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Devir (do latim devenire, chegar) é um conceito filosófico que indica as mudanças pelas quais passam

as coisas.
O devir está em Heráclito, no pensamento de Platão, no cerne de Hegel e transforma-se na
concepção de Felix Gatarri e Gilles Deleuze. Para Deleuze e Guattari, o devir não está relacionado à
imitação ou à assimilação de um modelo, tampouco se reduz a um ponto de partida e um de
chegada. À medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma também muda tanto
quanto ele próprio. Para Deleuze e Guattari, o devir é o conteúdo próprio do desejo, de modo que
desejar é passar por devires.
De maneira simplificada, pode-se dizer que Deleuze coloca o devir, e não o ser, como o que constitui a
realidade, visto que a realização depende do desejo e da transformação.
Acessado em https://pt.wikipedia.org/wiki/Devir no dia 6 de março de 2024

DEVIR-MULHER
"Os homens eram todos iguais. Só as mulheres podiam aceder à diferença”
Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens

Se todos os devires se efetivam por devir minoritário, a mulher é certamente o melhor porto
de partida. Minorias que estão em maior número: trágico ou desafiador? “Todos os devires começam
e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires” (D&G, Mil Platôs 4). Deleuze e Guattari dão
ao devir-mulher as maiores honras e fazem dele um dos mais importantes. Não se entra em devir
sem antes passar pelo devir-mulher.
Mas antes façamos uma breve visita ao Homem, que não tem devir. O homem não entra em
devir porque ele é um modelo fixo que procura modelar e territorializar todas as outras forças que o
circundam. Para a forma homem, tudo está em segundo plano, tudo veio depois dele. A mulher veio
de sua costela, a criança é um homem em formação, o animal é um ser irracional que deve ser
domesticado. O homem quer colocar o mundo aos seus pés, ele está fixado em um plano molar de
existência, vive no mundo das ideias.
O homem procura subordinar a forma mulher, já a mulher, faz variar a forma homem. O
devir-mulher abala as estruturas do ser homem, por isso a linha molar traça um plano definido de
modelos dominantes: homem, branco, adulto, racional, heterossexual, trabalhador, ocidental. Cada
vez mais fixo, cada vez mais poder, cada vez menos espaço para o fora, o indefinido, a vida. Deleuze e
Guattari definem o devir-mulher como a chave para todos os outros devires, ela é a porta de entrada
para qualquer devir minotirário, a mulher é a primeira a desterritorializar o homem e fazer fugir suas
formas binárias e hierárquicas.
Entrar em devir não é imitar! Diremos isso mil vezes. Um homem pode colocar um vestido e
nada mudar, se ficamos neste plano ainda estaremos tratando de imagens e não é isso que
queremos. Entrar em devir não é capturar o outro, isso já fazemos cotidianamente: em vez de
entender, procuramos engolir e digerir, incluir perversamente. Uma mulher não tira seu devir-mulher
das forças molares que a constituem, não se aprende em uma cartilha da boa esposa ou da boa dona
de casa.
O devir trata-se de uma dupla captura, as moléculas de meu corpo entram em uma zona de
vizinhança de outro corpo, começar a girar mais rápido e entram em variação. A força de um devir
está no que passa entre, no que escorre destas determinações de poder. O devir-mulher contamina a
forma homem e também a forma mulher. Aceleração, velocidade, fluxos, o devir não se faz diante de
nossos olhos, mas em nossos corpos.
O que aterroriza nossa sociedade? O que mais ela procura negar? Fluxos descodificados,
tolerância com o que não entende, mas só até certo ponto, depois disso, disciplina e controle. O
devir-mulher é a potência do múltiplo, é a força que faz variar, o mistério do indefinível. Freud disse
não haver entendido as mulheres, mas é porque embaixo de uma casca masculina e feminina
escondem-se forças que simplesmente não podem ser dominadas, e nem podem ser compreendidas
porque são forças de criação.
Existe um feminino codificado, que se deixa dominar tanto quanto o masculino codificado, e
existem forças que são pura desestabilização da identidade! Por isso o devir só pode ser mulher.
Adeus mãe, adeus pai, adeus filho. A devir-mulher são as linhas de fuga que escapam pelas fissuras
de uma sociedade que foi pensada pelos homens e para os homens.
A mulher racha todos os modelos para abrir caminhos novos, novas subjetividades não
capturadas. Isso é importante: partir de forças moleculares -> criar linhas de fuga -> desfazer
codificações e sobrecodificações -> criar movimentos e afetos. É preciso saber jogar, é preciso uma
nova suavidade, é preciso ser malandro. O cristianismo diz: a mulher veio da costela do homem, o
patriarcado diz: a mulher deve respeitar o homem, Estado diz: a mulher deve trabalhar (recebendo
menos) e fazer dupla jornada. Para tudo isso o devir-mulher responde: mas eu ainda não tive a
chance de experimentar quem eu sou, vocês me interpretaram demais e não me deixaram
experimentar.
Isso é imprescindível também para o homem. Claro, o homem também precisa entrar em devir
mulher: ser chefe? ser pai? ser uma autoridade? ser reconhecido? O que quer o devir-mulher que há
em todo homem? Romper com os jogos essencialistas de identidades atadas. Encontrar o que em
mim foge às formas estabelecidas, quais potências em meu corpo se afirmam em um devir-mulher,
essa potência é muito mais efetiva do que a forma mulher, que impede os homens de juntarem forças
nesta empreitada. Encontrar onde estão as forças de afirmação, não as formas de reconhecimento.
Atuar no molecular, não no molar. O devir-mulher escorrega das teias do poder, sai do mundo das
ideias e toca o chão. A mulher dança para escapar do poder pelo puro prazer do movimento.
Claro, toda luta se faz com forças de criação e conservação, é preciso entrar em devir sem se
desfazer, é preciso prudência. Por isso um devir-mulher não pode simplesmente abandonar as lutas
por direitos. Mesmo que vinculado ao Estado, as lutas por reconhecimento são importantes. O que
elas não podem é se tornar a única bandeira de luta, porque assim correm o risco de se tornarem
ressentidas. Devir mulher é se afastar do homem na questão da não efetuação, mas é
importantíssimo aproximar-se em direitos, tomando sempre o cuidado de não cair em uma
armadilha: afastar-se quando necessário para retomar a capacidade de diferir de si mesmo.
Nesse sentido, podemos dizer: Sim, conscientização do câncer de mama, sim, delegacia da
mulher, mas não se pode parar em direitos concedidos pelo poder. Onde está o direito de criar
valores? Para isso é necessário fazer subir uma força que fuja às formas morais e encontre uma ética
dos devires. O feminismo se torna ressentido quando passa a usar as mesmas armas de seus
opressores e perde-se em seu campo de batalha, não queremos estar ao lado daqueles que nos
oprimiram, mas buscar lugares novos, onde eles ainda não chegaram, encontrar um mundo de
intensidades puras.
Onde está o corpo da mulher? Não sabemos, ele foi definido por homens. Onde está a essência
feminina? É isso que estamos tentando dizer, ela não existe! Ela tentou ser definida por homens, mas
a mulher abre espaço para o fora, o indefinível, o devir. A mulher não é um fim em si, ela é, usando
uma analogia de Nietzsche, uma corda estendida, entre o sedentário e o nômade, entre o homem e o
desconhecido. Um horizonte que se abre para todos os outros devires minoritários. O devir-mulher é
primeiro, ele dá início à resistência de uma forma homem que fecha os fluxos de experimentação.
Nasce um corpo nômade aberto à variação, que se recusa a ficar no mesmo lugar e buscar uma forma
definida.
Emitir partículas de microfeminilidades, longe da máquina dual que se opõe ao homem, isso
todos nós podemos; produzir uma mulher molecular, totalmente nova e desconhecida, isso todos nós
podemos; conquistar um corpo novo, uma história nova, afetos novos, isso todos nós podemos; mas
para esta importante tarefa é imprescindível, felizmente, devir-mulher.

"Admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão
para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada
à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa. As mulheres, pensava ele, eram mais intensas”
Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens

RAFAEL TRINDADE
Texto publicado em https://razaoinadequada.com/2016/03/08/devir-mulher/, acessado em 6 de
março de 2024

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