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AS ENTREVISTAS COM OS PROFESSORES:


uma leitura de sua função e de seus efeitos por meio do APEGI.

Maycon Andrade Fraga


Ana Lúcia Branco Novo

Há mais de uma década, o uso de indicadores clínicos vem, aos poucos, se


consolidando e se mostrando eficiente para a leitura de importantes sinais da constituição
subjetiva e do desenvolvimento em crianças. A elaboração e validação do APEGI foi
fruto de diversos desdobramentos da AP3 - Avaliação Psicanalítica aos 3 anos
(JERUSALINSKY, 2008) e, amparado na ideia de ser um roteiro de acompanhamento e
com aplicabilidade em outros cenários, como escolas e instituições, realça, dessa maneira,
possíveis contribuições da psicanálise para o campo da educação.

Nas adaptações da AP3 para o APEGI foram inseridas algumas perguntas


ordenadas em uma observação da criança em grupo e uma nova entrevista, dessa vez,
com o professor. Do mesmo modo, um novo eixo teórico foi inserido, denominado de
“função do semelhante”, que objetiva pensar e acompanhar as relações das crianças entre
si.

Ainda que o APEGI parta da premissa de acompanhar a criança e seu propósito


seja de verificar e intervir quando algo não vai bem em relação às operações psíquicas,
fundantes para a subjetividade, em paralelo ao entrecruzamento de problemas de
desenvolvimento na infância, é importante ressaltar que temos a entrevista com os pais e
a recém incluída com os professores. Personagens estes que, além de fornecer o texto
sobre o que acreditam se passar com a criança, encarnam os representantes do Outro, ou
seja, são os porta-vozes do “tesouro dos significantes”, isto é, da linguagem.

Assim, durante o preenchimento e a revisão dos dados coletados do APEGI nas


EMEIs em situação de pesquisa, ao nos depararmos com os conteúdos advindos dos pais
e professores nas entrevistas, percebeu-se que, em muitas vezes, as falas eram divergentes
e até opostas sobre a mesma criança. Instigados, neste momento, algumas questões nos
foram suscitadas: seriam, então, essas entrevistas complementares? O que consideramos
mais o discurso dos pais ou do professor? A entrevista com os pais, por ser mais extensa,
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teria melhor qualidade? Tais indagações puderam apontar para a pergunta que orienta
esse texto: qual a função da entrevista com o professor no APEGI e o que podemos fazer
a partir do seu discurso?

Partindo dessa pergunta e com base em duas cenas de entrevistas realizadas com
os professores, pudemos caminhar em direção a duas vertentes: a relação entre professor-
aluno e a posição que o professor ocupa diante das relações entre as crianças.

A relação professor-aluno e o lugar ocupado pelo professor nas relações entre


as crianças.

Para abordamos a relação entre Psicanálise e Educação, é importante mencionar


que a psicanálise não pretende ser um campo de especialidade que vai trazer diretrizes
para que os professores as cumpram em sala de aula, que se somariam às funções
pedagógicas, e nem mesmo oferecer uma metodologia de trabalho a partir de conceitos
teóricos sobre a criança, isto é, não se ambiciona aplicar a psicanálise como um
instrumento de trabalho em sala de aula. Da mesma forma, a psicanálise também não
pretende diagnosticar crianças consideradas “problema”, endossando uma leitura
patologizante da infância, comum na contemporaneidade.

Ao contrário disso, Millot (1979/1987) indica que “a Psicanálise não pode


interessar à Educação salvo no próprio campo da Psicanálise, isto é, pela psicanálise do
educador e da criança” (p. 157). A autora assinala constantes tentativas de integrar
Psicanálise e Pedagogia evidentes na história, desde as construções de Freud e Anna
Freud, e todas elas falharam.

Ainda que Millot (1979/1987) não demarque claramente o que considera por
Pedagogia e Educação, visto que não são sinônimos1, é importante nos atentarmos para o
que se passa na relação entre os sujeitos educador e criança, ao invés de almejarmos a
junção destes dois campos de conhecimento.

Diante disso, Kupfer (1989) expõe que a Psicanálise entraria enquanto um saber
que poderia transmitir ao educador uma ética, promovendo, assim, uma outra maneira de

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Discussão que não será apresentada nesse texto. Sugerimos ao leitor: Lajonquière, L. (1998) (Psico)
pedagogia, psicanálise e educação: uma aula introdutória. Estilos da clínica. São Paulo, v. 3, n. 5, p. 120-
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se posicionar em relação a sua própria prática educativa. O educador se dirigiria ao aluno


como um sujeito, renunciando a um excesso de métodos de ensino e aprendizagem.

A esse respeito, Voltolini e cols. (2018) afirmam que o psicanalista resgata a


dimensão do sujeito no campo pedagógico, o que nos leva a pensar que a educação só
acontece na relação entre o professor e o aluno, visto que o adulto influencia a criança
sem saber, isto é, a partir de uma posição desejante inconsciente e, por outro lado, a
criança escolhe, posicionando-se frente a essa influência. Esse pensamento vai na
contramão do discurso pedagógico contemporâneo, que tende a esvaziar o espaço da
subjetividade do professor e indica para ele um lugar abstrato de mediador entre o aluno
e o objeto do conhecimento.

No que diz respeito à formação de professores, é frequente a ideia de que o


professor estaria mais bem preparado para ensinar e transmitir os conteúdos pedagógicos
com técnicas eficientes de ensino e aprendizagem. Assim, haveria uma busca para aplacar
a angústia do professor a respeito do que a criança é, ou seja, como se existisse algum
conhecimento sobre “A criança” para que, enfim, pudesse se fazer algo a partir desse
saber. Como aponta Voltolini (2011), numa tentativa de conhecer a criança para ajustar a
atividade a ser proposta, privilegiando determinados recursos didáticos em prol de outros,
assim como buscar determinadas maneiras de agir frente a ela, a depender de seu estágio
de desenvolvimento, propaga-se uma lógica em que se espera formular o que a criança é
versus o que educador deve ser e fazer.

A partir dessa lógica, a relação entre o professor e o aluno, em sua singularidade,


perde espaço, ou seja, a primazia do sujeito e sua essencial função no processo educativo
ficam abaladas. Freud, em “O interesse científico da psicanálise” (1913), apontou para a
relevância da psicanálise na pedagogia, ainda que em uma tentativa de junção dos
campos, e ressaltou que, para ser educador, é necessário aproximar-se da criança e de suas
questões psíquicas e, se isso não acontece, é porque os adultos não compreendem mais a
sua própria infância. Nesse sentido, Voltolini (2011) comenta que

a ignorância do adulto sobre a criança é essencialmente da ordem do recalque


que todo adulto realiza da própria infância. Não se trata, portanto, de uma falta
de conhecimento, que seria contornada com uma melhor compreensão teórica
sobre a criança, mas da instalação de um processo defensivo que implica um
não saber ativo e que dificulta um estar com a criança (Voltolini, 2011, p. 42).
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Portanto, o saber do professor sobre a sua turma, sobre a criança, sobre o que
funciona ou não na sua prática docente não pode ficar submetido à universalidade do
conhecimento, somado ao caráter prescritivo e aplicativo deste e sua tendência à certeza
e massificação.

À vista disso, o APEGI, construído em referência à teoria psicanalítica, vem


questionar o professor, por meio da entrevista, a respeito da singularidade do aluno, ou
melhor dizendo, busca resgatar, no professor, o olhar para a criança-sujeito. O professor
é convidado a relatar, diante do psicanalista, o que ele sabe sobre a criança, ao passo em
que se pode perceber em que lugar ele a situa em seu discurso. Ao pôr em palavras o seu
saber, ele pode se escutar, se questionar, refletir sobre a complexidade do ato de educar
aquela criança singular e o que ele está conseguindo perceber sobre ela.

Nessa perspectiva, ao oferecer esse momento de escuta e abrir espaço para o


professor falar de sua experiência, questionamentos e dificuldades, podemos pensar, para
além de suas queixas e demandas, seu discurso em relação àquela criança, ou seja, é
possível vislumbrar de que maneira ele se posiciona e coloca a criança da qual fala.

Pois bem, após explanarmos a respeito da relação professor - aluno, propomos


irmos adiante e discutirmos sobre as relações entre as crianças no âmbito escolar e o lugar
do professor, visto que a recém-incluída entrevista com os professores foi construída com
mais questões voltadas para o eixo “função do semelhante”, nova construção que visa
analisar os laços que as crianças estabelecem com seus pares.

A relevância em se pensar a relação com o semelhante parte da constatação de


Lacan no texto "Os complexos familiares" (1938/2002), onde ele indica a função da
imago do semelhante para a constituição do sujeito. Tal ideia foi também abordada em
“O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na
experiência psicanalítica” (1949/1998), onde Lacan apresentou sua teoria a respeito da
constituição subjetiva e evidenciou que ela pode ser compreendida como uma
identificação, ou seja, quando o humano, nos primeiros meses de vida, assume uma
imagem de si. Identificação esta que tem a função de estabelecer uma relação inicial desse
organismo com sua realidade.

Dessa maneira, a identificação é tida como uma solução do humano que vem
servir de resposta para a não identidade de si, como um recurso necessário para sua
humanização. Lacan (1949/1998) ainda comenta que o momento em que se conclui o
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estádio do espelho inaugura as relações dialéticas do eu às situações sociais e com os


outros, por meio da identificação com a imago do semelhante [grifo nosso].

Assim, nesse ponto acerca da identificação com a imagem do semelhante,


estabelecido na conclusão do estádio do espelho, Lacan sinaliza a relação entre a
fraternidade e gênese do eu. Todavia, ao retomarmos “Os complexos familiares”
(1938/2002), esse outro semelhante já não é mais imagem, mas está presente e encarnado
no irmão ou no par, por exemplo. De tal modo, a função do outro semelhante é indicada
por Lacan como contribuinte para a formação do eu, ou seja, para a constituição do
sujeito, visto que esse outro está presente e é importante na demarcação de uma imagem
própria de si, ao atribuí-la enquanto imagem narcísica. Temos, assim, um árduo desafio
para desembocar numa identificação singular, uma vez que

A percepção da atividade do outro não basta, com efeito, para romper o


isolamento afetivo do sujeito. Tanto quanto a imagem do semelhante só
desempenha seu papel primário, limitado à função de expressividade, ela
desencadeia no sujeito emoções e posturas similares, ao menos na medida em
que a estrutura atual de seus aparelhos permite. Mas enquanto sofre essa
sugestão emocional ou motora, o sujeito não se distingue da própria imagem.
Mais do que isso, na discordância característica dessa fase, a imagem só faz
acrescentar a intrusão temporária de uma tendência estrangeira. Chamemo-la
intrusão narcísica: a unidade que ela introduz nas tendências contribuirá,
entretanto, para a formação do eu. Mas, antes que o eu afirme sua identidade,
ele se confunde com essa imagem que o forma, mas o aliena primordialmente.
(Lacan, 1938/2002, p. 38).

Esta dinâmica, nomeada por Lacan de “complexo de intrusão”, indica a


experiência de semelhantes em relação familiar, em que este outro é reconhecido
enquanto um rival, portanto, um outro como objeto. Esse reconhecimento propicia
sentimentos de rivalidade, agressividade e ciúmes, devido à identificação, à imagem
narcísica que este representa.

Kehl (2000) comenta que a intrusão do semelhante confronta o sujeito com "a
máxima semelhança e a inevitável diferença" (p. 36), o que favorece um outro
enlaçamento com a relação especular, retirando-o de uma ilusão alienante de que poderia
ser idêntico ao eu-ideal, permitindo que o sujeito saiba mais sobre si mesmo por meio
desse estranho familiar, isto é, por meio da alteridade.

Ademais, Kehl (2000) também estabelece que o contato e as experiências


cotidianas com os irmãos favorecem e possibilitam um rompimento da ilusão identitária,
uma vez que se está em um campo de relações e identificações horizontais, ou seja, no
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mesmo plano, o que é característica base da sociabilidade, onde se constatam as pequenas


diferenças. Esses laços entre pares auxiliam o sujeito para que ele possa encontrar um
lugar próprio e adentrar numa relação de fraternidade - não ameaçadora à construção do
narcisismo.

A respeito da ideia de fraternidade, Kehl (2000) emprega a expressão “função


fraterna”, em que o termo “função”, comum ao usado no APEGI em “função do
semelhante”, diz de um ponto necessário, não contingente, da participação do semelhante
na constituição do sujeito. Porém, a autora emprega “fraterna” em referência à fratria,
partindo dos irmãos, e, para além deles, ao tomar o mito freudiano de “Totem e Tabu”
como protótipo civilizatório, no qual o convívio e acordos são regidos pelo pacto
estabelecido entre os irmãos, após o assassinato do tirano pai da horda para, em seguida,
realizarem um ritual de devoração, portanto, de incorporação do pai.

A este pacto, que institui o tabu do incesto, para todas as comunidades


humanas, chamamos de função paterna. Fazer operar a função paterna é tarefa
da fratria – como lembrou o colega Leandro de Lajonquière, se o pai simbólico
não está encarnado em algumas renúncias voluntariamente aceitas pelos
irmãos, ele não está em lugar nenhum. (Kehl, 2000, p. 33).

Dessa forma, a autora estipula a diferença entre função do semelhante para a


constituição do eu, e a função fraterna como aquela que dá suporte na construção da
função paterna, colocando-as em estreita relação, uma vez que a “função fraterna faz,
portanto, suplência à função paterna, na medida em que possibilita separar a lei da
autoridade do pai real” (KEHL, 2000, p. 39).

Dito isso, as relações horizontais familiares que envolvam o semelhante


costumam ser estendidas ao âmbito escolar e, comumente, são sustentadas pelos
professores. No entanto, descendem de um amparo anterior dos pais - a fraternidade
depende da parentalidade.

Nesse sentido, podemos entender que as relações entre os colegas de classe têm
efeitos na constituição psíquica uns dos outros, ainda que submetidos ao professor como
aquele que pode favorecer ou não as expressões singulares de cada criança, mediar o
convívio e as brincadeiras – comumente turbulentos – entre os pares e permitir que a
transmissão da função paterna possa ocorrer e ser sustentada entre os semelhantes.

Para Kupfer, Voltolini e Pinto (2010), a situação de grupo faz com que o indivíduo
experimente alterações em seu posicionamento individual a partir da identificação que o
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laço social propõe com o outro. O interessante é que a experiência de ocupar posições
discursivas diferentes trará efeitos para o sujeito, mesmo que não altere sua posição
subjetiva. Pois é vivendo outras vidas, novas experiências, que se dissolvem as
cristalizações e se experimentam outras formas de ser.

Assim, na circulação das relações horizontais entre as crianças, uma criança pode
fazer muito pela outra, sendo que, no âmbito escolar, o professor ocupa um lugar
fundamental, de mediador dessas relações e, portanto, pode ser um importante agente na
jornada singular que cada criança enfrenta para ascender a seu lugar de sujeito.

A escuta do professor a partir do APEGI

No momento de dar voz ao professor, durante as entrevistas, percebemos que o


APEGI, ao invés de somente coletar dados a respeito da criança e de suas relações com
os colegas de classe, também poderia fornecer subsídios norteadores para produzirmos
pequenas intervenções nos professores ao solicitarmos elucidações, mais detalhes e
questionar o que dizem em determinada fala, isto é, confrontá-los com seu dizer.

Em seu texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan


(1958), ao discutir o lugar da interpretação na direção clínica do tratamento, a distingue
de uma espécie de um dizer esclarecedor, por meio da confrontação:

A saber, o lugar ínfimo que a interpretação ocupa na atualidade psicanalítica -


não porque se tenha perdido seu sentido, mas porque a abordagem desse
sentido sempre atesta um embaraço. Não há autor que se confronte com ele
sem proceder destacando toda sorte de intervenções verbais que não são a
interpretação: explicações, gratificações, respostas à demanda ... etc. O
procedimento torna-se revelador quando se aproxima do centro do interesse.
Ele impõe que até uma formulação articulada para levar o sujeito a ter uma
visão (insight) de uma de suas condutas, sobretudo com sua significação de
resistência, possa receber um nome totalmente diferente, como confrontação,
por exemplo, nem que seja a do sujeito com seu próprio dizer, sem merecer o
de interpretação, simplesmente por ser um dizer esclarecedor (Lacan, 1958, p.
598).

Dessa maneira, baseando-nos nesta ideia de “um dizer esclarecedor”, no decorrer


da pesquisa, pinçamos duas entrevistas realizadas com duas professoras da rede
municipal de educação de São Paulo durante a primeira etapa de validação do
instrumento.
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Apresentaremos duas vinhetas que nos permitem refletir sobre os discursos das
professoras e seus possíveis efeitos na subjetividade das crianças. Os nomes das crianças
e das professoras serão mantidos em sigilo e substituídos por nomes fictícios. A primeira
vinheta diz das entrevistas dos pais e professor como elucidativas sobre o olhar da
subjetividade da criança, que indica a relação professor-aluno. E a segunda versa sobre o
uso do APEGI como ferramenta de escuta e confrontação do professor com seu próprio
discurso, que aponta para as relações das crianças com seus semelhantes.

Vinheta 01: João

João começou a frequentar um Centro de Educação Infantil localizado no bairro


de São Miguel Paulista, no mês de abril de 2018, com 4 anos e 9 meses, dois meses depois
do início das aulas após transferência de outra escola da região. Logo nos primeiros dias,
o aluno chamou a atenção da professora e da auxiliar, que solicitaram a nossa avaliação
com o APEGI.

A professora relatou falta de coordenação motora e uma suposta dificuldade


auditiva e de fala da criança. Parecia suspeitar de algum tipo de problema físico ou
orgânico e, por isso, solicitou a nossa ajuda. Estava intrínseco, nesse pedido, a busca por
identificar algo em João que explicasse os diferentes comportamentos do restante da
turma.

Essa professora descreveu a criança como rapidamente adaptada à rotina, que


dormia rápido e seguia as regras de maneira passiva. Também comia rápido, repetia o
prato. João não era muito atento ou cuidadoso com seu corpo, sujava-se sem se incomodar
com isso; sua calça, que era larga, caía e ele não se importava; também não ia ao banheiro,
apenas quando a professora sugeria. A professora observava um desinteresse por jogos
ou atividades mais estruturadas, sendo seu interesse voltado para jogar os brinquedos nos
colegas ou no chão, com poucas brincadeiras compartilhadas. Aceitava, mas não buscava
o contato com outras crianças e adultos.

No seu relato, a professora demonstrou estar atenta às pequenas mudanças


dizendo, por exemplo, que João pouco a pouco se tornou mais falante. Ela percebia as
manifestações e demandas do aluno. Porém, a ênfase de seu discurso estava nos supostos
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sintomas ou dificuldades que a criança apresentava e que, para ela, significavam algo de
patológico.

O percurso que se seguiu naquele momento foi de encaminhamentos por parte da


escola para avaliações fonoaudiológica e psicológica na UBS da região. Não se trata, aqui,
de negar as patologias ou psicopatologias da infância, nem mesmo negar a importância
da interface entre saúde e educação, mas, sim, de fazer uma reflexão de como esses
significantes estão presentes na prática e no discurso pedagógico.

O pedido de avaliações de especialistas na escola ou fora dela alivia a angústia do


professor por ele não saber trabalhar com a criança que apresenta diferentes formas de se
comportar e de se relacionar com o outro. Assim, o saber científico vem nomear uma
série de questões relevantes no contexto escolar, social ou familiar, atribuindo-as
exclusivamente à criança e ainda, supostamente, oferecer respostas de qual a melhor
forma de trabalhar com ela no contexto pedagógico.

A ciência exerce a força de seu saber no campo da infância e, como exemplo


disso, temos a psiquiatria e outras especialidades médicas e terapêuticas que dizem como
a criança deve ser. Sobre essa questão diagnóstica, Vorcaro (2011) nos traz que o discurso
psiquiátrico oferece a segurança e o rigor científico para detectar o entrave que a criança
pode representar ao projeto social. Ou seja, a clínica psiquiátrica diagnostica o mal-estar
provocado pela criança que não pode ser reconhecida pelos saberes pediátrico,
pedagógico ou parental.

A nomeação precoce ou descuidada de um diagnóstico na infância, seja ele


orgânico ou psíquico, pode afetar a subjetivação da criança. Vorcaro (2011) ressalta que
um diagnóstico compreende o que é irreconhecível pelos pais e indica terapêuticas por
especialistas que adaptarão a criança à normalidade. Os pais guiam-se pelo saber
científico dos especialistas já que não podem mais se orientar pelo seu desejo.

De forma semelhante ao que acontece com os pais, podemos dizer que o saber
científico orienta a relação entre o professor e o aluno quando o professor esbarra em algo
diferente na criança e no seu não saber. Voltolini e cols. (2018) falam sobre poder
flexibilizar o conhecimento universal para pensar naquele aluno, partir da experiência
para a construção de um saber próprio e singular. Para tanto, é necessário reconhecer as
lacunas de conhecimento e de um saber inconsciente. Abrir espaço para uma narrativa,
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diminuir a alienação em relação ao saber inconsciente exige um processo de elaboração


e não de esclarecimento, o que é possível a partir de uma perspectiva clínica de trabalho.

A escuta da professora, a partir da entrevista do APEGI, pode auxiliar nesse


espaço de fala, fala de uma experiência particular com João, possibilitando a partir da
palavra, uma aproximação de seu saber inconsciente. Esse saber passa, assim, pela
elaboração de um impasse que aparece ali, no cotidiano, com aquele aluno. Essa ideia é
diferente de esclarecer um conhecimento que falta sobre “A criança”.

Por outro lado, na entrevista com o pai, o tom foi outro (a mãe não pôde
comparecer à entrevista e apenas ele estava presente). A submissão excessiva às regras
era entendida de forma positiva, sendo que João, desse jeito, era visto como uma criança
obediente. O pai sinalizava, em seu discurso, pouca apropriação sobre detalhes da história
ou do cotidiano do filho, sem saber dizer, por exemplo, o dia e mês do seu nascimento.
Trouxe preocupações com a fala, com um comportamento “tímido” reconhecido dentro
de um cenário de filiação, pois ele relembrou de sua infância com comportamentos
semelhantes. Além disso, referiu que sua esposa só desenvolveu completamente a fala
aos 11 anos de idade. Contou-nos que pediu à professora que conversasse mais com João
e achava que isso estava ajudando na comunicação da criança.

Nota-se, nesse discurso, um afastamento de possíveis sinais relativos ao


desenvolvimento de João, transmitidos através de seu comportamento, minimizando-os e
deixando com que o tempo, seu crescimento ou a escola os transformem na direção do
esperado e normativo da infância. Diferentemente da professora, o discurso do pai não
questiona uma patologia, mas mostra o desejo de eliminar dificuldades ou
comportamentos inadequados.

Isso posto, cabe ressaltar que, para o desfecho clínico, o APEGI considera todas
as entrevistas (pais, professores, criança individualmente, criança em grupo). Pensar em
uma fotografia da criança em um dado momento, quando acontece a aplicação do APEGI,
é considerar, refletir e questionar como a criança está posicionada frente aos eixos
estruturantes do psiquismo.

A entrevista com o pai e com a professora, adultos referência para a criança, nos
mostra a qualidade e os diferentes tipos de laços que se estabelecem e atuam na
constituição subjetiva da criança. Notamos que, de certa forma, o pai ignora alguns sinais
importantes que estão em andamento, ainda que os insira em um cenário de filiação. Ao
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mesmo tempo, a professora percebe esses sinais e, no entanto, tenta os enquadrar em uma
patologia, o que nos leva a pensar nos efeitos que esses discursos podem deixar no
psiquismo de João.

Dessa forma, a entrevista com o professor não está aqui como um complemento,
visto que o que está em jogo são os laços que se estabelecem no ambiente escolar.
Voltolini e cols. (2018) dizem que a verdade que o professor traz em seu discurso objetivo
fala sobre o seu saber e sua implicação subjetiva com o aluno do qual se refere, sem se
dar conta disso. O professor-sujeito está dividido entre o conhecimento, universal, no qual
busca se referenciar, e o saber inconsciente, singular, que o guia sem que ele perceba.

Vinheta 02: André e Otávio

André e Otávio tinham 4 anos no momento das entrevistas. Eles foram sorteados
para participarem da pesquisa e, por coincidência, eram da mesma sala em um Centro de
Educação Infantil, também localizado em São Miguel Paulista.

As entrevistas do APEGI ocorreram em abril de 2018 e seguiram a seguinte


sequência: responsáveis por Otávio e entrevista com o garoto sozinho; responsáveis por
André e entrevista com ele sozinho; entrevista com professora (que chamaremos de Leila)
e observação em grupo com André, Otávio e outras crianças de sua classe. Destacaremos
os momentos com a professora e em grupo.

Em meio a um horário livre em sala de aula, iniciamos a entrevista com Leila


sobre André. De partida, a questionamos livremente sobre o que ela nos poderia contar a
respeito do menino, e começa dizendo que ele é muito mimado, a ponto de entrar na
creche (até hoje) carregado no colo e com chupeta. Indignada, completa: “A irmã, que
tem dois anos, vem andando... Já passou da idade!”.

Em seguida, partimos para questões mais dirigidas, com base nos eixos do
APEGI. Com relação às brincadeiras e preferências, a professora apenas comenta que
“dinossauro é a vida dele”, indicando os objetos que o aluno mais prefere brincar, mas
sem mencionar de que maneira brinca.

Quanto aos cuidados diários e o momento de sono, Leila diz que André se alimenta
sozinho e come bem na escola, assim como tem a capacidade de ir ao banheiro e se
higieniza com auxílio. No entanto, na hora de dormir, a professora comenta que precisa
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colocar André longe de Otávio, pois “eles ficam bagunçando” e, mesmo separados,
muitas vezes, André não dorme – ele precisa de chupeta e “paninho” junto de si nos
momentos de sono.

Em continuação, a professora nos diz que o amigo inseparável de André é Otávio,


“mas ele [André] interage com outras crianças”, são uma “dupla dinâmica, tipo Batman
e Robin”, em alguns momentos André e Otávio imitam um ao outro, ela completa. Com
base nessas informações, perguntamos à professora o que André faz quando Otávio falta
à escola. Ela, prontamente, responde que ele busca um par, um outro colega para formar
uma dupla.

A respeito dos limites e regras, a professora se sente desafiada e, muitas vezes,


André transgride os combinados, antes de acatá-los. Por vezes, é preciso colocá-lo de
castigo ou ameaçá-lo para obedecer. André chega a agredir a professora quando
contrariado, não consegue esperar facilmente o que é proposto e transforma o combinado
em algo que seja melhor para ele. Leila completa: “[ele] entra em conflitos e sai como se
não tivesse nada a ver com isso”.

Em seguida, agradecemos as informações relatadas sobre André, encerramos essa


entrevista e colocamos que gostaríamos, naquele momento, de começar a conversar um
pouco sobre Otávio.

Iniciamos também propondo uma associação livre e, ao indagarmos o que ela


poderia nos contar sobre Otávio, Leila diz, com entonação, que ele é “muito teimoso” e
“tem personalidade forte”. Em seguida, completa afirmando que Otávio é igual a André,
só que menos carinhoso, e diz “tudo o que se aplica a um vale para o outro”. A fala de
Leila nos causa um espanto e fazemos uma intervenção, pedindo para que a professora
nos esclareça o que quis dizer. A professora logo responde que “a diferença é que Otávio
não gosta de ser contrariado”.

Seguimos a entrevista e, quanto às brincadeiras, Leila menciona que Otávio gosta


de brincar de correr e que, comumente, gosta de brincar com André e Pedro, pois costuma
procurar crianças iguais a ele, que são agitadas e não respeitam os limites.

No tocante aos cuidados diários e hora de dormir, Otávio não come muito bem na
escola, costuma jogar a comida embaixo da mesa e pouco vai ao banheiro, portanto, a
professora não soube nos dizer a respeito de como Otávio lida com seus excrementos.
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Nos momentos de sono, diz que o garoto faz bagunça. Dessa forma, Leila precisa colocá-
lo longe de André, no entanto, costuma dormir com chupeta.

Quanto à relação com os semelhantes, Leila diz que Otávio não imita outros
colegas, todavia, anteriormente, na entrevista de André, afirmou que os garotos costumam
imitar um ao outro, apesar dela perceber que Otávio sempre está com André, e afirmar
que “[Otávio] é cúmplice de André”, “se apoiam” e “imitam a bagunça um do outro”.

Por fim, no que diz respeito aos limites, a professora sente que sua palavra tem
pouco peso para Otávio, visto que, diante das regras, ele não gosta de ser contrariado,
tenta agredir, joga objetos e brinquedos em Leila, fica nervoso, questiona a ordem, tenta
negociar algo em troca, mas “se não quer, não faz”.

Encerramos a entrevista e partimos para o grupo de crianças, onde notamos que


André indicava uma preferência por estar com Otávio, mas conseguiu também brincar
com Pedro. O brincar de André possuía a construção de cenas descritivas, mas sem uma
narrativa. Ele trocou de brincadeiras com frequência. Já Otávio tentou várias vezes ficar
ao lado de André, convocava-o com considerável frequência, acompanhando-o em suas
brincadeiras e atos, inclusive o nomeia de primo, apesar de não o serem. Otávio também
acompanhou Pedro e brincaram juntos em um breve momento. Nas vezes em que André
não respondia seu chamado, Otávio ficou sozinho ordenando e organizando os cômodos
da casa, fez comida com a massinha, colocou o “papai” para ver TV e sentou outros
personagens à mesa. Ressaltamos que atitude parecida apareceu na entrevista individual
de Otávio, em que o garoto, por vezes, chamou e esperava a entrada de André.

Ainda no grupo, uma interessante cena ocorreu quando mostramos um espelho


que estava na caixa de brinquedos para Otávio e o perguntamos: “Quem é?”. Ao ver sua
imagem refletida, Otávio nomeou-se na 3ª pessoa dizendo seu nome, em seguida, André,
que estava ao lado, viu a cena e também nos respondeu à pergunta sobre quem era,
nomeando “é o Otávio”. Perguntamos, posteriormente, para Otávio “quem é o Otávio?”
e o garoto responde: “eu”.

A fala de André, ao responder uma pergunta que havia sido dirigida a Otávio sobre
de quem era a imagem refletida no espelho, nos sinalizou que a questão poderia ter sido
tomada para dois destinatários, ou, nas palavras da professora, “tudo o que se aplica a um
vale para o outro”. Ao serem tomados em conjunto, respondem em conjunto.
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Quando Leila os referencia enquanto “cúmplices”, “dupla dinâmica”, “Batman e


Robin”, podemos notar que estamos diante de uma união de irmandade, um mecanismo
de identificação opera nessa dinâmica e é legitimado pela professora nos momentos em
que não os diferencia claramente e valida a conjunção das crianças.

Se, como dissemos, as experiências com os semelhantes podem favorecer um


rompimento da ilusão identitária especular de que poderiam ser idênticos ao eu-ideal, ou
seja, todo potente, contrariamente, André e Otávio se unem, desautorizando a professora,
ao passo em que se autorizam mutuamente à transgressão das regras e combinados, como
uma mini gangue.

Tal ponto nos faz pensar na estreita afinidade entre função fraterna e função
paterna, como bem colocado por Kehl (2000), visto que é possível perceber que existe
uma relação de fraternidade por meio da aliança e da cumplicidade que a professora
comenta entre os garotos. Contudo, ela não comenta, e não pudemos observar em somente
uma entrevista, se há rivalidade e ciúmes entre André e Otávio.

Ainda que apenas uma entrevista seja limitada no que concerne a uma análise de
um caso clínico, ousaremos especular que a conjunção da dupla opera em uma vertente
alienante, mas que requererá uma disjunção, que decorrerá da singularização, para que,
no momento da de sua imagem refletida no espelho, Otávio possa se nomear enquanto
alguém só, sem a intrusão de André enquanto Outro que vem fazê-lo por ele. Tal
movimento dependerá, também, das palavras de Leila, que precisará tomá-los enquanto
sujeitos singulares e propiciar outros tipos de relações com os semelhantes, favorecendo,
por conseguinte, o curso da subjetividade de cada um.

Afinal, por que entrevistar os professores?

A escola, sem dúvida, propicia um ambiente rico para as experiências entre as


crianças, especialmente as que se assemelham pela proximidade das idades. A forma
como se dão os laços entre pares diz sobre a constituição subjetiva da criança, aspecto
que pudemos discorrer ao longo deste texto e, a partir daí, pensar na importância da
função do professor como alguém que ocupa um lugar privilegiado ao acompanhar de
perto e participar nas e das relações com as crianças.
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Assim, frente ao questionamento que nos orientou, podemos dizer que a entrevista
com os professores tem a função de ser suplementar à entrevista com os pais.
Suplementar, pois ela não é de relevância inferior, mas, sim, ultrapassa, vai além do que
os pais possam relatar. A fala do professor não complementa a dos pais, como poderia
parecer inicialmente, mas traz uma outra perspectiva da criança a partir de um outro lugar,
do social, de fora da família, perspectiva esta que transcende o sujeito e adentra nos laços
sociais.

Nesse sentido, o fato de dar voz ao professor é uma possibilidade de escuta do


laço e esse é um desdobramento relevante de sua entrevista, já que o que circula na fala e
no ambiente escolar não é inofensivo para a criança. Diante dessa fala, notamos um
acréscimo no alcance do APEGI, que é a possibilidade de o psicanalista fazer pequenas
intervenções na direção de confrontar o professor com a sua própria fala e colocá-lo diante
de um esclarecimento frente ao que acabou de dizer, numa tentativa de provocar um novo
engendramento de significantes.

A fala e a posição dos professores revelam não só como eles percebem suas
relações com as crianças e destas com seus colegas de classe, por consequência sua
constituição subjetiva, mas também age e deixa efeitos nesse processo. As marcas
provocadas pelas palavras dos professores deixam rastros que são possíveis de serem
escutados e captados pelo APEGI, como apresentamos nesse trabalho.

Assim, podemos concluir, mencionando o fato de que o professor, além de olhar


para a singularidade de uma criança, também tem a função de sustentar e viabilizar que
as crianças possam se relacionar entre elas, com o intuito de que possam suportar as
pequenas diferenças no semelhante, se apoiarem coletivamente ao germinar o sentimento
de sociabilidade e sustentação da Lei, ao renunciarem certas satisfações pulsionais.

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