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Junguiana

v.38-1, p.183-196

Ritos de passagem e dinâmicas de consciência

Maria Zelia de Alvarenga*

Resumo Palavras-chave
O texto se ocupa em descrever os sete prin- secas da natureza. Como consequência da su- Ritos de
cipais ritos de passagem ocorridos com os seres peração desses momentos heroicos, adquire-se Passagem,
humanos, concomitantemente às sete difer- conhecimentos que são incorporados à psique, As Sete
Dinâmicas de
entes transformações de padrões de consciên- a par de desejos desconhecidos mobilizarem
Consciência,
cia nominados como: Urobórica, da Grande Mãe, comportamentos para a ultrapassagem dos ob-
Morte e
do Deus Pai, do Encontro ou Coniunctio, da Co- stáculos. Os ritos de passagem são precedidos Renascimento.
municação, da Antevisão do Futuro e finalmente da vivência de morte e sucedidos pelo novo tem-
da Totalidade. Os ritos de passagem explicitam po de Vida. ■
momentos de superação-transgressões às inter-
dições, com os quais o ser humano atinge novos
tempos de vida, e suas respectivas dinâmicas
de consciência, decorrentes de demandas intrín-

* Médica (FMUSP), psiquiatra (AMB), analista junguiana pela


Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e afiliada à
IAAP (International Association for Analytical Psychology). Tem
os seguintes livros publicados: Mitologia simbólica (em colab-
oração); O Graal: Arthur e seus cavaleiros (em português e
inglês – Editora Karnac); Édipo, um herói sem proteção divina;
Ulisses o herói da astúcia (em colaboração com Sylvia Bapti-
sta), Por que os deuses castigam? (todos editados pela Casa
do Psicólogo); Os deuses castigam? (Publicação particular);
Anima/Animus de todos os tempos (em colaboração). Fun-
dadora do Centro de Estudos Boitatá. e-mail:<mza@boitata.
org>/<mzalvarenga@gmail.com>

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Ritos de passagem e dinâmicas de consciência

1. Introdução dial, arquetípica, estando presente independen-


Muitos são os ritos de passagem, em fun- temente da deliberação consciente de caráter
ção dos quais nos forjamos, marcando momen- reflexivo. Mesmo porque, desde a mais tenra
tos de superação-transgressões às interdições, idade, a criança precisa da presença e da inte-
com o que atualizamos novos tempos de vida, ração com as figuras continentes. A demanda
novas dinâmicas de consciência, decorrentes por relacionar-se é integrante da natureza da
de demandas intrínsecas da natureza. Mas para criatura, demanda essa que tem especificidade
o novo tempo de Vida acontecer haveremos de para transformar as criaturas em seres huma-
“morrer” simbolicamente. nos. Assim, se essa demanda não se atualizar, a
Como consequência da superação desses criatura (ser humano) não se faz suficientemente
momentos heroicos, adquirimos e incorpora- humana, tornando-se, ao longo da vida, alguém
com conflitos em todas as relações por conta
mos conhecimentos que até então não tínhamos
de suas carências de humanização. Ao longo da
competência para exercê-los, mas para os quais
vida a criatura irá experimentar incontáveis pa-
tínhamos demandas por atualizá-los. Ao mesmo
drões de relacionamentos que agregarão novos
tempo, desejos desconhecidos entram em cena
referenciais às vivencias humanizantes, como
mobilizando novos comportamentos, em função
condições saudáveis ou patológicas, em decor-
dos quais ultrapassamos os obstáculos.
rência dos traumas vividos nas fases da mais
Importante lembrar que toda e qualquer vi-
primeva infância.
vência de abandono, de bullying ou tudo quanto
configura abuso físico e/ou psíquico permean-
2. O campo interacional das vivências
do principalmente as dinâmicas primordiais de
humanizantes
consciência, pertinentes aos respectivos ritos de
Até algumas décadas atrás e mesmo hoje,
passagem, aceleram a emergência por alcançar
nas pequenas cidades do interior, as pessoas
as dinâmicas de consciência subsequentes. En-
da mesma família, representadas por mãe, pai,
tretanto, a urgência por se assumir essas novas
avós, tios, primos e agregados, como vizinhos,
responsabilidades que se apresentam por impo-
compunham um campo interacional de vivên-
sição, e nunca por escolha ou deliberação, não
cias humanizantes no interior do qual a criança
se consuma por completo, pois não há como a
crescia acolhida como membro da “grande fa-
estruturação suficiente da psique se fazer para mília”. As crianças encontravam, desde a mais
suportar os desafios emergentes. O indivíduo tenra idade, um campo interacional de vivências
segue como que eternamente sobrecarregado, humanizantes, composto por muitos rostos de
onerado por encargos que considera estafantes crianças, adolescentes, adultos, idosos. A crian-
e, aparentemente sem um motivo plausível ou, ça nunca era filho único, mas sempre tinha mui-
num momento outro qualquer, quadros expres- tos avós, tias e tios, primos etc. As “vilas” onde
sos por patologias físicas e/ou psíquicas emer- cresciam configuravam continentes de vivência
gem e regressões expressivas se apresentam, humanizantes, mas, algumas vezes também de
reconfigurando momentos passados em que os abusos.
ritos de passagem anteriores foram ativados pre- Assim, esse campo interacional, como toda e
cocemente. qualquer realidade humana, podia ser continen-
A demanda para o relacionamento é uma te das mais terríveis perversões, como são os re-
inerência da natureza, é uma realidade primor- latos que encontramos em nossos consultórios.

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Ao longo dos anos e das décadas esse campo ciência de si mesma, não se sabe, o terror de ser
interacional foi se fragmentando. À medida que abandonada não é propriamente de abandono,
as cidades cresciam e se tornavam verticais, os mas sim o medo de deixar de ser, ou a condição
núcleos familiares foram se reduzindo, chegan- de se perder da possibilidade do vir a ser.
do a ponto de não mais sabermos sequer o nome Quer me parecer que o fulcro da grande maio-
de nossos vizinhos de porta. O campo interacio- ria dos quadros de incertezas, de inseguranças,
nal de vivências humanizantes foi empobrecen- de transtornos de pânico, decorre dessas carên-
do e, sincronicamente, quer me parecer, os qua- cias de cuidados mais primários que concorrem
dros de transtorno de pânico, ansiedade, vida para o estabelecimento da condição de tornar-se
sem sentido, aumentaram significativamente! humana.
Assim, podemos inferir sobre a existência de Todos os seres se tornam cada vez mais hu-
vivências inter-relacionais profundamente nega- manos quanto maiores forem as experiências
tivas, estabelecidas entre a criança e o campo vividas, estruturadas em diferentes padrões de
no qual estão inseridas, por conta desse campo relacionamentos. Porém a estruturação de todos
estar cada vez mais restrito, mas, mais que tudo, os padrões subsequentes estabelecidos com as
os campos estão empobrecidos de energia con- diferentes situações com as quais os seres se
tinente. As crianças, precocemente são cuidadas deparam ao longo da vida somente é sustentada
por figuras substitutas que forjam feridas que se a mais primeva das vivências tiver sido sufi-
não cicatrizam e que dificilmente serão repara- cientemente continente para estruturar embasa-
das ao longo da vida e de processos de análise. mento para que as que ocorrerão a posteriori.
Quando a criança se sente apartada da rela- A estruturação da condição de humanizar-se,
ção (abandonada aos cuidados de outros), é in- decorrente dos incontáveis “casamentos” hu-
vadida por uma emoção atroz de medo, uma vez manizadores, depende de como os primórdios
que ainda não se estruturou minimamente como foram estruturados. Carências decorrentes des-
ser humano, ainda não se sabe! O corpo está for- sas vivencias primordiais possivelmente irão
mado, mas a condição de como é sentir-se ou sa- comprometer a estruturação de novos padrões
ber-se como ser humano ainda não lhe confere relacionais (“casamentos”) com os irmãos, com
segurança para se sentir contida em si mesma, colegas e/ou amigos, com os vários parceiros
ou seja, sem o risco de desvanecer-se ou per- sejam de conjugalidade, de trabalho, de socie-
der-se de si mesma. E esta forja ocorre precoce- dades etc.
mente. Faltando algo que depende totalmente Assim, se a criatura não tiver uma saudável
da relação com a mãe/pai e do campo interacio- estruturação de primeira infância dificilmente
nal humanizante extremamente empobrecido, a vai casar-se com um homem, ou com uma mu-
criança, ao se vir apartada do outro que lhe con- lher, mas, provavelmente, irá se casar com um
fere humanidade, vive a situação povoada por “pai” ou uma “mãe”.
um medo apavorante. Quando o pai e/ou a mãe Por outro lado, conhecemos relatos sobre
se afastam a vivência primordial da criança sen- criaturas que, sob vivências de grande sofri-
tir-se contida, sentir-se envelopada, envolvida mento causadas por morbidades de extrema
pelo continente do “útero reconfigurado”1 redun- gravidade, criaturas essas que, parecem, vieram
da numa realidade em que ela (criança) deixa para pouco tempo estar conosco quando então,
de ser ou de existir, como se se perdesse de si transcendendo os ritos de passagem naturais,
mesma. Ainda não é, ainda não estruturou cons- atualizam competências pertinentes a dinâmi-
1
É meu entender que, pelo fato de os seres chamados hu- cas de consciência inauditas. Essas vivencias,
manos nascerem absolutamente imaturos, o colo traduzido plenas de antevisão de futuro, concorrem para
pelos “braços maternos” que envolvem o nascituro, por meses
e meses, configura um útero reconfigurado. que tanto a dinâmica do Encontro como a dinâ-

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mica da Comunicação e as demais sejam exerci- Ao se fundirem, a grandiosidade do des-


das com a plenitude de alguém incorporado pela conhecido se apresenta; uma sabedoria inau-
presença da divindade. dita acontece quando o um e o outro abdicam
da própria identidade para se tornarem o uno
3. Ritos de passagem e dinâmicas de e somente assim a sabedoria da Natureza se
consciência atualiza. E, ao se fazerem uno, se dividem em
Os ritos de passagem fundamentais são sete dois, depois em quatro, oito, 16 e assim suces-
assim como o são as dinâmicas de consciência. sivamente até que parte desta mórula, ou seja,
Todos os ritos têm um caráter dramático, povoa- parte deste agregado de células, supostamente
dos sempre pelas vivências de vida, morte e re- idênticas, uma vez que decorrem de uma única
nascimento e expressam a condição de que sem célula primordial – instância essa cuja regência
o morrer não há como o nascer para a totalidade desconhecemos – que “determina” que parte
plena. Os ritos de passagem: dessa mórula formará o saco amniótico, dentro
• São precedidos pela morte e sucedidos do qual o futuro embrião se desenvolverá, e se
pelo novo tempo de Vida; forjará a placenta para alimentar o futuro ser em
• Para realizá-los haverá perdas e enfren- gestação.
tamentos dos desafios; As demais células se compõem imagetica-
• Para cada rito vivido, novos padrões de mente como um corpo urobórico, com o que,
consciência se atualizam; cada grupamento celular, de per si, dará origem
• Todo rito implica sair da singularidade aos incontáveis componentes do futuro ser huma-
específica para viver a conquista de no- no: boca e anus se separam, a uroboros se abre,
vos padrões relacionais; se alonga, a protuberância da cabeça emerge, a
• É da ingerência da natureza abdicar da coluna se forja, os apêndices, braços e pernas,
conformidade de uma dinâmica de cons- despontam e todos os órgãos acontecem.
ciência, optar pelo desafio de um novo Ao final de 10 semanas, o embrião estará ab-
rito de passagem e partir para a aquisi- solutamente completo. Nas próximas 30 sema-
ção de um novo padrão de consciência, nas, dando continuidade a esse processo feno-
sem que os anteriores padrões de cons- menal, no qual transformações ímpares ocorrem,
ciência deixem de estar presentes em to- fazendo a vida acontecer, um novo ser se forja,
dos os seres humanos; único como nenhum outro. Passa a se chamar
• Todo rito de passagem demanda respon- feto. E, finalmente, após um período total de 38
sabilidade pelas mudanças conquistadas; a 40 semanas estará pronto para nascer, apesar
• Sempre podem anunciar a antevisão de de, diferentemente dos demais mamíferos não
um futuro diferente do provável. primatas, sem autonomia para locomover-se ou
buscar alimento.
O primeiro rito de passagem ocorre na con- A dinâmica de consciência que permeia esse
cepção da nova vida. Configura a primeira vi- tempo de vida denomino-o como Dinâmica Uro-
vência de morte e renascimento. Eis que um bórica sob a regência da divindade Natureza.
espermatozoide e um óvulo se congregam e se O primeiro rito de passagem, tanto quanto a
fundem. Ambos abdicam da individualidade primeira dinâmica de consciência, se traduzem
para que a vida aconteça. Simbolicamente, am- e se ocupam com a origem e a manutenção da
bos morrem para forjarem um ovo ou zigoto, ou Vida!
seja, o protótipo do novo ser. Morte é necessá-
ria para fazer Vida. A coniunctio de dois origina Estando o feto pronto, apto para seu próxi-
o Uno. mo desafio, haverá de submeter-se, simbólica e

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literalmente, ao seu segundo rito de passagem nal intrauterino com os primeiros ritos fenomê-
e, como tal, por nova vivência de morte. Atraves- nicos do processo de hominização. O nascituro,
sar o conduto vaginal, e após dar nascimento à por conta da postura bípede das humanas (que
cabeça, a escápula se contorce, o tórax passa a tiveram tanto a largura do quadril como do túnel
ser “massageado para acordar os pulmões”, os por onde se forma o conduto vaginal diminuí-
batimentos cardíacos se aceleram, emerge o ab- dos, bem como das transformações ativadas,
dômen... O segundo rito de passagem acontece decorrentes do processo de deambulação e da
como o nascer para a luz. postura ereta), nasce absolutamente imaturo
Até algumas décadas atrás, o nascimento para a própria sobrevivência. Assim, os primei-
ocorria mais natural e necessariamente por via ros anos de vida extrauterina configuram o que
baixa, com o que o feto precisava atravessar o há de mais fundamental para a estruturação de
estreito canal vaginal, por onde coubesse sua uma criatura saudavelmente humana. Nesses
cabeça e para que a escápula, certamente mais primeiros tempos de vida, o útero se reinventa
larga, atravessasse esse conduto, necessitava nos braços que envolvem o recém-nato, a par
de malabarismos intensos, seguidos por um tó- da placenta se fazer representada simbolica-
rax com suas costelas que também se retorciam mente pelo seio que alimenta, mobilizando as
e se massageavam, e assim os pulmões serem demandas mais primordiais de sobrevivência.
ativados, cumprindo sua função de sobrevida, O nascituro é instado a acolher o seio e o movi-
qual seja, respirar. Após o segundo rito de pas- mento oral de sugar atualiza-se de imediato. A
sagem, a criaturinha vive o colo protetor sob a par dessa condição, tanto no sentido fisiológico
tutela da segunda dinâmica de consciência que quanto psicológico, a interação dos olhares, de-
denomino como do Feminino ou da Deusa Mãe, correntes das faces recíprocas que se encontram
amplamente estudada pela Psicologia Analítica – mãe (ou substituta) e criança –, constroem-se
sob a denominação de Matriarcal. os primeiros estágios da relação vinculante que
Esta dinâmica retrata a instauração do en- gera humanização, forja evidente da certeza de
contro eu-outro, sem consciência reflexiva, por estar sendo cuidado com diké e aidós, ou seja,
parte do nascituro, de “quem é o Eu e quem é o com justiça e adequação e recebendo do cuida-
Outro”. Todavia, à medida que os vários Outros dor(a) o que ele(a) tem de melhor, com o que a
se diversificam o Eu se estrutura, a relação deixa emergência do vínculo concreto se faz.
de ser de exclusividade, mas sempre na interde- Esses cuidados são fundamentais para a for-
pendência com um Outro. Na dinâmica da Deusa ja da inerência humanizante da criatura, ou seja,
Mãe, a Vida é sempre soberana. nascemos como criaturas e estruturamos nossa
O nascituro se desenvolve natural e simboli- condição humana na interação decorrente dos
camente no colo da mãe/pai, sendo alimentado, cuidados do útero reinventado pelas mãos/colo
aconchegado, acarinhado, atualiza a linguagem, da mãe/pai/cuidadores!
bem como competência para andar sobre somen- O útero reinventado, bem como todos os cui-
te duas patas, liberando as mãos que com seus dados desse tempo de dinâmica da Grande Mãe,
movimentos concorrerão para que múltiplos es- configura estrutura de limite físico-emocional en-
tímulos cerebrais aconteçam, continuamente se tre as figuras continentes e a criança, e vive um
vendo refletido nos olhos e faces de suas figuras continente limitante de caráter físico e que tem
protetoras. A dinâmica de consciência presente fundamentalmente a finalidade protetora para a
é a do Feminino ou da Grande Mãe, sob a regên- integridade física. O limite físico é imposto pe-
cia do arquétipo da Deusa Mãe. las figuras humanizantes. Na dinâmica seguinte
A vivência do colo protetor traduz a concomi- haverá de viver a condição de ter e de subme-
tância da complementação do tempo gestacio- ter-se a um limite verbal-psíquico-emocional tão

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imperiosamente necessário para a estruturação necessariamente impositivas, bem como im-
saudável da personalidade. O limite também é prescindíveis à estruturação de relacionamentos
imposto, mas é verbalizado e estabelece a assi- assimétricos.
metria do poder ao qual a criança aprende a se O pior de todos os medos, e talvez, neste
render. É meu entender que as sete dinâmicas momento de vida, quando se vive o terceiro rito
de consciência, presentes desde todo sempre na de passagem e os prenúncios da consciência re-
natureza do ser, se atualizam concomitantemen- flexiva emergem, o medo da solidão, da perda,
te, porém com diferentes padrões e de diferentes do ficar sozinho são mais que assustadores. O
intensidades. medo de estar sozinho, portanto, desamparado
O tempo do colo e dos primeiros tempos de ou perdido de si mesmo, explode porque a natu-
Vida condiz com o caráter da dinâmica de cons- reza mais profunda nos diz que somente somos
ciência em que predominam os vivências do fe- quando em relação. A vivência é que fora da re-
minino, todavia estruturas de interação masculi- lação não somos.
na, inerentes à natureza, entram em cena, com o Ao longo da vida, todos os seres irão buscar
que a criança vai sendo “convidada” a atualizar parcerias, casamentos, vínculos, sociedades, re-
o controle dos esfíncteres, a fazer uso das mãos lações! Todos se buscam e sentem que se cons-
para segurar a mamadeira por si mesma, ou seja, troem, ou se fazem humanos em função das re-
paulatinamente adquire autonomia para sair do lações. Sem a relação o ser não é!
ninho e enfrentar o mundo coletivo. A criança Em grande parte da vida as relações são con-
apreende o sentido das palavras, dos interditos, cretas, objetivas. Todavia, as relações tendem a
dos limites físicos, constata a assimetria do po- se tornar subjetivas, simbólicas, povoadas pelas
der para os quais precisará exercer-se por atitu- memórias de todos os casamentos estabeleci-
des pertinentes à dinâmica do masculino. A par dos ao longo do caminho e iluminadas pelos ca-
disso, descobre o encanto da brincadeira com samentos interiores com todos os Outros que in-
outros, especialmente com alguns em que a sin- corporamos em função da elaboração de nossas
tonia prevalece. Perde-se o colo continente, ou sombras, as mais sombrias, com o que podemos
melhor, abdica-se dele, vivendo esse momento, realmente realizar o maior e o melhor de todos
simbolicamente, como um morrer. os casamentos, qual seja, consigo mesmo, com
O segundo rito de passagem implica a emer- o Self, com Deus, tornando-nos plenamente hu-
gência da segunda dinâmica de consciência e manos. Quando assim se der, as criaturas se
traduz e se ocupa com a manutenção da espécie! tornam o que são para deixarem de ser o que
sabem.
E, então, o terceiro rito de passagem entra É tempo do masculino, da discriminação, da
em cena, e o medo emerge, muitas vezes de assimetria do poder. É tempo de sair do ninho
intensidade assustadora. O medo desse tempo familiar, sair do “colo” para entrar, simbolica-
decorre, possivelmente, de um padrão de cons- mente, no reino da regra, da ordem, da norma,
ciência em que os primórdios do processo refle- do cumprimento das tarefas, no reino do cole-
xivo estão se consumando. Deparar-se com o tivo, das obrigações e dos deveres. É tempo da
limite do tempo, com o limite da Vida, do dia, da dinâmica do Masculino ou do Pai, sob a regência
descoberta literal da Morte, das frustrações, do do arquétipo do Deus Pai.
não impeditivo, quando então os desafios das Há anos, como ainda hoje acontece nas pe-
primeiras atividades de caráter reflexivo entram quenas cidades, essa separação da pequena fa-
em cena: ler, escrever, tocar um instrumento mu- mília para o grande coletivo acontecia nas ruas,
sical, respeitar limites, cumprir tarefas, obedecer com os vizinhos do “bem” e do “mal”. Hoje,
às ordens, configuram realidades assustadoras, acontece cada vez mais precocemente com a

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ida às escolas pré-primárias, quando a criança universo masculino como para o feminino a ati-
é inserida, muito mais cedo, no reino do grande vação do herói/heroína acontece como deman-
universo coletivo. da da própria natureza
No tempo do terceiro rito de passagem, a Quer me parecer que em nossa sociedade, no
instituição da terceira dinâmica de consciência sentido de classe média, a passagem pelos ritos
confirma que os cânones do Estado de Direito da adolescência para adultícia foi restringida ex-
são estabelecidos e a Vida torna-se soberana clusivamente para os domínios do intelectivo,
somente dentro da tribo ou do clã. como, por exemplo o de conseguir passar num
O terceiro rito de passagem realiza-se sob a vestibular.
dinâmica de consciência de caráter patriarcal, Há de convir, entretanto, que as relações
com a regência do deus Pai, traduz e se ocupa sexuais entre adolescentes têm ocorrido cada
com a implantação do Código! vez mais precocemente; a ingestão de bebidas
alcoólicas aumentou de forma indiscriminada,
O quarto rito de passagem se apresenta, mo- sem respeito qualquer às restrições chamadas
bilizado, desencadeado e atualizado em função legais. De outra parte os envolvimentos de ca-
das grandes transformações neuroendócrinas. É ráter homossexual têm se tornado prática de
a adolescência plena com sua quase intimação experimentos, principalmente entre meninas.
de se olhar para o outro diferente de si e com ele Quer me parecer que, principalmente entre as
interagir de forma inédita. O conflito decorrente meninas, os encontros eróticos de caráter ho-
das demandas imperiosas pelas vivências de se- mossexual seja uma tentativa de experimentar
xualidade, concomitante às demandas da coabi- o gozo do prazer erótico com alguém de seu
tação carnal que emergem assustadoramente. O mesmo gênero, para que, depois dessa vivên-
quarto rito de passagem é o mais desafiador até cia, aceitar o desafio de uma relação heteros-
então vivido! Implica a experiência e a vivência sexual. De outra parte, notamos a emergência
dos maiores conflitos. Demanda que meninos tanto com os rapazes como com as moças, de
e meninas sejam preparados para se tornarem grupos de juvenis absolutamente avessos a
adultos e, para tanto, enfrentarem desafios ater- qualquer envolvimento hetero ou homossexual:
radores. O herói/heroína, profundamente mobi- são jovens que participam de grupos, festejam,
lizado, acontece para todos. O primeiro estágio viajam juntos, mas sem atividade erótica, a par
se traduz por sair da tutela familiar de pai e mãe; daqueles que permanecem numa relação de
implica deixar de ser filho/filha. Entretanto, as envolvimento puramente virtual.
demandas da emergência de autonomia do ado- O tempo da “juventude” também aumentou
lescente não coincidem com os pressupostos de nas classes sociais mais abastadas. O chamado
aceitação dos pais, os quais, defasados, algu- “jovem”, apesar de ter idade de adulto pleno,
mas vezes, por quase duas gerações, entendem mantem-se na casa dos pais, usufruindo das be-
que autonomia significa competência para res- nesses do cotidiano, sem ônus econômico qual-
ponder por sua própria sobrevivência. quer, desfrutando das acomodações, alimentos,
Nos pressupostos de nossa sociedade atual, limpeza, roupas lavadas etc., ou seja, tudo abso-
os adolescentes não são trabalhados para cum- lutamente sem custos econômicos, a par de des-
prir os ritos de passagem como: suportar a dor, frutarem de benesses para as quais ainda não
caçar um animal selvagem e enfrentar o medo de têm competência para custear.
dormir no território sagrado dos mortos, tal como Para o universo feminino, com suas heroínas
os integrantes de povos chamados “selvagens”, ativadas, o enfrentamento das tarefas que leva-
que determinam as tarefas a serem cumpridas. riam à introspecção e explicitadas de forma mag-
Porém, no sentido mítico-simbólico, tanto para o nífica pelo mito de Eros e Psique está cada vez

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mais sendo insuficiente. Tarefas que explicitam rencia-se com a expressão maior do masculino-
com riqueza de detalhes a estruturação de como -Zeus. Assim, incorporado, resgata Psique.
se forja a natureza mais profunda do feminino na São tempos de concomitância de vivências
mulher, tais como: separar as sementes mistu- ambivalentes como: introversão/extroversão;
radas, ou seja, reconhecer os grãos da própria atividade/passividade; aceitar desafios/ evita-
constituição e adquirir discriminação; descobrir ção; responsabilidade/inconsequência; contes-
como evitar o confronto com a força bruta, in- tar/submeter-se; e tantas outras ambivalências
corporando-se de paciência e lucidez para con- avolumando os conflitos.
seguir o resultado almejado; confiar que a pre- Tanto os meninos quanto as meninas estão
sença do sagrado se fará para conquistar a água submetidos, simbolicamente, à emergência do
da origem; render-se à sabedoria da edificação herói tanto quanto da heroína pois ambos repre-
do processo reflexivo que instrui sobre como en- sentam lutas que darão abertura para a emer-
trar e sair do reino da morte. Assim, ao adentrar gência dos arquétipos de anima e animus.
simbolicamente o reino da morte deverá atentar No sentido mítico, nesse momento, entram
para não ser enredada com as demandas de ou- em cena os mais significativos mitos de criação
tros com escolhas que não são suas, quais se- com a emergência das mais profundas questões
jam: a mão que pede ajuda; o burriqueiro coxo, sobre a realidade de ser humano:
as tecedeiras, com o que, ao retornar, surgirá Quem sou eu?
como mulher adulta, plena de femininos, reco- Por que estou aqui?
nhecendo-se e sabendo-se feminina ousando Qual o propósito de minha existência?
abrir a caixinha do pote da beleza-sedução-en- Como aceitar a responsabilidade por tudo
volvência. O mito expressa com sabedoria como quanto faço?
é deixar de ser uma menina e transformar-se Estas questões foram formuladas por filóso-
numa Mulher, realidade essa que enseja a con- fos de todos os tempos, sendo que a quarta so-
comitância do nascimento-emergência do Ho- mente emergiu com Kant (século XVIII), ou seja,
mem adulto, expresso na personagem Eros que qual a minha responsabilidade diante desses
surge para arrebatar Psique. acontecimentos?
A natureza do ser feminino está magnifica- Há de convir que estas questões, conscientes
mente expressa no mito de Eros e Psique, quan- ou não, implicam o peso atroz da responsabili-
do do retorno da jovenzinha do reino de Hades dade e da culpa por tudo quanto der de errado.
carregando a caixinha com o creme da beleza. De um lado, o herói, tanto quanto a heroína, não
Psique, ao assumir sua demanda de querer quer abandonar o espaço da vida, da velocida-
manter-se bela, característica próprio de sua de, contestações, autonomia, infrações, drogas;
natureza, mas que ela abominava por afastá-la de outra parte anima/animus se apresentam
das pessoas, principalmente dos homens. Ao re- com atitudes profundamente sui generis, com
tornar do reino dos mortos, simbolicamente, ao demandas por estabelecer relacionamentos de
deixar sua meninice, ao transpor o limiar do rito companheirismo. Mas os conflitos decorrentes
de passagem, constata, descobre que deseja dessas brigas autorreflexivas primordiais redun-
ser Mulher, ou seja, deseja ser feminina, bonita, dam, muitas vezes, em mortes literais.
sensual, necessitada da presença-complemen- Dos ritos de passagem, inegavelmente este
tação da figura de um masculino. E, assim, abre momento é o mais complexo, pois pede a morte
a caixinha: ao se tornar uma Mulher viabiliza-se da inocência, a implantação da lucidez da respon-
também a possibilidade de Eros se fazer Homem sabilidade e, fundamentalmente, do encontro com
com a plenitude do Masculino. Eros deixa sua o outro que pensa, sente, age de forma diferente,
dependência com a figura mãe-Afrodite e refe- mas que atrai, fascina, convida para estar junto.

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O herói/heroína ativado pede timé, pede re- pécie, do firmar-se profissionalmente, do con-
conhecimento por seus feitos, mas, ao mesmo viver e tornar-se socialmente responsável, por
tempo, não quer deixar sua intrepidez. Objetiva- si mesmo, pela família, pela sociedade, pela
mente, as vivências de morte, expressivas nos Terra onde se vive!
ritos de passagem, têm um sentido simbólico. A O quinto rito de passagem implica diálogos
par disso, na emergência da adultícia o peso da e comunicação com o outro, implica integrida-
reflexão enlouquece. de de propósitos e coerência de valores, impli-
O fato da quarta questão ser tão recente na ca fidelidade e lealdade consigo mesmo e com
história é um alerta para a constatação de que os demais. O quinto rito de passagem implica o
a consciência da responsabilidade sobre o que mais pleno exercício das virtudes dispensadas
sou e o que faço ainda ser um fenômeno em fase por Zeus às criaturas, quais sejam: diké e Aidós,
de elaboração coletiva. ou seja, justiça plena para com o outro e fazer
O coletivo ainda espera salvadores da pátria; para o Outro o melhor de si. Essas virtudes im-
ignora que atribuir ao estado a responsabilidade plicam necessariamente estar em relação com o
pela própria sobrevivência é não se tornar adul- outro e somente assim nos fazemos realmente
to, ignora que estamos destruindo o planeta e seres humanos.
aceitam que o locupletar-se com o dinheiro do Pierre Soliè, em seu texto “Mitanálise”
outro é regra. (1986), propõe que os primeiros tempos de vida
As mudanças individuais são mais céleres o ser humano considera o outro como proprieda-
que as coletivas! de sua e implica um relacionamento “amoroso”
de caráter antropofágico; o segundo tempo se
Histórica e simbolicamente, o coletivo vive traduz por relacionamento amoroso de tipo “ca-
um rito de passagem da adolescência para a ritas”, ou seja, implica cuidar do outro pelo ou-
adultícia em que é iminente assumir a respon- tro mas ainda depende do reconhecimento pelo
sabilidade por tudo quanto acontece na própria outro. Somente no terceiro tempo viabiliza-se o
vida, na família, com os filhos, no trabalho, no amor do Ágape sagrado com o ocupar-se do ou-
país, na Terra... tro mesmo que o outro não saiba ou reconheça
O tempo da quarta dinâmica de consciência estar sendo cuidado.
tem se estendido de forma significativa, princi- A Comunicação, quando exercida de forma
palmente nas classes sociais mais diferenciadas criativa, pedirá Congruência entre o que se fala e
no sentido econômico. o que se faz, bem como Complacência para com
O quarto rito de passagem pede o exercício o outro que ainda não atingiu esse patamar de
da dinâmica de consciência do Encontro, sob a compreensão. Quando exercida em sua pleni-
regência do arquétipo da Coniunctio e se ocupa tude maior, a voz do emitente terá competência
da consumação da paridade! para vibrar em sintonia com o Outro, criando res-
sonâncias de apaziguamento.
O quinto rito de passagem reclama pela Assim, manter-se na integridade de propósi-
conjugalidade com o que a convivência com tos representa um desafio enlouquecedor, pois
o outro diferente de si demanda o exercício a tentação por proveitos escusos se faz presente
pleno da comunicação. É tempo de parcerias, com muita frequência.
de troca de ideias, de informações, de senti- A comunicação entre as pessoas é um fenô-
mentos, tempo de decisões comuns entre par- meno tão complexo quanto inédito por ser con-
ceiros, entre sócios, entre amigos, tempos de tinente das mais espetaculares criações huma-
deliberações sobre como estruturar o núcleo nas, quanto das piores aberrações, motivos de
familiar bem como manutenção da própria es- brigas, crimes, guerras.

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De outra parte, a comunicação implica poe- O quinto rito de passagem sob a condução da
sia, música, beijos e abraços, toques sutis entre dinâmica de consciência da Comunicação, sob a
almas que se encontram. É inseminadora e ferti- regência do Verbo Encarnado expressa e se ocu-
lizante, criadora que gera criaturas. pa com o casamento de atos e de ideias!
A dinâmica da Comunicação, atributo singu-
larmente atualizado pelos seres humanos, con- O sexto rito de passagem emerge veiculado
fere um poder de comando, como também con- por reflexões e constatações sobre a demanda
fere certezas e esperanças de mudança, a par de da necessidade de afastar-se da pessoalida-
explicitar as decepções e amarguras diante do de da família, do casamento, do trabalho, dos
que a criatura tem de mais sórdido, mais degra- filhos, da sociedade. O sexto rito de passa-
dante e sombrio. gem pede introspecção, recolhimento, pede o
O quinto ritual de passagem exercido sob a exercício da reflexão mais profunda sobre suas
vigência da dinâmica de consciência da Comu- próprias ideias, sobre o quanto se exerceu pela
nicação, sob a regência do arquétipo do Verbo reto-ação2, avaliando-se sobre o que aprendeu
encarnado é o que melhor expressa o processo com a Vida, o que descobriu como verdade so-
de humanização por traduzir em falas (faladas, berana, se realmente alcançou o entendimento
escritas, poéticas, cifras musicais, imagens, ges- de que a fala falada como a fala silenciosa deve
ticulações) o que a criatura pensa e reflete so- ser o mais poderoso instrumento de conciliação,
bre o refletido, o que tem de ideias e o que com de paz, de aconchego, e de transmitir a Verdade,
elas constrói, o que sente e como sofre, o que a alicerçada na Ética, imbuído da consciência de
emociona e se traduz em vibrações epifânicas. que o processo de individuação está a caminho.
Enfim, a comunicação é a marca indelével do ser O herói desse tempo implica o exercício da
humano e do como se fazer humano! Areté – Excelência, não havendo mais a deman-
A dinâmica da Comunicação implica ouvir o da pela Timé – honorabilidade. A dinâmica de
que o outro fala, incorporando-se desse referen- consciência que permeia o exercício do tempo
cial, fazendo dele instância sua, estruturando-se do sexto rito de passagem realiza-se pela antevi-
como decorrência do casamento de suas pró- são de futuros diferentes do provável, com a cer-
prias ideias, falas, pensamentos com as ideias teza de poder-se realizar e interferir na criação
falas e proposições do outro. A dinâmica da de realidades alternativas.
Comunicação implica lutar pela implantação de A vivência do sexto tempo de Vida retrata a
realidades decorrentes do casamento de suas constatação de poder forjar futuros diferentes do
próprias demandas com as demandas do outro, provável, atualizando e experimentando compe-
quando então, não há mais a minha demanda e tências até então chamadas extraordinárias. A
a do outro, mas sim a nossa, ou seja, a dinâmica arte do aprender e do ensinar conferindo tran-
da Comunicação pede que concebamos com o quilidade; a arte do curar e do curar-se conferin-
outro filho dessa transubstanciação! do certezas; a arte do transportar e do transpor-
A dinâmica da Comunicação pede a elabora- tar-se conferindo deslumbramentos; a arte de
ção do mais severo dos sete pecados capitais, transformar a natureza da matéria conferindo a
qual seja, a arrogância de supor-se douto cria- constatação de nos sabermos imortais.
dor de soluções, quando na realidade somos O sexto rito de passagem vivido sob a dinâ-
todos vasos continentes do grande universo do mica de consciência da Vidência ou Antevisão
inconsciente coletivo, expressão junguiana para do Futuro, sob a regência do arquétipo da Pro-
traduzir o campo akáshico, fonte de sabedoria fecia ou do(a) Velho(a) Sábio (a) retrata a propo-
que aguarda que façamos as perguntas para res-
2
Reto-ação, conceito da filosofia hindu, implica dispor-se para
o exercício de atividade que vise o bem-estar do outro ou do
postas que já estão a nossa espera. coletivo, sem demandar pelo reconhecimento.

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sição da existência de diferentes possibilidades foram, por diferentes se sentirem, assustadas
de um vir a ser, que depende de escolhas feitas com o que faziam, consentiam ou deixavam pas-
em momentos cruciais nos quais se deixa a con- sar, sem contestações.
dição de um porvir provável para um diferente Quer me parecer que o processo de individu-
futuro possível. ação é uma demanda imperiosa pela instaura-
Momentos cruciais traduzem-se, na realida- ção de um futuro possível diferente do provável,
de de todos nós, como desafios nos quais o risco futuro esse adormecido nos escaninhos da psi-
de vida (de si mesmo, do filho, do amado) é imi- que e que aguarda a emergência da revelação!
nente, seja por conta de processos físicos ou psí- Assim, ao vivermos o sexto rito de passagem
quicos; ou por condições de perdas catastróficas estruturado pela sexta dinâmica de consciência
com vivências de extrema solidão e desamparo; em nosso processo existencial tornamo-nos vi-
ou por realidades invasivas com perda de auto- dentes (ALVARENGA, 2018), permeados por um
nomia e liberdade; ou quando o outro de nós é padrão de inteligência noética que nos torna
roubado, sequestrado, abusado... cada vez “mais humanos”, seja por incitar-nos
Momentos cruciais mobilizam angústias, a ser a solução dos conflitos, como a nos com-
ativam feridas da alma, desencadeiam medos pelir para realizar as mudanças, mas, mais que
antigos, desorganizam a vida e pedem soluções tudo, pela emergência imperiosa do processo de
imediatas, apesar de não as encontrarmos. To- individuação clamar por se atingir o autoconhe-
davia, esses momentos também despertam a fé cimento, meta maior do fenômeno da humaniza-
e demandas por constrição, bem como evocam ção. Assim, autoconhecimento implica assumir
memórias de nossos ancestrais crentes no poder por inteiro e intensamente a demanda de saber
das orações. e de ocupar-se do Outro, em si mesmo. Esse Ou-
E, eis que os “milagres” acontecem trazendo- tro subjetivo, muitas vezes depositário de proje-
-nos a certeza de que as transformações quanto ções, as mais sombrias, necessita ser conhecido
a diferentes futuros possíveis despertam como e reconhecido como instância da própria pes-
realidades, talvez, nunca dantes cogitadas pela soa, em seu mais profundo processo reflexivo.
consciência. A física quântica afirma que dife- Assim, o próximo passo para traduzir uma ex-
rentes futuros possíveis aguardam por serem pressão transformadora do desenvolvimento do
despertados no momento presente em que os padrão de consciência para atingir-se a plenitu-
desejarmos (BRADEN, 2017) expressando a re- de da condição humana implicaria alcançar um
alidade do novo ser nascituro no qual nos tor- quociente de inteligência que traduzisse a sínte-
naremos, ou já nos tornamos! Já somos então o se da condição intelectiva, com a emocional e a
futuro possível e distanciados nos sentimos do espiritual, e expressasse o ser em sua plenitude
futuro provável que seríamos. maior, ou seja, ocupado com a redenção do outro
Interessante atentar para o quanto de recla- em si mesmo.
mações emergem no seio de uma dinâmica fami- A dinâmica da Vidência e sua competência
liar quando um de seus componentes, em pro- para divisar possíveis diferentes futuros está
cesso de análise, apresentando as modificações intimamente ligada ao poder da prece e sob a
decorrentes de suas epifanias analíticas, ouve: regência do “efeito Isaias” que propõe como
“Você está muito diferente! Já não é mais o mes- oração mais poderosa aquela que mentaliza um
mo! Que aconteceu consigo? Parece que não o futuro diferente do provável e que já é realidade,
reconheço!”. pois, despertado se fez pelo desejo inquebran-
E, então, quando se atenta para memórias tável da fé. Todavia, para alcançarmos um futu-
passadas, que são, na realidade, muito recen- ro diferente do provável precisaremos ser numa
tes, as pessoas se sentem tão distantes do que nova Ética instituída e fundamentada, no meu

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entender, em quatro princípios, quais sejam: no enuncia. A fixação defensiva em qualquer uma
Fogo da mais profunda consciência reflexiva que delas é possível, e pode impedir o caminhar para
nos intima a refletir sobre assumir a responsa- o Self. Vidência implica antevisão de futuro e
bilidade por tudo quanto nos cerca, pois tudo configura a melhor e a maior oportunidade para
tem a ver conosco; na Techné mais inventiva que divisarmos o caminho para a individuação
somos e temos para mudar nosso momento his- O sexto rito de passagem ocorre sob a sexta
tórico; na Diké como consciência plena do senso dinâmica de consciência regida pelo arquétipo
de Justiça para todos e com todos; e, finalmente, do Velho(a) Sábio(a), expressa e se ocupa da an-
na virtude plena da Aidós que nos conduz para tevisão do futuro!
realizarmos e fazermos o que somos de melhor
para o Outro, quem quer que ele seja e para o O sétimo rito de passagem, ou seja, tempo
bem comum (ALVARENGA, 2011). da Compreensão Universal, sob a regência do ar-
Assim sendo, próximos estaremos da sétima quétipo da Totalidade, comporta a arte de acei-
morada, da sétima dinâmica de consciência e lá tar que somente com a morte literal experimen-
nos aguarda a cerimônia ritualística da coniunc- taremos um tempo inédito de vida.
tio com a divindade, segundo pressuposto de Te- É tempo do desapego, tempo de preparar-se
resa D´Ávila (1981), ou a cerimônia ritualística da para a partida, tempo de perdoar-se por não ter
coniunctio com o Self, segundo as proposições atingido a meta almejada, tempo de se despedir
de Jung, com o que o autoconhecimento se faz, dos que ficam, lembrando que o afastamento é
meta maior do processo de individuação. temporário, tempo de purgar as mágoas.
Há que lembrar de não terem as diferentes O sétimo rito de passagem implica o preparo
dinâmicas um caráter sequencial, pois podem para a morte literal. ■
ocorrer, tanto a quinta como a sexta e a sétima,
numa condição eventual, expressando momen-
tos de sabedoria não inteligíveis para quem os Recebido em: 26/05/2020 Revisado em 28/06/2020

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Abstract
Rites of passage and dynamics of consciousness
The text focuses on describing the seven main being reaches new lifetimes, and their respective
rites of passage that occurred with humans, dynamics of consciousness, arising from intrinsic
concomitantly with the seven different transfor- demands of nature. Because of overcoming these
mations of consciousness patterns named as: heroic moments, we acquire knowledge that is
uroboric, Great Mother, God Father, Encounter incorporated into the psyche, along with un-
or Coniunctio, Communication, of the Future known desires, mobilize behaviors to overcome
Preview and finally of the Totality. The rites of obstacles. The rites of passage are preceded by
passage explain moments of overcoming-trans- the experience of death and succeeded by the
gressions of interdictions, with which the human new lifetime. ■

Keywords: Rites of Passage, The Seven Dynamics of Consciousness, Death and rebirth

Resumen
Ritos de pasaje y dinámicas de conciencia
El texto trata sobre la descripción de los siete alcanza nuevos tiempos de vida, y sus respectivas
ritos principales de pasaje que ocurrieron con los dinámicas de conciencia, que surgen de las de-
humanos, concomitantemente con las siete trans- mandas intrínsecas de la naturaleza. Como conse-
formaciones diferentes de patrones de conciencia cuencia de la superación de estos momentos he-
nombrados como: Urobórica, de la Gran Madre, roicos, se adquiere conocimiento que se incorpora
del Dios Padre, del Encuentro o Coniunctio, de la a la psique, junto con deseos desconocidos que
Comunicación, de la Vista Preliminar del Futuro movilizan comportamientos para superar obstá-
y finalmente de la Totalidad. Los ritos de pasaje culos. Los ritos de iniciación son precedidos por
explican momentos de superación-transgresiones la experiencia de muerte y seguidos por el nuevo
a las interdicciones, con las cuales el ser humano período de Vida. ■

Palabras clave: Ritos de Pasaje, Las Siete Dinámicas de la Conciencia, Muerte y renacimiento

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Referências
ALVARENGA, M. Z. As sete dinâmicas de consciência, a BRADEN, G. O efeito Isaias: decodificando a ciência perdida
hominização, inteligência espiritual e o processo de individ- da prece e da profecia. São Paulo, SP: Cultrix, 2017.
uação. In: CONGRESSO LATINO AMERICANO DE PSICOLO-
GIA ANALÍTICA, 8. 2018, Bogotá. Anais... Bogotá: Comitê D´ÁVILA, T. As moradas do castelo interior. São Paulo, SP:
Latino-Americano de Psicologia Analítica, 2018. Paulus, 1981.

_________. O encontro de Prometeu, Héracles e Quiron: a SOLIÈ, P. Mitanálise junguiana. Barueri, SP: Nobel, 1986.
morte e o morrer: ritos de passagem. Junguiana, São Paulo,
v. 29, n. 1, p. 58-65, jun. 2011.

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