Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
De um lado os chefes; do outro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas
linhas essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a
"máquina" profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que os karai eram
capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes de índios fanatizados,
diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na morte.
O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seus logos, podiam
determinar uma "mobilização" dos índios, podiam realizar esta coisa impossível na
sociedade primitiva: unificar na migração religiosa a diversidade múltipla das tribos.
Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o "programa" dos chefes! Armadilha da
história? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade primitiva à
dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder do que os segundos
detinham. Então talvez seja preciso retificar a idéia da palavra como oposto da
violência. Se o chefe selvagem é obrigado a um dever de palavra inocente, a
sociedade primitiva pode também, evidentemente em condições determinadas, se
voltar para a escuta de uma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como
um comando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez em germe o
discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo
dos homens se dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota. Palavra profética,
poder dessa palavra: teríamos nela o lugar originário do poder, o começo do Estado
no Verbo? Profetas conquistadores das almas antes de serem senhores dos homens?
Talvez. Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dúvida a
sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográficas ou outras, os limites
extremos que determinam uma sociedade como sociedade primitiva), o que os
selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem
chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A
história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de classes. A
história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta verdade, a história da
sua luta contra o Estado. (p. 233 e 234)
De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos
explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento.
Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo
irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada pela faca ou a pedra, as
cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação,
em seu momento de tortura é marcar o corpo: no ritual iniciático, a sociedade imprime a sua marca
no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma marca são sempre indeléveis... A marca é um
obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo
é uma memória. Pois o problema é não perder a memória do segredo confiado pela tribo, a memória
desse saber de que doravante são depositários os jovens iniciados. Que sabem agora o jovem
caçador guayaki, o jovem guerreiro mandan? A marca proclama com segurança o seu
pertencimento ao grupo: ‘És um dos nossos e não te esquecerás disso’. (p. 199 e 201).
Ainda sobre a relação entre as ideias de Pierre Clastres e de D&G: destaquei abaixo
um trecho do Mil Platôs, onde D&G vão além da hipótese de um "nascimento do
Estado" (hipótese, de certo modo, aceita por eles mesmos no livro O Anti-Édipo),
sublinhando a diferença entre a teoria deles e a de Clastres:
- Agenciamentos:
"Projeto de pesquisa audiovisual de Angela Melitopoulos e Maurizio Lazzarato,
"Agenciamentos" faz um passeio esquizofrênico pelas novas formulações propostas por Félix
Guattari para se pensar os sujeitos, as sociedades e as subjetividades. Dividido em quatro
partes, o projeto traz imagens raras de Félix Guattari na famosa clínica de La Borde (local de
experimento polifônico da prática da esquizoanálise), além de trechos de filmes, entrevistas e
imagens de diversos tipos de sujeitos: árvores, rios, pedras, um mendigo no centro da cidade
etc, - nada escapa ao olhar sensível e articulador de agenciamentos de Melitopoulos e
Lazzarato. "Agenciamentos" é um convite à filosofia subversiva e transformadora nas costuras
erráticas das linhas de fuga criadoras."
Para uma melhor compreensão das ideias expostas na aula 1, recomendo muito a
leitura, logo abaixo, do trecho inicial de uma importante aula de Deleuze sobre a
axiomatização capitalista. Portanto, serve como um bom resumo da nossa primeira
aula.
Para quem quiser pesquisar mais sobre o conteúdo dos dois tomos do Capitalismo e
esquizofrenia (O anti-Édipo e Mil Platôs), seguem, em anexo, várias aulas transcritas
de Deleuze que foram traduzidas para o espanhol.
Amauri
O que acontece com o corpo de uma sociedade? São sempre fluxos, e uma pessoa é
sempre um corte de fluxo. Uma pessoa é sempre um ponto de partida para uma
produção de fluxo, um ponto de chegada para uma recepção de um fluxo, um fluxo de
qualquer tipo; ou, melhor ainda, uma intercepção de vários fluxos.
Se uma pessoa tem cabelo, esse cabelo pode atravessar diversas etapas: o penteado
de uma garota não é o mesmo que o de uma mulher casada, não é o mesmo que o de
uma viúva: há todo um código do penteado. Uma pessoa, na medida em que faz seu
penteado, apresenta-se tipicamente como uma interceptora em relação a fluxos de
cabelo que ultrapassam o seu caso e esses fluxos de cabelo são, eles mesmos
códigos segundo códigos muito diferentes: o código da viúva, código da garota, código
da mulher casada, etc. Este é finalmente o problema essencial da codificação e da
territorialização, que é o de sempre codificar fluxos assim, como um meio fundamental:
marcar as pessoas (porque as pessoas estão sempre na intercepção e no corte de
fluxos, elas existem nos pontos de corte dos fluxos).
Mas então, mais do que marcar as pessoas – marcar as pessoas é o meio aparente -,
sua função mais profunda, a saber: uma sociedade só tem medo de uma coisa: o
dilúvio; ela não tem medo do vazio, ela não tem medo da penúria ou escassez. Sobre
ela, sobre seu corpo social, algo vaza e nós não sabemos o que é, algo flue que não é
codificado, algo que, em relação a essa sociedade aparece como incodificável. Algo
que fluiria e que arrastaria essa sociedade a uma espécie de desterritorialização que
faria a terra sobre a qual ela se instala dissolver-se: pois bem, esta é a tragédia.
Encontramos algo que se esfacela e não sabemos o que é, não responde a código
algum, rompe o campo sob esses códigos; e isto vale, a esse respeito, até mesmo
para o capitalismo que sempre acreditou ter assegurado seus simili-códigos; é isto que
designamos como o famoso poder de recuperação dentro do capitalismo – quando
dizemos recupera queremos dizer: a cada vez que lhe parece escapar, parece passar
por baixo desses simili-códigos; ele retampona tudo, e acrescenta um axioma a mais e
a máquina inicia-se novamente. Pense no capitalismo no século XIX: ele vê brotar um
pólo de fluxo que é, literalmente, o fluxo, o fluxo dos trabalhadores, o fluxo do
proletariado. Bem, o que é que brota, que brota maldosamente e que arrasta a nossa
terra, para onde vai? Os pensadores do século XIX têm uma reação muito estranha,
notavelmente os da escola histórica francesa: é a primeira a ter pensado, no século
XIX, em termos de classes, foram eles que inventaram a noção teórica de classes e
inventam-na justamente como uma peça essencial do código capitalista, a saber: a
legitimidade do capitalismo vem disso: a vitória da classe burguesa como classe
oposta à aristocracia.
A idéia de que isto seja uma classe não é possível, não se trata de uma neste
momento: o dia em que o capitalismo não pôde mais negar o proletariado como
classe, coincide com o movimento onde, na sua cabeça, ele encontrou um momento
para codificar tudo isso. Isto que nós chamamos de potência de recuperação do
capitalismo, que é isso?
É que ele dispõe de uma espécie de axiomática e, à medida em que ele dispõe de
algo de novo que ele não conhece, é como para toda axiomática, é uma axiomática
que, no limite, não é saturada: ele está sempre pronto para adicionar um axioma a
mais para restaurar sua marcha. Quando o capitalismo não pôde mais negar que o
proletariado era uma classe, de modo que ele reconhece uma espécie de bipolaridade
de classe, sob a influência das lutas operárias do século XIX, e sob a influência da
revolução, este momento é extraordinariamente ambíguo já que é um momento
importante na luta revolucionária mas é um momento essencial da recuperação
capitalista. Eu te faço mais um axioma, te faço axiomas para a classe operária e para
a potência sindical que a representa, e a maquina capitalista chia e reinicia-se, ela
selou a brecha. Em outros termos, para todos os corpos de uma sociedade, o
essencial é impedir que escorram sobre ela, sobre suas costas, sobre seu corpo,
fluxos que ela poderá codificar e aos quais ela não poderá assinalar uma
territorialidade.
A falta, a penúria, a fome, uma sociedade, ela pode codificá-los. O que ela não pode
codificar é quando essa coisa aparece, aonde ela se diz: quem são esses caras aí?
Então, em um primeiro momento, o aparelho repressivo se põe em movimento, se não
os pode codificar, tenta-se aniquilá-los. Em um segundo tempo, tenta-se encontrar
novos axiomas que permitam recodificá-los por bem ou por mal.
Um corpo social se define bem assim: perpetuamente coisas, fluxos que correm por
cima dele, fluxos correm de um pólo a outro e isto é perpetuamente codificado e há
fluxos que escapam aos códigos, então há o esforço social para recuperar tudo aí,
para axiomatizar tudo isso, para remanejar um pouco o código, afim de dar lugar aos
fluxos que são tão perigosos: de repente, há jovens que não respondem mais ao
código: eles se metem a ter um fluxo de cabelo que não estava previsto, que vamos
fazer? Tentaremos recodificar isto, acrescentaremos um axioma, tentaremos
recuperar, ou será que há alguma coisa aí que continua a não se deixar codificar, e
aí?
Diria isto de todas as sociedades, salvo, talvez, da nossa, isto é, do capitalismo: ainda
que tenha acabado de falar do capitalismo como se, como todas as outras sociedades,
ele codificasse os fluxos e não tivesse outros problemas, mas talvez tenha ido muito
rápido.
O que faltou para que se realizasse o encontro entre os fluxos decodificados do capital
ou do dinheiro e os fluxos decodificados dos trabalhadores para que se realizasse o
encontro entre o fluxo de capital nascente e o fluxo de mão-de-obra desterritorializada,
literalmente, o fluxo de dinheiro decodificado e o fluxo de trabalhadores
desterritorializados? Com efeito, a maneira como o dinheiro se decodifica para tornar-
se capital-dinheiro e a maneira como o trabalhador é arrancado da terra para tornar-se
proprietário de sua mera força de trabalho; estes são dois processos totalmente
independentes um do outro, é necessário que haja um encontro entre os dois.