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Faculdade de Psicologia
São Paulo
Faculdade de Psicologia da PUC/SP
2008
A repetição desta dedicatória não se dá por falta de
criatividade, mas porque o sentido destas palavras jamais foi
alterado.
Muito obrigado.
Resumo
I n t r o d u ç ã o .... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... . 7
E n c o n t r o e I n d i v i d u a ç ã o .. ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 2 1
A P ó s - M o d e r n i d a d e , E u e o s O u t r o s .... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 2 9
M é t o d o ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 3 8
A n á l i s e . ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 4 3
C o n c l u s ã o ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 6 1
C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s . ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 6 5
A p ê n d i c e : C r ô n i c a s C o m p l e t a s ... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 6 7
R e f e r ê n c i a s B i b l i o g r á f i c a s . ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... ..... .... 7 4
Intro du çã o
Se eu tivesse de indicar qual denominador
comum psicológico caracteriza a sociedade atual no
mundo inteiro, não teria dúvida. Alguns povos são
dominadores, outros submissos; alguns são tímidos,
outros agressivos. Há os desorganizados e os
extremamente metódicos. Alguns são laicos e outros
fundamentalistas. Também existem os povos voltados
para a modernidade e outros que são tradicionalistas. No
entanto, todos os povos do mundo estão, hoje,
desorientados.
- Domenico De Masi
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O objetivo desta pesquisa, portanto, é compreender o símbolo do encontro na
pós-modernidade, na perspectiva da Psicologia Analítica.
Para isto, foi realizada uma revisão de literatura em Sociologia para que se
pudesse compreender mais amplamente o conceito de pós-modernidade. Do mesmo
modo, um levantamento bibliográfico dentro da Psicologia Analítica também foi
realizado, procurando desvelar o sentido do encontro para Jung e os pós-junguianos, e
buscando aproximações com a idéia de sociedade pós-moderna. A possibilidade de
articulação entre a Psicologia Analítica e a pós-modernidade trabalhada pela Sociologia
é estudada por Penna (2006), Hauke (2000) e Progoff (1985). Penna (2006) procura
mostrar que o pensamento junguiano é coerente com os pressupostos da pós-
modernidade:
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Bauman (2004) transmite a angústia atual sobre os relacionamentos da
seguinte maneira:
Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma transação comercial não é
a cura para a insônia. (...) A solidão produz insegurança – mas o relacionamento não
parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem
ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade. (p. 30)
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Transformando a preocupação do homem moderno naquela do homem pós-
moderno, e tendo levado esta limitação em consideração, esta pesquisa prossegue
conforme o anunciado, esperando limitar-se à análise do que é pós-moderno apenas
nos relacionamentos, em um material de pesquisa específico, e em uma abordagem
psicológica determinada. Sem escapar ao rigor e lógica necessários à realização de
uma pesquisa acadêmica contemporânea, limitamo-nos à nossa própria vivência de
espaço, tempo e cultura.
Finalmente, é necessário destacar que a partir deste ponto, esta pesquisa evita
utilizar a letra maiúscula para notar qualquer coisa que não se refira a nomes próprios
de seres humanos. Baseado em Hauke (2000, p. 14), pressupõe-se que a letra
maiúscula pode ser facilmente confundida ou tomada como analogia à Verdade ou à
Realidade, o que não faria sentido uma vez posta a ressalva anterior. Portanto,
admitimos que o que existe, nas realidades, são as verdades.
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A s B a s es H i s t ó r i c a s e Ps i c o l ó g i c a s d o
Re l a c i o na m ento
Não falo para nações, mas só para indivíduos,
para poucas pessoas conscientes de que nossas
realidades culturais não caem do céu, mas que, em
última análise, são produzidas por nós, pessoas
individuais. Se as grandes coisas estão mal, isto se deve
exclusivamente ao de os indivíduos estarem mal, de eu
estar mal.
- Carl Gustav Jung
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Whitmont (1991), Hauke (2000) e Fernandes (2001), bem como pesquisadores
contemporâneos da história dos relacionamentos, como Lins (2007).
O Passado da Deusa
O período paleolítico se estende de três mil até dez mil anos antes de cristo.
Segundo Lins (2007), este período foi marcado pelo culto à deusa, no qual uma
entidade feminina divina era adorada em diversas partes do mundo. Mais do que uma
mulher, Lins afirma que “o universo era uma mãe generosa” e “assim como toda vida
nasce dela, retorna a ela, na morte, para renascer” (p. 25). Num trecho como este, a
autora nos mostra historicamente como o conceito de mulher não equivale ao do
princípio feminino, e ainda nos introduz à idéia de tempo contínuo. Esta idéia de
continuidade é citada por Whitmont (1991) como característica da consciência mágica
da organização matriarcal (p. 60), pensamento dominante na idade da pedra,
composta pelos períodos paleolítico e neolítico. A continuidade é um atributo
fundamentalmente feminino, diz Whitmont no mesmo trecho. Ambos os autores
apontam para um feminino pacífico, indesejoso de conquistar e se opor. Quer dizer, o
princípio feminino estabelece-se pela placidez e a eternidade do ser. Lins (2007) relata
que “a ausência de imagens de dominação e guerra reflete uma ordem social em que
homens e mulheres trabalhavam juntos, em parceria igualitária, em prol do bem-
comum” (p. 26) na dominância matriarcal. Fernandes (2001) afirma que o “equilíbrio
de poderes específicos a cada sexo perdurou por todo o período paleolítico” (p. 26)
mas também que “homens e mulheres desenvolveram diferentes aptidões
relacionadas às atividades que realizavam, o que de forma alguma definia um como
superior ao outro” (p. 25).
Os relacionamentos nesta dinâmica prescindiam de uma noção de valor, na
mesma medida em que também não se discriminava o eu do outro claramente. A
separação definitiva entre sujeito e objeto é algo típico do dinamismo patriarcal, como
explica Byington (1987, p. 62), quando afirma que a discriminação é um atributo desta
dinâmica. A indiscriminação significa que a necessidade, o desejo e a vontade do eu e
do outro são as mesmas, já que eles mesmos são um só. Se existe eu e o outro, eles
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são vividos continuamente de forma binária, alternando-se. Segundo Whitmont
(1991), este tipo de organização psíquica ainda existe hoje de forma inconsciente (p.
64). Esta forma de relacionamento se transformou na medida em que a organização
matriarcal do ocidente também entrou num processo de transição para a sociedade
patriarcal.
O período neolítico avança até o ano 3000 a.C., quando se acredita iniciar a
idade de bronze e a chamada antiguidade. Neste período, ocorreu o início da transição
do modelo matriarcal, indicado pela soberania da deusa, para o modelo patriarcal e a
ascensão do masculino. As organizações sociais são regidas pelas atividades da
agricultura e do pastoreio. Lins (2007) discorre sobre o período anterior ao modelo
patriarcal:
A estrutura social pré-patriarcal era igualitária. Apesar da linhagem ter sido traçada por
parte da mãe e as mulheres representarem papéis predominantes na religião e em
todos os aspectos da vida, não há sinais de que a posição do homem fosse de
subordinação. (p. 26).
A Ascensão do Pai
O Esgotamento Moderno
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as idéias da física moderna: vivia-se num mundo mecânico, no qual as ciências eram
aplicadas diretamente à matéria. O futuro derivava exclusivamente do presente, num
modo de pensar mecanicista e causal.
Hauke (2000, p. 242 e p. 243) prossegue afirmando que a ciência materialista
encontrou dois desafios fundamentais ao seu modo de pensar. Primeiramente, o
ocidente foi inundado por correntes filosóficas críticas em relação à realidade
encontrada naquele período, o que se constata pela emergência de autores
renomados como Marx e Engels e Nietzsche. De um outro lado, o avanço da física no
estudo de áreas como o eletromagnetismo e o universo quântico obrigou os
pensadores e cientistas a reverem seus conceitos mecanicistas. A energia, o
eletromagnetismo e a física quântica não eram representados pelo materialismo, mas
por construtos teóricos “constelados pela mente humana, o observador, em busca de
significado e coerência” (p. 242).
A mentalidade dominante nesta época, é claro, também aplicava-se aos
relacionamentos. Um exemplo característico dos relacionamentos desta fase na qual o
imperativo da racionalidade e do mecanicismo operaram são os casamentos
arranjados, para que se pudesse suprir necessidades sociais, políticas e religiosas. A
nova ascensão do que é afeto, amor e intuição nos relacionamentos já é um traço da
pós-modernidade, na qual o relacionamento pode integrar a si outras funções e
qualidades humanas, deixando de simplesmente se subjugar aos interesses
racionalmente estabelecidos da modernidade.
A revolução para o pensamento que vivemos hoje, nesta transição pós-
moderna, origina-se na disseminação destas rupturas de paradigma em toda sociedade
ocidental. O que fora organizado através do dinamismo patriarcal, isto é, fazendo uso
de categorizações objetivas, discriminações precisas, hierarquizações e
estabelecimento do pensamento lógico e racional, começou a se mostrar insuficiente
frente às demandas filosóficas e científicas do homem, que começaram a surgir a
partir do final do século XIX e o início do século XX. O interesse contínuo e crescente na
psicologia, que se constitui como uma ciência com o propósito razoavelmente claro de
se estudar o observador a partir desta época, é um exemplo deste esgotamento.
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Transições
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Encontro e Individuação
A realização consciente da unificação interior é
inseparável da relação humana, que é uma condição
indispensável, pois sem o vínculo com o próximo,
reconhecido e aceito conscientemente, a síntese da
personalidade simplesmente não se faz.
- Carl Gustav Jung
O ser humano não é inteiro. Como no mito de Platão, muitas vezes sentimo-nos
como se tivéssemos sido separados, rasgados de nossa totalidade e arremessados no
mundo incompletos. De fato, não é apenas um sentimento. É averiguável que não
possuímos todas as qualidades humanas que existem, tampouco viemos carregados de
todos os defeitos. Existem aquelas características que não nos pertencem, mas que
existem e podemos encontrá-las em alguém. Da mesma forma, podemos observar no
outro alguns traços ausentes de nossa personalidade.
A noção de que não somos tudo e tampouco somos algo bem definido em um
dado momento mistura-se aos dinamismos matriarcal, patriarcal e de alteridade.
Como visto nos capítulos anteriores, a história recente da humanidade sedimentou o
modo de funcionamento patriarcal no qual um não é outro; existe discriminação.
Ainda possuímos vivências de cunho matriarcal, assim como parece que caminhamos
na direção da alteridade. Isto significa novas maneiras de lidar com o outro, e
portanto, novas maneiras de lidar com a individuação, como mostraremos neste
capítulo.
A psique não se contenta com um ser humano consciente das mesmas coisas
em todas as épocas da vida. Observamos, sentimos e pensamos, descobrimos novas
coisas e novas coisas se agregam a nós ao longo de nossa vida, tanto quanto somos
obrigados a nos despedirmos de outras coisas neste processo. Uma das maiores
transformações em relação a esta expansão da consciência, isto é, desta integração de
novos conteúdos, ocorre no encontro com o outro. É no outro e com o outro que nos
percebemos e percebemos o mundo, e iniciamos este processo de integração.
21
O Curador Ferido
Só quando o médico tiver sido tocado profundamente pela doença, infectado por ela,
mobilizado, amedrontado, comovido; só quando ela tiver transferido para ele,
continuado nele e obtido um referencial em sua própria consciência – só então e só
nessa medida poderá lidar com ela eficazmente. (Jaspers apud Groesbeck, p. 83).
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Ou seja, a compreensão do médico/terapeuta sobre a ferida do outro depende
da sua capacidade em permitir que a doença o toque. Vê-se a necessidade de uma
outra pessoa que configure um relacionamento para que a transformação em alguém
seja efetiva, e ambas as pessoas envolvidas neste relacionamento necessitam estar
mobilizadas neste processo.
O que torna a especificidade deste exemplo de relacionamento tão relevante é
o fato dela demonstrar que o desenvolvimento das partes envolvidas depende da
interação entre elas; ou seja, o relacionamento em si é significativo, e é mais do que a
soma entre suas partes. A entrada de um terceiro fator na dinâmica relacional nos
indica na direção da alteridade, tirando-nos da confortável situação patriarcal de
polaridade eu-outro, analista-analisando e inserindo um terceiro fator que não exclui
os demais e tampouco traz hierarquizações para este relacionamento. Portanto, o
curador ferido torna-se uma imagem que possibilita observarmos o surgimento do
dinamismo da alteridade.
Relacionamento e Transferência
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A realização consciente da unificação interior é inseparável da relação humana, que é
uma condição indispensável, pois sem o vínculo com o próximo, reconhecido e aceito
conscientemente, a síntese da personalidade simplesmente não se faz. (p. 100).
Assim, pois, quem não quiser ser ludibriado por suas próprias ilusões, fará uma
cuidadosa análise de cada fascínio [pelo outro] e dela extrairá a quintessência, ou seja,
um fragmento da própria personalidade; e, paulatinamente, vai descobrindo que, nos
caminhos da vida, nos encontramos incessantemente conosco mesmos, sob mil
disfarces diferentes. Isto é uma verdade que só é proveitosa na medida em que
estivermos animados pela convicção da realidade individual e irredutível do outro.
(p. 180).
Hillman (1995) avança sobre o tema criticando o papel destinado aos nossos
relacionamentos na contemporaneidade. A crítica recai sobre uma espécie de
internalização das emoções e das experiências, objetivada pela psicoterapia atual, que
tem como efeito colateral a cisão entre a experiência vivida e sua posterior
elaboração. Não se criam laços comunitários e os relacionamentos íntimos são
forçosamente intensificados para que a comunidade se torne desnecessária. O autor
fala da importância em haver mais num relacionamento do que simplesmente as
projeções de um sobre o outro, e que um relacionamento constituído apenas destes
conteúdos não parece, de fato, um relacionamento amoroso. Hillman afirma que:
O amor é isto – estético e sensual. E quando estes aspectos não entram em ação, a
outra pessoa vira um pouco um camelo que carrega todo o peso pelo deserto desse
relacionamento – além da própria bagagem, também a do outro. Não admira que os
camelos salivem tanto. (p. 49).
25
Defende-se aí, portanto, que o relacionamento deve conter mais do que
simplesmente a projeção. É característico do amor a superação do carregar o peso do
outro, para a constituição de uma relação diferenciada, nas quais Hillman afirma haver
a noção estética e a sensualidade. Com efeito, se retornarmos à imagem do curador
ferido, vemos que a projeção precisa ser desfeita a fim de que os conteúdos
inconscientes do sujeito possam se aproximar dele mesmo, e seja possível alcançar o
outro em sua individualidade ao invés de nele enxergarmos apenas as nossas questões
(Penna, 2005, p. 167). Isto significa, em última análise, que o dinamismo de alteridade
para o qual parecemos nos encaminhar necessita superar as projeções polarizadas tão
características do funcionamento patriarcal.
Jung (2007) ilustra, em sua obra Psicologia da Transferência, como a união dos
opostos é o cerne da transferência, e portanto dos relacionamentos, porque, segundo
Jung, “a transferência é um fenômeno natural em si, que de modo algum se reproduz
unicamente no consultório médico.” (p. 85). A aproximação dos diferentes e a
integração de novos elementos à consciência é, como já dito, uma parte da
individuação e também parte dos relacionamentos com o outro, com o “tu”. Neste
sentido, o conceito de individuação também se aproxima do conceito de relacionar-se,
de encontrar-se com o outro. A coniunctio oppositorum ocorre não apenas no
ambiente interno do indivíduo, mas também no mundo lá fora, representado
concretamente pela aproximação que se tem com o “tu”. Quando “eu” e “tu” se
aproximam, ocorre o contato com a diferença e o despertar de novas possibilidades de
ser e viver. Resgatando a noção junguiana de inconsciente como tudo o que é
desconhecido, aproximar-nos de um outro desconhecido é aproximar-nos do
inconsciente. E permitir que ele nos toque, tal como o médico deve permitir que a
doença do paciente o toque, também é uma possível integração de conteúdos
inconscientes.
Schwartz-Salant (2000, p. 24) ressalta que a coniunctio é um fenômeno raro,
porém possível e real. Nele estão presentes tanto a sexualidade quanto a
espiritualidade, atribuídos respectivamente ao princípio feminino e masculino por Jung
(2007) de forma extensa em sua obra, fazendo com que a própria coniunctio que
ocorre entre duas pessoas se trate simbolicamente de uma união entre alma e
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espírito, Mãe Terra e Pai Divino. Schwartz-Salant retoma Jung (2007) em discorrer
sobre a libido de parentesco, um instinto constitutivo do homem que pode ser
satisfeito através da coniunctio, fazendo com que o outro adquira traços de parente,
pessoa próxima e íntima, vinculada ao eu como que por laço de sangue. Schwartz-
Salant (2000) afirma que:
A libido de parentesco que Jung considera um instinto vai além da psique individual.
Ela requer mais que o relacionamento entre indivíduos: ela requer comunidade. É
provável que as energias da communitas só possam ser abordadas com segurança e
sanidade quando houver senso de comunidade. Talvez nossos encontros imaginais na
terapia liberem a communitas que engendrará a comunidade que precisamos, a qual
talvez possa por si só nivelar-nos como irmãos e deter a feia onda de busca narcísica
por poder. (p. 33).
27
estabelecimento de polaridades e metas. O pensamento discriminador torna
necessário que possamos ver as polaridades e nos situemos em relação ao que somos
e onde queremos chegar. Contudo, na medida em que os autores conseguem tratar da
questão da polaridade visando à inclusão de mais um sem número de dimensões (ou
pessoas, ou outros, tomando como a base a noção de que a comunidade contém
muito mais do que apenas dois elementos) e a valorização da construção de vínculos
autênticos de comunidade, pode-se aventar a idéia de que tratamos de condições de
um relacionamento pós-moderno, que inclui não somente características do
dinamismo patriarcal e matriarcal, mas também busca a integração do dinamismo da
alteridade na consideração pelos outros e na necessidade de interação e
desenvolvimento conjunto. O eu torna-se nós sem que todos os eus que compomos se
esfacelem, e neste sentido temos um propósito além da discussão polar entre o bem e
o mal, o certo e o errado. Este propósito é a individuação, que sempre ocorre entre
mim e mim mesmo e entre mim e os outros, concomitantemente.
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A Pó s - M o d e r n i d a d e , E u e o s O u t ro s
L’autre me fait exister à tel point que c’est faux
de dire: je pense. On deirait dire: on me pense.
- Arthur Rimbaud
Neste trecho, portanto, Hauke nos aponta para uma relação entre a pós-
modernidade e o surgimento da psicologia, revelando outras duas características
típicas daquilo que é pós-moderno. Primeiramente, ele esclarece que nestes tempos
existe um nível de incerteza nos arredores do eu que não foi experimentado antes em
nenhuma outra época da humanidade. Bauman (2004, p. 30) reforça esta hipótese
como característica não apenas da pós-modernidade, mas dos relacionamentos pós-
modernos:
31
esgotamento nos arremessa de volta ao “colo da mamãe”, no qual buscamos uma
segurança de ser e sentir que dificilmente experimentamos na pós-modernidade sem
que o ser tenha capacidade de sentir, pensar, intuir, perceber e refletir a respeito de si
mesmo. Em outras palavras, para evitar a busca defensiva pelo abrigo materno, resta-
nos apenas que sejamos capazes de nos tornarmos nosso próprio pai e nossa própria
mãe, e consigamos nos sustentar em nossa solidão.
Uma possibilidade de atuação não-criativa na pós-modernidade que ilustra o
retorno a um dinamismo não mais predominante é explicitada por Gergen (1992, p.
202). O autor relata o surgimento do “eu relacional” e da “personalidade pastiche”,
fenômenos nos quais a existência submete-se à relação com o outro. Para Gergen (p.
195), o perigo da personalidade pastiche reside na perda da noção individual do ser, e
portanto no comprometimento do si-mesmo. Como vimos no capítulo anterior, o
estado de fusão e indiscriminação da consciência é característica notória do
dinamismo matriarcal, que aqui é usado defensivamente para esquivar-se da
necessidade de construção de sólidas propostas de ética e moral necessárias para
suportar as incertezas e possibilidades do relacionamento pós-moderno.
Maffesoli (2006), entretanto, aponta as dimensões criativas possíveis nas
especificidades do relacionamento pós-moderno. O sociólogo relata que existe
32
Os obstáculos encontrados pelo desenvolvimento das relações pós-modernas,
contudo, também ocorrem no terreno do dinamismo patriarcal. Neste tipo de
interação defensiva, Bauman (2004, p. 119) exemplifica: “os lares de muitas áreas
urbanas do mundo agora existem para proteger seus habitantes, não para integrar as
pessoas a suas comunidades.” O tipo de função de isolamento através da clara
discriminação do território nos fala de uma dimensão tipicamente patriarcal da
consciência, na qual a defesa atua na discriminação com a finalidade da separação e
proibição, em contrapartida à possibilidade de se erigirem padrões de moral e ética
suficientes para a integração dos indivíduos e comunidades.
O estabelecimento de fronteiras claras da comunidade, argumenta Bauman
(2003, p. 20 e 21), é o solo fértil aonde a identidade moderna nasce. A discriminação
atua de forma criativa quando propulsiona o surgimento da individualidade, o que
pode ocorrer a partir das definições sobre aonde começa o eu e aonde começa o
outro. O processo de identidade, contudo, reage defensivamente para fomentar a
exclusão: comunidades se agrupam por identidade com o objetivo de afirmar quem
não faz parte. É a tentativa da comunidade moderna de reter a segurança perdida na
pós-modernidade, como apontado por Hauke (2000, p. 117) e Bauman (2004, p. 30).
O processo de individuação, contudo, não ocorre de forma linear, no qual o
indivíduo é apenas agraciado com formas melhores e mais adequadas de ver e viver o
mundo. Kast (2007) é categórica quando diz que “é um mito acreditar que a
individuação diz respeito apenas a ganhar; no processo de individuação, você ganha e
você perde.” Sobre este aspecto, Bauman relata que
como os outros pontos de partida sobre o processo civilizador, no que diz respeito aos
valores humanos, a individualização foi uma troca. Os bens trocados no curso da
individualização eram a segurança e a liberdade: a liberdade era oferecida em troca da
segurança. (p. 26).
Foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados que sugeriam uma
situação social que era mais duradoura, mais segura e mais confiável do que o tempo
de uma vida individual. Foi-se a certeza de que “nos veremos outra vez,” de que nos
encontraremos repetidamente e por um longo porvir – e com ela a de que podemos
supor que a sociedade tem uma longa memória e de que o que fazemos aos outros
hoje virá a nos confortar ou perturbar no futuro; de que o que fazemos aos outros tem
significado mais do que episódico, dado que as conseqüências de nossos atos
permanecerão conosco por muito tempo depois do fim aparente do ato –
sobrevivendo nas mentes e feitos de testemunhas que não desaparecerão. (p. 47).
É bom lembrar que o divino é oriundo das realidades quotidianas, que ele se elabora,
pouco a pouco, na partilha dos gestos simples e rotineiros. É nesse sentido que o
habitus, ou o costume, servem para atualizar a dimensão ética de toda a socialidade.
(p. 61).
Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisará
sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado
mútuo; uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos
iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos. (p.
134)
37
M éto d o
A prodigiosa complexidade, sutileza e
polivalência da realidade transcende de longe a
apreensão de qualquer interpretação intelectual;
somente uma abertura empenhada na interação das
muitas perspectivas pode resolver as extraordinárias
questões da Era Pós-moderna.
- Richard Tarnas
A partir deste ponto, esta pesquisa volta-se para sua complicação inicial. Como
revelado por Jung (2000, p. 74) em suas reflexões acerca do homem moderno, o
homem pós-moderno é tanto obrigado a tentar compreender o espírito de sua época
como atazanado por uma miríade de dificuldades oriundas desta mesma característica;
sou limitado, tanto quanto chamado, pela época em que vivo. Tarnas (2001, p. 432)
inspira que olhemos para mais de uma perspectiva para compreender a pós-
modernidade, e esta foi a primeira tentativa empreendida na consecução deste
trabalho.
O primeiro passo na decisão de estudar os relacionamentos foi dado na direção
de compreender a relevância e o papel da relação na vida humana. Neste sentido, uma
revisão de literatura na psicologia analítica foi realizada, culminando no capítulo
Encontro e Individuação. Executando mesmo levantamento bibliográfico pôde-se
chegar a finalização dos capítulos sobre as bases históricas e psicológicas dos
relacionamentos e a pós-modernidade. Nestes, especialmente, buscou-se uma
pluralidade de visões que pudessem agregar conhecimento ao tema escolhido.
Os autores foram escolhidos por dialogar diretamente com a obra de Jung
(Fernandes, 2001, Maffesoli, 2006, Whitmont, 1991) ou tratar em sua obra da relação
entre pós-modernidade e relacionamento de forma central e terem amplo
reconhecimento coletivo (Bauman, 2003 e 2004, Lins, 2007, Maffesoli, 2006, Gergen,
1992). Dado o escopo deste trabalho, escolheu-se privilegiar a perspectiva sociológica
destes autores em detrimento da produção filosófica existente. Esta decisão se
fundamenta no objetivo desta pesquisa, compreender o símbolo do relacionamento
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na sociedade pós-moderna, o que coloca a leitura psicológica das relações em
justaposição às considerações sociológicas já realizadas sobre nossa época.
É importante ressaltar que, para além das relações de causalidade, o método
desta pesquisa é nitidamente junguiano, e portanto também se baseia nos princípios
da finalidade e da sincronicidade para definir todos os critérios relevantes à execução
deste trabalho (Penna, 2003, p. 213).
O estudo dos aspectos coletivos concernentes ao relacionamento também
ganha fundamento teórico na psicologia analítica, na qual o método de pesquisa é
“essencialmente hermenêutico ao visar, em primeiro plano, a compreensão do sentido
da vida humana tanto no âmbito individual quanto no coletivo” (Penna, 2003, p. 183).
A autora prossegue ao afirmar:
É nesta definição que se encontra amparo para afirmar que a crônica, portanto,
versa sobre conteúdos da consciência e do inconsciente – coletivos. Como “poeta do
cotidiano”, o cronista fala sobre o que é visível e o que é invisível, falando em linhas
lógicas e irracionais na mesma medida. O conteúdo transcende o dia-a-dia objetivo,
tornando-se universalizado, isto é, arquetípico.
O escritor português Eça de Queiroz (1867) completa e expande esta definição,
afirmando, de forma poética, que:
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uma descrição meramente informativa dos fatos. Cabe a crônica, por seu papel misto
entre poesia e realidade, tratar do corriqueiro dia-a-dia de forma a desvelar aquilo que
poderia ficar esquecido. Em outras palavras, portanto, a crônica é material literário no
qual pode-se dialogar simbolicamente, já que encerra em si própria conteúdo coletivo
consciente e inconsciente, o que lhe faz material válido e adequado para os fins desta
pesquisa.
As crônicas foram selecionadas por um critério temporal, para que cumprissem
sua função de análise consciente e inconsciente da pós-modernidade. Optou-se pelos
relatos mais recentes possíveis. Afunilou-se também a busca à medida em que se
fizeram necessários selecionar tanto veículos de imprensa de grande circulação quanto
crônicas que relatassem especificamente do tema relacionamento. O último critério
utilizado para que pudessem ser definidas as crônicas a serem analisadas foram as
formas de relacionamento. Optou-se pela variedade na forma, escolhendo-se portanto
crônicas que versassem sobre a dinâmica pai-filho, homem-mulher, amiga-amiga,
grupos/comunidade e relacionamentos que falassem tanto do dinamismo da
alteridade como dos dinamismos patriarcal e matriarcal. Para definir o número de
crônicas analisadas, utilizou-se o critério da saturação, considerando um número ideal
aquele que trouxesse dados suficientes para que o conteúdo destes se repetisse
muitas vezes, provando que não seria possível extrair novo conhecimento deste tipo
de material. Desta forma, empreendeu-se a análise de cinco crônicas.
A análise das crônicas foi realizada à luz da psicologia analítica bem como dos
autores anteriormente citados e lidos a partir desta mesma teoria, buscando uma
multitude de visões que pudesse convergir em uma melhor compreensão do tema,
para a consecução do objetivo desta pesquisa. Buscou-se estabelecer pontos comuns
entre as crônicas e uma análise sistêmica, que pudesse ao mesmo tempo contemplar o
conceito de “conteúdo arquetípico”, ou seja, universal e pertinente ao ser humano, e
também captar traços da modernidade e da pós-modernidade que pudessem dialogar
com as perspectivas sociológicas e psicológicas utilizadas anteriormente neste trabalho
para fundamentar a concepção de história, modernidade, pós-modernidade e suas
relações com a vida e o comportamento humano. Nota-se, neste ponto, que a análise
do discurso das crônicas foi compreendida como dados da consciência coletiva e do
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inconsciente, e os conceitos de modernidade e pós-modernidade foram extraídos dos
autores previamente citados, ressaltando-se Hauke (2000) e Penna (2003).
Finalmente, faz-se necessário relembrar a afinação deste estudo com o método
de pesquisa em psicologia analítica, segundo o qual
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Anális e
O que é a experiência da visão? É o ato de ver,
advento simultâneo do vidente e do visível como
reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que
misteriosamente os sustenta.
- Marilena Chauí
No Brasil, a inclusiva passagem de ano reúne ricos e pobres nas praias para ver os
fogos. Depois do show do ano passado, eu e minha mulher fomos atraídos a um dos
quiosques, onde casais dançavam ao som das marchinhas de uma banda. No quiosque,
onde pedi uma cerveja, o barman recusou meus reais e disse que era uma festa
1
Os trechos de crônicas citados neste capítulo não possuem página de referência, uma vez que todas as crônicas possuem apenas uma
página. Sua referência completa pode ser encontrada no capítulo Referências Bibliográficas apontado no sumário desta pesquisa.
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particular. Mas, em vez de nos excluir, ele nos serviu saideiras sem fim, o que nos
manteve dançando até de madrugada.
45
observado neste texto. A perda do eu na identidade coletiva já fora anteriormente
apontada por Gergen (1992, p. 204) como o fenômeno da personalidade pastiche.
Em última instância, a crônica de Michael Kepp nos mostra como o movimento
do grupo é capaz de mobilizar psiquicamente os indivíduos que o compõe: “um gol de
um time já qualificado para as finais faz uma arquibancada inteira soltar fogos e
tremular bandeiras.” A energia está em movimento e voltada para a ação, tanto
quando mantém o casal “dançando até de madrugada.” O contato social e relacional,
portanto, traz movimento aos indivíduos que permanecem naquela comunidade, ao
mesmo tempo que expõe estas pessoas ao risco e desafio do contágio e massificação.
De qualquer maneira, a experiência levantada pelo autor demonstra uma convivência
possível de diferenças, a qual nos remete diretamente a uma possibilidade de vivência
democrática da individualidade, ainda que em um contexto restrito. A experiência
fundamental do humano relatada por Kepp (2008) se trata de nada menos do que o
encontro, arquetípico como é, todavia em um cenário público e coletivo, com pessoas
não mais íntimas do que aquelas as quais apenas damos um curto “bom dia” em
qualquer elevador de prédio que visitamos apenas uma vez. Como apontou Maffesoli
(2006, p. 60), é esta construção de comunidade que cria um conjunto sólido suficiente
para impulsionar a vida, em contraposição ao encontro a dois, exclusivo, romântico e
privado, típico da história dos relacionamentos modernos e patriarcais.
De Paula (2008) nos oferece alguns traços comuns a Kepp (2008) a respeito
desta movimentação. Discursando sobre as emoções suscitadas em uma simples
caminhada por uma feira livre, este cronista nos coloca que “já havia no ar uma certa
animação que só as feiras livres têm,” afirmando sobre como o espaço público
ocupado pelo relacionamento é provido de animação – anima – alma, do latim. O
autor prossegue:
Aos poucos me dei conta que estava diante de uma das práticas mais antigas que se
conhecem, a do comércio feito na rua, que ainda resiste nestes tempos de shopping
centers e hipermercados. Nada contra as comodidades dos centros de compras onde
se entra e sai de carros que lotam enormes estacionamentos.
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Deparamo-nos aqui com algo novo. O cronista nos fala de uma consciência
histórica, a qual emerge quando ele adentra um ambiente que não é mais
predominante em nossa vivência contemporânea. Poderia se pensar que a organização
de uma típica feira livre brasileira se assemelha com alguns parâmetros do dinamismo
matriarcal: uma multidão dispersa e confusa, gritos que se sobrepõem e nada mais se
ouve, a indiscriminação do todo pulsando certa animação identificada pelo cronista. O
centro de compras bem demarcado, com grandes estacionamentos sinalizados e
placas a todo lado nos dizendo aonde ir para encontrar o que queremos se apresenta
como uma alegoria do dinamismo patriarcal. Por isso, torna-se relevante que a
intuição do autor, seu “dar-se conta de”, tenha habilmente captado que ele vive em
um mundo patriarcalizado no qual existe espaço para um momento de matriarcado.
Em seguida, De Paula (2008) aponta: “mas parece haver algo errado em uma
sociedade em que as pessoas sequer pisam nas calçadas diante dos prédios em que
moram. E que se afastam cada vez mais do que acontece além das guaritas e duplas
grades de seus condomínios.” Neste momento, De Paula nos remete diretamente à
Bauman (2004, p. 119), quando este afirmou que os lares construídos para unir agora
nos servem para proteger. Esta dura crítica à contemporaneidade ecoa no cronista,
que contudo identifica algo fora do lugar. É talvez no olho deste furacão, quer dizer,
espremido entre o dinamismo patriarcal dominante e os poucos levantes do
dinamismo matriarcal apresentados, que possamos enfim apontar para o
funcionamento na alteridade. O encontro do matriarcado com o patriarcado em uma
simples feira livre desperta no indivíduo a consciência de que algo não é o que deveria
ser; ou, talvez, algo precise ser mudado porque simplesmente não funcione mais. Cabe
relembrar que esta foi a mesma intuição tida por Domenico De Masi em nossa
introdução.
O cronista continua, citando “a alegria ruidosa da feira,” e nos diz:
Mas há algo mais nesse ritual de vender e comprar verduras no meio da rua. Existe
nela a beleza que apenas parece simples, mas que na verdade é complexo. Há o
esforço anônimo de alguém que trabalhou a terra, que cuidou das plantas até que elas
se expressassem em forma de frutas suculentas, verduras tenras e ervas perfumadas.
Há o cuidado de quem transportou, comprou e vendeu num entreposto onde o
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feirante, bem de madrugada, foi buscar os ingredientes que agora estão dispostos na
forma de arte mais efêmera: a que se pode perceber num prato de comida de quem
foi à feira pela manhã, ou neste pastel quentinho e saboroso que provo agora (...) mas,
além da massa crocante, da mussarela e do tomate, sinto também um sabor de
gratidão pelo esforço anônimo de tantas pessoas que contribuíram para que eu
pudesse encontrar tudo isso numa simples caminhada matinal e enxergar um pouco
de lirismo e, vá lá, ingenuidade, no cotidiano de uma cidade que não seria a mesma
sem os seus pastéis e suas feiras.
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a ingenuidade para que transcendamos o cenário visível e alcancemos qualquer
desvelamento de consciência. A possibilidade de individuação ocorre na emergência
também do terceiro fator, como colocado por Groesbeck (1975, p. 77). Este fenômeno
se torna ainda mais relevante à medida em que ele ocorre no espaço público, entre
indivíduos, abrindo possibilidades para que o rompimento do compromisso do amor
romântico não nos leve às impossibilidades absolutas do desenvolvimento através do
universo relacional. Ao contrário, vemos a transformação das possibilidades de
individuação; o homem, agora, parece ser chamado a abrir-se aos outros, não mais
apenas ao outro. Se existe possibilidade de desenvolvimento e transformação, esta se
mostra nas crônicas vistas como aquela na qual é necessário estabelecer vínculos e
apropriar-se do espaço da comunidade. O outro romântico, na pós-modernidade,
tornou-se insuficiente.
Finalmente, De Paula (2008) nos dá algumas oposições complementares
àquelas trazidas por Hauke (2000, p. 30), quando este discrimina a modernidade e a
pós-modernidade, e suas diferenças. O cronista nos fala da diferença entre as grades e
os muros e a vida ao livre; o viver comum entre os homens e o viver distante e
separado pelas mesmas grades; o gosto “real” do pastel de feira versus as
possibilidades de alimentação industrializada trazidas por nossa sociedade; e,
finalmente, e talvez mais relevante para este trabalho, o autor nos fala da “arte
efêmera,” do lirismo, da gratidão e do cuidado, introduzindo possibilidades irracionais
e afetivas dentro da dinâmica do relacionamento comunitário. Quando a lei e a
separação, atributos do patriarcado, conseguem conviver com a arte, o lirismo e o
cuidado, entramos no terreno da coniunctio, como afirmado por Jung (2007, p. 51). A
união dos opostos aponta para uma nova forma de compreender e vivenciar o
relacionamento, possibilitando que caminhemos por novos terrenos e agregando ao
indivíduo mais do que aquilo com o que ele era capaz de lidar até ali. Em outras
palavras, esta vivência comunitária do cronista nos revela possibilidades de
individuação.
Entretanto, o cotidiano fantasiado da crônica também delineia para nós aquilo
que se coloca como o desafio de uma consciência que aspira à pós-modernidade. Leão
(2008) escreveu uma crônica que intitulou “questão de escolha,” e sem nenhuma
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outra explicação já diz uma das grandes questões (senão a maior delas) que
atravessam a estrada do pós-moderno. A narração nos fala de duas amigas que se
reencontram após muito tempo sem se ver, e um turbilhão de desejos e anseios são
lançados – uma quer a outra, uma quer sentir e saber da vida da outra. Em seu
primeiro lance pós-moderno, a cronista admite: “a outra ficou com uma certa inveja,
mas sabendo, bem dentro dela, que não teria coragem para fazer a mesma coisa.” A
admissão da inveja e o tecido de sentimentos sombrios ora negados por uma
moralidade conservadora, ora reprimidos pela impossibilidade do eu de lidar com a
questão, é notável. Como visto, a discriminação é um atributo do patriarcado, assim
como a hierarquização. Quando definimos, julgamos e contornamos algo como oposto
a uma outra coisa, também elegemos aquilo que preferimos e descartamos outras
alternativas. Contudo, o ato de descartar, jogar fora ou negar – reprimir – não faz, bem
se sabe, com que aquilo deixe de existir. É do patriarcado a eleição e a repressão. É da
alteridade a convivência dos opostos. Neste sentido, a inveja torna-se notável por
anteceder este comentário: “foi um encontro mágico e já deixaram marcado um
almoço para aquela semana. Ambas chegaras quinze minutos antes da hora, tal a
vontade de se reverem e botar as notícias em dia.” A convivência do desejo e da inveja
nos mostra que, vez ou outra, pisamos na alteridade e na pós-modernidade. Não é
necessário, portanto, negar o tempo todo.
Não fosse essa discriminação apurada de identificar o que é inveja e vontade de
se ver, o “encontro mágico” poderia ser visto como uma remissão a um dinamismo de
relacionamento simbiótico, junto, que impede a própria existência do eu. Mas a
diferenciação está ali, e não funciona no sentido de impedir a magia do encontro, mas
realçá-lo. O desejo transforma a rigidez do patriarcado, porque ele chega quinze
minutos antes – mas ainda utiliza o tempo marcado e cronometrado como referência,
reverenciando então o dinamismo do pai, no qual consegue viver.
Houve muitas noites em claro esperando que ele – o homem da hora – chegasse e
muito choro de madrugada, sozinha, porque ele não apareceu. Mas houve também
verões maravilhosos na Grécia, noites inesquecíveis em Veneza e momentos de
intensa felicidade. Mas um dia ela acordou e se perguntou: “O que é que estou
fazendo aqui?”. Resolveu voltar. E ali estava, aos 50 anos, sem trabalho, sem filhos,
50
sem ter um homem para chamar de meu amor, tendo que começar tudo de novo e
sem se entender muito bem. E quis, logo, saber da história da amiga.
Embalada pelo segundo copo de vinho, a casada se abre e diz que o marido não
precisava ser tão previsível. Ah, como gostaria que um dia ele aparecesse com um
51
brilho diferente nos olhos – fosse de desejo, admiração ou ódio –, um brilho que
significasse alguma vibração. É disso que ela sente falta; só disso, de mais nada.
Neste momento, Leão (2008) arremata: “elas se despedem e cada uma vai para
o seu lado, sem saber, afinal, o que pensar da vida.” E nos revela mais uma
característica fundante do relacionamento de nossa época: aquele que era em outros
tempos um serviço de respostas para o indivíduo, agora se tornou um gerador de
dúvidas. Bauman (2004, p. 30) já havia afirmado que o papel do relacionamento havia
se transformado; outrora aquele que mitigava a insegurança, tornou-se uma fábrica de
medos e histeria. Entretanto, se pudermos nos ater a olhar sob outro ponto de vista
para a mesma frase, provavelmente continuaremos com a sensação de que relacionar-
se, per se, não responde às dúvidas, apenas gera mais questões. E é exatamente no
momento em que levantamos a hipótese do relacionamento ser um capaz gerador de
questões que se pode novamente afirmar que a dinâmica do relacionar-se transcende
e expande. A função do relacionamento se transforma, assim; não se trata de
buscarmos as respostas, mas expandirmos as questões. Afinal, para se conhecer
alguma coisa, ou alguém, é preciso primeiro desconhecê-los.
53
O que quero discutir aqui é a razão por trás da sua escolha, o raciocínio que
determinou a decisão de postergar o cinema com os filhos. Você fez essa opção
porque no fundo sabe que seus filhos o amam. E, porque o amam, eles entenderão.
Sem dúvida, eles ficarão desapontados, mas não para sempre. Afinal, você conseguiu
conciliar a agenda de cada um, só vai demorar mais um pouquinho. Porém, com esse
tipo de raciocínio, você acaba colocando as pessoas que o amam para trás. Justamente
as pessoas que nos amam é que acabamos decepcionando, vítimas dos nossos erros
do dia-a-dia. Que recompensa é essa que dispensamos àqueles que nos amam e que
nos são leais? Por quanto tempo eles continuarão nos amando diante de atitudes
assim?
Eu não tenho a menor dúvida de que você escolheu jogar futebol porque sabe muito
bem que seu chefe não o ama. Muito pelo contrário, ele não está nem aí para você. Ele
pode substituí-lo na hora que quiser, sem um pingo de remorso. Você aceitou jogar
com os colegas para que eles gostem um pouco mais de você. E com os seus filhos,
que já o adoram, você aproveitou para negociar. Eles não vão dizer nada, vão
entender, mas sentirão calados uma punhalada nas costas. A lógica diz que
deveríamos ser leais com as pessoas que nos amam, mas na prática fazemos
justamente o contrário.
Se acha que ninguém o ama ou que não é amado o suficiente, talvez isso ocorra
porque você não tem sido leal com as pessoas a quem ama. Achar que elas serão
sempre compreensivas e razoáveis é seguramente o caminho para o desastre. Seus
filhos acreditarão em você na próxima vez que lhes fizer uma promessa? Eles
aprenderão o significado da palavra lealdade? Seu chefe vai esquecê-lo totalmente um
mês depois de você se aposentar, bem como os seus colegas de trabalho. Os únicos
que jamais vão esquecê-lo são seus filhos, pela sua lealdade ou pelas pequenas
decepções e infidelidades cometidas por você ao longo da vida.
55
fenomenologia própria, nas quais seu tom afetivo e seu código de ética se
desenvolvem concomitantemente. Neste sentido, o relacionamento torna-se uma
proposta viável para a hipótese de Schwartz-Salant (2000, p. 33), para quem a libido de
parentesco é o impulso que pode ajudar com que nos nivelemos como irmãos. É no
encontro da lealdade com o amor que resgatamos a velha situação de que “eu posso
falar mal do meu irmão, mas você não,” capaz de mover o relacionamento para fora
do dinamismo patriarcal e em um caminho que talvez responda mais às necessidades
atuais do que a dinâmica relacional vista anteriormente, na predominância do
patriarcado ou na predominância do matriarcado. Com esta proposição, elevando a
condição fraterna, lançamos o caminho para que um relacionamento gerador de
questões e completo em sua ética e afeto possa, também, trazer algo protetor ao seu
rol de características. É o tecido de comunidade que protege o indivíduo o qual faz
parte dela, embora neste dinamismo não vá impedi-lo de ser o que ele é, já que
também se trata de um funcionamento que expande e transcende.
Além da oposição segurança-liberdade, Kanitz (2008) também repete em seu
texto o tema da escolha. Embora seja uma escolha enviesada, sobre a qual o próprio
autor defende uma das opções em detrimento da outra, o cronista afirma que sempre
se escolhe comparecer ao churrasco com o chefe, contrariando a lógica da lealdade
por ele levantada. Novamente, vê-se o tema da escolha como uma dinâmica de difícil
manuseio, e que evoca naturalmente a questão da segurança: “afinal, é a sua carreira
que poderia estar em jogo. Você bem que podia se tornar mais amigo da turma do
trabalho. Você está inseguro. Aliás, quem não está?”
A insegurança, neste ponto, parece confundir-se com o dinamismo da
alteridade. O eu patriarcal não recebe mais a ordem hierárquica do que deve fazer, e
está inseguro; ele tem que escolher. Entretanto, “a sua carreira está em jogo” denota
claramente que não é uma escolha livre de conseqüências, como qualquer escolha
real. Intimidado pelo risco, “todo mundo escolhe a segunda opção,” segundo o
cronista, decepcionando os filhos e comparecendo ao compromisso de enrijecer as
relações de trabalho. Na medida em que a alteridade significa considerar o outro
inteiro neste funcionamento, o pai dá um passo para trás e retorna ao dinamismo
patriarcal, desconsiderando as necessidades do outro-filho e outros-família em favor
56
de uma relação hierárquica e de algo que pode lhe dar segurança, garantindo sua
carreira. O cronista propõe, entretanto, que este tipo de “marcha ré” para o
dinamismo patriarcal também pode ter conseqüências desastrosas, já não servindo
mais à função de aliviar as angústias daquele pai perante uma escolha. Optando pelo
chefe e decepcionando o filho, o pai terá de lidar com os filhos que não o esquecerão
“pelas pequenas decepções e infidelidades cometidas por você ao longo da vida. ” Esta
conseqüência, logicamente, é desvelada apenas quando o relacionamento constitui
um fenômeno em si, ancorado por uma ética própria e um funcionamento único de
sua vivência afetiva.
O que se torna claro, contudo, é que tanto o dinamismo patriarcal por vezes
mostra-se inapto a responder a algumas demandas contemporâneas, como é
imensamente difícil para o indivíduo permanecer e sustentar-se no dinamismo da
alteridade no qual ele é obrigado a arcar integralmente com as conseqüências de seus
atos. E, também algo inédito, a conseqüência se coloca como fundamentalmente
psicológica: trata-se do amor, da culpa e da relação invisível com o outro e os outros
que serão prejudicados ao satisfazer o chefe em seu churrasco. Trata-se de uma
conseqüência que dialoga com o externo e o interno. Estrutura-se, assim, uma trama
complexa que envolve a temporalidade contínua do passado, presente e futuro não
apenas do eu, mas do outro e dos outros que fazem parte e estão vinculados à vida do
eu. A conseqüência aponta para o futuro e para a finalidade do fazer e do viver, e
vislumbrar e sustentar uma vida que não é finalizada nos anos do eu, mas continua no
tempo e na vivência do outro e dos outros.
Calligaris (2007), em uma crônica sobre as diferenças e o amor na diferença,
versa sobre as possibilidades do amor autêntico embasar-se justamente na presença
de um outro inteiro que precisa ser considerado para construir uma relação
duradoura. O autor é claro ao usar o termo “alteridade” como a possibilidade da
convivência entre opostos em uma relação difícil mas possível. O cronista levanta a
questão do amor romântico desta maneira:
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os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será
que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem
deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso
balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles
passassem os domingos em espantosos churrascos de família?
58
Em oposição a este tipo de funcionamento, Calligaris (2007) aponta o casal
Calvin e Alice, extraído do livro “Sobre Alice,” de Calvin Trillin. O autor afirma que:
O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios
literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial
que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.
Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice":
"Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três
refeições por dia". A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é
extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a
aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a
certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não
precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal.
Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula:
Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do
amor que dura.
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como o eu é diferente, em relação a todos os outros. Se não existe certo ou errado
absoluto, as dores e prazeres trazidos pela dificuldade e a conseqüência da escolha
não pesam mais na amplitude moral ou ética do relacionamento. Contudo, pode se
formar a necessidade de uma ética constituída no viver do relacionamento eu-outro. A
ética é local. O sentimento e o sofrimento são alocados na esfera afetiva do
relacionamento, intimamente entrecruzada com a ética do respeito e da lealdade, que
permitem ver a diferença como “fascinante.” O relacionar-se ocorre levando em
consideração eros e logos, fascinando-se com a diferença, aprendendo os limites
éticos da convivência no próprio conviver, e dispondo-se a abertura para o afeto.
Como apontado pelo próprio cronista, contudo, este modo de ser e viver no mundo é
um desafio à própria neurose do eu patriarcal em estabelecer uma lei geral do
funcionamento do mundo. A “norma universal,” que ironicamente habita apenas no
eu, precisa ser transcendida, o que aponta para um desenvolvimento do eu a priori da
vivência do dinamismo da alteridade nos relacionamentos, embora este mesmo
desenvolvimento também pareça ocorrer concomitantemente à vivência do universo
relacional.
De qualquer maneira, novamente é visto em uma crônica o terceiro fator
conjugado pelo encontro com o outro, o que é material fundante para a individuação.
A necessidade de desenvolver-se a priori lança a hipótese de que os aspectos
introvertidos da individuação, ou aqueles que ocorrem na solidão do ser, tornam-se
tão importantes quanto a extroversão do encontro com o outro, e por vezes parecem
estas duas dimensões fundir-se em um impulso para o desenvolvimento virtualmente
indiferenciável. É apenas sozinho e inteiro que eu encontro o outro e os outros, e
apenas encontrando os outros pareço me dar conta de que sou sozinho e inteiro. O
que estas crônicas revelam, enfim, é a complexidade da vivência no dinamismo da
alteridade, ainda raro, mas apontando para um novo caminho que responda às
demandas pós-modernas não mais completamente satisfeitas pelos dinamismos
anteriores da consciência coletiva.
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Conclusão
Se o que queremos determinar é o ser do
homem, nunca estamos certos de estar mais perto de nós
ao “recolhermo-nos” em nós mesmos, ao caminharmos
para o centro da espiral; freqüentemente, é no âmago do
ser que o ser é errante.
- Gaston Bachelard
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comunidade. Desta forma, os relacionamentos interagem entre si como numa situação
em que, diante da briga com o parceiro romântico de seu relacionamento amoroso,
você vive a possibilidade de recorrer a um amigo para compartilhar a sua experiência.
Se houver o momento no qual este amigo necessitar de ajuda e não puder recorrer a
você, é no universo relacional sólido da comunidade que ele poderá compartilhar a sua
própria angústia com um outro indivíduo, possivelmente um terceiro amigo em
comum. A comunidade é capaz de sustentar o indivíduo na medida em que o indivíduo
é capaz de responsabilizar-se por ela e também sustentá-la. Esta experiência dialética
se torna possível uma vez que se viva concomitantemente a dimensão ética e a
dimensão afetiva do relacionamento, as quais visam à continuidade dos
relacionamentos e, portanto, ao processo de individuação.
Uma segunda adversidade se coloca diante do relacionamento pós-moderno: a
questão da escolha. O relacionamento eu e você e vocês não implica viver tudo e viver
com todos, e um fenômeno com ética própria e forte vinculação exige que se respeite
o compromisso em termos diferentes de uma regulamentação social e coletiva. O
comprometimento não é mais com a sociedade, mas com os indivíduos e a
comunidade. Para tanto, o eu necessita ser capaz de escolher e suportar as
conseqüências de sua escolha, as quais limitarão e definirão também a sua
comunidade e seu espaço no mundo, o que exige ainda uma vivência de
temporalidade contínua entre passado, presente e futuro. Esta dificuldade é ilustrada
em Leão (2008) e Kanitz (2008), nos quais a tomada de decisão provoca a consciência
de que existirá uma conseqüência com aspectos positivos e negativos em relação aos
desejos do eu. A conseqüência, localizada logicamente no presente e no futuro,
demanda do eu a vivência de uma temporalidade integral.
Como apontado por Calligaris (2007) em sua crônica, a inteireza do eu em saber
de si e poder observar o outro como fascinante é uma perspectiva que torna a
alteridade possível. Por causa disso, conclui-se também que é necessário um
desenvolvimento do eu a priori para que ele possa acolher no relacionamento o outro
inteiro, que possui suas próprias necessidades e suas características únicas. Deste
modo, na mesma medida em que relacionar-se é um aspecto extrovertido da
individuação, é necessário que haja um desenvolvimento introvertido do eu, quer
63
dizer, voltado a si mesmo, para que no encontro seja possível vivenciar o outro de
forma igualmente profunda e distinta. Todavia, a questão surgida aqui é considerar a
individuação como um processo único, no qual as dimensões de extroversão e
introversão são vividas concomitantemente. Concorre também a hipótese de que o
relacionar-se pode provocar o desenvolvimento do eu a posteriori em sua solidão,
apontando para os relacionamentos como capazes de iniciar um movimento
introvertido de desenvolvimento. De qualquer modo, não cabe ao relacionamento
mitigar a solidão do indivíduo, mas questioná-la.
Finalmente, afirma-se que, embora possam ter sido observadas vivências do
relacionamento na alteridade, a série de desafios, questões e necessidades de
desenvolvimento do eu para suportar tais vivências aponta para um período no qual a
consciência coletiva ainda inicia sua experiência de alteridade. Contudo, não se trata
aqui de julgar o eu demasiadamente patriarcal para conseguir suportar a alteridade
por muito tempo. Ao contrário, o que pôde ser visto nas crônicas e no material
histórico e sociológico observado é que a alteridade necessita de uma trama relacional
muito mais ampla do que pode ser intuído à primeira vista. Nesta trama, serão a
comunidade e os relacionamentos não-familiares em que o impulso de relacionar-se,
seja princípio de eros ou libido de parentesco, aqueles capazes de prover o subsídio
suficiente para que o eu se sustente em uma ética e um afeto construídos a partir do
encontro autêntico com o outro. Como apontado por Maffesoli (2006, p. 60), os sinais
de que estes grupos se estruturam já estão sendo dados e observados na forma das
“tribos” e na importância da amizade no relacionar-se contemporâneo. Bauman (2003,
p. 134) e Schwartz-Salant (2000, p. 33) identificaram que, na presença de uma
comunidade que apóie indivíduos inteiros, é possível viabilizar uma nova forma de
relacionar-se que abarque com mais sucesso as necessidades do eu contemporâneo.
Em última instância, cabe a ressalva de Calligaris (2007) que, em se tendo um
eu devidamente pronto para esta vivência, é a atitude de fascinação, abertura e
contemplação diante da diferença que possibilitará o vínculo autêntico e posto à
serviço da individuação. Talvez em nenhum outro momento da história, Jung (2007, p.
147) tenha feito tanto sentido: se há um problema com o indivíduo, há um problema
comigo.
64
C o n s i d e ra ç õ es F i n a i s
Numa idéia criadora revivem mil noites de amor
esquecidas que se enchem de amor e altivez.
O retorno à solidão poderia ser prefaciado apenas por Rilke (2008, p. 46), o
poeta do ser sozinho. Esta pesquisa partiu da solidão incompreensível, da angústia
incapacitante do viver solitário, para alcançar o amor pela solidão. Se há algo
provocador na questão do relacionamento, isto tem de ser o entrelaçamento da
solidão e do encontro em momentos transformadores, momentos de individuação,
vividos naqueles poucos segundos em que o tempo significa uma trama contínua no
qual podemos sentir nossa própria intimidade e nosso encontro com o outro.
No momento final, quando não há muito o que dizer, e o barulho inquietante
da vida lá fora se coloca para o ser, estar em seu canto rejuvenesce tanto quanto estar
com o outro. E a partir de mim mesmo, se torna possível ver o outro. O que algumas
crônicas puderam me dizer se trata exatamente disso: diante de toda dificuldade,
existem alguns momentos marcados, e o desejo de estender estes momentos, nos
quais é possível ver o fascínio no outro. É possível viver de forma a considerar o meu e
o seu em um espaço no qual nós não colidimos; nós nos encontramos.
65
Contudo, o desafio que precede e orienta o encontro a todo momento é que
não basta mais o outro romântico. Não somos românticos; somos irmãos. A
fraternidade e a comunidade, termos intercambiáveis nesta acepção, significam que é
necessário admitir toda a fragilidade humana. Em certa ocasião, eu não conseguirei
dar conta de você. E neste momento, é preciso que outros existam. Estes outros,
devidamente aceitos e respeitados por mim, serão o universo relacional de confiança
que assegurarão a mim e a você que, a despeito de nossos limites, o nosso encontro
poderá se manter no tempo. Para isto, é necessário tanto que arquemos com nossa
própria solidão quanto que confiemos que haverá continência para nós no momento
em que arriscarmos acreditar que não estamos sozinhos, ainda que por um instante.
Não existe retorno. Se a alteridade se apresenta para nós na consciência
coletiva, é neste tempo, nesta época, que devemos nos erguer para, juntos, arcarmos
com toda a sua beleza e adversidade. É nesta época que encontramos todos os
paradoxos, e neste momento em que sentimento e intuição invadem, e que a lógica se
liquefaz em um rodamoinho de limitações que apontam que somos, afinal,
demasiadamente humanos. As luzes não iluminam tanto quando decidem apenas
espantar as sombras. Talvez seja a hora de caminhar na penumbra.
Restam questões. Este pesquisador partiu em busca de respostas, e em meio a
insegurança do relacionamento, restaram questões. Mas, na paz da solidão que se
encontra exatamente neste espaço, sabe-se agora que as respostas tardam a vir, e
talvez não virão. Pode-se verificar os mesmos resultados com outros métodos de
pesquisa? O “tribalismo” e outras vivências de grupo e comunidade serão capazes de
efetivamente suprir a angústia que se impõe ao ser pós-moderno daqui em diante?
Como articular os aspectos introvertidos e extrovertidos da individuação, uma vez
percebidos como dialeticamente conjugados na vivência do indivíduo? Existe uma
trama inconsciente relacional, do mesmo modo que ela se apresenta na consciência
coletiva? Como outros modelos de relacionamento, como o profissional, se colocam
diante do descoberto nesta pesquisa? Em que o recente interesse sobre a questão do
feminino contribui para a individuação no relacionamento pós-moderno? Onde
relacionar-se e ser sozinho se encontram? Como... ser... (contigo)... possível...?
Na limitação do homem pós-moderno, imerso em sua solidão, apenas me calo.
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Apên dic e: Crô nicas Completas
Comemorar o quê?
Mic hael Kepp
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Past el de Feira : O que r éstias de ceb ola têm a ver co m
civilização e i mperman ên cia?
Caco de Pa ula
Naquela manhã saí para caminhar tão cedo que, ao passar pela feira, a barraca
de pastel sequer estava montada. Ainda fazia um friozinho nesta cidade cada vez mais
quente e já havia no ar uma certa animação que só as feiras-livres têm. Gente simples
ganhando a vida. O andar gracioso da vendedora de café que trazia garrafas térmicas
em um tabuleiro preso com alças ao seu pescoço parecia uma cena de pintura
renascentista. Réstias de cebola e cachos de banana compunham naturezas-mortas
tridimensionais. A superfície metálica sobre a banca do consertador de panelas refletia
a luz ainda baixa e amarelada do sol. Era possível sentir o perfume das flores sendo
retiradas de um caminhãozinho.
Crescia o rumor das conversas e já se iniciava o pregão: “Vai laranja hoje,
freguesa? Moça bonita não paga, mas também não leva”. O luxuoso brilho vermelho
dos tomates sendo dispostos sobre a banca. Aos poucos me dei conta de que estava
diante de uma das práticas mais antigas que se conhecem, a do comércio feito na rua,
que ainda resiste nestes tempos de shopping centers e hipermercados. Nada contra as
comodidades dos centros de compras onde se entra e sai de carros que lotam enormes
estacionamentos.
Mas parece haver algo de errado com uma sociedade em que as pessoas
sequer pisam nas calçadas diante dos prédios em que moram. E que se afastam cada
vez mais do que acontece além das guaritas e duplas grades de seus condomínios.
Parece que isso nos afasta também da noção mais essencial de cidade, de civilização,
de coexistência em um espaço público.
Por isso, a alegria multicolorida e ruidosa da feira parece nos lembrar que há,
sim, uma possibilidade de vida em comum ao ar livre, ainda que as últimas manchetes
sobre a violência insistam em nos dizer o contrário. Mas há algo mais nesse ritual de
vender e comprar verduras no meio da rua. Existe nela a beleza do que apenas parece
simples, mas que na verdade é complexo. Há o esforço anônimo de alguém que
trabalhou a terra, que cuidou das plantas até que elas se expressassem em forma de
frutas suculentas, verduras tenras e ervas perfumadas.
Há o cuidado de quem transportou, comprou e vendeu num entreposto onde o
feirante, bem de madrugada, foi buscar os ingredientes que agora estão dispostos na
forma de arte mais efêmera: a que se pode perceber num prato de comida preparado
por quem foi à feira pela manhã, ou neste pastel quentinho e saboroso que provo
agora, enquanto mentalmente tomo algumas notas para escrever estas linhas. Na
tabuleta da barraca na feira está escrito que o pastel tem sabor de pizza. E tem
mesmo.
Mas, além da massa crocante, da mussarela e do tomate, sinto também um
sabor de gratidão pelo esforço anônimo de tantas pessoas que contribuíram para que
eu pudesse encontrar tudo isso numa simples caminhada matinal e enxergar um
pouco de lirismo e, vá lá, ingenuidade, no cotidiano de uma cidade que não seria a
mesma sem os seus pastéis e suas feiras.
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Amor e Lealdade
Ste phe n Kan itz
Seu filho e sua filha de 12 anos mostram enorme interesse em assistir ao filme
baseado em um livro que eles estão lendo na escola. Você descobre que o lançamento
será daqui a quatro sábados e promete que vai levá-los já na pré-estréia. Será uma
tarde muito especial, só vocês. Você ganhou pontos como pai, fez um golaço e tanto.
Melhor ainda, agora eles serão os primeiros a contar para os colegas de escola como o
filme se desenrola, serão o centro da roda e heróis por um dia, graças a você. E eles
começam a sonhar com o grande dia. Três semanas se passam e na quinta-feira
anterior à pré-estréia seus colegas de trabalho o convidam para um jogo de futebol
seguido de churrasco. Seu chefe vai estar lá, jogando com a turma. Um amigo se
prontifica a buscá-lo às 10 horas do sábado. Você aceita sem pestanejar. Ser convidado
para jogar com o chefe é muito importante para a sua carreira, que por sinal não anda
muito bem. Seria uma boa oportunidade para fazer média. Você nem se lembrou do
compromisso anterior com os filhos.
No sábado, às 10 horas em ponto, seu amigo está à porta, quando seu filho,
absolutamente estarrecido, lhe pergunta: "Pai, você esqueceu o nosso filme?".
O que você faz numa situação dessas?
1. Você diz que não irá ao futebol. Pede mil desculpas ao amigo, diz que não
poderá jogar conforme o prometido, pede que ele explique o ocorrido ao seu chefe, e
fim de papo.
2. Você pede mil desculpas aos seus filhos, explica a situação, diz que o chefe
vai estar lá, que você os levará no sábado que vem, com direito a pipoca em dobro. E
tudo se resolverá a contento, sem prejuízo de ninguém.
Qual das duas opções você escolhe? Se respondeu que é a primeira, lamento
dizer que você está mentindo. Todo mundo escolhe a segunda opção. Afinal, é sua
carreira que poderia estar em jogo. Você bem que podia se tornar mais amigo da
turma do trabalho, você está inseguro. Aliás, quem não está?
O que quero discutir aqui é a razão por trás da sua escolha, o raciocínio que
determinou a decisão de postergar o cinema com os filhos. Você fez essa opção
porque no fundo sabe que seus filhos o amam. E, porque o amam, eles entenderão.
Sem dúvida, eles ficarão desapontados, mas não para sempre. Afinal, você conseguiu
conciliar a agenda de cada um, só vai demorar mais um pouquinho.
Porém, com esse tipo de raciocínio, você acaba colocando as pessoas que o
amam para trás. Justamente as pessoas que nos amam é que acabamos
decepcionando, vítimas dos nossos erros do dia-a-dia. Que recompensa é essa que
dispensamos àqueles que nos amam e que nos são leais? Por quanto tempo eles
continuarão nos amando diante de atitudes assim?
Eu não tenho a menor dúvida de que você escolheu jogar futebol porque sabe
muito bem que seu chefe não o ama. Muito pelo contrário, ele não está nem aí para
você. Ele pode substituí-lo na hora que quiser, sem um pingo de remorso. Você aceitou
jogar com os colegas para que eles gostem um pouco mais de você. E com os seus
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filhos, que já o adoram, você aproveitou para negociar. Eles não vão dizer nada, vão
entender, mas sentirão calados uma punhalada nas costas. A lógica diz que
deveríamos ser leais com as pessoas que nos amam, mas na prática fazemos
justamente o contrário.
Se acha que ninguém o ama ou que não é amado o suficiente, talvez isso ocorra
porque você não tem sido leal com as pessoas a quem ama. Achar que elas serão
sempre compreensivas e razoáveis é seguramente o caminho para o desastre. Seus
filhos acreditarão em você na próxima vez que lhes fizer uma promessa? Eles
aprenderão o significado da palavra lealdade?
Seu chefe vai esquecê-lo totalmente um mês depois de você se aposentar, bem
como os seus colegas de trabalho. Os únicos que jamais vão esquecê-lo são seus filhos,
pela sua lealdade ou pelas pequenas decepções e infidelidades cometidas por você ao
longo da vida.
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Questão d e Escolha
Danuza Leão
Até os 30, eram amigas inseparáveis. Saíam, viajavam e aprontavam sempre
juntas. Até que uma delas se apaixonou por um estrangeiro meio aventureiro e sumiu
no mundo com ele. A outra ficou com uma certa inveja, mas sabendo, bem dentro
dela, que não teria coragem para fazer a mesma coisa. Continuou sua vida, casou com
um homem que lhe dava paz e nunca mais teve notícias da amiga tão querida.
Vinte anos se passaram e, um dia, as duas se cruzaram num restaurante. Foi um
encontro mágico e já deixaram marcado um almoço para aquela semana. Ambas
chegaram 15 minutos antes da hora, tal a vontade de se reverem e de botar as notícias
em dia. A que havia ganho o mundo contou que a grande paixão tinha durado
pouco mais de um ano, mas, como estava em Paris, cidade que adorava, procurou um
trabalho, mesmo modesto, com salário apertado, para poder ficar. Foi pulando de
paixão em paixão, nas férias viajava de trem para outros países – viagens econômicas –
e assim conheceu grande parte da Europa. Houve muitas noites em claro esperando
que ele – o homem da hora – chegasse e muito choro de madrugada, sozinha, porque
ele não apareceu. Mas houve também verões maravilhosos na Grécia, noites
inesquecíveis em Veneza e momentos de intensa felicidade. Mas um dia ela acordou e
se perguntou: “O que é que estou fazendo aqui?”. Resolveu voltar. E ali estava, aos 50
anos, sem trabalho, sem filhos, sem ter um homem para chamar de meu amor, tendo
que começar tudo de novo e sem se entender muito bem. E quis, logo, saber da
história da amiga.
A outra havia se casado, tinha dois filhos já grandes e uma vida confortável,
tranqüila, sem muitas novidades. Mas era feliz, isso é o que importava.Não tinha do
que se queixar: o marido é um bom pai, não reclama de nada, chega sempre na hora e
todo ano, no dia do aniversário de casamento, data que ele nunca esquece, vão jantar
fora – e da última vez terminaram a noite num motel. Mas algumas bobagens a
irritam. Quando, por exemplo, nos fins de semana, ele veste invariavelmente uma
bermuda, camiseta, põe nos pés aquela sandália – aquela – e fica vendo futebol na
televisão, seja que jogo for. Nesses longos anos de casamento nunca se sentiu atraída
por outro homem, a não ser em pensamento, claro. Mas nunca o traiu, pois sente nele
uma firmeza reconfortante. Toda vez que ele volta de uma viagem e ela vai esperá-lo
no aeroporto, seu coração bate mais forte e pensa, na porta do desembarque: “E se
ele não chegar?”, só que ele sempre chega. O bem maior desse casamento, segundo
ela, é que entre os dois existe um grande respeito.
Embalada pelo segundo copo de vinho, a casada se abre e diz que o marido não
precisava ser tão previsível. Ah, como gostaria que um dia ele aparecesse com um
brilho diferente nos olhos – fosse de desejo, admiração ou ódio –, um brilho que
significasse alguma vibração. É disso que ela sente falta; só disso, de mais nada.
A solteira, que passou todos esses anos só com esse “isso”, pensa que gostaria
de ter uma casa, um marido, uma certa paz. Será que foi louca e jogou a vida fora? Já a
outra fica pensando que está há 20 anos com o mesmo homem, não conheceu nada
do mundo e acha que talvez devesse ter tido mais coragem de se aventurar antes de
entrar num casamento tão sólido. Será que foi louca e jogou a vida fora? Elas se
despedem e cada uma vai para o seu lado, sem saber, afinal, o que pensar da vida.
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O Segredo de Uma Vida de Casal
Contar do C alligaris
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qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma
espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel.
Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser
diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa.
Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele
pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão
estranho quanto o de Alice.
Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura
fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá,
de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa
neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal.
Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula:
Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do
amor que dura.
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Refe rê n c i a s B i b l i o g rá f i c a s