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um ao outro. Como essas relações são também externas, precisam não só ser
estabelecidas e mantidas, como a psicoterapia propõe e ensina, mas
logicamente também exigem um fator autônomo vinculante que cuide da relação
entre a ponte e as ilhas por ela conectadas, ad infinitum. Assim, Heidegger pode
dizer que uma ponte não só une as duas margens de um rio, mas - sendo externa
ao rio - também as separa, cria o isolamento entre as duas margens. A lógica
das relações externas deixa cada ilha ontologicamente separada, distinta e
sozinha. E deprimida.
As relações internas - dizem os filósofos - são aquelas em que as ilhas
pertencem intrinsecamente umas às outras. Elas se envolvem mutuamente, são
codependentes, correlacionadas, tanto que uma não pode ser concebida sem a
outra.
Por exemplo, nas questões humanas, um casamento é mais do que uma
relação externa entre duas pessoas. Na hora do casamento os dois se
relacionam internamente: o conceito de "esposa" implica o de "marido" e vice-
versa. Eles estão unidos pela imersão naquilo que os rodeia: o arquétipo do
sacramento do casamento e não simplesmente a ponte do seu relacionamento.
O casamento formaliza a relação interna do casal, evidenciando suas afinidades
internas e proclamando a impossibilidade de uma separação interna.
Assim, só podemos nos relacionar quando a relação é interna, já dada, a
partir de um terceito pré-existente, uma internalidade a ser compartilhada. De
acordo com essa lógica, os relacionamentos não podem ser estabelecidos, por
mais que se tente. Eles só podem ser descobertos.
“Ouçam de novo - escreve eugenio Montale na sua Carta levantina - quero
revelar-vos o fio que / une as nossas existências longínquas”. Não é o fio da
aranha. Aqui, a prioridade não é o seu salto no espaço, a conexão intrínseca
produzida, externalizada pela distância.
Portanto, com relação ao nosso arquipélago, o que já existe à distância
entre as ilhas, é o mar comum que as acolhe no seu abraço, o mesmo mar que
banha as coisas e que corrói as praias. As nossas individualidades isoladas
estão internamente relacionadas por meio daquele mar. Quando nos retratamos
imersos naquele mar, ou melhor, ressurgidos, o arquipélago torna-se uma
irmandade geográfica e não uma mera dispersão de promotores rochosos, cada
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um com seu próprio farol. E então, a melancolia se torna a base fluida das águas
escuras, uma base contínua que todas as ilhas compartilham, já que nossos
corpos animais são predominantemente compostos por aquele mar.
Este mar, originalmente era chamado de Oceano, com horizontes
infinitos, abismos que engolem e correntes indomáveis; o oceano, theon genesis
(Ilíada, XIV, 201, 304) nas palavras de Homero, gênese dos próprios Deuses,
fundamento de todos os seres vivos, que circunda a terra e envolve a existência
como uma grande serpente, como muitas vezes o Oceano era representado. E
esta serpente, esta criação oceânica da qual um dos riachos é uma corrente
densa, lenta, fria e muito profunda, melancólica, dada com a própria psique,
porque “o Oceano era, como podemos ver hoje - diz o extraordinário filólogo RB
Onians - a psique primitiva ”(Origins of European Thought, p. 249).
Sobre a sua ilha de subjetividade, a alma conhece a melancolia apenas
como um desespero solitário e uma perspectiva desolada. Afastou-se do abraço
encorajador do mar e, portanto, o mar reflete apenas o isolamento da alma na
subjetividade introspectiva, ou seja, a depressão.
Em sua grande ode Dejection, Coleridge lança o olhar sobre todo o
horizonte que se abre diante dele, mas fechado em seu isolamento escreve: "eu
vejo, não ouço". É dele a voz do desejo romântico de reconectar os fios da
existência rompidos pelo isolamento egocêntrico moderno.
Para passar da depressão individual à melancolia universal é preciso
descer dos cumes em direção à praia - direção que de qualquer maneira a
depressão impõe - para ouvir vozes diferentes sobre as nossas ruminações
individuais: minha dor, minha tristeza, eu. T. S. Eliot, no final de seu canto
Prufrock, escreve:
E caminharei na praia,
eu ouvi
eu ouvi as sereias cantando umas para as outras
eu não acho que elas cantarão para mim.
Não, elas não vão cantar para "mim", porque o "eu" é a consciência de
uma ilha.
Até agora, e talvez para sempre, as sereias filhas do Oceano chamam.
Virginia Woolf, deprimida e obcecada pela melancolia - qual das duas? –
entrou caminhando naquele mar, talvez para encontrar a fonte desta melancolia,
para penetrar na profundidade da sua casa.
Se me permitires, vou citar outro poeta, Matthew Arnold. Seu Dower
Beach, é um dos poemas mais poderoso e famoso da língua inglesa, e com ele
vou encerrar minha reflexão.
Ele também está na praia:
Assim, Arnold explica as razões da dor humana. Não por causa da “eterna
nota da tristeza” que se une ao mar. Não o próprio mar. Não o Oceano, psique
primitiva, endêmica, coletiva, geradora de Deuses. Mas a perda dos Deuses que
deixam as ilhas altas e áridas, e nos submete a uma melancolia sem Deus.
Nas palavras de Arnold
Dover Beach poderia ter terminado com aqueles “seixos escuros e nus,
aquele “rugido melancólico e longo que retrocede”, enquanto os deuses se
retiram.
Mas a última estrofe de Arnold faz uma profecia. Embora tenha sido
escrita em 1866, prevê os efeitos mais devastadores para o mundo dos homens,
tão evidentes hoje, quando os Deuses não são reconhecidos e a Senhora
Melancolia não é venerada.
Arnold escreve:
Sim, a depressão pode ser um mal endêmico dos nossos tempos, mas, a
partir disso, as gotas escuras de melancolia podem ser destiladas, gotas essas
que são o alívio de base para curar a própria época. Porque, muitas vezes, os
deuses costumam escolher a melancolia como meio para retornar.
Referências Bibliográficas
F. A. Yates, The Art of memory, Toutledge and Kegan Paul, London 1960.