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teria melhor qualidade? Tais indagações puderam apontar para a pergunta que orienta
esse texto: qual a função da entrevista com o professor no APEGI e o que podemos fazer
a partir do seu discurso?
Partindo dessa pergunta e com base em duas cenas de entrevistas realizadas com
os professores, pudemos caminhar em direção a duas vertentes: a relação entre professor-
aluno e a posição que o professor ocupa diante das relações entre as crianças.
Ainda que Millot (1979/1987) não demarque claramente o que considera por
Pedagogia e Educação, visto que não são sinônimos1, é importante nos atentarmos para o
que se passa na relação entre os sujeitos educador e criança, ao invés de almejarmos a
junção destes dois campos de conhecimento.
Diante disso, Kupfer (1989) expõe que a Psicanálise entraria enquanto um saber
que poderia transmitir ao educador uma ética, promovendo, assim, uma outra maneira de
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Discussão que não será apresentada nesse texto. Sugerimos ao leitor: Lajonquière, L. (1998) (Psico)
pedagogia, psicanálise e educação: uma aula introdutória. Estilos da clínica. São Paulo, v. 3, n. 5, p. 120-
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Portanto, o saber do professor sobre a sua turma, sobre a criança, sobre o que
funciona ou não na sua prática docente não pode ficar submetido à universalidade do
conhecimento, somado ao caráter prescritivo e aplicativo deste e sua tendência à certeza
e massificação.
Dessa maneira, a identificação é tida como uma solução do humano que vem
servir de resposta para a não identidade de si, como um recurso necessário para sua
humanização. Lacan (1949/1998) ainda comenta que o momento em que se conclui o
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Kehl (2000) comenta que a intrusão do semelhante confronta o sujeito com "a
máxima semelhança e a inevitável diferença" (p. 36), o que favorece um outro
enlaçamento com a relação especular, retirando-o de uma ilusão alienante de que poderia
ser idêntico ao eu-ideal, permitindo que o sujeito saiba mais sobre si mesmo por meio
desse estranho familiar, isto é, por meio da alteridade.
Nesse sentido, podemos entender que as relações entre os colegas de classe têm
efeitos na constituição psíquica uns dos outros, ainda que submetidos ao professor como
aquele que pode favorecer ou não as expressões singulares de cada criança, mediar o
convívio e as brincadeiras – comumente turbulentos – entre os pares e permitir que a
transmissão da função paterna possa ocorrer e ser sustentada entre os semelhantes.
Para Kupfer, Voltolini e Pinto (2010), a situação de grupo faz com que o indivíduo
experimente alterações em seu posicionamento individual a partir da identificação que o
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laço social propõe com o outro. O interessante é que a experiência de ocupar posições
discursivas diferentes trará efeitos para o sujeito, mesmo que não altere sua posição
subjetiva. Pois é vivendo outras vidas, novas experiências, que se dissolvem as
cristalizações e se experimentam outras formas de ser.
Assim, na circulação das relações horizontais entre as crianças, uma criança pode
fazer muito pela outra, sendo que, no âmbito escolar, o professor ocupa um lugar
fundamental, de mediador dessas relações e, portanto, pode ser um importante agente na
jornada singular que cada criança enfrenta para ascender a seu lugar de sujeito.
Apresentaremos duas vinhetas que nos permitem refletir sobre os discursos das
professoras e seus possíveis efeitos na subjetividade das crianças. Os nomes das crianças
e das professoras serão mantidos em sigilo e substituídos por nomes fictícios. A primeira
vinheta diz das entrevistas dos pais e professor como elucidativas sobre o olhar da
subjetividade da criança, que indica a relação professor-aluno. E a segunda versa sobre o
uso do APEGI como ferramenta de escuta e confrontação do professor com seu próprio
discurso, que aponta para as relações das crianças com seus semelhantes.
sintomas ou dificuldades que a criança apresentava e que, para ela, significavam algo de
patológico.
De forma semelhante ao que acontece com os pais, podemos dizer que o saber
científico orienta a relação entre o professor e o aluno quando o professor esbarra em algo
diferente na criança e no seu não saber. Voltolini e cols. (2018) falam sobre poder
flexibilizar o conhecimento universal para pensar naquele aluno, partir da experiência
para a construção de um saber próprio e singular. Para tanto, é necessário reconhecer as
lacunas de conhecimento e de um saber inconsciente. Abrir espaço para uma narrativa,
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Por outro lado, na entrevista com o pai, o tom foi outro (a mãe não pôde
comparecer à entrevista e apenas ele estava presente). A submissão excessiva às regras
era entendida de forma positiva, sendo que João, desse jeito, era visto como uma criança
obediente. O pai sinalizava, em seu discurso, pouca apropriação sobre detalhes da história
ou do cotidiano do filho, sem saber dizer, por exemplo, o dia e mês do seu nascimento.
Trouxe preocupações com a fala, com um comportamento “tímido” reconhecido dentro
de um cenário de filiação, pois ele relembrou de sua infância com comportamentos
semelhantes. Além disso, referiu que sua esposa só desenvolveu completamente a fala
aos 11 anos de idade. Contou-nos que pediu à professora que conversasse mais com João
e achava que isso estava ajudando na comunicação da criança.
Isso posto, cabe ressaltar que, para o desfecho clínico, o APEGI considera todas
as entrevistas (pais, professores, criança individualmente, criança em grupo). Pensar em
uma fotografia da criança em um dado momento, quando acontece a aplicação do APEGI,
é considerar, refletir e questionar como a criança está posicionada frente aos eixos
estruturantes do psiquismo.
A entrevista com o pai e com a professora, adultos referência para a criança, nos
mostra a qualidade e os diferentes tipos de laços que se estabelecem e atuam na
constituição subjetiva da criança. Notamos que, de certa forma, o pai ignora alguns sinais
importantes que estão em andamento, ainda que os insira em um cenário de filiação. Ao
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mesmo tempo, a professora percebe esses sinais e, no entanto, tenta os enquadrar em uma
patologia, o que nos leva a pensar nos efeitos que esses discursos podem deixar no
psiquismo de João.
Dessa forma, a entrevista com o professor não está aqui como um complemento,
visto que o que está em jogo são os laços que se estabelecem no ambiente escolar.
Voltolini e cols. (2018) dizem que a verdade que o professor traz em seu discurso objetivo
fala sobre o seu saber e sua implicação subjetiva com o aluno do qual se refere, sem se
dar conta disso. O professor-sujeito está dividido entre o conhecimento, universal, no qual
busca se referenciar, e o saber inconsciente, singular, que o guia sem que ele perceba.
André e Otávio tinham 4 anos no momento das entrevistas. Eles foram sorteados
para participarem da pesquisa e, por coincidência, eram da mesma sala em um Centro de
Educação Infantil, também localizado em São Miguel Paulista.
Em seguida, partimos para questões mais dirigidas, com base nos eixos do
APEGI. Com relação às brincadeiras e preferências, a professora apenas comenta que
“dinossauro é a vida dele”, indicando os objetos que o aluno mais prefere brincar, mas
sem mencionar de que maneira brinca.
Quanto aos cuidados diários e o momento de sono, Leila diz que André se alimenta
sozinho e come bem na escola, assim como tem a capacidade de ir ao banheiro e se
higieniza com auxílio. No entanto, na hora de dormir, a professora comenta que precisa
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colocar André longe de Otávio, pois “eles ficam bagunçando” e, mesmo separados,
muitas vezes, André não dorme – ele precisa de chupeta e “paninho” junto de si nos
momentos de sono.
No tocante aos cuidados diários e hora de dormir, Otávio não come muito bem na
escola, costuma jogar a comida embaixo da mesa e pouco vai ao banheiro, portanto, a
professora não soube nos dizer a respeito de como Otávio lida com seus excrementos.
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Nos momentos de sono, diz que o garoto faz bagunça. Dessa forma, Leila precisa colocá-
lo longe de André, no entanto, costuma dormir com chupeta.
Quanto à relação com os semelhantes, Leila diz que Otávio não imita outros
colegas, todavia, anteriormente, na entrevista de André, afirmou que os garotos costumam
imitar um ao outro, apesar dela perceber que Otávio sempre está com André, e afirmar
que “[Otávio] é cúmplice de André”, “se apoiam” e “imitam a bagunça um do outro”.
Por fim, no que diz respeito aos limites, a professora sente que sua palavra tem
pouco peso para Otávio, visto que, diante das regras, ele não gosta de ser contrariado,
tenta agredir, joga objetos e brinquedos em Leila, fica nervoso, questiona a ordem, tenta
negociar algo em troca, mas “se não quer, não faz”.
A fala de André, ao responder uma pergunta que havia sido dirigida a Otávio sobre
de quem era a imagem refletida no espelho, nos sinalizou que a questão poderia ter sido
tomada para dois destinatários, ou, nas palavras da professora, “tudo o que se aplica a um
vale para o outro”. Ao serem tomados em conjunto, respondem em conjunto.
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Tal ponto nos faz pensar na estreita afinidade entre função fraterna e função
paterna, como bem colocado por Kehl (2000), visto que é possível perceber que existe
uma relação de fraternidade por meio da aliança e da cumplicidade que a professora
comenta entre os garotos. Contudo, ela não comenta, e não pudemos observar em somente
uma entrevista, se há rivalidade e ciúmes entre André e Otávio.
Ainda que apenas uma entrevista seja limitada no que concerne a uma análise de
um caso clínico, ousaremos especular que a conjunção da dupla opera em uma vertente
alienante, mas que requererá uma disjunção, que decorrerá da singularização, para que,
no momento da de sua imagem refletida no espelho, Otávio possa se nomear enquanto
alguém só, sem a intrusão de André enquanto Outro que vem fazê-lo por ele. Tal
movimento dependerá, também, das palavras de Leila, que precisará tomá-los enquanto
sujeitos singulares e propiciar outros tipos de relações com os semelhantes, favorecendo,
por conseguinte, o curso da subjetividade de cada um.
Assim, frente ao questionamento que nos orientou, podemos dizer que a entrevista
com os professores tem a função de ser suplementar à entrevista com os pais.
Suplementar, pois ela não é de relevância inferior, mas, sim, ultrapassa, vai além do que
os pais possam relatar. A fala do professor não complementa a dos pais, como poderia
parecer inicialmente, mas traz uma outra perspectiva da criança a partir de um outro lugar,
do social, de fora da família, perspectiva esta que transcende o sujeito e adentra nos laços
sociais.
A fala e a posição dos professores revelam não só como eles percebem suas
relações com as crianças e destas com seus colegas de classe, por consequência sua
constituição subjetiva, mas também age e deixa efeitos nesse processo. As marcas
provocadas pelas palavras dos professores deixam rastros que são possíveis de serem
escutados e captados pelo APEGI, como apresentamos nesse trabalho.
Referências Bibliográficas
Kupfer, M.C.M, Voltolini, R. e Pinto, F.S.C.N. (2010). O que uma criança pode fazer
pela outra. In Kupfer, M.C.M.& Pinto, F.S.C.N (Orgs). Lugar de Vida, vinte anos depois.
Exercícios de educação terapêutica. (p.97-111). São Paulo: Escuta.