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UNESP

Campus de Araraquara
Faculdade de Ciências e Letras
Curso de Pedagogia
Disciplina: Psicologia da Educação I
Professor: Newton Duarte

SOBRE O PROBLEMA DA PERIODIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO NA


INFÂNCIA 1

D. ELKONIN

O problema da periodização do desenvolvimento psíquico na infância é um problema


fundamental da psicologia infantil. Sua elaboração tem grande importância teórica já
que a definição dos períodos do desenvolvimento psíquico e a revelação das leis do
trânsito de um período a outro permite resolver, ao final, o problema das forças motrizes
do desenvolvimento psíquico. Se pode afirmar que qualquer idéia acerca das forças
motrizes do desenvolvimento psíquico deve ser verificada, antes de mais nada, na
pedra de toque da periodização.
Da correta solução do problema da periodização depende muito a estratégia a adotar
para organizar o sistema de educação das jovens gerações em nosso país. Nisso
reside a significação prática desse problema, significação que crescerá à medida que
se acerque o momento de elaborar os princípios do sistema social único de educação,
que abarque toda a infância. É indispensável sublinhar que a possibilidade de estruturar
semelhante sistema em correspondência com as leis de sucessão dos períodos da
infância surge pela primeira vez na sociedade socialista, porquanto somente tal
sociedade está supremamente interessada no desenvolvimento multilateral e completo
das capacidades de cada um de seus membros e, em conseqüência, na utilização
plena das possibilidades que existem em cada período.
Na atualidade, em nossa psicologia infantil se utiliza a periodização elaborada sobre a
base do sistema de educação já formado. Os processos do desenvolvimento psíquico
estão ligados estreitamente com a educação da criança e a divisão do sistema
educativo está baseada em uma enorme experiência prática. Naturalmente, a divisão
da infância, estabelecida sobre bases pedagógicas, se acerca relativamente à
verdadeira, porém não coincide com ela e, o que é essencial, não está ligada com a
solução da questão acerca das forças motrizes do desenvolvimento da criança, das leis
da passagem de um período a outro. As mudanças que têm lugar no sistema educativo
põem a descoberto que a "periodização pedagógica" não tem as devidas bases teóri cas
e não está em condições de responder a uma série de problemas práticos essenciais
(por exemplo, quando é necessário começar o ensino escolar, em que consistem as
particularidades do trabalho educativo durante a passagem a cada novo período, etc.).
Está amadurecendo uma crise peculiar da periodização existente.
Nos anos trinta, P. Blonski e L. Vigotski, que lançaram as bases do desenvolvimento da
psicologia infantil na URSS, deram grande atenção ao problema da periodização.

1
Texto traduzido, por Newton Duarte, para fins didáticos, do original in DA VIDOV, V. & SHUARE, M. - La
Psicología Evol uti va y Pedagogica en la URSS (Antología), Ed itorial Progresso, Moscou, 1987, pp. 104-124.

1
Infelizmente, desde esse momento não houve, entre nós, trabalhos fundamentais sobre
esse problema.
P. Blonski assinalou o caráter historicamente variável dos processos de
desenvolvimento psíquico e o surgimento, no curso da história, de novos períodos da
infância. Ele escreveu: "Ao mesmo tempo vemos que inclusive agora a juventude, isto
é, a continuação do crescimento e do desenvolvimento após a maturação sexual, no
constitui nem minimamente um patrimônio geral: nos povos ou grupos sociais que se
encontram em condições desfavoráveis de desenvolvimento, o crescimento e o
desenvolvimento terminam junto com a maturação sexual. Desta forma, a juventude
não é um fenômeno eterno, mas sim constitui uma aquisição tardia da humanidade,
ocorrida quase ante os olhos da história". 2
P. Blonski era adversário das idéias puramente evolucionistas sobre o curso do
desenvolvimento infantil. Considerava que este é, antes de mais nada, um processo de
transformações qualitativas, acompanhadas de crises, de saltos. Escreveu que essas
mudanças "podem ocorrer de forma bruscamente crítica ou paulatina.
Convencionaremos chamar épocas e estágios os períodos da vida infantil separados
por crises, umas mais marcadas (épocas) e outras menos marcadas (estágios).
Também convencionaremos chamar fases aos momentos da vida infantil não
separados entre si bruscamente". 3
Nos últimos anos de sua vida, L. Vigotski escreveu um volumoso livro de psicologia
infantil. Chegou a redigir alguns capítulos e outros foram esboçados e se conservam os
estenogramas das conferências que p roferiu sobre o tema. O Problema da Idade no
qual faz uma generalização e uma análise teórica dos materiais referidos à
periodização do desenvolvimento psíquico na infância, existentes nesse tempo na
psicologia soviética e estrangeira.
"Podemos definir provisoriamente a idade psicológica - escreveu L. Vigotski - como uma
época, ciclo ou degrau, como um período relativamente fechado, cuja importância está
dada pelo lugar que ocupa no ciclo geral do desenvolvimento e no qual as leis deste
encontram sempre uma expressão qualitativamente específica (...) O desenvolvimento
da criança não é outra coisa que a permanente passagem de um degrau evolutivo a
outro, passagem ligada à mudança e a estruturação da personalidade da criança.
Estudar o desenvolvimento infantil significa estudar a passagem da criança de um
degrau evolutivo a outro e a mudança de sua personalidade dentro de cada período
evolutivo, que tem lugar em condições histórico-sociais concretas." 4 "Nós já sabemos -
continua Vigotski - onde há que buscar os princípios para a fundamentação real da
periodização evolutiva da infância. Somente as mudanças internas no própio
desenvolvimento, somente as crises e as mudanças em seu curso podem dar -nos a
base firme para definir as principais épocas de estruturação da personalidade da
criança que chamamos idades".5
Tendo caracterizado as principais particularidades dos períodos de passagem no
desenvolvimento, L. Vigotski conclui: "Desta maneira antes nós se abre um quadro

2
P.Blonski. Pedag ogia, Moscou, Uchizdat, 1934, p. 326.

3
P.Blonski. Pedagogia evoluti va, Moscou-Leningrado. O trabalhador da instrução pública, 1930, p.7.

4
L. Vigotski. O Problema da Idade. Manuscrito, p. 5.

5
L. Vigotski. Ibidem, p. 23.

2
completamente regular, claro e pleno de sentido. As idades críticas alternam com as
estáveis. As primeiras são crises, pontos de mudança no desenvolvimento,
confirmando-se assim uma vez mais que o desenvolvimento da criança é um processo
dialético, no qual a passagem de um degrau a outro se realiza não por via de uma
evolução paulatina mas sim revolucionariamente.
Inclusive se as idades críticas não tivessem sido descobertas por via puramente
empírica, seu conceito deveria ter sido introduzido no esquema do desenvolvimento
sobre a base da análise teórica. Agora à teoria lhe resta somente tomar consciência e
compreender aquilo que já foi estabelecido pela investigação empírica." 6
Ao nosso ver, os enfoques do problema da periodização, que traçaram P. Blonski e L.
Vigotski, devem ser conservados e, simultaneamente, atualizados em correspondência
com os conhecimentos contemporâneos sobre o desenvolvimento psíquico das
crianças. Se trata, em primeiro lugar, do enfoque histórico dos ritmos de
desenvolvimento e da questão sobre o surgimento de certos períodos da infância no
curso do avanço histórico da humanidade. Em segundo lugar, nos referimos ao enfoque
de cada período evolutivo desde o desenvolvimento psíquico infantil. Em terceiro lugar,
temos em conta a idéia sobre o desenvolvimento psíquico como um processo
dialeticamente contraditório que não transcorre de maneira evolutiva progressiva, mas
sim que se caracteriza por interrupções da continuidade, pelo surgimento, no curso do
desenvolvimento, de novas formações. Em quarto lugar, a diferenciação, como crises
obrigatórias e necessárias, de pontos críticos no desenvolvimento psíquico que
constituem importantes indicadores objetivos das passagens de um período a outro. Em
quinto lugar, a diferenciação de passagens distintos por seu caráter e, em relação com
isso, a presença, no desenvolvimento psíquico, de épocas, estágios, fases.
Um importante êxito da psicologia soviética do fim dos anos trinta foi a introdução, no
exame do problema do processo de formação e desenvolvimento da psique e da
consciência, do conceito de atividade (investigações de A. Leontiev e S. Rubinstein), o
que permitiu mudar radicalmente tanto as idéias sobre as forças motrizes do
desenvolvimento psíquico como os princípios de divisão em seus estágios. Pela
primeira vez a solução do problema sobre as forças motrizes do desenvolvimento
psíquico se uniu diretamente à questão sobre os princípios de divisão nos estágios no
desenvolvimento psíquico das crianças.
Esta nova idéia alcançou sua forma mais desenvolvida nos trabalhos de A. Leontiev.
"No estudo do desenvolvimento da psique da criança - escreveu A. Leontiev - há que
partir do desenvolvimento de sua atividade, tal como ela se forma nas condições
concretas dadas de sua vida." 7 "Todavia, a vida ou a atividade em conjunto - continua
Leontiev - não se forma mecanicamente a partir de tipos isolados de atividade. Alguns
tipos de atividade são, na etapa dada, dominantes, e tem grande importância para o
desenvolvimento posterior da personalidade; outros, menos. Uns jogam o papel
principal no desenvolvimento; outros, um papel subordinado. Por isso, não há que falar
da dependência do desenvolvimento psíquico quanto à atividade em geral, mas sim
quanto à atividade dominante.

6
L. Vigotski. Ibidem, p. 34.

7
A. Leontiev. Problemas do desenvol vi mento da psique. 2a. ed., Moscou, Misl, 1965, p. 501.

3
Em correspondência com isso se pode dizer que cada estágio do desenvolvimento
psíquico se caracteriza pela relação determinada, dominante na etapa dada, da criança
com a realidade, por um tipo determinado, dominante de atividade.
O sintoma da passagem de um estágio a outro é precisamente a mudança no tipo
dominante de atividade, da relação dominante com a realidade." 8
As investigações experimentais de A. Leontiev, A. Zaporózhets e seus colaboradores e
também de A. Smirnov, P. Zínchenko, dos colaboradores de S. Rubinstein, mostraram a
dependência entre o nível de funcionamento dos processos psíquicos e o caráter de
sua inclusão em uma ou outra atividade; isto é, a dependência dos processos psíquicos
(desde os senso-motores elementares até os intelectuais superiores) quanto aos
motivos e tarefas da atividade na qual estão incluídos, ao lugar que ocupam na
estrutura da atividade (de ação, da operação). Esses dados tiveram grande significação
para resolver uma série de problemas metodológicos da psicologia.
Porém, lamentavelmente, estas novas teses não levaram a elaboração da
correspondente teoria sobre o desenvolvimento psíquico e seu caráter estagial. Ao
nosso ver, a causa principal consistiu em que, na busca do conteúdo psicológico da
atividade, se ignorou seu aspecto objetual-de conteúdo, como se esse não fosse
psicológico; a atenção principal se dirigiu à estrutura da atividade, à correlação nela,
dos motivos e as tarefas, as ações e as operações. A solução do problema sobre o
caráter estagial do desenvolvimento psíquico também se viu limitada porque se
estudaram somente os tipos de atividade diretamente relacionados com o
desenvolvimento psíquico da infância: a brincadeira e a aprendizagem escolar. Na
realidade, o desenvolvimento psíquico não pode ser compreendido sem uma profunda
investigação do aspecto objetual-de conteúdo da atividade, isto é, sem aclarar com que
aspectos da realidade interage a criança em uma ou outra atividade e, em
conseqüência, para que aspectos da realidade se orienta.

II

Até o presente, a insuficiência essencial no exame do desenvolvimento psíquico da


criança é a carência de vínculos entre os processos do desenvolvimento intelectual e
o do desenvolvimento da personalidade. Este último é reduzido, sem ter para isso
suficientes fundamentos, ao desenvolvimento da esfera afetiva e das necessidades, ou
motivacional e das necessidades.
Já nos anos trinta L. Vigotski assinalou a necessidade de examinar o desenvolvimento
dos afetos e do intelecto em unidade dinâmica. Porém até agora o desenvolvimento das
forças cognitivas da criança e da esfera afetiva e das necessidades são examinados
como processos que tem suas linhas independentes, que não se intersectam
mutuamente. Na teoria e na prática pedagógica isto se manifesta na separação da
educação com respeito ao ensino e do ensino com relação à educação.
O quadro do desenvolvimento intelectual separado da esfera afetiva e das
necessidades encontra sua mais clara expressão na concepção de J. Piaget. Piaget
formulou a concepção mais acabada sobre a dedução direta de todo estágio posterior
no desenvolvimento intelectual no estágio precedente (assinalaremos, de passagem,

8
A. Leontiev. Ibidem, p. 502.

4
que tal interpretação do desenvolvimento intelectual nas crianças é inerente, em
diferente grau, a quase todas as concepções intelectualistas). A principal deficiência
dessa concepção é a impossibilidade de explicar as passagens de um estágio do
desenvolvimento do intelecto ao outro. Por que a criança passa do estágio pré-
operatório ao estágio das operações concretas e depois ao estágio das operações
formais (segundo a teoria de Piaget)? Por que a criança passa do pensamento em
complexos ao pré-conceitual e depois ao conceitual (segundo a teoria de Vigotski)? Por
que ocorre a passagem do pensamento prático-em ações, ao pensamento por imagens
e, depois, ao verbal-discursivo (segundo a terminologia atual)? Não há uma resposta
exata a estar perguntas. E em sua ausência, o mais fácil é invocar a "maturação" e
outras forças externas com relação ao próprio processo de desenvolvimento psíquico.
De maneira análoga se examina o desenvolvimento da esfera afetiva e das
necessidades que, como já assinalamos, freqüentemente se identifica com o
desenvolvimento da personalidade. Interligam-se seus estágios em uma linha
independente do desenvolvimento intelectual. As passagens de algumas necessidades
e motivos da atividade a outros também permanece sem explicar.
Desta forma, no exame do desenvolvimento psíquico se põe de manifesto, por uma
parte, um dualismo peculiar e, por outra, o paralelismo entre as duas linhas
fundamentais: a do desenvolvimento da esfera motivacional ou das necessidades e a
do desenvolvimento dos processos intelectuais (cognitivos). Sem superar o dualismo e
o paralelismo não se pode compreender o desenvolvimento psíquico da criança como
um processo único e integral.
No fundamento deste dualismo e paralelismo se encontra o enfoque naturalista do
desenvolvimento psíquico infantil, característico da maioria das teorias extrangeiras e,
infelizmente, não superado totalmente na psicologia infantil soviética. Este enfoque, em
primeiro lugar, examina a criança como indivíduo isolado para o qual a sociedade é
somente um peculiar "meio no qual se habita". Em segundo lugar, se considera que o
desenvolvimento psíquico é unicamente um processo de adaptação às condições de
vida na sociedade. Em terceiro lugar, a sociedade é examinada como algo consistente,
por uma parte, no "mundo das coisas" e, por outra, no "mundo das pessoas", os quais,
por essência, não estão ligados entre si e constituem dos elementos originariamente
dados do "meio no qual se habita". Em quarto lugar, os mecanismos de adaptação ao
"mundo das coisas" e ao "mundo das pessoas", cujo desenvolvimento representa o
conteúdo do desenvolvimento psíquico, são compreendidos como profundamente
diferentes.
O exame do desenvolvimento psíquico como desenvolvimento de mecanismos
adaptativos nos sistemas, não ligados entre si, "criança -coisas" e "criança-outras
pessoas" gerou, precisamente, as idéias sobre a existência de duas linhas separadas
no desenvolvimento psíquico. Desta mesma fonte nasceram duas teorias: a teoria do
intelecto e do desenvolvimento intelectual, de J. Piaget, e a teoria da esfera afetiva e
das necessidades e seu desenvolvimento, de S. Freud e os neofreudianos. Apesar das
diferenças no conteúdo psicológico concreto, estas concepções estão profundamente
emparentadas pela interpretação que fazem do desenvolvimento psíquico como
desenvolvimento de mecanismos adaptativos do comportamento. Para J. Piaget o
intelecto é o mecanismo de adaptação e seu desenvolvimento é o das formas de
adaptação da criança ao "mundo das coisas". Para S. Freud e os neofreudianos os
mecanismos de repressão, censura, substituição, etc., atuam como mecanismos de
adaptação da criança ao "mundo das pessoas".

5
É indispensável sublinhar que ao examinar a adaptação da criança, no sistema
"criança-coisas" se considera que estas últimas atuam, antes de mais nada, como
objetos físicos com suas propriedades espaciais e físicas. Quando se estuda a
adaptação da criança no sistema "criança- outras pessoas" estas atuam como
indivíduos casuais com seus traços individuais de caráter, temperamento, etc. Se as
coisas são examinadas como objetos físicos e as outras pessoas como individualidades
casuais, a adaptação da criança a estes "dois mundos" pode, realmente, ser
representada como indo por duas linhas paralelas, autônomas em sua base. 9
A superação do enfoque assinalado é um assunto difícil, antes de mais nada, porque
para a criança a realidade que a rodeia aparece em duas formas. Encontraremos esta
divisão da realidade no "mundo das coisas" e no "mundo das pessoas" em uma
investigação experimental dedicada à natureza da brincadeira de papéis em crianças
de idade pré-escolar. Tendo aclarado a sensibilidade da brincadeira de papéis para
estas duas esferas da realidade, familiarizamos num caso as crianças com coisas, suas
propriedades e destinações: durante uma excursão ao zoológico se fez as crianças
conhecerem os animais, seus hábitos, seu aspecto exterior, etc. Após a excursão,
foram levados à habitação animais de brinquedo, porém a brincadeira de papéis não se
desenvolveu. Em outro caso, durante uma excursão similar, as crianças conheceram as
pessoas que trabalham no zoológico, suas funções e relações mútuas: o vendedor de
entradas, o guarda, o guia, os que dão de comer aos animais, o "doutor de animais",
etc. Após esta excursão se desenvolveu, no geral, uma grande e interessante
brincadeira de papéis, no que as crianças "modelaram" as tarefas da atividade das
pessoas adultas e as relações entre elas. Nesta brincadeira encontraram seu lugar e
adquiriram sentido os acontecimentos que as crianças haviam adquirido anteriormente
sobre os animais. Os resultados desta investigação mostraram que a brincadeira de
papéis é sensível precisamente para o "mundo das pessoas": nele se "modelam" de
maneira peculiar as tarefas e os motivos da atividade humana e as normas das
relações entre as pessoas. Simultaneamente, a investigação mostrou que, para a
criança, o mundo circundante realmente está como que dividido em duas esferas e que
existe uma estreita conexão entre as ações da criança nelas (ainda que na investigação
citada não se tenha conseguido aclarar as peculiaridades desta conexão).

III

A superação da idéia naturalista sobre o desenvolvimento psíquico exige mudar


radicalmente a compreensão da inter-relação entre a criança e a sociedade. A esta
conclusão levou-nos uma investigação especial sobre o surgimento histórico da
brincadeira de papéis. Em contraposição aos pontos de vista que consideram a
brincadeira de papéis uma particularidade eterna, não histórica, da infância, nós

9
Não entra em nossa tarefa a análise das condições históricas de surgimento de semelhante dualismo e
paralelis mo no exame do desenvolvimento psíqu ico. Assinalaremos apenas que estas idéias são o reflexo da
alienação, realmente existente na sociedade de classes, do indivíduo e dos produtos de sua atividade.

6
supusemos que surgiu em uma determinada etapa do desenvolvimento da sociedade,
no curso da mudança histórica do lugar que a criança ocupa nela. A brincadeira é uma
atividade social por sua origem e por isso seu conteúdo é social.
Esta hipótese sobre a origem histórica da brincadeira está confirmada por uma grande
quantidade de dados antropológicos e etnográficos, que mostram que o surgimento da
brincadeira de papéis está determinada pela mudança na posição que ocupa a criança
na sociedade.
No curso do desenvolvimento histórico mudou esse lugar, porém em todo lugar e
sempre a criança foi parte da sociedade. Nas etapas iniciais do desenvolvimento da
humanidade o vínculo da criança com a sociedade era direto e imediato: desde a mais
tenra idade as crianças viviam uma vida comum com os adultos. Seu desenvolvimento
tinha lugar dentro desta vida comum como um processo único, indivisível. A criança
constituía uma parte orgânica da força produtiva da sociedade e sua participação nessa
força estava limitada somente por suas possibilidades físicas.
À medida que se complexificavam os meios de produção e as relações sociais, o
vínculo da criança com a sociedade mudava, se convertia de imediato em mediatizado
pelo processo de educação. O sistema "criança-sociedade" não muda. Não se converte
no sistema "a criança e a sociedade" (a conjunção "e", como é sabido, tem não
somente um significado copulativo, mas também adversativo). É mais correta falar do
sistema "a criança na sociedade". No processo de desenvolvimento social a função da
educação se transfere cada vez mais à família, a qual se transforma em uma unidade
econômica autônoma e seus vínculos com a sociedade se fazem cada vez mais
mediatizados. Com isso o sistema de relações "a criança na sociedade" se vela, se
oculta atrás do sistema de relações "criança-família" e nele, atrás das relações "criança-
um adulto".
Ao examinar a formação da personalidade no sistema "a criança na sociedade" muda
radicalmente o caráter do vínculo nos sistemas "criança-coisa" e "criança-um adulto".
Deixam de ser dois sistemas autônomos a conformar e tornam-se um sistema único.
Em relação com isso se transforma substancialmente o conteúdo de cada um. No
sistema "criança-coisa", agora as coisas, possuidoras de determinadas propriedades
físicas e espaciais, se põem a descoberto à criança como objetos sociais, neles
aparece em primeiro plano os procedimentos, socialmente elaborados, de ações com
essas coisas.
O sistema "criança-coisa" é, em realidade, o sistema "criança-objeto social". Os
procedimentos, socialmente elaborados, de ações com os objetos não estão dados de
forma imediata como certas características físicas das coisas. No objeto não estão
inscritos sua origem social, os procedimentos de ação com ele, os meios e
procedimentos de sua reprodução. Por isso não é possível dominar tal objeto por meio
da adaptação. Torna-se internamente indispensável o processo peculiar de
assimilação, por parte da criança, dos procedimentos sociais de ação com os objetos.
Aqui as propriedades físicas da coisa aparecem somente como orientadoras para a
ação com ela. 10
Durante o domínio dos procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os
objetos tem lugar a formação da criança como membro da sociedade, incluindo suas
forças intelectuais, cognitivas e físicas. Para a própria criança (como, ademais, para os

10
É nas investigações de P. Galperin e seus colaboradores, que esse processo de assimilação dos
procedimentos, socialmente elaborados, de ação, se analisa com mais detalhe.

7
adultos que não estão incluídos diretamente no processo organizado de educação) este
desenvolvimento se apresenta, antes de mais nada, como a ampliação da esfera e a
elevação do nível de domínio das ações com os objetos. Precisamente por esta
parâmetro as crianças comparam seu nível, suas possibilidades, com o nível e as
possibilidades de outras crianças e dos adultos. Nesta comparação o adulto aparece
ante a criança não somente como portador dos procedimentos sociais de ação com os
objetos, mas também como um indivíduo que realiza determinadas tarefas sociais.
Em uma série de investigações forma mostradas as particularidades do descobrimento,
pela criança, do sentido humano das ações objetuais. Assim, F. Frádkina 11 descreveu
como em uma determinada etapa de domínio das ações objetuais a criança pequena
começa a comparar suas ações com as do adulto. Isto se manifesta que a criança
chama a si mesma simultaneamente com seu próprio nome e com o nome de um
adulto. Por exemplo, representando as ações de um pessoa que lê o jornal ou escreve,
a criança diz: "Misha-papai"; quando a menina faz dormir a boneca declara: "Vera-
mamãe". L. Slavina 12 mostrou como a criança, que descobriu o se ntido humano das
ações objetuais, se aferra firmemente a ele e o transmite inclusive a simples
manipulações.
Estas investigações foram realizadas sobre o material limitado do desenvolvimento das
ações objetuais na primeira infância. Porém dão bases para supor que o domínio dos
procedimentos de ação com objetos conduz a criança para o adulto como portador das
tarefas sociais da atividade. É tema de futuras investigações estudar qual é o
mecanismo psicológico dessa passagem em cada caso concreto e em cada etapa do
desenvolvimento.
O sistema "criança-adulto", por sua vez, tem também aqui um conteúdo essencialmente
diferente. O adulto não atua ante a criança como portador de qualidades casuais e
individuais, mas sim de determinados tipos de atividade (social por sua natureza), como
sujeito que realiza determinadas tarefas, que entra em diferentes relações com outras
pessoas e que se subordina a determinadas normas. Porém na atividade da pessoa
adulta não estão assinaladas externamente as tarefas e os motivos desta atividade.
Externamente esta aparece ante a criança como a transformação de objetos e sua
produção. Às crianças não é acessível a realização desta atividade em sua forma real
terminada e no sistema de relações sociais, dentro das quais podem ser descobertas
as tarefas e os motivos desta atividade. Por isso se torna indispensável um processo
especial de assimilação das tarefas e motivos da atividade humana e daquelas normas
das relações nas quais entram as pessoas durante sua realização.
Infelizmente, as particularidades psicológicas desse processo estão estudadas de
formas muito insuficiente. Porém existem bases para supor que a assimilação, pelas
crianças, das tarefas, dos motivos e das normas das relações existentes na atividade
dos adultos se realiza por meio da reprodução ou modelação destas relações na
atividade própria das crianças e em suas comunidades, grupos e coletivos. É nítido que
durante essa assimilação a criança se enfrenta com a necessidade de dominar novas
ações objetuais sem as quais é impossível realizar a atividade adulta. Desta forma,

11
F. Frád kina. A psicologia da brincadeira na pri meira infânci a. Tese de candidato a doutor. Moscou,
1946.

12
L. Slavina. Desenvol vi mento dos moti vos da ati vi dade da brincadeira. - B oleti m da Academia de
Ciências Pedagógicas da RSFSR, fasc. 14, 1984.

8
pois, o adulto aparece ante a criança como portador de novos e cada vez mais
complicados procedimentos de ação com os objetos, de padrões socialmente
elaborados, indispensáveis para orientar-se na realidade circundante.
Assim, a atividade da criança dentro dos sistemas "criança-objeto social" e "criança-
adulto social" representa um processo único no qual se forma sua personalidade.
Porém no curso do desenvolvimento histórico esse processo de vida da criança na
sociedade, único por sua natureza, se bifurca, se desagrega. Essa desagragação cria
as premissas para o desenvolvimento hipertrofiado de qualquer de suas partes. Na
sociedade de classes, a escola utiliza essas possibilidades educando algumas crianças,
fundamentalmente, como executores do aspecto operacional-técnico da atividade de
trabalho e outras, predominantemente, como portadores das tarefas e dos motivos
desta mesma atividade. Tal utilização da divisão em duas partes, surgida
historicamente, do processo único da vida e do desenvolvimento da criança na
sociedade, é inerente às sociedades classistas.

IV

As teses expostas têm direta relação com o problema da periodização do


desenvolvimento psíquico da criança. Apelemos aos materias fácticos acumulados na
psicologia infantil. Das investigações realizadas pelos psicólogos nos últimos 20 -30
anos, tomaremos aquelas que enriqueceram nossos conhecimentos sobre os principais
tipos de atividade das crianças. Examinaremos brevemente as mais importantes.
1. Até pouco tempo não havia claridade quanto à característica objetual-de conteúdo da
atividade das crianças pequenas. Em particular, não estava clara a questão referida à
qual é a atividade dominante nesta idade. Alguns investigadores (L. Bozhóvich e outros)
consideravam primária a necessidade de estímulos externos e por isso supunham que
o momento mais importante é o desenvolvimento das ações de orientação. Outros (J.
Piaget entre eles) dirigiam primordialmente a atenção ao desenvolvimento da atividade
senso-motora manipulativa. Os terceiros (G. Rozengard-Pupkó e outros) assinalavam a
significação importantíssima da comunicação da criança pequena com os adultos.
Nos últimos anos as investigações de M. Lísina e seus colaboradores mostraram de
maneira convincente que nas crianças pequenas existe uma peculiar atividade de
comunicação expressa em uma forma emocional direta. "O complexo de animação" que
surge ao terceiro mês de vida e que anteriormente se considerava uma simples reação
ante o adulto (o estímulo mais notável e complexo) na realidade constitui uma ação
complexa, que tem por objetivo a comunicação com os adultos e que se realiza por
meios especiais. É importante assinalr que esta ação surge muito antes que a criança
comece a manipular os objetos, antes que se forme o ato de prensão. Após a formação
deste e da atividade manipulatória realizada com os adultos, as ações de comunicação
não se dissolvem na atividade conjunta, não se fundem com a interação prática com os
adultos, mas sim conservam seu peculiar conteúdo e seus meios de realização. Estas e
outras investigações mostraram que o déficit de comunicação emocional (como,
provavelmente, seu excesso) exerce uma influência decisiva no desenvolvimento
psíquico neste período.
Assim, pois, existem bases para supor que a comunicação emocional direta com os
adultos é a atividade dominante da criança pequena, sob cujo fundo e dentro da qual se
formam as ações orientadoras e senso-motoras de manipulação.

9
2. Nestas mesmas investigações estabeleceu-se a passagem da criança pequena - no
limite da primeira infância - às ações propriamente objetuais, isto é, ao domínio dos
procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os objetos. Claro que o domínio
destas ações é impossível sem a participação dos adultos que as mostram às crianças,
que as cumprem junto com estes. O adulto atua somente como elemento, ainda que o
mais importante, da situação da ação objetual. A comunicação emocional direta com
ele passa aqui a segundo plano e em primeiro plano aparece a colaboração prática. A
criança está ocupada com o objeto e com a ação com ele. Uma série de investigadores
tem assinalado reiteradamente esta sujeição da criança ao campo da ação imediata.
Aqui se observa um peculiar "fetichismo objetual": é como se a criança não percebesse
o adulto, o qual está oculto pelo objeto e suas propriedades.
Muitas investigações de autores soviéticos e estrangeiros mostraram que nesse período
tem lugar um ativo domínio das operações objetuais-instrumentais. Neste período se
forma a assim chamada "inteligência prática". As detalhadas investigações da gênese
da inteligência nas crianças, realizadas por J. Piaget e seus colaboradores, mostram
também que precisamente neste período tem lugar um desenvolvimento da inteligência
senso-motora, que prepara o surgimento da função simbólica.
Já recordamos o estudo de F. Frádkina onde se mostra que, no processo de
assimilação, parece como se as ações se separassem do objeto em que foram
primariamente assimiladas; tem lugar a transferência destas ações a o utros objetos,
parecidos mas não idênticos ao inicial. Sobre esta base se forma a generalização das
ações. F. Frádkina mostrou que precisamente o poder separar as ações do objeto e
generalizá-las torna possível a comparação destas com as ações dos adultos e, graças
a isso, a penetração da criança nas tarefas e no sentido das ações humanas.
Assim, pois, há bases para supor que precisamente a atividade dominante na primeira
infância é a objetual-instrumental, na qual tem lugar a assimilação dos procedimentos,
socialmente elaborados, de ação com os objetos.
À primeira vista contradiz esta afirmação o desenvolvimento intenso, neste período, das
formas verbais de comunicação da criança com os adultos. De um ser privado da
palavra, que utiliza para a comunicação com os adultos meios emocionais mímicos, a
criança se converte em um ser falante que emprega um léxico e formas gramaticais
relativamente ricos. Todavia, a análise dos contatos verbais da criança mostra que a
linguagem é utilizada por ela, no fundamental, para organizar a colaboração com os
adultos dentro da atividade objetual conjunto. Dito com outras palavras, a linguagem
atua como meio para os contatos "de trabalho" da criança com o adulto. Mais ainda, há
bases para pensar que as mesmas ações objetuais, o caráter bem sucedido de sua
realização, constituem para a criança o meio para organizar a comunicação com os
adultos. A própria comunicação está mediatizada pelas ações objetuais da criança. Em
conseqüência, o intenso desenvolvimento da linguagem, como meio para organizar a
colaboração com os adultos, não contradiz a tese de que a atividade dominante nesse
período é a atividade objetual, dentro da qual tem lugar a assimilação dos
procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os objetos.
3. Após os trabalhos de L. Vigotski, A. Leontiev e outros, estabeleceu-se firmemente na
psicologia infantil soviética que na idade pré-escolar a atividade dominante é a
brincadeira e sua forma mais desenvolvida (brincadeira de papéis). A importância da
brincadeira para o desenvolvimento psíquico das crianças de idade pré-escolar é
múltipla. Seu principal significado consiste em que, graças a procedimentos peculiares
(o ato de assumir, por parte da criança, o papel da pessoa adulta e de suas funções
sociais de trabalho, o caráter representativo generalizado da reprodução das ações

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objetuais, a transferências dos significados de um objeto a outro, etc.), a criança
modela na brincadeira as relações entre as pessoas. Na própria ação objetual, tomada
isoladamente, "não está escrito" para que se realiza, qual é seu sentido social, seu
motivo eficiente. Somente quando a ação objetual se inclui no sistema das relações
humanas põe-se a descoberto nela seu verdeiro sentido social, sua orientação para as
outras pessoas. Tal "inclusão" tem lugar na brincadeira. A brincadeira de papéis
aparece como a atividade na qual tem lugar a orientação da criança nos sentidos mais
gerais, mais fundamentais da atividade humana. Sobre esta base se forma na criança
pequena a aspiração para realizar uma atividade socialmente significativa e
socialmente valorada, a aspiração que constitui o principal momento em sua
preparação para a aprendizagem escolar. Nisso consiste a importância básica da
brincadeira para o desenvolvimento psíquico, nisso consiste sua função dominante.
4. L. Vigotski formulou no começo dos anos trinta a tese sobre a significação
fundamental do ensino para o desenvolvimento intelectual das crianças de idade
escolar. Claro, nem todo ensino tem tal significação para o desenvolvimento, mas
somente um "bom" ensino. A qualidade deste começa a ser avaliada cada vez mais
precisamente pela influência que exerce sobre o desenvolvimento intelectual da
criança. Os psicólogos têm realizado uma grande quantidade de investigações sobre
como o ensino influi no desenvolvimento intelectual. Aqui se manifestam diferentes
pontos de vista que não teremos possibilidade de examinar no presente artigo.
Assinalaremos somente que a maioria dos investigadores, como seja que representem
o mecanismo interno da influência, qualquer que seja a importância que atribuam aos
diferentes aspectos do ensino (ao conteúdo, aos métodos, à organização) concordam
em reconhecer seu papel dominante no desenvolvimento intelectual nas crianças de
idade escolar inicial.
O estudo, isto é, aquela atividade em cujo processo transcorre a assimilação de novos
conhecimentos e cuja direção constitui o objetivo fundamental do ensino é a atividade
dominante neste período. Durante ela tem lugar uma intensa formação das forças
intelectuais e cognitivas da criança. A importância primordial da atividade de estudo
está determinada, ademais, porque através dela se mediatiza todo o sistema de
relações da criança com os adultos que a circundam, incluindo a comunicação pessoal
na família.
5. A identificação da atividade dominante no período adolescente apresenta grandes
dificuldades. Estas dificuldades devem-se a que para o adolescente a atividade
fundamental segue sendo o estudar na escola. Os êxitos e os fracassos na
aprendizagem escolar continuam sendo os critérios fundamentais com que os adultos
valoram os adolescentes. Com a passagem a essa idade, nas condições atuais de
ensino, tampouco ocorrem mudanças substanciais no aspecto externo. Todavia,
precisamente a passagem ao período adolescente é considerada na psicologia como a
mais crítica.
Naturalmente, na ausência de qualquer mudança nas condições gerais da vida e
atividade, buscou-se a causa da passagem para a idade adolescente nas mudanças do
próprio organismo. Na maturação sexual que transcorre nesse período. Claro, o
desenvolvimento sexual exerce influência na formação da personalidade, mas esta
influência não é primária. Como outras mudanças, ligadas com o crescimento das
forças intelectuais e físicas da criança, a maturação sexual exerce sua influência na
forma mediatizada, através das relações do indivíduo com o mundo circundante.
Através da comparação de si mesmo com os adultos e com outros adolescentes, isto é,
somente dentro de todas as mudanças que têm lugar nesta etapa.

11
Uma série de investigações assinalram o surgimento, no começo deste período, de uma
nova esfera da vida. H. Wallon expressou de maneira mais clara esta idéia: "Quando a
amizade e a competição não se baseam mais na comunidade ou no antagonismo das
tarefas a cumprir ou das que devem ser resolvidas, quando a amizade e a competição
tratam-se de explicar pela proximidade ou a diferença espiritual, quando parece que
estas afetam os aspectos pessoais e não estão ligadas com a colaboração ou os
conflitos de trabalho, quer dizer q ue chegou a maturação sexual". 13
Nos útlimos anos, nas investigações dirigidas por T. Dragunova e D. Elkonin,
estabeleceu-se que nesta idade surge e desenvolve -se uma atividade especial,
consistente no estabelecimento de relações pessoais íntimas entre os adolescentes.
Esta atividade foi chamada de comunicação. Sua diferença com outras formas de
interação, que tem lugar na colaboração de trabalho com os companheiros, consiste em
que seu conteúdo fundamental é o outro adolescente como indivíduo com determinadas
qualidades pessoais. Em todas as formas de atividade coletiva dos adolescentes se
observa a subordinação das relações a um especial "código de companheirismo". No
que concerne à comunicação pessoal, as relações podem estabelecer -se e se
estabelecem sobre a base do respeito mútuo, mas também de uma completa confiança
e comunidade da vida interior. Esta esfera da vida comum com o companheiro ocupa
no período adolescente um lugar especialmente importante. A formação das relações
no grupo de adolescentes sobre a base do "código de companheirismo" e, em especial,
daquelas relações pessoais nas quais este "código" está dado na forma mais expressa,
tem grande importância para a formação da personalidade do adolescente. O "código
de companheirismo" reproduz por seu conteúdo objetivo as normas mais gerais das
inter-relações existentes entre os adultos na sociedade dada.
A atividade de comunicação é aqui uma forma peculiar de reprodução, nas relações
entre coetâneos, das relações existentes entre as pessoas adultas. No processo de
comunicação tem lugar a orientação aprofundada para as normas que regem estas
relações e seu domínio.
Desta forma, pois, existem bases para supor que a atividade dominante neste período
de desenvolvimento é a atividade de comunicação, consistente no estabelecimento de
relações com os companheiros sobre a base de determinadas normas morais e éticas
que mediatizam os atos dos adolescentes. Todavia, não se trata somente disto.
Construída sobre a base da completa confiança e comunidade da vida i nterna, a
comunicação pessoal constitui aquela atividade dentro da qual se formam os pontos de
vista gerais sobre a vida, sobre as relações entre as pessoas, o próprio futuro; em uma
palavra, se estrutura o sentido pessoal da vida. Com isso na comunicação se forma a
autoconsciência como "consciência social transladada ao interior" (L. Vigotski). Graças
a isto surgem as premissas para que se se origiem novas tarefas e motivos da atividade
conjunta, a que se converte em atividade dirigida ao futuro e adquire o caráter de
atividade profissional-de estudo.
Neste breve exame pudemos apresentar somente os fatos mais importantes referentes
às características objetuais e de conteúdo dos tipos dominantes de atividade,
identificadas até o presente. Estas características permitem dividí-las em dois grandes
grupos.
No primeiro entram as atividades nas quais tem lugar a orientação predominante dos
sentidos fundamentais da atividade humana e a assimilação dos objetivos, motivos e

13
H. Wallon. O desenvol vi mento psí quico da cri ança. Prosveschenie, Moscou, 1967, p. 194.

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normas das relações entre as pessoas. São atividades desenvolvidas no sistema
"criança-adulto social". Claro, a comunicação emocional direta da criança pequena, a
brincadeira de papéis e a comunicação íntima pessoal dos adolescentes se diferenciam
substancialmente por seu conteúdo concreto, pela profundidade com que o sujeito
penetra na esfera dos fins e motivos da atividade dos adultos, penetração que
representa uma peculiar escala na assimilação consecutiva que o indivíduo faz desta
esfera. Porém, essas atividades são comuns por seu conteúdo fundamental. Durante
sua realização tem lugar o desenvolvimento preponderante, nas crianças, da esfera
motivacional e das necessidades.
O segundo grupo está constituído pelas atividades nas quais têm lugar a assimilação
dos procedimentos, socialmente elaborados, de ação com os objetos e dos modelos
que destacam alguns ou outros aspectos daqueles. Se trata das atividades no sistema
"criança-objeto social". Os distintos tipos de atividades que compõem este grupo
também se diferenciam entre si. A atividade manipulatória-objetual da criança na
primeira infância, a atividade de estudo do jovem escolar e, mais ainda, a atividade
profissional-de estudo dos adolescentes são, externamente, pouco parecidas entre si.
Na realidade, que há de comum entre assimilação da ação objetual com uma colher
com um copo e o domínio da matemática ou da gramática? Mas o geral e essencial
entre elas é que todas aparecem como elementos da cultura humana. Têm uma origem
e um lugar comum na vida da sociedade, sendo o resultado da história precedente.
Sobre a base da assimilação dos procedimentos socialmente elaborados de ação com
estes objetos se produz a orientação cada vez mais profunda da criança no mundo
objetual e a formação de suas forças intelectuais, a formação da criança como
componente das forças produtivas da sociedade.
É indispensável sublinhar que quando falamos da atividade dominante e de sua
significação para o desenvolvimento da criança em um ou outro período, isto não
significa, de nenhuma maneira, que simultaneamente não exista nenhum
desenvolvimento em outras direções. A vida da criança em cada período é
multifacetada e as atividades, por meio das quais se realiza, são variadas. Na vida
surgem novos tipos de atividade, novas relações da criança para a realidade. Seu
surgimento e conversão em atividades dominantes não eliminam as existentes
anteriormente, mas sim somente muda seu lugar no sistema geral de relações da
criança para a realidade, as quais se tornam mais ricas.
Se distribuirmos o tipos de atividade infantil que dividimos em grupos segundo a
seqüência, na qual se convertem em atividades dominantes, obteremos a seguinte
série:
comunicação emocional direta - primeiro grupo
atividade objetual manipulatória - segundo grupo
brincadeira de papéis - primeiro grupo
atividade de estudo - segundo grupo
comunicação íntima pessoal - primeiro grupo
atividade profissional-de estudo - segundo grupo

Assim, pois, no desenvolvimento infantil têm lugar, por uma parte, períodos nos quais
predominam os objetivos, os motivos e as normas das relações entre as pessoas e,
sobre esta base, o desenvolvimento da esfera motivacional e das necessidades; por
outra parte períodos nos quais predominam os procedimentos socialmente elaborados
de ação com os objetos e, sobre esta base, a formação das forças intelectuais,
cognitivas das crianças, suas possibilidades operacionais técnicas.

13
O exame da substituição consecutiva de alguns períodos por outros permite formular a
hipótese sobre o caráter períodico dos processos de desenvolvimento psíquico, que
consiste na substituição regularmente repetida de alguns períodos por outros. Após os
períodos nos quais tem lugar o desenvolvimento preponderante da esfera motivaci onal
e das necessidades, seguem regularmente períodos, nos quais se desenvolve, com
preponderância, a formação das possibilidades operacionais técnicas das crianças.
Após estes se sucedem, com regularidade, períodos nos quais se desenvolve, no
fundamental, a esfera motivacional e das necessidades.
Na psicologia infantil soviética e estrangeira tem-se acumulado um importante material
que dá bases para identificar duas bruscas passagens no desenvolvimento psíquico
das crianças. Se trata, em primeiro lugar, do trânsito da primeira infância à idade pré-
escolar, conhecido na literatura como "crise dos três anos"; em segundo lugar é a
passagem da idade escolar jovem à idade adolescente que na literatura se denomina
"crise da maturação sexual". A confrontação dos sintomas destas passagens mostra a
grande semelhança que existe entre elas. Em ambas aparece uma tendência à
autonomia e uma série de manifestações negativas nas relações com os adultos.
Introduzindo estes momentos de crise no esboço dos períodos de desenvolvimento
infantil obtemos o esquema geral de periodização da infância em épocas, períodos e
fases.
Cada época consiste em dois perídos regularmente ligados entre si. Se inicia com o
período no qual predomina a assimilação dos objetivos, os motivos e as normas da
atividade humana e o desenvolvimento da esfera motivacional e das necessidades.
Aqui se prepara a passagem ao segundo período, no qual tem lugar a assimilação
predominante dos procedimentos da ação com os objetos e a formação das
possibilidades técnicas operacionais.
As três épocas (a primeira infância, a infância e a adolescência) estão construídas
segundo o mesmo princípio e consistem em dois períodos ligados regularmente entre
si. A passagem de uma época a outra transcorre quando surge uma falta de
correspondência entre as possibilidades técnicas operacionais da criança e os objetivos
e motivos da atividade, sobre a base dos que se formaram. As passagens de um
período a outro e de uma fase a outra dentro de um mesmo período estão muito pouco
estudados.
Qual é a importância teórica e prática da hipótese sobre o caráter periódico dos
processos de desenvolvimento psíquico e do esquema de periodização construído
sobre sua base?
Em primeiro lugar, vemos sua principal importância teórica em que esta hipótese
permite superar a disrupção, existente na psicologia infantil, entre o desenvolvimento
dos aspectos motivacionais e das necessidades e intelectual-cognitivos, permite
mostrar a unidade desses aspectos no desenvolvimento da personalidade. Em segundo
lugar, esta hipótese possibilita considerar o processo de desenvolvimento psíquico
como transcorrendo segundo uma espiral ascendente e não em forma linear. Em
terceiro lugar, abre o caminho para estudar as vinculações existentes entre períodos
isolados, para estabelecer a importância funcional de todo período precedente para o
início do seguinte. Em quarto lugar, nossa hipótese está orientada a dividir o
desenvolvimento psíquico em épocas e estágios de maneira que a divisão corresponda
às leis internas deste desenvolvimento e não a fatores externos com relação a ele.
A significação prática da hipótese consiste em que ajuda a solucionar a questão sobre a
sensibilidade de alguns períodos do desenvolvimento infantil para determinado tipo de
influências, a enfocar de maneira nova o problema da vinculação entre os elos do

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sistema de ensino. De acordo com as exigências que se desprendem desta hipótese,
ali onde no sistema atual se observa uma ruptura (instituição pré-escolar - escola) deve
existir uma vinculação mais orgânica. Pelo contrário ali onde agora existe uma
continuidade (graus primários - graus médios) deve haver uma passagem a um novo
sistema educativo e de ensino.
Somente as investigações posteriores mostrarão o quão corretamente reflete nossa
hipótese a realidade do desenvolvimento psíquico das crianças. Ao mesmo tempo,
consideramos legítima sua publicação, inclusive tendo em conta a insuficiência dos
materias fácticos que a sustentam. Convém recordar aqui as seguintes palavras de F.
Engels: "Se quiséssemos esperar que o material se purificasse para formular a lei,
deveríamos postergar até esse momento a investigação teórica e já, apenas por esta
causa, não obteríamos nunca tal lei".
.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.

Dados biográficos do autor:


Daniíl Borísovich Elkonin (1904-1984): um dos mais iminentes psicólogos soviéticos,
membro correspondente da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS, doutor em
ciência psicológicas, professor. Concluiu o Instituto Pedagógico A. I. Herzen
(Leningrado). Posteriormente trabalhou neste Instituto como assistente, depois docente,
ensinou psicologia infantil no Instituto Pedagógico N. Krúpskaia de Leningrado,
trabalhou também como mestre de graus primários. Se alistou como voluntário e
terminou a Segunda Guerra com o grau de tenente-coronel. Foi colaborador científico e
mais tarde chefe de laboratório do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências
Pedagógicas da RSFSR. D. Elkonin combinou o trabalho científico com o trabalho
pedagógico; durante muitos anos foi professor da Faculdade de Psicologia da
Universidade Estatal de Moscou. Seu caminho na ciência se definiu nos anos em que
trabalhou sob a direção de L. Vigotski, ao desenvolvimento de cujas idéias D. Elkonin
dedicou toda sua vida criadora. Durante muitos anos trabalhou com A. Leontiev, A.
Zaporózhets, P. Galperin, L. Bozhóvich.
O círculo de interesses científicos de Elkonin foi muito amplo. São conhecidas suas
investigações na psicologia das crianças de primeira infância, de idade pré-escolar,
escolar inicial, média, adolescente. Estudou o desenvolvimento da personalidade da
criança, a formação do pensamento, da linguagem, a assimilação da leitura e da
escrita. Elkonin dedicou especial atenção à formação dos distintos tipos de atividade
infantil, em primeiro lugar, à atividade dominante nos diferentes períodos evolutivos (o
próprio conceito de atividade dominante foi elaborado conjuntamente por Elkonin e
Leontiev). A teoria da periodização do desenvolvimento psíquico das crianças,
elaborada por Elkonin, é fonte para investigações concretas na URSS e no estrangeiro.
Também prestou grande atenção aos problemas práticos. Criou um método de ensino
da leitura sobre a base de análise da composição sonora das palavras e uma série de
recomendações para os mestres dos graus preparatórios. É autor de mas de 100
trabalhos científicos, entre eles 13 livros monográficos.
Obras principais: Psicologia Infantil, Moscou, 1960. Psicologia da Brincadeira, Moscou,
1978. A psicologia da formação da personalidade e os problemas da comunicação,
Moscou, 1980.

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