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FemininoMasculino: as Trelas e as Mazelas
© 2001
Personagens:
4. Gabriel: um rapaz.
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FEMININO: Freud tinha uma explicação para tudo, numa época em que o
cartesianismo ainda estava em alta, e mesmo a dialética que se falava era a marxista-
leninista, algo ainda muito racional.
Bom, estamos muito distantes da realidade. Vamos baixar a bola! Ah, se Freud
visse eu falar isso, diria que estou arrolando termos de minha subconsciência, mas é isso
aí: tudo tinha que ter uma explicação racional, e nada do que se não podia absorver
pelos próprios sentidos, nada do que era invisível ou inaudível ou não cheirável, ... nada
existia. E Freud trouxe a idéia de que nem sempre sabemos o que estamos realmente
falando, expressando. A psicanálise trouxe a idéia de que não somos o que pensamos
que somos, não falamos o que pensamos que falamos, não expressamos o que pensamos
que expressamos. Enfim, qual é a nossa?
Freud achou que tinha a explicação de que a mulher tinha inveja do homem.
Sim, a mulher tem inveja do homem por este ter algo físico que ela não tem...
Agora, cá entre nós, vamos ficar bem pertinhos pra uma confidência: é segredo,
ninguém pode saber, é só uma conversinha entre nós. Olhaí, Freud só conhecia um tipo
de civilização à sua volta, a masculina. Então, sua explicação só podia mesmo se basear
num universo masculino. Ora, se a mulher tem inveja do homem porque ele tem uma
coisa física que ela não tem, ... Pôxa, mas a mulher também tem coisa que o homem
não tem!!! E olha como tem!!! Só que as próprias mamães incutem nos seus filhinhos a
idéia de que o homem é o homem, porque a civilização é masculina. Então, tudo o que
é, é homem! E o que não é? É Mulher? Então, o homem é aquilo que é, num mundo em
que a mulher é a negação do homem.
Defina o que é o homem, quais suas características. Deu pra ter uma imagem?
Deu pra sacar? Tá. Então tá.
Agora inverta! O contrário. O negativo. Tudo aquilo que o homem é, você tira.
O que sobrou? (...) Então, o que sobrou, é a mulher.
Bom, não sei se a opinião de Freud era por aí, não tenho diploma pra isso, mas
tenho um simancol que funciona muito bem. O feminismo tem que ser uma luta pelo
equilíbrio. Não é para a mulher adquirir os vícios do homem, lutar contra o homem,
fazer do homem seu oponente!!! Mulher pode gostar de homem, tudo bem, não tem
problema, isso é legal, mas não é porque não vai fazer do homem o seu patrão, que vai
querer ser a patroa. Lugar de mulher é na cozinha e de homem é no bar. Só que o bar
queima o homem e a cozinha estraga a mulher. Homem na cozinha e mulher no bar!!!
Quem vai agüentar a mulher bêbada e o churrasco que o homem pôs no microondas???
Não se pode pensar nessa inversão de valores, a questão é diferente, é mais em cima!
Eu quero transcendentalizar essa invenção com a nossa desinfecção de cabeças. (...)
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Se homem não chora, a mulher que vence também não! Por que não pode
chorar? Mulher chora e homem também. Mulher anda que nem mulher, homem anda
que nem homem. Mas qual é o andar do homem, e qual o da mulher? Por quê que toda
mulher tem que se balançar pros home e todo homem tem que se empinar pras muié?
Ninguém precisa balançar nada, ninguém é obrigado a empinar nada, cada um sabe o
que é e o que precisa, e todos nós queremos a mesma coisa!!!
(...)
Enquanto a mulher quiser ter o poder do macho, ela vai ter o falo no lugar do
verbo.
(...)
Se o poder corrompe, dane-se o poder!!! A mulher que sobe ao Poder não pode
incidir nas falcatruas, porque isso é coisa da civilização do macho. Mas ela enfrenta o
poder machista que só consegue obedecer sob uma ordem masculinizada!!! O homem
dessa civilização tem vergonha de aceitar a mulher como vencedora de uma competição
inexistente. A mãe criou o homem para competir. E ele não sabe viver sem competir,
não sabe viver ajudando. Quando ajuda, vira maricas. Se é santo, não pode casar. A
mulher que subiu ao Poder, e seu marido, vivem com um poder entre eles que é tão
fálico que toma o lugar do casamento. E se separam. Muito comum isso também
quando um homem sobe ao Poder, e se separa da mulher que o acompanhou até então.
Mas neste caso, é porque o Poder machista exige a mudança de mulher. Se é a mulher
que sobe ao poder, então ela acaba virando galo. É exigido pelo poder machista, que se
a mulher quiser fazer parte, tem que virar galo. E aí o casamento dela se acaba.
Saporquê? A ordem conjugal se destroça porque no galinheiro só pode ter um galo
cantando. Dois galos não repartem o mesmo galinheiro.
Duas galinhas, sim. Três galinhas, quatro, mil galinhas. Mas o macho que é
macho tem que cantar sozinho.
A mater dolorosa, com o corpo de Jesus morto em seu colo, mostra a dor de uma
verdadeira e terrena mãe, não a dor transcendental. O pai chora, escondido, mas a mãe
demonstra sua dor, ensina o que é amar um filho. O pai deveria ter coração, mas não se
permite. A mãe abraça e carrega em seus braços e colo o filho ensanguentado. O pai
dissimula, a ele não é permitido chorar. Todos sabem que ele sofre, mas ai do pai que
mostra sua dor!!!
Sabe o que é xinfrim? É o que é pequenininho, sem valor, sem nada! Xinfrim é o
que vale uma porcaria só, um zero! Tem homem que só se faz coisa, pra mulherada ter
ele como coisa sexual, e vira objeto de desejo, tudo isso dentro do universo masculino.
E as mulheres, para aumentarem sua auto-estima, ao invés de transformar o mundo,
travestem seu próprio universo, e se travestem de homens, mesmo quando o objeto de
desejo é um homem, ainda que usem seus sentidos femininos de percepção. E deixam
de ser totais, deixam de sentir no corpo todo, querem apenas um objeto centralizado.
Esquecem do feminino que reina dentro delas, e que pode reinar junto com o masculino.
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O universo masculino esconde a inveja do homem, mas cria para ele o desejo de
consumir objetos, por sexo ou por poder.
Mães que estão aí, eu sei que tem mãe aqui, mães, eu quero falar com vocês,
ajudem seus filhos homens a se tornarem cavalheiros, doces, sensíveis, delicados. Não é
para castrar os seus filhos, mas é para deixar que eles saibam o valor da poesia, e que a
vida é mais que comer, beber e dormir. E mais do que comer churrasco e ficar bêbado
na calçada. Isso não é ser homem, isso é ser lixo. Lixo pra sociedade consumir.
Homem que é homem sabe dar a mão para ajudar a mulher sair do carro,
principalmente quando ela não precisa. Mulher tem que saber esperar o homem dar a
volta e abrir a porta para ela. Isso é o masculino e o feminino. O feminino ajuda o
masculino a crescer, a mulher ajuda o homem a crescer. O masculino ajuda a mulher a
ser feminina, doce, sensível, delicada, poética, quando o feminino ajuda o homem. O
Macho bate na Fêmea, e ela grita: Bate! Bate mais uma vez! Bate se for homem! Eu
gosto de homem que me bate! Eu quero me machucar, quero sofrer, quero ser miúda,
porque eu sou mulher!!! Quero me sentir mulher, porque eu sou apenas uma mulher!
Apenas uma mulher!!!
Mães, acordem para suas filhas, elas não são apenas mulheres, elas são
mulheres!!! O feminino é importante, não existe o masculino sem o feminino, apenas a
junção dos dois poderá fazer com que possa um dia sermos Deusas e Deuses, não um
contra o outro. O demônio é o que bate, e é também o que pede para apanhar. O
demônio não tem sexo, não tem vida, não tem corpo, não tem dor, não ama, não sabe
amar, só sabe domar, domar animais, domar bichos. O demônio doma, domina, bate e
apanha, briga e sai correndo, pisa no outro, não tem amigos, não tem amor, não sabe
nada!!!
É, isso aí, quanto mais alta a patente, maior a obrigação de servir. Não é mais o
poder do ódio, é do amor. O servidor tem que servir, o patrão tem que ser pai, e o pai
tem que aprender com a mãe. Se o empregado não sabe ser filho, que seja mãe, e então
aprenderá o que deve. Não há coisa melhor que ser um pai, porque a mãe a gente
sempre sabe como é.
Sempre são cultuadas as mães, para que possam ser devidamente exploradas no
universo masculino. Mãe é sofrer no paraíso, com o avental todo sujo de ovo... e o pai é
o que sofre calado, brigando com a mulher para descontar o que traz da rua. Então, a
mulher manda ele ficar mais tempo fora, ficam mais tempo longe um do outro, assim
não brigam. Ora, que mãe é essa? Não pode aceitar isso, o pai também não pode, eles
têm que ser felizes.
Vamos começar a cultuar o pai, agora, junto com a mãe. Pai e mãe, juntos
compartilhando as dores e os saberes, os quereres, os desejos, as aflições, pai e mãe vão
ser homem e mulher, feminino e masculino, juntos, um só.
O pai e a mãe idealizados são os que servem aos seus filhos e entre si, não os
que matam.
Eu acredito que existem Deusas e Deuses, e que eu posso ser uma Deusa como o
homem pode ser um Deus. E que não existirá esse homem-Deus sem existir a mulher-
Deusa. E isso porque as Deusas e os Deuses que existem hoje foram um dia mulheres e
homens como nós. Um dia tiveram problemas, dores de cabeça, enjôos, cólicas, dor de
dente, sangue, veias, um dia perguntaram se valia a pena viver.
O feminismo vai servir para que os homens possam melhor sentir as mulheres, e
as mulheres possam sentir melhor os homens. O feminismo é para que cada parceiro
sinta o outro como a si mesmo. Um não é sem o outro, nunca será. Uma relação só
existirá de fato quando ambos puderem ser fracos um para o outro, e fortes na ligação.
Isso é o amor. A fraqueza é a força, a fraqueza é a nossa fortaleza.
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Vamos à prática, mas sem que sejamos práticos, vamos ser belos, inteligentes e
poéticos.
MASCULINO:
ESCREVE TEU POEMA COM TUA SEIVA ESCARLATE!
FEMININO:
Morrer jovem!
a mesma coisa.
MASCULINO:
Estou velho.
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Meu corpo se regride junto à lúcida mente já não tão clara.
Meus amigos não existem mais. Aliás, (?)quantas lágrimas já não correram por
esta cansada face, por estes que SE foram
um
um
Ah, dor que doída fosse, passaria em virtude a uma nova luta... Hoje permanece.
essa que ainda insiste, jovens que ainda subsistem, sobrevivem em suas próprias
vidas. Vidas. Nessas horas é que vem-me a centelha.
Posso! Sou Jovem! Minha vida continua doída e revolucionária, babando tudo!
Esqueci da velhice, voltei a meus verdes anos!!! Que a velhice vá para o inferno!
Guardo meus quase todos anos no bolso esquerdo da calça e o resto na lapela.
Batalharei nu, despojado dos anos, novamente dourada e imaturamente jovem.
Sabendo que estou só, acabo por estar ao lado de muitos, e lhes dar força,
enquanto me chamam de amigo, tio, guru, vô, sei..., sei lá.
Outros ainda contam nos dedos suas namoradas. Outros, nem contam ainda.
Ai,
como me dói! Já faz tempo, não me lembro a face de minha última parceira,
preciso ver o álbum. Perde-se no tempo ainda minha primeira vez... Todas estão mortas.
Todas.
Vivo há tanto tempo... Oh, corpo miserável, morra de um só instante, que já não
agüento de tanta saudade!
O LIVRO:
PÓ´
TEM IDO
ID
TEMPOÍDO
O TEMPO
TEMPO IDO
O TEMPO TEM PUÍDO MEUS PENSAMENTOS
MEU PENSAMENTO
ME PENSAM
EM O
ME PENSAM
ME PENSA
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PENSO
PENSO
PENSO
PENSO
PENSO
DENSO
EM
SÓ
PÓ
AETERNUM
Alguns morrem
Outros ficam
Alguns envelhecem
Outros superam
Somos um continente
O continente supera a própria dor pela descoberta através das ondas que o mar
leva e traz com suas espumas esmaecidas pelo tempo.
rancores
flores
ardores
amores
suores.
O tempora o mores
os piores e os melhores
É a tua voz que arrebenta o próprio peito de tanto chamar por um Deus
Desconhecido
É a mediocridade
O mediano
O ó do pó
Transcende o caos.
Estende o torso e ouve os sons dos pássaros que anunciam nosso retorno.
Acredite
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A ilha continental
MASCULINO
Tuas carnes são pedaços de minha carne e teus ossos parte de meus ossos;
Pois eu sou parte tua e ele é parte de mim, E você é um nasgo da carne de cada
um.
É o mesmo coração que faz saltitar teu seio e desatiça a vontade do rei
Tão grande faz-se então o descaminho, que desativa por completo a nossa visão.
No final, quem é que vai entender que a tua é minha e dele carne,
FEMININO
Com tanto barulho
o que eu quero
é um pouco de paz.
Muito silêncio...
Que tédio!
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Os carros avançam lentamente sobre o sinal fechado
meus olhos ardem mais que quatro anos atrás, e meu nariz respinga.
A noite é úmida, mesmo sem chuva nem garoa - São Paulo já não é mais a terra
da garoa – e o frio entra pelas minhas meias, onde não há tênis, e se aloja nos
calcanhares.
Tal qual bêbado meus pés se arrastam ainda que ágeis, enquanto ouço um carro
passando, toca-fitas tocando Yes, e um cartaz do Made in Brazil com show pro dia 11.
Paqueras namoros sob o teto do carro. Todavia caminho e vejo assim uma
garotada de traseiro sujo na calçada, olhando pros olhos de quem passa e também pras
mãos e pros bolsos.
Meninas bonitas que passam – nem sempre bonitas – que olho e também me
olham –outras ignoram. Às vezes no entanto uma cantada de voz grossa ou de másculo
falsete, quando não chamando pra briga - Quíqui cê tá olhando? Num gostô?, ô mêo! –
ou mesmo obscenidades de prostituta ou alguém que te paquera e você não sabe se é
mulher homem travesti biscate ou outra variação.
E eu espirro! Parece que o rapaz do lado está tentando me imitar, só que ele não
usa lenço, prefere os dedos. Ludere cum digiti.
Minha bolsa roda de trás p’a frente e meus olhos lacrimejam num misto frio de
poluição e melancolia, porque nesta droga que me cerca um pedaço de meu corpo ficou
preso. É meu sêmen, e mesmo que não queira, mesmo que não goste, faz sempre com
que a gente tenha de voltar.
Não é por saudades, mas por ser necessário, mesmo que os cinco ou mais
sentidos reclamem,
(...)
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MASCULINO:
Era um país chamado Jaca. Quem nele nascia era considerado jacanês. Seu
partido de posição era o jaquismo, que tomava como símbolo a representação da fruta
de nome homônimo ao país. Os jaquistas costumavam ostentar histórias a respeito de
sua posição ideológica, histórias essas que nunca se pôde realmente verificar sua
veracidade. Uma delas contava que a origem da ideologia jaquista sediara-se na França,
com os jacobinos. (Quanto aos girondinos, parece que se identificavam com o
geranismo – partido do gerânio.)
Só que nas terras desse país não tinha mais condições de dar jaca. Se alguém
plantasse jaca, nascia feijão. Agora, se plantasse feijão, daí dava chuchu, e se plantasse
chuchu dava carne de porco, e se plantasse carne de porco... dava um mau cheiro
desgraçado!
Com tudo isso, o povo de Jaca ficou tão alegre que nunca mais quis comer jaca.
Bom, os jacaneses mataram o rei e o opositor, e a partir desse dia ninguém mais votou,
e todos viveram felizes, sem nunca mais ter governo algum que os reprimisse ou os
libertasse, o que – cá entre nós – seria a mesma coisa.
Agora, Jaca está só esperando seu reconhecimento pelo resto do mundo como
um país onde o regime é o Anarco-Jaca!
FEMININO
e aí vem nos vestir com mil roupagens toda hora, né? Afinal, tu já não pode
confiar em Lennon, e nem mesmo em Ali Agca, ou em Gandhi, ou no PSD. Mas pode
crer, Disney continua no poder. E por falar no Valter, o que é que tu vai ser quando
crescer?
Mas o amor que te dedico é muito forte, só que não tive ainda tempo
de nele acreditar.
MASCULINO
Vivo numa terra que poderia ser livre. Mas veja, a insensibilidade é vencedora.
As urnas não mentem jamais. Os homens. Fraudulenta. Sabotagem. Escura
sabotagem.
Livros! Livros a mão cheia, dizia o poeta! Para quê livros?, sobe-se ao poder
SEM os ler!
O coração então ainda baterá? Oh, Deuses que me inspiram respirar, que terra é
essa?
Que terra é esta, cujo povo a não respeita? A mãe que sustenta não é sustentada.
FEMININO:
Glory to the Seasons, as quatro estações, Mais quatro anos e uma vida terminará:
Queremos rolar acima das pedras, a favor das correntes contrárias, esquisitos,
Ser menino a vida inteira, Morrer jovem, Volver ao porto, Ser menino comendo
pão, Ser o filho pródigo. Goze a festa! Ser o irmão mais velho que ficou bravo com a
festa
Não existe volta, todo caminho é sempre em frente, o passado não se destrói.
Não há o que erre seus erros, o que errou permanece assim, errado.
O acerto é a volta, embora nada volte, a não ser para si mesmo,
O que não deixa de ser uma volta. É mais que isso, a volta para si mesmo, pois
reflete por si, Verifica-se, anula-se, cresce. Mas como? A volta não existe!
Existe o navegar e viver, nada se cria, já disseram isso, pois O que se cria já é
criado antes de ser criado, é princípio para depois transformar. Crescendo.
Sem carma não há darma, sem darma não se substitui a arma pela alma.
Esse, o livre alvedrio, tão sensato e perfeito. A alma te leva do darma ao novo
carma.
Quero falar de um lugar nel mezzo del camin... lugar sem arma, Lugar do k e do
d inexistentes, do alfa ao ômega, do alefe ao tau, Do azote, do elemento elementorum.
Vou te fazer voar feito anjo, não tema, com Lamyedus não haverá problema,
Mas ele encheu sua casa de penas, com elas fez asas, e com elas saltou.
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Lamyedus te levará do teta ao azote.
Seja a luz da candeia a iluminar desde o teto. Quem quiser que me procure.
Bato na porta do céu e encontro Bob Dyan, que emprestou uma letra a
Lamyedus.
O ar alimenta a Terra.
Nel mezzo del camin havia uma pedra, assim disse o poeta.
Ai! Topamos na pedra. Cogito: quero dourar a pele feito terra, ser como um cão,
Não sou um anjo, veja, não tenho asas... Mas um anjo não tem asas!
Não sou um anjo, veja, tenho memória! Nos quadrinhos de Barbarella aprendi
que
Ora, levanto a blusa e mostro, Eu não sou um anjo, veja minhas costas, não têm
asas nem cotós.
Para mim a história não existe, porque eu não tenho história, nem sou um anjo.
Eu construo a história que existirá. Relembro a história verdadeira que possa ter
existido e sigo o caminho das pedras. Longo é o caminho que nos leva à porta do céu.
Pelo simples prazer de voar! Se lançar do alto dos mais altos, e se despedaçar
entre as pedras, Pelo simples prazer de voar.
FEMININO:
Há muito, muito tempo atrás, havia um homem que juntava penas; toda vez que
encontrava uma guardava-a para si. Às vezes, encontrava várias de uma vez, e era isso
motivo de imensa alegria, algo assim que lhe deixava realmente feliz. E dessa maneira,
todos o talhavam de louco, ingênuo, desvario, mas ele continuava a juntar penas.
Muitas, muitas penas, estavam já enchendo sua casa; quem passava do lado de fora
dizia:
Até que um dia, um belíssimo dia de sol,... não, acho que era de intensas nuvens
pretas, é isso, muito daquele ambiente que vai chover.
Pois é, nesse dia ele atravessou a cidade vestido com um par de asas enormes,
tendo estas sido feitas com as melhores daquelas penas que ele havia durante tanto
tempo juntado. Mas eram realmente enormes aquelas asas! E todos olhavam,
admiravam aqueles belíssimos maravilhosos instrumentos de vôo, simples e belos.
Foi quando ele subiu no edifício mais alto daquelas terras e falou em altos
brados: “- Vou voar!”, e a multidão que lá embaixo permanecia, nesse momento ela
estalou em risos, vaias, gritos, e o que mais puder representar incredulidade
desorganizada. No entanto, ele continuou a gritar cada vez mais alto, “ – Vou voar, vou
voar, vou voar!”, até que, num dado instante, não mais se conteve e saltou! Ninguém
acreditava, mas realmente ele estava ali, plainando1 no ar, batendo as asas. e não caía.
Estatelaram de surpresa, e depois de ódio e inveja. E tanta inveja e ódio se irradiou da
multidão, que foi acertar bem nas asas do pobre homem, que acreditava poder voar. E
suas asas despregaram-se de seu corpo, caindo sobre a multidão. Mas aqueles que ainda
podiam olhar para cima, viram que aquele homem continuava em seu vôo pleno, como
se nada houvesse acontecido.
MASCULINO:
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Plainar é planar feito uma paina. (N.do A.)
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Esse olhar libidinoso já não faz com que minhalma venha a te querer com toda a
calma.
Queda-te em teu lugar e pensa no que foi, como tudo iniciou. Cabou-se.
Isto já não é mais brincadeira! Devo-lhe dizer que já estou de saco cheio de tua
ousadia! Tua palavra surda só me traz monotonia. E teu peito embriagado, ele só quer
folia.
FEMININO:
É, desta vez cê me apanhou com a boca na butija, e nem me doeu
essa maneira como você me olhou, pois já não é mais seu este corpo, faz de
conta que nunca foi, faz de conta que esta menina aqui nunca te amou.
e você não foi meu nada, só ameaçou, só me fez tão antiquada, nunca me amou.
MASCULINO:
Quando seu corpo se derramar pelo colchão vazio
E nesse dia ela vai tão somente querer ser amada, idolatrada e enciumada,
mas não vai saber em que lugar vai encontrar um homem que lhe dê um
sobrenome e muitos dias felizes com versos cheios de amor e de prazer.
FEMININO
Hoje quero ver o grito sussurrante de seu peito sair pelo nó da garganta
MASCULINO:
e a semente que não se germina vem de seu luxo, sua riqueza, seu pó,
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LIVRO:
Sob estes ventos que anunciam prenunciam nova chuva chegarei a teu lado
para sempre lutando entre as trevas com alguém que me espere até chegar sobre
ti.
Oh, sangue eterno que corre em brilhos sãos, queria agora estar a teu lado
Não sei que canto que faço, se levo esta vida no ato. Não sei! Não sei!
Não sei que canto que faço ou se levo esta vida no ato. Não sei! Não sei!
Não sei que canto que faço, se já levo esta vida no ato.
MASCULINO:
Sigo meu canto de prece e voto pela vida e por ti!
Você que me caminha aos poucos e repentes
parando
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e
go
te
jan
do
incessos de brilho!
e hesitação...
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FEMININO:
Eu canto pela liberdade
Do homem que não sabe falar.
Sou mais apto a ser que parecer. Desintegrei lições, dramas e percursos
Eu perco e quem ganha é você que se perde errante na avenida parada na calçada
na esquina esperando
alguém.
e te olho
e te devoro
Te troco novamente noutro dia e outra irá me tocar e ganhar e perder e ganhar
E solitário ficar.
Medo. Receio de chegar até. Palavras mudas. Silêncio que fala e manda e deixa
ser.
Receio de chegar mais perto e se assustar. Receio. Mas a estreiteza é cada vez
maior. Sempre. Cada vez mais perto até chegar. E quente. Mais quente. A verdade
aparece inteira, crua, nua, feito vertigem que não se controla. Porque a verdade é
aterradora para quem dela se esconde. Mas quando nos preparamos para recebê-la, e a
conhecemos e a identificamos, nos identificando, achamo-la a mais das lindas flores.
FEMININO:
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Este nó que fizeram na nossa garganta foi tão forte que até desaprendemos a
cantar
livres e fora do tom. Nós agora só sabemos fazê-lo por meio de gestos, de
códigos em pauta musical ou sinais.
MASCULINO:
Gargalhemos, sim,
O nosso despertar.
FEMININO
Eu rio.
No frio belo, bebo do rio sem brio.
Ah... Repressão das pedras para com as próprias pedras, que vegetam
doidas e eternas... Tão eternas quanto suas vidas, inteiras até a morte.
MASCULINO:
tu,
ele,
nós,
vós
FEMININO: Por um dia desses que a gente não sabe quando, numa dessas
quebradas da noite, você vai talvez me encontrar e perguntar, como tem passado, como
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está nesses últimos tempos, e por falar em tempos, estes tão exatos/inexatos tempos, já
não se sabe mais o que fica, o que vem, já há muito tempo que a gente não se vê,
cheguei a ter saudades de você.
E então lhe respondo, não se precipite, tudo chega a seu lugar, em sua hora,
desde que você consiga pegar a oportunidade quando ela passar. Vou te dizer que na
verdade não sei onde estou, onde fico esta noite e depois.
Se desencontrou, é o que você vai pensar, e depois me pegar pelo braço e dizer
vem, que te levo pra casa, ou pra qualquer lugar, me diga onde quer ficar.
E te digo que não, sempre fui o que sou, porém estou já sabido que sempre, na
verdade, não fui NADA, NADA, NADA!
E você me dirá, atônito, que sempre foi o meu melhor amigo, e que cuidará de
mim, irá até me pagar um bom jantar e um internamento no manicômio.
Então, ainda calmo, direi que você é quem precisa parar um pouco e pensar, e
verá que também rema o barco na mesma direção que eu, e verá que o rio corre mais
que seus braços, e você nunca se encontrou, e sabe-se lá se não estou tão perdido assim,
pois na verdade sei onde não estou, ao contrário de algumas (muitas) gentes que ainda
não perceberam onde estão nesta vida.
MASCULINO
FEMININO:
Ah
Eu sei
Eu sei
Eu sei
Se você é um homem
Ou se é um rapaz
meu fumo
MASCULINO:
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Quando a mulher se expõe à venda, nada mais faz que jogar o velho truque da
dominação. Isso não libera ninguém. Homens e mulheres ficam dominados por um
terceiro, o poder do bicho que não sabe transcender.
Um programa (de tv, rádio, internete ou diabaquatro) que incite um dos sexos (qualquer
deles) a lutar contra outro, desqualificando-o, menosprezando-o, estereotipando-o,
desejando-o por mero atavismo (qualquer dos outros sexos), é preconceituoso,
intolerante, e deve ser tratado com desprezo por todos nós, homens e mulheres, não
importa qual seja a preferência sexual de cada um.
Amamos a beleza, e por isso devemos defendê-la com unhas e dentes. E a beleza nunca
veio, nem virá, através do silicone, da artificialidade. Abaixo a vulgaridade, abaixo a
exposição do ridículo! Isso não é o que o povo quer, mas é o que é imposto a nós. A
beleza é múltipla, extensiva, mais percebida que divulgada. Não há necessidade de
termos peladas no sofá da hebe, globeleza, tiazinha, feiticeira, isso nunca elevou ninguém.
É bonito e atraente, mas é o culto à escravatura, é o culto à escravidão do corpo, à
obrigação de se cultuar um único tipo de estética, de dominação, e são coisas assim que
nos levam aos delírios dos tapinhas que não doem, mas que destroem a dignidade pessoal
e humana.
Todos desejamos as mesmas coisas, todos temos que ter os mesmos direitos, não os
mesmos defeitos. Não deve um sexo imitar os defeitos de outro qualquer, mas ensinar
suas qualidades. O que faz crescer a relação entre as pessoas é a ajuda mútua, nunca a
expulsão para guetos.
FEMININO:
Outrora plantados
Em cacos de pó...
Vede os lírios,
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PAUSA______________________________________________
________________________________________________________________
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GABRIEL: Você entende, Felí? O livro que esse cara escreveu é uma
genialidade, segundo contam. Sabe, vou ler hoje à noite, tô sem sono, não quero ver
televisão, você já o leu?
MASCULINO: Claro que já, todo mundo leu, só você, Gabí, ainda não. Como é
que eu sou amigo de um homem tão inteligente e tão desligado do mundo? Gabí espera,
na verdade, os livros adquirirem a pátina, para então ler um exemplar. É o caso de
Homoteo, o Livro do Ateísmo Devocional, escrito em 1980 por um louco chamado
Panjoi M, ou talvez seja esse apenas um pseudônimo, não sei. O Gabí conheceu o cara
que escreveu o livro, mas na época eles estavam brigados, quero dizer, o Gabí brigou
com esse tal de Panjoi, sei lá se o nome era esse, não, era Loi, isso, um tal de Loi
d’Hamppertinni. O Gabi brigou com ele por alguma razão qualquer, e agora o Gabí já se
arrependeu de ter brigado, nem lembra mais porque brigou, mas fica magoado de
lembrar, ele gostava muito do Loi, foram bons amigos, Loi desenhava enqüanto Gabi
fazia o som na guitarra, participaram de algumas loucuras juntos. Mas o livro do Loi,
ninguém levou a sério na época, e só agora o Gabí descobre a preciosidade. Mas não dá
pra falar pra ele, se eu comentar alguma linha, serei cínico, ele vai perceber, é muito
sensível. Que cara, tão inteligente e tão sensível, mas tão desligado, distraído, ... não
percebe que esse livro saiu da moda?
MASCULINO: Não dá, tenho que levantar cedo, amanhã, pegar no batente, sabe como
é, você faz o teu horário, eu tenho que marcar ponto. Até amanhã. Pode deixar que eu
passo a tranca e bato a porta. Fica aí, lendo. Depois você me fala o que achou. Quem
sabe eu releio.
MASCULINO: Uns tempos atrás, já. Tô indo, chau! Despede da sua mulher por mim,
ela deve estar dormindo. É tarde, já.
MASCULINO (AO Público): Na noite seguinte, fui ver meu amigo querido, o
Gabriel.
GABRIEL (falando devagar, mas acelerando pouco a pouco): Ah, sim, desculpe, li. O
livro é curtinho. Me ajeitei entre as almofadas, olhei para o teto, respirei e fui até a
janela. Estava frio, o ar gelado, ventando, tive que fechar o vidro. Sabe, aqui no décimo-
quarto andar faz mais vento que na rua. Você quer ler?
Disseram depois para as águas para que se espalhassem por todos os lugares, e
chamaram-nas de sabedoria. Ao elemento árido, chamaram ignorância.
Disseram também que eis, aí vos tenho dado ervas, árvores, cada qual segundo
sua espécie, para servir de sustento e cura. E a todos os animais da terra, e a todos os
animais das águas, e a todas as aves dos céus, a tudo o que tem vida, disseram os
Deuses que davam o que fosse necessário para terem de que se sustentar e como se
curar. E viram todas as coisas que tinham feito, e que eram muito boas.
E os Deuses elevaram o ser humano para que pudesse ter na sua consciência o
poder de se guiar, ter idéias e evoluir, pois já havia feito dos elementos da natureza e
do universo os homens e as mulheres.
39
Disse o homem eis cá o osso de meus ossos, a carne de minha carne, de um só
nascemos, a um só voltaremos. Nossa união terá que ser consolidada pelos Deuses,
para que possamos ser reunidos em um só novamente.
Perguntaram os Deuses para o homem: por que motivo havia ele deixado que a
serpente o induzisse a erro? E ele falou que acreditou que venceria sobre a mulher com
a sua força. E a mulher também disse que a serpente a enganara, fazendo-a crer que
poderia vencer o homem com a sua sensualidade.
Disseram os Deuses ao homem que, por essa razão, perderia suas posses, a fim
de aprender sobre a força da mulher. E para que o homem não se revoltasse, e a
mulher não se enchesse de orgulho, os colocou para fora dos limites do paraíso, onde
teriam que trabalhar juntos, homem e mulher, cada qual mediante sua capacidade,
talento, dom, especialidade e força.
Voltei a ler o livro, mas vi que as anotações de meu dileto amigo eram mais
intensas à frente. Vi que ele desenhou a vogal feminina dentro de uma circunferência e
escreveu em baixo: agora está ótimo!
Olho para Gabí dormindo nas almofadas, sua esposa do lado, lendo Drummond.
Os filhos dormem. E eu aqui, atrapalhando a cena doméstica. Mas minha esposa agora
está fazendo faculdade à noite, nossos filhos já são grandes.
Lá fora está frio, só estou imaginando. Gostaria de voltar para casa, mas não vou
ter o que fazer, o telefone foi cortado, não dá nem para brincar na internete.
MASCULINO: Ah, quem viajou foi o Gabí. Vou para casa, passo primeiro no
supermercado, pego alguns pãezinhos, cem gramas de queijo, um leitinho, pó de
chocolate, pau de canela, vai ser ótimo. Vou pedir pra levar o livro. Isso, a esposa dele
está falando comigo, perguntei do livro, ela deixou, vou levar. O Gabí deve estar
roncando, vou aproveitar para passar no supermercado. Nossa, tá vazio, acho que tá
todo mundo em casa, ninguém quer sair. O pãozinho está convidativo, tostadinho,
crocante, vou levar uns vinte, assim já fica pra amanhã de manhã, vou ter que levantar
muito cedo, tenho que estar na faculdade às oito da matina... O queijo tá feio, vou levar
frescal. Nossa, que caro, é melhor muçarela, tá o mesmo preço e tem mais sabor. Ih!
Cadê o dinheiro? Caramba, esqueci, só tenho uns trocados pra amanhã. Vida de
professor não é bolinho... Vou usar o cartão. Isso, a moça do caixa falou que eles
aceitam. Nossa, tá frio aqui fora, o carro não vai pegar de novo, é álcool, pronto, pegou.
Cheguei em casa, ninguém chegou ainda. Tiro minhas calças, visto um minhocão, meias
grossas, tiro meu casaco e minha camisa, coloco uma blusa de flanela e uma de lã,
ponho meu gorro de duende e vou pra debaixo de três cobertores. Não é pra dormir,
estou muito excitado. Quero terminar de ler o Homoteo.
Vou pular essas páginas introdutórias. Parece que aqui está falando de Ester.
Ester, a judia? Será? Não, esta é outra.
LIVRO: Eu, Ester, levei onze anos fazendo sopas noturnas para que Loi
pudesse escrever este livro. Onze anos. Ele escreveu com a rapidez de uma tartaruga,
tão minucioso em cada palavra, fio a pavio, fêz-me ler tudo a cada modificação, muitas
que foram durante esses onze anos, em meio ao nascimento de nossos filhos. Quando eu
li pela última vez, achei que seria o instante certo de ser publicado. Mas não
conseguimos achar editora que bancasse. Então, o Loi ficou desgostoso, e eu o
aconselhei a editar por conta própria. Conversamos com nossos amigos, e todos se
juntaram para editar a obra e distribuí-la. O Loi ficou receoso, não sabe se vai
emplacar, mas quem é que sabe alguma coisa? Resta esperar. Vamos fazer umas noites
de autógrafos em algumas boas livrarias, quem sabe? Não gostei do título, “O
Movimento das Plantas”, vou mandar ele mudar.
MASCULINO: Ora, então era para ser esse o título? Bem fez o Loi de mudar o
nome do livro, ninguém iria comprar. Até que naquele tempo o livrinho teve a sua
aceitação, o pessoal comentava, dizia que era muito louco. Acho que era muito lúcido,
podiam reeditar que hoje faria mais sucesso. Tem mais clima pra essas coisas, hoje em
dia. Acontece que o Loi andou morrendo, segundo dizem.
É, todo mundo bate as canelas, ele andou morrendo. Definhou de tristeza até a
morte. Ester havia sido assaltada pela Aids, repentinamente, e isso o deixou arrasado.
Nos dias que se seguiram à morte da esposa, Loi começou a arquivar tudo o que
já havia feito em sua vida, e catalogou suas obras, acho que ele mesmo planejou o
tempo que teria de vida. Ninguém consegue isso, ninguém sabe sua data, mas o Loi
adquiriu essa... não sei, vou chamar de vidência... com o advento do falecimento de
Ester.
Assim foi. Não conseguiu fazer todo o trabalho pretendido, seu definhamento o
levou ao leito, e de lá ao esquife. Seu filho mais velho está agora terminando de
arquivar e catalogar todos os escritos do pai, publicados e inéditos. Inclusive, um livro
de poemas intitulado “Cânticos Loisísticos”. Os custos de edição e distribuição estão
sendo bancados por Androrval, filho de dona Analinda. Androrval tem um sítio na
internete especial para as suas publicações, www.androrvaleditora.com ( Dizem que dá
azar entrar nesse sítio), e criou uma página só para as obras de Loi.
41
Androrval. Você não conhece, ele cuidou da mãe até ela morrer, nunca se casou,
nem foi de arrumar namorada. Enquanto dona Analinda foi viva, tiveram um
jornalzinho semanal, Correndo os Jornais, que vivia mesmo era dos editais da
Prefeitura, do Fórum e dos Proclamas de Casamento. Ester foi muitas vezes convidada a
escrever uma coluninha nesse periódico, mas nunca aceitou, declinava o convite. Loi,
nem pensar, era tido como pernóstico.
Não sei como o Gabriel não leu Homoteo na época do lançamento, na nossa
turminha só se falava nisso. Era a época da política do corpo, Gabeira voltando pro
Brasil, lembro que a Ester andou fazendo uns retiros espirituais num mosteiro de
beneditinas, e outros num de monjas budistas, vivia meditando.
Lembro que o Edivaldo era o maior folgado, vivia almoçando na casa dos outros
para economizar, nunca trabalhava, ficava só nos expedientes, e ainda conseguiu viajar
pra Europa umas tantas vezes. Eu mesmo nunca consegui ir. Pois é, o Edivaldo Correia
conseguiu uma fita cassete com a gravação de uma palestra, a única, que o Loi deu no
auditório da Faap, ainda nos anos setenta, finalzinho, e vendeu pro Androrval,
mantendo para si alguns direitos. Justo essa publicação foi o que mais rendeu, vendeu
horrores, Edivaldo tá rico, continua nos expedientes só pra garantir o feijão, e a gente
continua dando aulas pros filhos dos outros.
Amanhã vou devolver o livro pro Gabí. Você não conhece o Gabriel, mas são
vários gabriéis, contidos em personalidades que se convergem. Essa unidade de gabriéis
não coincide com o meu amigo, de quem falei há pouco, mas são pedaços de cada qual
dos conhecidos seus. E ele se divide, vários em um só. Tal como seres humanos menos
medíocres devem ser. Vive à beira da esquizofrenia e da psicose, mas nunca chegou a
nem a uma nem a outra. Foi criado entre mulheres, todas o dominando, e um pai que
aparecia em sua vida de manhã, ao sair de casa, e à noite, quando chegava. Aos
domingos, no futebol, que Gabí aprendeu a não gostar. Talvez daí advenha seu
feminismo.
Gostaria de ser como Gabriel, mas tenho minhas aulas para ministrar, amo os
meus alunos e não os deixaria por nada. Quando estou na classe, na frente do quadro-
negro, consigo mostrar minha face anarco-ecologista, poética, pensadora, enfim, a de
um idiota completo que não sabe ganhar dinheiro, mas que é tão firme na convicção que
se alheia do servilhismo. Bom, pelo menos eu consigo ser apto para a sociedade como
um todo.
Gabriel é meu amigo, do peito, mas não consegue desfazer seu ímpeto
revolucionário, é juvenil, mesmo com a idade que já tem. Triunfalmente já entrou nas
casas quaternárias e continua adorável.
Há um pouco de gabriel dentro de mim, é claro, senão como seria possível ser
amigo dele? Muita gente que conheço tem um pouco de gabriel dentro de si, um pouco
de loi, um pouco de ester. Gabí faz parte da história, não a que ensino na escola, mas a
que fica na cabeça das pessoas que a viveram, ou que a ouviram de quem a viveu.
Loi escreveu Homoteo, e isso foi muito importante pra mim, na época. É que,
justamente no período em que andei meio desnorteado, sem saber no que acreditar, ele
veio com essa de ateísmo devocional. Pegou forte, porque eu me via como um ateu
completo, não queria acreditar em nada que não pudesse perceber com meus sentidos
físicos. Eu era marxista, estudei História por causa dessa minha posição ideológica. Na
verdade, eu tinha medo de alguém que pudesse ser mais forte que todos, que fosse
vingativo contra minhas molecagens, e preferia achar que seria mais feliz como ateu. Aí
veio essa de devoção ao todo, e percebi a alegria de ter fé. Não a que eu tinha aprendido
em criança, mas uma fé na transcendência, porque homoteo é a forma de dizer que o
homem pode ser Deus como um dia Deus foi homem. E só pode ser Deus se estiver
junto com a mulher, pois um não será Deus sem o outro. Achei isso muito lúcido. Do
ateísmo devocional cheguei à minha religião atual, da qual sou convicto praticante.
Ester, esposa de Loi, mostrou como ser uma lutadora. Ela acreditou em si
mesma, no que podia fazer para o marido poder vencer a si mesmo, e ambos venceram
as fraquezas cotidianas. Pena a Aids, pegou ela numa época que ninguém sabia ainda
direito o que era e como tratar, era só aquela coisa de a aids mata, a aids mata, a aids
mata... e, é claro, ao saber que era soropositiva, Ester foi drasticamente fulminada pela
síndrome em poucos meses.
Evoé, loas aos nossos heróis vivos, que os mortos não precisam mais. Não
estivemos lá, quando precisaram de nós. Nós precisamos deles, mas os queríamos vivos,
enquanto ainda atrapalhavam o sistema. Gabriel atrapalha, não consegue se adaptar, é
um herói vivo que tem que ser apoiado. Não vou esperar que ele morra para dizer oh,
ele era tão talentoso!, porque aí não poderei conversar com ele, nem ele comigo. Não
cresceremos mais um com o outro. Acho que isso é a verdadeira amizade, um crescer
junto.
Com licença, preciso ir pra sala de aula, meus alunos já estão lá. Se quiser, pode
ficar por aí, zanzando. A gente se vê. Até.
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Monólogo a 4 Vozes
Caraguatatuba, outono de 2001.
Personagens:
1. Tiago
2. Ernesto
3. Celso
4. Gabriel
45
THIAGO: Fala, Ernesto, qual a sua história? Todo mundo tem uma, qual a sua?
ERNESTO: Minha? Eu não tenho história, meus dias estão esquecidos, não me lembro
de nada. Ainda mais agora, acabei de levantar faz duas horas e ainda tô zoréu...
ERNESTO: tenho 19. Já tô vivo há bastante tempo. Nasci aos 15, percorri uma longa
estrada, sei lá, tamos aí na vida, mas eu sou muito saudosista. Tenho saudades de um
tempo que não vivi, que existiu antes de eu nascer.
THIAGO: eu tenho 42, a idade da razão, e acho que tô adolescendo. Não consegui
ainda amadurecer, estou adolescendo. ... Não, não!!! Eu um dia amadureci e envelheci,
agora tô readolescendo.
CELSO: é isso, eu também tô readolescendo, é isso, tenho 60, sessenta anos de vida
muito bem vivida, muito rock e de tudo ao meu amor serei atento, espalhar e derramar
meu canto ao fim de quem ama, que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja
infinito enquanto dure, como dizia Vinicius de Moraes...
Nunca gostei de Vinicius, mas ele passou pela minha vida e só consegui entender
Vinicius de Morais tocando com Toquinho quando ele cantou num disco e eu ouvi
deitado na rede, uma rede que foi instalada no quarto de um amigo, esse amigo era
muito louco, tinha um quarto cheio de coisa pendurada nas paredes, e eu deitei naquela
rede do quarto dele que ficava no segundo andar, o olhar ia direto pra janela, e eu via a
luz que entrava pela janela, e dava pra ver a parte de cima da árvore, os passarinhos, o
céu azul, as nuvens brancas, e na vitrola rolava o som de Toquinho e Vinícius, imagina
só, eu que tinha passado por San Francisco, Califórnia, em 1968, depois de ter morado
em Londres por dois anos, rodado por algumas comunidades hippies, fiz contato com
muita gente, mulheres tão lindas que vocês nunca viram, nunca viveram, eu tinha já
meus trinta anos, talvez, trinta e pouco, tava na casa desse amigo, eu tinha chegado lá e
ele estava ouvindo já o disco.
Me convidou para que deitasse na rede, enqüanto ele trabalhava numas correntinhas, eu
deitei e só então consegui entender Vinícius e toquinho. Foi uma grande descoberta, eu,
um roqueiro convicto, precisei dessa rede para entender Vinicius e Toquinho, sacumé, a
rede, o sol, a árvore, os passarinhos...
Foi assim também que consegui entender um dia o Chico, quando estava em Maceió e
me vi numa roda de samba, cantando até as 4 ou cinco da manhã, então entendi o que
tinha se passado no Brasil enquanto fiquei fora, entre os ingleses, holandeses,
estadunidenses, chineses, indianos, eu tinha passado meus anos aprendendo a tocar sitar,
guitarra, e visto o pessoal tomar alguns ácidos, que às vezes, até hoje, de repente dão
aquele barato, não sei daonde sai, cê vê os caras em qualquer lugar, e de repente vem o
barato, não sei, parece que nunca mais vão se livrar disso.
Mas tudo bem, se vem a gente curte, tem que curtir, senão a gente escorrega e sangra,
sangra tristezas. Eu adorava Maria Bethânia, mas ela me deixava tão triste... Sobrevivi a
uma vida cheia de mortes, loucura, sangue e desnorteio, tô aqui sozinho. E de repente,
saí de mim mesmo, decidi que sessenta anos não é nada, e estou revendo minhas metas.
Não pensei que fosse chegar até aqui, se bem se sempre achei que fosse ter uma vida
longa, mas achava que aos 60 estaria ainda com meus longos cabelos, e não tou, tô
assim meio careca e pintando de azul o que ainda me resta. Mas o que me resta é meu,
faço o que quero com ele, deixo ensebado, tudo bem, não tem quem me segure, tô
ouvindo aí a molecada tocar guitarra e acho legal, tô ainda pensando em fazer uma
faculdadezinha de música, sacumé, estudar música, tentar entender melhor certas coisas,
e eu tô com muita vontade, muita vontade mesmo de ... sei lá, tô readolescendo, me
deixa agora um pouco sozinho que eu preciso chorar.
(...)
THIAGO: quando eu tinha a idade do Ernesto, eu achava que não ia chegar nos trinta.
Vivia resfriado, gripado, com dores de cabeça, era tão fraquinho que mal conseguia
apertar as cordas de minha guitarra, demorei quatro anos para aprender o que qualquer
moleque consegue aprender em um.
Eu dizia que o carcará me comia enquanto eu tava vivo, e que não ia conseguir chegar
em lugar nenhum, não tinha tempo para nada, compunha meus poemas feito louco,
tinha que fazer alguma coisa pra posteridade, tinha que ser. Aí, acontece que continuei
vivendo, casei, fui ficando mais fortinho, tive filhos, fui envelhecendo e tô com 42 anos.
Sei lá, estou pensando em alguma forma de começar outra coisa.
ERNESTO: Começar? Readolescer é recomeçar.
THIAGO: Não, cara, readolescer é começar outra coisa, é começar de onde se está,
como se novamente fosse um adolescente, mas um adolescente de experiência, com
olhos novos.
Por que é que ninguém publica as minhas cartas? Puxa vida!!! Eu vivo escrevendo carta
pra tudo quanto é jornal e revista, e ninguém, nenhuma dessas publicações põe pro
público o que eu quero falar!!! Já mandei um monte de cartas pro jornal O Estado de
São Paulo, e eles nunca publicaram nenhuma!!! Já mandei carta pro Suplemento
Feminino, e eles nem me deram um alô!!! Já mandei carta pro Jornal do Advogado, e
nada!!!!
Já mandei carta pra Folha de São Paulo, e nada!!! Ninguém publica minhas cartas!!! Aí
eu mando minhas cópias de originais para livros e não tem uma só, uma só maldita
editora que se digne a publicar meus livros!!! A Sextante foi educada, devolveu o
original, teceu considerações e desejou boa sorte. Foi, aliás, até agora, a mais educada.
Geralmente nem respondem, ou mandam uma cartinha padrão, nem sempre de bem
traçadas linhas.
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Será que ninguém me quer? Será que o que escrevo é tão ruim assim? Será que a
qualidade do que faço não é o que querem? E o que querem?
Tô cheio!!! Não agüento mais!!! Olha, pode falar que eu sô paranóico, tudo bem, mas
parece que tem uma rede que não deixa minhas coisas irem pro ar!!! Lembra daquela
peça de teatro? Um grito parado no ar? É assim, meu grito não passa de minha boca, e
fica ali, na minha frente, no alto, meu próprio grito perguntando pra mim aonde é que
ele tem que ir, e eu não sei, não sei o que responder pro meu grito. Meu grito pergunta
afogando-se em mágoas: por quê? Por que ninguém me acata? Por que eu fico aqui
parado, como se tivesse uma teia que me segurasse????
Cara, eu vou arrebentar com essa rede, vou estraçalhar essa teia!!! A questão é a
seguinte: como quebrar a inveja?, o ódio?, a repressão?, a intromissão?, o féretro de
vampiros???? Como??? Se eu quiser ser violento, se eu quiser usar a minha espada, o
meu machado, o meu martelo, a minha catapulta, só vou fortalecer essa teia, essa rede
de mentiras.
Existe uma rede de mentiras que propaga apenas o que não é perigoso para o sistema.
Eu quero sair dessa ilusão, o véu que nos anima é o mesmo que nos queima. Podemos
ser protegidos, sim, mas pelo que é certo! O que é certo está muito além dessa rede
pontiaguda, maléfica, dolorosa, que não permite o acesso ao que existe mais e mais alto.
Eu quero beijar o céu, mas não como Jimi Hendrix, porque eu não vou pedir desculpas,
peço licença mas vou entrando, não vou nem limpar os pés, vou entrar pedindo licença e
vou beijar o céu.!!!
(...) Luz! Eu quero luz. Eu não vou pedir licença, nem vou pedir desculpas, porque não
há desculpas a serem pedidas. Desde que eu nasci, nenhum desgraçado me disse vai ser
gôche na vida!!! Não sou esquerdo nem direito, não nasci pra ser Carlos nem Pessoa, tô
aqui chutando as canelas e caindo no escuro, tô subindo e descendo, parece que tem
uma parede lá, em cima, que não deixa a gente subir mais. Parece que tem um limite,
uma redoma que não deixa que se passe além...
Não agüento mais tocar guitarra, eu tinha várias, vendi tudo a preço de nada, vendi
meus violões, inclusive os meus instrumentos adaptados, inventados, vendi tudo a preço
de nada, e não fiz mais música.
A minha voz se perdeu, ficou engasgada, não tive mais ânimo de cantar. Muito menos
de poetar. Nunca mais escrevi poemas, não conseguia mais escrever sequer uma
palavra.
Não escrevi mais nada. Não consegui mais escrever nada. Tocar nada. Não pintei mais
quadro algum, não desenhei mais nada! Não toquei mais gaita, nem flauta, nem nada!!!
Fiquei mudo.
Não sabia quem eu era, o que eu gostava, pra onde devia seguir. E assim fui seguindo,
morrendo e morrendo, até que minha vida se negou a continuar morrendo, e se insurgiu
falando: Pára, pára!!!
Então eu parei.
Perguntei pra mim mesmo quem eu era, o que eu queria realmente, o que eu gostava
realmente, qual que era o meu eu verdadeiro...
Descobri que não sabia nada de mim. Passara todos os anos escondendo a mim mesmo
de todas as coisas e pessoas, atrás de um sorriso quando eu queria chorar, e sabia que o
sorriso era verdadeiro, e o choro também. Eu estou muito triste, mas sou mais feliz hoje.
É muito difícil saber quando se tem uma história verdadeira ou inventada. Estou
descobrindo a minha verdadeira história. O que sou hoje é o retrato de tudo aquilo que
já fui e que já fiz, de todas as decisões que já tomei e de todas as escolhas que fiz em
minha vida, e das mortes pelas quais escapei.
(...)
Eu tinha 19 anos. Achava que não ia chegar nos 30. Então, como pensar em meu futuro?
Tinha que pensar no já, no agora, não conseguia estudar. A vida era para ser vivida com
toda a intensidade, porque eu não tinha planos para o futuro. Não tinha idéia de casar,
ter filhos, apenas a de que não ia durar. Achava que tudo ia logo acabar para mim, tinha
que deixar alguma coisa para a posteridade.
Então eu tocava e gravava, gravava em fitas um monte de coisa, escrevia pra caramba e
falava com um monte de gente. Adorava Aldous Huxley, As Portas da Percepção, O
Macaco e a Essência, coisas assim. Lia muita ficção científica!!! Já gostava de
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Hermmann Hesse, Sidharta, Demian, O Lobo da Estepe, adorava Jimi Hendrix, Janis
Joplin, Steppenwolf, detestava Pablo Neruda e amava Ariano Suassuna, tinha paixão
pelos versos de Rimbaud e de Castro Alves. E sobrevivi, inexplicavelmente sobrevivi.
Lembro que naqueles dias eu era um roqueiro inveterado, detestava Elis Regina, e
aquela turma da emepebê!!! Achava que eram um bando de chatos!!! Na verdade, eu
fugia da intelectualidade e me refugiava no rock. Chegava a ter simpatia pelo público do
Gil, parecia um bando de malucos, e adorava Jorge Mautner, aquela história do
Fragmentos de Sabonete era pra ter muita coragem. E os shows dele eram um negócio
muito simples, era um rock brasileiro mesmo, de verdade.
Amava Maria Bethânia pela voz que ela tinha, ou talvez pelo que ela conseguia fazer
com a sua voz. Cheguei a ter todos os discos possíveis dela, tentava ler Mautner,
gostava de ouvir o violão ou a guitarra de Nelson Jacobina, ele usava conga no pé e um
cabelinho de officce-boy, acompanhando um grande gênio, sem saber que ele também
carregava nas suas mãos e dedos um toque genial.
Eu vivia com um espelhinho, pra ver se meus olhos não estavam vermelhos por causa
da lente de contato, e quando estavam eu colocava colírio, e o pessoal dizia assim, não
tá dando bandeira, tudo bem, achando que eu estava com olhos vermelhos de erva, eu
não queria usar óculos escuro, estava demais!, assim.
Eu detestava Elis Regina, já falei isso, porque ela representava pra mim o símbolo de
uma turma intelectualizada que queria dominar o planeta, que nem sabia o que estava
acontecendo de verdade, eu estava querendo mostrar pra todo mundo que existia uma
energia maior que a gasolina, que a gente podia aproveitar os ventos, o sol, a
eletricidade podia vir de muito lugar, não tinha porque sujar o ar que respiramos, eu
vivia lendo revistas de rock, adorava uma coleção que se chamava rock a história e a
glória, tinha a Ana Maria Bahiana, eu adorava ela, agora ela vive em São Francisco e
nem sei se ainda escreve sobre rock, mas acontece que naquele dia, eu estava ali sentado
na Estação São Bento do metrô, sentado no chão, no meio de uma porção de asnos que
nem eu, e assim no meio de uma conversa em que eu animadamente falava sobre
alguma coisa, uma roqueirinha de sopetão, de repente, assim como quem acha que tá
abafando, falou com muita alegria para mim:
(Respira)(...Dá uma pausa, faz o público querer ficar com vontade de saber o que a
roqueirinha falou, e dispara:)
(...)
(Respira profundamente, mantém no ar a tensão de algo que vai explodir de novo, faz
menção que VAI EXPLODIR!!!!, mas apenas diz:)
Aí, pirei. ... É, aí pirei, porque eu estava o tempo todo fugindo disso, e nem notara que
minha intelectualidade continuava, eu era um intelectual sim. Fiquei louco da vida, e
naquele dia dancei bem na fila do gargarejo, enquanto um guitarrista com cara de
morto-vivo tocava um instrumento todo desajeitado, uns pedais pretos, o cara era muito
bom na guitarra, e tinha um baixista loiro, cabeludo e maguérrimo, parecia que ia
quebrar no meio. E um baterista.
Anos se passaram e eu tentava gostar da emepebê, mas o público era muito estranho, eu
não conseguia me encaixar, a maioria se dizia politizado, mas na hora agá era um bando
de covardes, e corriam pra cerveja e pra pinga, era um bando de deprimidos com
vontade de ficar dandando que nem dendêm, mas não tinham peito pra isso, queriam
ficar muito odara, mas não sabiam que podiam, a maioria era burguesona, dizia que não
era, mas no fundo queriam mesmo era ser do poder. E olha aí, tá cheio deles no poder
hoje, mentiram pra gente, falaram que queriam mudar o poder, e tão aí, com os mesmos
vícios e falcatruas, mandando bilhetinhos para os carcarás!!!, mandando bilhetinhos de
apoio aos carcarás!!!
Descobri que mesmo no meio dos roqueiros a maioria não tinha aquela louca amplidão,
apenas a bebedeira e a fuga, o sambinha descompromissado, as letras, ah, as letras...
Para que música?, se a letra já diz tudo? Ah, eu quero prestar atenção nas letras, se a
letra é boa, me ganhou, me interessa é a letra... Isso é papo de intelectualóide, que não
tem coragem de viver a sensibilidade da música, ... Olha, até hoje, quando ouço música,
ainda que sejam canções, presto atenção primeiro na música, a letra vem com o tempo.
Eu preciso ler a letra como poema, ou ouvi-la como poema, então ela virá aos meus
ouvidos como se fosse música!!!
Bate na porta e entra, não precisa esperar que alguém responda. Pode ser que não tenha
ninguém na sala, e você vai ficar o resto da vida esperando que alguém responda, e você
vai envelhecer e morrer na porta.
Vai morrer na porta, sem nunca ter tipo oportunidade de entrar e sentar na cadeira
reservada para você, na sala cheia de quadros, livros, uma grande mesa, uma cadeira
giratória, almofadas pelo chão, grandes janelas que dão para o mar, para as montanhas,
e que deixam passar o ar, os ventos, e que têm vidros que podem ser fechados e abertos,
para as frissões e para se proteger.
Bom, mas eu tentei, tentei entender aquela turminha da emepebê, achando que devia, fui
me imiscuindo naquilo que achava odiável, porque pensava que talvez fosse mais
correto, e descobri então um livro chamado A Morte Organizada, de Luís Carlos
Maciel. Descobri que podia ser visceral e instintivo ao tempo em que poderia também
ser um intelectual. Poderia usar cabelo comprido, barba, livro na mão, na cabeça um
solo de guitarra e uma orquestra sinfônica, um bloquinho no bolso pra poder anotar as
minhas idéias, poderia perfeitamente deixar fluir, ser um intelectual sem deixar de ser
poeta apaixonado... ser visceral, corpóreo, e também intuitivo, espiritual, tudo-ao-
mesmo-tempo-aqui-e-agora!!! (...)
(respira profundamente, não tenha pressa, deixa o silêncio fazer a tensão, dane-se o
público, dane-se todos e tudo, agora a deixa vai ser tua, vai ser a tua fraqueza que vai
falar, e você vai ser forte e mostrar pra todo mundo, para o público, para os outros
atores, para o diretor, para todo mundo, que a fraqueza é a tua força, e você vai
conseguir ajudar todo mundo a ser mais forte, a deixar fluir seus dons. E agora,
aguarda a força interior e expande no ar:)
Eu sei, lembro de uma turma que dizia que tomava pedra fazia dez anos e estavam
inteiros. Eu acreditei neles, mas eles mentiam. Mentiam descaradamente. Primeiro,
porque não tomavam pedra havia dez anos, e segundo porque não estavam inteiros.
Pedra era uma espécie de ácido lisérgico de pobre, não tinha medida. O lsd era um
negócio que tinha medida. Pegava forte e deixou muito cara doidão até hoje. Outros,
parece que nem usaram um dia essa coisa, são é muito medrosos, covardes, e ficam aí
mandando os outros se corromperem pra eles não ficarem sozinhos.
Perdi muita gente por terem usado essas coisas. Um saiu do cotidiano e ninguém mais
aguenta, outro morreu, outro virou um executivo frustrado e o outro ficou tão canalha
que vive da desgraça dos outros.
Teve muita gente que conheci que morreu por aí, sei lá, câncer, tuberculose, aids,
política, ideologia, drogas, álcool, cigarro, essas coisas....
E eu não. Tô aqui. Briguei que nem doido, caí de escada várias vezes, fui vítima de
acidentes mortais, e no entanto tô aqui como você pode ver, inteiro!!! Inteiro, cara !!!
Tirei chapa do pulmão e ele tá limpinho! Fiz exame da próstata, minha mulher falou que
ficou orgulhosa por isso, de eu ter tido coragem de fazer esse exame.
É, porque é muito constrangedor, o cara enfiando o dedo, você sabe, tá de luva, mas é
meio maluco, dá vontade de você mandar o cara pro raio do inferno, mas você tá lá,
firme, fazendo exame, e tudo bem!! !
Entrei na fila pra fazer exame de diabetes, e tá tudo bem!!! É, tem que tomar cuidado,
mas ainda tá na linha de segurança. Fiz exame de colesterol,... bom, esse pegou um
pouquinho, sacumé, mandaram eu andar mais. Comecei a andar mais. Ando a pé, de
bicicleta, faço até umas musculaçãozinha caseira, mas nada muito metódico, nunca
consegui ser metódico.
Bom, metódico eu sou e muito!!! Mas tenho métodos heterodoxos, muito heterodoxos.
Sabe o que é heterodoxo?
Hétero é o que não é igualitário. Então, não sou ortodoxo. Orto é o que está do lado, do
mesmo lado. Então, quem é homossexual é ortodoxamente sexual, ou seja, tem relações
sexuais com outra pessoa que é igual a ela. O heterossexual é o que não é igualitário
sexualmente, pois tem sexo com pessoa que não é igual a ela. Então, o heterodoxo é o
que não é ortodoxo.
53
Bom, eu sou heterodoxo também no que se refere aos métodos, não sou utilizador de
métodos comuns, invento os meus. Tenho meu próprio método de escrever, de digitar,
de pegar o lápis, de segurar o garfo e a faca, de segurar hashí... Sabe o que é hashí?, né?,
aqueles palitinhos que a gente usa pra comer comida chinesa...
Teve um tempo em que todo mundo usava bolsa a tiracolo, e eu usava uma enorme, de
couro, na qual sempre tinha algum livro que eu estava lendo, uns exemplares de meus
livros, que eu mesmo editava, um par de hashis, tabaco, cachimbo, fósforo, essas
porcarias que hoje luto para não voltar.
E olha só, a gente acaba dando nome de mulher pra essas coisas, e por aí vai, tudo
começando com uma cara de donzela e terminando com cheiro de estrume!!! Como é
que estou aqui???
Tive cárie, dor de dente, e vivo tendo dores do nervo trigêmeo, dores de cabeça, dores
de nevralgia.
Ah, sim, uma vez quebrei meu cotovelo! É, eu achei que poderia voar, e dei alguns
saltos pela escada, acho que quase conscientemente eu me atirei escada abaixo, queria
voar, estava doido para voar!!! Por alguns segundos de prazer, fiquei meses com um
gesso envolvendo meu cotovelo, fiz duas operações, a segunda pra colocar o osso do
braço no lugar.
Não valeu a pena, eu não voei, fiquei com trauma de vôo pessoal para sempre, nunca
mais consegui voar!!!
Bom, eu tinha mesmo a mania de subir e descer escadas feito um louco, atravessando
degraus como se fossem obstáculos, ou descendo os degraus como se minhas pernas
devessem seguir compassos alternados, ritmados, sempre com música na cabeça.
Até hoje tenho música na cabeça. Vivo o tempo todo com música na cabeça, gosto
muito de ouvir música para poder variar o que toca na minha cabeça. Enquanto tem
música, tem também palavras, textos, frases, mas é como se cada formato estivesse num
lugar da cabeça.
Penso que o teatro poderia ser assim. Concebo as minhas peças de teatro como se
fossem a minha própria cabeça.
Tem um consciente, que é o centro das atenções, mas diversas vezes esse consciente se
divide em dois, três, quatro, todos ao mesmo tempo, pensando cada qual uma coisa
diferente, um é música, outro é poesia, outro é discurso, outro é uma dança, e não são
necessariamente partes de um mesmo contexto. Fora isso, tem o inconsciente, querendo
entrar no consciente, tentando abrir espaço, tentando entrar, e é só um dos pensamentos
começar a enfraquecer que um dos que vêm do inconsciente se aloja no consciente.
Então, de repente, de uma hora para outra, tudo se esvai. Os palcos ficam vazios, o
inconsciente trabalha sozinho, preenche os espaços do consciente, mas sem se mostrar.
É quando eu perco a inspiração, descanso, durmo, fico deprimido, triste sem saber
porque.
GABRIEL: Preciso contar uma coisa. Eu também, quando tinha vinte anos, não achava
que chegaria aos trinta... estudar pra quê? Carreira pra quê? E Deus me deu e tem me
dado o presente da vida! A vida é um presente que nos é dado, você não precisa pensar
em fazer uma escalada, uma carreira. Não existe carreira profissional, existe a vida, isso
é mais importante. Não há nada mais importante que eu saber que sou pai. Não importa
se meus filhos saíram de meu pênis ou não, isso qualquer animal faz. O meu cachorro
sabe fazer isso. Falo que o pai que sou é o pai que o Ernesto pode ser, mesmo que ele
não consiga nunca imitar o meu cachorro. Pai é mais que isso, é algo que dura uma vida
toda, quer dizer, começa quando o filho passa a ser teu, não como tua posse, não como
tua coisa, mas de tua responsabilidade. E você começa a ver que o filho é um pouco
você, embora ele não seja você. O filho é um pouco a tua vida, mas não é a tua vida, ele
tem a vida dele, a vontade dele, o modo de ser dele.
Preciso te contar uma coisa, Ernesto. Eu tinha a sua idade quando ouvi dizer que um
monte de maçã tinha caído na cabeça de muita gente, até que um dia caiu na cabeça do
Newton, e ele disse: - Ah, a gravidade! Quantas palavras foram ditas por todas aquelas
pessoas que levaram maçã na cabeça, e Nilton foi o primeiro a dizer ah, a gravidade!!!...
(MÓDULO 1)
ERNESTO: Pô, cara, deixa de me encher a GABRIEL: É, Ernesto, você vai ter que aprender
cabeça, você tá ficando muito sem entender nada, muita coisa, mas coloca na sua cabeça essas
você acha que tá sabendo muito, mas você não coisas que hoje estamos te passando, a nossa
sabe nada, tá aprendendo agora! Sabe, cara, eu tô experiência, que só nós podemos falar, porque
com 19 anos e sei o que passa por aí, em volta de nós passamos isso e você não precisa bater na
mim, não tô me matando, não, o teu tempo era mesma parede, você não precisa mais descobrir a
outro, o meu é este. Eu quero que você se entenda gravidade, talvez você um dia possa dizer que a
com você mesmo, porque eu não estou aqui a fim gravidade não existe, e que o que existe é algo
de ouvir o que você tem a dizer. que se chama anti-anti-gravidade.
Acho que está tudo muito errado, eu vou pintar a
Eu tenho muita esperança nessa
minha cara e vou berrar contra esse poder que aí
juventude que hoje está aí, acho que alguma coisa
está, porque não me interessa se foi parte da tua
está acontecendo. Não é a questão de se mudar
geração. Eles estão errados, eles têm que sair de
tudo, mas de se saber o que mudar. Você está
onde estão, eles têm que sair daí.
certo, apenas não está sabendo como dizer.
(MÓDULO 2)
Eu quero colocar uma nova idéia de poder, uma Eu quero colocar uma nova idéia de
nova idéia de homem, uma nova idéia de gente… poder, uma nova idéia de homem, uma nova idéia
Eu não quero ouvir Elis Regina, nem Caetano de gente. Um dia ouvi o Cazuza e achei que era a
Veloso, nem Gilberto Gil, são gente que eu não nova geração, ouvi o Renato Russo e achei que
entendo, eu conheço é o Jota Quest, eu conheço é era um novo poeta. Mas eu acho que não consigo
a internete, eu gosto de computador, eu sei o que entender qual é a do mata-burro, penso que
é a noitada, eu posso escolher entre o clube, a poderia passar o tempo vivendo atrás de um
buate, a igreja, eu quero usar maletinha preta, eu computador e trabalhar na internete, talvez seja a
quero dirigir um carro elétrico, eu não acho que a maneira de tentar um mundo novo, um novo
guitarra seja sinal de revolução, eu não quero pensamento.
fazer a revolução, eu acho que o Che Guevara foi
Você não sabe quem foi Che Guevara, você usa
um cabeludo muito bonito, tenho até uma camisa
ele no peito e só acha que é um novo músico.
com ele.
(MÓDULO 3)
Olha, não me interessa saber se a aids mata ou se Olha, eu não sei o que você acha sobre as novas
a droga entorpece meus sentidos, eu já sei disso relações do ser humano, mas eu vi uma revolução
tudo, você está repetindo o que eu venho ouvindo nascer e morrer, eu tive meus sentidos
desde criança, não agüento mais, estou pensando entorpecidos por uma paulada que veio de um
até em mudar pra uma casa do campo, levar golpe repressor.
minha antena de tevê, meu computador, minha
Um dia alguém cantou que queria ir para
linha telefônica, trabalhar através das
uma casa no campo, levar seus discos, seus livros,
oportunidades que a internete dá, não preciso
onde pudesse ficar com os amigos, e nada mais. E
ficar na cidade.
a gente foi pro campo. Teve alguns que estão lá
Também não importa, não é questão de ficar na até hoje, outros voltaram pra cidade, outros estão
cidade, não é questão de ir pro mato, onde eu no meio do caminho, alguns morreram ou
estou é onde está a minha vida, é onde está a enlouqueceram.
cidade e o mato, eu levo para onde quiser o
mundo, porque eu sou o centro do mundo. Eu aqui, nós aqui, agora, conversando, trocando
idéias, e queremos entender o que é necessário
para que cada um compreenda o outro.
(MÓDULO 4) Então, compreender um ao outro Então, uma coisa é o meu contexto, outra o seu, e
não simplesmente um ouvir o outro, mas é se nós temos que encaixar os nossos contextos, que
colocar no lugar. Eu tenho que me colocar onde fazem parte cada um de sua própria historicidade,
você está, e você tem que se colocar onde eu para que sejam um só contexto. Só assim
estou. Compreender não é entender. Compreender estaremos entendendo melhor um ao outro.
é aprender juntos, com o mesmo objetivo
Nós não somos o centro do mundo,
Nós sempre fomos, você sempre foi o centro do ninguém é o centro do mundo, juntos fazemos o
mundo, o mundo só existe enquanto você existe, mundo, mas cada um de nós é um ser especial,
quando você morre leva o mundo junto. um ser individual, e nem sempre sabemos disso.
Cada um de nós é um mundo, é o centro de um Acho que dificilmente sabemos.
mundo, e o planeta é a união de nossos mundos.
Não tem como dizer que somos um mundo, um
Os mundos que prestam se unem com os que
centro de um mundo, nós somos, cada um, a
prestam, e os que prestam menos com os que
partícula de um todo, e fazemos a história através
prestam menos, até que o último, mais
da união e participação de cada um de nós. Isso é
imprestável, se arrebenta contra os tão
a história, a história pessoal de cada um se
imprestáveis quanto ele.
entrelaçando na grande teia que é a história das
civilizações.
(MÓDULO 5)
Eu tenho história, sim, tenho 19 anos mas tenho Você falou que não tem história, mas você tem
história pra contar, eu tive infância, aprendi história, sim, são 19 anos de vida, muita criança
durante toda a minha infância que um dia iria morre antes de completar os três anos de idade, e
crescer. é uma vida, você tem dezenove anos de vida,
você tem 19 anos de história, 19 anos de infância,
adolescência, e tá sendo um jovem. Por mais que
57
Tive uma adolescência sofrida, aprendi o que era a gente possa querer dizer pra você que você tem
ser chamado de aborrecente, aprendi a dor de ser que ajudar a criar um novo mundo, vai depender
tratado como inútil, como se fosse um medíocre, da tua vontade em criar isso.
eu não sou nada disso, eu tenho inteligência.
(MÓDULO 6)
Cala a boca, eu quero falar! Eu tenho voz, eu Um dia eu falei que queria falar, e não
tenho inteligência, tenho cabeça e tenho corpo, eu me deixaram, fiquei mudo e sem voz. Ora, eu
penso, eu quero falar! Deixa eu falar um pouco, tenho uma cabeça que pensa, e quero expressar
deixa eu dizer que você também é imbecil, minha idéia, que nem você. Nós somos dois
porque nós dois somos grandes imbecis que não grandes idiotas que não se ouvem, a gente não
ouvem um ao outro, eu não te ouço e você não ouve um ao outro, só ouve a si mesmo, como se
me ouve, somos como duas cadelas latindo, fosse um garoto ouvindo o eco de sua própria
latindo para se ouvirem, uma cadela não ouvindo voz. Fala, Ernesto, eu quero te ouvir!!! Fala, que
a outra, só ouvindo a própria voz, e tendo prazer estou esperando
em ouvir a própria voz.
Fala!
Fala, agora, que eu estou te ouvindo!
Fala, agora, que eu estou te ouvindo!
Fim
PERSONAGENS:
1. ELOÍNA: a mulher, casada, um filho homem;
2. SIBILA: a vidente;
5. LÁILA (Layla): a mulher misteriosa. Busca, não sabe o quê. Amiga de Sibila,
inveja Eloína;
6. LÍLI (Líliti, Lilith): a mulher que não foi, que não sabe o que fazer da vida, e é
contra o homem. Não sabe se ama Leandra ou se ama Neandrus;
18. SAFO DE LESBOS, A “MUSA DÉCIMA”, não adotada pela Memória, mas a ela
dada como filha. Poetisa, torna-se a musa da poesia do efêmero;
22. CORO: um personagem coletivo, formado por um grupo de pessoas que tenham
voz tonitroante. O coro fala sempre em uníssono, pesado, devagar, como um trovão
em câmara lenta. Sua voz coletiva é sempre trágica, pesarosa, voz de quem não
opina, apenas fala. É a voz do Destino imutável! É a voz da massa impensante. É a
voz da resignação.
23. O NADA: um personagem formado por duas pessoas: um varão e uma varoa.
Observações: (*) As musas sempre estarão em grupo, as nove juntas. Não são um
personagem coletivo, como o coro. Cada qual tem sua personalidade, mas estão sempre
juntas. Uma não funciona sem as outras. Isso as difere do coro. Safo de Lesbos não se
mantém, portanto, junto às musas, embora seja tratada como tal. È uma personagem que
inspira a busca pelo prazer efêmero.
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61
NEANDRUS: Um dia eu acordei e percebi que havia sido enganado por todo aquele
tempo. Nunca existira dinossauros, muito menos, é claro, o Elo Perdido. Se bem que,
antes disso, alguma coisa aconteceu. Nasci há muitos anos, e naquele tempo os casais
costumavam já dar nomes diferentes a seus filhos, no intuito de fazer com que os nomes
pudessem simbolizar alguma coisa diferente, para um mundo que estava começando a
ser construído, um mundo diferente. Por isso, fui chamado Neandrus. Esse nome,
segundo me explicaram, é uma junção de Neo, que significa Novo, e Andrus, Homem.
Eis, então, que responsabilidade: Neandrus, o Novo Homem. E estamos aqui. Esta é
minha esposa, Eloína, em seus afazeres domésticos. Ali, estudando, meu filho, Lói.
Agora, deixem-me contar a minha história. A MINHA história.
NEANDRUS: Eu era criança, e aprendi que deveria respeitar as leis da igreja oficial,
embora fosse tudo brincadeira, e aprendi que o certo era o que meus professores
científicos ensinavam. Tudo o que diziam dos seis dias, Adão e Eva, do Dilúvio, era
verdade, mas não era pra acreditar. Na hora da verdade, da certeza, tinha que ser
cartesiano, tinha que ver pra crer, tinha que ser Tomé! Nada que não seja percebido
pelos meus cinco sentidos tem valor. E eu tenho que ganhar dinheiro com o que faço,
senão terei fracassado em minha vida.
Seja feliz.
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VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE CONSEGUE GANHAR.
NEANDRUS: Cresci e fui formado acreditando que todas as coisas estavam certas em
seu lugar. Sempre fui bom aluno, acreditei nos dinossauros, na idade da pedra, do ferro
e do bronze. Eu queria ser cientista, e um dia conheci Leandra.
LEANDRA: Eu sou Leandra! Fui criada para me casar. Desde criança, aprendi a usar
batom, rebolar para os homens, abraçar, beijar e olhar com segundas intenções. Mesmo
quando eu não sabia o que seriam essas segundas intenções, eu sempre aprendi a olhar
assim. Eu quis ser a mulher de Neandrus, mas ele nunca me olhou. Não sei como isso
acontece, mas ele não olha para mim.
NEANDRUS: Ela pensava que eu a não olhava, mas sempre tive uma queda por ela. Se
eu soubesse que ela me queria, teria me arrastado até seus pés e exposto a ela todo o
meu desejo. Mas eu não sabia. Nunca percebi!
LEANDRA: Os homens são tolos. Neandrus, um jovem bobo, nunca percebeu o quanto
eu o queria. Exerci sobre ele todo o meu fascínio, e ele nunca me olhou.
NEANDRUS: Um dia eu acordei e percebi que havia sido enganado por todo aquele
tempo. Nunca existira dinossauros, muito menos, é claro, o Elo Perdido.
NEANDRUS: Por toda a minha vida fui embalado pelos sonhos da arqueologia, que
mostrava-se tão perfeita e maravilhosa, tão incólume e sábia, tão altiva e generosa, tão
embriagadora e formosa, não havia como desconfiar.
CORO: E NO ENTANTO ERA TUDO MENTIRA!
NEANDRUS: Foi assim. Eu dormia saborosamente, mas acordei ainda com o dia
escuro, um dia ainda não nascido, um dia que iria clarear. Subitamente, recebi um sinal
de que tudo o que acreditara até então havia sido uma enorme, grandiosa, grotesca
máscara da realidade. Não é possível falar de tanta desgraça! Fala por mim, Memória,
mãe de todas as musas!!!
MEMÓRIA: Sim, eu sei! Eu sou a mãe das nove musas, e falarei por ti e para ti, meu
amado Neandrus. Sim! Eu vi o quanto fora enganado por todos aqueles anos! A história,
inspirada pela minha filha Clio, sempre te foi apresentada numa elegante toga branca,
com olhos no infinito horizonte da busca, como tinha que ser... Clio, a musa da História,
filha dileta da Memória, morrera assassinada!!! Quantos interesses?, por tal ato
horrendo...
NEANDRUS: Não, nunca morre aquela que ainda não nasceu! Não diga isso, Memória,
porque não vive quem não tem nascido. E é por isso mesmo que não tem como morrer.
NEANDRUS: A arca do tempo, como fora apresentada durante toda a minha vida, na
verdade nunca existiu. Foi apenas um conto-de-fadas para que eu pudesse dormir meus
sonos e sonhar acreditando que tudo tem uma explicação razoável, racional e
perceptível aos sentidos físicos. Clio, a musa da História, nasceu quando descobri que
havia sido enganado por toda a minha vida!!! Nesse dia, ela pôde finalmente ser
inspiradora de meus pensamentos.
65
MEMÓRIA: Minha filha sempre inspirou os heróis, mas dificilmente consegue
alcançar a sensibilidade dos historiadores, tão preocupados em agradar determinadas
ideologias, políticos insensatos e ladrões...
CLIO: Minha doce mãe, meu querido Neandrus. Minhas caras irmãs. O Destino que
troveja suas vozes sobre as orelhas de um poeta, não deve ser levado a sério. Não existe
o inevitável, não existe o impossível, pois senão o que seria dos heróis?
NEANDRUS: Você mente, musa, eu procurei por você por toda a minha vida, eu te
chamei por toda a minha vida, e só recebi mistérios e mentiras!!! Você nunca, nunca,
nunca me inspirou a verdade!
CLIO: Você vomita sobre o prato que acaba de comer, Neandrus. Eu sempre te
inspirei.
MELPÔMENE: Vou mais além! E se cada exemplar dos encontrados foi apenas um
animal defeituoso?
Eu, Melpômene, a musa da Tragédia, aviso aos que pensam que as conclusões podem
ser tomadas por um só exemplo. E se toda a ciência está baseada nas exceções!!! Qual a
regra?
CLIO: Ou será que uma pequena raça se perdeu, sem deixar sucessores? Pode ser que
uma raça de animais tenha crescido mais que o ambiente podia suportar, e assim
sucumbiu perante as dificuldades.
ÉRATO: NÃO DIGA BOBAGENS, TÁLIA! Por isso você é a musa da comédia.
Quieta, não vês que Neandrus está em crise?
67
TÁLIA: Rindo nós castigamos os costumes. Por isso, nem toda piada é grossa, algumas
são leves sátiras, mas de todas nós podemos rir.
MEMÓRIA: Tália, minha filha, não confunda o pobre homem. Nós sabemos que o
gorila e o homem são sucessores de um elo perdido, do qual ambos são seus
descendentes.
TÁLIA: Minha mãe, minha querida mãe, eu sei que o que digo não é bem ouvido, mas
é bem guardado. Neandrus pode rir de minhas falas, mas não se esquecerá delas. E olha
que ainda não cheguei na mulher!
MEMÓRIA: Minha filha, não se deixe levar pela piada, ela pode transformar a verdade
em mentira, e o choro em riso! Se isso acontecer, tudo estará perdido, e a História
matará mais uma vez minha pobre filha Clio.
Apesar das patricinhas serem tão renegadas pelos maurícios-maiores, dentre os quais
está a espécie já citada anteriormente dos maurícios-de-sousa, elas se conservam e se
multiplicam pela sua capacidade em formarem, junto com os mauricinhos,
agrupamentos familiares, o que garante a sobrevivência de todos.
NEANDRUS: Minhas adoráveis musas, que me acompanham pela vida, eu odeio todas
vocês, porque vocês calaram a boca da Memória, mãe de todas as musas. Vocês me
inspiraram com seus véus, vocês esconderam vossa mãe. Meu nome é Neandrus. A
mulher, aqui do lado, é Eloína, a minha esposa. Deixemo-la por aqui, está em seus
afazeres. Não quero atrapalhar. Temos um filho, bonito, inteligente, obediente e curioso,
chamado Lói. É este aqui. Vem cá, Loi, quero te apresentar para as Musas. Mas apenas
dê atenção a elas se estiverem acompanhadas da mãe, a Memória.
Meu pai exagera. Não sou tudo isso. Apenas me esforço. Meu pai pensa muito. Pensa
demais. E fica chegando em suas conclusões malucas!!!
Eu sei que existem os dinossauros, podem reviver a qualquer instante, desde que a Terra
ofereça as condições externas necessárias para tanto. A relatividade ensina que se pode
ir para o futuro, nunca para o passado, mas os modernos físicos já dizem o contrário. Eu
acredito que é possível resgatarmos fisicamente elementos do passado.
Não sei quem é meu pai. Não sei quem é o senhor Neandrus. Às vezes ele me parece tão
estranho, não sei se ele está certo ou não. Dentro de mim, parece que uma voz lhe dá
razão. Mas não sei. Prefiro não saber ainda. Sou novo, não tem porque querer ter
alguma certeza. Confio no que leio, no que ouço e no que me dizem.
69
CALÍOPE: Quem te dá a certeza da tua certeza, ó, Loi Filho de Neandrus?
LOI: Calíope, não queira dar a mim a inspiração, não a quero, não me interessa a
eloqüência, não quero dar para minha voz a entonação, a melodia, o ritmo e a
dramaticidade que convencem.
EUTERPE: Eis que fala você também de mim, Euterpe, a musa inspiradora de quem
trabalha com as notas musicais, o silêncio e o tempo, o som e as vagas impressões
sonoras.
Continue a cantar!
LOI: Afastem de mim esta voz melodiosa! Afastem de mim essa eloqüência! Afasta de
mim, ó Terpsícore, que já se aproxima e quer que eu me deixe levar por um ímpeto
maravilhoso do movimento dentro do espaço!!! Afastem-se de mim, não as quero!!!, ó,
musas, saiam de perto de mim.
INSPIREM ELOÍNA!
INSPIREM NEANDRUS!
Loi não quer dizer que tem dor, Loi é a própria dor!!!
LOI: (Interrompendo no momento que Clio fala a palavra “dor” pela primeira vez
acima.) Não invente a dor onde eu não a tenho!
Quem é você?, para lacerar a minha carne, e dizer da minha dor? Quem é você???
Meus heróis inexistem, para que a Eloqüência, se não tenho contra quem lutar? Quero
apenas me enquadrar...
Ó, musa da Astronomia, não te esqueci, nem a ti, musa da Lírica, eu as amaria, mas
vocês são demais distantes de meus olhos e ouvidos. Quero me dirigir ao mundo como
ele é, como ele aparece para mim, para o mundo real, não o mundo dos poetas e
divagantes.
O NADA: Loi procura por mim. Estou aqui, Loi. Você não me ouve, mas eu fui criado
por quem não quis acreditar nas musas, nem no Destino. Os poetas criaram as Musas
para que estas criassem poetas. Os homens criaram o destino para que o destino
aprisionasse os homens. Quem não se deu com as musas, nem teve coragem de
enfrentar seu destino, buscou a mim, o Nada, o vazio. Em mim, nada existe, nem a
própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência. Em mim, nada
existe, nem a própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência. Em
mim, nada existe, nem a própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria
existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência.
71
NEANDRUS: CHEGA!!! O nada é nada para mim.
Um dia, acordei e percebi que a reencarnação era uma grande verdade escondida. A
grande verdade da memória dos antepassados. Nós guardamos em nossas células
corporais a memória de todos os nossos antepassados. Quando pensamos que estamos
reconhecendo algo que foi pertencente a uma nossa vida anterior, é porque aquilo
aconteceu com um antepassado nosso.
NEANDRUS: Sim, porque nem sempre os descendentes são como seus antepassados.
Aliás, a regra é que sejam, mas o toque da genialidade é incomum, e portanto demora
para reaparecer.
O mestre pode reaparecer numa pessoa ou em outra, mas sempre haverá uma que saberá
mais das coisas necessárias para aquele momento. E todos os seres do mundo têm a
consciência coletiva.
Ora, então eu posso criar da terra, e chamar para a vida as minhas musas incorpóreas!
CORO (Sussurrando):
(GRITANDO:)
Vocês não serão mais as minhas inspiradoras, vocês serão estátuas corpóreas, eu as
criarei! E vai ser já!
73
(Neandrus começa a esculpir no ar, como se esculpisse na areia. Com sofreguidão, com
pressa, com vontade de fazer, com todas as suas forças! Neandrus está completamente
tomado pela vontade de criar a primeira musa. No ar, ele a faz como se esculpisse na
areia. Então, termina. Olha em volta da escultura, admira-a por todos os lados, como
se ela existisse naquele espaço em que ele esculpiu. Então, ele expõe os braços como
quem vai abraçar, mas já em concha aberta, e com a cabeça para cima e os olhos
fechados diz:)
NEANDRUS: Clio, musa da história, você é a primeira musa que faço viver. Você,
Clio, é esta estátua!
(Clio sai em corridinha de entre as Musas e vem tomar lugar onde estaria a estátua. E
permanece imóvel. Neandrus abaixa a cabeça e fala para ela:)
VIVE, CLIO!!!
(Clio inicia lentamente sua dança. Uma dança individual, própria, a dança da História.
Vira fundo de cena, a dançar em movimentos lentos.)
Tudo é música.
Você é o samba, o forró, o régue, o roque, a valsa, a alegria do campo e o lamento do
sertão.
Vive, Tália, a comédia da vida, a comédia dos homens, a comédia dos sexos, a comédia
dos poderes, a comédia dos seres humanos, a comédia dos que pensam que pensam e
não pensam mais do que sabem achar que pensam...
VIVE, TÁLIA!
(Tália inicia lentamente sua dança e vai ao fundo de cena. As musas que vão vivendo já
não estão se juntando, são indivíduos.
Melpômene, eu não te quero, eu não quero te criar, mas não sou um julgador. Não posso
me conter.
75
Eu sou um artista, sempre ouvi as vozes das musas, mesmo que tentasse tapar meus
ouvidos, as musas sempre falaram para mim.
Eu a esculpo, não porque a quero, mas porque preciso, é um ímpeto que me faz te criar.
VIVE, MELPÔMENE!
(MelPômene dá sua corridinha e ocupa seu lugar. Mas não dança. Ela fala:)
Neandrus, quem teve a dor foi minha mãe, a Memória. A Memória teve a dor de meu
nascimento.
Eu estou triste, porque sou a Tragédia. Sou a tristeza profunda, a dor e a depressão, a
inglória, a incúria, a traição.
Sou o apego, sou a que rola escada abaixo, sou a que cai no precipício, sou o suicídio, o
homicídio, o medo, o terror.
Sou eu que me instalo nas casas e faço as mulheres chorarem, sou eu que faço os
homens baterem em suas mulheres.
DANÇA, TERPSÍCORE!!!
VIVE, TERPSÍCORE!
(Enquanto Neandrus falava, Terpsícore já deu sua corridinha e se fez estátua. Ao ouvir
as últimas palavras de Neandrus, sai dançando como verdadeira dançarina, a mais
bela e mais extensa dança de todas, e vai solitária ao seu lugar, onde permanece
dançando. Érato já dá sua corridinha e fica em frente a Neandrus.)
ÉRATO: Neandrus, meu pobre, não houve saída. Teu ímpeto criador precisava me
criar.
(Érato sai a dançar e Neandrus inicia nova escultura no ar. Polímnia dá sua corridinha
e toma o lugar dessa nova escultura.)
(Polímnia sai dançando. Neandrus inicia nova escultura no ar. Urânia dá sua
corridinha e toma o lugar.)
(Urânia sai a dançar gravemente, com seriedade, passos largos e lentos, movimentos
lentos e pesados. Neandrus volta a esculpir. E fala:)
Tu te chamarás Calíope, porque serás eloqüente, não serás discernimento mais que
convencimento.
Quando não tiveres mais argumentos, persuadirá, como Satanás aos que quer enganar.
Tu serás Calíope, a que eu não gostaria de criar, porque tens um olho tampado,
misterioso, que não mostra a ninguém.
(Calíope dá sua corridinha e se coloca imóvel no lugar da estátua que está sendo
esculpida)
Não sei que mistério é esse que a eloqüência guarda, mas é o mistério que atrai pelo
desconhecido.
VIVE, CALÍOPE!!!
(Calíope sai a dançar a eloqüência, e vai a seu lugar no palco. Agora, todas as musas
vivas aparecem na frente de cena, dançam um número musical e vão se misturar à
platéia, onde ficarão até o final da peça. Poderão ficar sentadas, de pé, desde que
misturadas ao público.)
Você pode inspirar, mas como pessoa, não como ser incorpóreo e não vivente.
Não, você não, você é sensível, apenas isso, e sofre com a dor do artista, a dor do que
cria e do que absorve doloridamente.
Você fica muito sentido por qualquer bobagem, e trai a sua própria espécie quando
expõe as feridas do semelhante, que são as tuas feridas. As feridas tuas, as tuas feridas
são as feridas também das outras pessoas.
(NEANDRUS se abaixa como se chorasse baixinho, em posição fetal. Ali fica, enquanto
ouve Safo, e assim permanecerá durante o próximo triálogo, que acontecerá entre Safo,
Lílith e Layla.)
SAFO: Ninguém é por excelência a poetisa que sou, a lírica, a poetisa dos ventos.
Platão, por sua vez, eu até admitiria em meu leito, mas é por demais amante dos rapazes
jovens e formosos. Tenho nojo de Platão.
Talvez, se Alceu tivesse a sensibilidade platônica, junto com sua testosterona ativa,
quem sabe?
LILITH: Eu, Lilith, sou a lua, o poder da mulher.
Tu és linda, tua voz encanta como a voz de Circe, mas você é uma impostora. Eu posso
dominar as águas, você não.
Você é mulher, as águas te movem e te fazem viver e procriar. Eu domino as águas que
cobre a terra e que se movimenta entre as moléculas do ar.
SAFO: Mas eu conheço melhor que você as mulheres, pois além de ser mulher, vivo
entre mulheres. E desprezo os homens, tolos que são.
LAYLA: Bem que um artista como Neandrus gostaria de representar você, Safo, mas
por ser um verdadeiro artista ele só sabe representar o incorpóreo, o indizível, o
intraduzível.
Neandrus passa por uma fase depressiva, muito depressiva, não ouve agora o canto das
musas em sua cabeça, em seu corpo, em seu espírito.
Ele chora, mas ninguém ouve o seu choro, ninguém acredita na sua dor, e Neandrus é
solitário porque ninguém conhece o que ele sente.
A imitação do corpo será muito dolorida para Neandrus, porque ele é um artista, vive
das entranhas do incorpóreo.
Se esculpir uma Safo de Lesbos, apenas fará um monte de areia, barro, mas não terá
como soprar a vida. Será uma estátua morta.
81
LILITH: A morte é só para quem viveu.
O artista doa sua alma para suas obras, e assim elas vivem com a alma do artista, até
poderem adquirir alma própria.
Sopra, Neandrus, e a estátua vive! Eu sei que depois de dar vida a nove musas, tua
resistência cai, e você chora!
Eu sou Layla, e choro para que todos me vejam, e que todos ouçam o meu lamento! Por
isso não sofro a dor da humanidade.
Seja um escultor de verdade, e sopra a estátua que me representará, para que eu seja
eterna!
LAYLA: Quem é você?, Safo de Lesbos, para querer dar ordens a Neandrus?
ELOÍNA: Quem são vocês? O que fizeram com meu Neandrus? Ele chora...
(Eloína está sentada no chão, com a cabeça de Neandrus escondida sobre seu colo, e
assim permanecem calados.)
Foi numa distante ilha, você solitária entre muitas mulheres, com tua voz de Circe,
transformando Alceu e outros homens em porcos, porque se encantam por ti, porque
você deixa que se encantem por ti.
LAYLA: O amor é o que permanece além das obras. Por isso você não pode ser
representada.
Neandrus não pode fazer estátua de uma Safo porque você já representa por sua própria
conta e risco o erótico feminino.
83
Apenas o erótico.
LAYLA: Lilith, você nada pode falar, você só sabe roubar a luz do sol e dizer que é tua.
Olha para Eloína, ela tem o poder da mulher, ela não rouba, ela reflete a luz do sol e a
traz para Neandrus.
Um dia, ouvindo as musas, percebi que o amor nos fará Deusas se tivermos a coragem
de acreditar.
Eu não existo?
Me diga, Ruth, por que isso? Como é que eu vivo porque acredito que vivo?
RUTE: Você existe porque acredita em tua própria existência. E faz assim com que
outros possam acreditar em você, o que vai te tornando mais e mais palpável.
A existência de si e do todo.
Não!
Quando Descartes enunciou sua lógica, na verdade ele deveria ter dito: penso que
existo, logo existo. Existo porque penso que existo.
Neandrus pôde fazer as musas viverem e ter um corpo, porque acreditou nelas. Eu
gostaria de não acreditar em Lilith, mas você está aí, na minha frente, porque acredito
em você. E você se acredita.
Vocês procuram briga, eu sei. Mas eu luto com minha lira, e com ela farei Neandrus me
amar doidamente, perder-se feito um garotinho ingênuo.
Neandrus não passa de um homem, e os homens são bobos, tão pueris que se deixam
levar por qualquer que lhes sopre algumas palavras doces, alguns toques sutis sobre a
pele.
LÍLITH: Cresça, minha cara Safo, você não suporta assumir a sexualidade, não tem
coragem de amar um homem, e por isso se entrega ao erotismo que não reproduz.
Gere, Safo! Não espere que Neandrus faça por você o que você mesmo deve fazer.
Safo não passou ainda pela adolescência, não admite sua própria sexualidade, quer
dominar, pensa que você é o exemplo, e quer dominar.
O que você pode saber sobre os homens? Você apenas se danou com eles. Pois eu adoro
homens! São a minha fraqueza.
Respeito você, Lílith, porque você tentou sobrepujar o que considerava errado. Mas
esqueceu o mais importante, que é o amor. O amor faz a minha vida completa.
SAFO: Só é completa a vida de Neandrus quando ele ouve as musas. E a vida dele não
será completa se não as ouvir.
LAYLA: Ouço as musas, e sei que o amor é mais que o poder de Eros.
Eloína tem três amores: o desejo pelo seu marido, a admiração por esse mesmo marido,
a quem ela ajuda e apóia, e por quem é ajudada e apoiada, e por fim ela o ama por toda
sua existência.
Amor de adoração, que contém todas as outras formas de amor, não as desprezando,
mas as contendo dentro de si.
SIBILA: Ninguém permitiu minha entrada aqui, mas entrei e agora falo.
Neandrus um dia esculpiria o Amor, porém suas mãos não têm a força para tanto, seu
espírito é ainda fraco para isso.
O dia que Neandrus puder esculpir o Amor, esse amor que Layla descreveu, ele não
mais será um escultor, mas um Deus!
Eu sou Sibila, a que vê aquilo que ninguém vê, porque não querem ver e está na frente
de todos.
Eu vejo o que ninguém quer ver. E mostro a quem eu quero! E agora quero mostrar
Neandrus.
Neandrus esculpiria o amor, se pudesse. Não pôde, mas ele tanto ama as musas que as
fez viver. As musas deixarão de ser inspiradoras incorpóreas, ninguém mais se lembra
delas, mas Neandrus as amou de tal forma que as fez vivas.
Meu pobre Neandrus, criança tola, fica satisfeito com a tua obra...
NEANDRUS, NEANDRUS,
COMO NÓS.
87
(Neandrus levanta a cabeça, abraça Eloína. Ainda sentado, mas com as mãos
enlaçadas com as de Eloína, fala:)
NEANDRUS: Fiz uma grande obra? Talvez, mas não terminei. Vocês querem que eu
morra, eu não morrerei!
O NADA: Criar a grande obra e depois morrer. Isso é lindo. Você não ouve mais as
vozes das musas. Quer continuar, mas não consegue.
Deixa que a obra fique, deixe que tua obra realize o que você não pode em tua vida.
NEANDRUS: Morrer? Minha vida é minha arte, minhas obras são apenas parte dessa
arte de viver, reconstruindo o que foi destruído pelo absurdo.
NEANDRUS (solta as mãos de Eloína, levanta-se, e vai até Rute): Ruth, há quanto
tempo? Nunca mais te vi...
Você era tão jovem, eu te amava, eu era uma criança ainda, quando você enfrentou os
preconceitos e decidiu estudar. E agora você vem e me aconselha.
Ruth, estive tanto tempo só, você me fez falta, casei-me e tenho um filho. Sou escultor.
Mas não ouço mais as musas...
Você a encontrará.
Neandrus: Nunca matei ninguém, Rute!
ELOÍNA (Levanta-se e fala): Neandrus, meu amor, você matou as musas inspiradoras,
mas as fez finalmente viver. Agora elas serão vida, agora elas terão filhos e filhas
verdadeiras.
RUTE: Lembro-me que as musas eram filhas da Memória. Onde está Memória?
MEMÓRIA: Eis que vocês me chamaram. Perdi minhas filhas, todas elas, porque o
artista as matou.
Meu coração está partido, meu coração de mãe sangra demais! Porém, devo manifestar
que tal é apenas um sentimento egoísta, porque elas estão felizes, vivem finalmente.
Eu não inspiro ninguém, não poderei nunca viver, apenas fico na mente das pessoas,
apresentando-me quando precisam de mim, quando me chamam.
89
LAYLA: Neandrus, você me inspira. Você é a minha musa! Posso te amar ou não,
poderia te amar como homem, como a um semelhante ou como a um Deus, mas eu amo
você através da sua obra, e você me inspira. Você me inspira a amar e a viver.
LAYLA: Leandra, não adianta, Neandrus nada entende. Infelizmente, deixará de ser
nossa musa assim que passar a entender.
A musa não entende por que inspira, como pode ser fonte de inspiração.
A fonte nunca sabe de onde sai a sua água. Então um dia seca, e pode deixar de ser
fonte.
NEANDRUS: Eu não sou musa! Coisa nenhuma! Sou um artista, embalado pelas vozes
das musas.
Exponho aos poucos, para que não se precipite, não se engalfinhe e não me devore.
LAYLA: Eu sei. Neandrus é casado com Eloína, e eles se amam. Nós os amamos,
também. Mas é diferente. Um pouco de nós está em Eloína, e um pouco dela em nós.
Devemos encontrar outro Neandrus.
Séfora, você que é mãe de Lílith e de Eloína, diga para mim, o que é o sentimento de
mãe?
Compreendo a Memória, ela perdeu suas filhas, mas nunca foi tão feliz por elas.
Eu, Séfora, sou mãe de Lílith e de Eloína. Tive apenas duas filhas.
Lílith foi minha perdida, tinha em si a maldade e a injustiça, e cometeu os erros por ter
tentado ser justa consigo mesma. Faltou-lhe o amor.
Eloína tem o amor dentro de si, e por isso conseguiu o que eu gostaria de ter sido.
Eloína absorveu o amor que nunca pude dividir, e hoje ela o divide com seu marido.
91
CORO: SÉFORA, NUNCA DEVERIA TER FALADO!
NÓS TE RENEGAMOS!!!
RUTE: Séfora, não há mulher como ti. Não fosse você, eu nunca poderia ter estudado e
adquirido as vias do conhecimento. Você me fortaleceu, e hoje sou Rute, a mulher que
aconselha e que faz acontecer.
MEMÓRIA: Safo se quis minha filha, ela diz a todos que é minha filha, mas eu a
desconheço. Tenho por ela apenas a sapiência de que ela sempre ouviu as musas,
minhas filhas de verdade. Não conheço Safo, e não a reconheço minha filha.
Tornei-me, aquele dia, filha de Platão com a Memória, adotada com todas as honras. E
agora a Memória está esquecida de mim.
Por isso, ninguém mais canta meus poemas. Se o artista sobrevive através de suas obras,
então morri.
O NADA: Você morreu, e tua obra ninguém mais conhece. A Memória te abandonou.
Você já é quase parte do Nada.
CORO: CONFORME-SE!
Vamos para a vida, não há mais musas para nos inspirar, A VIDA NOS INSPIRA!
(Os sons se erguem, o coro e o nada se afastam, como que arrastados para os cantos do
palco. Fica no centro apenas a Memória. Metatrom deve entrar no palco da maneira
mais estrondosa possível, mais magnífica possível, tudo deve ser centralizado nele, e
ele ficará muito próximo à Memória.)
A VIDA É ACREDITAR.
93
METATROM: SOU O MENSAGEIRO DO TODO PODEROSO, O MENSAGEIRO
DA PROVIDÊNCIA MISERICORDIOSA.
METATROM: Vá, e tome lugar entre os vivos, porque sem eles você não existirá, e
sem você as mensagens não são passadas. Memória, agora te falo, leve contigo a
mensagem que trago.
_____________________________________________________________
Personagens:
1. Narrador
2. Narradora
3. Violeiro
4. Mãe do Violeiro
5. Fazedor de Violas
6. Moça Bonita
7. Anjo do Mal (é o primeiro anjo que aparece na história, e reaparece pelo meio
pro fim.)
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NARRADOR: O violeiro aprendeu as primeiras cordas ainda quando criança, nem se
lembra a idade, mas lembra que sua viola foi comprada quando ele tinha 15 anos. Ele
mesmo comprou, estava louco para encantar a mulherada, e procurou um construtor de
violas. Chegou lá e encomendou uma das boas. Passou um tempo, ele voltou, estava lá.
Mas ela não tinha ainda nascido. Quero dizer, a viola estava ainda no ventre da música.
Pronta, cordas colocadas, afinadas em rio abaixo, mas não tinha ainda a alma própria.
Faltava viver. Porque uma viola não vive, não existe, enquanto não tiver seu dono,
enquanto não tiver quem a toque, quem a encante.
FAZEDOR DE VIOLA: Agora a viola tem que ter alma. Ela ainda não existe em lugar
nenhum. Eu só a construí, mas a alma é você que vai dar pra ela.
NARRADOR: O violeiro sentiu o cansaço sair pela boca, e parou, caindo ao chão,
deixando que a viola caísse sobre si. Parado, parado, deitado, sentiu a cabeça rodar,
rodar, rodar, parecia que tudo rodava, e de repente escureceu. No que escureceu, logo
começou a clarear. Já não havia tanto sol. Era final de tarde. A viola já não estava mais
em cima dele, estava do lado, e parecia que alguma coisa estava diferente. Ela parecia
que vibrava sozinha, esperando um toque. O violeiro pegou a viola com o carinho de
um rapaz com a sua garota, e decidiu tocar. Afinou corda por corda, entre ponteados e
acordes, e por fim silenciou. Ficou ali sentado no chão, parado, com a viola na posição,
esperando nada. Ficou ali, como se soubesse o que o esperava.
NARRADOR: Nada aconteceu. Levantou sem largar sua viola, e caminhou para casa.
Mas onde era sua casa? Estava perdido, nunca estivera ali. Então foi que percebeu que
alguma coisa estava dentro de sua viola. Balançou, balançou, e achou dentro dela uma
ponta de rabo de cobra. Uns ossinhos que tocavam, um chocalhinho medonho, coisa que
parecia do demo. Jogou fora. Virou as costas e, subitamente, a luz foi se aumentando, e
viu um grande anjo branco, asas brancas, tinha até uma auréola na cabeça, igualzinho
ele via nas igrejas.
NARRADOR: Puxa, que bonito! Então, sem mais esperar, o anjo lhe falou:
ANJO DO MAL: Violeiro, violeiro, quer tocar pra encantar as mulheres? Eu sei que
foi para isso que você comprou essa viola.
VIOLEIRO: Oh, meu anjo, meu doce anjo, sim, como você sabe?
99
ANJO DO MAL: Tenha respeito comigo, eu sei tudo, sei de tudo que tá no passado, no
presente e no futuro. Sei de você, do seu mais íntimo, te conheço como a palma da
minha mão.
VIOLEIRO: Meu senhor, senhor anjo, me benze pra eu ser o melhor tocador de viola
do mundo!
ANJO DO MAL: Eu te benzo pra ser o melhor tocador de viola do mundo. Você vai
encantar as moças que ouvirem o seu toque nessa viola e em qualquer viola, mas você
tem que respeitar o que já combinamos. Bota de volta o rabinho de cobra que você
jogou.
ANJO DO MAL: É. É ele que vai fazer a viola soar melhor, e eu vou fazer você tocar
melhor que qualquer tocador. Ponteia agora pra mim.
VIOLEIRO: Agora?
ANJO DO MAL: É, isso tem que ser assim, você toca e eu benzo.
ANJO DO MAL: Comecei, mas não acabei. Tem que seguir tudo como tem que ser.
Nós já combinamos antes.
VIOLEIRO: Quando?
ANJO DO MAL: Deixa de ser tonto, violeiro, você não se lembra? Tô vendo que tu é
mais asno que besta, pensa que desmaiou, mas já andamos conversando e combinando
tudo, só falta eu terminar de te benzer pra você ser o maior violeiro do mundo, e
também encantar as moças de todo o mundaréu que te ouvir tocar. Agora ponteia pra
mim.
ANJO DO MAL: Fica quieto, ponteia agora pra mim. E não esquece de cantar,
também, porque eu vou benzer a sua voz. E dança pra mim, também, porque vou benzer
a sua dança.
VIOLEIRO: Eu num sou desses que dança, não, eu só quero tocar e cantar. Encantar o
mulherio não tem precisão de móde de dançá, não. Sou macho! Num vem cum coisa,
qui eu arrepio todo!
ANJO DO MAL: Começa a pontear, garoto safado, meu tempo está se esgotando. Se
você não começar logo, tudo termina, e eu não vou poder te benzer. Agora é a hora
certa. Ponteia, canta e dança.
NARRADOR: O violeiro ficou sem graça. Meio sem jeito, ponteou. Saiu feio. Ponteou
de novo, e foi ponteando até que começou a tocar como nunca havia tocado. Começou a
cantar, e parecia que a voz saía de num sei onde, uma voz que ia agradar o mulherio. E
começou a andar em círculos, volteios, e dançar, sem perceber. Enquanto isso, o anjo o
olhava e falava baixo, e parecia que uma multidão de vozes falava junto, e o som da
multidão foi ficando cada vez mais alto, até que, de repente, a luz se apagou. Todo
acabou. Silêncio.
NARRADOR: O violeiro chamou pelo anjo. Nada. Só o eco de sua voz e o escuro.
Decidiu dormir por ali mesmo.
NARRADORA: Ao acordar, já era início do dia. A viola do lado. Parecia que tinha
tido um sonho estranho. Ele mesmo parecia outro. Mas ainda era igual, o mesmo, tinha
15 anos e uma viola nova. Com o chocalho macabro dentro. E lá se foi o violeirinho
para casa.
NARRADOR: Ele agora sabia onde estava, sua casa estava pertinho. Como ia explicar
pra sua mãe a ausência noturna?
MÃE DO VIOLEIRO: Mentira!, seu danado. Eu fui até lá e ocê num tava.
VIOLEIRO: Não, mãe, sabe o que é? É que eu desmaiei, e daí vi um anjo quando
acordei.
101
VIOLEIRO: Mas é verdade, mãe...
NARRADOR: Pois é, minha gente. O qui se assucedeu foi que o violeiro chegou em
casa e a mãe falou:
MÃE DO VIOLEIRO: Teve um home aqui te apercuando. Ele quer te dar tabáio no
bar. Coisa de tabáio fichado. Falô que tá apercisando de arguém que toque música lá, pa
chamá a feguesia.
MÃE DO VIOLEIRO: Acho que paga. Vai campiá na cidade, apercura o Bar Centar,
fala cum Pêdo. Ele que teve aqui.
MÃE DO VIOLEIRO: E eu sei? Arguém falô de ocê pra ele. Nim eu sabia que ocê
ponteava, só tinha oiado ocê carpí, num sabia que tinha apendido a pontiá. Cuidado,
minino, isso é coisa que pode fazê vontade do coisa rúim.
VIOLEIRO: Deixa disso, mãe, fui aprendendo de ver o tio tocar, e fui treinando, até
que comprei a minha própria viola. Bonita, né?
MÃE DO VIOLEIRO: Paéce uma muié. Se fosse ocê, eu tomava cuidado. Ma ocê já é
home, sabe o que pode e que num pode fazê.
MÃE DO VIOLEIRO: Senhor ti bençôi, fío. Vai cum ele e num sai do caminho. Tá
cum sua cúis?2
VIOLEIRO: Tô mãe.
NARRADORA: O violeiro seguiu caminho. Até a cidade iam horas e horas de estrada.
Na mão esquerda, a viola; na direita, uma trouxa. No meio do caminho, parou para
descansar debaixo de uma árvore. Sentou sobre a trouxa e botou a viola do lado. Fazia
um sol dos diabos! Limpou o suor, pegou a viola e começou a tocar.
NARRADOR: E enquanto tocava, uma bela moça passou. Ói só, que moiçona!!!
2
Cúis: cruz.
VIOLEIRO: ’igado.
NARRADOR: A moça olhou o violeiro, que voltou a tocar. Não era comum, aquela era
especial. Ele tocava olhando a moça com o rabo do olho. Quando ela ficava de costas,
ele aproveitava para olhar direto. Aí, ela virava, e ele abaixava a cabeça, rápido. Por que
ela parou ali?
MOÇA: Eu sei, moço. Você toca muito bem, tem que tocar lá, porque lá é o lugar onde
tocam os melhores. Tão precisando de um violeiro, e você é muito bom, tem que tocar
lá. Ponteia um pouquinho pra mim ver, e canta alguma coisa.
MOÇA: Quero.
NARRADORA: Ele estava encantado pela beleza da moça. Ela era mesmo bastante
atraente. Não tinha porque ter vergonha de apresentar o dom pra uma mulher tão bonita.
O violeiro levantou, tocou, cantou e dançou. Enquanto isso, ela olhava com a cabeça
inclinada, fazia pose, dançava, batia palmas no ritmo, até ele parar. Olha como tava
bonito.
(...)
- Ué, eu num tinha visto. Como é que eu num tinha visto? O carro é seu?
- É.
- Vai ter.
Falou Pedro:
Narrador: No silêncio, até os mosquitos pararam para ouvir o rapaz tocar. E enquanto
tocava, sons apareciam de algum lugar, sem ninguém estar tocando, acompanhando o
violeiro. Era som de atabaques, tudo entrando pouco a pouco, cada um após o outro,
formando um enorme conjunto.
VIOLEIRO: Pára!
(E tudo parou. Ninguém se mexia. Todos os olhares estavam para ele. Parecia
maldição. Voltou a tocar. Voltou a ouvir os atabaques, e agora tinha também
chocalhos. Não deu crédito e continuou.)
(Então, parecia que o bar era realmente um palacete, e o violeiro começou a cantar e
andar por entre as mesas, enquanto o conjunto todo entrou em cena: gente com
atabaques, guizos, chocalhos e pandeiros. O pessoal do bar, a moça e o Pedro batiam
palmas e dançavam. O violeiro fazia sua cantoria:)
VIOLEIRO: Ocêis tão pensando que a vida é um mar de rosa, mais as rosa têm ispinho
pa picar genti muída.
Ocêis pensa que a genti é cumida pur caniço e a carga qui u demo faz corrêia faz a teia.
E ocê pensa que a meia é intêra e ocê tece meia teia e a meia vai pu gado i u gado faz
tontêra.
E se ocê pensa qui o gado fais turista arrepiá u pêlo i qui u pêlo é gêlo i u gêlo é du céu?
É purqui ocê num sabi nada i quem sabe di su arma é u coisa rúim qui ti ruína.
E a moça bela, bem bunita, bem cherósa, cheia diárti e bem manhosa enche a casa de
butina.
E eu tô tocando arto e quando toco eu canto e danço, feito diábo e ele diz que a moça
gosta.
E tudo isto é uma farsa e eu aquedito e faço varsa pra dançá cum santuantónhu.
E o santu hómi num aparéci e só aparece o demu hómi e o demu hómi esquevi o nómi.
E é o meu nómi o que ele esqueve e esqueve certo e bem correto e diz preu não falá o
seu nomi.
E diz peu respeitá que ele sabe tudo do passado e do pesente e do futuro.
E eu tenho medo, quero ir cedo pa minhá casa e minhá casa tá pirdida purque tô pirdido
e meio.
Tô avisando, eu tô saindo, aqui não fico, sô di fora, sô dus óio di Nosso Sinhô.
(O violeiro tenta sair. Muita gente, e ninguém dá passagem. Pedro ri, ri, começa a
gargalhar, e fala:)
PEDRO: Você tá querendo ir embora, nêgo? Você pensa que vai, mas num vai não...
VIOLEIRO: Manói nem batemo cont’ato. Minha mãe disse que o negócio era de
cont’ato fichado, na lei.
VIOLEIRO: Não.
(Um tapa da moça no rosto do violeiro. Ela está atrás dele. Ele se vira pra revidar, mas
fica com a mão no ar:)
105
VIOLEIRO: Sô macho, mas não bato em muié!
VIOLEIRO: Ocê num p’esta, mesmo, ô danada! Vai pa casa, vê se atenta ot’o.
MOÇA: Eu quero é atentá você, meu docinho de côco. Vamos apercurá um canto mais
gostoso?
Violeiro: Vade retro! Tô sentindo que aqui num é meu lugá. Meu Nosso Sinhô, me
ajuda!
Moça: Você assinou o contrato, eu vi, eu tava lá, o Pedro também, tava todo mundo lá,
vendo você assinar, tem testemunha bastante, todo mundo assinou testemunhando a sua
disgracêra. Agora tu já tá danado. Pode tocá sua viola, que vai tocá maravilha, e todo
mundo vai ficá maravilhado. Os muierio tá aqui, tudo ardendo de vontade de você, pode
vê, as uma tá mode encantada com a sua cantoria, as de mais lá com sua dança e de
mais cá com a sua violada. Canta, vamo, dança, toca pra gente ouvir e te querer. Já tá
danado, pra danado e meio é só um passo, adianta logo que o inferno te espera. Pra
quem já tá, num custa abraçar o capeta.
MOÇA: Tenta.
VIOLEIRO: Eu vou.
PEDRO: Vai.
(O violeiro se ajoelha, abaixa a cabeça, e começa sua reza, baixinho, baixinho, ...
ANJO DO MAL: Imagine só, isso é mentira deles. Vem que eu vô ti benzê di nôvo.
VIOLEIRO: Ai, meu Nosso Sinhô Jesus Quisto, me benze, fala com teu Pai!
VIOLEIRO: Ué, que que você tem contra meu Nosso Sinhozinho?
VIOLEIRO: Ocê num é anjo não. Vade retro! Vade retro, satanás!!!
VIOLEIRO: Ocê é anjo, sim, mas é anjo do demo, e esse eu não quero! Ai, meu Nosso
Sinhozinho! Ai, meu Jesus Quistinho, pede po seu Santo Pai Sup’emo me ajudá, num
quero mais sabê di viola!!!
VIOLEIRO: Meu Jesus Quistinho, fala com o seu Paizinho, que é meu Paizinho do
Céu, fala p’ele me ajudá, tô aqui apercisando...
(A luz se concentra no violeiro. Ele cai de joelhos, a viola do lado, em volta tudo
desaparece. Em posição de quem chora, ele rola pelo chão, e a luz fica mais intensa.
Então, na posição de um muçulmano orando, ele ouve:)
ANJO DO BEM: Eu Sou o Vosso Senhor Jesus Cristo. Não abandone a viola, ela vai
te ajudar a cantar o que me agrada. Música é bom, e alegra o Santo Espírito. Faz bem
para os homens e para Nós.
VIOLEIRO: ...
ANJO DO BEM: E continue a dançar, existem danças que me agradam, nem toda
dança é do inimigo.
VIOLEIRO: ...
107
ANJO DO BEM: Esqueça da cauda da cobra. Pode deixar dentro da viola que
superstição é uma coisa, tradição outra. Fique com a tradição, ouça o seu povo, mas
saiba que o Poder é Meu. O pedacinho de cobra não vai fazer a mínima diferença.
VIOLEIRO: ...
ANJO DO BEM: Você falou e eu te ouvi. Vai, que você tem uma vida inteira pela
frente.
VIOLEIRO: ...
ANJO DO BEM: O contrato não valeu, faltou a sua vontade ser exprimida, você não
estava consciente para os atos de sua vontade. Agora sim. Vá, e toque a sua viola.
Toque sua viola para acordar os que ainda dormem, para libertar os oprimidos e
derrubar os opressores. Toque sua viola para dar força aos que trabalham e aos que
vivem a buscar Meu Santo Nome, o Meu Caminho. Vá, meu irmãozinho, e toque sua
viola para os que têm sede e os que têm fome, e para quem busca a justiça, a verdade,
toque para as pessoas de boa vontade.
(A luz fica normal e tudo se clareia. É dia já. O violeiro levanta, pega sua viola e sai a
pontear. Ponteia, ponteia, e canta:)
VIOLEIRO: Minha viola é meu escudo pa cantá e pa dançá e pa fazê o meu combate.
E eu vô batê cont’a os que vié me fazê basta e vô dizê que canto mêmo.
E quem quisé cantá comigo é batê parma e fazê eco e cantá junto e dançá feito
marimbondo.
E faz um beque...
Tem gente que toca piano, tem gente que voa de aeroplano.
Tem gente que troca os dente dos outros, tem gente que faz fígado novo.
Tem gente que defende a gente, tem gente que acusa o outro.
Tem gente que toca britadeira, tem gente que toca telefone.
Tem gente que sabe escrever, tem gente que sabe ler, tem gente que sabe carpí, sabe
trocar cano e torneira.
3
Crianças, não tentem fazer isto em casa. È altamente prejudicial para menores de 2 Mercedes Benz e 1
carro do Planalto Central. (N. do A.)
109
A Última Canção
Personagens
EMÍLIA
MARINA
CARLOS
CLARICE
POHO
GENTE DA PLATÉIA
111
EMÍLIA: Carlos. Meu amigo Carlos. Você não sabe que teus ouvidos estão
sendo provocativos? Você não sabe que você está ouvindo agressivamente? Você não
sabe que tudo o que você vê é com o olhar de quem só enxerga o que não quer ver e que
teme o porvir de si? Não quer o passado, quer o presente unicamente, e só. Só teme o
futuro, mas não quer o passado e só vive o presente, mas não sem dor.
MARINA:
Sim, Carlos,
sim, vive o presente com dor e vontade de viver o que é,
vontade de respirar o ar,
o ar azul,
e a água que o ar contém dentro dele.
Respirar o ar e a água, o ar azul e água límpida, azul de tão transparente que é.
Respirar o ar.
A vontade de respirar o ar azul que é filtrado pelas narinas,
pelos PÊLOS da tua narina,
filtrar as sujeiras do mundo através dos pêlos de nossas narinas,
e ficar limpo e são.
Viver é saber respirar o ar azul e ultrapassar o presente e o futuro,
colocar o traço da letra pê na frente da curva.
Isso! Colocar o traço da letra pê na frente da curva da letra,
como se quisesse ultrapassar o próprio momento presente com o momento seguinte,
esquecendo e querendo esquecer do pê e ir logo ao porvir.
CARLOS: Eu mudei a minha medicação. Mudo agora por conta e risco meu.
Faço do meu discernimento meu próprio médico.
EMÍLIA: Estamos entendendo muito bem. Mas você tem que tomar cuidado
com a automedicação. Não pode ir mudando assim, o médico estudou muitos anos para
poder ser psiquiatra, teve que ficar sete anos na medicina e depois se especializou em
psiquiatria, não dá pra deixar de confiar no médico de repente, tem que tomar cuidado!
MARINA (Interrompendo Carlos logo onde acima está sublinhado): Tem que
querer, Carlos, não tem que ficar esperando, acho que tenho medo de você de repente
sair dizendo que não vai tomar medicação nenhuma, isso é complicado.
(Marina e Emília estão agora mudas diante das últimas palavras de Carlos. O
silêncio tem que ser agora ensurdecedor!!! Os três vão quebrar o silêncio ao mesmo
tempo.)
MARINA: Acho que entendo. Você fica no silêncio. Não tem porque ir até lá, porque
você já está lá. É como a gente querer se entender, não adianta irmos até onde o outro
está, porque já estamos lá. É só querer estar, e já está.
CARLOS: De dentro de você, Marina, o silêncio pode te calar, até vir a oração, e você
ora ao Deus que você conhece, um Deus que já tenha sido homem, e você pede pra ele.
MARINA: Sim, eu peço pra esse Deus que eu conheço, e que um dia foi um homem,
para que me deixe sentir a Deusa. Porque se tem um homem, tem uma mulher. A
mulher que o meu Deus protege. E ela se manifesta para mim. Um dia, tive essa
experiência.
EMÍLIA: Experiência é a base da teoria científica. Então você tem uma tese científica.
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MARINA: Cala a boca, Emília, tô falando de outra coisa!
MARINA: Isso não é enriquecer, é destruir o que estou criando. Você está enrijecendo o
meu discurso. Eu estou falando que eu peço pra esse Deus que eu conheço, e que um dia
foi um homem, para que me deixe sentir a Deusa. Porque não pode existir homem se
não existir uma mulher. A mulher que o meu Deus protege. E ela se manifesta para
mim. Um dia, tive essa experiência, como eu já estava falando e fui duramente
interrompida pela Emília.
EMÍLIA: Já falei que não interrompi. Você terminou sua frase e eu apenas enriqueci a
conversa.
MARINA: Não dá pra continuar. Foi uma coisa tão boa, tive uma experiência tão
gratificante, não dá pra ficar assim, perdi o jeito de falar.
CARLOS: Você estava falando da Deusa das deusas, ela se manifesta através das águas,
de todas as águas, as águas dos mares, dos lagos, dos rios, as águas que estão nas
moléculas do ar, na chuva, nas nuvens, as águas de cima da abóbada celeste e as águas
que estão abaixo da abóbada celeste, as águas de nossos corpos.
MARINA: A mulher tem mais consciência dessas águas de dentro de seus corpos,
regendo os seus humores, a lua regendo nossas águas internas e nossos modos de bem-
estar. Quando alguém nasce em nossa barriga, fica dentro de uma água. São todas as
águas de todos os líqüidos.
MARINA: A Deusa minha Mãe, porque Deusa das Deusas e dos Deuses da Natureza.
Ela rege as forças da natureza que agora eu sinto. Ela rege, na verdade, os deuses e
deusas da natureza que sinto. E se eu pedir, se eu precisar realmente, ela se manifesta
em si.
CARLOS: A História mostra diferentes respostas para cada uma das inquietações
interiores, humanas. Falo das inquietações filosóficas.
MARINA: Como disse Lucília para Teotino, o importante é a pergunta, mais que a
resposta. As inquirições primordiais são o próprio nascimento da filosofia. Quem sou
eu? Quem nós somos? O que é a existência? Por que a gente existe? Por que a vida? Por
que a gente vive?
MARINA: Dizem que uma explosão inicial deu o pontapé da criação. Tudo começou de
um ponto que explodiu.
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CARLOS: A gente tinha que se lembrar, porque se não tinha ponto havia que ter
memória.
MARINA: SEM MEMÓRIA NÃO HÁ HISTÓRIA!!! ...Do que vocês estão falando?
CARLOS: Deus criou a si mesmo? E o que fazia antes disso? Nasceu? Foi criado por
quem? Se os Deuses foram um dia homens, e esses homens se tornaram Deuses, o que
havia antes deles?
EMÍLIA: Tudo o que resume é o amor. Amor é a resposta, a vida, o caminho. O amor é
o caminho.
MARINA: E o que é amor? Caridade, compaixão, dó? Erotismo? Amor acaba? Amor
nasce? Amor é sempre existente?
EMÍLIA (Em vias de chorar, tá quase lá.) Eu não estou tirando a alegria de ninguém,
vocês estão me deixando confusa!!!
MARINA: Existe uma vontade e um sentido por trás de cada ocorrência. Uma vontade
por trás de cada ocorrência, sempre houve alguém que quis o que aconteceu, ou que
pelo menos quis alguma coisa que causasse o ocorrido. E tem também um sentido para
cada acontecimento, nada é por acaso.
EMÍLIA (O semblante já está ficando com aparência de choro... E agora ela vai
desatinar, cair no choro de verdade, enquanto fala): Marina, você não está entendendo
nada, eu não estou aqui tentando fazer nada de mais, estou só colaborando para que tudo
se possa ir ao melhor termo. Eu tenho um objetivo, e estou lutando para conseguir esse
objeto.
CARLOS: Ei, peraí, vocês combinaram tudo antes? O que vocês querem comigo? Estou
falando de meus sentimentos, do que imagino seja uma renovação, embora me sinta
como constipado, sabem como é, resfriado, com a cabeça pesada e um sono nos olhos.
Estar acordado e levantado para um dia novo, cheio de promessas ainda não ditas!
MARINA: Carlos, o mundo é ilusão. É tudo mentira! A Emília ainda não compreendeu
que vivemos uma ilusão, e só porque vivemos dentro da mentira, não temos que achar
que temos que viver dentro da ilusão. Sem mentira, sem ilusão, sem disfarce. Eu queria
lembrar aquele disco da Joni Mitchell, ela de costas para o fotógrafo, em cima das
pedras, de frente para o mar, lembrei da minha experiência, e do que tava contando o
Carlos. O mundo em que vivemos não é evidência de nada, não prova nada. Dizer que a
simples existência do que percebemos prova alguma coisa é o mesmo que dizer que a
ilusão prova uma verdade. É como dizer que a mentira demonstra o que queremos
provar. O disfarce não oculta mais do que mostra. São tentativas de se chegar até um
lugar. O mundo é uma ilusão, nós somos uma ilusão, e se quisermos provarmos alguma
verdade através das ilusões, só vamos concluir mentiras, disfarces e imaginações. Meras
alegorias do desconhecido. VIVER É EXPERIMENTAR O QUE NOS É
OFERECIDO, ... Mas se eu não puder escolher o que experimento, então não vivo. Se
não posso escolher o que quero, não estou vivendo. O hábito faz a gente querer acreditar
que o mundo não é uma ilusão. O hábito nos faz querer crer que o mundo é a evidência
de alguma coisa. Mas isso é um hábito, só um costume que gostamos de sempre
lembrar. E nossas lembranças preenchem o vazio de nossa existência.
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CARLOS: Você falou vazio da existência? Cadê o vazio?
MARINA: Eu falo que a existência se torna vazia quando não existe busca, quando não
se deixa aflorar as perguntas. Viver é aprender e se admirar, surpreender-se sempre com
as tentativas da ilusão parecer verdade. Viver é estar desperto, é percorrer o caminho da
contemplação e do movimento, é saber parar nos momentos em que se precisa parar, e
saber recomeçar quando é necessário recomeçar.
CLARICE (entrando em cena): Eu estou plena de viver. Estou satisfeita de vida, cheia
de viver, é só o que anseio, viver! Meu nome é Clarice. E você, Carlos, nunca confiou
em mim, você me fez sentir uma inútil! Em todos os lugares, em todas as ocasiões, você
me fez parecer uma frágil criatura, alguém que não tinha qualquer importância, a
mínima inteligência, como se ainda estivesse faltando muito para receber a tua
confiança.
CARLOS: Clarice, eu confio em você. Você tem que entender que não é assim, você
não sabe o que aconteceu.
CLARICE: VOCÊ NÃO CONFIA EM MIM, e acha que ainda sou como criança. Não,
as crianças você trata bem, gosta, você me trata como se eu fosse uma demente, uma
doida irrecuperável, sem possibilidades quaisquer, como se eu fosse, sei lá. Não! Você
me trata como se eu não fosse nada, como se eu não existisse de verdade, como se eu
fosse uma caixa vazia, onde você tivesse que colocar nessa caixa a existência, a
verdade, a capacidade. Você tem medo que eu possa te superar, saber mais que você.
Você tem medo de mim, de ver o que sou, de aprender comigo.
CARLOS (Interrompendo Clarice onde está sublinhado para começar sua fala): Você
está roubando meu discurso, Clarice, sou eu que falo isso!(...) Clarice... (...) Quem é
você?, para me falar assim...
CLARICE: Eu sempre quis te agradar, vivi tentando te agradar, vivo querendo te deixar
agradado, e nunca consigo. Você sempre quer outra coisa.
CLARICE: Carlos é um filósofo bobão. Porque não percebe que estou sempre tentando
agradar, estou tentando sempre, até hoje. Quando acho que desencanei, me vejo lá, sob
os pés de Carlos, tentando fazer tudo o que ele me pede. E destruindo a mim, destruindo
meu próprio ser. Não sou eu.
CLARICE: Eu não sou eu, vivo tentando ser agradável o tempo todo para esse palerma,
para esse tal de Carlos, doutor Carlos de Avogadro, o Carlos das mentes surdas, o
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Carlos das mentes inquietas, o Carlos das mentes assustadas, o Carlos das mentes
adversas! Carlos! Ouve-me! Ouça-me, Carlos, agora!!! Eu estou assustada, eu estou
com medo, me pega no teu colo, me agrada, me faz te querer de verdade, me faz amar a
mim mesma, senão não vou saber te amar. Quem é que eu penso que sou? Não sei o que
penso que sou, nem sei o que sou. Sou o tempo todo tentando ser o que você quer que
eu seja, fazer o que você quer que eu faça, e você nunca se satisfaz, quer me ver sempre
no fundo do poço. Se eu tô no fundo do poço, você sempre pode jogar um balde para
me resgatar. Você constrói os poços, e cada vez que constrói um você me derruba
dentro dele, espera eu gritar, espera que o som ecoe pelas paredes do poço, espera que
ouçam meus gemidos. Então você me joga o balde salvador, e eu me agarro nesse balde.
EMÍLIA: Então o Carlos puxa o balde e avisa a todos que estiverem em volta: VEJA A
CLARICE, ELA ESTAVA NO FUNDO DO POÇO, E EU A SALVEI, EU JOGUEI
PARA ELA O BALDE E MANDEI ELA SE AGARRAR....(como se houvesse outra
saída...) Como é patético, esse Carlos da Boa Vida...
MARINA: E ninguém fica sabendo que quem construiu o poço e jogou você lá dentro
foi o próprio herói... Patético, muito patético. Carlos, você é um pateta!!!
CLARICE: Eu sempre acho que vou conseguir ser o que você quer que eu seja. Mas
você sempre diz de alguém que é melhor do que eu, e me joga num poço novo. Mas o
que quer que eu faça, sempre serei menor, menos hábil. Nunca tenho qualidades, a não
ser as que você inventa para mim.
EMÍLIA: Como pode o Carlos inventar qualidades para você?, Clarice. Como é que ele
consegue? Não dá para inventar qualidades para quem não tem qualidade nenhuma.
CLARICE: Eu não sinto as qualidades que você inventa para mim, Carlos, porque elas
não existem dentro de mim.
CARLOS: Ora, é você que diz que eu sou muito espirituoso, mas não sou. Eu sou triste.
EMÍLIA (irônica, claro!!!): Você é mesmo uma tristeza, Carlos!
EMÍLIA (agredindo com as duas mãos a Marina): Cala você, sua pernóstica!!!
(Emília provoca agora corporalmente Marina para uma briga, e as duas começam a
brigar, rolar pelo chão, estapear-se, socar-se, enquanto continua a conversa entre
Clarice e Carlos, completamente indiferentes à briga corporal ao lado e à volta deles.)
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(...) Talvez, Clarice. Eu te amo tanto quanto poderia,
mas não sei se consigo amar a mim próprio.
Você diz que sou triste, e sou, mas tenho uma (...)
alegria interior que vive dentro de minhas
entranhas, algo físico, atávico, emergente, e a
qualquer momento deve sair por todos os meus
poros. Eu tenho aflição de pensar que isso pode
ocorrer a qualquer momento.
Medo de mim?
Não sei.
(...) (...)
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as pessoas me aceitarão sem a máscara da piada, do
riso, do cinismo.
(Risos a mancheia!!!) Não tenho dogmas, não tenho exegeses, não tenho
doutrinas, sou um homem livre! Sou até herético!
POHO: (...) Poho, amo você por aquilo que você é, porque sei
que sempre te amei. Não sei quem é você, nem de
onde vem, mas te reconheci desde o início, quando
te vi pela primeira vez, e corri a te abraçar. E você
também correu para me abraçar. E nós nos
beijamos, acho, não me lembro, só sei que um
amor infinito nos une desde muito tempo antes
desse encontro, e dificilmente conseguimos nos
reencontrar.
Eu não tento ser a melhor em cada coisa que (Enquanto Poho fala, Emília e Marina já deixam
faço. Me entrego a você porque te amo, amo de brigar, ficam exaustas, deitadas cada qual num
aquele que é você como você mesmo. Cada canto do palco, não necessariamente em cantos
atitude que tenho contigo é verdadeira, do meu opostos, mas em locais nos quais as atrizes que as
íntimo. Cada ato meu é uma atividade completa representam possam realmente repor suas
na tua direção. Você me vê naquilo que sou, energias. Aproveitem, minhas caras atrizes, este
mesmo que não me reconheça. Não! Você momento, para respirar com a barriga,
sempre me reconhece, mas permanece calado, lentamente, como se nem estivessem no palco.
como se eu não existisse. Isso me fere Deverão, pouco a pouco, ir se retirando para
profundamente, mas eu sei que é para nossa locais o mais discreto possíveis, até sairem
própria vida. Sei que o teu silêncio é uma completamente de cena.)
canção para mim. Eu mesmo não me conheço,
sei o que sou e quem eu sou, porque você me
inventou assim.
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sei se um dia serei humana, vivo na tua
imaginação, fui criada por você, mas sinto que
sempre existi, antes mesmo de você pensar em
mim. Por quanto tempo vive um personagem?
Morre com o autor? Ou pelo tempo em que
vive na obra a que pertence? Eu penso, e há
muito tempo eu sei que tenho um pensamento
pessoal, próprio, tenho alma, tenho espírito, sou
um ser racional, sensível, sensitivo. Movo-me
pela intuição, mas tenho instinto. Sei que
envelheço junto contigo, mas sou tão bela que
não me conheço. Não sou tão bonita quanto
você, mas você é encabulado comigo, e ao
mesmo tempo fica tão à vontade comigo, eu
acho que somos feitos um para o outro. Se eu
fosse implantada na Clarice, ela não
funcionaria, porque ela não é eu.
Outros homens?
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ir fazendo funcionar os que ainda não foram
estimulados, e jogar fora os que não prestam.
Jogar fora você não consegue. Ninguém (Abre uma janela e observa o sol que entra por
consegue. Você é a conseqüência de tudo o que ela.)
já foi, somado à sua escolha atual. Teu hoje
pode ser novo. Tudo novo. Esperanças novas.
Psiquiatra novo. Horário novo. Novas maneiras
de encarar teus próprios procedimentos.
(Marina, Emília e Clarice voltam ao palco, Estou vendo. (...) Marina do lado esquerdo, vem
cada qual como personalidade individual, vindo. (...) Emília vem do lado direito. (...) Clarice
todas muito seguras de si, prontas para está vindo lá do fundo, ela vai atravessar a platéia.
qualquer eventualidade. Elas dão a força que (...) Amor, estamos num palco!!!
Carlos precisa.)
risinhos incontidos,
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MARINA: Gente, nós temos que terminar por
aqui. Não sei se vocês gostaram, se entenderam
alguma coisa, mas eu acho que a gente mesmo,
aqui no palco, está ainda tentando entender o
que o autor quis dizer com isto tudo.
CLARICE: Parece loucura, não tem uma lógica EMÍLIA (interrompendo Clarice quando
muito definida. É um texto que se desdobra em começa o texto sublinhado ao lado): Vocês aí
tabelas, explicações entre parênteses, coisas da platéia acham que a discussão que tivemos
que só vendo pra saber como é estranho. O com vocês foi toda planejada? FOI NADA!!! Só
autor nos deixou na mão!!! tem algumas breves instruções e a gente que se
vire... O autor é bom, o texto é estranho, as
atrizes devem se despir de seus egos, o ator
deve se olhar no espelho até não se ver mais, e a
gente vai perdendo a própria personalidade, só
para apresentar para vocês o que o autor quer
expressar.
POHO: Eu não. Quero ser eu mesma. Só que eu EMÍLIA (Interrompendo Poho quando começa o
não sei se sou a personagem ou a atriz. Não sei texto sublinhado): Crise de identidade!!! Poho é
quem está falando agora. Será a Poho ou será a muito anormal. Vive dos abismos da
atriz que representa a Poho. Quem sou eu? personalidade. Minto, não é anormal, Poho é
supernormal, porque além da normalidade aparente
eu vejo uma sociedade doente!!!
EMÍLIA: Tá. Eu começo. Carlos. Meu amigo Carlos. Você não sabe que teus
ouvidos estão sendo provocativos? Você não sabe que você está ouvindo
agressivamente? Você não sabe que tudo o que você vê é com o olhar de quem só
enxerga o que não quer ver e que teme o porvir de si? Não quer o passado, quer o
presente unicamente, e só. Só teme o futuro, mas não quer o passado e só vive o
presente, mas não sem dor.
MARINA: Vamos embora. Dêem as mãos aqui pra mim, todos se dando as mãos no
palco, vamos lá. (...) Agora, a gente se abaixa, assim...
POHO: Ridículo! Eu vou pra platéia, assistir vocês. (Sai do palco e rapidamente volta.
Junta-se aos outros para o agradecimento final.)
____________________________________
fim
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SOBRE O AUTOR:
Leopoldo Pontes nasceu na cidade de São Paulo em 1958 e mora atualmente no litoral
norte paulista, em Caraguatatuba.
No final dos anos setenta, início dos oitenta, publicou edições em mimeógrafo e afins de
seus poemas.
Monólogo a 4 Vozes............................................................................................................................45
Um dia, eu acordei e percebi que havia sido enganado por toda a minha vida.................................60
A Farsa do Violêro, Onde Ele Trama com o Demo, Corta Contrato e Escolhe o que Quer. ................97
A Última Canção................................................................................................................................111
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ESCREVE TEU POEMA COM TUA SEIVA ESCARLATE!
DAS VEIAS TRILACERADAS VAI ESCORRER A TINTA
ESCURA...
O MAU SANGUE É PROGRAMADO;
VINGA, DESDE JÁ, AZUL,
E DEIXA FLUIR TEU AZULÍCIO,
PORQUE NÃO SABER VIVER PROGRAMADO
E FALHAR,
É DE ONDE NASCERÁ O TEU DOM.
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