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MELANCOLIA SEM DEUSES

Introdução de James Hillman

Para começar a refletir sobre a melancolia – ou Senhora Melancolia, como


era chamada nos velhos tempos – para pensar, para comentar sobre este
assunto, devemos antes de tudo analisar o que somos, como o mundo hoje
influencia as nossas palavras, um mundo que fala através de nós e
obsessivamente tranca nossas palavras em um estilo decidido, do qual só pode
haver uma única saída: a fuga da própria melancolia.
Porque o nosso modo de viver e pensar é obsessivo, cada um de nós está
sujeito à tirania de uma vida apressada, uma vida de aceleração impiedosa. Os
aparelhos que nos circundam se tornaram os Deuses dos nossos lares: micro-
ondas, computadores, controle remoto, pequenos eletrodomésticos pela cozinha
e os vários instrumentos de comunicação, celulares, fax e correio eletrônico. Até
o armário dos remédios está envolvido em uma luta implacável com a lentidão.
Até mesmo o armário de remédios está engajado em uma luta implacável contra
a lentidão.
A palavra de ordem de cada mensagem de WhatsApp - As soon as
possible - O mais breve possível. Fast food, fast track, fast forward – comida
rápida, estrada rápida, a toda velocidade”. Linguagem abreviada, bip, bip, o
rápido e o expresso. O nosso traje de banho para desfrutar de um mergulho
confortável no mar é um Speedo e os calçados com os quais caminhamos são
calçados para dirigir ou correr. A visão redentora do progresso laico se tornou
uma dependência demoníaca da velocidade tecnológica.
Como escreveu Kundera em seu romance A lentidão: “a velocidade é a
forma de êxtase que a revolução tecnológica deu ao homem”. E como disse
Aldous Huxley no início do século XX, nós modernos não criamos nenhum
pecado novo além dos sete pecados capitais dos velhos tempos, a não ser a
pressa.
E eu mesmo fui transportado até aqui pelas leves asas de metal e pela
queima de combustível das aeronaves a uma alta velocidade para ter uma
conversa com estranhos, por mais cordial que seja. Uma conversa sem
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hesitação, sem interrupção, apressando-me para não superar os limites dos


tempos previstos, e além disso, sobre a melancolia! Que exemplo mais
convincente da nossa época e do seu modelo maniacal! A psiquiatria assumiu a
substância da mania em uma única definição: ‘ausência de profundidade’, o que
também se adapta bem à nossa época.
Portanto, tudo o que dizemos sobre a melancolia, fazemos a partir de uma
posição que se opõe diametralmente a ela, temendo-a, a odeiando, e só
podemos considerá-la uma depressão constritiva. Nossos julgamentos, e até
mesmo as nossas teorias, vão fundamentalmente contra o próprio sujeito da
pesquisa, por meio da atual mania de controlar nossa psique coletiva.
Um pequeno, mas eficaz exemplo desse ódio obsessivo: nos Estados
Unidos, a música matinal transmitida por algumas rádios é programada por um
computador para selecionar e censurar as notas menores, que - como afirma a
definição de "menor", no vocabulário - “tendem a produzir um efeito melancólico”.
Não é surpreendente que as manifestações depressivas representem um
ultraje semelhante à vida frenética e superficial. As características da depressão
forçam a internalização: movimentos abafados, cabeça pesada e olhos baixos;
lentidão na fala; energia escassa; pouca concentração e incapacidade para
tomar decisões e agir; culpabilidade e fixação no passado; vergonha e
sentimento de culpa; doenças físicas persistentes; prisão de ventre e dor de
cabeça; pensamentos de morte, abandono e miséria; pessimismo e medo do
futuro; aversão geral ao mundo circundante e, acima de tudo, um fundo de
tristeza. Aqui está o clima melancólico.
Claro, esse inimigo tenaz não vai embora. A melancolia não foi vencida,
nem expulsa. Ela se escondeu no subsolo, usa uma máscara moderna e carrega
um nome moderno: "depressão". Assim, a nossa medicina e sociologia, bem
como os governos nacionais e as organizações mundiais de saúde, descobriram
que a depressão é a síndrome dos nossos tempos e tem um caráter endêmico
nas populações do mundo ocidental. Pode ser disfarçada, latente, negada, mas
a depressão permanece constante. O pano de fundo do nosso isolamento, o
vazio que tememos, a solidão sombria que imaginamos, nos esperam no final de
nossos dias.
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Uma vez que o contexto obsessivo do nosso debate contrasta com o


nosso tema, não podemos fazer-lhe justiça. Assim como podemos escapar do
Zeitgeist obsessivo, não podemos nem mesmo isolar nossa reflexão dos
diagnósticos patológicos que aprisionaram a melancolia na temida condição
clínica chamada depressão.
Voltaremos a este termo, "depressão", mas primeiro devemos nos deter
um pouco na aceleração, sem passar por ela muito depressa.
O conceito de "aceleração" não pertence apenas à tecnologia física, mas
também se tornou parte da biologia. Refere-se aos processos biológicos, como
menarca prematura e ao crescimento somático. Nas sociedades ocidentais de
hoje, as meninas geralmente atingem a puberdade dois, três e às vezes até cinco
ou mais anos mais cedo do que há cem anos.
O crescimento dos seres humanos se acelerou tanto durante o século XX
que os assentos nos transportes públicos e nos estádios, assim como os leitos,
ficaram maiores. Portanto, não é surpreendente que um desenvolvimento
acelerado na infância contribua para causar distúrbios na atenção, precocidade
sexual e agressividade violenta.
Até o culto à celebridade pertence à síndrome obsessiva: uma síndrome
imediata, fama ou notoriedade em vez do lento acúmulo de fama, ou reputação,
tão preciosa no Renascimento. A fama, outrora território da ética e da verdade,
hoje depende da velocidade. Afinal, por que não? "Celebridade" e "rapidez"
estão relacionadas.
Não obstante a alta velocidade comportar um certo encanto, não podemos
esquecer o seu fundo clássico, que remonta a Hermógenes de Tarso no século
II d.C., cuja Arte da retórica, e em paprticular o capítulo Peri ideon, "sobre as
ideias", destaca a linguagem, o ritmo e o uso da rapidez. Ermogene distingue
entre sete modelos de estilo: gravidade, ethos, clareza, verdade, grandeza e
gorgotes ou celeritas (mais tarde indicados como rapidez e prontidão). No
Renascimento, escritores como Antonio Minturno (1564), Johannes Sturm
(1570) e Giulio Camillo (1530 ca.) contribuíram para uma maior diferenciação
desses estilos.
Quando os sete estilos da retórica foram integrados ao modelo cósmico
básico dos planetas ou sete grandes Deuses, a velocidade foi atribuída a Marte.
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A repidez satisfazia sobretudo a poética da batalha e da batalha amorosa,


imaginada como um confronto esportivo. Uma característica do estilo era o que
chamaríamos de conversa interrompida; palavras e frases curtas, mais
parecidas com nossos slogans e abreviações publicitárias rápidas que dominam
a comunicação de hoje. Em suma, portanto, como a velocidade impulsiona
nossos hábitos obsessivos, então Marte, com sua pressa, fúria e violência
eruptiva e sem as restrições rituais que os antigos romanos colocaram nele, é o
deus na doença mais grave de nossos dias. Sim, a pressa, não a depressão.
De fato, as reações à depressão em situações clínicas mostram uma
longa história de medidas marciais, desde a cadeira giratória até chuveiros
gelados e eletrochoques. Essa abordagem violenta (lê-se "rápida" ou marcial) à
doença crônica da melancolia inclui a famosa impaciência do médico, até mesmo
a raiva, quando confrontado com o desespero implacável do paciente deprimido.

II

Vejamos juntos algumas imagens que irei apresentar sem fazer


comentários de natureza psicológica ou fornecer informações histórico-artísticas.
Meu objetivo é despertar um clima particular nos espectadores, para dispersar
no escuro e no silêncio a maniacalidade que tão facilmente consegue nos
dominar.
Os slides que coletei são de algumas pinturas de grandes artistas como
Matisse, Cézanne, van Gogh, Picasso, Modigliani, bem como de pintores
espanhóis, ingleses e americanos do final do século XIX e início do século XIX.
As imagens mostram mulheres em salas fechadas, sentadas, deitadas, lendo,
esperando, sonhando acordadas em frente à janela, ou cochilando, muitas vezes
com a cabeça inclinada para um lado, apoiada em um braço ou na mão, imersas
em silêncio, deprimidas, imóveis .
Esses quadros mostram a natureza coletiva da depressão, um fio que se
insinua na alma, evidenciado sobretudo no Zeitgeist moderno: a apatia, a
imobilidade, a opressão das mulheres antes da libertação feminista, o status de
objeto da modelo nua diante do olhar criativo do artista idolatrado que a observa,
e a opressão da alma no seio familiar.
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Um estudo das fotografias femininas do final do século XIX e início do


século XX evidencia milhares de exemplos, o que confirma a nossa tese: as
imagens genéricas anunciam uma condição endêmica. A depressão está na
cultura e não pode ser escondida dos olhos do pintor.
Ao atribuir as causas dessas pinturas à sociedade burguesa e a uma
cultura patriarcal, reconhecemos que a depressão está fora do cérebro e do
corpo, fora da psique individual, embora seja expressa pelos indivíduos em seus
corpos.
Se olhássemos as representações da depressão endêmica pintadas mais
recentemente, provavelmente as encontraríamos no corpo do objeto, como nas
pinturas de After leslie left e Sondra went away . Os resíduos espalhados da
pessoa ausente revelam o estado de espírito, como a sala vazia de Edward
Hopper que, apesar da luz intensa e viva, mostra o desespero no espírito de um
lugar. Podemos encontrá-lo nas garrafas de Morandi ou Staël, nas paisagens de
Anselm Kiefer, ou nas pinturas posteriores de Rothko da capela em Houston,
Texas. O modelo não está mais lá, o sujeito não está mais lá, o pintor não está
mais lá: o mundo invisível do hades, que não tinha templos ou altares no mundo
manifesto, sendo o seu reino simplesmente evocado, e ainda profundamente
presente e sobrejacente, o reino pelo qual o próprio Rothko foi tentado e no qual
ele finalmente entrou espontaneamente.
Aliás, gostaria de fazer uma observação sobre as mulheres com a cabeça
apoiada nas mãos, mãos projetadas para sustentar as suas cabeças pesadas.
O gesto tem uma longa história icônica e não pertence apenas às mulheres do
século XIX. É uma pose de metitação, tanto nos retratos fotográficos de Karst
quanto no Pensador de Rodin. É uma pose que também permite que se penetre
profundamente na natureza da melancolia. A mão que se estende no mundo,
que vai e vem, aqui atraída como que por um ímã próximo à cabeça, afastada
do mundo, vai e vem na mente. A mão melancólica agora está se acomodando
e lutando com um mundo interior de pensamentos, preocupações, ansiedades e
memórias. Uma mão ocupada com as imagens mentais.

III
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Como a depressão é endêmica, ela reside na psique coletiva do mundo


que transcende a sua e a minha psique pessoal. Uma psique coletiva é mais do
que a soma total das almas individuais. A "psique coletiva" é o termo moderno
para indicar o espírito do mundo, a anima mundi. Portanto, a depressão
endêmica que permeia o mundo se deve à melancolia, que é um dos quatro
grandes estados de ânimo, semelhante a um dos quatro grandes rios do Éden,
a fonte mítica de todas as coisas, que faz parte de todas as coisas. A depressão
é endêmica porque a melancolia é dada ao mundo como um componente básico,
uma força cósmica.
Enquanto endêmica - isto é, universal, transpessoal, arquetípica - a
melancolia não tem lugar em nossos cérebros, nem pode ser reduzida à
fisiologia, mesmo que nossa suscetibilidade humana em relação a ela esteja
sujeita a ajustes clínicos e químicos. É claro que os antidepressivos, fármacos,
por exemplo, eletrochoque, funcionam para melhorar a depressão, mas não
eliminam a melancolia, porque ela está além de seu alcance.
Podemos ver a melancolia endêmica do mundo em qualquer lugar: na
praia, na mata mais densa, em uma rua deserta ao amanhecer. Os primeiros
psicólogos do gestaltismo, no alvorecer do século XX, deram a guinada radical
de devolver as emoções ao meio ambiente. O mundo lá fora tem um rosto,
muitos rostos. A Gestalt chamou esses rostos de "personagens fisionômicos".
Assim como os famosos narcóticos Wordsworth dançam na brisa com uma
sensação de alegria, outras paisagens sugerem tristeza e melancolia. Essas
emoções não estão na mente em um mundo "morto", mas são oferecidas à
mente por meio das formas que a alma assume no mundo.
Portanto, quando nos sentimos deprimidos, nossos humores - salvo
serem obsessivamente negados - nos levam a lugares de conforto e silêncio,
abandonados, em ambientes conciliatórios, bancos velhos e bares sombrios,
roupas gastas e animais silenciosos: espaços e objetos que compartilham
melancolia e podem proteger-nos. Em muitas poesias japonesas, o caráter de
um ambiente natural expressa o declínio do humor, a tal ponto que os
sentimentos individuais de tristeza e melancolia nem precisam ser expressos.
Espaços e objetos em que a melancolia endêmica do mundo jorra e mostra seu
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espírito, ajudam o indivíduo a carregar seu próprio fardo, em parte para a


comunhão dos estados de espírito, em parte por reconhecer que a tristeza
pertence à realidade, ou por suavizar o egocentrismo obsessivo.
A dor do mundo? O que é isso? Na tradição mística, esse fardo era
carregado por Sophia nas cerimônias dos mistérios de Elêusis de Demeter; em
algumas reflexões do Judaísmo, o mundo está no exílio, caído, os recipientes
estilhaçados, e jaz em um vale de dor até a descida de Sechinah e o advento do
Messias. A tristeza não se origina numa culpa, num pecado e no mal, não é sinal
de algo "errado". Em vez disso, a dor torna possível a compaixão. Abre o
caminho para a aceitação dos sofrimentos intrínsecos do mundo e pela sua
compaixão por nós, suas criaturas. Se o mundo não nos quer aqui, podemos
resistir até mesmo um único dia?
O fato de a melancolia estar mundo, lá onde a depressão está em nós,
torna mais clara a enigmática afirmação alquímica de Michael Meier, segundo a
qual a jornada pelas casas planetárias começa em Saturno (o guia) e termina
em Saturno (o guia). A introspecção psicológica inicia quando de cai pela
primeira vez em depressão, em decorrênia de uma perda, um fracasso ou uma
desilusão amorosa, ou pior, uma prostração interior incompreensível
acompanhada de fantasias mórbidas. Nisso nós somos o guia. E a depressão
atinge seu ponto final apenas graças ao reconhecimento da melancolia
arquetípica na alma do mundo.
O erro fundamental que todos cometemos está no olhar subjetivo de
nossas depressões: minha vida, meu casamento, meu fracasso, minha doença,
minha velhice. O erro está na subjetividade individual. Sentir algo não o torna
automaticamente "meu". Uma depressão que ignora a melancolia do mundo
torna-se uma preocupação totalmente egoísta.
Não se sentir deprimido equivale a não ser um habitante do planeta. Não
sentir melancolia equivale a um distanciamento total da realidade do nosso
tempo e, portanto -, como venho repetindo há anos -, a depressão é uma postura
política, um protesto interior contra a miséria circundante, uma resposta
adequada à destruição patológica em curso no mundo de hoje.
Incontáveis espécies de plantas e animais estão se extinguindo dia após
dia, abandonando este jardim terrestre para sempre, depois que bilhões de anos
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de evolução os levaram à perfeição e este enorme morticínio indica que a


depressão endêmica poderia ser co-reativa ao desaparecimento das espécies e
ao empobrecimento da terra. Até quando compartilharmos o mesmo solo, o
mesmo ar e a biomassa com essas criaturas ameaçadas, bem como a
linguagem, os costumes, os mistérios, as histórias, as memórias e as artes dos
povos indígenas em extinção, todos estaremos em luto. Enquanto a alma do
mundo chora as suas perdas, os níveis coletivos das nossas almas permanecem
em luto.
Além dessas perdas visíveis, há uma perda mais profunda, a perda
implícita nas palavras como "secular", "racional", "humano", "moderno",
"científico": a perda dos deuses, e não apenas a Senhora Melancolia e Saturno.
Mas sobretudo Hades, o deus da perda, o deus que vive no vazio, que anula
todas as construções, que reside no invisível, que nunca é mencionado, mas que
está invisivelmente presente na teoria freudiana da depressão como um
fenômeno de perda e luto.
Como o mundo externo se reflete em nossa depressão, a terapia dessa
condição também pode fazer um apelo ao mundo. Dois exemplos nos bastam.
Certa vez, no Renascimento, a depressão se deparou com métodos leves,
delicados e doces, um tratamento sob a égide de Vênus. Uma dieta leve, feita
com ovos frescos, saladas, carnes macias, uvas: todos os alimentos contendo
humor. Líquidos verdes, brancos e amarelos foram adicionados à água do
banho. E uma vez que a melancolia se enraíza no ar pesado, rançoso e viciado,
uma pessoa poderia escapar da nuvem envolvente de humor colocando flores
no quarto e usando uma poção de cheiro doce, às vezes num pingente no
formato de uma maçã pendurado no pescoço.
Outro hábito envolve o uso de viagens. Os melacólicos ingleses do século
XVIII eram frequentemente enviados ao exterior, especialmente à Itália na
companhia de um terapeuta-tutor-letrado, para visitar o berço da antiguidade,
visitar galerias de pinturas clássicas e passear pelas ruínas. A depressão
individual foi deixada para traz, direcionada para a grandeza do passado, e para
o exterior, para as paisagens melancólicas dos tempos abandonados e das
colunas quebradas. Uma terapia, portanto, em vez, sob a tutela de Júpiter. Ainda
em 1870, o psiquiatra francês Calmeil recomendava visitas a museus.
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O valor desses métodos de tratamento poderia estar mais em sua


capacidade de alimentar uma imaginação faminta, do que na aplicação ao pé da
letra. As imagens de Saturno, de crânios, tumbas, espaços subterrâneos e
catacumbas; as imagens de Vênus, de fluidos coloridos e flores; as imagens dos
textos clássicos da mitologia e da tragédia; os ousados poemas épicos; os
monumentos em ruínas.
Sem as imagens resta-nos apenas a depressão que se descreve na
linguagem deprimida da psicologia clínica, com taxonomias do "reativo",
"neurótico", "endógeno", "paranóico", "enganoso", "bipolar", etc., graus e tipos
de depressão. "A depressão é a ausência do reflexo da alegria", diz uma
definição. "Uma desaceleração geral de todas as funções corporais e psíquicas",
diz outra. "Luto por um objeto perdido", afirma uma terceira.
Na Idade Média, entretanto, as teorias sobre a melancolia emolduraram
várias imagens. A acédia, por exemplo. Essa perturbação afetava sobretudo os
monges, que permaneciam acamados, sem conseguir assar o pão nem trabalhar
nas vinhas, que não se levantavam para orar, oprimidos por um estupor do
espírito. A acédia foi representada com a imagem do cão, do porco ou da cabra.
O cão ossudo que está enrolado na Melancolia de Dürer refere-se àquele cão da
acédia.
Assim, qualquer um de nós que permanece enrolado na própria cama, em
uma introspecção desesperada, mordendo a cauda, ou as caudas, acanhado
pela vergonha, sem pulgas ou piolhos de uma persistente mordida de
escrúpulos, poderia sentir a presença da representação para compartilhar
daquele mesmo estado de humor. A imagem envolve um foco, uma distância,
até mesmo um vislumbre da objeção impessoal. Quem já conviveu com um
familiar deprimido pode perceber a presença daquele porco que exige tanto
espaço, que se apodera do eu dele/dela, que o peso opressor parece encher
cada cômodo, assim como aquela bagunça que leva à sujeira.
Outras imagens, acima de tudo associadas a Saturno, muitas vezes
definido como o "deus da melancolia", eram animais de pele grossa, cores
opacas, movimentos lentos, ou que viviam muito, como elefantes e tartarugas,
os alces solitários dos pântanos e bosques escuros, e o camelo, que
obedientemente carrega seu fardo por um deserto árido e indistinto, bem como
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as corujas e corvos, cujas vozes anunciam uma calamidade. Essas imagens


podem ser abordadas com a imaginação para dar voz aos pensamentos.

IV

Agora chegamos à raiz da depressão endêmica dos nossos tempos. Eu


vou mais longe a ponto de dizer a sua verdadeira causa.
Se por trás de nossa depressão individual está a figura arquetípica, o
humor ou a força cósmica - a melancolia - então nós miramos diretamente, visto
que chegamos ao fim deste milênio, e também ao final desta minha reflexão, ao
por que a melancolia toma forma uma forma depressiva específica. O traço é
dado pelo título desta conferência: Arquipélago Melancólico.
O que são essas ilhas espalhadas? O que as une na imagem de um
arquipélago?
A representação se refere aos diferentes e isolados pontos de vista,
línguas, culturas, profissões - médicas, fisiológicas, sociais, literárias? Ou, em
vez, essa expressão imaginativa revela a natureza da depressão como um
fenômeno de ilhas, no espírito comum do homem capturado pela insularidade?
Estou convencido de que é a concentração nas ilhas, e não a participação
no mar comum, que dá origem à maior parte da nossa infelicidade que a própria
palavra "ilha" conota.
Nenhuma rede ou contacto na Internet, nenhuma relação humana ou
grupo de apoio, e nem mesmo as pontes construídas pelo amor individual e pelos
laços familiares podem curar a lógica básica ou a ontologia da estrutura
monádica contida nas ilhas.
Estamos próximos da conclusão, mas ainda é necessário introduzir uma
distinção lógica que tomamos emprestada da filosofia, pois é uma falha no
gênero dramático trazer à cena um novo personagem no terceiro ato. E estamos
no terceiro ato. No entanto, é importante distinguir logicamente entre
relacionamentos externos e internos. Depressão ou melancolia? Qual dos dois?
Depende de como concebemos a lógica do arquipélago.
As relações entre particulares, como as ilhas, podem ser entendidas como
externas a elas. Um terceiro fator - uma rede, um fio, uma ponte - podem unir
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um ao outro. Como essas relações são também externas, precisam não só ser
estabelecidas e mantidas, como a psicoterapia propõe e ensina, mas
logicamente também exigem um fator autônomo vinculante que cuide da relação
entre a ponte e as ilhas por ela conectadas, ad infinitum. Assim, Heidegger pode
dizer que uma ponte não só une as duas margens de um rio, mas - sendo externa
ao rio - também as separa, cria o isolamento entre as duas margens. A lógica
das relações externas deixa cada ilha ontologicamente separada, distinta e
sozinha. E deprimida.
As relações internas - dizem os filósofos - são aquelas em que as ilhas
pertencem intrinsecamente umas às outras. Elas se envolvem mutuamente, são
codependentes, correlacionadas, tanto que uma não pode ser concebida sem a
outra.
Por exemplo, nas questões humanas, um casamento é mais do que uma
relação externa entre duas pessoas. Na hora do casamento os dois se
relacionam internamente: o conceito de "esposa" implica o de "marido" e vice-
versa. Eles estão unidos pela imersão naquilo que os rodeia: o arquétipo do
sacramento do casamento e não simplesmente a ponte do seu relacionamento.
O casamento formaliza a relação interna do casal, evidenciando suas afinidades
internas e proclamando a impossibilidade de uma separação interna.
Assim, só podemos nos relacionar quando a relação é interna, já dada, a
partir de um terceito pré-existente, uma internalidade a ser compartilhada. De
acordo com essa lógica, os relacionamentos não podem ser estabelecidos, por
mais que se tente. Eles só podem ser descobertos.
“Ouçam de novo - escreve eugenio Montale na sua Carta levantina - quero
revelar-vos o fio que / une as nossas existências longínquas”. Não é o fio da
aranha. Aqui, a prioridade não é o seu salto no espaço, a conexão intrínseca
produzida, externalizada pela distância.
Portanto, com relação ao nosso arquipélago, o que já existe à distância
entre as ilhas, é o mar comum que as acolhe no seu abraço, o mesmo mar que
banha as coisas e que corrói as praias. As nossas individualidades isoladas
estão internamente relacionadas por meio daquele mar. Quando nos retratamos
imersos naquele mar, ou melhor, ressurgidos, o arquipélago torna-se uma
irmandade geográfica e não uma mera dispersão de promotores rochosos, cada
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um com seu próprio farol. E então, a melancolia se torna a base fluida das águas
escuras, uma base contínua que todas as ilhas compartilham, já que nossos
corpos animais são predominantemente compostos por aquele mar.
Este mar, originalmente era chamado de Oceano, com horizontes
infinitos, abismos que engolem e correntes indomáveis; o oceano, theon genesis
(Ilíada, XIV, 201, 304) nas palavras de Homero, gênese dos próprios Deuses,
fundamento de todos os seres vivos, que circunda a terra e envolve a existência
como uma grande serpente, como muitas vezes o Oceano era representado. E
esta serpente, esta criação oceânica da qual um dos riachos é uma corrente
densa, lenta, fria e muito profunda, melancólica, dada com a própria psique,
porque “o Oceano era, como podemos ver hoje - diz o extraordinário filólogo RB
Onians - a psique primitiva ”(Origins of European Thought, p. 249).
Sobre a sua ilha de subjetividade, a alma conhece a melancolia apenas
como um desespero solitário e uma perspectiva desolada. Afastou-se do abraço
encorajador do mar e, portanto, o mar reflete apenas o isolamento da alma na
subjetividade introspectiva, ou seja, a depressão.
Em sua grande ode Dejection, Coleridge lança o olhar sobre todo o
horizonte que se abre diante dele, mas fechado em seu isolamento escreve: "eu
vejo, não ouço". É dele a voz do desejo romântico de reconectar os fios da
existência rompidos pelo isolamento egocêntrico moderno.
Para passar da depressão individual à melancolia universal é preciso
descer dos cumes em direção à praia - direção que de qualquer maneira a
depressão impõe - para ouvir vozes diferentes sobre as nossas ruminações
individuais: minha dor, minha tristeza, eu. T. S. Eliot, no final de seu canto
Prufrock, escreve:

E caminharei na praia,
eu ouvi
eu ouvi as sereias cantando umas para as outras
eu não acho que elas cantarão para mim.

Eu as vi surfando nas ondas da costa


pentear o cabelo branco das ondas repuxadas
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quando o vento aumenta a água preta e branca.

Não, elas não vão cantar para "mim", porque o "eu" é a consciência de
uma ilha.
Até agora, e talvez para sempre, as sereias filhas do Oceano chamam.
Virginia Woolf, deprimida e obcecada pela melancolia - qual das duas? –
entrou caminhando naquele mar, talvez para encontrar a fonte desta melancolia,
para penetrar na profundidade da sua casa.
Se me permitires, vou citar outro poeta, Matthew Arnold. Seu Dower
Beach, é um dos poemas mais poderoso e famoso da língua inglesa, e com ele
vou encerrar minha reflexão.
Ele também está na praia:

Ouça! Ouve o rugido forte


dos seixos que as ondas trazem de volta,
e, voltando, elas se lançam para o outro lado,
elas começam, param e recomeçam
com cadência lenta e trêmula carregam consigo
a eterna nota da tristeza.

Sófocles, há muito tempo


o ouviu no Egeu e em sua mente
levou-lhe o nublado fluxo e refluxo
da miséria humana ...

Assim, Arnold explica as razões da dor humana. Não por causa da “eterna
nota da tristeza” que se une ao mar. Não o próprio mar. Não o Oceano, psique
primitiva, endêmica, coletiva, geradora de Deuses. Mas a perda dos Deuses que
deixam as ilhas altas e áridas, e nos submete a uma melancolia sem Deus.
Nas palavras de Arnold

Uma vez havia também o Mar da Fé


que estava no auge e circundava a terra
como as dobras de um cinto brilhante e ondulado.
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Agora eu ouço apenas


seu estrondo melancólico e longínquo
recuando o respiro
do vento noturno, ao longo das vastas fronteiras sombrias
e seixos nus do mundo

Dover Beach poderia ter terminado com aqueles “seixos escuros e nus,
aquele “rugido melancólico e longo que retrocede”, enquanto os deuses se
retiram.
Mas a última estrofe de Arnold faz uma profecia. Embora tenha sido
escrita em 1866, prevê os efeitos mais devastadores para o mundo dos homens,
tão evidentes hoje, quando os Deuses não são reconhecidos e a Senhora
Melancolia não é venerada.
Arnold escreve:

Ah amor, faça com que um ao outro


sejamos verdadeiros! Por que o mundo parece
estar à frente como uma terra de sonhos
tão variada, tão linda, tão nova
na realidade, não há alegria, nem amor, nem luz
nem certezas, nem paz, nem alívio na dor;
e estamos aqui como em uma área escura
varrida por alarmes confusos de lutas e fugas
onde, à noite, exércitos desavisados colidem

A melancolia sem os Deuses nos deixa: em primeiro lugar, em um


desastre ambiental, na "área escura" de um mundo desolado, e sua beleza é
apenas uma decepção. Em segundo lugar, voltamos a idealizar as relações
humanas - “Ah Amor, faça com que sejamos verdadeiros / um para com o outro!”,
e assim esperamos que o amor humano possa substituir o amor do mundo - e
assim ficamos sempre insatisfeitos e sempre procurando por algo. A última
profecia de Dover Beach afirma - em terceiro lugar - sem a interioridade
moderadora da melancolia, a violência sem sentido, os "exércitos ignorantes" de
Marte não terão mais freios.
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Sim, a depressão pode ser um mal endêmico dos nossos tempos, mas, a
partir disso, as gotas escuras de melancolia podem ser destiladas, gotas essas
que são o alívio de base para curar a própria época. Porque, muitas vezes, os
deuses costumam escolher a melancolia como meio para retornar.

Referências Bibliográficas

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Harcourt brace, New York 1936 (trad. It. Poesie, a cura di R. Sanesi, Mondatori,
Milano, 1974.

R. Klibansky, E. Panovsky, F. Saxl. Saturn and Melancholy, Nelson, London


1964.

E. Montale, Lettera, in Otberrwise: Last and First Poems, trad. Di J. Galassi,


Random House, New York 1984.

R. B. Onians, The Origins of European Thought, Cambridge University Press,


Cambridge 1954.

A. M. \patterson, Hermogenes and the Reinaissance: Seven Ideas of Style,


Princeton University Press, Princeton (NJ) 1970.

F. A. Yates, The Art of memory, Toutledge and Kegan Paul, London 1960.

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