Podemos pensar em uma tipologia dos devires, para dar conta de algumas de
suas possibilidades. Claro que não conseguiríamos dar conta de todas as variações
porque o devir rapidamente cai em zonas desconhecidas. Suely Rolnik e Guattari falam
de um devir-cidadão, devir-negro, devir-índio, devir-homossexual e outros dos quais
não falaremos aqui. Há sempre mais modos de experimentar a vida do que poderíamos
descrever. Por isso todos os devires escapam das representações, eles só podem indicar
algumas trilhas, pouco usadas e ainda desconhecidas pela maioria.
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se
possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais
instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lent idão, as mais
próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É
nesse sentido que o devir é o processo do desejo”
– D&G, Mil Platôs 4, p. 67
Uma mulher está em relação secundária para o homem, como esposa, mãe, dona
de casa? A forma mulher talvez, estabelecida pelo poder. Mas o devir-mulher consiste
em pegar as partículas interessantes de cada modelo colocadas em segundo plano. Da
forma mulher, que é contraposta à forma homem, o que destoa? Podemos pegar essas
pequenas linhas de fuga para desmontar a figura da mulher e usar seus afetos e
intensidades para escapar das identidades e ganhar velocidade no processo, aumentar a
potência. Implicação contínua do ser com o fora.
Saindo da representação, não caímos na armadilha da imitação e da analogia.
Não se trata de uma imitação, porque não há modelos, não fazemos tal qual uma
criança, não queremos voltar à pré-escola, não colocamos vestidos e passamos batom
para entrar em um devir-mulher, não uivamos para entrar em um devir-animal, não
quebramos vidraças para entrar em um devir-revolucionário. A imitação é um fracasso.
Ela pode servir para, em um primeiro momento, entrar em uma zona de vizinhança, mas
devir não é seguir um modelo, é uma relação real para além de toda correspondência,
sem semelhança, nem homologia. Comprar uma máquina de escrever e sentar no
Starbucks não é entrar em devir-escritor.
Devir também não é analogia. Porque ainda se está nas estruturas que conduzem
os fluxos do desejo. O devir é um fluxo que escapa, que cria buracos na estrutura e faz
verter desejos que estavam antes condicionados e canalizados. Não me comporto como
o lobo-alfa para, na minha empresa, entrar em devir-animal e ser promovido; não me
comporto de modo infantil para, no meu relacionamento, entrar em devir-criança e ser
amado. Nosso ponto de partida é a perda de fundamento, o corpo não gira mais em
torno de seu eixo, nem de outro corpo maior. Agora ele passa entre, traça uma tangente.
É preciso começar a se pensar em uma ética dos devires que ponha fim à moral
do ressentimento. Estamos em uma luta constante para superar o niilismo e não cair
nos buracos subjetivos que são verdadeiras máquinas de ressentimento. Um devir nunca
se conclui ou se concretiza, ele é um processo de agenciamento do desejo, um modo de
vida que se conduz pelas intensidades. Ele também não é unitário, são coletividades
moleculares, composições ativas! Queremos criar mapas de intensidade:
“Sempre se tem de partir de alguma coisa, ou seja, sempre se tem que dispor de
uma cartografia mínima” (Guattari & Rolnik, Micropolítica).
Todo devir é um rizoma, uma abertura, uma conexão. Buscar uma ética dos
devires é mover-se pelos terrenos de uma ética do menor, mais solta, que resiste frente
aos padrões molares. Estabelecer novas alianças, não filiativas. Nem reprodução, nem
assimilação: o devir é uma transvaloração.
Fonte: https://razaoinadequada.com/filosofos/deleuze/etica-dos-devires/