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TEXTOS COMPLEMENTARES -- LIVRE-ARBÍTRIO

O PROBLEMA DO LIVRE-ARBÍTRIO

A doutrina da liberdade da vontade ou livre-arbítrio deriva da impressão natural de que podemos escolher o que fazemos
segundo os ditames da nossa própria alma, sem sermos obrigados, e que nas condições da nossa ação poderíamos ter agido
de outra maneira. Só porque a nossa vontade é livre é que podemos falar com sentido de conceções éticas como responsabi-
lidade, dever, obrigação, autodeterminação e compromisso. Se tudo está causalmente determinado, como pode haver livre-
arbítrio? Apesar de a liberdade ter apoio na nossa consciência quotidiana, o determinismo ganha terreno na ciência.

Nicholas Bunnin e Jiyuan Yu, The Blackwell Dictionary of Western Philosophy, pp. 271–272.

COMPATIBILISMO E INCOMPATIBILISMO

Os filósofos dividem-se em compatibilistas, que afirmam que há maneira de reconciliar o determinismo com o livre-arbítrio,
e incompatibilistas, que rejeitam a possibilidade de reconciliação. Alguns incompatibilistas rejeitam o determinismo, ao passo
que outros afirmam que o livre-arbítrio é ilusório.

Nicholas Bunnin e Jiyuan Yu, The Blackwell Dictionary of Western Philosophy, p. 272.

A ILUSÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO

Imaginemos um homem que, parado na rua, diz a si próprio: «São seis da tarde, e o dia de trabalho acabou. Agora posso ir
dar um passeio, ou posso ir ao clube; posso também subir à torre para ver o pôr-do-sol; posso ir ao teatro; posso visitar este e
aquele amigo; na verdade, posso também fugir pelo portão, em direção ao grande mundo, e nunca regressar. Tudo isto de-
pende estritamente de mim, e nisto tenho completa liberdade. Mas mesmo assim não farei qualquer uma dessas coisas agora,
mas com uma volição igualmente livre vou para casa, para a minha mulher.» Isto é exatamente como se a água falasse consi-
go: «Posso fazer grandes ondas (sim! No mar, durante uma tempestade), posso precipitar-me montanha abaixo (sim! No leito
do rio), posso atirar-me pelo abismo, deitando espuma efusivamente (sim! Numa catarata), posso erguer-me livremente no ar
como um jorro de água (sim! Numa fonte), e posso, por último, entrar em ebulição e desaparecer (sim! A certa temperatura);
mas não estou a fazer qualquer uma dessas coisas, agora, e permaneço voluntariamente quieta e cristalina no lago espelhado.
Tal como a água, que pode fazer todas essas coisas só quando as causas que as determinam operam de uma ou de outra,
também aquele homem só pode fazer o que imagina ser capaz de fazer na mesma condição. Até as causas começarem a
operar, isto é-lhe impossível; mas depois ele tem de o fazer, tal como a água, assim que é colocado nas circunstâncias corres-
pondentes.
Arthur Schopenhauer, Ensaio Sobre o Livre-arbítrio, p. 43.

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CONDENADOS À LIBERDADE

Consideremos um objeto qualquer que seja manufaturado; por exemplo, um livro ou um corta-papéis — eis um objeto que
foi feito por um artesão cuja inspiração veio de um conceito. Ele referiu-se ao conceito de corta-papéis e também a um método
conhecido de produção, que é parte do conceito — algo que é, em grande parte, uma rotina. Assim, o corta-papéis é ao mes-
mo tempo um objeto produzido de certa maneira e, por outro lado, tem um uso específico; e não se pode postular um homem
que produz um corta-papéis mas não sabe qual é o seu uso. Logo, digamos que, para o corta-papéis, a essência — ou seja, o
conjunto de rotinas de produção e as propriedades que lhe permitem ser produzido e definido — precede a existência. Assim,
a presença do corta-papéis ou do livro à minha frente está determinada. [...]
Que significará dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, descobre-se,
surge no mundo; e que só depois se define. Se o homem, tal como o concebe o existencialista, não é definível, é porque pri-
meiramente nada é. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que
não há Deus para a conceber. Não apenas é o homem o que ele se concebe que é, ele é também apenas o que quiser ser
depois de lançado na existência.
O homem não é mais que o que faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. [...] O homem é no início um
projeto que tem consciência de si mesmo, e não um creme, um pedaço de lixo ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a
este projeto; nada há no céu; o homem será o que tiver projetado ser. [...] Mas se verdadeiramente a existência precede a
essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro passo do existencialismo é dar a todo o homem a cons-
ciência do que é e atribuir-lhe a responsabilidade completa pela sua existência. [...]
Se a existência precede realmente a essência, não é possível explicar as coisas tendo por referência uma natureza huma-
na fixa e dada. Por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não
existe, não encontramos valores ou mandamentos a que nos agarrarmos que legitimem a nossa conduta. Assim, no domínio
luminoso dos valores, não temos qualquer desculpa por detrás de nós, nem qualquer justificação perante nós. Estamos sós,
sem desculpas.
É esta ideia que tentarei traduzir quando digo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a
si próprio; no entanto, relativamente ao resto, é livre: porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
O existencialista não acredita na força da paixão. Nunca concordará que uma paixão arrebatadora é uma torrente devastadora
que fatalmente conduz o homem a certos atos, sendo, portanto, uma desculpa. Ele pensa que esse homem é responsável pela
sua paixão.
Jean-Paul Sartre, «O Existencialismo é um Humanismo».

LIBERDADE GENUÍNA

O que é definir a liberdade de tal modo que seja compatível com o determinismo? É defini-la de maneira a que uma criatura
possa ser um agente livre ainda que todas as suas ações ao longo da sua vida estejam determinadas a acontecer devido a
acontecimentos que ocorreram antes de essa criatura ter nascido; de modo que há um sentido claro em que a criatura não
poderia em momento algum da sua vida ter agido de maneira diferente. Isto, [afirmam os libertistas], é certo que não é livre-

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arbítrio. Além disso, não é uma base suficiente para a responsabilidade moral genuína. Não podemos ser genuinamente ou em
última análise moralmente responsáveis pelo que fazemos se tudo o que fazemos é afinal um resultado determinista de acon-
tecimentos que ocorreram antes de termos nascido; ou (mais em geral) um resultado determinista de acontecimentos por cuja
ocorrência não somos de modo algum, em última análise, responsáveis.

Galen Strawson, in The Shorter Routledge Encyclopedia of Philosophy, p. 288.

A LIBERDADE DOS CONDENADOS

Quase todos nós temos liberdade de escolha ao longo das nossas vidas, enquanto estamos acordados, segundo a conce-
ção compatibilista de liberdade. Temos liberdade de escolha entre as opções que vemos que nos estão abertas. (Por vezes
preferiríamos não enfrentar opções, mas somos incapazes de evitar a consciência do facto de que as enfrentamos.) Temos
opções mesmo que estejamos acorrentados, ou que estejamos caindo. Mesmo que estejamos completamente paralisados,
somos ainda livres, na medida em que temos a liberdade de escolher pensar numa coisa em vez de outra. Sartre observou
que há um sentido em que estamos «condenados» à liberdade, não temos a liberdade de não sermos livres.

Galen Strawson, in The Shorter Routledge Encyclopedia of Philosophy, p. 287.

DETERMINISMO E AUTODETERMINAÇÃO

Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas brancas que, em África, constroem formi-
gueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedra? Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não
ter a couraça de quitina que protege outros insetos, o formigueiro serve-lhes de carapaça coletiva contra certas formigas inimi-
gas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um ele-
fante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmitas-operário
começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afetada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas
inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no
tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu
avanço, enquanto as ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e
esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada … mas fecham-na deixando de fora as pobres e heroicas térmitas-
soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo
menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes? Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na Ilíada, Homero
conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Troia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfu-
recido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo
para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém tem dúvidas:
Heitor é um herói, um Homem valente como deve ser. Mas será Heitor heroico e valente da mesma maneira que as térmitas-
soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homero se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas,
a mesma coisa que qualquer uma das térmitas anónimas? Por que nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que

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o dos insetos? Qual é a diferença entre um e outro caso? Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-
soldado lutarem e morrerem porque têm que o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo
seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera
para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela natureza para cumprir a sua heroica missão. O
caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que
ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro
plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão
que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está
programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homero nos conte a sua
história com uma emoção épica. Ao contrário das térmitas, dizemos que Heitor é livre e por isso admiramos a sua coragem.

Fernando Savater, Ética para um Jovem.

LIVRE-ARBÍTRIO COM DETERMINISMO

Do facto de o meu comportamento poder ser explicado, no sentido em que pode ser subsumido sob uma lei da natureza,
não se segue que estou a agir sob coação.
Se isto for correto, dizer que eu poderia ter agido de outra maneira é dizer, primeiro, que eu teria agido de outra maneira se
assim o tivesse escolhido; segundo, que a minha ação foi voluntária no sentido em que as ações, digamos, de um cleptomaní-
aco não o são; e, em terceiro lugar, que ninguém me obrigou a escolher o que escolhi. E estas três condições podem muito
bem ser respeitadas. E quando o são pode-se dizer que agi livremente. Mas isto não significa que agir como agi foi uma ques-
tão de acaso ou, por outras palavras, que a minha ação não poderia ser explicada. E que as minhas ações possam ser expli-
cadas é tudo o que é exigido pelo postulado do determinismo. [...]
Contudo, poderá dizer-se, se o postulado do determinismo for válido, então o futuro pode ser explicado em termos do pas-
sado; e isto significa que se soubéssemos o suficiente sobre o passado, seríamos capazes de prever o futuro. Mas nesse caso
o que acontecerá no futuro está já decidido. E como posso então dizer que sou livre? O que vai acontecer, vai acontecer, e
nada do que faço poderá evitá-lo. Se o determinista tiver razão, sou um prisioneiro indefeso do destino.
Mas o que quer dizer que o curso futuro dos acontecimentos já está decidido? Se a sugestão é que uma pessoa o decidiu,
então a proposição é falsa. Mas se tudo o que se quer dizer é que é possível, em princípio, deduzi-lo de um conjunto de factos
particulares sobre o passado, juntamente com as leis gerais apropriadas, então, se isto for verdadeiro, não implica de modo
algum que sou o prisioneiro indefeso do destino. Nem sequer implica que as minhas ações não afetam o futuro: pois elas são
causas, tal como efeitos; de modo que, se fossem diferentes, as suas consequências seriam também diferentes. Implica, sim,
que o meu comportamento pode ser previsto; mas dizer que o meu comportamento pode ser previsto não é dizer que estou a
agir sob coação. É realmente verdadeiro que não posso escapar ao meu destino, se isto significar apenas que farei o que farei.
Mas isto é uma tautologia, tal como é uma tautologia dizer que o que vai acontecer vai acontecer. E tautologias como estas
nada provam sobre o livre-arbítrio.
A. J. Ayer, «Liberdade e Necessidade».

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PRESSUPOMOS SEMPRE O LIVRE-ARBÍTRIO

Não navegamos sob o pressuposto de que a Terra é plana, apesar de o parecer, mas agimos pressupondo o livre-arbítrio.
Na verdade, não podemos agir de outro modo a não ser pressupondo o livre-arbítrio, por mais coisas que aprendamos sobre o
funcionamento do mundo enquanto sistema físico determinado.
Podemos agora tirar as conclusões que estão implícitas nesta discussão. Em primeiro lugar, se a preocupação com o de-
terminismo for o medo de que todo o nosso comportamento seja de facto psicologicamente compulsivo, então parece que a
preocupação não tem razão de ser. Na medida em que o determinismo psicológico é uma hipótese empírica como qualquer
outra, as provas que temos neste momento ao nosso dispor sugerem que é falsa. Assim, isto dá lugar a uma forma modificada
de compatibilismo. Dá lugar à perspetiva de que o libertismo psicológico é compatível com o determinismo físico.
Em segundo lugar, até nos dá um sentido de «poderia» no qual o comportamento das pessoas, apesar de determinado, é
tal que, nesse sentido, poderiam ter feito outra coisa. E esse sentido é simplesmente o de que, no que respeita a fatores psico-
lógicos, elas poderiam ter feito outra coisa. As noções de capacidade, do que temos a capacidade para fazer e do que poderí-
amos ter feito, são muitas vezes relativas a um conjunto de critérios desse género. Por exemplo, eu poderia ter votado em
Carter nas eleições americanas de 1980, apesar de não o ter feito; mas não poderia ter votado em George Washington. Ele
não era um dos candidatos. Assim, há um sentido de «poderia» no qual eu tinha várias escolhas à minha disposição, e nesse
sentido havia várias coisas que, nas mesmas circunstâncias, eu poderia ter feito, mas não fiz. Analogamente, porque os fato-
res psicológicos que operam em mim nem sempre, nem sequer geralmente, me obrigam a ter um certo comportamento, pode-
ria muitas vezes, psicologicamente falando, ter feito coisas diferentes das que de facto fiz.
Mas, em terceiro lugar, esta forma de compatibilismo ainda não nos dá algo de parecido com uma resolução do conflito en-
tre o livre-arbítrio e o determinismo que o nosso impulso a favor do libertismo radical de facto exige. Desde que aceitemos a
conceção ascendente da explicação física, conceção em que se baseiam os últimos trezentos anos da ciência, os factos psico-
lógicos sobre nós mesmos, como quaisquer outros factos de nível elevado, são inteiramente explicáveis causalmente em ter-
mos de sistemas de elementos ao nível microfísico fundamental, e inteiramente realizados neles. A nossa conceção de reali-
dade física não permite pura e simplesmente o livre-arbítrio radical.
Em quarto lugar, por razões que não compreendo bem, a evolução deu-nos uma forma de experiência da ação voluntária
na qual a experiência do livre-arbítrio, isto é, a experiência da sensação de possibilidades alternativas, é inerente à própria
estrutura do comportamento intencional humano, consciente e voluntário. Por essa razão, penso que nem esta discussão nem
qualquer outra irá convencer-nos alguma vez de que o nosso comportamento não é livre.

John R. Searle, Minds, Brains and Science.

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