores.
sc numa dádiva generosa à inquietação dos que bus-
Essa gente sabe olhar para o alto, num voo doce de
cam também realizar-se, com todas as forças de um
sentimentalismo cristão, mas, não vê ou não quer ver
profundo amor a cada ser que povoa o universo hu-
a grande miséria humana cultivada em proveito dos
mano.
corvos do capital, da pátria, da religião e da família —
Mas, essa mansidão, essa não-violência, não é a re- a base da sociedade de castas e privilégios.
signação passiva ou a covardia encoberta na prudência.
E é capaz de tudo para manter os seus privilégios
Não é o comodismo parasitário dos religiosos, de muitos
de casta superior.
maçons da fraternidade humana em discursos "como-
Homens e mulheres burgueses — choram ante um
ventes" nas " L o j a s " . . . Não é a piedade, de muitos
film sentimental, porém, passam pela dor dos oprimi-
r.eo-espiritualistas, decantada em "preces" e minutos de
dos e proletários com a mais fria das indiferenças, e os
"vibração" aos que sofrem: fraternidade, piedade, amor
consideram feitos para o trabalho, o sofrimento e para
das "coisas espirituais" ou dos discursos e conferên-
o seu serviço particular.
cias comoventes, sentimentais, dos bem instalados na
Han Ryner tem a coragem da "suprema resistên-
vida.. . e que, lá fora, exploram o próximo.
cia" : é contra toda tirania, toda opressão, todo govér-
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 287
286 MARIA LACERDA D E MOURA

110, todo despotismo, contra toda espécie de sacerdócio "E, acima de tudo c prudente trazer sempre os
?

— religioso, nacionalista, revolucionário — contra a so- olhos abertos, mesmo quando alguém me dá a mão".
ciedade em suma, a detentora da liberação individual e, A Sabedoria consiste, pois, em ser tão anti-social
consequentemente, o obstáculo cerrado à perfectibilidade quanto possível, que "a sociedade é uma fatalidade...
de cada criatura humana que se não sabe defender contra inevitável como a morte".
o domínio feroz e absorvente da organização social, qual- , " A sabedoria consiste em fazer da ação, do sonho
quer que seja ela. e do pensamento uma harmonia perenemente entrela-
çada".
"Suprema resistência", não-violência, individualis-
A sabedoria consiste em isolar-se na riqueza fe-
mo ético não é resignação passiva: é serenidade imper-
cunda da vida interior, isolar-se de toda a idolatria mo-
turbável, resistência heróica para se não deixar levar
derna, cujos ídolos se disfarçam sob múltiplos aspectos:
pela corrente social: é a crucificação do Cristo, é a
taça de cicuta de Sócrates, é a escravidão do corpo de "Em certos países, o Rei ou o Imperador; em
Epicteto, é o protesto e o sacrifício c a pobreza de outros, não se sabe que fraude denominada Vontade
Gandhi, é a filosofia sentida e vivida de Han Ryner — do Povo.
desertor social, é a corajosa renúncia de Romain Rol- "Por toda parte a Ordem, o Partido Político, a Re-
land, pacifista, resistente à guerra em plena guerra. ligião, a Pátria, a Raça, a Còr. E' preciso não esque-
cer a opinião pública com seus mil nomes, desde o mais
As revoluções mais bem intencionadas, como as enfático, a Honra, até ao mais trivialmente baixo, o
idealizadas por Kropotkine e Réclus — não têm signifi- — Que dirão?"
cação para Han Ryner sinão como belos gestos apos- E todos sabem o poder de cada um desses ídolos
tólicos na hora ingénua de uma grande evolução in- encrustados, fossilizados no inconciente coletivo, culti-
terior. . . vados pela tradição, aumentados, aperfeiçados pela edu-
"O sábio está convencido de que essas palavras "a cação. E como é difícil nos desembaraçarmos dos
felicidade do povo" não têm nenhum sentido. A felici- erros do passado, das "verdades mortas" de que fala
dade é interior e individual; ninguém a pode realizar Ibsen. Como é difícil vivermos sem essas "mentiras
sinão em si mesmo". vitais", cadáveres insepultos que a civilização carrega
"Nosso esforço útil será, quasi sempre, interior e para desculpar os seus crimes bárbaros.
subjetivo. E o mais trivialmente baixo desses ídolos é uma
força fantástica, "detetive moral" enérgico em favor
"E* só minha alma que eu posso iluminar.
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 2X«>
288 MARIA LACERDA D E MOURA

lução para a defesa de uma classe contra outra classe


da família e da sociedade: é preciso coragem heróica,
ou para o apostolado dc uma organização social mais
"suprema resistência" para se desprezar o — "Que po-
equitativa (santa ingenuidade que eu também sonhei!),
deriam dizer?"
deveres sociais limitados ao regime de privilégios, castas
E em todas as ações que visam a coletividade, há
e igrejas.
uma ponta de vaidade. Nos apostolados das reivindi-
Todos esses ídolos se mascaram num delírio de es-
cações sociais — há muito de amor próprio, de orgulho
peranças e promessas com que as raposas sociais e o
e vaidade. Os ingénuos e os puros são muito raros.
apostolado ingénuo, sincero ou malicioso seduzem o re-
A malícia, inconciente talvez, é mais comum, por isso
banho humano.
que os sinceros se tornam até ridículos — tal a infan-
E' a razão por que Han Ryner desconfia sempre
tilidade dos seus sonhos no meio do maquiavelismo
da Lógica, embora ouça, estoicamente, o enunciado das
audaz dos ultra-civilizados.
verdades que não vêm da sua própria conciência:
Han Ryner compara os resultados das revoluções
"Quando alguém crê demonstrar, não lhe deixo ver
sociais com os jardins de Adónis...
que eu sorrio.
São aparentes e provisórios. "Quando alguém quer demonstrar, não lhe confesso
"Os antigos, em certas festas, plantavam, na terra, que desconfio desse alguém".
aj>enas removida, ramos cobertos de folhas, de flores Porque tudo, absolutamente tudo se veste de hipo-
e por vezes de frutos: é o que denominavam os jardins crisia e de astúcia e mentira, dentro da sociedade de
de Adónis. Mas, sabiam bem que os jardins de Adónis prejuízos e convenções e cupidez.
não eram feitos para durar e deles falavam proverbial-
Quando uma expressão nova faz vibrar o coração
mente para designar tudo o que, rapidamente construí-
num sorriso prometedor, a inteligência humana a servi-
do, seria rapidamente destruído".
ço da perversidade social organizada e estabelecida
Está convencido de que todos os revolucionários
para a exploração do homem pelo homem, a inteligên-
são Sísifo.. .
cia humana a serviço da rotina, dos Césares e potenta-
dos, reis do poder e reis do dólar, a inteligência hu-
Man Ryner — Desertor social. mana dos "trapeiros do pensamento" dela se apodera
para mascarar as aparências ao criar novas formas de
Desertor de todos os fetiches sociais e religiosos servidão e parasitismo.
— pátria, nacionalismo, família, moral, violência arma-
Liberdade! Igualdade! Fraternidade! Democra-
da para a defesa de uma nação ou de um povo, revo-
290 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 291

cia! Ordem e Progresso! Direitos do Povo! Sabedo- coisas exteriores e que "a primeira condição de felici-
ria da Nação! — que de ridículo anda pela boca dos dade é o domínio próprio".
sugadores das energias humanas e dos incautos domesti- Também a "força defensiva" dos cínicos traz a ir-
cados ! ritação e o "desprezo agressivo" aos homens, a injúria
As mesmas expressões de que Cristo se serviu para aos que não sobem conosco, à covardia dos que ficam
traduzir o Amor e os mesmos gestos largos do seu em baixo.
devotamento, da sua infinita piedade — servem de más- Despejemo-nos de toda hostilidade pessoal: " A fe-
caras para encobrir a fealdade, a cupidez, os crimes licidade de outrem não pode ser obra de minha vio-
hediondos do Cristianismo com a sua Inquisição feroz, lência".
os seus Autos de Fé, o seu confessionário desprezível "Minha intervenção, ah! como é preciso que seja
e a sua Monita Secreta e o seu celibato hipócrita e a oportuna, prudente e medida para não correr o risco
petulância de se intitularem os sacerdotes — diretores de produzir mal!"
espirituais do rebanho humano e representantes de um Essa intervenção deve ser flexível, inteligente, a
deus caprichoso, entre os homens. que "permitia a La Boetie agonizante o escolher entre
"Foge da prisão Hoje e da prisão Aqui. Mas, não os aspectos da verdade, vagas esperanças de cura, para
te feches em nenhuma pátria de eleição. Tu és a tua dizer à sua mulher, desfeita em pranto, enquanto expu-
única pátria. Considera-te sob o aspecto de eternidade, nha a Montaigne, coração generoso, razões filosóficas
fora de toda época, fora de todo lugar. de se regozijar de uma morte jovem".
"Repele as palavras estranhas. Faze calar as afir- Essa virtude, dispensatio, é a discreção:
mações dos partidos, das religiões positivas e dos livres- " A essa palavra dou novamente o sentido perdido
pensamentos de rebanho. .Tudo isso não é tu mesmo". e talvez um pouco mais: eu a faço significar esse feixe
E' a primeira etapa do bom riso. de claridade, de sorriso e de afetuosa reserva que per-
Cada indivíduo tem o seu caminho e as suas ver- mite ver que quantidade de verdade cada um suportará
dades interiores. e nunca atirar uma carga muito pesada por sobre om-
Temos de nos desfazer de tudo quanto aprendemos bros fracos".
através dos erros seculares e do crime da educação na- Maravilhoso desprendimento de si mesmo!
cionalista e religiosa que faz, de nós, autómatos e fan- E' essa virtude sublime que faz Han Ryner dizer:
tasmas, sombras e manequins do passado reacionário. "Não devo nem impor meu pensamento e seu ritmo,
Depois, aprendamos eme o prazer não pode vir das nem esposar docilmente outro pensamento; que, o que
292 MARIA LACERDA D E MOURA
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 293

c belo e feliz em unia harmonia, destruiria, muitas


cia, encastoados à mentira secular das seitas dogmá-
vezes, a harmonia vizinha".
ticas, feitas expressamente para vacinar o rebanho hu-
E' a virtude que, despida de toda vaidade, evita mano contra a livre expansão das energias latentes de
magoar, evita ferir, evita mesmo a persuasão, o desejo cada indivíduo...
de convencer, a discussão inútil ou a expressão que Para trás, partidos, religiões positivas e reveladas,
deixa o travo do amargor no coração dos outros. tiranias e servilismos, dominismo e autoridade. Para
"Discreção dos estóicos, não serás tu que Jesus trás, civilização do bezerro de ouro. Para trás, moral
praticava quando, renunciando a agitar por sobre os de senhores e escravos. Para trás, sociedade de tartu-
mercadores do Templo um chicote que fere os corpos fos e rufiões, de exploradores e vampiros.
sem mudar as almas, dizia: "Sou doce e humilde de
Doçura, carinho, piedade, amor — para cada indi-
coração" ?
víduo, para cada ser. Piedade para as fraquezas hu-
"Discreção, última expressão da virtude, supremo manas.
sorriso e flor a mais alta do subjetivismo, livrai-me de "Suprema resistência "para todos os ídolos sociais
toda aspereza apostólica e de toda cólera contra os — desde a Familia até à Patria e á Religião.
fracos. Poderia ir muito longe estudando aspectos do vasto
"Arrebatado pela esperança ou pela alegria de au- problema ryneriano.
xiliar aqueles que querem se buscar a si mesmos, pro- Tratarei, em ensaios subsequentes, de cada uma
meto a mim próprio não injuriar aos outros no absurdo das mais belas obras desse "principe dos narradores f i -
propósito de os convencer". losóficos".
Doce e humilde de coração, Han Ryner proclama
heroicamente as suas verdades contra a organização
social, por isso mesmo que é ela a fonte do aniquila-
Psychodore e Athenatime.
mento do indivíduo, ix>r isso mesmo que é a sociedade
a causadora da morte moral da conciência humana. Psychodore, precursor de Zenon de Cittium, cria-
E que coragem nos invade todo o ser para lutar ção de Han Ryner, não é um cínico "ortodoxo". Han
contra as mentiras sociais desfarcadas em ídolos, para Ryner não tem as asperezas de Diógenes e de sua es-
não carregar o peso morto dos prejuízos fossilizados
cola e não é agressivo como os cínicos.
no inconciente coletivo e para dizer bem alto: para
Psychodore <• uni cinico-estóico-nietafísico... Não
trás, ó sacerdotes detentores da liberdade de conciên-
há contradições na sua atitude.
294 MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 295

Han Ryner criou uma personagem filosófica — ao amor, a Jacques Fréhel, à sua companheira de 19
para ser livre, eclético e construir também a sua filoso- anos de vida íntima!
fia, fora de qualquer escola já feita, clássica, e sonhar, Em todas as parálx>las, em todos os mais importan-
livremente, dentro de todas as doutrinas ou fora de tes episódios das Viagens de Psychodore, o filósofo é
todos os princípios. fiel à sua bem-amada; às vezes, vai além da fidelidade
Já vimos que a filosofia de Han Ryner, o seu indi- positiva...
vidualismo da "vontade de harmonia" ou o seu subje- Nunca ninguém prestou mais grandiosa, mais alta
tivismo neo-estóico tem suas raízes em Epicuro, em homenagem à mulher.
Epicteto e no fraternismo doce de Jesus. Athenatime aparece na filosofia de Han Ryner, tão
Psychodore, falando por parábolas, em estilo ver- amada, de tal modo desejada que o filósofo evapora a
dadeiramente ático, pela sobriedade e pela beleza, po- sua forma, para melhor a espiritualizar.
rém, de um aticismo mais leve, mais jovem, parisiense Han Ryner amou verdadeiramente, sabe amar,
por assim dizer, Psychodore não foi arrebatado do seu aprendeu a amar e não envolveu a sua bem-amada em
meio para viver dentro da civilização industrial. nenhuma doutrina, em nenhum culto, em nenhuma re-
Han Ryner o deixa na sua época, ou melhor, Psy- ligião — para não diminuí-la, para não vulgarizá-la
chodore não tem época... para não ridicularizá-la, divinizando-a como a ídolos
Porque, Han Ryner realiza o milagre de viver em em altares...
plena Paris, a vida estóica de um neo-pagão, irmão de Que grande Mulher, que grande concepção do
Sócrates e amigo de Pitágoras, de Epicuro, de Epicteto Amor — para fazer pairar tão alto, acima das encostas
e de Jesus. que encobrem os outros caminhos e chegar aos picos
Han Ryner, filósofo lírico, entrelaçou a sabedoria máximos de onde se divisam os vastos horizontes da
de Psychodore à beleza amorosa de Athenatime. E vida interior, dos problemas humanos!...
todas as viagens do cínico, todos os sonhos do metafí- "Só o Amor arrebata um ser ao rebanho", diz
sico e todo o estoicismo do sábio vão em busca da Han Ryner.
amante arrebatada pela morte. E foi através desse Amor, que Psychodore, na pa-
O filósofo da filosofia do amor e do sorriso, traçou rábola Os sem Olhos, como aliás em tantas outras, pro-
em toda a sua obra-prima o perfil grego de uma mu- curando Athenatime, muito antes de Einstein, desco-
lher à altura de Psychodore. E' a homenagem máxi- briu, pela meditação, as leis da relatividade e a quarta
ma do grande filósofo francês à sua amante, à mulher, dimensão.
2% MARIA LACERDA D E MOURA HAN RYNER E O AMOR PLURAL 297

Muitos são os caminhos... Algumas das suas páginas fazem perder a noção do
Abençoada a intuição dos Artistas. tempo e do espaço.
Einstein, após haver transposto os umbrais das ma- Não sei, nunca saberei dizer o que me vai nalma
temáticas, chegou à metafísica e. quiçá, vai incorporar as ao ler, com o coração e a razão, as páginas desse neo-
leis do Amor a uiji sistema psicológico de gravitação estóico; só sei que sinto um desejo- imenso de o beijar
universal, tal como o concebe Edward Carpenter. na alma — pela bondade com que semeia o Amor e a
Que maravilhoso sistema planetário! Sabedoria.
Han Ryner, partindo da metafísica, descobriu os
Han Ryner paira acima de toda essa filosofia banal
enigmas da relatividade e a quarta dimensão, o resulta-
de pensadores de gabinete, académicos, teóricos ou reli-
do das pesquisas matemáticas de Einstein.
giosos, e atira, muito mais longe, a espiral do seu voo
Einstein foi até ao sistema da vibração ondulató- ondulante, leve, flexível, de Poeta do ritmo harmonioso,
ria e reuniu diversas leis naturais em um mesmo prin-
por entre os espaços interestelares...
cípio.
Quando chegará a integrar o Amor na Ondulação Que nobreza em cada período, que maravilhosa sa-
Universal c descobrir as leis Bi-Cósmicas da Vida?... bedoria em cada frase, que bondade comovedora em seu
estilo ático, que poder de sugestão em sua metafísica
* — que não quer persuadir, que não quer sugestionar,
* * que apenas expõe, amorosamente, um sonho belo de um
belo cavaleiro andante dos sonhos em alturas inacces-
Não imaginava ir tão distante em um simples es- síveis!
boçodessa filosofia do sorriso, dessa "vontade de har- Esse filósofo lírico da "filosofia do sorriso", êssc
monia" — um beijo de luz por sobre as dores do mundo. "Sócrates moderno", esse individualista da "suprema
Pobre humanidade que "organizou" tão mal a vida resistência", que é a não-violência estóica, cuja sabedo-
tão bela, num cenário tão livre! ria abrange a sabedoria do Cristo: "Ama ao próximo
Leio Han Ryner com muita emoção. As suas ver- como a ti mesmo" ; cuja sabedoria vai à sabedoria an-
dades me penetram de tal modo o ser interior que me terior a Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo": cuja filo-
sinto mergulhar no Oceano Cósmico do Amor Univer- sofia é a filosofia de Epicteto: "Sê tu mesmo", — Han
sal e vejo que esse Mestre de Sabedoria e bondade divi- Ryner foi muito alto, porque entrelaçou a fraternidade
sou aquele "segredo aberto", "visto de quasi ninguém"... de Cristo ao subjetivismo de Epicteto e de Sócrates e
298 MARIA LACERDA D E MOURA

ao epicurismo de Epicuro — a que deu maior doçura,


e, quer conhecer-se — "matéria e objeto de ciência"
— para realizar-se — "forma, harmonia e objeto de
Amor". E, à máxima sabedoria do Templo de Delfos,
ao "Conhece-te a ti mesmo", acrescenta a máxima "von-
tade de harmonia: — "para aprenderes a amar".

índice
Trecho de uma carta dc Han Ryner à Autora, que lhe
enviou um esboço incompleto de seu estudo: — Han
Ryner c o Amor Plural 7
Introdução H

1.» PARTE

HAN RYNER E O AMOR PLURAL

A lenda do Paraíso 26
A Psicologia Feminina 30
Duas grandes raças sociais **»
O Drama d c ser dois m
Han Ryner "evapora" o Amor Plural 46
A Fidelidade da alma 47
A Pobreza do Amor Único 53
"Sou o ser incapaz de zelos" 58
Não fazer sofrer 59
Mimetismo: a lealdade amorosa e a doce mentira . . . 62
Quando o Amor morre 68
Amemos ao Amor 7J
Amor Plural ou Comunismo pluralista amoroso? . . . 77
"Prenez-moi tous!" • w
HAN RYNER E O AMOR PLURAL 301
300 MARIA LACERDA D E MOURA
Han Ryner metafísico 274
" A Nova Mulher c a Moral Sexual" 112 O problema económico . . 278
A queda da mulher . . . , 133 A questão social . . . . 284
Um sonho de Hipatia 14J Han Ryner — Desertor social 288
Eros polifálico 148 Psychodore e Athenatime . 293
Revolução pelo Amor c para o Amor 153

2. ' PARTE

UMA V O Z F O I F E I T A PARA FALAR...

A fonte • 161
O dinheiro 170
A toupeira 174
O Povo Cego 179
Os escultores dc montanhas 185
As ortigas (193

3. » PARTE

Q U E CADA QUAL S E R E A L I Z E . . .

Uma guerra dc Religião . . 205


A Geometria cm contenda 219
Os Laboriosos 230

4. - PARTE

HAN R Y N E R — " O SÓCRATES MODERNO"

A consp-ração do silêncio 242


Príncipe dos narradores filosóficos •. . . 245
O Individualismo neo-estóico de Han Ryner 257
Subjetivismo 259
Liberdade c Sabedoria: Rir e Beber 268
Liberdade ou Determinismo 270
Este livro foi composto e impresso
nas oficinas da Empresa Gráfica da
"Revista dos Tribunais" à Rua Xavier
de Toledo. 72, em São Paulo, em
Novembro de 1933.

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