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(pág 137) Como sugeríamos já no início deste trabalho, o papel da vida é inserir

indeterminacao na materia. Indeterminadas, isto é, imprevisíveis, sao as formas que cria


conforme vai evoluindo. Cada vez mais indeterminada tambem, isto e, cada vez mais
livre é a atividade para a qual essas formas devem servir de veículo. Urn sistema
nervoso, corn neurônios colocados um na ponta do outro de tal modo que na
extremidade de cada urn deles se abrem vias multiplas, ern cada uma das quais se poe
uma questao diferente, é urn verdadeiro reservatorio de indeterminacao. Que o essential
do ímpeto vital tenha sido gasto na criacao de aparelhos desse tipo é o que nos parece
mostrar urn simples lance de olhos no conjunto do mundo organizado. Mas, sobre esse
ímpeto da vida ele próprio, alguns esclarecimentos sao indispensaveis.
Nao se deve esquecer que a forca que evolui atraves do mundo organizado é uma forca
limitada que sempre procura superar-se a si mesma, e sempre permanece inadequada à
obra que tende a produzir. Do desconhecimento desse ponto nasceram os erros e as
puerilidades do finalismo radical. Este representou-se o conjunto do mundo vivo
como uma construcao, e como uma construcao análoga às nossas. Todas as peças nela
estariam dispostas em vista do melhor funcionamento possivel da maquina. Cada
especie teria sua razao de ser, sua funcao, sua destinacao. Juntas, dariam urn grande
concerto, no qual as dissonancias aparentes só serviriam para fazer sobressair a
harmonia fundamental. Enfim, tudo se passaria na natureza como nas obras do genio
humano, onde o resultado obtido pode ser minimo, mas onde há pelo menos perfeita
adequacao entre o objeto fabricado e o trabalho de fabricacao.

Nada de semelhante na evolucao da vida. Nela, é impressionante a desproporcao


entre trabalho e resultado. Desde a base ate o topo do mundo organizado, é sempre urn
único grande esforco; mas, o mais das vezes, esse esforco estaca seco, ora paralisado
por forcas contrarias, ora distraido daquilo que deve fazer por aquilo que faz,
absorvido pela forma que se aplicou a assumir, hipnotizado por ela como que por urn
espelho. Ate em suas obras as mais perfeitas, quando parece ter triunfado das resis-
tencias exteriores e tambem da sua própria, está à mercê da materialidade que teve de
conferir a si mesmo. E o que cada um de nos pode experimentar em si mesmo. Nossa
liberdade, nos próprios movimentos pelos quais se afirma, cria os habitos nascentes
que a asfixiarao caso nao se renove por urn esforco constante: o automatismo espreita-
a. O pensamento mais vivo congelar-se-á na formula que o exprime. A palavra volta-
se contra a ideia. A letra mata o espírito. E nosso mais ardente entusiasmo, quan do se
exterioriza em acao, enrijece-se por vezes tao naturalmente em frio calculo de interesse
ou de vaidade, urn adota tao facilmente a forma do outro que poderiamos confundi-los
um corn o outro, duvidar de nossa própria sinceridade, negar a bondade e o amor, se
nao soubessemos que o morto guarda ainda por algum tempo os tracos do vivo.
A causa profunda dessas dissonancias jaz em uma irremediavel diferenca de ritmo. A
vida em geral é a propria mobilidade; as manifestacoes particulares da vida so aceitam
essa mobilidade a contragosto e estao constantemente atrasadas corn relacao a ela.
Aquela vai sempre em diante; estas gostariam de patinhar. A evolucão em geral dar-se-ia,
tanto quanta possivel, em linha reta; cada evolução especial é urn processo circular.
Como turbilhões de poeira levantados pelo vento que passa, os vivos giram sobre si
mesmos, suspensos pelo grande sopro da vida. Sao portanto relativamente estaveis, e
contrafazem mesmo tao bem a imobilidade que nós os tratamos antes coma coisas do
que como progressos, esquecendo que a propria permanencia de sua forma nao e mais
que o desenho de um movimento. Por vezes, no entanto, materializa-se diante de
nossos olhos, numa fugidia aparicao, o sopro invisivel que os carrega. Temos essa subita
iluminacao frente a certas formas do amor maternal, tao impressionante, tao tocante
tambem na maior parte dos animais, observável ate na solicitude da planta por sua
semente. Esse amor, no qual alguns viram o grande misterio da vida, talvez nos
revelasse seu segredo. Mostra-nos cada geracao debrucada sobre a que ira segui-la.
Deixa-nos entrever que o ser vivo é sobretudo urn lugar de passagem e que o essential
da vida reside no movimento que a transmite.
Esse contraste entre a vida em geral e as formas nas quais se manifests apresenta por
toda parte o mesmo carater. Poder-se-ia dizer que a vida tende a agir o mais possível,
mas que cada especie prefere empenhar a menor quantidade possvel de esforco.
Considerada naquilo que é a sua essencia mesma, isto é, como uma transicao de
especie para especie, a vida é uma acao sempre crescente. Mas cada uma das
especies atraves das quais a vida passa visa apenas sua comodidade. Procura aquilo
que exige o menor esforco. Absorvendo-se na forma que ira tomar, entra num meio-
sono, no qual ignora praticamente todo o resto da vida; amolda-se a si propria tendo em
vista a mais facil exploracao de seu entorno imediato. Assim, o ato pelo qual a vida se
encaminha para a criação de uma nova forma e o ato pelo qual essa forma se desenha sao
dois movimentos diferentes e frequentemente antagonistas. O primeiro se prolonga no
segundo, mas nao pode prolongar-se nele sem se distrair de sua direção, como
aconteceria a um saltador que, para vencer o obstáculo, fosse obrigado a desviar os
olhos deste ultimo e olhar para si mesmo.
As formas vivas sao, por definicao, formas viaveis. Seja la de que forma for que se
explique a adaptacao do organismo as suas condicoes de existencia, essa adaptacao
necessariamente suficiente a partir do momento em que a especie subsiste. Nesse
sentido, cada uma das espécies sucessivas que sao descritas pela paleontologia e a
zoologia foi urn sucesso conquistado pela vida. Mas as coisas assumem urn aspecto
inteiramente diferente quando comparamos cada especie ao movimento que a
depositou pelo seu caminho, e nao mais as condicoes nas quais se inseriu.
Frequentemente esse movimento desviou, muito frequentemente tambem foi detido
abruptarnente; aquilo que devia ser apenas um local de passagem tornou-se termo.
Desse novo ponto de vista, o insucesso aparece como a regra, o sucesso como
excepcional e sempre imperfeito. Iremos ver que, das quatro grandes direções nas quais
a vida animal se embrenhou, duas conduziram a becos sem saída e, nas outras duas, o
esforco geralmente foi desproporcional ao resultado.
Faltam-nos documentos para reconstituir o detalhe dessa história. Podemos no
entanto destrinçar-lhe as grandes linhas. Dizíamos que animais e vegetais devem ter se
separado bem cedo de seu tronco comurn, o vegetal adormecendo na imobilidade, o
animal, pelo contrario, despertando cada vez mais e marchando para a conquista de
urn sistema nervoso. E provavel que o esforco do reino animal tenha desembocado na
criacao de organismos ainda simples, mas dotados de uma certa mobilidade e,
sobretudo, suficientemente indecisos na forma para se prestarem a todas as
determinacoes futuras. Esses animais podiam assemelhar-se a alguns de nossos
Vermes, corn esta diferenca, todavia, de que os Vermes hoje vivos corn os quais os
comparamos sao os exernplares esvaziados e enrijecidos das formas infinitamente
plasticas, gravidas de urn porvir indefinido, que foram o tronco co-mum dos
Equinodermos, dos Moluscos, dos Artropodes e dos Vertebrados.
Urn perigo os espreitava, urn obstaculo que, sem cliivida, esteve a ponto de deter o surto
da vida animal. Ha uma particularidade que dificilmente deixara de nos impressionar se
deitarmos urn lance de olhos a fauna da era primaria. E o aprisionarnento do animal em
um envoltorio mais ou menos duro, que devia atrapalhar e freqiientemente ate mesmo
paralisar seus movimentos.

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A verdade é que a adaptacao explica as sinuosidades do movimento evolutivo, mas nao
as direcoes gerais do movimento, muito menos o proprio movimento'. A estrada que
leva a cidade por forca tem que subir pelas recostas e descer pelas vertentes, adapta-se
aos acidentes do terreno; mas os acidentes de terreno nao sao causa da estrada nem
tampouco lhe imprimiram a direção. Fornecem-lhe a cada instante o indispensavel, o
proprio solo sabre o qual se assenta; mas, se consideramos o todo da estrada e nao mais
cada uma de suas partes, os acidentes de terreno ja nao aparecem senao como
contratempos ou causas de atraso, pois a estrada visava apenas a cidade e teria
preferido ser uma linha reta. O mesmo vale para a evolução da vida e para as
circunstancias que atravessa, corn esta diferença, todavia, de que a evolução nao
desenha uma estrada única, de que se embrenha em direções sem no entanto visar
objetivos e de que, por firn, permanece inventiva ate em suas adaptações.
Mas se a evolução da vida é algo diferente de uma serie de adaptaçoes a
circunstancias acidentais, tampoico e a realizaçao de urn plano. Um plano é dado por
antecipação. É representado, ou pelo menos representavel, antes do detalhe de sua
realizaçao. A sua execução cornpleta pode ser transferida para um porvir longínquo e
pode ate mesmo ser recuada indefinidamente; sua ideia nem por isso deixa de ser
formulavel, desde ja, em termos atualmente dados. Pelo contrario, se a evolucao é uma
criação incessantemente renovada, vai criando, passo a passo, nao apenas as formas da
vida, mas as ideias que permitiriam a uma inteligencia cornpreende-la, os termos que
serviriam para expressa-la. O que significa que seu porvir transborda seu presente e
nao poderia desenhar-se nele por meio de uma ideia.
Nisso consiste o primeiro erro do finalismo. Esse erro acarreta outro, ainda mais
grave.
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Se a vida realiza um plano, terá de manifestar uma harmonia mais alta à medida que
for mais adiante. Assim, a casa desenha cada vez melhor a ideia do arquiteto à
medida que as pedras sobem sobre as pedras. Pelo contrario, se a unidade da vida está
inteira no elã que a impele pela estrada do tempo, a harmonia não está na frente,
mas atrás. A unidade vem de uma vis a tergo: não é posta no final como uma atração, é
dada no começo como uma impulsão. O elã, ao comunicar-se, divide-se cada vez
mais. A vida, ao mesmo passo de seu progresso, espalha-se em manifestacões que
certamente deverão à comunidade de sua origem o fato de serem complementares
umas às outras sob certos aspectos, mas que nem por isso deixarão de ser
antagonistas e incompativeis entre si. Assim, a desarmonia entre as especies irá se
acentuando. E, até agora, assinalamos apenas sua causa essencial. Supusemos, para
simplificar, que cada especie aceitasse a impulsão recebida para transmití-la a
outras e que, em todas as direções em que a vida evolui, a propagaçao se efetuasse
em linha reta. Na verdade, há especies que se detem, outras há que arrepiam
carninho. A evolucao nao é apenas urn movimento para a frente; em muitos casos,
observa-se uma patinhagem ,e, mais frequentemente ainda, urn desvio ou um recuo.
É preciso que assim seja, como mostraremos mais adiante, e as mesmas causas que
cindem o movimento evolutivo fazem corn que a vida, ao evoluir, se distraia
freqidentemente de si mesma, hipnotizada pela forma que acaba de produzir. Mas
resulta daí uma desordem crescente. Sem dúvida, há progresso, se entendemos por
progresso uma marcha contínua na direção geral que uma impulsão primeira
determinou, mas esse progresso só se realiza nas duas ou três grandes lin has de
evolucao nas quais vêm desenhar-se formas cada vez mais complexas, cada vez mais
altas: em meio a essas linhas corre urn sem-fim de vias secundarias nas quais, pelo
contrario, se multiplicam os desvios, as paradas e os recuos. O filósofo, que havia
começado por pôr como princípio que cada detalhe se vincula a um plano de
conjunto, vai de decepção em decepçao a partir do dia em que aborda o exame dos
fatos; e, como havia colocado tudo no mesmo nível, eis que agora, por não ter querido
dar lugar para o acidente, passa a acreditar que tudo é acidental. É preciso começar,
pelo contrario, por restituir ao acidente sua legitima parte, e ela é bem grande.
Cumpre reconhecer que nem tudo é coerente na natureza. Ao faze-lo, seremos levados
a determinar os centros em torno dos quais a incoerencia se cristaliza. E essa
cristalizacao ela propria esclarecerá todo o resto: as grandes direções surgi rão, nas
quais a vida se move desenvolvendo a impulsão original. Não se assistirá, é verdade,
à execução detalhada de um plano. Há mais e melhor aqui do que urn plano que se
realiza. Urn plano é um termo conferido a urn trabalho: fecha o porvir do qual
desenha a forma. Frente à evolução da vida, pelo contrário, as portas do porvir
permanecem abertas de par em par. É uma criação que prossegue sem fim, em
virtude de urn movimento inicial. Esse movimento faz a unidade do mundo
organizado, unidade fecunda, de uma riqueza infinita, superior àquilo que qualquer
inteligencia poderia sonhar, uma vez que a inteligência é apenas um de seus aspectos
ou produtos.
Mas é mais facil definir o metodo do que aplica-lo. A interpretacao completa do
movimento evolutivo no passado, tal como nós o concebemos, só seria possivel se a
história do mundo organizado estivesse pronta. Estamos longe de um tal resultado. As
genealogias propostas para as diversas especies sao, o mais das vezes, problematicas.
Variam corn os autores, corn as visoes teóricas nas quais se inspiram, e levantam
debates que o estado atual da ciencia nao permite decidir. Mas, comparando as diversas
soluções entre si, veremos que a controversia versa antes sobre o detalhe do que sobre
as grandes linhas. Seguindo as grandes linhas de tao perto quanto possivel, portanto,
teremos certeza de nao nos extraviar. Apenas elas nos importam, alias, pois nao
visamos, como o naturalista, reencontrar a ordem de sucessao das diversas especies,
mas apenas definir as direeoes principais de sua evolueao. E, alem disso, essas direeoes
nao tern today para nos o mesmo interesse: e da via que leva ao homem que precisamos
nos ocupar mais particularmente. Nao perderemos de vista, entao, ao segui-las, que se
trata sabretudo de determinar a relacao do homem corn o conjunto do reino animal e o
lugar do reino animal ele proprio no conjunto do mundo organizado.

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