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A ENTRADA DA CRIANÇA NA ESCOLA E O PROCESSO DE

DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO COM BASE NA PSICOLOGIA


HISTÓRICO-CULTURAL

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discorrer sobre o processo de transição da


criança da educação infantil para o ensino fundamental de nove anos, com base nos
pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural. A Psicologia Histórico-
Cultural foi formulada na antiga URSS, numa época em que predominavam as
psicologias tradicionais, as quais adotavam uma visão naturalista do
desenvolvimento humano. Contrapondo-se a tais teorias, Vigotski propõe um novo
método de estudo para a psicologia, a dialética marxista. Isso significa que a
constituição e o desenvolvimento do psiquismo humano acompanham as mudanças
históricas na vida social e material.
Leontiev (1978, p. 273) diz que o homem vem ao mundo desarmado e com
uma única aptidão que o distingue dos animais: a aptidão para formar aptidões
especificamente humanas. Essas aptidões são postas ao homem e são adquiridas
nas relações que ele estabelece com outros homens e com os objetos da cultura. É,
portanto, nessa interação do homem com o mundo, a qual é mediada por
instrumentos e signos, que se desenvolvem as funções psicológicas superiores.
Atualmente, pensando o momento histórico que vivemos, podemos apontar o
processo educativo como o principal meio de transmissão às novas gerações dos
conhecimentos elaborados pela humanidade.
Nessa perspectiva, partimos da compreensão de que o sujeito não nasce
homem, ele aprende a ser homem quando passa pelo processo de humanização, ou
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seja, quando ele se apropria daquilo que foi desenvolvido historicamente na


sociedade, via atividade.
Com relação à criança, durante o seu desenvolvimento, ela transita de uma
atividade para outra, a qual se modifica dependendo da necessidade que o meio
impõe sobre ela. Em cada estágio do desenvolvimento infantil predomina uma
atividade, a qual foi denominada por A. N. Leontiev (2006) de atividade principal ou
dominante. Atividade, esta, que provoca saltos qualitativos no processo psíquico e
na constituição da personalidade.
Segundo Kostiuk (2005, p. 34), “a história do desenvolvimento psíquico da
criança, da formação da consciência e da autoconsciência realiza-se através do
processo de aprendizagem e de ensino”. Deste modo, entendemos que a entrada da
criança na escola acarreta mudanças na sua interação com a realidade e na sua
capacidade cognitiva, pois novas exigências são feitas no processo de
escolarização.
Tomando em conta que em 2006 foi implantada no Brasil a política pública de
ampliação do ensino fundamental para noves anos pela lei nº 11.274, determinando
a entrada da criança de seis anos no ensino fundamental, novas formas de relação
têm sido estabelecidas entre as crianças e o processo educativo, as quais poderão
resultar em mudanças significativas no psiquismo infantil. Desta forma, propomos
um breve estudo teórico acerca das modificações que a entrada da criança na
escola provoca no desenvolvimento do psiquismo da criança, pensando
especificamente na realidade brasileira, em que as crianças estão passando por
este processo ainda mais cedo.

2. MÉTODO

Este trabalho foi elaborado a partir de uma investigação bibliográfica de


caráter exploratório. Segundo Gil (2002) a pesquisa exploratória tem como objetivo
“proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais
explícito” (p. 41). Desta maneira, partimos da pesquisa bibliográfica, nos apoiando
no material já elaborado em livros, teses e dissertações no que diz respeito à
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entrada na criança na escola e ao processo de desenvolvimento do psiquismo, com


base na psicologia histórico-cultural.

3. DISCUSSÃO

Tendo por base os pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural,


entendemos que, como diz Leontiev (1978), o indivíduo não nasce homem, ele
aprende a ser homem quando passa pelo processo de humanização, ou seja,
quando ele se apropria daquilo que foi desenvolvido historicamente na sociedade. A
criança, ao nascer, é inserida em um ambiente social e cultural construído
historicamente por aqueles que a antecederam e só se torna humana quando se
apropria dessa cultura. Assim, a apropriação da experiência acumulada pela
humanidade ao longo da sua história social é essencial para o desenvolvimento do
psiquismo da criança.
Para Leontiev (1978), este processo de apropriação, pela criança, das
experiências acumuladas pela humanidade ao longo da sua história social só é
possível via atividade. Apesar de não ter avançado muito nos estudos da atividade
propriamente dita – feito que ficou a cargo de Leontiev – Vigotski entende que a
atividade socialmente significativa é o princípio explicativo da consciência e,
portanto, atividade e consciência devem ser entendidos como uma unidade dialética
e são elementos fundamentais à psicologia marxista (Asbahr, 2005, p. 42).
Ao discutir a categoria atividade no desenvolvimento do psiquismo Leontiev
(2006) não se refere a qualquer atividade, mas a “atividade cujo desenvolvimento
governa as mudanças mais importantes nos processos psíquicos e nos traços
psicológicos da personalidade da criança, em um certo estágio de seu
desenvolvimento” (p. 65).
Quando trabalharam a questão da periodização da infância, tanto Leontiev
(1978) como Elkonin (1987) relataram que cada estágio do desenvolvimento infantil
se caracteriza por uma atividade principal (ou dominante). É importante ressaltar que
a atividade principal não é a atividade que ocupa mais tempo na vida da criança,
mas aquela da qual surgem e se diferenciam outros tipos de atividades (Pasqualini,
2009, p. 38).
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No caso da criança em idade pré-escolar, Vigotski (1996), Leontiev (2006) e


Elkonin (1987) destacam como a atividade principal a brincadeira ou o jogo de
papéis. Davídov e Shuare (1987, p. 14) explicam que o jogo é a atividade
fundamental dos pré-escolares, e sua assimilação e realização leva a alterações no
psiquismo. No entanto, as brincadeiras ou os jogos não são instintivos, seu conteúdo
é determinado pela percepção que a criança tem do mundo (Elkonin, 1987). E é por
meio desta atividade que a criança aprende a ser e a agir diante das coisas e das
pessoas (Martins, 2006). Além disso, a brincadeira é o meio pelo qual a criança
satisfaz seu desejo de realizar uma atividade socialmente significativa e valorizada o
que, para Elkonin (1987), irá prepará-la para a aprendizagem escolar.
Na transição de um estágio do desenvolvimento para o outro a atividade
principal muda e, consequentemente, mudam o lugar que a criança ocupa na
sociedade, bem como a relação que ela estabelece com a realidade. É importante
lembrar que, quando uma atividade principal é substituída por outra, aquela não
deixa de existir, mas vai perdendo força, dando início a um novo estágio de
desenvolvimento (Leontiev, 2006).
É isso que acontece quando a criança sai da educação infantil, onde tinha
como atividade principal a brincadeira, e entra no ensino fundamental, que tem como
atividade principal o estudo. A atividade anterior – a brincadeira – não deixa de
existir, mas passa para o segundo plano, permitindo que a atividade de estudo
prepondere.
Quando a criança passa a frequentar a escola, começa a ter deveres, tarefas
a cumprir. Na escola a criança irá se apropriar de novos conhecimentos (científicos),
resultando em uma intensa formação de suas forças intelectuais e cognitivas
(Elkonin, 1987). Sechenov (citado por Bogoyavlensky e Menchinskaya, 2005, p. 39)
diz que os fatores mais importantes do desenvolvimento mental são as revoluções
psíquicas que se produzem na cabeça da criança quando aprende a falar, a ler e a
escrever. Portanto, as crianças de seis ou sete anos que vão à escola diferem
substancialmente das mesmas crianças que frequentam a educação infantil pelas
suas características psíquicas, em especial no que diz respeito às características da
atividade do pensamento (Bogoyavlensky e Menchinskaya, 2005, p. 42).
Transportando esses pressupostos teóricos à realidade brasileira levantamos
alguns questionamentos, tendo em vista que, antes da promulgação da política
pública de ampliação do ensino fundamental para nove anos, o estágio pré-escolar
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tinha uma duração maior, ou seja, a brincadeira, como atividade principal, se


estendia por mais tempo. Agora a criança inicia o processo de transição mais cedo,
com seis anos de idade e, em alguns casos, com cinco anos de idade. Acreditamos,
portanto, que a modificação das condições histórico-sociais da educação brasileira,
com a consequente modificação do conteúdo dos estágios de desenvolvimento
acarretará em mudanças na constituição do psiquismo infantil.
Este período de transição, ou seja, a entrada da criança na escola, foi descrito
por Vigotski (1996) como um período crítico – crise dos 7 anos – pois marca o final
de uma etapa do desenvolvimento e o começo da seguinte. Os períodos de crise,
em oposição aos períodos estáveis, se propagam por um espaço de tempo
relativamente curto, mas produzem mudanças e deslocamentos bruscos e
fundamentais na personalidade da criança.
Bozhóvich (1987, p. 255) entende que a presença das crises indica a
frustração que irrompe na criança em resposta à privação ou repressão das novas
necessidades que aparecem ao final de cada etapa do desenvolvimento psíquico
junto com a formação central. Esse caráter de frustração, que torna a criança nestas
etapas difíceis, contribui para manutenção do entendimento das crises como pontos
negativos no desenvolvimento infantil. Sobre isso, Vigotski (1996) se mostra oposto.
Para ele, mesmo as crises se configurando como períodos de redução e extinção
dos conteúdos psíquicos infantil, há nelas um significado positivo uma vez que
despertam o desenvolvimento de novos conteúdos.
Retomando a questão da entrada da criança na escola, Toassa (2004, p. 39),
baseada nos escritos de Leontiev, explica que na transição da brincadeira para o
estudo escolar deve haver toda uma preparação que demanda tempo, “pois a
criança precisa tornar-se consciente do lugar que ocupa nas suas relações sociais”.
Sendo assim, o que provoca a mudança de uma atividade principal para outra é a
transformação do sentido de tais atividades.
Compreender o sentido que as crianças atribuem à atividade de estudo requer
compreender o significado atribuído socialmente para esta atividade. Ao estudar as
etapas iniciais da evolução humana, Leontiev (1978) concluiu que significação social
e sentido pessoal se confundiam. E hoje, nas sociedades de classe, há uma lacuna
entre o conteúdo objetivo e o conteúdo subjetivo da atividade humana, o que faz
com que a atividade se torne “vazia de sentido para o sujeito” (Leontiev, 1978, p.
79). A esta contradição entre significado e sentido Leontiev chamou de alienação. O
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processo de alienação aparece no campo da educação quando observamos que seu


objetivo – garantir aos alunos a apropriação dos conhecimentos construídos
historicamente pelo gênero humano – nem sempre é alcançado.

5. CONCLUSÃO

Como foi visto, partirmos do pressuposto de que o sujeito é construído


historicamente, pelas relações que estabelece com os outros – sejam eles outros
sujeitos ou as instituições –, e entender como se dão tais relações e como elas
atuam na constituição do psiquismo humano é fundamental para podermos propor
qualquer forma de intervenção que vise melhorar as condições sociais hoje
existentes.
Neste sentido, entendemos que estudar as novas formas de relação que
estão se estabelecendo entre crianças e escolas com a implantação do ensino
fundamental de nove anos é essencial para analisarmos as prováveis mudanças no
desenvolvimento do psiquismo infantil tal como o entendíamos até hoje – baseados
nos estudos realizados na educação e ensino fundamental de oito anos.
Como afirma Kostiuk (2005, p. 34), reconhecer as diferenças e estudar as
características específicas dos da aprendizagem, da educação e do
desenvolvimento é essencial para esclarecer suas interconexões e preparar uma
sólida base psicológica para uma eficaz condução educativa do desenvolvimento da
personalidade. Afinal, “só uma educação eficiente leva ao desenvolvimento da
personalidade da criança, e a educação apenas é eficiente quando toma em
consideração as leis e as características do processo de desenvolvimento” (Kostiuk,
2005, p. 36).
Isto posto, pretendemos, com nosso estudo, contribuir para que os
profissionais da área da psicologia, educação e demais interessados possam pensar
as práticas educativas visando seu objetivo máximo, ou seja, possibilitar que as
crianças de fato se apropriem dos conteúdos elaborados historicamente pela
sociedade e sejam também sujeitos ativos no processo de transformação social.
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6. REFERÊNCIAS

Asbahr, F.S.P. (2005). Sentido pessoal e projeto político pedagógico: análise da


atividade pedagógica a partir da psicologia histórico-cultural. Dissertação de
Mestrado. Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo, São Paulo.

Bogoyalensky, D.N.; Menchinskaya, N.A. (2005). Relação entre aprendizagem e


desenvolvimento psico-intelectual da criança em idade escolar. In: LURIA, A.R. et al.
Psicologia e pedagogia: as bases psicológicas da aprendizagem e do
desenvolvimento. (pp. 37-58). São Paulo: Centauro.

Bozhóvich, L. (1987). Las etapas de formación de la personalidad en la ontogenesis.


In: Shuare, M. (org.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS (antologia).
(pp. 250-273). Moscou: Progresso.

Davídov, V.; Shuare, M. (1987). Prefacio. In: Shuare, M. (org.). La psicología


evolutiva y pedagógica en la URSS (antologia). (pp. 5-24). Moscou: Progresso.

Elkonin, D. (1987). Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en


la infancia. In: Shuare, M. (org.). La psicologia evolutiva y pedagógica en la URSS
(antologia). (pp. 124-142). Moscou: Progresso.

Gil, A.C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. (4a Ed.). São Paulo: Editora
Atlas.

Kostiuk, G.S. (2005). Alguns aspectos da relação recíproca entre educação e


desenvolvimento da personalidade. In: LURIA, A.R. et al. Psicologia e pedagogia: as
bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. (pp. 19-36). São Paulo:
Centauro.

Leontiev, A.N. (1978). O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte.


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Leontiev, A.N. (2006). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique


infantil. In: Vigotski, L.S.; Luria; A.R.; Leontiev, A.N. Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem (10a Ed) (pp. 59-83). São Paulo: Ícone.

Martins, L.M. (2006). A brincadeira de papéis sociais e a formação da personalidade.


In: Arce, A.; Duarte, N. (Org.). Brincadeira de papéis sociais na Educação Infantil: as
contribuições de Vigotski, Leontiev e Elkonin (pp. 27-50). São Paulo: Xamã.

Toassa, G. (2004). Consciência e atividade: um estudo sobre(e para) a infância.


Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista, Marília, São Paulo.

Vigotski, L.S. (1996). Obras escogidas. (vol 4). Madrid: Visor.

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