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Sumário

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FemininoMasculino: as Trelas e as Mazelas
© 2001

Personagens:

1. O Feminino: a ser representado por uma atriz;

2. O Masculino: a ser representado por um ator;

3. O Livro: a ser representado por uma atriz. Na verdade, o livro é sabedoria, é


também o inconsciente, é o que conta a verdade mais profunda. O pior será
representá-lo como um enorme livro, que a atriz vestirá. Poderá ser
representado por ela segurando um enorme livro, ou pegando livros de uma
biblioteca e os abrindo. Apesar dela fazer o papel de alguém que lê, terá essa
atriz de entender que sua representação será a do livro falando através dela,
vivendo através dela. É por isso que o papel é o de um livro, e não o de uma
pessoa. É por isso, inclusive, que o papel determina que seja uma atriz, e não
uma personagem.

4. Gabriel: um rapaz.

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FEMININO: Freud tinha uma explicação para tudo, numa época em que o
cartesianismo ainda estava em alta, e mesmo a dialética que se falava era a marxista-
leninista, algo ainda muito racional.

Bom, estamos muito distantes da realidade. Vamos baixar a bola! Ah, se Freud
visse eu falar isso, diria que estou arrolando termos de minha subconsciência, mas é isso
aí: tudo tinha que ter uma explicação racional, e nada do que se não podia absorver
pelos próprios sentidos, nada do que era invisível ou inaudível ou não cheirável, ... nada
existia. E Freud trouxe a idéia de que nem sempre sabemos o que estamos realmente
falando, expressando. A psicanálise trouxe a idéia de que não somos o que pensamos
que somos, não falamos o que pensamos que falamos, não expressamos o que pensamos
que expressamos. Enfim, qual é a nossa?

Freud achou que tinha a explicação de que a mulher tinha inveja do homem.
Sim, a mulher tem inveja do homem por este ter algo físico que ela não tem...

Muito bem! Belíssima explanação!!! Palmas para Freud!!! Palmas....(...)

Agora, cá entre nós, vamos ficar bem pertinhos pra uma confidência: é segredo,
ninguém pode saber, é só uma conversinha entre nós. Olhaí, Freud só conhecia um tipo
de civilização à sua volta, a masculina. Então, sua explicação só podia mesmo se basear
num universo masculino. Ora, se a mulher tem inveja do homem porque ele tem uma
coisa física que ela não tem, ... Pôxa, mas a mulher também tem coisa que o homem
não tem!!! E olha como tem!!! Só que as próprias mamães incutem nos seus filhinhos a
idéia de que o homem é o homem, porque a civilização é masculina. Então, tudo o que
é, é homem! E o que não é? É Mulher? Então, o homem é aquilo que é, num mundo em
que a mulher é a negação do homem.

O que é alguma coisa, é homem. O que não é, é mulher.

Defina agora: o que é um homem? Ou melhor, o que é “O” homem?

Defina o que é o homem, quais suas características. Deu pra ter uma imagem?
Deu pra sacar? Tá. Então tá.

Agora inverta! O contrário. O negativo. Tudo aquilo que o homem é, você tira.
O que sobrou? (...) Então, o que sobrou, é a mulher.

A mulher não existe. Ela é a não-existência, é a negação do homem, porque no


universo masculino não há lugar para a mulher. Saporquê? (...) É que se o homem
colocar a mulher no seu universo masculino, vai confundir a esposa com a sua mãe!!! E
isso fica tão visível, tão cru, que dá medo!!! E o homem não pode ter medo, porque ele
vive numa civilização do homem, pelo homem e para o homem. Não para o homem ser
livre, mas para o homem sofrer, disputar, lutar um contra o outro, fazer o outro de bobo,
querer o que o outro tem...
Esse homem nega a mulher, contrapõe o universo feminino como se fosse a
negação do masculino, nunca a complementariedade.

Feminino é o complemento do masculino, e masculina é complementação da


feminina. Um junta com a outra, o outro com uma, e temos complementariedades.

Mas não acontece assim. A mulher vive no universo masculino e alimenta o


homem que nasce, para que esse mesmo homem que nasceu dela mantenha o universo
masculino e negue a mulher.

É, louco, né? Tudo isso é racional, lógico, extremamente lógico e cartesiano,


para não dizer científico. E olha, minha terapeuta é freudiana, meu psiquiatra não, e no
entanto, quem sabe? Talvez justamente a mãe vai ter inveja da nora porque assim
consegue castrar o seu filho, para que ele só saiba fazer da sua esposa, companheira,
aquela que é a nora da mãe dele, uma nova mulher, fazer uma nova mulher igualzinha à
todas as outras.

Bom, não sei se a opinião de Freud era por aí, não tenho diploma pra isso, mas
tenho um simancol que funciona muito bem. O feminismo tem que ser uma luta pelo
equilíbrio. Não é para a mulher adquirir os vícios do homem, lutar contra o homem,
fazer do homem seu oponente!!! Mulher pode gostar de homem, tudo bem, não tem
problema, isso é legal, mas não é porque não vai fazer do homem o seu patrão, que vai
querer ser a patroa. Lugar de mulher é na cozinha e de homem é no bar. Só que o bar
queima o homem e a cozinha estraga a mulher. Homem na cozinha e mulher no bar!!!
Quem vai agüentar a mulher bêbada e o churrasco que o homem pôs no microondas???
Não se pode pensar nessa inversão de valores, a questão é diferente, é mais em cima!
Eu quero transcendentalizar essa invenção com a nossa desinfecção de cabeças. (...)

Vamos lá, chacoalha tudo e joga fora, vamos começar de novo.

(...)Estão prontas, meninas? Meninos? Lá vai:

Tornar a mulher feminina e o homem masculino, essa é a nossa intenção.

O homem só poderá ser masculino se puder expandir a sua feminilidade, e a


mulher puder fazer o mesmo com a sua masculinidade. O universo construído pela
nossa civilização já não é masculino, apenas tem os vícios e podrêras do que se
convencionou chamar de masculino. Não existe masculino sem feminino, não existe
mulher sem homem, tá tudo num só universo. Querer a mulher adquirir poder, o mesmo
poder que o homem tem, é masculinizar-se. Não é masculinizando-se que a mulher irá
ajudar a si mesma, não é assim, a mulher tem que vencer o sentido machista de
dominação. E para vencer, não é adotando postura masculina, não é adotando os vícios
do poder fálico. A mulher só vai vencer se o homem também vencer. Nessa brincadeira,
se os dois vencem, ninguém perde, mas se um estiver mandando, os dois perdem.

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Se homem não chora, a mulher que vence também não! Por que não pode
chorar? Mulher chora e homem também. Mulher anda que nem mulher, homem anda
que nem homem. Mas qual é o andar do homem, e qual o da mulher? Por quê que toda
mulher tem que se balançar pros home e todo homem tem que se empinar pras muié?
Ninguém precisa balançar nada, ninguém é obrigado a empinar nada, cada um sabe o
que é e o que precisa, e todos nós queremos a mesma coisa!!!

(...)

Enquanto a mulher quiser ter o poder do macho, ela vai ter o falo no lugar do
verbo.

(...)

Se o poder corrompe, dane-se o poder!!! A mulher que sobe ao Poder não pode
incidir nas falcatruas, porque isso é coisa da civilização do macho. Mas ela enfrenta o
poder machista que só consegue obedecer sob uma ordem masculinizada!!! O homem
dessa civilização tem vergonha de aceitar a mulher como vencedora de uma competição
inexistente. A mãe criou o homem para competir. E ele não sabe viver sem competir,
não sabe viver ajudando. Quando ajuda, vira maricas. Se é santo, não pode casar. A
mulher que subiu ao Poder, e seu marido, vivem com um poder entre eles que é tão
fálico que toma o lugar do casamento. E se separam. Muito comum isso também
quando um homem sobe ao Poder, e se separa da mulher que o acompanhou até então.
Mas neste caso, é porque o Poder machista exige a mudança de mulher. Se é a mulher
que sobe ao poder, então ela acaba virando galo. É exigido pelo poder machista, que se
a mulher quiser fazer parte, tem que virar galo. E aí o casamento dela se acaba.
Saporquê? A ordem conjugal se destroça porque no galinheiro só pode ter um galo
cantando. Dois galos não repartem o mesmo galinheiro.

Dois galos não repartem o mesmo galinheiro. (...)É o que dizem...

Duas galinhas, sim. Três galinhas, quatro, mil galinhas. Mas o macho que é
macho tem que cantar sozinho.

O feminino é solidário, é social, é colaborador. Isso é o feminismo que nós


precisamos. O masculinismo tem que ser também solidário, social, colaborador.

O vício é competitivo. O vício é masturbador. O vício é solitário. O vício é a


falcatrua, a corrupção. Se quisermos mudar o poder, temos que mudar os homens e as
mulheres.

GABRIEL (irônico): Quem disse que entre mulheres não há competição???


Você é que pensa!!!

FEMININO: Eis o estereótipo! Não estou dizendo que as mulheres não


competem, mas eu digo que o feminino não compete. Não estou falando de mulheres e
de homens, porém digo do feminino e do masculino, que está presente em todas as
pessoas, de qualquer preferência sexual. A concorrência que existe entre mulheres,
ocorre quando existe um objeto do desejo: as mesmas moças querem um só rapaz, por
exemplo, e este se torna um objeto a ser conseguido, como um troféu, uma coisa. É bem
isso, elas coisificam o objeto de desejo, que pode ser um homem ou pode ser um
vestido, uma calça, uma bota, ou outra pessoa. Mas isso existe também entre os homens,
quando coisificam um objeto de desejo, da mesma forma como as mulheres. Isso é uma
competição, e faz parte do universo masculino de aquisição e concorrência, não
necessariamente característico de homens ou de mulheres. É um defeito, uma
excrescência a ser eliminada de nossas personalidades.

A mater dolorosa, com o corpo de Jesus morto em seu colo, mostra a dor de uma
verdadeira e terrena mãe, não a dor transcendental. O pai chora, escondido, mas a mãe
demonstra sua dor, ensina o que é amar um filho. O pai deveria ter coração, mas não se
permite. A mãe abraça e carrega em seus braços e colo o filho ensanguentado. O pai
dissimula, a ele não é permitido chorar. Todos sabem que ele sofre, mas ai do pai que
mostra sua dor!!!

A inveja existe entre os homens e entre as mulheres, mas quando se quer


representá-la, é determinado que se trata de uma característica feminina, como se apenas
as mulheres fossem invejosas. A inveja é tão do homem que movimenta a competição
entre eles. Entre vocês, aí da minha frente. Vocês são competidores porque foram
ensinados a brigar entre si, pisar um sobre o outro. O universo masculino esconde de si
a inveja, e diz que é a luta pela sobrevivência. As mulheres que querem vencer dentro
desse universo, utilizam-se das armas do macho, não do homem, não do masculino, mas
do bicho, do macho, do dominador, e se fazem de fortes como homens. Inventam de
falar grosso, gritar mais alto, bater as cadeiras, ... Ou então usam o caminho inverso, o
sexo, e são fêmeas, com cara de dominada para dominar, vendem seu corpo a troco de
favores. Esses dois tipos de mulheres, nenhuma delas consegue vencer no universo
masculino, ficam com o estigma de machona ou de ser aquela que qualquer um põe a
mão. Quer dizer, ou é sapato 48 ou é coisa! Ou é bota coturno ou é pra satisfazer egos
xinfrins.

Sabe o que é xinfrim? É o que é pequenininho, sem valor, sem nada! Xinfrim é o
que vale uma porcaria só, um zero! Tem homem que só se faz coisa, pra mulherada ter
ele como coisa sexual, e vira objeto de desejo, tudo isso dentro do universo masculino.
E as mulheres, para aumentarem sua auto-estima, ao invés de transformar o mundo,
travestem seu próprio universo, e se travestem de homens, mesmo quando o objeto de
desejo é um homem, ainda que usem seus sentidos femininos de percepção. E deixam
de ser totais, deixam de sentir no corpo todo, querem apenas um objeto centralizado.
Esquecem do feminino que reina dentro delas, e que pode reinar junto com o masculino.

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O universo masculino esconde a inveja do homem, mas cria para ele o desejo de
consumir objetos, por sexo ou por poder.

Mães que estão aí, eu sei que tem mãe aqui, mães, eu quero falar com vocês,
ajudem seus filhos homens a se tornarem cavalheiros, doces, sensíveis, delicados. Não é
para castrar os seus filhos, mas é para deixar que eles saibam o valor da poesia, e que a
vida é mais que comer, beber e dormir. E mais do que comer churrasco e ficar bêbado
na calçada. Isso não é ser homem, isso é ser lixo. Lixo pra sociedade consumir.

Homem que é homem sabe dar a mão para ajudar a mulher sair do carro,
principalmente quando ela não precisa. Mulher tem que saber esperar o homem dar a
volta e abrir a porta para ela. Isso é o masculino e o feminino. O feminino ajuda o
masculino a crescer, a mulher ajuda o homem a crescer. O masculino ajuda a mulher a
ser feminina, doce, sensível, delicada, poética, quando o feminino ajuda o homem. O
Macho bate na Fêmea, e ela grita: Bate! Bate mais uma vez! Bate se for homem! Eu
gosto de homem que me bate! Eu quero me machucar, quero sofrer, quero ser miúda,
porque eu sou mulher!!! Quero me sentir mulher, porque eu sou apenas uma mulher!
Apenas uma mulher!!!

Mães, acordem para suas filhas, elas não são apenas mulheres, elas são
mulheres!!! O feminino é importante, não existe o masculino sem o feminino, apenas a
junção dos dois poderá fazer com que possa um dia sermos Deusas e Deuses, não um
contra o outro. O demônio é o que bate, e é também o que pede para apanhar. O
demônio não tem sexo, não tem vida, não tem corpo, não tem dor, não ama, não sabe
amar, só sabe domar, domar animais, domar bichos. O demônio doma, domina, bate e
apanha, briga e sai correndo, pisa no outro, não tem amigos, não tem amor, não sabe
nada!!!

Tenho dó do pai do Renato Russo, do pai do Cazuza, do pai de Castro Alves,


tenho dó do pai do Henfil, tenho dó do pai de Rimbaud, tenho dó do pai dos gênios e
dos artistas, porque o pai nunca consegue entender a grandeza do filho. Não consegue
tempo para isso, o mundo masculino tira o tempo do pai. O pai prepara o filho para que
seja um macho, quantificador de coisas, conforme o modelo que aprendeu do avô do
filho, que é o pai do pai. E de pai em pai a sensibilidade morre, os artistas e gênios se
solapam na depressão, no transtorno bipolar, na esquizofrenia, na psicose. Filhas e
filhos dominados por seus pais e por suas mães se queimam de tanto se submeter às
regras do mundo masculino, e perdem. Todos saem perdendo. Quando percebem o que
perderam, é tarde, o rebento já morreu, os pais se foram.

O feminismo permite a emoção, a ajuda, a santidade e a vida conjugal. O ser


humano não precisa mudar de sexo para ter qualidades do outro. Já tá lá, é só usar.
Existem os caracteres próprios de cada sexo, que determinam a masculinidade e a
feminilidade, mas não estamos dizendo de macho e fêmea. Esse patamar já passamos,
temos que seguir adiante. Existem características, mas também os tabus, os estereótipos,
criados pelo preconceito e pela intolerância.

Não quero competir, não quero trocar os lugares. Precisamos da sensibilidade e


da intuição no poder, e o poder não deve mais dominar, mas servir às pessoas. O poder
tem que ser um servidor público, não como querem as repartições que conhecemos, mas
se é servidor é para servir, e quanto mais alta a patente do servidor, mais ele tem que
servir aos que o elegeram. (...)

É, isso aí, quanto mais alta a patente, maior a obrigação de servir. Não é mais o
poder do ódio, é do amor. O servidor tem que servir, o patrão tem que ser pai, e o pai
tem que aprender com a mãe. Se o empregado não sabe ser filho, que seja mãe, e então
aprenderá o que deve. Não há coisa melhor que ser um pai, porque a mãe a gente
sempre sabe como é.

Sempre são cultuadas as mães, para que possam ser devidamente exploradas no
universo masculino. Mãe é sofrer no paraíso, com o avental todo sujo de ovo... e o pai é
o que sofre calado, brigando com a mulher para descontar o que traz da rua. Então, a
mulher manda ele ficar mais tempo fora, ficam mais tempo longe um do outro, assim
não brigam. Ora, que mãe é essa? Não pode aceitar isso, o pai também não pode, eles
têm que ser felizes.

Vamos começar a cultuar o pai, agora, junto com a mãe. Pai e mãe, juntos
compartilhando as dores e os saberes, os quereres, os desejos, as aflições, pai e mãe vão
ser homem e mulher, feminino e masculino, juntos, um só.

O pai e a mãe idealizados são os que servem aos seus filhos e entre si, não os
que matam.

Eu acredito que existem Deusas e Deuses, e que eu posso ser uma Deusa como o
homem pode ser um Deus. E que não existirá esse homem-Deus sem existir a mulher-
Deusa. E isso porque as Deusas e os Deuses que existem hoje foram um dia mulheres e
homens como nós. Um dia tiveram problemas, dores de cabeça, enjôos, cólicas, dor de
dente, sangue, veias, um dia perguntaram se valia a pena viver.

O feminismo vai servir para que os homens possam melhor sentir as mulheres, e
as mulheres possam sentir melhor os homens. O feminismo é para que cada parceiro
sinta o outro como a si mesmo. Um não é sem o outro, nunca será. Uma relação só
existirá de fato quando ambos puderem ser fracos um para o outro, e fortes na ligação.
Isso é o amor. A fraqueza é a força, a fraqueza é a nossa fortaleza.

Eu chorei quando morreu Carlos Drummond de Andrade, e chorei quando


morreu Andy Wharrol, mas não chorei quando morreu John Lennon. E por que não?
Ora, o meu sentimento é o meu sentimento, não o dos outros. E chega de teoria!!!

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Vamos à prática, mas sem que sejamos práticos, vamos ser belos, inteligentes e
poéticos.

MASCULINO: Minha vida é u’a metáfora

imersa em símbolos - quando pouco, icônicos.

Meu ser é um simbolismo sem fim;

ele se processa sob a égide contemporânea do Pânico.

Minha fleugmática atenção é irrecuperável,

e o sonho, como o concebo, é o aqui-real.

Dourar pílulas não é de minha alçada,

nem tampouco engulí-las como são.

Nosso dia-a-dia é uma farsa

que se reveste de u’a fantasmagórica sonda romântica

que nos perfura lado a lado, por todos os lados,

sem achar razão.

FEMININO: Vivi um sonho de vida de sombras e de morte

e onde era luz eu vi breu e onde trevas, claridade.

Do sonho que vivi, acordei e a vida nasceu florescente.

Os olhos cegos viram a vida voar fúlgida e fugidia.

Fujo do medo e me refugio nas palavras.

A estrada do homem, filho de mulher, me protege do erro com minhas dores.

Retiro-me do abraço gelado do inferno e me deito com a luz,

onde o calor e as fontes proliferam.

MASCULINO:
ESCREVE TEU POEMA COM TUA SEIVA ESCARLATE!

DAS VEIAS TRILACERADAS VAI ESCORRER A TINTA ESCURA...

O MAU SANGUE É PROGRAMADO;

VINGA, DESDE JÁ, AZUL,

E DEIXA FLUIR TEU AZULÍCIO,

PORQUE NÃO SABER VIVER PROGRAMADO


E FALHAR,

É DE ONDE NASCERÁ O TEU DOM.

FEMININO:

Morrer jovem!

Sim, é isso o que quero.

Morrer piageticamente jovem,

em pleno gozo revolucionário,

após muitos e muitos anos de inconformismo com minha própria geração.

Quero ser jovem o bastante para ter a coragem de achar

que se nascesse de novo tentaria mais uma vez

com a mesma paixão

a mesma coisa.

Quero ter a petulância de estar eterna e imaturamente jovem,

me mantendo até o fim de meus dias a cantar Rimbaud,

lindo, lúcido, macielmente místico,

transando uma baby inconsolada.

MASCULINO:

Estou velho.

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Meu corpo se regride junto à lúcida mente já não tão clara.

Meus amigos não existem mais. Aliás, (?)quantas lágrimas já não correram por
esta cansada face, por estes que SE foram

um

um

Meu peito ofega por um fim que não chega,

e que desejo e temo ao mesmo tempo.

Todos se foram, sobro-me solitário. Sobro-me.

Ah, dor que doída fosse, passaria em virtude a uma nova luta... Hoje permanece.

Por não mais saber lutar, condoo-me.

Caco de velhas guerras, sou ainda eventualmente iluminado pela juventude,

essa que ainda insiste, jovens que ainda subsistem, sobrevivem em suas próprias
vidas. Vidas. Nessas horas é que vem-me a centelha.

Posso! Sou Jovem! Minha vida continua doída e revolucionária, babando tudo!

Principalmente, mais que nunca, ainda posso! Tenho sede, novamente.

Esqueci da velhice, voltei a meus verdes anos!!! Que a velhice vá para o inferno!

Guardo meus quase todos anos no bolso esquerdo da calça e o resto na lapela.
Batalharei nu, despojado dos anos, novamente dourada e imaturamente jovem.

Estou velho. Sou jovem. Estou sendo. NADA É, TÁ SENDO!!!

Sabendo que estou só, acabo por estar ao lado de muitos, e lhes dar força,
enquanto me chamam de amigo, tio, guru, vô, sei..., sei lá.

Meu bom homem, ninguém quer a experiência, a velada vivência voltada à


essência; antiga existência, perde-se nos anos, nos anos, nos anos, anos, anos, anos,
ninguém me dá a palavra. Não há quem ma dê.

Então às vezes volto e penso na minha velhice.


Esses jovens que estão a meu lado eram nem nascidos quando terminei a
faculdade,

ou no mínimo se bastavam garotinhos – guris.

Outros ainda contam nos dedos suas namoradas. Outros, nem contam ainda.

Ai,

como me dói! Já faz tempo, não me lembro a face de minha última parceira,
preciso ver o álbum. Perde-se no tempo ainda minha primeira vez... Todas estão mortas.
Todas.

Vivo há tanto tempo... Oh, corpo miserável, morra de um só instante, que já não
agüento de tanta saudade!

Todos já se foram, também meu tempo. Por que continuo?

Oh, como me dói.

Solidão. Tédio. Estou velho. (...)

O LIVRO:
PÓ´
TEM IDO
ID
TEMPOÍDO
O TEMPO
TEMPO IDO
O TEMPO TEM PUÍDO MEUS PENSAMENTOS
MEU PENSAMENTO
ME PENSAM
EM O
ME PENSAM
ME PENSA

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PENSO
PENSO
PENSO
PENSO
PENSO
DENSO
EM

AETERNUM

FEMININO: (...) Há uma ilha

Uma ilha em cada um de nós

Alguns morrem

Outros ficam

Há uma ilha em cada um de nós

Alguns envelhecem

Outros superam

Somos um continente

A música sopra o vento e as ondas traem nossas intenções

A descoberta é a razão da busca e a verdade é dor

O continente supera a própria dor pela descoberta através das ondas que o mar
leva e traz com suas espumas esmaecidas pelo tempo.

Ah, ... Tempo!

Há uma ilha dentro de nós

Dentro de nós um continente explode e verte seus

rancores
flores

ardores

amores

suores.

O tempora o mores

os piores e os melhores

Explora a tua imensidão e o teu fascínio

Explora o que te viscera e o que te viceja

Voz que clama no deserto

É a tua voz que arrebenta o próprio peito de tanto chamar por um Deus
Desconhecido

Reconhece a própria pena

Supera a carantonha da alma pequena

Sublima a face terrorífica

É a mediocridade

O mediano

O ó do pó

Aspira pelo ardor que queima dentro de ti e o faça flamejar

Ascende feito um anjo sublime

Aumenta o volume da tua imanência e

Transcende o caos.

Nosso continente pode ser mais denso e pulsante

Estende o torso e ouve os sons dos pássaros que anunciam nosso retorno.

Acredite

Não há prazer mais pleno

Que o de exprimir e fazer acontecer

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A ilha continental

Ser uma pangeia!

MASCULINO

Tuas carnes são pedaços de minha carne e teus ossos parte de meus ossos;

Homem que mata outro homem, mata também parte de si.

Não matar é o mesmo que dizer não morrer,

Pois eu sou parte tua e ele é parte de mim, E você é um nasgo da carne de cada
um.

É o mesmo coração que brota no peito de um e estoura do peito de outro.

É o mesmo coração que faz saltitar teu seio e desatiça a vontade do rei

em jurar seu zelo.

O suor transforma-se em tédio e este na escuridão.

Tão grande faz-se então o descaminho, que desativa por completo a nossa visão.

No final, quem é que vai entender que a tua é minha e dele carne,

E que trair ao outro é o mesmo que se trair?

FEMININO
Com tanto barulho

visual nesta cidade

o que eu quero

é um pouco de paz.
Muito silêncio...

Ai, puxa vida!

Que tédio!

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Os carros avançam lentamente sobre o sinal fechado

- como num pesadelo que tive quando criança –

enquanto atravesso fora da faixa num contrariamente lento passo displicente.

Noite fria, pé tenso.

São Paulo não me faz tanto bem;

meus olhos ardem mais que quatro anos atrás, e meu nariz respinga.

A noite é úmida, mesmo sem chuva nem garoa - São Paulo já não é mais a terra
da garoa – e o frio entra pelas minhas meias, onde não há tênis, e se aloja nos
calcanhares.

Tal qual bêbado meus pés se arrastam ainda que ágeis, enquanto ouço um carro
passando, toca-fitas tocando Yes, e um cartaz do Made in Brazil com show pro dia 11.

O Rock ainda é a música do concreto paulistano; os operários e os punks ainda


se alteram nos domingos, para voltarem ilesos às suas fábricas e comércios nas
segundas.

Nem todos gostam de samba, mas há no entanto quem dance bolero.

Paqueras namoros sob o teto do carro. Todavia caminho e vejo assim uma
garotada de traseiro sujo na calçada, olhando pros olhos de quem passa e também pras
mãos e pros bolsos.

Meninas bonitas que passam – nem sempre bonitas – que olho e também me
olham –outras ignoram. Às vezes no entanto uma cantada de voz grossa ou de másculo
falsete, quando não chamando pra briga - Quíqui cê tá olhando? Num gostô?, ô mêo! –
ou mesmo obscenidades de prostituta ou alguém que te paquera e você não sabe se é
mulher homem travesti biscate ou outra variação.

Bares com pinga, guaraná e empadinhas.

Às vezes uma vista d’olhos para dentro de uma pastelaria

a ver se encontro alguém conhecido tomando caldo-de-cana


ou um pastéis.

Olho as vitrinas do Shopping Center Lapa – como estão altos os preços!

Uma camisa ao preço de um gravador

e um gravador que custa um tratamento de câncer!

E eu espirro! Parece que o rapaz do lado está tentando me imitar, só que ele não
usa lenço, prefere os dedos. Ludere cum digiti.

E continuo meu passeio a pé, sentindo cheiros agora então desagradáveis,

incertos na origem, mas é o cheiro do progresso.

Minha bolsa roda de trás p’a frente e meus olhos lacrimejam num misto frio de
poluição e melancolia, porque nesta droga que me cerca um pedaço de meu corpo ficou
preso. É meu sêmen, e mesmo que não queira, mesmo que não goste, faz sempre com
que a gente tenha de voltar.

Não é por saudades, mas por ser necessário, mesmo que os cinco ou mais
sentidos reclamem,

das árvores caídas e não repostas

das florestas extintas

índios mortos e asfaltos governantes

da manhã sem sol, sem calor, úmida e fria

que vem botar a noite no passado

e tentar um novo dia

e tentar um novo dia

e tentar um novo dia

(...)

hasta la muerte pelo menos. (...)

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MASCULINO:

Era um país chamado Jaca. Quem nele nascia era considerado jacanês. Seu
partido de posição era o jaquismo, que tomava como símbolo a representação da fruta
de nome homônimo ao país. Os jaquistas costumavam ostentar histórias a respeito de
sua posição ideológica, histórias essas que nunca se pôde realmente verificar sua
veracidade. Uma delas contava que a origem da ideologia jaquista sediara-se na França,
com os jacobinos. (Quanto aos girondinos, parece que se identificavam com o
geranismo – partido do gerânio.)

Só que nas terras desse país não tinha mais condições de dar jaca. Se alguém
plantasse jaca, nascia feijão. Agora, se plantasse feijão, daí dava chuchu, e se plantasse
chuchu dava carne de porco, e se plantasse carne de porco... dava um mau cheiro
desgraçado!

Quando um jacanês oposicionista decidiu plantar arroz no lugar do chuchu,


plantou jaca. E deu jaca! E para alívio de toda a população jacanesa, nunca mais deu
chuchu! É certo que os jaquistas no início ficaram meio atordoados, posto que o chuchu
era uma das riquezas nacionais de Jaca, eles estavam acostumados ao suco desse
maravilhoso legume toda manhã, mas já que a situação se lhes apresentava tão trágica
naquele momento, passaram a se contentar com o chuchu importado.

Com tudo isso, o povo de Jaca ficou tão alegre que nunca mais quis comer jaca.
Bom, os jacaneses mataram o rei e o opositor, e a partir desse dia ninguém mais votou,
e todos viveram felizes, sem nunca mais ter governo algum que os reprimisse ou os
libertasse, o que – cá entre nós – seria a mesma coisa.

Agora, Jaca está só esperando seu reconhecimento pelo resto do mundo como
um país onde o regime é o Anarco-Jaca!

FEMININO

Pois é, jovem, você não tem a personalidade necessária,

e aí vem nos vestir com mil roupagens toda hora, né? Afinal, tu já não pode
confiar em Lennon, e nem mesmo em Ali Agca, ou em Gandhi, ou no PSD. Mas pode
crer, Disney continua no poder. E por falar no Valter, o que é que tu vai ser quando
crescer?

É amizade para sempre, até o próximo outono, ou somos apenas bons


namorados?

Mas o amor que te dedico é muito forte, só que não tive ainda tempo

de nele acreditar.

MASCULINO
Vivo numa terra que poderia ser livre. Mas veja, a insensibilidade é vencedora.
As urnas não mentem jamais. Os homens. Fraudulenta. Sabotagem. Escura
sabotagem.

Chave de luz. Quem o autor? Urna vencedora antes. Perdedora depois.

Elas têm partido político? Não, econômico.

O povo perdeu. Conforma-se mais uma vez.

Mais uma vez o povo é enganado vitoriosamente.

Sai a oligarquia para as ruas em passeata: VIVA O VENCEDOR!

Quem perde, ganha. Engana-se a limpa democracia. O dinheiro, os favores, as


promessas, ou ou ou...Formas de comprar não deixam de interferir

no movimento final do exercício democrático, deste qual só conhecemos a


marcha.

Livros! Livros a mão cheia, dizia o poeta! Para quê livros?, sobe-se ao poder
SEM os ler!

Quadros, obras de arte, festivais de cultura. Quem? Que adiantam?

Saúde, cultura, sensibilidade, irão para os arquivos da memória. De quem?

Vai começar o circo da ilusão. Os mais rápidos, que fujam!

O povo dentro em pouco será descontente.

O coração então ainda baterá? Oh, Deuses que me inspiram respirar, que terra é
essa?

Que terra é esta, cujo povo a não faz por merecer?

Que terra é esta, cujo povo a não respeita? A mãe que sustenta não é sustentada.

Oh, Deuses, dai luz à sensibilidade humana!!!

FEMININO:

Longo é o caminho que nos leva à porta do céu.


Longa distância nos separa do céu à terra, Longa e nítida voz é a que nos clama.

Em nosso drama, o dracma é o dharma.


23
Voz que chama do deserto, certo ou incerto, perto, Dado arcaico incólume, ao
tato insensato, ouve: Longa é a escada, stairway to heaven, ouro, Prata e lata;

Os ratos correm pela grama, não sobem árvores.

Voz que clama no deserto, assim disse, e é como dizem as guitarras:

Glory to the Seasons, as quatro estações, Mais quatro anos e uma vida terminará:

o homem bissexto perante o reino das espécies.

Queremos rolar acima das pedras, a favor das correntes contrárias, esquisitos,

Feito mosquitos. Minto. Queremos ser um pássaro sobrevoando as pedras,


pássaros de Júpiter.

Do mar vago, as naus felizes voltam enfim a silêncio do porto,

Ó, rude marinheiro, tostado pelo sol dos quatro mundos,

Assim disseram os poetas.

Silêncio... Silêncio dos silêncios... Páginas de um livro brancas...

Eis o instante estagnado, sufocado pela amplidão dos tempos.

Nosso teatro vivo é de repertório, quando não de sombras, da luz da fantasia.

Nego a fantasia. Quero luz! Cinevídeo, cinearte, videoarte, videojornal,


ciberjornal, internetequal, qual sua crença? Você acredita no original? Qual é o seu
destino?

Ser menino a vida inteira, Morrer jovem, Volver ao porto, Ser menino comendo
pão, Ser o filho pródigo. Goze a festa! Ser o irmão mais velho que ficou bravo com a
festa

Mas entendeu o espírito e festejou.

Não existe volta, todo caminho é sempre em frente, o passado não se destrói.

Não há o que erre seus erros, o que errou permanece assim, errado.
O acerto é a volta, embora nada volte, a não ser para si mesmo,

O que não deixa de ser uma volta. É mais que isso, a volta para si mesmo, pois
reflete por si, Verifica-se, anula-se, cresce. Mas como? A volta não existe!

Existe o navegar e viver, nada se cria, já disseram isso, pois O que se cria já é
criado antes de ser criado, é princípio para depois transformar. Crescendo.

Vamos seguir viagem. Voar sem medo do precipício.

Dançar, ato de movimento no espaço. Todos dançam. Todos os meninos e o


universo.

A voz que clama no deserto voa e alça dança.

Karma e Dharma, carma e darma, os dois têm arma.

Calma e dalma, pelo lambdacismo chegamos ao xis do problema transcendental:

Sem carma não há darma, sem darma não se substitui a arma pela alma.

Esse, o livre alvedrio, tão sensato e perfeito. A alma te leva do darma ao novo
carma.

Quero falar de um lugar nel mezzo del camin... lugar sem arma, Lugar do k e do
d inexistentes, do alfa ao ômega, do alefe ao tau, Do azote, do elemento elementorum.

Vou te fazer voar feito anjo, não tema, com Lamyedus não haverá problema,

Como quase disse o capitão Silva lost in the space.

Pássaro Azul, inicia seu vôo!

Acredita que pode voar, não há penas, não há asas.

Mas ele encheu sua casa de penas, com elas fez asas, e com elas saltou.

Mas as asas sumiram, e ele não precisa delas para voar.

Pintou o azul! Pintou o azul de azul.

25
Lamyedus te levará do teta ao azote.

Seja a luz da candeia a iluminar desde o teto. Quem quiser que me procure.

Chamam de branco ao negro, negro ao branco, mas a porta do sol é a porta do


céu.

Bato na porta do céu e encontro Bob Dyan, que emprestou uma letra a
Lamyedus.

Azul é a cor do mar, do céu, do ar e da Terra.

Sim, a Terra é azul, assim disse o astronauta.

Ele viu, comprovou, atestou, fotografou, e sabia o quanto estava certo.

Branca é a luz e o ar. Dourado, o sol. Negras, as letras.

Letras com que se escrevem as palavras e as idéias.

O ar alimenta a Terra.

Nel mezzo del camin havia uma pedra, assim disse o poeta.

Ai! Topamos na pedra. Cogito: quero dourar a pele feito terra, ser como um cão,

Ser simplesmente sendo.

Não sou um anjo, veja, não tenho asas... Mas um anjo não tem asas!

Não sou um anjo, veja, tenho memória! Nos quadrinhos de Barbarella aprendi
que

Um anjo não tem memória. Que anjo então é esse?

Ora, levanto a blusa e mostro, Eu não sou um anjo, veja minhas costas, não têm
asas nem cotós.

Para mim a história não existe, porque eu não tenho história, nem sou um anjo.

Eu construo a história que existirá. Relembro a história verdadeira que possa ter
existido e sigo o caminho das pedras. Longo é o caminho que nos leva à porta do céu.

MASCULINO: Pelo simples prazer de voar!

Se lançar do alto do edifício, pelo simples prazer de voar.


Se jogar do alto de uma escada, e rolar e quebrar os seus ossos para sempre,

Pelo simples prazer de voar! Se lançar do alto dos mais altos, e se despedaçar
entre as pedras, Pelo simples prazer de voar.

Droga! Estou quebrado. Não voei.

FEMININO:

Há muito, muito tempo atrás, havia um homem que juntava penas; toda vez que
encontrava uma guardava-a para si. Às vezes, encontrava várias de uma vez, e era isso
motivo de imensa alegria, algo assim que lhe deixava realmente feliz. E dessa maneira,
todos o talhavam de louco, ingênuo, desvario, mas ele continuava a juntar penas.
Muitas, muitas penas, estavam já enchendo sua casa; quem passava do lado de fora
dizia:

“- Eis aí uma casa de penas!”

Até que um dia, um belíssimo dia de sol,... não, acho que era de intensas nuvens
pretas, é isso, muito daquele ambiente que vai chover.

Pois é, nesse dia ele atravessou a cidade vestido com um par de asas enormes,
tendo estas sido feitas com as melhores daquelas penas que ele havia durante tanto
tempo juntado. Mas eram realmente enormes aquelas asas! E todos olhavam,
admiravam aqueles belíssimos maravilhosos instrumentos de vôo, simples e belos.

Foi quando ele subiu no edifício mais alto daquelas terras e falou em altos
brados: “- Vou voar!”, e a multidão que lá embaixo permanecia, nesse momento ela
estalou em risos, vaias, gritos, e o que mais puder representar incredulidade
desorganizada. No entanto, ele continuou a gritar cada vez mais alto, “ – Vou voar, vou
voar, vou voar!”, até que, num dado instante, não mais se conteve e saltou! Ninguém
acreditava, mas realmente ele estava ali, plainando1 no ar, batendo as asas. e não caía.
Estatelaram de surpresa, e depois de ódio e inveja. E tanta inveja e ódio se irradiou da
multidão, que foi acertar bem nas asas do pobre homem, que acreditava poder voar. E
suas asas despregaram-se de seu corpo, caindo sobre a multidão. Mas aqueles que ainda
podiam olhar para cima, viram que aquele homem continuava em seu vôo pleno, como
se nada houvesse acontecido.

Ele não precisava de asas para voar.

MASCULINO:

Tira de teu rosto esse sorriso anguloso.

1
Plainar é planar feito uma paina. (N.do A.)
27
Esse olhar libidinoso já não faz com que minhalma venha a te querer com toda a
calma.

Não poderá ser doutra maneira

Queda-te em teu lugar e pensa no que foi, como tudo iniciou. Cabou-se.

Nada mais irá voltar, Todavia me encontra em teu sonhar,

e volta volta voltar ao momento exato da gente começar.

Isto já não é mais brincadeira! Devo-lhe dizer que já estou de saco cheio de tua
ousadia! Tua palavra surda só me traz monotonia. E teu peito embriagado, ele só quer
folia.

Ouça bem, garota, tua irmã vai te fazer titia.

FEMININO:
É, desta vez cê me apanhou com a boca na butija, e nem me doeu

essa maneira como você me olhou, pois já não é mais seu este corpo, faz de
conta que nunca foi, faz de conta que esta menina aqui nunca te amou.

Adeus, já não mais te quero,

pois me entreguei a outro que sempre teve um lugar em mim

e você não foi meu nada, só ameaçou, só me fez tão antiquada, nunca me amou.

Adeus, depois te entrego de volta um sorriso que você me deu

e te devolvo os tapas que você já esqueceu.

MASCULINO:
Quando seu corpo se derramar pelo colchão vazio

irá então ela sentir o quanto dói uma paixão remunerada

e saberá talvez até dizer a diferença entre luxúria e prazer.

Ela dirá que a primeira é um disfarce ignorante do inumano ódio

e a outra é conseqüência do maior amor.

E nesse dia ela vai tão somente querer ser amada, idolatrada e enciumada,
mas não vai saber em que lugar vai encontrar um homem que lhe dê um
sobrenome e muitos dias felizes com versos cheios de amor e de prazer.

FEMININO
Hoje quero ver o grito sussurrante de seu peito sair pelo nó da garganta

só para dizer que quer amor.

MASCULINO:

A paixão é doce porque se alimenta da dor

e a semente que não se germina vem de seu luxo, sua riqueza, seu pó,

e lhe faz pensar que tudo é somente ilusão.

_______________________________________________________________

GABRIEL: As sombras se emergem sob nuvens de mandrix.


As lições de antanho viram contos que nos esperam até o fim de nossos tentos.

________________________________________________________________
_____________

LIVRO:

Sob estes ventos que anunciam prenunciam nova chuva chegarei a teu lado

para sempre lutando entre as trevas com alguém que me espere até chegar sobre
ti.

Oh, sangue eterno que corre em brilhos sãos, queria agora estar a teu lado

e sorver teu corpo embriagado pelas náuseas da cidade.

Vi senti teus olhos virarem em presença de meu canto

Não sei que canto que faço, se levo esta vida no ato. Não sei! Não sei!

Não sei que canto que faço ou se levo esta vida no ato. Não sei! Não sei!

Não sei que canto que faço, se já levo esta vida no ato.

MASCULINO:
Sigo meu canto de prece e voto pela vida e por ti!
Você que me caminha aos poucos e repentes

parando
29
e

go

te

jan

do

desilusões tão quietas...

Solutar quimicamente entre os corpos e depois te encontrar.

Entoei, e sei, desentoei, todavia não sinto frio.

Teu coração inerte e mudo

pode ainda se animar e, quem sabe, me cantar, e sentir meus


sonhos

avultos e preguiçosos, saltitantes e escorregadios.

Ah, umalma indócil e inquieta

procura ver teus olhos

incessos de brilho!

e hesitação...

________________________________________________________________
___

FEMININO:
Eu canto pela liberdade
Do homem que não sabe falar.

As frases não morrem, fazem silêncio por si mesmas e descrevem

Umas poucas horas de inaptidão pela morte lasciva e forte!

Eu falo e você me ouve, meu canto é forte porque é o teu silêncio.

Sou mais apto a ser que parecer. Desintegrei lições, dramas e percursos

Que você queria me impingir.

Desatei o nó de sua segurança e vesti-me com outra: a minha!

Falo com própria voz. E canto.


MASCULINO:
Esta vida fácil esta hora não tão fácil
Neste momento eu te ganho e você me perde e ganha e eu perco

Tudo solto, molhado e quente, é tão frio...

Eu perco e quem ganha é você que se perde errante na avenida parada na calçada

na esquina esperando
alguém.

Então você me chama e eu acato

e te olho

com olhos de gato

e te devoro

com os olhos e a boca.

Teu olhar me chama e eu aceito

e te pergunto e te levo por um momento.

E você me ganha e eu te ganho e te perco e me sinto novamente só.

Te troco novamente noutro dia e outra irá me tocar e ganhar e perder e ganhar

E solitário ficar.

Vi teus olhos estacionados frente aos meus. Estavam cheios de brilho.


E você esqueceu da doce estratégia de um sonhador, da suave estratégia.

Psico-Dança! Lança seu voar no espaço e soa luz no alvorecer.

Medo. Receio de chegar até. Palavras mudas. Silêncio que fala e manda e deixa
ser.

Receio de chegar mais perto e se assustar. Receio. Mas a estreiteza é cada vez
maior. Sempre. Cada vez mais perto até chegar. E quente. Mais quente. A verdade
aparece inteira, crua, nua, feito vertigem que não se controla. Porque a verdade é
aterradora para quem dela se esconde. Mas quando nos preparamos para recebê-la, e a
conhecemos e a identificamos, nos identificando, achamo-la a mais das lindas flores.

FEMININO:

31
Este nó que fizeram na nossa garganta foi tão forte que até desaprendemos a
cantar

livres e fora do tom. Nós agora só sabemos fazê-lo por meio de gestos, de
códigos em pauta musical ou sinais.

MASCULINO:

Gargalhemos, sim, vamos gargalhar,

Pois esse ato é tão e tão romântico

Que até nos deixa sós, a despertar,

Nosso próprio universo lânguido.

Gargalhemos, sim,

Pois o gargalhar é romântico,

Tanto quanto é mais que lânguido

O nosso despertar.

FEMININO

Eu rio.
No frio belo, bebo do rio sem brio.

Cio: Eu rio do cio das pedras.

Mas as pedras me enternecem e me fazem crer que tudo é real.

E as pedras se desafiam e se auto-sacaneiam, e até, por que não?,

se esquecem de toda a metódica.

Ah... Repressão das pedras para com as próprias pedras, que vegetam
doidas e eternas... Tão eternas quanto suas vidas, inteiras até a morte.

MASCULINO:

Ana que transa eu,

tu,

ele,
nós,

vós

e eles, inclusive amando os pronomes oblíquos,

é a mesma que dança por todas essas veredas tropicais,

e que dana e beija ao mesmo tempo a mesma pessoa, as mesmas pessoas.

Ela cria, detém e destrói, para depois lamentar as horas perdidas.

Seu corpo estraçalha e corrói porque adora.

Sua cabeça acorda sem sair do sonho e se autodevora.

Rainha louca de um séquito louco,

ela desfila com todos eles diferentemente, porém sempre


persuasiva.

Ana que se desfaz quando ninguém lhe faz,

e por isso pede, manda, ordena,

achando que seus infiéis súditos são quase eternos.

FEMININO: De que adianta As mesas serem redondas,

Se elas ainda se apoiam Em bases com cantos?

MASCULINO: Seus lábios escuros e brilhantes chamavam a atenção, e via-se


assim, meio de lado, aqueles cabelos de algodão doce enegrecido; havia também muitos
pelos em seus braços, pelos tão tensos, talvez para disfarçar aquele corpo amargo, de tez
clara e fala firme.

Aquelas retas einsteinianas, que na verdade são curvas, mas ninguém se


apercebe de tal... ali se distinguiam ao se tentar delinear as suas formas.

Estava sobriamente travestida de mulher.

FEMININO: Por um dia desses que a gente não sabe quando, numa dessas
quebradas da noite, você vai talvez me encontrar e perguntar, como tem passado, como

33
está nesses últimos tempos, e por falar em tempos, estes tão exatos/inexatos tempos, já
não se sabe mais o que fica, o que vem, já há muito tempo que a gente não se vê,
cheguei a ter saudades de você.

E então lhe respondo, não se precipite, tudo chega a seu lugar, em sua hora,
desde que você consiga pegar a oportunidade quando ela passar. Vou te dizer que na
verdade não sei onde estou, onde fico esta noite e depois.

Se desencontrou, é o que você vai pensar, e depois me pegar pelo braço e dizer
vem, que te levo pra casa, ou pra qualquer lugar, me diga onde quer ficar.

Pode me deixar em qualquer esquina, qualquer lugar, qualquer banco de jardim,


você é quem sabe.

Você ficou louco, perdeu o juízo!

E te digo que não, sempre fui o que sou, porém estou já sabido que sempre, na
verdade, não fui NADA, NADA, NADA!

E você me dirá, atônito, que sempre foi o meu melhor amigo, e que cuidará de
mim, irá até me pagar um bom jantar e um internamento no manicômio.

Então, ainda calmo, direi que você é quem precisa parar um pouco e pensar, e
verá que também rema o barco na mesma direção que eu, e verá que o rio corre mais
que seus braços, e você nunca se encontrou, e sabe-se lá se não estou tão perdido assim,
pois na verdade sei onde não estou, ao contrário de algumas (muitas) gentes que ainda
não perceberam onde estão nesta vida.

MASCULINO

Pulsa, coração, pulsa,


num eterno feedback emocional

FEMININO:

Ah

Eu te quero muito, Meu amor

Quero-te muito velho

Quero-te muito moço

Quero-te muito louco

Quero-te muito solto


Quero-te muito belo

Quero-te muito amor

Quando você me deixa rouca

Eu sei

Que sou tão bela quanto você

Eu sei

Que sou aquela que tanto quer

Eu sei

Que sou aquela pra quem tanto faz

Se você é um homem

Ou se é um rapaz

Quero-te muito forte

Quero-te muito fraco

Quero-te em meu parto

Você é hoje meu maior sossego

Você é meu sonho

meu fumo

minha máquina miséria

minha música e paixão

MASCULINO:

Tapinha dói. E MUITO!

A questão envolve as mulheres e os homens, de todas as preferências sexuais. Todas as


conquistas femininas vão abaixo quando a mulher se deixa levar pelo egocentrismo e,
em vez de ensinar o homem a ser pessoa, transforma-se ela em bicho, transgredindo sua
própria possibilidade de crescer.

35
Quando a mulher se expõe à venda, nada mais faz que jogar o velho truque da
dominação. Isso não libera ninguém. Homens e mulheres ficam dominados por um
terceiro, o poder do bicho que não sabe transcender.

Um programa (de tv, rádio, internete ou diabaquatro) que incite um dos sexos (qualquer
deles) a lutar contra outro, desqualificando-o, menosprezando-o, estereotipando-o,
desejando-o por mero atavismo (qualquer dos outros sexos), é preconceituoso,
intolerante, e deve ser tratado com desprezo por todos nós, homens e mulheres, não
importa qual seja a preferência sexual de cada um.

Amamos a beleza, e por isso devemos defendê-la com unhas e dentes. E a beleza nunca
veio, nem virá, através do silicone, da artificialidade. Abaixo a vulgaridade, abaixo a
exposição do ridículo! Isso não é o que o povo quer, mas é o que é imposto a nós. A
beleza é múltipla, extensiva, mais percebida que divulgada. Não há necessidade de
termos peladas no sofá da hebe, globeleza, tiazinha, feiticeira, isso nunca elevou ninguém.
É bonito e atraente, mas é o culto à escravatura, é o culto à escravidão do corpo, à
obrigação de se cultuar um único tipo de estética, de dominação, e são coisas assim que
nos levam aos delírios dos tapinhas que não doem, mas que destroem a dignidade pessoal
e humana.

Todos desejamos as mesmas coisas, todos temos que ter os mesmos direitos, não os
mesmos defeitos. Não deve um sexo imitar os defeitos de outro qualquer, mas ensinar
suas qualidades. O que faz crescer a relação entre as pessoas é a ajuda mútua, nunca a
expulsão para guetos.

Abaixo a discriminação, o preconceito, a intolerância, a exploração! Não podemos


aceitar que em nossas casas entre essas distorções humanas. Temos que aprender a
desligar a televisão, o rádio, a internete, ou seja lá que esteja invadindo a nossa
intimidade.

Eu digo não à imposição!

FEMININO:

Da frauta sorta e louca, u’a música douda frui.

Olhai os lírios do quintal,


São mais belos quil zaviões

Da prímeira guerra mundiál,

Mais honestos quils torpedos

Da sêgunda guerra mundiál.


Os campos minados

Outrora plantados

À volta de seu jardim

Jazem secos e mortos

Em cacos de pó...

Olhai os lírios de seu jardim,

São mais belos e preciosos

Que qualquer arma de fogo,

Que qualquer arma nuclear.

Olhai, e vede a sede com qu’ingolem

Tod’a vida! Operam transcendências,

Encerram virulências, matam suas carências,

Ciências, competicências, violências.

Clapi Tóquiri Tuque.

Pá. Pá. Pá. Tsssssssssssssssssssssssssssssssssssss...

Vede os lírios,

Eles conhecem toda a sabedoria do mundo.

_____________________
PAUSA______________________________________________

(Intermezzo musical com apresentação instrumental ao vivo, sem que seja


anunciado)

________________________________________________________________
_________

MASCULINO: Gabriel é muito amigo meu. Gostamos de comentar sobre a


condição humana, os meios de transcendência, assuntos assim de praxe, digamos. Um
dia, conversando, observou Gabí a seu companheiro de digressões:
37
GABRIEL: Engraçado... tem cara que passa a vida toda no ar de maior respeito, e
quando acha que tá pra fechar o paletó, ergue a bandeira e confessa todas suas drogas,
traições ideológicas, diabaquatro!

MASCULINO: Olho nos olhos de meu amigo. Estará falando sério? Na


verdade, se for brincadeira, pode-se rir, mas não parece piada. O sorriso de Gabí é quase
um esgar, irônico, sem calor, distante. Então ele está falando de algo terrível, alguma
coisa que não está cabendo.

GABRIEL: Você entende, Felí? O livro que esse cara escreveu é uma
genialidade, segundo contam. Sabe, vou ler hoje à noite, tô sem sono, não quero ver
televisão, você já o leu?

MASCULINO: Claro que já, todo mundo leu, só você, Gabí, ainda não. Como é
que eu sou amigo de um homem tão inteligente e tão desligado do mundo? Gabí espera,
na verdade, os livros adquirirem a pátina, para então ler um exemplar. É o caso de
Homoteo, o Livro do Ateísmo Devocional, escrito em 1980 por um louco chamado
Panjoi M, ou talvez seja esse apenas um pseudônimo, não sei. O Gabí conheceu o cara
que escreveu o livro, mas na época eles estavam brigados, quero dizer, o Gabí brigou
com esse tal de Panjoi, sei lá se o nome era esse, não, era Loi, isso, um tal de Loi
d’Hamppertinni. O Gabi brigou com ele por alguma razão qualquer, e agora o Gabí já se
arrependeu de ter brigado, nem lembra mais porque brigou, mas fica magoado de
lembrar, ele gostava muito do Loi, foram bons amigos, Loi desenhava enqüanto Gabi
fazia o som na guitarra, participaram de algumas loucuras juntos. Mas o livro do Loi,
ninguém levou a sério na época, e só agora o Gabí descobre a preciosidade. Mas não dá
pra falar pra ele, se eu comentar alguma linha, serei cínico, ele vai perceber, é muito
sensível. Que cara, tão inteligente e tão sensível, mas tão desligado, distraído, ... não
percebe que esse livro saiu da moda?

GABRIEL: Olha, Felí, fique à vontade, use o sofá, dorme aí.

MASCULINO: Não dá, tenho que levantar cedo, amanhã, pegar no batente, sabe como
é, você faz o teu horário, eu tenho que marcar ponto. Até amanhã. Pode deixar que eu
passo a tranca e bato a porta. Fica aí, lendo. Depois você me fala o que achou. Quem
sabe eu releio.

GABRIEL: Você já leu este livro?

MASCULINO: Uns tempos atrás, já. Tô indo, chau! Despede da sua mulher por mim,
ela deve estar dormindo. É tarde, já.

GABRIEL: Chau. O pau de macarrão deve estar te esperando.

MASCULINO: A brincadeira é sempre a mesma. Gabriel é estudado, mas não é


bom de chistes, esbarra sempre nos ditados e nos lugares comuns. Academicamente é
um sucesso, mas entre os mortais ninguém o agüenta. Acho que sou o único amigo dele.
______________________(PEQUENA PAUSA REFLEXIVA)________________

MASCULINO (AO Público): Na noite seguinte, fui ver meu amigo querido, o
Gabriel.

MASCULINO( EM DIREÇÃO A GABÍ): E aí, Gabí? Leu?


GABRIEL (distraído, nas nuvens, falando muito devagar...): O quê? Li o quê?

MASCULINO (indignado): Ora...

GABRIEL (falando devagar, mas acelerando pouco a pouco): Ah, sim, desculpe, li. O
livro é curtinho. Me ajeitei entre as almofadas, olhei para o teto, respirei e fui até a
janela. Estava frio, o ar gelado, ventando, tive que fechar o vidro. Sabe, aqui no décimo-
quarto andar faz mais vento que na rua. Você quer ler?

MASCULINO: Bom, o exemplar que Gabí leu, e me emprestou naquele


momento, já cheio de anotações e marcas, começava assim:

LIVRO: No princípio, eram as trevas. E os Deuses mandaram que a Luz se


fizesse, e o caos foi estabelecido para que pudesse o caminho ser criado para a Luz.
Eles chamaram à Luz liberdade, mas para as trevas não deram nome.

Disseram depois para as águas para que se espalhassem por todos os lugares, e
chamaram-nas de sabedoria. Ao elemento árido, chamaram ignorância.

Disseram também que se fizessem os pensamentos. E nasceram filosofias,


ideologias, crenças e superstições. Mandaram que luzisse a verdade na mente de todos
os elementos, a fim de que estes pudessem ser os instrumentos para iluminar os homens
e as mulheres. Deram a consciência ao ser humano, para que essa pudesse destruir as
superstições, crenças, mitos, partidos, dogmas, ideologias e filosofias em tudo que não
fosse verídico, e que os homens e mulheres pudessem separar, com seu discernimento, o
que fosse sábio do que fosse atroz e ignaro. E viram que essas coisas eram todas muito
boas.

Disseram também os Deuses que os homens e mulheres fossem integrados à


natureza e a todo o universo, assim como o universo e a natureza Lhes são integrados.
E dos homens e mulheres integrados à natureza e ao universo criou o macho e a fêmea.

Disseram ainda para que crescessem e se multiplicassem, de acordo com a


ordem universal e natural, não intentando domínios, cuidando dos peixes do mar, das
aves do céu, enfim, de todos os animais, vegetais e minerais que estivessem na Terra.

Disseram também que eis, aí vos tenho dado ervas, árvores, cada qual segundo
sua espécie, para servir de sustento e cura. E a todos os animais da terra, e a todos os
animais das águas, e a todas as aves dos céus, a tudo o que tem vida, disseram os
Deuses que davam o que fosse necessário para terem de que se sustentar e como se
curar. E viram todas as coisas que tinham feito, e que eram muito boas.

E os Deuses elevaram o ser humano para que pudesse ter na sua consciência o
poder de se guiar, ter idéias e evoluir, pois já havia feito dos elementos da natureza e
do universo os homens e as mulheres.

Ora, a princípio os Deuses haviam plantado um paraíso, no qual vivia o homem


e a mulher, com suas percepções. Deram a vida aos seres, e deixou que se movessem
pelo paraíso as forças do bem e do mal.

39
Disse o homem eis cá o osso de meus ossos, a carne de minha carne, de um só
nascemos, a um só voltaremos. Nossa união terá que ser consolidada pelos Deuses,
para que possamos ser reunidos em um só novamente.

É de sapiência geral que a serpente era a mais astuta de toda a animália


surgida na terra. Ela era a representação do demônio, e induziu o homem ao erro e o
quis sobrepujar. Criou a competição entre o homem e a mulher. Quis assim que o ser
humano perdesse a liberdade e se cobrisse de represálias.

Perguntaram os Deuses para o homem: por que motivo havia ele deixado que a
serpente o induzisse a erro? E ele falou que acreditou que venceria sobre a mulher com
a sua força. E a mulher também disse que a serpente a enganara, fazendo-a crer que
poderia vencer o homem com a sua sensualidade.

Disseram os Deuses ao homem que, por essa razão, perderia suas posses, a fim
de aprender sobre a força da mulher. E para que o homem não se revoltasse, e a
mulher não se enchesse de orgulho, os colocou para fora dos limites do paraíso, onde
teriam que trabalhar juntos, homem e mulher, cada qual mediante sua capacidade,
talento, dom, especialidade e força.

MASCULINO: Nesse momento, parei de ler o texto para ver as anotações de


meu sincero e solitário amigo:

GABRIEL: Loi é um gozador. Parece sério, mas é determinista, usou de suas


flácidas comparações para brincar com o leitor. No entanto, ele expõe muito bem os
seus sentimentos. Brincando, minimiza a própria dor. Acho que essa é a dor da
condição humana, imersa num texto de densidade social, além de metafísica. Não,
metafísica não diria, teológica, talvez. Espiritual? Não sei, nunca ouvi falar dele.

MASCULINO: Gabí sabe a história de nosso país, e a conta de maneira tão


veemente que parece ter participado em todos os momentos cruciais. Ô, eu quero as
pessoas felizes, bem alimentadas, amigas entre si, isso!

Voltei a ler o livro, mas vi que as anotações de meu dileto amigo eram mais
intensas à frente. Vi que ele desenhou a vogal feminina dentro de uma circunferência e
escreveu em baixo: agora está ótimo!

Olho para Gabí dormindo nas almofadas, sua esposa do lado, lendo Drummond.
Os filhos dormem. E eu aqui, atrapalhando a cena doméstica. Mas minha esposa agora
está fazendo faculdade à noite, nossos filhos já são grandes.

Lá fora está frio, só estou imaginando. Gostaria de voltar para casa, mas não vou
ter o que fazer, o telefone foi cortado, não dá nem para brincar na internete.

Sem problemas. Voltei ao livro. Eis o que Gabí escreveu:

GABRIEL: Estou radiante! Loi viaja, é muita informação junta!

MASCULINO: Ah, quem viajou foi o Gabí. Vou para casa, passo primeiro no
supermercado, pego alguns pãezinhos, cem gramas de queijo, um leitinho, pó de
chocolate, pau de canela, vai ser ótimo. Vou pedir pra levar o livro. Isso, a esposa dele
está falando comigo, perguntei do livro, ela deixou, vou levar. O Gabí deve estar
roncando, vou aproveitar para passar no supermercado. Nossa, tá vazio, acho que tá
todo mundo em casa, ninguém quer sair. O pãozinho está convidativo, tostadinho,
crocante, vou levar uns vinte, assim já fica pra amanhã de manhã, vou ter que levantar
muito cedo, tenho que estar na faculdade às oito da matina... O queijo tá feio, vou levar
frescal. Nossa, que caro, é melhor muçarela, tá o mesmo preço e tem mais sabor. Ih!
Cadê o dinheiro? Caramba, esqueci, só tenho uns trocados pra amanhã. Vida de
professor não é bolinho... Vou usar o cartão. Isso, a moça do caixa falou que eles
aceitam. Nossa, tá frio aqui fora, o carro não vai pegar de novo, é álcool, pronto, pegou.
Cheguei em casa, ninguém chegou ainda. Tiro minhas calças, visto um minhocão, meias
grossas, tiro meu casaco e minha camisa, coloco uma blusa de flanela e uma de lã,
ponho meu gorro de duende e vou pra debaixo de três cobertores. Não é pra dormir,
estou muito excitado. Quero terminar de ler o Homoteo.

Vou pular essas páginas introdutórias. Parece que aqui está falando de Ester.
Ester, a judia? Será? Não, esta é outra.

LIVRO: Eu, Ester, levei onze anos fazendo sopas noturnas para que Loi
pudesse escrever este livro. Onze anos. Ele escreveu com a rapidez de uma tartaruga,
tão minucioso em cada palavra, fio a pavio, fêz-me ler tudo a cada modificação, muitas
que foram durante esses onze anos, em meio ao nascimento de nossos filhos. Quando eu
li pela última vez, achei que seria o instante certo de ser publicado. Mas não
conseguimos achar editora que bancasse. Então, o Loi ficou desgostoso, e eu o
aconselhei a editar por conta própria. Conversamos com nossos amigos, e todos se
juntaram para editar a obra e distribuí-la. O Loi ficou receoso, não sabe se vai
emplacar, mas quem é que sabe alguma coisa? Resta esperar. Vamos fazer umas noites
de autógrafos em algumas boas livrarias, quem sabe? Não gostei do título, “O
Movimento das Plantas”, vou mandar ele mudar.

MASCULINO: Ora, então era para ser esse o título? Bem fez o Loi de mudar o
nome do livro, ninguém iria comprar. Até que naquele tempo o livrinho teve a sua
aceitação, o pessoal comentava, dizia que era muito louco. Acho que era muito lúcido,
podiam reeditar que hoje faria mais sucesso. Tem mais clima pra essas coisas, hoje em
dia. Acontece que o Loi andou morrendo, segundo dizem.

É, todo mundo bate as canelas, ele andou morrendo. Definhou de tristeza até a
morte. Ester havia sido assaltada pela Aids, repentinamente, e isso o deixou arrasado.

Nos dias que se seguiram à morte da esposa, Loi começou a arquivar tudo o que
já havia feito em sua vida, e catalogou suas obras, acho que ele mesmo planejou o
tempo que teria de vida. Ninguém consegue isso, ninguém sabe sua data, mas o Loi
adquiriu essa... não sei, vou chamar de vidência... com o advento do falecimento de
Ester.

Assim foi. Não conseguiu fazer todo o trabalho pretendido, seu definhamento o
levou ao leito, e de lá ao esquife. Seu filho mais velho está agora terminando de
arquivar e catalogar todos os escritos do pai, publicados e inéditos. Inclusive, um livro
de poemas intitulado “Cânticos Loisísticos”. Os custos de edição e distribuição estão
sendo bancados por Androrval, filho de dona Analinda. Androrval tem um sítio na
internete especial para as suas publicações, www.androrvaleditora.com ( Dizem que dá
azar entrar nesse sítio), e criou uma página só para as obras de Loi.
41
Androrval. Você não conhece, ele cuidou da mãe até ela morrer, nunca se casou,
nem foi de arrumar namorada. Enquanto dona Analinda foi viva, tiveram um
jornalzinho semanal, Correndo os Jornais, que vivia mesmo era dos editais da
Prefeitura, do Fórum e dos Proclamas de Casamento. Ester foi muitas vezes convidada a
escrever uma coluninha nesse periódico, mas nunca aceitou, declinava o convite. Loi,
nem pensar, era tido como pernóstico.

Não sei como o Gabriel não leu Homoteo na época do lançamento, na nossa
turminha só se falava nisso. Era a época da política do corpo, Gabeira voltando pro
Brasil, lembro que a Ester andou fazendo uns retiros espirituais num mosteiro de
beneditinas, e outros num de monjas budistas, vivia meditando.

Lembro que o Edivaldo era o maior folgado, vivia almoçando na casa dos outros
para economizar, nunca trabalhava, ficava só nos expedientes, e ainda conseguiu viajar
pra Europa umas tantas vezes. Eu mesmo nunca consegui ir. Pois é, o Edivaldo Correia
conseguiu uma fita cassete com a gravação de uma palestra, a única, que o Loi deu no
auditório da Faap, ainda nos anos setenta, finalzinho, e vendeu pro Androrval,
mantendo para si alguns direitos. Justo essa publicação foi o que mais rendeu, vendeu
horrores, Edivaldo tá rico, continua nos expedientes só pra garantir o feijão, e a gente
continua dando aulas pros filhos dos outros.

Amanhã vou devolver o livro pro Gabí. Você não conhece o Gabriel, mas são
vários gabriéis, contidos em personalidades que se convergem. Essa unidade de gabriéis
não coincide com o meu amigo, de quem falei há pouco, mas são pedaços de cada qual
dos conhecidos seus. E ele se divide, vários em um só. Tal como seres humanos menos
medíocres devem ser. Vive à beira da esquizofrenia e da psicose, mas nunca chegou a
nem a uma nem a outra. Foi criado entre mulheres, todas o dominando, e um pai que
aparecia em sua vida de manhã, ao sair de casa, e à noite, quando chegava. Aos
domingos, no futebol, que Gabí aprendeu a não gostar. Talvez daí advenha seu
feminismo.

Gostaria de ser como Gabriel, mas tenho minhas aulas para ministrar, amo os
meus alunos e não os deixaria por nada. Quando estou na classe, na frente do quadro-
negro, consigo mostrar minha face anarco-ecologista, poética, pensadora, enfim, a de
um idiota completo que não sabe ganhar dinheiro, mas que é tão firme na convicção que
se alheia do servilhismo. Bom, pelo menos eu consigo ser apto para a sociedade como
um todo.

Gabriel é meu amigo, do peito, mas não consegue desfazer seu ímpeto
revolucionário, é juvenil, mesmo com a idade que já tem. Triunfalmente já entrou nas
casas quaternárias e continua adorável.

Há um pouco de gabriel dentro de mim, é claro, senão como seria possível ser
amigo dele? Muita gente que conheço tem um pouco de gabriel dentro de si, um pouco
de loi, um pouco de ester. Gabí faz parte da história, não a que ensino na escola, mas a
que fica na cabeça das pessoas que a viveram, ou que a ouviram de quem a viveu.

Loi escreveu Homoteo, e isso foi muito importante pra mim, na época. É que,
justamente no período em que andei meio desnorteado, sem saber no que acreditar, ele
veio com essa de ateísmo devocional. Pegou forte, porque eu me via como um ateu
completo, não queria acreditar em nada que não pudesse perceber com meus sentidos
físicos. Eu era marxista, estudei História por causa dessa minha posição ideológica. Na
verdade, eu tinha medo de alguém que pudesse ser mais forte que todos, que fosse
vingativo contra minhas molecagens, e preferia achar que seria mais feliz como ateu. Aí
veio essa de devoção ao todo, e percebi a alegria de ter fé. Não a que eu tinha aprendido
em criança, mas uma fé na transcendência, porque homoteo é a forma de dizer que o
homem pode ser Deus como um dia Deus foi homem. E só pode ser Deus se estiver
junto com a mulher, pois um não será Deus sem o outro. Achei isso muito lúcido. Do
ateísmo devocional cheguei à minha religião atual, da qual sou convicto praticante.

Ester, esposa de Loi, mostrou como ser uma lutadora. Ela acreditou em si
mesma, no que podia fazer para o marido poder vencer a si mesmo, e ambos venceram
as fraquezas cotidianas. Pena a Aids, pegou ela numa época que ninguém sabia ainda
direito o que era e como tratar, era só aquela coisa de a aids mata, a aids mata, a aids
mata... e, é claro, ao saber que era soropositiva, Ester foi drasticamente fulminada pela
síndrome em poucos meses.

Evoé, loas aos nossos heróis vivos, que os mortos não precisam mais. Não
estivemos lá, quando precisaram de nós. Nós precisamos deles, mas os queríamos vivos,
enquanto ainda atrapalhavam o sistema. Gabriel atrapalha, não consegue se adaptar, é
um herói vivo que tem que ser apoiado. Não vou esperar que ele morra para dizer oh,
ele era tão talentoso!, porque aí não poderei conversar com ele, nem ele comigo. Não
cresceremos mais um com o outro. Acho que isso é a verdadeira amizade, um crescer
junto.

Com licença, preciso ir pra sala de aula, meus alunos já estão lá. Se quiser, pode
ficar por aí, zanzando. A gente se vê. Até.

________________________________________________

Caraguatatuba. Outono de 2001.

43
Monólogo a 4 Vozes
Caraguatatuba, outono de 2001.

Personagens:

1. Tiago

2. Ernesto

3. Celso

4. Gabriel

45
THIAGO: Fala, Ernesto, qual a sua história? Todo mundo tem uma, qual a sua?

ERNESTO: Minha? Eu não tenho história, meus dias estão esquecidos, não me lembro
de nada. Ainda mais agora, acabei de levantar faz duas horas e ainda tô zoréu...

THIAGO: Quantos anos cê tem?

ERNESTO: tenho 19. Já tô vivo há bastante tempo. Nasci aos 15, percorri uma longa
estrada, sei lá, tamos aí na vida, mas eu sou muito saudosista. Tenho saudades de um
tempo que não vivi, que existiu antes de eu nascer.
THIAGO: eu tenho 42, a idade da razão, e acho que tô adolescendo. Não consegui
ainda amadurecer, estou adolescendo. ... Não, não!!! Eu um dia amadureci e envelheci,
agora tô readolescendo.
CELSO: é isso, eu também tô readolescendo, é isso, tenho 60, sessenta anos de vida
muito bem vivida, muito rock e de tudo ao meu amor serei atento, espalhar e derramar
meu canto ao fim de quem ama, que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja
infinito enquanto dure, como dizia Vinicius de Moraes...
Nunca gostei de Vinicius, mas ele passou pela minha vida e só consegui entender
Vinicius de Morais tocando com Toquinho quando ele cantou num disco e eu ouvi
deitado na rede, uma rede que foi instalada no quarto de um amigo, esse amigo era
muito louco, tinha um quarto cheio de coisa pendurada nas paredes, e eu deitei naquela
rede do quarto dele que ficava no segundo andar, o olhar ia direto pra janela, e eu via a
luz que entrava pela janela, e dava pra ver a parte de cima da árvore, os passarinhos, o
céu azul, as nuvens brancas, e na vitrola rolava o som de Toquinho e Vinícius, imagina
só, eu que tinha passado por San Francisco, Califórnia, em 1968, depois de ter morado
em Londres por dois anos, rodado por algumas comunidades hippies, fiz contato com
muita gente, mulheres tão lindas que vocês nunca viram, nunca viveram, eu tinha já
meus trinta anos, talvez, trinta e pouco, tava na casa desse amigo, eu tinha chegado lá e
ele estava ouvindo já o disco.
Me convidou para que deitasse na rede, enqüanto ele trabalhava numas correntinhas, eu
deitei e só então consegui entender Vinícius e toquinho. Foi uma grande descoberta, eu,
um roqueiro convicto, precisei dessa rede para entender Vinicius e Toquinho, sacumé, a
rede, o sol, a árvore, os passarinhos...
Foi assim também que consegui entender um dia o Chico, quando estava em Maceió e
me vi numa roda de samba, cantando até as 4 ou cinco da manhã, então entendi o que
tinha se passado no Brasil enquanto fiquei fora, entre os ingleses, holandeses,
estadunidenses, chineses, indianos, eu tinha passado meus anos aprendendo a tocar sitar,
guitarra, e visto o pessoal tomar alguns ácidos, que às vezes, até hoje, de repente dão
aquele barato, não sei daonde sai, cê vê os caras em qualquer lugar, e de repente vem o
barato, não sei, parece que nunca mais vão se livrar disso.
Mas tudo bem, se vem a gente curte, tem que curtir, senão a gente escorrega e sangra,
sangra tristezas. Eu adorava Maria Bethânia, mas ela me deixava tão triste... Sobrevivi a
uma vida cheia de mortes, loucura, sangue e desnorteio, tô aqui sozinho. E de repente,
saí de mim mesmo, decidi que sessenta anos não é nada, e estou revendo minhas metas.
Não pensei que fosse chegar até aqui, se bem se sempre achei que fosse ter uma vida
longa, mas achava que aos 60 estaria ainda com meus longos cabelos, e não tou, tô
assim meio careca e pintando de azul o que ainda me resta. Mas o que me resta é meu,
faço o que quero com ele, deixo ensebado, tudo bem, não tem quem me segure, tô
ouvindo aí a molecada tocar guitarra e acho legal, tô ainda pensando em fazer uma
faculdadezinha de música, sacumé, estudar música, tentar entender melhor certas coisas,
e eu tô com muita vontade, muita vontade mesmo de ... sei lá, tô readolescendo, me
deixa agora um pouco sozinho que eu preciso chorar.
(...)
THIAGO: quando eu tinha a idade do Ernesto, eu achava que não ia chegar nos trinta.
Vivia resfriado, gripado, com dores de cabeça, era tão fraquinho que mal conseguia
apertar as cordas de minha guitarra, demorei quatro anos para aprender o que qualquer
moleque consegue aprender em um.
Eu dizia que o carcará me comia enquanto eu tava vivo, e que não ia conseguir chegar
em lugar nenhum, não tinha tempo para nada, compunha meus poemas feito louco,
tinha que fazer alguma coisa pra posteridade, tinha que ser. Aí, acontece que continuei
vivendo, casei, fui ficando mais fortinho, tive filhos, fui envelhecendo e tô com 42 anos.
Sei lá, estou pensando em alguma forma de começar outra coisa.
ERNESTO: Começar? Readolescer é recomeçar.
THIAGO: Não, cara, readolescer é começar outra coisa, é começar de onde se está,
como se novamente fosse um adolescente, mas um adolescente de experiência, com
olhos novos.
Por que é que ninguém publica as minhas cartas? Puxa vida!!! Eu vivo escrevendo carta
pra tudo quanto é jornal e revista, e ninguém, nenhuma dessas publicações põe pro
público o que eu quero falar!!! Já mandei um monte de cartas pro jornal O Estado de
São Paulo, e eles nunca publicaram nenhuma!!! Já mandei carta pro Suplemento
Feminino, e eles nem me deram um alô!!! Já mandei carta pro Jornal do Advogado, e
nada!!!!

Já mandei carta pra Folha de São Paulo, e nada!!! Ninguém publica minhas cartas!!! Aí
eu mando minhas cópias de originais para livros e não tem uma só, uma só maldita
editora que se digne a publicar meus livros!!! A Sextante foi educada, devolveu o
original, teceu considerações e desejou boa sorte. Foi, aliás, até agora, a mais educada.
Geralmente nem respondem, ou mandam uma cartinha padrão, nem sempre de bem
traçadas linhas.
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Será que ninguém me quer? Será que o que escrevo é tão ruim assim? Será que a
qualidade do que faço não é o que querem? E o que querem?

Tô cheio!!! Não agüento mais!!! Olha, pode falar que eu sô paranóico, tudo bem, mas
parece que tem uma rede que não deixa minhas coisas irem pro ar!!! Lembra daquela
peça de teatro? Um grito parado no ar? É assim, meu grito não passa de minha boca, e
fica ali, na minha frente, no alto, meu próprio grito perguntando pra mim aonde é que
ele tem que ir, e eu não sei, não sei o que responder pro meu grito. Meu grito pergunta
afogando-se em mágoas: por quê? Por que ninguém me acata? Por que eu fico aqui
parado, como se tivesse uma teia que me segurasse????

Cara, eu vou arrebentar com essa rede, vou estraçalhar essa teia!!! A questão é a
seguinte: como quebrar a inveja?, o ódio?, a repressão?, a intromissão?, o féretro de
vampiros???? Como??? Se eu quiser ser violento, se eu quiser usar a minha espada, o
meu machado, o meu martelo, a minha catapulta, só vou fortalecer essa teia, essa rede
de mentiras.

Existe uma rede de mentiras que propaga apenas o que não é perigoso para o sistema.
Eu quero sair dessa ilusão, o véu que nos anima é o mesmo que nos queima. Podemos
ser protegidos, sim, mas pelo que é certo! O que é certo está muito além dessa rede
pontiaguda, maléfica, dolorosa, que não permite o acesso ao que existe mais e mais alto.
Eu quero beijar o céu, mas não como Jimi Hendrix, porque eu não vou pedir desculpas,
peço licença mas vou entrando, não vou nem limpar os pés, vou entrar pedindo licença e
vou beijar o céu.!!!

LUZ! EU QUERO LUZ!!! EU QUERO BEIJAR O CÉU!!! EU QUERO


ULTRAPASSAR A REDE DE MENTIRAS E ABRIR ESPAÇO PRA DEIXAR A
LUZ ENTRAR!!!

(...) Luz! Eu quero luz. Eu não vou pedir licença, nem vou pedir desculpas, porque não
há desculpas a serem pedidas. Desde que eu nasci, nenhum desgraçado me disse vai ser
gôche na vida!!! Não sou esquerdo nem direito, não nasci pra ser Carlos nem Pessoa, tô
aqui chutando as canelas e caindo no escuro, tô subindo e descendo, parece que tem
uma parede lá, em cima, que não deixa a gente subir mais. Parece que tem um limite,
uma redoma que não deixa que se passe além...

Não agüento mais tocar guitarra, eu tinha várias, vendi tudo a preço de nada, vendi
meus violões, inclusive os meus instrumentos adaptados, inventados, vendi tudo a preço
de nada, e não fiz mais música.

A minha voz se perdeu, ficou engasgada, não tive mais ânimo de cantar. Muito menos
de poetar. Nunca mais escrevi poemas, não conseguia mais escrever sequer uma
palavra.
Não escrevi mais nada. Não consegui mais escrever nada. Tocar nada. Não pintei mais
quadro algum, não desenhei mais nada! Não toquei mais gaita, nem flauta, nem nada!!!

Fiquei mudo.

Me enterrei no trabalho cotidiano, me enterrei no levantar todos os dias esquecendo de


mim mesmo. Morri.

A faculdade ficou no passado. Os elogios pela genialidade ficaram no passado. As


pessoas diziam como eu era tão inteligente!!! Que fazia atrás de um balcão??? Eu me
escondi atrás de um balcão, atrás de um jornal, atrás de políticos que não sabiam
responder direito, atrás de gente que precisava de uma voz para enganar os tolos, e
ganhei dinheiro com essas coisas, mas não conseguia mais saber quem eu mesmo era.

Não sabia quem eu era, o que eu gostava, pra onde devia seguir. E assim fui seguindo,
morrendo e morrendo, até que minha vida se negou a continuar morrendo, e se insurgiu
falando: Pára, pára!!!

(...) (respira profundamente, algumas vezes)

Então eu parei.

Parei de correr atrás do que não sabia o que era.

Perguntei pra mim mesmo quem eu era, o que eu queria realmente, o que eu gostava
realmente, qual que era o meu eu verdadeiro...

Descobri que não sabia nada de mim. Passara todos os anos escondendo a mim mesmo
de todas as coisas e pessoas, atrás de um sorriso quando eu queria chorar, e sabia que o
sorriso era verdadeiro, e o choro também. Eu estou muito triste, mas sou mais feliz hoje.
É muito difícil saber quando se tem uma história verdadeira ou inventada. Estou
descobrindo a minha verdadeira história. O que sou hoje é o retrato de tudo aquilo que
já fui e que já fiz, de todas as decisões que já tomei e de todas as escolhas que fiz em
minha vida, e das mortes pelas quais escapei.

(...)

Eu tinha 19 anos. Achava que não ia chegar nos 30. Então, como pensar em meu futuro?
Tinha que pensar no já, no agora, não conseguia estudar. A vida era para ser vivida com
toda a intensidade, porque eu não tinha planos para o futuro. Não tinha idéia de casar,
ter filhos, apenas a de que não ia durar. Achava que tudo ia logo acabar para mim, tinha
que deixar alguma coisa para a posteridade.

Então eu tocava e gravava, gravava em fitas um monte de coisa, escrevia pra caramba e
falava com um monte de gente. Adorava Aldous Huxley, As Portas da Percepção, O
Macaco e a Essência, coisas assim. Lia muita ficção científica!!! Já gostava de
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Hermmann Hesse, Sidharta, Demian, O Lobo da Estepe, adorava Jimi Hendrix, Janis
Joplin, Steppenwolf, detestava Pablo Neruda e amava Ariano Suassuna, tinha paixão
pelos versos de Rimbaud e de Castro Alves. E sobrevivi, inexplicavelmente sobrevivi.

Lembro que naqueles dias eu era um roqueiro inveterado, detestava Elis Regina, e
aquela turma da emepebê!!! Achava que eram um bando de chatos!!! Na verdade, eu
fugia da intelectualidade e me refugiava no rock. Chegava a ter simpatia pelo público do
Gil, parecia um bando de malucos, e adorava Jorge Mautner, aquela história do
Fragmentos de Sabonete era pra ter muita coragem. E os shows dele eram um negócio
muito simples, era um rock brasileiro mesmo, de verdade.

Amava Maria Bethânia pela voz que ela tinha, ou talvez pelo que ela conseguia fazer
com a sua voz. Cheguei a ter todos os discos possíveis dela, tentava ler Mautner,
gostava de ouvir o violão ou a guitarra de Nelson Jacobina, ele usava conga no pé e um
cabelinho de officce-boy, acompanhando um grande gênio, sem saber que ele também
carregava nas suas mãos e dedos um toque genial.

Pois é, eu me distanciava o quando podia da inteligência, coloquei lentes de contato e


cheguei a me regozijar porque consegui passar um ano inteiro sem ler nem sequer um
livro!!! Uau! Demais!, cara... Eu estava sendo um roqueiro de verdade, intelectualidade
nunca mais!!! Chega de ser chamado de filósofo, que era o que mais me chamavam,
chega de ser considerado intelectual, eu agora era gente burra, igual os outros, e
VIBRAVA quando alguém dizia que eu era um asno, até que um dia, eu tava lá sentado
no chão, puxa, tava sentado no chão da estação São Bento do metrô, eu tava lá no meio
de uma porção de roqueiros, esperando começar o show do Rock da Mortalha, puxa, eu
queria ser visceral, instintivo, corpóreo, dançar feito um louco, não importa para que
lado, eu fechava os olhos e dançava, dane-se quem estiver do lado, na frente, atrás,
queria me entregar ao som, às cores que via, à loucura que droga nenhuma jamais
poderia me dar, uma loucura de saber, uma loucura de tanta vida que parecia loucura
praquele monte de gente com cabeça cheia de erva, de pó, de líqüidos e comprimidos...

Eu vivia com um espelhinho, pra ver se meus olhos não estavam vermelhos por causa
da lente de contato, e quando estavam eu colocava colírio, e o pessoal dizia assim, não
tá dando bandeira, tudo bem, achando que eu estava com olhos vermelhos de erva, eu
não queria usar óculos escuro, estava demais!, assim.

Eu detestava Elis Regina, já falei isso, porque ela representava pra mim o símbolo de
uma turma intelectualizada que queria dominar o planeta, que nem sabia o que estava
acontecendo de verdade, eu estava querendo mostrar pra todo mundo que existia uma
energia maior que a gasolina, que a gente podia aproveitar os ventos, o sol, a
eletricidade podia vir de muito lugar, não tinha porque sujar o ar que respiramos, eu
vivia lendo revistas de rock, adorava uma coleção que se chamava rock a história e a
glória, tinha a Ana Maria Bahiana, eu adorava ela, agora ela vive em São Francisco e
nem sei se ainda escreve sobre rock, mas acontece que naquele dia, eu estava ali sentado
na Estação São Bento do metrô, sentado no chão, no meio de uma porção de asnos que
nem eu, e assim no meio de uma conversa em que eu animadamente falava sobre
alguma coisa, uma roqueirinha de sopetão, de repente, assim como quem acha que tá
abafando, falou com muita alegria para mim:

(Respira)(...Dá uma pausa, faz o público querer ficar com vontade de saber o que a
roqueirinha falou, e dispara:)

- VOCÊ É UM INTELECTUAL DO ROCK!

(...)

(Respira profundamente, mantém no ar a tensão de algo que vai explodir de novo, faz
menção que VAI EXPLODIR!!!!, mas apenas diz:)

Aí, pirei. ... É, aí pirei, porque eu estava o tempo todo fugindo disso, e nem notara que
minha intelectualidade continuava, eu era um intelectual sim. Fiquei louco da vida, e
naquele dia dancei bem na fila do gargarejo, enquanto um guitarrista com cara de
morto-vivo tocava um instrumento todo desajeitado, uns pedais pretos, o cara era muito
bom na guitarra, e tinha um baixista loiro, cabeludo e maguérrimo, parecia que ia
quebrar no meio. E um baterista.

Anos se passaram e eu tentava gostar da emepebê, mas o público era muito estranho, eu
não conseguia me encaixar, a maioria se dizia politizado, mas na hora agá era um bando
de covardes, e corriam pra cerveja e pra pinga, era um bando de deprimidos com
vontade de ficar dandando que nem dendêm, mas não tinham peito pra isso, queriam
ficar muito odara, mas não sabiam que podiam, a maioria era burguesona, dizia que não
era, mas no fundo queriam mesmo era ser do poder. E olha aí, tá cheio deles no poder
hoje, mentiram pra gente, falaram que queriam mudar o poder, e tão aí, com os mesmos
vícios e falcatruas, mandando bilhetinhos para os carcarás!!!, mandando bilhetinhos de
apoio aos carcarás!!!

Descobri que mesmo no meio dos roqueiros a maioria não tinha aquela louca amplidão,
apenas a bebedeira e a fuga, o sambinha descompromissado, as letras, ah, as letras...

Para que música?, se a letra já diz tudo? Ah, eu quero prestar atenção nas letras, se a
letra é boa, me ganhou, me interessa é a letra... Isso é papo de intelectualóide, que não
tem coragem de viver a sensibilidade da música, ... Olha, até hoje, quando ouço música,
ainda que sejam canções, presto atenção primeiro na música, a letra vem com o tempo.
Eu preciso ler a letra como poema, ou ouvi-la como poema, então ela virá aos meus
ouvidos como se fosse música!!!

Não tinha como agüentar a roda de cavaquinho-violão-e-atabaque, todo-mundo-


cantando-junto, isso é coisa de boiada, nunca gostei nem gosto até hoje dessa coisa de
todo-mundo-dando-a-mão, todo-mundo-com-as-mão-pra-cima, todo-mundo-isso, todo-
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mundo-diabaquatro, isso é treino pra ser boi, pra ser massa de manobra, eu não sou
massa, não sou massa de manobra, eu sou um indivíduo pensante, não dá!!! Isso é pra
treinar a massa a fazer sinal de Ave-César-Os-Que-Vão-Morrer-Te-Saúdam. Isso é
como o flautista de Hamelin, que levou todos os ratos a dançar juntos, a mesma música,
e assim fazer todos pularem no rio, todos se matarem pela ordem do flautista.

CHEGA DE TCHAM! CHEGA DE FÃNQUI!!! CADA UM TEM QUE RESPEITAR


A SUA PRÓPRIA MANEIRA DE SENTIR AS COISAS, TEM QUE APRENDER A
SE RESPEITAR! Se eu não aprender a respeitar a mim mesmo, sempre vou acabar
desrespeitando os outros, vou viver a pedir desculpas quando não preciso pedir
desculpas, bastaria pedir licença e ir entrando.

Bate na porta e entra, não precisa esperar que alguém responda. Pode ser que não tenha
ninguém na sala, e você vai ficar o resto da vida esperando que alguém responda, e você
vai envelhecer e morrer na porta.

Vai morrer na porta, sem nunca ter tipo oportunidade de entrar e sentar na cadeira
reservada para você, na sala cheia de quadros, livros, uma grande mesa, uma cadeira
giratória, almofadas pelo chão, grandes janelas que dão para o mar, para as montanhas,
e que deixam passar o ar, os ventos, e que têm vidros que podem ser fechados e abertos,
para as frissões e para se proteger.

Bom, mas eu tentei, tentei entender aquela turminha da emepebê, achando que devia, fui
me imiscuindo naquilo que achava odiável, porque pensava que talvez fosse mais
correto, e descobri então um livro chamado A Morte Organizada, de Luís Carlos
Maciel. Descobri que podia ser visceral e instintivo ao tempo em que poderia também
ser um intelectual. Poderia usar cabelo comprido, barba, livro na mão, na cabeça um
solo de guitarra e uma orquestra sinfônica, um bloquinho no bolso pra poder anotar as
minhas idéias, poderia perfeitamente deixar fluir, ser um intelectual sem deixar de ser
poeta apaixonado... ser visceral, corpóreo, e também intuitivo, espiritual, tudo-ao-
mesmo-tempo-aqui-e-agora!!! (...)

(respira profundamente, não tenha pressa, deixa o silêncio fazer a tensão, dane-se o
público, dane-se todos e tudo, agora a deixa vai ser tua, vai ser a tua fraqueza que vai
falar, e você vai ser forte e mostrar pra todo mundo, para o público, para os outros
atores, para o diretor, para todo mundo, que a fraqueza é a tua força, e você vai
conseguir ajudar todo mundo a ser mais forte, a deixar fluir seus dons. E agora,
aguarda a força interior e expande no ar:)

Visceral, corpóreo, e também intuitivo, espiritual, tudo-ao-mesmo-tempo-aqui-e-


agora!!! Tive amigos que me trouxeram a consciência de ser inteligente sem deixar de
ser contestatório, panfletário, marginal!!! Cada um com seus trabalhos, expedientes,
sensibilidades, cultura e saber deixar levar.

(Respire, você merece. ... Agora, continua:)


De repente, vi que tinha chegado aos 30, com muito mais saúde que aos 19. E cheguei
também aos 40, passei pela idade da razão, e estou aqui. ... Passei pelas fases mais
extremas, fui radical em diversas idéias, e passei incólume por todas elas!!! Bom,
incólume também não, tô aqui e ali meio chamuscado, mas tô inteiro!!!

Eu sei, lembro de uma turma que dizia que tomava pedra fazia dez anos e estavam
inteiros. Eu acreditei neles, mas eles mentiam. Mentiam descaradamente. Primeiro,
porque não tomavam pedra havia dez anos, e segundo porque não estavam inteiros.
Pedra era uma espécie de ácido lisérgico de pobre, não tinha medida. O lsd era um
negócio que tinha medida. Pegava forte e deixou muito cara doidão até hoje. Outros,
parece que nem usaram um dia essa coisa, são é muito medrosos, covardes, e ficam aí
mandando os outros se corromperem pra eles não ficarem sozinhos.

Perdi muita gente por terem usado essas coisas. Um saiu do cotidiano e ninguém mais
aguenta, outro morreu, outro virou um executivo frustrado e o outro ficou tão canalha
que vive da desgraça dos outros.

Teve muita gente que conheci que morreu por aí, sei lá, câncer, tuberculose, aids,
política, ideologia, drogas, álcool, cigarro, essas coisas....

E eu não. Tô aqui. Briguei que nem doido, caí de escada várias vezes, fui vítima de
acidentes mortais, e no entanto tô aqui como você pode ver, inteiro!!! Inteiro, cara !!!

Tirei chapa do pulmão e ele tá limpinho! Fiz exame da próstata, minha mulher falou que
ficou orgulhosa por isso, de eu ter tido coragem de fazer esse exame.

É, porque é muito constrangedor, o cara enfiando o dedo, você sabe, tá de luva, mas é
meio maluco, dá vontade de você mandar o cara pro raio do inferno, mas você tá lá,
firme, fazendo exame, e tudo bem!! !

Entrei na fila pra fazer exame de diabetes, e tá tudo bem!!! É, tem que tomar cuidado,
mas ainda tá na linha de segurança. Fiz exame de colesterol,... bom, esse pegou um
pouquinho, sacumé, mandaram eu andar mais. Comecei a andar mais. Ando a pé, de
bicicleta, faço até umas musculaçãozinha caseira, mas nada muito metódico, nunca
consegui ser metódico.

Bom, metódico eu sou e muito!!! Mas tenho métodos heterodoxos, muito heterodoxos.
Sabe o que é heterodoxo?

Hétero é o que não é igualitário. Então, não sou ortodoxo. Orto é o que está do lado, do
mesmo lado. Então, quem é homossexual é ortodoxamente sexual, ou seja, tem relações
sexuais com outra pessoa que é igual a ela. O heterossexual é o que não é igualitário
sexualmente, pois tem sexo com pessoa que não é igual a ela. Então, o heterodoxo é o
que não é ortodoxo.

53
Bom, eu sou heterodoxo também no que se refere aos métodos, não sou utilizador de
métodos comuns, invento os meus. Tenho meu próprio método de escrever, de digitar,
de pegar o lápis, de segurar o garfo e a faca, de segurar hashí... Sabe o que é hashí?, né?,
aqueles palitinhos que a gente usa pra comer comida chinesa...

Teve um tempo em que todo mundo usava bolsa a tiracolo, e eu usava uma enorme, de
couro, na qual sempre tinha algum livro que eu estava lendo, uns exemplares de meus
livros, que eu mesmo editava, um par de hashis, tabaco, cachimbo, fósforo, essas
porcarias que hoje luto para não voltar.

É assim, o vício aparece inicialmente tão lindo, maravilhoso, em caixinhas de prata


lavrada, branquinha e preciosa, e é aquela coisa de você aprender a dechavar, a arte de
enrolar, você passa a viver enrolando papel pra isso e pra aquilo, relaxando e relaxando,
fumando isso e aquilo, as pessoas vêm e dizem que parece um ritual, acham lindo, mas
você vai aprendendo que não é lindo, vai virar uma pasmaceira!!! Teve uma vez que
fumamos casca seca de banana, quase morremos. Outra vez foi aquela fumaceira dentro
de um carro fechado, a Maria Joana empestiava nossos cabelos com seu perfume, era
embriagador, muito embriagador.

E olha só, a gente acaba dando nome de mulher pra essas coisas, e por aí vai, tudo
começando com uma cara de donzela e terminando com cheiro de estrume!!! Como é
que estou aqui???

Tive cárie, dor de dente, e vivo tendo dores do nervo trigêmeo, dores de cabeça, dores
de nevralgia.

Ah, sim, uma vez quebrei meu cotovelo! É, eu achei que poderia voar, e dei alguns
saltos pela escada, acho que quase conscientemente eu me atirei escada abaixo, queria
voar, estava doido para voar!!! Por alguns segundos de prazer, fiquei meses com um
gesso envolvendo meu cotovelo, fiz duas operações, a segunda pra colocar o osso do
braço no lugar.

Não valeu a pena, eu não voei, fiquei com trauma de vôo pessoal para sempre, nunca
mais consegui voar!!!

Bom, eu tinha mesmo a mania de subir e descer escadas feito um louco, atravessando
degraus como se fossem obstáculos, ou descendo os degraus como se minhas pernas
devessem seguir compassos alternados, ritmados, sempre com música na cabeça.

Até hoje tenho música na cabeça. Vivo o tempo todo com música na cabeça, gosto
muito de ouvir música para poder variar o que toca na minha cabeça. Enquanto tem
música, tem também palavras, textos, frases, mas é como se cada formato estivesse num
lugar da cabeça.

Penso que o teatro poderia ser assim. Concebo as minhas peças de teatro como se
fossem a minha própria cabeça.
Tem um consciente, que é o centro das atenções, mas diversas vezes esse consciente se
divide em dois, três, quatro, todos ao mesmo tempo, pensando cada qual uma coisa
diferente, um é música, outro é poesia, outro é discurso, outro é uma dança, e não são
necessariamente partes de um mesmo contexto. Fora isso, tem o inconsciente, querendo
entrar no consciente, tentando abrir espaço, tentando entrar, e é só um dos pensamentos
começar a enfraquecer que um dos que vêm do inconsciente se aloja no consciente.

É como se tivesse um monte de atores e atrizes na coxia, esperando alguém sair do


palco, ou de um dos palcos, para poder entrar e fazer a sua apresentação. È assim, tudo
ao mesmo tempo!!!

Então, de repente, de uma hora para outra, tudo se esvai. Os palcos ficam vazios, o
inconsciente trabalha sozinho, preenche os espaços do consciente, mas sem se mostrar.
É quando eu perco a inspiração, descanso, durmo, fico deprimido, triste sem saber
porque.

CELSO: Cara, cê tá fugindo de alguma coisa, tá tentando deixar de pensar em alguma


coisa, não deixa que o inconsciente preencha o palco, te dói ver o inconsciente,
reconhecer o que tá na coxia, você quer ser amado e acha que não merece ser amado.
Você faz tanta coisa porque você quer ser amado, e acha que o que você é, é muito
pouco.

TIAGO: Falta eu gostar de mim. É isso?

GABRIEL: Preciso contar uma coisa. Eu também, quando tinha vinte anos, não achava
que chegaria aos trinta... estudar pra quê? Carreira pra quê? E Deus me deu e tem me
dado o presente da vida! A vida é um presente que nos é dado, você não precisa pensar
em fazer uma escalada, uma carreira. Não existe carreira profissional, existe a vida, isso
é mais importante. Não há nada mais importante que eu saber que sou pai. Não importa
se meus filhos saíram de meu pênis ou não, isso qualquer animal faz. O meu cachorro
sabe fazer isso. Falo que o pai que sou é o pai que o Ernesto pode ser, mesmo que ele
não consiga nunca imitar o meu cachorro. Pai é mais que isso, é algo que dura uma vida
toda, quer dizer, começa quando o filho passa a ser teu, não como tua posse, não como
tua coisa, mas de tua responsabilidade. E você começa a ver que o filho é um pouco
você, embora ele não seja você. O filho é um pouco a tua vida, mas não é a tua vida, ele
tem a vida dele, a vontade dele, o modo de ser dele.

Preciso te contar uma coisa, Ernesto. Eu tinha a sua idade quando ouvi dizer que um
monte de maçã tinha caído na cabeça de muita gente, até que um dia caiu na cabeça do
Newton, e ele disse: - Ah, a gravidade! Quantas palavras foram ditas por todas aquelas
pessoas que levaram maçã na cabeça, e Nilton foi o primeiro a dizer ah, a gravidade!!!...

(ERNESTO VAI INTERROMPER aqui ABRUPTAMENTE O GABRIEL E AMBOS


ESTARÃO FALANDO AO MESMO TEMPO, COMO SE O PALCO SE BIPARTISSE, E
55
FOSSEM AGORA DOIS PALCOS, AMBOS FUNCIONANDO AO MESMO TEMPO,
COM O MESMO VALOR DE ATENÇÃO. Cada pessoa do público vai ter que escolher
o discurso que vai ouvir, impossível prestar atenção nos dois. MAS AMBOS
COMEÇAM E TERMINAM, CADA UM DOS SEIS MÓDULOS SEGUINTES, JUNTOS)

(MÓDULO 1)
ERNESTO: Pô, cara, deixa de me encher a GABRIEL: É, Ernesto, você vai ter que aprender
cabeça, você tá ficando muito sem entender nada, muita coisa, mas coloca na sua cabeça essas
você acha que tá sabendo muito, mas você não coisas que hoje estamos te passando, a nossa
sabe nada, tá aprendendo agora! Sabe, cara, eu tô experiência, que só nós podemos falar, porque
com 19 anos e sei o que passa por aí, em volta de nós passamos isso e você não precisa bater na
mim, não tô me matando, não, o teu tempo era mesma parede, você não precisa mais descobrir a
outro, o meu é este. Eu quero que você se entenda gravidade, talvez você um dia possa dizer que a
com você mesmo, porque eu não estou aqui a fim gravidade não existe, e que o que existe é algo
de ouvir o que você tem a dizer. que se chama anti-anti-gravidade.
Acho que está tudo muito errado, eu vou pintar a
Eu tenho muita esperança nessa
minha cara e vou berrar contra esse poder que aí
juventude que hoje está aí, acho que alguma coisa
está, porque não me interessa se foi parte da tua
está acontecendo. Não é a questão de se mudar
geração. Eles estão errados, eles têm que sair de
tudo, mas de se saber o que mudar. Você está
onde estão, eles têm que sair daí.
certo, apenas não está sabendo como dizer.

(MÓDULO 2)

Eu quero colocar uma nova idéia de poder, uma Eu quero colocar uma nova idéia de
nova idéia de homem, uma nova idéia de gente… poder, uma nova idéia de homem, uma nova idéia
Eu não quero ouvir Elis Regina, nem Caetano de gente. Um dia ouvi o Cazuza e achei que era a
Veloso, nem Gilberto Gil, são gente que eu não nova geração, ouvi o Renato Russo e achei que
entendo, eu conheço é o Jota Quest, eu conheço é era um novo poeta. Mas eu acho que não consigo
a internete, eu gosto de computador, eu sei o que entender qual é a do mata-burro, penso que
é a noitada, eu posso escolher entre o clube, a poderia passar o tempo vivendo atrás de um
buate, a igreja, eu quero usar maletinha preta, eu computador e trabalhar na internete, talvez seja a
quero dirigir um carro elétrico, eu não acho que a maneira de tentar um mundo novo, um novo
guitarra seja sinal de revolução, eu não quero pensamento.
fazer a revolução, eu acho que o Che Guevara foi
Você não sabe quem foi Che Guevara, você usa
um cabeludo muito bonito, tenho até uma camisa
ele no peito e só acha que é um novo músico.
com ele.

(MÓDULO 3)
Olha, não me interessa saber se a aids mata ou se Olha, eu não sei o que você acha sobre as novas
a droga entorpece meus sentidos, eu já sei disso relações do ser humano, mas eu vi uma revolução
tudo, você está repetindo o que eu venho ouvindo nascer e morrer, eu tive meus sentidos
desde criança, não agüento mais, estou pensando entorpecidos por uma paulada que veio de um
até em mudar pra uma casa do campo, levar golpe repressor.
minha antena de tevê, meu computador, minha
Um dia alguém cantou que queria ir para
linha telefônica, trabalhar através das
uma casa no campo, levar seus discos, seus livros,
oportunidades que a internete dá, não preciso
onde pudesse ficar com os amigos, e nada mais. E
ficar na cidade.
a gente foi pro campo. Teve alguns que estão lá
Também não importa, não é questão de ficar na até hoje, outros voltaram pra cidade, outros estão
cidade, não é questão de ir pro mato, onde eu no meio do caminho, alguns morreram ou
estou é onde está a minha vida, é onde está a enlouqueceram.
cidade e o mato, eu levo para onde quiser o
mundo, porque eu sou o centro do mundo. Eu aqui, nós aqui, agora, conversando, trocando
idéias, e queremos entender o que é necessário
para que cada um compreenda o outro.

(MÓDULO 4) Então, compreender um ao outro Então, uma coisa é o meu contexto, outra o seu, e
não simplesmente um ouvir o outro, mas é se nós temos que encaixar os nossos contextos, que
colocar no lugar. Eu tenho que me colocar onde fazem parte cada um de sua própria historicidade,
você está, e você tem que se colocar onde eu para que sejam um só contexto. Só assim
estou. Compreender não é entender. Compreender estaremos entendendo melhor um ao outro.
é aprender juntos, com o mesmo objetivo
Nós não somos o centro do mundo,
Nós sempre fomos, você sempre foi o centro do ninguém é o centro do mundo, juntos fazemos o
mundo, o mundo só existe enquanto você existe, mundo, mas cada um de nós é um ser especial,
quando você morre leva o mundo junto. um ser individual, e nem sempre sabemos disso.
Cada um de nós é um mundo, é o centro de um Acho que dificilmente sabemos.
mundo, e o planeta é a união de nossos mundos.
Não tem como dizer que somos um mundo, um
Os mundos que prestam se unem com os que
centro de um mundo, nós somos, cada um, a
prestam, e os que prestam menos com os que
partícula de um todo, e fazemos a história através
prestam menos, até que o último, mais
da união e participação de cada um de nós. Isso é
imprestável, se arrebenta contra os tão
a história, a história pessoal de cada um se
imprestáveis quanto ele.
entrelaçando na grande teia que é a história das
civilizações.

(MÓDULO 5)
Eu tenho história, sim, tenho 19 anos mas tenho Você falou que não tem história, mas você tem
história pra contar, eu tive infância, aprendi história, sim, são 19 anos de vida, muita criança
durante toda a minha infância que um dia iria morre antes de completar os três anos de idade, e
crescer. é uma vida, você tem dezenove anos de vida,
você tem 19 anos de história, 19 anos de infância,
adolescência, e tá sendo um jovem. Por mais que
57
Tive uma adolescência sofrida, aprendi o que era a gente possa querer dizer pra você que você tem
ser chamado de aborrecente, aprendi a dor de ser que ajudar a criar um novo mundo, vai depender
tratado como inútil, como se fosse um medíocre, da tua vontade em criar isso.
eu não sou nada disso, eu tenho inteligência.

(MÓDULO 6)
Cala a boca, eu quero falar! Eu tenho voz, eu Um dia eu falei que queria falar, e não
tenho inteligência, tenho cabeça e tenho corpo, eu me deixaram, fiquei mudo e sem voz. Ora, eu
penso, eu quero falar! Deixa eu falar um pouco, tenho uma cabeça que pensa, e quero expressar
deixa eu dizer que você também é imbecil, minha idéia, que nem você. Nós somos dois
porque nós dois somos grandes imbecis que não grandes idiotas que não se ouvem, a gente não
ouvem um ao outro, eu não te ouço e você não ouve um ao outro, só ouve a si mesmo, como se
me ouve, somos como duas cadelas latindo, fosse um garoto ouvindo o eco de sua própria
latindo para se ouvirem, uma cadela não ouvindo voz. Fala, Ernesto, eu quero te ouvir!!! Fala, que
a outra, só ouvindo a própria voz, e tendo prazer estou esperando
em ouvir a própria voz.

Fala!
Fala, agora, que eu estou te ouvindo!
Fala, agora, que eu estou te ouvindo!

Fim

Caraguatatuba, outono de 2001.


59
Um dia, eu acordei

e percebi que havia sido enganado por toda a minha


vida.

PERSONAGENS:
1. ELOÍNA: a mulher, casada, um filho homem;

2. SIBILA: a vidente;

3. RUTE (Ruth): a mulher que estuda, aconselha, e faz acontecer;

4. LEANDRA: a mulher sedutora, vazia e depressiva;

5. LÁILA (Layla): a mulher misteriosa. Busca, não sabe o quê. Amiga de Sibila,
inveja Eloína;

6. LÍLI (Líliti, Lilith): a mulher que não foi, que não sabe o que fazer da vida, e é
contra o homem. Não sabe se ama Leandra ou se ama Neandrus;

7. SÉFORA: a mãe de Eloína e de Líli;

8. MEMÓRIA: a trágica mãe das nove musas, que vêm a seguir:

9. *CLIO, A MUSA DA HISTÓRIA ;

10. *EUTERPE, A MUSA DA MÚSICA;

11. *TÁLIA, A MUSA DA COMÉDIA;

12. *MELPÕMENE, A MUSA DA TRAGÉDIA;

13. *TERPSÍCORE, A MUSA DA DANÇA;

14. *ÉRATO, A MUSA DA ELEGIA;

15. *POLÍMNIA, A MUSA DA LÍRICA;

16. *URÃNIA, A MUSA DA ASTRONOMIA;


17. *CALÍOPE, A MUSA DA ELOQÜÊNCIA (tem um dos olhos vendado, como um
pirata);

18. SAFO DE LESBOS, A “MUSA DÉCIMA”, não adotada pela Memória, mas a ela
dada como filha. Poetisa, torna-se a musa da poesia do efêmero;

19. METATROM: a Voz, o Mensageiro do Todo-Poderoso, da Providência


misericordiosa;

20. NEANDRUS: o homem, esposo de Eloína;

21. LÓI: o filho de Neandrus com Eloína;.

22. CORO: um personagem coletivo, formado por um grupo de pessoas que tenham
voz tonitroante. O coro fala sempre em uníssono, pesado, devagar, como um trovão
em câmara lenta. Sua voz coletiva é sempre trágica, pesarosa, voz de quem não
opina, apenas fala. É a voz do Destino imutável! É a voz da massa impensante. É a
voz da resignação.

23. O NADA: um personagem formado por duas pessoas: um varão e uma varoa.

Observações: (*) As musas sempre estarão em grupo, as nove juntas. Não são um
personagem coletivo, como o coro. Cada qual tem sua personalidade, mas estão sempre
juntas. Uma não funciona sem as outras. Isso as difere do coro. Safo de Lesbos não se
mantém, portanto, junto às musas, embora seja tratada como tal. È uma personagem que
inspira a busca pelo prazer efêmero.
______________________________________________________________________
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61
NEANDRUS: Um dia eu acordei e percebi que havia sido enganado por todo aquele
tempo. Nunca existira dinossauros, muito menos, é claro, o Elo Perdido. Se bem que,
antes disso, alguma coisa aconteceu. Nasci há muitos anos, e naquele tempo os casais
costumavam já dar nomes diferentes a seus filhos, no intuito de fazer com que os nomes
pudessem simbolizar alguma coisa diferente, para um mundo que estava começando a
ser construído, um mundo diferente. Por isso, fui chamado Neandrus. Esse nome,
segundo me explicaram, é uma junção de Neo, que significa Novo, e Andrus, Homem.
Eis, então, que responsabilidade: Neandrus, o Novo Homem. E estamos aqui. Esta é
minha esposa, Eloína, em seus afazeres domésticos. Ali, estudando, meu filho, Lói.
Agora, deixem-me contar a minha história. A MINHA história.

CORO: NEANDRUS NASCEU DA MELHOR DAS FAMÍLIAS. SEMPRE TEVE


TUDO O QUE PRECISOU.

ESTUDOU NAS MELHORES ESCOLAS, GRANJEOU AS MELHORES NOTAS,


TEVE OS MELHORES MESTRES, OS MAIS CUIDADOSOS MOTORISTAS.

VESTIU AS MELHORES ROUPAS FEITAS PELOS MELHORES ALFAIATES,


COMEU DAS MELHORES COMIDAS, BEBEU DAS MELHORES ÁGUAS.

CONHECEU AS MELHORES CIDADES, MOROU NOS MELHORES BAIRROS,


TEVE OS MELHORES AMIGOS, FOI SEMPRE VISTO NAS MELHORES
COMPANHIAS.

SEMPRE FREQÜENTOU AS MELHORES FESTAS, OS MELHORES


COQUETÉIS, AS MELHORES VERNISSAGES, OS MELHORES ESPETÁCULOS
NOS MELHORES LUGARES,

OS MELHORES MUSICAIS, OS MELHORES CAMPEONATOS, OS MELHORES


RESTAURANTES, AS MELHORES PIZZARIAS, AS MELHORES LOJAS.

NEANDRUS SEMPRE OUVIU OS MELHORES DISCOS. NEANDRUS SEMPRE


VIU OS MELHORES FILMES. NEANDRUS SEMPRE ACOMPANHOU OS
MELHORES NOTICIÁRIOS.

NEANDRUS, Ó, NEANDRUS, FOSTE CRIADO PARA SER O MELHOR!

MUSAS (TODAS JUNTAS): Neandrus, nós te ensinamos a convencer os homens e as


mulheres. Nós, as nove musas, te ensinamos a ser sábio nas coisas dos céus. Nós, as
nove musas, te ensinamos, Neandrus, muitas coisas.

Neandrus, nosso preferido, nós te inspiramos sempre a fazer o melhor,


E te inspiramos a abandonar o que te era imposto.

Nós, as musas, ensinamos Neandrus a ser sábio

E o libertamos das amarras sociais.

Neandrus, nós te fizemos um homem livre

E você ficou entre a cruz e a caldeirinha.

NEANDRUS: Eu era criança, e aprendi que deveria respeitar as leis da igreja oficial,
embora fosse tudo brincadeira, e aprendi que o certo era o que meus professores
científicos ensinavam. Tudo o que diziam dos seis dias, Adão e Eva, do Dilúvio, era
verdade, mas não era pra acreditar. Na hora da verdade, da certeza, tinha que ser
cartesiano, tinha que ver pra crer, tinha que ser Tomé! Nada que não seja percebido
pelos meus cinco sentidos tem valor. E eu tenho que ganhar dinheiro com o que faço,
senão terei fracassado em minha vida.

CORO: VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE VOCÊ CUSTOU.

VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE CONSEGUE GANHAR.

MUSAS : Neandrus, Neandrus,

Seja feliz.

CORO: VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE VOCÊ CUSTOU.

VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE CONSEGUE GANHAR.

MUSAS: O valor das coisas e de cada um

Não está no preço que custam.

Você sabe disso.

CORO: VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE VOCÊ CUSTOU.

63
VOCÊ VALE O DINHEIRO QUE CONSEGUE GANHAR.

MUSAS: Eis o teu valor, Neandrus: O que você faz

Daquilo que você é. Esse é o valor de cada um,

É o que se faz com o que se tem.

NEANDRUS: Cresci e fui formado acreditando que todas as coisas estavam certas em
seu lugar. Sempre fui bom aluno, acreditei nos dinossauros, na idade da pedra, do ferro
e do bronze. Eu queria ser cientista, e um dia conheci Leandra.

LEANDRA: Eu sou Leandra! Fui criada para me casar. Desde criança, aprendi a usar
batom, rebolar para os homens, abraçar, beijar e olhar com segundas intenções. Mesmo
quando eu não sabia o que seriam essas segundas intenções, eu sempre aprendi a olhar
assim. Eu quis ser a mulher de Neandrus, mas ele nunca me olhou. Não sei como isso
acontece, mas ele não olha para mim.

NEANDRUS: Ela pensava que eu a não olhava, mas sempre tive uma queda por ela. Se
eu soubesse que ela me queria, teria me arrastado até seus pés e exposto a ela todo o
meu desejo. Mas eu não sabia. Nunca percebi!

LEANDRA: Os homens são tolos. Neandrus, um jovem bobo, nunca percebeu o quanto
eu o queria. Exerci sobre ele todo o meu fascínio, e ele nunca me olhou.

NEANDRUS: Um dia eu acordei e percebi que havia sido enganado por todo aquele
tempo. Nunca existira dinossauros, muito menos, é claro, o Elo Perdido.

CORO: SIM, NEANDRUS, Ó, POBRE MORTAL!

NEANDRUS: Por toda a minha vida fui embalado pelos sonhos da arqueologia, que
mostrava-se tão perfeita e maravilhosa, tão incólume e sábia, tão altiva e generosa, tão
embriagadora e formosa, não havia como desconfiar.
CORO: E NO ENTANTO ERA TUDO MENTIRA!

TUDO ERA MENTAL!

NEANDRUS: Foi assim. Eu dormia saborosamente, mas acordei ainda com o dia
escuro, um dia ainda não nascido, um dia que iria clarear. Subitamente, recebi um sinal
de que tudo o que acreditara até então havia sido uma enorme, grandiosa, grotesca
máscara da realidade. Não é possível falar de tanta desgraça! Fala por mim, Memória,
mãe de todas as musas!!!

MEMÓRIA: Sim, eu sei! Eu sou a mãe das nove musas, e falarei por ti e para ti, meu
amado Neandrus. Sim! Eu vi o quanto fora enganado por todos aqueles anos! A história,
inspirada pela minha filha Clio, sempre te foi apresentada numa elegante toga branca,
com olhos no infinito horizonte da busca, como tinha que ser... Clio, a musa da História,
filha dileta da Memória, morrera assassinada!!! Quantos interesses?, por tal ato
horrendo...

NEANDRUS: Não, nunca morre aquela que ainda não nasceu! Não diga isso, Memória,
porque não vive quem não tem nascido. E é por isso mesmo que não tem como morrer.

CORO: ESQUECE AS TUAS ESPERANÇAS, NEANDRUS, A HISTÓRIA É


SEMPRE A MESMA, A HISTÓRIA SE REPETE SEMPRE.

NADA PODE MUDAR O DESTINO, O INEXORÁVEL DESTINO!

NEANDRUS: A arca do tempo, como fora apresentada durante toda a minha vida, na
verdade nunca existiu. Foi apenas um conto-de-fadas para que eu pudesse dormir meus
sonos e sonhar acreditando que tudo tem uma explicação razoável, racional e
perceptível aos sentidos físicos. Clio, a musa da História, nasceu quando descobri que
havia sido enganado por toda a minha vida!!! Nesse dia, ela pôde finalmente ser
inspiradora de meus pensamentos.

65
MEMÓRIA: Minha filha sempre inspirou os heróis, mas dificilmente consegue
alcançar a sensibilidade dos historiadores, tão preocupados em agradar determinadas
ideologias, políticos insensatos e ladrões...

(Entram em cena as musas, silenciosas. Clio se adianta e fala:)

CLIO: Minha doce mãe, meu querido Neandrus. Minhas caras irmãs. O Destino que
troveja suas vozes sobre as orelhas de um poeta, não deve ser levado a sério. Não existe
o inevitável, não existe o impossível, pois senão o que seria dos heróis?

NEANDRUS: Você mente, musa, eu procurei por você por toda a minha vida, eu te
chamei por toda a minha vida, e só recebi mistérios e mentiras!!! Você nunca, nunca,
nunca me inspirou a verdade!

CLIO: Você vomita sobre o prato que acaba de comer, Neandrus. Eu sempre te
inspirei.

NEANDRUS: Sozinho!!! Eu sozinho descobri a verdade, de repente, minha cara


musa!!! Naquele dia eu acordei e percebi que nunca existira dinossauros. Todos os
bonequinhos que colecionei, montei, aprendi, os nomes dos tiranossauros e pterodátilos,
todos falsos, moedas de três dinheiros, perdera-me entre os nomes de gêneros e espécies
que nunca existiram de fato, apenas na imaginação de cartesianos e aleivosos dialéticos.

CORO: TUDO MENTIRA, APENAS UM PANO DE FUNDO.

NEANDRUS: Pensei, naquela hora, se apenas eu estava sendo enganado.

CLIO: Será que não estava todo mundo sendo enganado?

Todas as pessoas estavam sendo enganadas?

Ou será que alguns eram por outros?


MEMÓRIA: Ou um grupo de gentes se apartam do populacho, e escondem para si o
que crêem verdadeiro, dando aos restantes uma idéia bem formulada?

Propagam pelas universidades e centros de saber aquilo que eles querem.

CORO: QUE A GRANDE SABEDORIA É CIENTÍFICA, E QUE O MÉTODO


CIENTÍFICO É O QUE PROVA A EXISTÊNCIA DOS DINOSSAUROS.

NEANDRUS: Mas... e se não for? E se apenas a imaginação dos arqueólogos


responsabilizou-se pela interpretação do que achava, e decidiu que cada montículo de
ossos achados aqui e ali, formavam um único animal representante de toda uma raça?

MELPÔMENE: Vou mais além! E se cada exemplar dos encontrados foi apenas um
animal defeituoso?

Eu, Melpômene, a musa da Tragédia, aviso aos que pensam que as conclusões podem
ser tomadas por um só exemplo. E se toda a ciência está baseada nas exceções!!! Qual a
regra?

CLIO: Ou será que uma pequena raça se perdeu, sem deixar sucessores? Pode ser que
uma raça de animais tenha crescido mais que o ambiente podia suportar, e assim
sucumbiu perante as dificuldades.

TÁLIA: E se os mamutes foram animais criados no mesmo tempo que os elefantes,


tendo sobrevivido apenas estes últimos?

ÉRATO: NÃO DIGA BOBAGENS, TÁLIA! Por isso você é a musa da comédia.
Quieta, não vês que Neandrus está em crise?

67
TÁLIA: Rindo nós castigamos os costumes. Por isso, nem toda piada é grossa, algumas
são leves sátiras, mas de todas nós podemos rir.

Dirá talvez um ser daqui a um século que o macaco-prego é o antecessor do gorila, e o


gorila o sucessor do homem.

MEMÓRIA: Tália, minha filha, não confunda o pobre homem. Nós sabemos que o
gorila e o homem são sucessores de um elo perdido, do qual ambos são seus
descendentes.

TÁLIA: Minha mãe, minha querida mãe, eu sei que o que digo não é bem ouvido, mas
é bem guardado. Neandrus pode rir de minhas falas, mas não se esquecerá delas. E olha
que ainda não cheguei na mulher!

Será que o homem vem do macaco-prego e a mulher da gata-angorá? E um dia o


macaco-prego se deixou engraçar pela gata-angorá, e uma talvez mutação genética fez
nascer o primeiro exemplar dos mauricistas. Então, os mauricistas se generalizaram e se
subdividiram em maurícios-de-sousa e mauricinhos. Os MAURÍCIOS-DE-SOUZA
estão se estinguindo, não encontram mais tanto campo para se alimentar. E caso não
haja um rápido movimento de ajuda, estarão em breve condicionados a pequenos
espaços.

VALEI-ME, CALÍOPE, MUSA DA ELOQÜÊNCIA!

CALÍOPE: Os segundos, ditos mauricinhos, pelo contrário, de tão protegidos pelos


órgãos governamentais, tornam-se uma peste, uma espécie já predatória. O que salva os
mauricinhos de serem tão predatórios são as patricinhas, uma variação que reúne os
melhores genes do macaco-prego e da gata-angorá.

MEMÓRIA: Minha filha, não se deixe levar pela piada, ela pode transformar a verdade
em mentira, e o choro em riso! Se isso acontecer, tudo estará perdido, e a História
matará mais uma vez minha pobre filha Clio.

CALÍOPE: Não tenho partidos, não posso tomar posição.


Sirvo a qualquer que me chame, dou palavras aos que me querem, porque a eloqüência
não é apanágio de filósofos e sábios em geral, mas também serve aos sofistas,
mentirosos e bons-de-bico!

Apesar das patricinhas serem tão renegadas pelos maurícios-maiores, dentre os quais
está a espécie já citada anteriormente dos maurícios-de-sousa, elas se conservam e se
multiplicam pela sua capacidade em formarem, junto com os mauricinhos,
agrupamentos familiares, o que garante a sobrevivência de todos.

NEANDRUS: Minhas adoráveis musas, que me acompanham pela vida, eu odeio todas
vocês, porque vocês calaram a boca da Memória, mãe de todas as musas. Vocês me
inspiraram com seus véus, vocês esconderam vossa mãe. Meu nome é Neandrus. A
mulher, aqui do lado, é Eloína, a minha esposa. Deixemo-la por aqui, está em seus
afazeres. Não quero atrapalhar. Temos um filho, bonito, inteligente, obediente e curioso,
chamado Lói. É este aqui. Vem cá, Loi, quero te apresentar para as Musas. Mas apenas
dê atenção a elas se estiverem acompanhadas da mãe, a Memória.

LOI (CHEGA PERTO DO PAI, MAS NÃO SE ABRAÇAM. APENAS UM BREVE


TAPINHA NAS COSTAS, UM DO OUTRO):

Meu pai exagera. Não sou tudo isso. Apenas me esforço. Meu pai pensa muito. Pensa
demais. E fica chegando em suas conclusões malucas!!!

Eu sei que existem os dinossauros, podem reviver a qualquer instante, desde que a Terra
ofereça as condições externas necessárias para tanto. A relatividade ensina que se pode
ir para o futuro, nunca para o passado, mas os modernos físicos já dizem o contrário. Eu
acredito que é possível resgatarmos fisicamente elementos do passado.

(NEANDRUS SAI DE CENA. ELOÍNA CONTINUA EM SEUS AFAZERES, NO


FUNDO DA CENA. Continuam em cena, também, as musas e o coro. LOI VOLTA A
FALAR:)

Não sei quem é meu pai. Não sei quem é o senhor Neandrus. Às vezes ele me parece tão
estranho, não sei se ele está certo ou não. Dentro de mim, parece que uma voz lhe dá
razão. Mas não sei. Prefiro não saber ainda. Sou novo, não tem porque querer ter
alguma certeza. Confio no que leio, no que ouço e no que me dizem.

69
CALÍOPE: Quem te dá a certeza da tua certeza, ó, Loi Filho de Neandrus?

LOI: Calíope, não queira dar a mim a inspiração, não a quero, não me interessa a
eloqüência, não quero dar para minha voz a entonação, a melodia, o ritmo e a
dramaticidade que convencem.

Não quero você!

EUTERPE: Eis que fala você também de mim, Euterpe, a musa inspiradora de quem
trabalha com as notas musicais, o silêncio e o tempo, o som e as vagas impressões
sonoras.

Eis que já o inspiramos.

Já estás eloqüente, ó jovem audaz e loquaz!

Continue a cantar!

LOI: Afastem de mim esta voz melodiosa! Afastem de mim essa eloqüência! Afasta de
mim, ó Terpsícore, que já se aproxima e quer que eu me deixe levar por um ímpeto
maravilhoso do movimento dentro do espaço!!! Afastem-se de mim, não as quero!!!, ó,
musas, saiam de perto de mim.

CORO: EIS, Ó MUSAS, O JOVEM CAUTELOSO TEM MEDO!!!

AFASTEM-SE DO JOVEM, ELE QUER VIVER SEM TALENTOS, ELE QUER


NEGAR OS DONS QUE LHE FORAM OFERTADOS!

AFASTEM-SE, Ó, MUSAS, O JOVEM LOI NÃO AS QUER!

VÃO ATRÁS DE NEANDRUS, PAI DE LOI E MARIDO DE ELOÍNA!

VÃO ATRÁS DE NEANDRUS, ELE PROCURA POR VOCÊS POR TODO O


TEMPO!!!

INSPIREM ELOÍNA!

INSPIREM NEANDRUS!

AFASTEM-SE DE LÓI, O DESTINO ASSIM O QUER!


CLIO: Não falo apenas em meu nome, mas em nome também de todas as minhas
irmãs. Eu, Clio, a musa da História, a inspiradora dos fatos heróicos e das omissões, sei
que Loi não nos quer, mas nos renega.

Renega a si mesmo, teme sua própria dor e a nega.

Loi não quer dizer que tem dor, Loi é a própria dor!!!

LOI: (Interrompendo no momento que Clio fala a palavra “dor” pela primeira vez
acima.) Não invente a dor onde eu não a tenho!

Quem é você?, para lacerar a minha carne, e dizer da minha dor? Quem é você???

CALA-TE, Ó MUSA PERNÓSTICA! CALA-TE, Ó MUSA QUE NÃO ME QUER


DEIXAR!!! Deixa-me, que não te quero.

Ó, MUSAS, MINHA IDADE PARA VÓS JÁ PASSOU...

A História não mais me importa, nem a Música ou a Dança, a Comédia ou a Tragédia.


Ora, nem mesmo a Elegia, pois pra quem irei cometer tais desatinos?

Meus heróis inexistem, para que a Eloqüência, se não tenho contra quem lutar? Quero
apenas me enquadrar...

Ó, musa da Astronomia, não te esqueci, nem a ti, musa da Lírica, eu as amaria, mas
vocês são demais distantes de meus olhos e ouvidos. Quero me dirigir ao mundo como
ele é, como ele aparece para mim, para o mundo real, não o mundo dos poetas e
divagantes.

(Entra em cena o Nada)

O NADA: Loi procura por mim. Estou aqui, Loi. Você não me ouve, mas eu fui criado
por quem não quis acreditar nas musas, nem no Destino. Os poetas criaram as Musas
para que estas criassem poetas. Os homens criaram o destino para que o destino
aprisionasse os homens. Quem não se deu com as musas, nem teve coragem de
enfrentar seu destino, buscou a mim, o Nada, o vazio. Em mim, nada existe, nem a
própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência. Em mim, nada
existe, nem a própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência. Em
mim, nada existe, nem a própria existência. Em mim, nada existe, nem a própria
existência. Em mim, nada existe, nem a própria existência.

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NEANDRUS: CHEGA!!! O nada é nada para mim.

Um dia, acordei e percebi que a reencarnação era uma grande verdade escondida. A
grande verdade da memória dos antepassados. Nós guardamos em nossas células
corporais a memória de todos os nossos antepassados. Quando pensamos que estamos
reconhecendo algo que foi pertencente a uma nossa vida anterior, é porque aquilo
aconteceu com um antepassado nosso.

CORO: OS BUDISTAS TIBETANOS DIZEM: A REENCARNAÇÃO DO MESTRE


SE DÁ DE CORPO EM CORPO, E QUANDO O MESTRE MORRE EM UM CORPO
ELE RENASCE EM OUTRO. E NÃO COSTUMA SER UM DESCENDENTE.

NEANDRUS: Sim, porque nem sempre os descendentes são como seus antepassados.
Aliás, a regra é que sejam, mas o toque da genialidade é incomum, e portanto demora
para reaparecer.

No entanto, a alma do mundo, anima mundi, o inconsciente coletivo, tem a memória de


todos os mitos primordiais.

O mestre pode reaparecer numa pessoa ou em outra, mas sempre haverá uma que saberá
mais das coisas necessárias para aquele momento. E todos os seres do mundo têm a
consciência coletiva.

Quando se pensa que dois se comunicam telepaticamente, é porque ambos têm


proximidade no mesmo ponto da alma do mundo.

Ora, então eu posso criar da terra, e chamar para a vida as minhas musas incorpóreas!

CORO (Sussurrando):

Não, Neandrus, você não pode!

As Musas não existem,

As Musas não podem existir,

As Musas não podem tomar existência!


(Aumentando as vozes ao nível normal:)

Não, Neandrus, você não pode!!!

As Musas não existem!

As Musas não podem existir!

As Musas não podem tomar existência!!!

(Elevando as vozes mais e mais:)

NÃO, NEANDRUS, VOCÊ NÃO PODE!!!

AS MUSAS NÃO EXISTEM!

AS MUSAS NÃO PODEM EXISTIR!

AS MUSAS NÃO PODEM TOMAR EXISTÊNCIA!!!

(GRITANDO:)

NÃO, NEANDRUS, VOCÊ NÃO PODE!!!

AS MUSAS NÃO EXISTEM!

AS MUSAS NÃO PODEM EXISTIR!

AS MUSAS NÃO PODEM TOMAR EXISTÊNCIA!!!

NEANDRUS: Musas, eu as esculpirei!

Eu tomarei da areia e as farei viver.

Vocês não serão mais as minhas inspiradoras, vocês serão estátuas corpóreas, eu as
criarei! E vai ser já!

73
(Neandrus começa a esculpir no ar, como se esculpisse na areia. Com sofreguidão, com
pressa, com vontade de fazer, com todas as suas forças! Neandrus está completamente
tomado pela vontade de criar a primeira musa. No ar, ele a faz como se esculpisse na
areia. Então, termina. Olha em volta da escultura, admira-a por todos os lados, como
se ela existisse naquele espaço em que ele esculpiu. Então, ele expõe os braços como
quem vai abraçar, mas já em concha aberta, e com a cabeça para cima e os olhos
fechados diz:)

NEANDRUS: Clio, musa da história, você é a primeira musa que faço viver. Você,
Clio, é esta estátua!

(Clio sai em corridinha de entre as Musas e vem tomar lugar onde estaria a estátua. E
permanece imóvel. Neandrus abaixa a cabeça e fala para ela:)

NEANDRUS: Você é Clio, a História!

Você é a História da Humanidade, a História das Guerras, a História dos Seres


Humanos.

Os animais fazem história? Dizem que não.

Se assim é, ou seja o que for,

Você é Clio, e eu te dou meu sopro de vida!

VIVE, CLIO!!!

(Clio inicia lentamente sua dança. Uma dança individual, própria, a dança da História.
Vira fundo de cena, a dançar em movimentos lentos.)

(Neandrus volta a esculpir no ar. Rapidamente termina. E Euterpe sai em corridinha


para tomar o lugar dessa nova escultura. E fica imóvel.)

NEANDRUS: Euterpe, a Música!

Tudo é música.
Você é o samba, o forró, o régue, o roque, a valsa, a alegria do campo e o lamento do
sertão.

Você é a voz de quem não tem palavras.

Você é o som primordial e o presente.

Você é o que prenuncia e o que acompanha. Te amo!

Vive, Euterpe, e toca a sua lira!

(Euterpe inicia lentamente sua dança. E se dirige ao fundo de cena.)

NEANDRUS: Eu agora construo Tália, a musa da comédia!

(Tália ocupa um espaço na frente de Neandrus e fica imóvel.)

NEANDRUS: Vive, Tália, e faça a minha alegria!

Vive, Tália, a comédia da vida, a comédia dos homens, a comédia dos sexos, a comédia
dos poderes, a comédia dos seres humanos, a comédia dos que pensam que pensam e
não pensam mais do que sabem achar que pensam...

VIVE, TÁLIA!

(Tália inicia lentamente sua dança e vai ao fundo de cena. As musas que vão vivendo já
não estão se juntando, são indivíduos.

Neandrus começa novamente a esculpir. Enquanto isso, fala:)

NEANDRUS: Melpômene, a tragédia.

Tu és o oposto de Tália, o inverso, mas não vives sem ela.

Tu és a máscara que chora, mas és a lucidez de quem descobre o nunca!

Melpômene, eu não te quero, eu não quero te criar, mas não sou um julgador. Não posso
me conter.
75
Eu sou um artista, sempre ouvi as vozes das musas, mesmo que tentasse tapar meus
ouvidos, as musas sempre falaram para mim.

E agora, Melpômene, é a tua vez de viver.

Eu a esculpo, não porque a quero, mas porque preciso, é um ímpeto que me faz te criar.

VIVE, MELPÔMENE!

(MelPômene dá sua corridinha e ocupa seu lugar. Mas não dança. Ela fala:)

MELPÕMENE: Sou bela, mas posso aparecer com a minha carantonha.

Sou belíssima, a maior de todas as musas, e a mais renegada.

Neandrus, seu desgraçado!

Neandrus, eu não queria ter nascido!

Neandrus, a dor maior é a do dia em que nasci!

Neandrus, quem teve a dor foi minha mãe, a Memória. A Memória teve a dor de meu
nascimento.

MALDITO O DIA EM QUE NASCI, DÓI-ME A ALMA, PARTE-ME O CORAÇÃO,


TU ME ESCULPISTES E ME FIZESTES VIVER.

MALDITOS SEJAM TODOS OS ARTISTAS, EU NÃO QUERO VIVER!

Eu estou triste, porque sou a Tragédia. Sou a tristeza profunda, a dor e a depressão, a
inglória, a incúria, a traição.

Sou o apego, sou a que rola escada abaixo, sou a que cai no precipício, sou o suicídio, o
homicídio, o medo, o terror.

Sou a paranóia, sou a perseguida e a perseguidora.

Sou a corrupção e as falcatruas.

Sou eu que me instalo nas casas e faço as mulheres chorarem, sou eu que faço os
homens baterem em suas mulheres.

Sou eu que provoco os sexos a clamarem pela dor e pela insatisfação.

Eu sou o chicote e a trama, a teia e a imensidão inalcançável.

MALDITO SEJAS, ARTISTA! Eu te odeio...


(Melpômene inicia bruscamente sua dança da tragédia, e se vai como as outras musas
vivas. Solitária, como elas.)

(Neandrus volta a esculpir e a falar:)

NEANDRUS: Terpsícore, tu vais ensinar tuas irmãs.

DANÇA, TERPSÍCORE!!!

Tu sempre fostes a musa da dança,

AGORA VIVE, VIVE, TERPSÍCORE, E DANÇA PARA OS HOMENS E PARA AS


MULHERES, DANÇA PARA AS CRIANÇAS APRENDEREM!

Tu és Isadora Duncan, tu és Marta Graham, tu és Márcia Haydée, Dali Nelly, Célia


Gouvêa e Mara Borba!

VIVE, TERPSÍCORE!

(Enquanto Neandrus falava, Terpsícore já deu sua corridinha e se fez estátua. Ao ouvir
as últimas palavras de Neandrus, sai dançando como verdadeira dançarina, a mais
bela e mais extensa dança de todas, e vai solitária ao seu lugar, onde permanece
dançando. Érato já dá sua corridinha e fica em frente a Neandrus.)

NEANDRUS: Érato, a elegia, eu a esculpo e a reconheço.

És Érato, a elegia. Falarás bem de todos, dos bons e dos maus.

Advogarás por qualquer um.

Afasta-te de mim, eu não a quero!

ÉRATO: Neandrus, meu pobre, não houve saída. Teu ímpeto criador precisava me
criar.

Aqui estou e te digo: tu és um artista, e somente tu podes fazer o mundo compreender


para que vem.
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Tu és um atormentado, Neandrus, como cabe ser a todo verdadeiro artista.

Vive, Neandrus, tu és meu criador!

Tu és lindo e sonhador, tu me esculpistes e agora vivo.

Sou Érato, não a musa, nem a estátua, mas a mulher.

Sinto-me feliz por isto.

Serei das águas vivente, e agradeço por me colocar na vida.

(Érato sai a dançar e Neandrus inicia nova escultura no ar. Polímnia dá sua corridinha
e toma o lugar dessa nova escultura.)

NEANDRUS: Vive, Polímnia, a lírica!

(Polímnia sai dançando. Neandrus inicia nova escultura no ar. Urânia dá sua
corridinha e toma o lugar.)

NEANDRUS: Urânia, a astronomia, ciência que pensou em destronar os deuses, e cada


vez mais se aproxima deles.

Urânia, eu te reconheço, tu és musa dupla, seis meses vives na escuridão, a amedrontar


a humanidade, e seis meses vives na clareza, a trazer a verdade das estrelas.

(Urânia sai a dançar gravemente, com seriedade, passos largos e lentos, movimentos
lentos e pesados. Neandrus volta a esculpir. E fala:)

Neandrus: Tu és a última que esculpo.

Tu te chamarás Calíope, porque serás eloqüente, não serás discernimento mais que
convencimento.

Convencerás a quem quiseres convencer.

Quando não tiveres mais argumentos, persuadirá, como Satanás aos que quer enganar.
Tu serás Calíope, a que eu não gostaria de criar, porque tens um olho tampado,
misterioso, que não mostra a ninguém.

(Calíope dá sua corridinha e se coloca imóvel no lugar da estátua que está sendo
esculpida)

Aprendestes com Lílith esse mistério, e guarda contigo, e eu não o conheço.

Não sei que mistério é esse que a eloqüência guarda, mas é o mistério que atrai pelo
desconhecido.

Os esotéricos clamam por ti, os advogados, os juízes, os promotores, os padres e os


pastores.

Os comunicadores te querem alcançar, os sedutores e estupradores te invejam, eu te crio


porque é meu ímpeto, mas não a quero.

VIVE, CALÍOPE!!!

(Calíope sai a dançar a eloqüência, e vai a seu lugar no palco. Agora, todas as musas
vivas aparecem na frente de cena, dançam um número musical e vão se misturar à
platéia, onde ficarão até o final da peça. Poderão ficar sentadas, de pé, desde que
misturadas ao público.)

NEANDRUS: Musas, eu as esculpi e as fiz viver. Vão! E vivam suas vidas.

SAFO: E a mim, Neandrus, você não esculpirá?

NEANDRUS: Você já vive. Você não é musa.

Você pode inspirar, mas como pessoa, não como ser incorpóreo e não vivente.

Foi Platão que a chamou de “A DÉCIMA MUSA”. Porém, nada mudou.

Você resistiu às investidas amorosas de Alceu, mas nunca realmente amou.

Você não aprendeu nunca a amar alguém.


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Você nunca foi musa, nem será. Não musa incorpórea, mas a mim, você, Safo de
Lesbos, não inspira.

Não tenho por ti nenhuma forma de inspiração.

Você nem me seduz.

SAFO: Duvido, você é um homem! Ou estou enganada?

Você é da tribo de Platão e de Sócrates? Prefere o Banquete? Procura por jovens


rapazes?

Não, você não, você é sensível, apenas isso, e sofre com a dor do artista, a dor do que
cria e do que absorve doloridamente.

Você fica muito sentido por qualquer bobagem, e trai a sua própria espécie quando
expõe as feridas do semelhante, que são as tuas feridas. As feridas tuas, as tuas feridas
são as feridas também das outras pessoas.

Homem, seja homem, e chora agora!

(NEANDRUS se abaixa como se chorasse baixinho, em posição fetal. Ali fica, enquanto
ouve Safo, e assim permanecerá durante o próximo triálogo, que acontecerá entre Safo,
Lílith e Layla.)

SAFO: Ninguém é por excelência a poetisa que sou, a lírica, a poetisa dos ventos.

Eu canto os amores fugidios, fugazes, frívolos e intensamente apaixonados.

Canto sob a inspiração de Eros.

Mantenho-me na flor da virgindade, e posso mostrar o poder feminino.

Nunca deixei que homem algum me seduzisse.

Alceu não me ganhou porque é masculino demais.

Platão, por sua vez, eu até admitiria em meu leito, mas é por demais amante dos rapazes
jovens e formosos. Tenho nojo de Platão.

Talvez, se Alceu tivesse a sensibilidade platônica, junto com sua testosterona ativa,
quem sabe?
LILITH: Eu, Lilith, sou a lua, o poder da mulher.

Não você, Safo.

Tu és linda, tua voz encanta como a voz de Circe, mas você é uma impostora. Eu posso
dominar as águas, você não.

Você é mulher, as águas te movem e te fazem viver e procriar. Eu domino as águas que
cobre a terra e que se movimenta entre as moléculas do ar.

SAFO: Mas eu conheço melhor que você as mulheres, pois além de ser mulher, vivo
entre mulheres. E desprezo os homens, tolos que são.

Eu sou musa corpórea.

Representa-me em uma estátua, Neandrus, faça-me eterna para a humanidade.

LAYLA: Bem que um artista como Neandrus gostaria de representar você, Safo, mas
por ser um verdadeiro artista ele só sabe representar o incorpóreo, o indizível, o
intraduzível.

A imitação do corpo, imitação por imitação, é área dos anatomistas.

Neandrus deu vida para as nove musas.

Neandrus criou sua obra e agora chora.

Neandrus pensa que nunca mais criará nada.

Neandrus passa por uma fase depressiva, muito depressiva, não ouve agora o canto das
musas em sua cabeça, em seu corpo, em seu espírito.

Seus ouvidos estão lacrados e Neandrus sofre.

Ele chora, mas ninguém ouve o seu choro, ninguém acredita na sua dor, e Neandrus é
solitário porque ninguém conhece o que ele sente.

A imitação do corpo será muito dolorida para Neandrus, porque ele é um artista, vive
das entranhas do incorpóreo.

Se esculpir uma Safo de Lesbos, apenas fará um monte de areia, barro, mas não terá
como soprar a vida. Será uma estátua morta.

81
LILITH: A morte é só para quem viveu.

Não há morte para quem não teve existência.

Uma estátua sem vida não é morta, apenas não nasceu.

O artista doa sua alma para suas obras, e assim elas vivem com a alma do artista, até
poderem adquirir alma própria.

Enquanto isso, o artista sofre, se torna fraco e sem inspiração.

Não consegue ouvir as vozes das musas.

LAYLA: O sopro é do artista.

Sopra, Neandrus, e a estátua vive! Eu sei que depois de dar vida a nove musas, tua
resistência cai, e você chora!

Também eu choraria em seu lugar, mas não baixinho.

Eu sou Layla, e choro para que todos me vejam, e que todos ouçam o meu lamento! Por
isso não sofro a dor da humanidade.

SAFO: Levanta, covarde! Seja homem!

Seja um escultor de verdade, e sopra a estátua que me representará, para que eu seja
eterna!

LAYLA: Quem é você?, Safo de Lesbos, para querer dar ordens a Neandrus?

Quem é você?, Safo de Lesbos, que se proclama a décima musa!

Safo, tenho dó de ti.

ELOÍNA: Quem são vocês? O que fizeram com meu Neandrus? Ele chora...

Lílith: Os homens são covardes e fracos.

Você ama Neandrus porque ele é fraco e sensível, quase afeminado.


Eu repudio neste momento o teu marido, porque ele chora, e eu não quero homens que
choram.

(Eloína está sentada no chão, com a cabeça de Neandrus escondida sobre seu colo, e
assim permanecem calados.)

LAYLA: Eis aqui u’a mulher feliz. Eis um homem feliz.

SAFO: Mas ele chora...

LAYLA: E ela o consola. Tem alguém para consolar.

Se Neandrus fizer uma estátua de Safo, não será você.

Terá a própria história.

Cante, Safo, os teus amores ligeiros.

Foi numa distante ilha, você solitária entre muitas mulheres, com tua voz de Circe,
transformando Alceu e outros homens em porcos, porque se encantam por ti, porque
você deixa que se encantem por ti.

Você, Safo, encanta os homens apenas para depois desprezá-los.

Por que tanto ódio?

SAFO: Por que tenho que amar os homens?

Em Lesbos todas nos compreendemos.

Você não sabe o que é o amor.

LAYLA: O amor é o que permanece além das obras. Por isso você não pode ser
representada.

Neandrus não pode fazer estátua de uma Safo porque você já representa por sua própria
conta e risco o erótico feminino.

83
Apenas o erótico.

LILITH: EU SOU A LUA!

EU MOVIMENTO AS ÁGUAS E AS ESTAÇÕES DAS MULHERES!

EVA PODE SER A MÃE, PORÉM EU SOU A QUE MOVIMENTA AS ÁGUAS E


AS ESTAÇÕES DE TODA MULHER!!!

LAYLA: Lilith, você nada pode falar, você só sabe roubar a luz do sol e dizer que é tua.

Olha para Eloína, ela tem o poder da mulher, ela não rouba, ela reflete a luz do sol e a
traz para Neandrus.

Um dia, ouvindo as musas, percebi que o amor nos fará Deusas se tivermos a coragem
de acreditar.

Seremos Deusas e Deuses. Mas sem acreditar, nada existe.

LILITH: Nada existe?

Eu não existo?

Estou aqui, logo vivo!

RUTE: Você vive porque acredita que vive.

LAYLA: QUEM É ESSA ESTRUPÍCIA?

LILITH: Você não se lembra de Ruth? Enquanto você e Leandra compravam


maquiagens e faziam corridas e musculação, Ruth comprou livros e estudou.

Ruth venceu os preconceitos e é uma sábia. Aprendamos com ela.

Me diga, Ruth, por que isso? Como é que eu vivo porque acredito que vivo?
RUTE: Você existe porque acredita em tua própria existência. E faz assim com que
outros possam acreditar em você, o que vai te tornando mais e mais palpável.

Só te falta o sopro da vida.

O acreditar é a chave da imortalidade na eternidade.

A existência de si e do todo.

Eu existo e quero acreditar.

Não!

Eu existo e acredito que existo, e por isso existo.

Quando Descartes enunciou sua lógica, na verdade ele deveria ter dito: penso que
existo, logo existo. Existo porque penso que existo.

E minhas crenças, se forem inabaláveis, se tornarão verdadeiras.

Neandrus pôde fazer as musas viverem e ter um corpo, porque acreditou nelas. Eu
gostaria de não acreditar em Lilith, mas você está aí, na minha frente, porque acredito
em você. E você se acredita.

SAFO: Escultorzinho endiabrado.

Vocês procuram briga, eu sei. Mas eu luto com minha lira, e com ela farei Neandrus me
amar doidamente, perder-se feito um garotinho ingênuo.

Neandrus não passa de um homem, e os homens são bobos, tão pueris que se deixam
levar por qualquer que lhes sopre algumas palavras doces, alguns toques sutis sobre a
pele.

Tão fortes... e tão fáceis de dominar.

LÍLITH: Cresça, minha cara Safo, você não suporta assumir a sexualidade, não tem
coragem de amar um homem, e por isso se entrega ao erotismo que não reproduz.

Você é uma geratriz, toda menina é mãe potencial.

Gere, Safo! Não espere que Neandrus faça por você o que você mesmo deve fazer.

SAFO: Minha arte é poetar.


85
LAYLA: Lílith, não queira que Safo te compreenda. Ela vai aprender, mas aos poucos.

Safo não passou ainda pela adolescência, não admite sua própria sexualidade, quer
dominar, pensa que você é o exemplo, e quer dominar.

Lilith, você foi escorraçada e não respeitou Adão.

O que você pode saber sobre os homens? Você apenas se danou com eles. Pois eu adoro
homens! São a minha fraqueza.

Amo você, Safo, como se você fosse uma criança.

Respeito você, Lílith, porque você tentou sobrepujar o que considerava errado. Mas
esqueceu o mais importante, que é o amor. O amor faz a minha vida completa.

SAFO: Só é completa a vida de Neandrus quando ele ouve as musas. E a vida dele não
será completa se não as ouvir.

LAYLA: Ouço as musas, e sei que o amor é mais que o poder de Eros.

É maior que você e do que as tuas canções. Amor é coração.

Eloína tem três amores: o desejo pelo seu marido, a admiração por esse mesmo marido,
a quem ela ajuda e apóia, e por quem é ajudada e apoiada, e por fim ela o ama por toda
sua existência.

Amor de adoração, que contém todas as outras formas de amor, não as desprezando,
mas as contendo dentro de si.

SIBILA: Eis que eu sou Sibila, vidente.

LAYLA: Não fostes convidada!

SIBILA: Ninguém permitiu minha entrada aqui, mas entrei e agora falo.

Neandrus um dia esculpiria o Amor, porém suas mãos não têm a força para tanto, seu
espírito é ainda fraco para isso.
O dia que Neandrus puder esculpir o Amor, esse amor que Layla descreveu, ele não
mais será um escultor, mas um Deus!

Eu sou Sibila, a que vê aquilo que ninguém vê, porque não querem ver e está na frente
de todos.

Eu vejo o que ninguém quer ver. E mostro a quem eu quero! E agora quero mostrar
Neandrus.

Neandrus esculpiria o amor, se pudesse. Não pôde, mas ele tanto ama as musas que as
fez viver. As musas deixarão de ser inspiradoras incorpóreas, ninguém mais se lembra
delas, mas Neandrus as amou de tal forma que as fez vivas.

Querem mais? Essa foi a grande obra desse artista!

Meu pobre Neandrus, criança tola, fica satisfeito com a tua obra...

CORO: NEANDRUS, JOVEM CRIANÇA,FICA SATISFEITO COM A TUA OBRA.

CHEGA DE PENSAR NAS TUAS CRIAÇÕES,

ESCULPE IMITANDO OS CORPOS DE SAFO E DE LAYLA.

NEANDRUS, NEANDRUS,

TUA ARTE AGORA MUDOU.

SEJA INCONSEQUENTE, TUA ARTE TEM QUE SER PARA NÓS!

NEANDRUS, NOSSO AMADO AMIGO NEANDRUS!

ESCULPE OS NOSSOS HERÓIS, OS HERÓIS QUE NÓS CULTUAMOS.

ADMIRA AS TUAS MUSAS, PORQUE ELAS JÁ NÃO FALARÃO MAIS A TI.

NEANDRUS, NOSSO POBRE NEANDRUS!

TRABALHA PARA NÓS E NÃO ENLOUQUEÇA...

SEJA UM DE NÓS, NEANDRUS,

E VENHA SER FELIZ.

COMO NÓS.

87
(Neandrus levanta a cabeça, abraça Eloína. Ainda sentado, mas com as mãos
enlaçadas com as de Eloína, fala:)

NEANDRUS: Fiz uma grande obra? Talvez, mas não terminei. Vocês querem que eu
morra, eu não morrerei!

O NADA: Criar a grande obra e depois morrer. Isso é lindo. Você não ouve mais as
vozes das musas. Quer continuar, mas não consegue.

Morra, lindo artista! Tua obra te consumiu.

Deixa que a obra fique, deixe que tua obra realize o que você não pode em tua vida.

NEANDRUS: Morrer? Minha vida é minha arte, minhas obras são apenas parte dessa
arte de viver, reconstruindo o que foi destruído pelo absurdo.

Criar e depois morrer? Quero continuar ouvindo as vozes das musas!

RUTE: Você pode ouvir as musas, se ficar mais calado.

Ouça mais, fale menos, espere que elas te falem.

NEANDRUS (solta as mãos de Eloína, levanta-se, e vai até Rute): Ruth, há quanto
tempo? Nunca mais te vi...

Você era tão jovem, eu te amava, eu era uma criança ainda, quando você enfrentou os
preconceitos e decidiu estudar. E agora você vem e me aconselha.

Ruth, estive tanto tempo só, você me fez falta, casei-me e tenho um filho. Sou escultor.
Mas não ouço mais as musas...

RUTE: As musas morreram quando você as fez viver.

Agora são mortais, vivem, terão filhos e filhas.

Inspiração agora será de outra forma.

Você a encontrará.
Neandrus: Nunca matei ninguém, Rute!

Você sabe que eu não seria nunca um homem capaz disso!

ELOÍNA (Levanta-se e fala): Neandrus, meu amor, você matou as musas inspiradoras,
mas as fez finalmente viver. Agora elas serão vida, agora elas terão filhos e filhas
verdadeiras.

RUTE: Lembro-me que as musas eram filhas da Memória. Onde está Memória?

MEMÓRIA: Eis que vocês me chamaram. Perdi minhas filhas, todas elas, porque o
artista as matou.

Meu coração está partido, meu coração de mãe sangra demais! Porém, devo manifestar
que tal é apenas um sentimento egoísta, porque elas estão felizes, vivem finalmente.

Eu não inspiro ninguém, não poderei nunca viver, apenas fico na mente das pessoas,
apresentando-me quando precisam de mim, quando me chamam.

É meu destino, por nunca haver nascido.

O NADA: O artista morre, a arte fica.

A memória se dispersa, ninguém se lembrará do artista!, e um dia nem de sua obra.

Tudo volta ao nada.

Coro: OUVE A VOZ DA SABEDORIA, NEANDRUS.

JÁ NÃO OUVE AS VOZES DAS MUSAS.

MORRA! E VENHA SER FELIZ CONOSCO.

89
LAYLA: Neandrus, você me inspira. Você é a minha musa! Posso te amar ou não,
poderia te amar como homem, como a um semelhante ou como a um Deus, mas eu amo
você através da sua obra, e você me inspira. Você me inspira a amar e a viver.

LEANDRA: NEANDRUS, EU NÃO VIVO POR VOCÊ, MAS VOCÊ É A MINHA


MUSA!!!

FALA, MUSA MINHA, FAÇA-ME CANTAR!!!

NEANDRUS: Doidivanas!!! Piraste? Vocês estão chapadas? Ou vivem alucinadas


durante o tempo todo? O que dizem?

LAYLA: Leandra, não adianta, Neandrus nada entende. Infelizmente, deixará de ser
nossa musa assim que passar a entender.

A musa não entende por que inspira, como pode ser fonte de inspiração.

A fonte nunca sabe de onde sai a sua água. Então um dia seca, e pode deixar de ser
fonte.

A musa é porque é, espontaneamente. Não se escolhe ser musa, e Neandrus é a nossa


musa.

NEANDRUS: Eu não sou musa! Coisa nenhuma! Sou um artista, embalado pelas vozes
das musas.

LEANDRA: ENTÃO ME ESCULPE!

NEANDRUS: Você me intimida, assim.

RUTE: Esse é o medo do homem perante a grande nudez da mulher!

LEANDRA: Quando eu me dispo completamente diante de Neandrus, o fascínio torna-


se medo.
LAYLA: A grande nudez feminina emudece o homem, deixa o homem tartamudeante,
gago, trêmulo. Por isso meu nome é Layla, a escuridão, porque me exponho por trás de
um véu, e não assusto Neandrus. Assim ele me ama. E eu posso expor meu amor por
ele.

Exponho aos poucos, para que não se precipite, não se engalfinhe e não me devore.

LEANDRA: VOCÊ NÃO PODE FALAR ASSIM, PORQUE NEANDRUS NÃO É


TEU, NEM É MEU.

LAYLA: Eu sei. Neandrus é casado com Eloína, e eles se amam. Nós os amamos,
também. Mas é diferente. Um pouco de nós está em Eloína, e um pouco dela em nós.
Devemos encontrar outro Neandrus.

Eu quero ser mãe, preciso de um homem.

Séfora, você que é mãe de Lílith e de Eloína, diga para mim, o que é o sentimento de
mãe?

SÉFORA: Eu sei o que é ser mãe.

Compreendo a Memória, ela perdeu suas filhas, mas nunca foi tão feliz por elas.

Eu, Séfora, sou mãe de Lílith e de Eloína. Tive apenas duas filhas.

Lílith foi minha perdida, tinha em si a maldade e a injustiça, e cometeu os erros por ter
tentado ser justa consigo mesma. Faltou-lhe o amor.

Eloína tem o amor dentro de si, e por isso conseguiu o que eu gostaria de ter sido.

Não tive um marido, tive homens que me bateram, me dominaram, me subjugaram e me


deixaram prostrada.

Não fui amada, me tiveram, me estupraram, me fizeram objeto.

Lílith nasceu com a minha raiva, tornou-se vingativa….

Eloína absorveu o amor que nunca pude dividir, e hoje ela o divide com seu marido.

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CORO: SÉFORA, NUNCA DEVERIA TER FALADO!

SÉFORA, VOCÊ É A VERGONHA DE NOSSO POVO!

SÉFORA, VOCÊ NUNCA SERÁ UMA DE NÓS,

NÓS TE RENEGAMOS!!!

RUTE: Séfora, não há mulher como ti. Não fosse você, eu nunca poderia ter estudado e
adquirido as vias do conhecimento. Você me fortaleceu, e hoje sou Rute, a mulher que
aconselha e que faz acontecer.

MEMÓRIA: Safo se quis minha filha, ela diz a todos que é minha filha, mas eu a
desconheço. Tenho por ela apenas a sapiência de que ela sempre ouviu as musas,
minhas filhas de verdade. Não conheço Safo, e não a reconheço minha filha.

SAFO: Todos me conhecem, menos a Memória.

Ela se esqueceu de um dia ter me adotado como sua décima filha.

Tornei-me, aquele dia, filha de Platão com a Memória, adotada com todas as honras. E
agora a Memória está esquecida de mim.

Por isso, ninguém mais canta meus poemas. Se o artista sobrevive através de suas obras,
então morri.

O NADA: Você morreu, e tua obra ninguém mais conhece. A Memória te abandonou.
Você já é quase parte do Nada.

CORO: CONFORME-SE!

SEJA UMA CONFORMADA, SAFO DE LESBOS,

NINGUÉM MAIS SE LEMBRA DE TUAS CANÇÕES...

VOCÊ MORREU, FAÇA PARTE DE NÓS.

NEANDRUS: Safo, você está viva!


Rute, Leandra, Laila, Séfora! Vocês também estão vivas!

Eloína e Lói, vocês vivem!

Sibila, você também!

Vamos para a vida, não há mais musas para nos inspirar, A VIDA NOS INSPIRA!

VAMOS!!! VAMOS!!! VAMOS!!! VAMOS!!! VAMOS!!! (todos os atores e atrizes


vão para a platéia, misturando-se entre as pessoas da platéia. Ficam no palco: O
CORO, A MEMÓRIA, e O NADA!)

CORO: NÃO ADIANTA NEGAREM O DESTINO.

TODOS ESTARÃO AQUI DE VOLTA UM DIA!

VIVAM, SEUS MISERÁVEIS,

NADA PODERÁ TIRAR O DESTINO INEXORÁVEL DAS SUAS MORTES!

O NADA: TUDO SERÁ NADA!

Todos são ninguém, não adianta correrem, vão se tornar nada!

(Os sons se erguem, o coro e o nada se afastam, como que arrastados para os cantos do
palco. Fica no centro apenas a Memória. Metatrom deve entrar no palco da maneira
mais estrondosa possível, mais magnífica possível, tudo deve ser centralizado nele, e
ele ficará muito próximo à Memória.)

METATROM: VIVER É ESCOLHER, A VIDA É ESCOLHER E ASSUMIR AS


SUAS ESCOLHAS, VIVENCIAR O QUE SE QUER.

A VIDA É ACREDITAR.

ACREDITE, NEANDRUS, VOCÊ PODE!

MEMÓRIA(Assustada): Quem está falando? Não te conheço...

93
METATROM: SOU O MENSAGEIRO DO TODO PODEROSO, O MENSAGEIRO
DA PROVIDÊNCIA MISERICORDIOSA.

EU TRAGO A MENSAGEM DAQUELE QUE VENCE O INEXORÁVEL, O


IMUTÁVEL, EU TRAGO A MENSAGEM DAQUELE QUE PERMANECE PARA
SEMPRE, PORQUE SIM.

MEMÓRIA: Porque sim...

METATROM: Trago a mensagem do Sim, porque o Sim engloba o Não e a existência.

A negação do Sim não é o Não.

A negação do Sim é a negação do Ser.

A negação do Sim é a negação do Ser e a negação da existência.

Negar aquele que represento, é negar a tua própria existência.

MEMÓRIA: Então, eu existo.

METATROM: Vá, e tome lugar entre os vivos, porque sem eles você não existirá, e
sem você as mensagens não são passadas. Memória, agora te falo, leve contigo a
mensagem que trago.

(A Memória desce do palco e se junta à platéia. Em meio ao silêncio do palco, o coro e


o nada saem pelas coxias. Metatrom, sozinho no palco, grandiloqüente, aguarda pelo
silêncio de todos, austero. Pensa em algo muito engraçado e bom para a próxima cena,
que é a seguinte: Começa a abrir um largo sorriso e os braços, como um Cristo
Redentor, respira e diz com todas as suas forças:)

METATROM: IDE! MISSA EST!

_____________________________________________________________

fim - Caraguatatuba, inverno de 2001.


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A Farsa do Violêro, Onde Ele Trama com o Demo,
Corta Contrato e Escolhe o que Quer.
(INSPIRADO NOS CANTADORES DO BRASIL.)

Personagens:

1. Narrador

2. Narradora

3. Violeiro

4. Mãe do Violeiro

5. Fazedor de Violas

6. Moça Bonita

7. Anjo do Mal (é o primeiro anjo que aparece na história, e reaparece pelo meio
pro fim.)

8. Anjo do Bem (é o que aparece por último)

9. Pedro, o Dono do Bar Central

10. Frequentadores do Bar Central

(É UMA FARSA PARA CONTAR UMA HISTÓRIA VERDADEIRA, COMO TEM


QUE SER. TEM JEITO DE HISTORINHA INFANTIL, MAS É SÓ PRA DAR UM AR.)

97
NARRADOR: O violeiro aprendeu as primeiras cordas ainda quando criança, nem se
lembra a idade, mas lembra que sua viola foi comprada quando ele tinha 15 anos. Ele
mesmo comprou, estava louco para encantar a mulherada, e procurou um construtor de
violas. Chegou lá e encomendou uma das boas. Passou um tempo, ele voltou, estava lá.
Mas ela não tinha ainda nascido. Quero dizer, a viola estava ainda no ventre da música.
Pronta, cordas colocadas, afinadas em rio abaixo, mas não tinha ainda a alma própria.
Faltava viver. Porque uma viola não vive, não existe, enquanto não tiver seu dono,
enquanto não tiver quem a toque, quem a encante.

NARRADORA: Há pessoas que escolhem seu caminho durante sua vida, e


perseveram, com a vontade férrea e energia. Não importando em quê, mas o fazem
porque acreditam. Essas são as que escolheram o seu caminho. Outras, vivem a
duvidar e nunca escolhem. Não estou falando de profissão, nem de casar ou andar de
bicicleta, mas como se pegar diante de todas as frentes, como encarar o que há por
diante e sobre o que fez. Ao que você se apega, ou não, isso é uma coisa que importa.
Mas viver o que se crê é a força que nos faz viver.

NARRADOR: O terrível e o maravilhoso sempre se encontram no final de nossas


vidas, quando escolhemos entre fugir ou ir atrás da luz. Ambos estavam por se
encontrar naquela viola. O violeiro, 15 anos, pagou pelo instrumento, centavo por
centavo, e o fazedor de violas disse:

FAZEDOR DE VIOLA: Agora a viola tem que ter alma. Ela ainda não existe em lugar
nenhum. Eu só a construí, mas a alma é você que vai dar pra ela.

VIOLEIRO: Sô nada! Viola não tem alma, o tocador é que tem.

FAZEDOR DE VIOLA: Ói qui tô avisando! A alma do tocador faz a alma da viola.


Toque agora.

VIOLÊRO: Agora não. Preciso ir embora.

FAZEDOR DE VIOLA: Tá certo. Mas ela ainda não nasceu.

NARRADOR: O violeiro matutou, matutou, e achou melhor ir embora rápido. Não


atinou que existia ali uma idéia de transcendência, de organizar um mundo. Parecia que
ia fazer chuva feia, trovão barulhento e ia acabar amassando muito barro até em casa.
Nem se despediu, correu. O sol estava forte, mas parecia que de repente o tempo ia
mudar. O violeiro correu, correu que nem um doido, correu sem perceber que o fôlego
estava acabando, correu até ficar com a língua de fora, correu que nem um danado,
correu que nem percebeu para onde corria, nem viu que sua casa ficava pro outro lado,
correu como se fosse uma barata assustada. O violeiro nunca teve medo de chuva, mas a
viola podia estragar. Era nova, linda, feito uma bonita moça. Ela ia ser a sua nova
namorada.
NARRADORA: O terrível e o maravilhoso acabam um dia se encontrando. Você pode
fugir a vida toda dessa encruzilhada, mas um dia terá que inevitavelmente escolher. No
momento de sua morte, uma luz inexplicável irá aplacar todas as suas dúvidas, e você
saberá se quer segui-la ou não. Ninguém estará lá para te ajudar, será um momento só
seu, só você saberá se irá em direção a essa luz ou não. Depende de você. Só você
saberá se estará a fim de ir em direção a essa luz ou não. E o que existe fora dela?
Nada. É o niilismo do existencialismo, que só conhece o vazio crivado de seus
fantasmas pessoais.

NARRADOR: O violeiro sentiu o cansaço sair pela boca, e parou, caindo ao chão,
deixando que a viola caísse sobre si. Parado, parado, deitado, sentiu a cabeça rodar,
rodar, rodar, parecia que tudo rodava, e de repente escureceu. No que escureceu, logo
começou a clarear. Já não havia tanto sol. Era final de tarde. A viola já não estava mais
em cima dele, estava do lado, e parecia que alguma coisa estava diferente. Ela parecia
que vibrava sozinha, esperando um toque. O violeiro pegou a viola com o carinho de
um rapaz com a sua garota, e decidiu tocar. Afinou corda por corda, entre ponteados e
acordes, e por fim silenciou. Ficou ali sentado no chão, parado, com a viola na posição,
esperando nada. Ficou ali, como se soubesse o que o esperava.

NARRADORA: Entre as instituições da busca estão as drogas, as meditações, os


dogmas, tudo que seja estabelecido pelo homem. Digo homem como sociedade, como
membro social, não como indivíduo. Porque a busca individual fará o sentido se
aproximar do ego, e ambos se ligarem a uma verdade. Nem sempre será a resposta
ideal, mas será um resultado.

NARRADOR: Nada aconteceu. Levantou sem largar sua viola, e caminhou para casa.
Mas onde era sua casa? Estava perdido, nunca estivera ali. Então foi que percebeu que
alguma coisa estava dentro de sua viola. Balançou, balançou, e achou dentro dela uma
ponta de rabo de cobra. Uns ossinhos que tocavam, um chocalhinho medonho, coisa que
parecia do demo. Jogou fora. Virou as costas e, subitamente, a luz foi se aumentando, e
viu um grande anjo branco, asas brancas, tinha até uma auréola na cabeça, igualzinho
ele via nas igrejas.

NARRADORA: O terrível e o maravilhoso finalmente se encontraram para o violeiro.


Na sua frente um lindo anjo, branquinho, cabelos loirinhos, uma enorme túnica branca
e asas brancas, com uma auréola dourada na cabeça.

NARRADOR: Puxa, que bonito! Então, sem mais esperar, o anjo lhe falou:

ANJO DO MAL: Violeiro, violeiro, quer tocar pra encantar as mulheres? Eu sei que
foi para isso que você comprou essa viola.

VIOLEIRO: Oh, meu anjo, meu doce anjo, sim, como você sabe?

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ANJO DO MAL: Tenha respeito comigo, eu sei tudo, sei de tudo que tá no passado, no
presente e no futuro. Sei de você, do seu mais íntimo, te conheço como a palma da
minha mão.

VIOLEIRO: Meu senhor, senhor anjo, me benze pra eu ser o melhor tocador de viola
do mundo!

ANJO DO MAL: Eu te benzo pra ser o melhor tocador de viola do mundo. Você vai
encantar as moças que ouvirem o seu toque nessa viola e em qualquer viola, mas você
tem que respeitar o que já combinamos. Bota de volta o rabinho de cobra que você
jogou.

VIOLEIRO: Aquele chocalhinho medonho? De osso?

ANJO DO MAL: É. É ele que vai fazer a viola soar melhor, e eu vou fazer você tocar
melhor que qualquer tocador. Ponteia agora pra mim.

VIOLEIRO: Agora?

ANJO DO MAL: É, isso tem que ser assim, você toca e eu benzo.

VIOLEIRO: Mas já num benzeu?

ANJO DO MAL: Comecei, mas não acabei. Tem que seguir tudo como tem que ser.
Nós já combinamos antes.

VIOLEIRO: Quando?

ANJO DO MAL: Deixa de ser tonto, violeiro, você não se lembra? Tô vendo que tu é
mais asno que besta, pensa que desmaiou, mas já andamos conversando e combinando
tudo, só falta eu terminar de te benzer pra você ser o maior violeiro do mundo, e
também encantar as moças de todo o mundaréu que te ouvir tocar. Agora ponteia pra
mim.

VIOLEIRO: O que foi que combinamos?

ANJO DO MAL: Não confia no contrato? Ponteia pra mim!!!

VIOLEIRO: Não posso saber o que já combinamos?

ANJO DO MAL: Você sabe...

VIOLEIRO: Não, eu não...

ANJO DO MAL: Fica quieto, ponteia agora pra mim. E não esquece de cantar,
também, porque eu vou benzer a sua voz. E dança pra mim, também, porque vou benzer
a sua dança.
VIOLEIRO: Eu num sou desses que dança, não, eu só quero tocar e cantar. Encantar o
mulherio não tem precisão de móde de dançá, não. Sou macho! Num vem cum coisa,
qui eu arrepio todo!

ANJO DO MAL: Começa a pontear, garoto safado, meu tempo está se esgotando. Se
você não começar logo, tudo termina, e eu não vou poder te benzer. Agora é a hora
certa. Ponteia, canta e dança.

VIOLEIRO: Não sei dançar...

ANJO DO MAL: PONTEIA!!!! CANTA!!! DANÇA!!!!! EU ESTOU


MANDANDO!!!

NARRADOR: O violeiro ficou sem graça. Meio sem jeito, ponteou. Saiu feio. Ponteou
de novo, e foi ponteando até que começou a tocar como nunca havia tocado. Começou a
cantar, e parecia que a voz saía de num sei onde, uma voz que ia agradar o mulherio. E
começou a andar em círculos, volteios, e dançar, sem perceber. Enquanto isso, o anjo o
olhava e falava baixo, e parecia que uma multidão de vozes falava junto, e o som da
multidão foi ficando cada vez mais alto, até que, de repente, a luz se apagou. Todo
acabou. Silêncio.

NARRADORA: Tenho minha religião e a sigo, gostaria que todas as pessoas


pudessem segui-la, mas desde que houvesse verdadeira certeza. Quero que tenham
convicção do que fazem, veracidade de si mesmo no caminho escolhido.

NARRADOR: O violeiro chamou pelo anjo. Nada. Só o eco de sua voz e o escuro.
Decidiu dormir por ali mesmo.

NARRADORA: Ao acordar, já era início do dia. A viola do lado. Parecia que tinha
tido um sonho estranho. Ele mesmo parecia outro. Mas ainda era igual, o mesmo, tinha
15 anos e uma viola nova. Com o chocalho macabro dentro. E lá se foi o violeirinho
para casa.

NARRADOR: Ele agora sabia onde estava, sua casa estava pertinho. Como ia explicar
pra sua mãe a ausência noturna?

MÃE DO VIOLEIRO: Onde ocê teve a noite toda?

VIOLEIRO:- Ah, mãe, fui na casa do tio.

MÃE DO VIOLEIRO: Mentira!, seu danado. Eu fui até lá e ocê num tava.

VIOLEIRO: Não, mãe, sabe o que é? É que eu desmaiei, e daí vi um anjo quando
acordei.

MÃE DO VIOLEIRO: Cala essa boca, fío, e fala pa eu a verdade!!!

101
VIOLEIRO: Mas é verdade, mãe...

NARRADORA: Só que não aconteceu nada disso. Ora, qui não!!!

NARRADOR: Pois é, minha gente. O qui se assucedeu foi que o violeiro chegou em
casa e a mãe falou:

MÃE DO VIOLEIRO: Teve um home aqui te apercuando. Ele quer te dar tabáio no
bar. Coisa de tabáio fichado. Falô que tá apercisando de arguém que toque música lá, pa
chamá a feguesia.

VIOLEIRO: Ele paga bem?

MÃE DO VIOLEIRO: Acho que paga. Vai campiá na cidade, apercura o Bar Centar,
fala cum Pêdo. Ele que teve aqui.

VIOLEIRO: Como é que ele soube que eu sô violeiro?

MÃE DO VIOLEIRO: E eu sei? Arguém falô de ocê pra ele. Nim eu sabia que ocê
ponteava, só tinha oiado ocê carpí, num sabia que tinha apendido a pontiá. Cuidado,
minino, isso é coisa que pode fazê vontade do coisa rúim.

VIOLEIRO: Deixa disso, mãe, fui aprendendo de ver o tio tocar, e fui treinando, até
que comprei a minha própria viola. Bonita, né?

MÃE DO VIOLEIRO: Paéce uma muié. Se fosse ocê, eu tomava cuidado. Ma ocê já é
home, sabe o que pode e que num pode fazê.

VIOLEIRO: A bença, mãe.

MÃE DO VIOLEIRO: Senhor ti bençôi, fío. Vai cum ele e num sai do caminho. Tá
cum sua cúis?2

VIOLEIRO: Tô mãe.

NARRADORA: O violeiro seguiu caminho. Até a cidade iam horas e horas de estrada.
Na mão esquerda, a viola; na direita, uma trouxa. No meio do caminho, parou para
descansar debaixo de uma árvore. Sentou sobre a trouxa e botou a viola do lado. Fazia
um sol dos diabos! Limpou o suor, pegou a viola e começou a tocar.

NARRADOR: E enquanto tocava, uma bela moça passou. Ói só, que moiçona!!!

VIOLEIRO: Ê, moça, faz que hora?

MOÇA: É meio-dia, moço.

2
Cúis: cruz.
VIOLEIRO: ’igado.

NARRADOR: A moça olhou o violeiro, que voltou a tocar. Não era comum, aquela era
especial. Ele tocava olhando a moça com o rabo do olho. Quando ela ficava de costas,
ele aproveitava para olhar direto. Aí, ela virava, e ele abaixava a cabeça, rápido. Por que
ela parou ali?

MOÇA: O seu moço toca faz des minino?

VIOLEIRO:Eu toco desde que o coisa rúim me ensinou.

MOÇA: Então me segue que eu te levo pro bar central.

VIOLEIRO: Como ocê sabe que eu vô pra lá?

MOÇA: Eu sei, moço. Você toca muito bem, tem que tocar lá, porque lá é o lugar onde
tocam os melhores. Tão precisando de um violeiro, e você é muito bom, tem que tocar
lá. Ponteia um pouquinho pra mim ver, e canta alguma coisa.

VIOLEIRO: Quer que eu dance também?

MOÇA: Quero.

NARRADORA: Ele estava encantado pela beleza da moça. Ela era mesmo bastante
atraente. Não tinha porque ter vergonha de apresentar o dom pra uma mulher tão bonita.
O violeiro levantou, tocou, cantou e dançou. Enquanto isso, ela olhava com a cabeça
inclinada, fazia pose, dançava, batia palmas no ritmo, até ele parar. Olha como tava
bonito.

(...)

NARRADOR: Quando parou, ela disse:

- Vamos no meu carro. Ele está lá.

- Ué, eu num tinha visto. Como é que eu num tinha visto? O carro é seu?

- É.

- Bonito. Um dia vou querer um assim, brilhoso, grande, importante!

- Vai ter.

Narradora: No caminho, o rapaz foi contando vantagem e a moça dando risada de


tudo. O que a inconseqüência da juventude traz são os percalços futuros. Mas para quê
pensar no que virá, se estamos já chegando no Bar Central? E em grande estilo! O local
não era grande coisa, mas para um desmiolado apaixonado e maloqueiro, era um
palacete. Uns gatos pingados, algumas mesas, um balcão e uns bêbados encostados, o
103
Pedro atrás do balcão. Sem música, a não ser uma caixa de abelha ligada na força. Era o
momento da Ave-Maria. Pedro desligou o rádio. Entraram a moça e o violeiro.

Falou Pedro:

Pedro: Ô, menino, se tu é mesmo violeiro, ponteia aí alguma coisa pra eu ver se tu é


dos que faz força ou dos que toca pra diabo.

Moça: O violeiro canta e dança também. É um choumêm.

Narrador: No silêncio, até os mosquitos pararam para ouvir o rapaz tocar. E enquanto
tocava, sons apareciam de algum lugar, sem ninguém estar tocando, acompanhando o
violeiro. Era som de atabaques, tudo entrando pouco a pouco, cada um após o outro,
formando um enorme conjunto.

VIOLEIRO: Pára!

(E tudo parou. Ninguém se mexia. Todos os olhares estavam para ele. Parecia
maldição. Voltou a tocar. Voltou a ouvir os atabaques, e agora tinha também
chocalhos. Não deu crédito e continuou.)

(Então, parecia que o bar era realmente um palacete, e o violeiro começou a cantar e
andar por entre as mesas, enquanto o conjunto todo entrou em cena: gente com
atabaques, guizos, chocalhos e pandeiros. O pessoal do bar, a moça e o Pedro batiam
palmas e dançavam. O violeiro fazia sua cantoria:)

VIOLEIRO: Ocêis tão pensando que a vida é um mar de rosa, mais as rosa têm ispinho
pa picar genti muída.

Ocêis pensa que a genti é cumida pur caniço e a carga qui u demo faz corrêia faz a teia.

E ocê pensa que a meia é intêra e ocê tece meia teia e a meia vai pu gado i u gado faz
tontêra.

E se ocê pensa qui o gado fais turista arrepiá u pêlo i qui u pêlo é gêlo i u gêlo é du céu?

É purqui ocê num sabi nada i quem sabe di su arma é u coisa rúim qui ti ruína.

E a moça bela, bem bunita, bem cherósa, cheia diárti e bem manhosa enche a casa de
butina.

E a gente pensa tá bafando e tá mesmo é se danando.


E quem danda pru begôio, danda memo pru sifôio, pru calôio e pru dimônho.

E eu tô tocando arto e quando toco eu canto e danço, feito diábo e ele diz que a moça
gosta.

E tudo isto é uma farsa e eu aquedito e faço varsa pra dançá cum santuantónhu.

E u santuantónhu num mi ôuvi e eu num acho um disgaçado pa levá pa o buraco o santu


hómi.

E o santu hómi num aparéci e só aparece o demu hómi e o demu hómi esquevi o nómi.

E é o meu nómi o que ele esqueve e esqueve certo e bem correto e diz preu não falá o
seu nomi.

E diz peu respeitá que ele sabe tudo do passado e do pesente e do futuro.

E eu tenho medo, quero ir cedo pa minhá casa e minhá casa tá pirdida purque tô pirdido
e meio.

Tô avisando, eu tô saindo, aqui não fico, sô di fora, sô dus óio di Nosso Sinhô.

(O violeiro tenta sair. Muita gente, e ninguém dá passagem. Pedro ri, ri, começa a
gargalhar, e fala:)

PEDRO: Você tá querendo ir embora, nêgo? Você pensa que vai, mas num vai não...

VIOLEIRO: Manói nem batemo cont’ato. Minha mãe disse que o negócio era de
cont’ato fichado, na lei.

PEDRO: Que lei? O contrato nós já fizemos. Você num lembra?

VIOLEIRO: Não.

(Um tapa da moça no rosto do violeiro. Ela está atrás dele. Ele se vira pra revidar, mas
fica com a mão no ar:)

VIOLEIRO: Eu num revido puquê ocê é muié. Senão, eu revidava.

MOÇA: Então revida se é home.

105
VIOLEIRO: Sô macho, mas não bato em muié!

MOÇA: Então leva mais esta.

(Páu! Tá todo mundo olhando.)

VIOLEIRO: Ocê num p’esta, mesmo, ô danada! Vai pa casa, vê se atenta ot’o.

MOÇA: Eu quero é atentá você, meu docinho de côco. Vamos apercurá um canto mais
gostoso?

Violeiro: Vade retro! Tô sentindo que aqui num é meu lugá. Meu Nosso Sinhô, me
ajuda!

Moça: Você assinou o contrato, eu vi, eu tava lá, o Pedro também, tava todo mundo lá,
vendo você assinar, tem testemunha bastante, todo mundo assinou testemunhando a sua
disgracêra. Agora tu já tá danado. Pode tocá sua viola, que vai tocá maravilha, e todo
mundo vai ficá maravilhado. Os muierio tá aqui, tudo ardendo de vontade de você, pode
vê, as uma tá mode encantada com a sua cantoria, as de mais lá com sua dança e de
mais cá com a sua violada. Canta, vamo, dança, toca pra gente ouvir e te querer. Já tá
danado, pra danado e meio é só um passo, adianta logo que o inferno te espera. Pra
quem já tá, num custa abraçar o capeta.

VIOLEIRO: Eu vou embora daqui.

MOÇA: Tenta.

VIOLEIRO: Eu vou.

PEDRO: Vai.

(O violeiro se ajoelha, abaixa a cabeça, e começa sua reza, baixinho, baixinho, ...

Silêncio. Tudo pára. Vai escurecendo. Escuridão total.

Clareia. É aquele ar de madrugada.

O violeiro olha e vê o anjo de novo. E se levanta:)

VIOLEIRO: Ai, que bom, seu anjo, tava te apercurando.

ANJO DO MAL: A mim? Pois estou aqui. Fale!


VIOLEIRO: Num quero mais tocá viola, é muito ruim, tão querendo me levá pro
inferno.

ANJO DO MAL: Imagine só, isso é mentira deles. Vem que eu vô ti benzê di nôvo.

VIOLEIRO: Ai, meu Nosso Sinhô Jesus Quisto, me benze, fala com teu Pai!

ANJO DO MAL: Quieto!

VIOLEIRO: Ué, que que você tem contra meu Nosso Sinhozinho?

ANJO DO MAL: FICA QUIETO, DEIXA EU TI BENZÊ.

VIOLEIRO: Ocê num é anjo não. Vade retro! Vade retro, satanás!!!

ANJO DO MAL: SÔ ANJO, SIM, SE AJOELHA E ME ADORA, SEU SAFADO!

VIOLEIRO: Ocê é anjo, sim, mas é anjo do demo, e esse eu não quero! Ai, meu Nosso
Sinhozinho! Ai, meu Jesus Quistinho, pede po seu Santo Pai Sup’emo me ajudá, num
quero mais sabê di viola!!!

ANJO DO MAL: DEIXA EU TE BENZÊ, SEU DESMIOLADO!!! AJOELHA E ME


ADORA!!!!

VIOLEIRO: Meu Jesus Quistinho, fala com o seu Paizinho, que é meu Paizinho do
Céu, fala p’ele me ajudá, tô aqui apercisando...

(A luz se concentra no violeiro. Ele cai de joelhos, a viola do lado, em volta tudo
desaparece. Em posição de quem chora, ele rola pelo chão, e a luz fica mais intensa.
Então, na posição de um muçulmano orando, ele ouve:)

ANJO DO BEM: Cantai e dançai, que os doces cânticos agradam a Mim.

VIOLEIRO ... (ajoelhado como um cristão qualquer.)

ANJO DO BEM: Eu Sou o Vosso Senhor Jesus Cristo. Não abandone a viola, ela vai
te ajudar a cantar o que me agrada. Música é bom, e alegra o Santo Espírito. Faz bem
para os homens e para Nós.

VIOLEIRO: ...

ANJO DO BEM: E continue a dançar, existem danças que me agradam, nem toda
dança é do inimigo.

VIOLEIRO: ...
107
ANJO DO BEM: Esqueça da cauda da cobra. Pode deixar dentro da viola que
superstição é uma coisa, tradição outra. Fique com a tradição, ouça o seu povo, mas
saiba que o Poder é Meu. O pedacinho de cobra não vai fazer a mínima diferença.

VIOLEIRO: ...

ANJO DO BEM: Você falou e eu te ouvi. Vai, que você tem uma vida inteira pela
frente.

VIOLEIRO: ...

ANJO DO BEM: O contrato não valeu, faltou a sua vontade ser exprimida, você não
estava consciente para os atos de sua vontade. Agora sim. Vá, e toque a sua viola.
Toque sua viola para acordar os que ainda dormem, para libertar os oprimidos e
derrubar os opressores. Toque sua viola para dar força aos que trabalham e aos que
vivem a buscar Meu Santo Nome, o Meu Caminho. Vá, meu irmãozinho, e toque sua
viola para os que têm sede e os que têm fome, e para quem busca a justiça, a verdade,
toque para as pessoas de boa vontade.

VIOLEIRO: ‘igado, meu Jesusinho Quisto, ‘igado.

ANJO DO BEM: Ah, sim, e nunca mais entre no Bar Central.

(A luz fica normal e tudo se clareia. É dia já. O violeiro levanta, pega sua viola e sai a
pontear. Ponteia, ponteia, e canta:)

VIOLEIRO: Minha viola é meu escudo pa cantá e pa dançá e pa fazê o meu combate.

E eu vô batê cont’a os que vié me fazê basta e vô dizê que canto mêmo.

Eu sô valente, diferente, quero vê quem me arrebata.

E quem quisé cantá comigo é batê parma e fazê eco e cantá junto e dançá feito
marimbondo.

E rola aqui e rola lá e rola tanto de tontá.

E faz um beque...

E faz um teque, um tereréque, um sai-de-baixo e eu tô tocando.

E eu toco pa quem ouve, toco minha viola e vô tocá po meu amor.

NARRADORA: O violeiro continua sua vida, tocando, cantando e dançando. Vai


conhecer uma boa moça, vai se casar, vão ter filhos, vão estudar, vão planejar o futuro,
sonhar e realizar. E eles vão ensinar a filharada que todos podem tocar uma viola, cada
um de um jeito, uma viola do jeito de cada um. O violeiro até inventou uma canção,
mais ou menos deste jeito, assim:

VIOLEIRO, NARRADOR E NARRADORA:

Tem gente que toca piano, tem gente que voa de aeroplano.

Tem gente que troca os dente dos outros, tem gente que faz fígado novo.

Tem gente que defende a gente, tem gente que acusa o outro.

Tem gente que toca britadeira, tem gente que toca telefone.

É interfone , é internete, é omelete, é fritadeira.

É notícia quente, é notícia fresca, é notícia de gilete e rádio.

Tem gente que sabe escrever, tem gente que sabe ler, tem gente que sabe carpí, sabe
trocar cano e torneira.

E ainda tem também gente que vive da desgraça dos outros3.

3
Crianças, não tentem fazer isto em casa. È altamente prejudicial para menores de 2 Mercedes Benz e 1
carro do Planalto Central. (N. do A.)
109
A Última Canção
Personagens

EMÍLIA

MARINA

CARLOS

CLARICE

POHO

GENTE DA PLATÉIA

111
EMÍLIA: Carlos. Meu amigo Carlos. Você não sabe que teus ouvidos estão
sendo provocativos? Você não sabe que você está ouvindo agressivamente? Você não
sabe que tudo o que você vê é com o olhar de quem só enxerga o que não quer ver e que
teme o porvir de si? Não quer o passado, quer o presente unicamente, e só. Só teme o
futuro, mas não quer o passado e só vive o presente, mas não sem dor.

MARINA:

Sim, Carlos,
sim, vive o presente com dor e vontade de viver o que é,
vontade de respirar o ar,
o ar azul,
e a água que o ar contém dentro dele.
Respirar o ar e a água, o ar azul e água límpida, azul de tão transparente que é.
Respirar o ar.
A vontade de respirar o ar azul que é filtrado pelas narinas,
pelos PÊLOS da tua narina,
filtrar as sujeiras do mundo através dos pêlos de nossas narinas,
e ficar limpo e são.
Viver é saber respirar o ar azul e ultrapassar o presente e o futuro,
colocar o traço da letra pê na frente da curva.
Isso! Colocar o traço da letra pê na frente da curva da letra,
como se quisesse ultrapassar o próprio momento presente com o momento seguinte,
esquecendo e querendo esquecer do pê e ir logo ao porvir.

CARLOS: Eu mudei a minha medicação. Mudo agora por conta e risco meu.
Faço do meu discernimento meu próprio médico.

EMÍLIA: Isso é perigoso!

CARLOS: Não, perigo é não confiar no discernimento de si mesmo! Eu tenho


que confiar no meu discernimento, na minha cabeça, no meu poder de escolha. Eu tenho
que confiar nas possibilidades de conseqüência que cada ato meu produz. Eu tenho que
confiar, você entende? Será que você consegue entender? Será que vocês estão me
entendendo?
EMÍLIA: Claro...

MARINA: É... , SIM, CLARO!... Quero dizer, ... sim, entendemos.

EMÍLIA: Estamos entendendo muito bem. Mas você tem que tomar cuidado
com a automedicação. Não pode ir mudando assim, o médico estudou muitos anos para
poder ser psiquiatra, teve que ficar sete anos na medicina e depois se especializou em
psiquiatria, não dá pra deixar de confiar no médico de repente, tem que tomar cuidado!

CARLOS (interrompendo Emília logo onde acima está sublinhado): Acontece


que eu quero levantar meu dia, eu quero levantar o meu dia! Quero-levantar-mas-não-
consigo! É tão bom viver... É tão bom sentir o entorno, a vida em volta de mim, e eu na
vida, você sabe o que é isso? Vocês não estão me entendendo, não estão me ouvindo,
será que vocês não podem me ouvir? Ouçam o que tenho a dizer, depois falem. É assim,
depois que um fala os outros pensam, e se alguém tiver alguma coisa pra dizer, então
diz, mas ninguém é obrigado a ter respostas sempre, ninguém tem que ficar sempre
dando respostas, a ninguém é dado ser o comentador oficial, aqui não tem ninguém de
âncora, é só a vontade de saber o que é.

MARINA (Interrompendo Carlos logo onde acima está sublinhado): Tem que
querer, Carlos, não tem que ficar esperando, acho que tenho medo de você de repente
sair dizendo que não vai tomar medicação nenhuma, isso é complicado.

(Marina e Emília estão agora mudas diante das últimas palavras de Carlos. O
silêncio tem que ser agora ensurdecedor!!! Os três vão quebrar o silêncio ao mesmo
tempo.)

MARINA: Você tem CARLOS: Se olho a EMÍLIA: Eu tenho medo


vontade de ficar olhando o montanha ao fundo, se vejo a que você fique olhando pro
mar e eu penso que isso é baía formada pela cadeia de mar e tenha vontade de
muito bom, às vezes fico pequenas montanhinhas, entrar, entrar pra sempre no
também na praia, e quando rodeando o mar que vem até mar, um suicídio com cara
olho o mar tenho vontade de perto de mim em suas de poesia. Isso me apavora!
entrar. Você não tem vontade ondinhas derradeiras e Você me lembra não sei,
113
de entrar no mar? Ah, eu marolinhas, continuo sentado tenho medo que você um dia
tenho, gosto de chegar e não na areia, sobre uma pedra vá até um lugar desses e não
consigo suportar a tentação, que escolhi. volte mais, fica por lá
acho que sou assim, gosto achando que é melhor lá do
disso. que com a gente.

(...) (interrompendo as duas (...)


assim que termina a fala
anterior.) Marina, Emília,
vocês não estão me ouvindo,
outra vez!... Caramba!
Droga! DROGA, DROGA,
DROGA!!! CARA, QUE
DROGA!!! VOCÊS ESTÃO
AQUI PORQUE QUEREM
ME OUVIR? OU PORQUE
QUEREM FALAR? ... Fala,
Marina, tô te ouvindo.

(...) (...) (...)

(...) (...) Posso falar?

(...) Fala... (...)

(...) (...) Tamos aqui porque gostamos


de você.

Tamos te ouvindo, Carlos. (...) (...)

(...) (...) (...)

CARLOS (mantendo o silêncio e retomando a falar):


Se olho a montanha ao fundo,
se vejo a baía formada pela cadeia de pequenas montanhinhas,
rodeando o mar que vem até perto de mim
em suas ondinhas derradeiras e marolinhas,
continuo sentado na areia, sobre uma pedra que escolhi.
Continuo onde estou,
porque não tenho vontade de subir as montanhas,
só porque estão lá.
Não tenho vontade de entrar no mar, só porque ele vem e vai na minha frente.
Não tenho vontade de deitar e rolar na areia, só porque está sob meus pés.
Não há porque mergulhar num pedaço da paisagem, porque já estou lá.
É o mesmo ar que me envolve e que respiro,
o ar que envolve toda a paisagem.
Não é ar,
é coisa de prana, de energia, é mais que oxigênio,
é uma verdadeira multiplicidade de coisas que se integram numa única.
Não há porque mergulhar, já estou lá.
Não há porque escalar. Já estou lá.
Já estou no lugar em que respiro a areia, a pedra,
a árvore que me protege do sol das onze horas,
o mar e a montanha,
as pequenas montanhas que formam a cadeia de curvas,
a baía contornando o mar.
Já estou lá porque estou aqui,
e aqui onde estou é todo o lugar que posso ver, sentir, cheirar, ouvir!
(...)
E não estou aqui.
Não fico vendo o que se passa.
O que se passa entra em mim,
da mesma forma como entro no que está à minha volta.

MARINA: Acho que entendo. Você fica no silêncio. Não tem porque ir até lá, porque
você já está lá. É como a gente querer se entender, não adianta irmos até onde o outro
está, porque já estamos lá. É só querer estar, e já está.

CARLOS: De dentro de você, Marina, o silêncio pode te calar, até vir a oração, e você
ora ao Deus que você conhece, um Deus que já tenha sido homem, e você pede pra ele.

MARINA: Sim, eu peço pra esse Deus que eu conheço, e que um dia foi um homem,
para que me deixe sentir a Deusa. Porque se tem um homem, tem uma mulher. A
mulher que o meu Deus protege. E ela se manifesta para mim. Um dia, tive essa
experiência.

EMÍLIA: Experiência é a base da teoria científica. Então você tem uma tese científica.

115
MARINA: Cala a boca, Emília, tô falando de outra coisa!

EMÍLIA: Tô enriquecendo o assunto. Deixa de ser tão radical.

MARINA: Isso não é enriquecer, é destruir o que estou criando. Você está enrijecendo o
meu discurso. Eu estou falando que eu peço pra esse Deus que eu conheço, e que um dia
foi um homem, para que me deixe sentir a Deusa. Porque não pode existir homem se
não existir uma mulher. A mulher que o meu Deus protege. E ela se manifesta para
mim. Um dia, tive essa experiência, como eu já estava falando e fui duramente
interrompida pela Emília.

EMÍLIA: Já falei que não interrompi. Você terminou sua frase e eu apenas enriqueci a
conversa.

MARINA: Não dá pra continuar. Foi uma coisa tão boa, tive uma experiência tão
gratificante, não dá pra ficar assim, perdi o jeito de falar.

CARLOS: Você estava falando da Deusa das deusas, ela se manifesta através das águas,
de todas as águas, as águas dos mares, dos lagos, dos rios, as águas que estão nas
moléculas do ar, na chuva, nas nuvens, as águas de cima da abóbada celeste e as águas
que estão abaixo da abóbada celeste, as águas de nossos corpos.

MARINA: A mulher tem mais consciência dessas águas de dentro de seus corpos,
regendo os seus humores, a lua regendo nossas águas internas e nossos modos de bem-
estar. Quando alguém nasce em nossa barriga, fica dentro de uma água. São todas as
águas de todos os líqüidos.

CARLOS: Não estou dizendo que os líqüidos são a Deusa.


MARINA: NEM EU, SEU TONTO! São a manifestação da Deusa das Deusas. A que
rege as Deusas da Natureza. A geratriz, a Deusa Geratriz das Deusas da Natureza e de
todas nós, mulheres, e todos os homens.

EMÍLIA: Rainha das Rainhas, Deusa das Deusas.

MARINA: A Deusa minha Mãe, porque Deusa das Deusas e dos Deuses da Natureza.
Ela rege as forças da natureza que agora eu sinto. Ela rege, na verdade, os deuses e
deusas da natureza que sinto. E se eu pedir, se eu precisar realmente, ela se manifesta
em si.

CARLOS: A História mostra diferentes respostas para cada uma das inquietações
interiores, humanas. Falo das inquietações filosóficas.

MARINA: Como disse Lucília para Teotino, o importante é a pergunta, mais que a
resposta. As inquirições primordiais são o próprio nascimento da filosofia. Quem sou
eu? Quem nós somos? O que é a existência? Por que a gente existe? Por que a vida? Por
que a gente vive?

CARLOS: Qual a origem do mundo? Qual a origem do Universo? Foi criado?

MARINA: Dizem que uma explosão inicial deu o pontapé da criação. Tudo começou de
um ponto que explodiu.

CARLOS: E antes do ponto?

EMÍLIA: Nossa! É mesmo!!! E ANTES DO PONTO, O QUE HAVIA ANTES DO


PONTO???

117
CARLOS: A gente tinha que se lembrar, porque se não tinha ponto havia que ter
memória.

MARINA: SEM MEMÓRIA NÃO HÁ HISTÓRIA!!! ...Do que vocês estão falando?

CARLOS: Deus criou a si mesmo? E o que fazia antes disso? Nasceu? Foi criado por
quem? Se os Deuses foram um dia homens, e esses homens se tornaram Deuses, o que
havia antes deles?

MARINA: Existir prevê um começo e um fim. E se não tiver eternidade? O que é o


nada? Como é que chegamos aqui? Tem vida fora da vida?

EMÍLIA: Tudo o que resume é o amor. Amor é a resposta, a vida, o caminho. O amor é
o caminho.

MARINA: E o que é amor? Caridade, compaixão, dó? Erotismo? Amor acaba? Amor
nasce? Amor é sempre existente?

EMÍLIA: Como é que vou saber? Vocês perguntam cada coisa...

MARINA: NÃO INTERESSA A RESPOSTA, EMÍLIA, VOCÊ SEMPRE QUER DAR


UMA RESPOSTA, CHEGA!!! CHEGA DE RESPOSTA!!! TÔ CHEIA DE TANTA
RESPOSTA, PARA TÃO POUCAS PERGUNTAS... estou cheia de tanta resposta...
As perguntas são tão poucas, e você vem querendo solapar a idéia de perguntar, de
perceber. Você está querendo acabar com nossa alegria, com a nossa alegria de
descobrir a pergunta.

EMÍLIA (Em vias de chorar, tá quase lá.) Eu não estou tirando a alegria de ninguém,
vocês estão me deixando confusa!!!
MARINA: Existe uma vontade e um sentido por trás de cada ocorrência. Uma vontade
por trás de cada ocorrência, sempre houve alguém que quis o que aconteceu, ou que
pelo menos quis alguma coisa que causasse o ocorrido. E tem também um sentido para
cada acontecimento, nada é por acaso.

EMÍLIA (O semblante já está ficando com aparência de choro... E agora ela vai
desatinar, cair no choro de verdade, enquanto fala): Marina, você não está entendendo
nada, eu não estou aqui tentando fazer nada de mais, estou só colaborando para que tudo
se possa ir ao melhor termo. Eu tenho um objetivo, e estou lutando para conseguir esse
objeto.

MARINA: E por quais princípios? Emília, se não tiver princípios, a finalidade se


acaba!!! Fica tudo sem sentido, não tem mais porque.

CARLOS: Ei, peraí, vocês combinaram tudo antes? O que vocês querem comigo? Estou
falando de meus sentimentos, do que imagino seja uma renovação, embora me sinta
como constipado, sabem como é, resfriado, com a cabeça pesada e um sono nos olhos.
Estar acordado e levantado para um dia novo, cheio de promessas ainda não ditas!

MARINA: Carlos, o mundo é ilusão. É tudo mentira! A Emília ainda não compreendeu
que vivemos uma ilusão, e só porque vivemos dentro da mentira, não temos que achar
que temos que viver dentro da ilusão. Sem mentira, sem ilusão, sem disfarce. Eu queria
lembrar aquele disco da Joni Mitchell, ela de costas para o fotógrafo, em cima das
pedras, de frente para o mar, lembrei da minha experiência, e do que tava contando o
Carlos. O mundo em que vivemos não é evidência de nada, não prova nada. Dizer que a
simples existência do que percebemos prova alguma coisa é o mesmo que dizer que a
ilusão prova uma verdade. É como dizer que a mentira demonstra o que queremos
provar. O disfarce não oculta mais do que mostra. São tentativas de se chegar até um
lugar. O mundo é uma ilusão, nós somos uma ilusão, e se quisermos provarmos alguma
verdade através das ilusões, só vamos concluir mentiras, disfarces e imaginações. Meras
alegorias do desconhecido. VIVER É EXPERIMENTAR O QUE NOS É
OFERECIDO, ... Mas se eu não puder escolher o que experimento, então não vivo. Se
não posso escolher o que quero, não estou vivendo. O hábito faz a gente querer acreditar
que o mundo não é uma ilusão. O hábito nos faz querer crer que o mundo é a evidência
de alguma coisa. Mas isso é um hábito, só um costume que gostamos de sempre
lembrar. E nossas lembranças preenchem o vazio de nossa existência.

119
CARLOS: Você falou vazio da existência? Cadê o vazio?

EMÍLIA (chorando): Que vazio?, Marina... Você está louca?

MARINA: Eu falo que a existência se torna vazia quando não existe busca, quando não
se deixa aflorar as perguntas. Viver é aprender e se admirar, surpreender-se sempre com
as tentativas da ilusão parecer verdade. Viver é estar desperto, é percorrer o caminho da
contemplação e do movimento, é saber parar nos momentos em que se precisa parar, e
saber recomeçar quando é necessário recomeçar.

CLARICE (entrando em cena): Eu estou plena de viver. Estou satisfeita de vida, cheia
de viver, é só o que anseio, viver! Meu nome é Clarice. E você, Carlos, nunca confiou
em mim, você me fez sentir uma inútil! Em todos os lugares, em todas as ocasiões, você
me fez parecer uma frágil criatura, alguém que não tinha qualquer importância, a
mínima inteligência, como se ainda estivesse faltando muito para receber a tua
confiança.

CARLOS: Clarice, eu confio em você. Você tem que entender que não é assim, você
não sabe o que aconteceu.

CLARICE: VOCÊ NÃO CONFIA EM MIM, e acha que ainda sou como criança. Não,
as crianças você trata bem, gosta, você me trata como se eu fosse uma demente, uma
doida irrecuperável, sem possibilidades quaisquer, como se eu fosse, sei lá. Não! Você
me trata como se eu não fosse nada, como se eu não existisse de verdade, como se eu
fosse uma caixa vazia, onde você tivesse que colocar nessa caixa a existência, a
verdade, a capacidade. Você tem medo que eu possa te superar, saber mais que você.
Você tem medo de mim, de ver o que sou, de aprender comigo.

CARLOS: Eu não tenho medo de você, Clarice, que doidêra!


CLARICE: Você não presta atenção em nada do que eu digo. Você está ouvindo só a
tua própria voz e nem me ouve! É tão bom viver... É tão bom sentir o entorno, a vida em
volta de mim, e eu na vida, você sabe o que é isso?

CARLOS (Interrompendo Clarice onde está sublinhado para começar sua fala): Você
está roubando meu discurso, Clarice, sou eu que falo isso!(...) Clarice... (...) Quem é
você?, para me falar assim...

CLARICE: Eu sempre quis te agradar, vivi tentando te agradar, vivo querendo te deixar
agradado, e nunca consigo. Você sempre quer outra coisa.

EMÍLIA: É ISSO, CARLOS, VOCÊ NUNCA DÁ UM DESCANSO! PARECE QUE


SÓ SABE RECLAMAR, FICA MAIS CALMO!!!

CLARICE: Emília, não é isso que estou falando!!!

EMÍLIA: COMO NÃO? ACABOU DE FALAR!!! O CARLOS É MUITO


EXIGENTE, TÁ SEMPRE PEDINDO MAIS E MAIS, NUNCA TÁ SATISFEITO.

MARINA: Carlos é um filósofo.

CLARICE: Carlos é um filósofo bobão. Porque não percebe que estou sempre tentando
agradar, estou tentando sempre, até hoje. Quando acho que desencanei, me vejo lá, sob
os pés de Carlos, tentando fazer tudo o que ele me pede. E destruindo a mim, destruindo
meu próprio ser. Não sou eu.

MARINA: Quem é você?

CLARICE: Eu não sou eu, vivo tentando ser agradável o tempo todo para esse palerma,
para esse tal de Carlos, doutor Carlos de Avogadro, o Carlos das mentes surdas, o
121
Carlos das mentes inquietas, o Carlos das mentes assustadas, o Carlos das mentes
adversas! Carlos! Ouve-me! Ouça-me, Carlos, agora!!! Eu estou assustada, eu estou
com medo, me pega no teu colo, me agrada, me faz te querer de verdade, me faz amar a
mim mesma, senão não vou saber te amar. Quem é que eu penso que sou? Não sei o que
penso que sou, nem sei o que sou. Sou o tempo todo tentando ser o que você quer que
eu seja, fazer o que você quer que eu faça, e você nunca se satisfaz, quer me ver sempre
no fundo do poço. Se eu tô no fundo do poço, você sempre pode jogar um balde para
me resgatar. Você constrói os poços, e cada vez que constrói um você me derruba
dentro dele, espera eu gritar, espera que o som ecoe pelas paredes do poço, espera que
ouçam meus gemidos. Então você me joga o balde salvador, e eu me agarro nesse balde.

EMÍLIA: Então o Carlos puxa o balde e avisa a todos que estiverem em volta: VEJA A
CLARICE, ELA ESTAVA NO FUNDO DO POÇO, E EU A SALVEI, EU JOGUEI
PARA ELA O BALDE E MANDEI ELA SE AGARRAR....(como se houvesse outra
saída...) Como é patético, esse Carlos da Boa Vida...

MARINA: E ninguém fica sabendo que quem construiu o poço e jogou você lá dentro
foi o próprio herói... Patético, muito patético. Carlos, você é um pateta!!!

CLARICE: Eu sempre acho que vou conseguir ser o que você quer que eu seja. Mas
você sempre diz de alguém que é melhor do que eu, e me joga num poço novo. Mas o
que quer que eu faça, sempre serei menor, menos hábil. Nunca tenho qualidades, a não
ser as que você inventa para mim.

EMÍLIA: Como pode o Carlos inventar qualidades para você?, Clarice. Como é que ele
consegue? Não dá para inventar qualidades para quem não tem qualidade nenhuma.

MARINA: Cala a boca, sua infeliz. Tá vendendo poço artesiano, agora?

CLARICE: Eu não sinto as qualidades que você inventa para mim, Carlos, porque elas
não existem dentro de mim.

CARLOS: Ora, é você que diz que eu sou muito espirituoso, mas não sou. Eu sou triste.
EMÍLIA (irônica, claro!!!): Você é mesmo uma tristeza, Carlos!

MARINA: IRRA! PÁRA COM TEUS POÇOS ARTESIANOS, Ô, EMÍLIA, DEIXA


DE SER BOÇAL!

EMÍLIA: TÕ FALANDO A VERDADE!!!

MARINA: TU CALA A TUA BOCA!!!

EMÍLIA (agredindo com as duas mãos a Marina): Cala você, sua pernóstica!!!

(Emília provoca agora corporalmente Marina para uma briga, e as duas começam a
brigar, rolar pelo chão, estapear-se, socar-se, enquanto continua a conversa entre
Clarice e Carlos, completamente indiferentes à briga corporal ao lado e à volta deles.)

CLARICE: Sim, Carlos, você é uma pessoa CARLOS: (...)


muito triste, o teu riso tem tristeza no fundo,
você nunca ri por inteiro.

(...) Mas é assim, eu fico triste logo que acordo, porque


sei que não conseguirei no dia que se inicia fazer o
que deveria. Vivo a criar desculpas para evitar
fazer o que realmente sei que preciso, e que na
verdade é o que quero, para apenas fazer o que
Marina e Emília querem.

Não, Carlos, sou eu que vivo a fazer apenas o (...)


teu gosto, e não sei quem mesmo sequer eu sou,
o que gosto, quem eu sou, o que espera minha
vida de mim. E não me venha dizer que esta
fala é tua, porque acho que estamos chegando
no mesmo lugar.

123
(...) Talvez, Clarice. Eu te amo tanto quanto poderia,
mas não sei se consigo amar a mim próprio.

Você diz que sou triste, e sou, mas tenho uma (...)
alegria interior que vive dentro de minhas
entranhas, algo físico, atávico, emergente, e a
qualquer momento deve sair por todos os meus
poros. Eu tenho aflição de pensar que isso pode
ocorrer a qualquer momento.

(...) A minha aflição é poder me descobrir te agredindo.


Meu grande medo é de minha própria
agressividade. Não estou conseguindo controlar,
estou com medo de sair de casa. Tenho medo, sim,
de estar em um local qualquer, e de repente
explodir sobre alguém, apenas por causa de uma
banalidade qualquer.

Você nunca explode por banalidades, Carlos, (...)


você se sente injustiçado, espicaçado,
explorado, apertado contra a parede.

(...) Sim, é como se tirassem o chão debaixo de mim.

Você tem medo do que você pode acarretar.


Você tem medo da sua própria reação.

Medo de mim?

Não sei.

Medo não é talvez a palavra adequada. Penso na


dificuldade que vai nascer, quando todos na cidade
falarem de mim, apontando-me como se eu fosse
um bicho sensível, muito sensível, que a qualquer
momento pudesse tomar atitudes perigosas.

Você seria conhecido como encrenqueiro.

É, num convida ele pra festa, ele é muito


encrenqueiro. Num convida pra solenidade, ele é
capaz de fazer um discurso desafiador. Num
convida ele pra coisa nenhuma, ele acaba
estragando tudo!
Mas as pessoas têm que ouvir o que você tem a
dizer. É muito importante, não podem fazer de
conta que é tudo bobagem, porque não é. As
pessoas têm medo de você, Carlos, porque você
põe nelas esse medo. Você desafia as pessoas,
entra com o aguilhão profundamente em cada
uma, e depois puxa, trazendo à tona o que elas
não estão ainda preparadas para ver. Você não
tem esse direito, Carlos. Você não tem essa
autoridade, ninguém te deu autoridade para
fazer isso. Você vê no fundo de nós.

(...) (...)

Você nunca abriu poços para me empurrar lá


dentro. Na verdade, esses poços saem de dentro
de mim, e você me põe para olhar dentro de
mim mesma. E eu não suporto isso!!! NÃO
GOSTO!

(Começa a chorar, mas segura. Engole em seco (...)


e volta a falar.)

EU NÃO SUPORTO OLHAR PARA O


ESPELHO!!! EU NÃO QUERO EU!!! NÃO
SUPORTO OLHAR PARA MIM MESMA!!!
Tenho medo de mim, tenho medo do que possa
ocorrer no caso de eu mesma olhar para o que
você tenta me mostrar, então eu te agrido, te
agrido, como essas duas que ainda continuam
brigando sem saber, elas mesmas, porque
brigam. Tento ouvir paz, e as palavras que me
vêm são de guerra! Tenho orelhas que escutam
violentamente, ainda quando sejam meras e
amenas cantigas amorosas. As palavras mais
doces ressoam em meus ouvidos como
nervosas e duras.

Você diz que sou espirituoso, mas sou triste. Como


você. Mas não sei onde encontrar alegria, eu a
tenho na superfície. É a minha máscara, não sei se

125
as pessoas me aceitarão sem a máscara da piada, do
riso, do cinismo.

Você é tão inteligente que te invejo. Eu te amo


por tuas exegeses.

Não tenho exegeses...

(Risos a mancheia!!!) Não tenho dogmas, não tenho exegeses, não tenho
doutrinas, sou um homem livre! Sou até herético!

(pausa dos risos) Você é tão herético quanto a


Madre Teresa de Calcutá. Você me acha louca,
porque tem medo de minha inteligência, e por
isso rejeita as minhas idéias!!! Você aceita, não
a mim, você aceita alguém que você inventou
para mostrar aos outros, e que não sou eu. E
essa Clarice que você inventou não é Clarice,
chama-se Poho, está no teu sonho, na tua
imaginação, não sei se existe, mas você a
inventa e a põe no meu corpo esvaziado de
mim mesma. Você inventou que eu fiz uma
série de coisas, que na verdade nunca fiz, e eu
temo contrariar você, tenho medo da tua
traição.

Mas você me trai o tempo todo, porque eu te traio


desde o começo. Eu invento coisas para te elogiar,
e não são coisas verdadeiras, porque te odeio. Você
diz que invento coisas sobre você, que implanto
dados num corpo vazio, que eu insiro a Poho na
Clarice, e nunca vejo o que é a Clarice de verdade.
Para que não te agrida, eu me torno apático. Eu sei
que a indiferença é pior que a agressão, porque não
deixa marcas.

Eu sei. Eu bem sei que a indiferença é pior que


a agressão, porque não deixa marcas.

A indiferença é pior que a agressão, porque não


deixa marcas. Porém, você é indiferente comigo.
Da mesma forma, Poho identifica em mim o
verdadeiro Carlos.
Fale com Poho, então. (Aqui, entra Poho no
lugar de Clarice.)

POHO: (...) Poho, amo você por aquilo que você é, porque sei
que sempre te amei. Não sei quem é você, nem de
onde vem, mas te reconheci desde o início, quando
te vi pela primeira vez, e corri a te abraçar. E você
também correu para me abraçar. E nós nos
beijamos, acho, não me lembro, só sei que um
amor infinito nos une desde muito tempo antes
desse encontro, e dificilmente conseguimos nos
reencontrar.

Às vezes, deixo para você uma fotografia, um


bilhete. Mas dificilmente você me reconhece.

Sempre te reconheço, Poho, mas Clarice me faz


jogar fora tudo que tenho de ti, tudo que faço por
ti. Ela quer me fazer esquecer de você, mas é
impossível!!! Clarice, e essas duas que ainda
continuam brigando, também vivem a não te
querer.

Eu não tento ser a melhor em cada coisa que (Enquanto Poho fala, Emília e Marina já deixam
faço. Me entrego a você porque te amo, amo de brigar, ficam exaustas, deitadas cada qual num
aquele que é você como você mesmo. Cada canto do palco, não necessariamente em cantos
atitude que tenho contigo é verdadeira, do meu opostos, mas em locais nos quais as atrizes que as
íntimo. Cada ato meu é uma atividade completa representam possam realmente repor suas
na tua direção. Você me vê naquilo que sou, energias. Aproveitem, minhas caras atrizes, este
mesmo que não me reconheça. Não! Você momento, para respirar com a barriga,
sempre me reconhece, mas permanece calado, lentamente, como se nem estivessem no palco.
como se eu não existisse. Isso me fere Deverão, pouco a pouco, ir se retirando para
profundamente, mas eu sei que é para nossa locais o mais discreto possíveis, até sairem
própria vida. Sei que o teu silêncio é uma completamente de cena.)
canção para mim. Eu mesmo não me conheço,
sei o que sou e quem eu sou, porque você me
inventou assim.

Clarice disse que eu implanto você dentro dela.

Clarice, Marina e Emília me conhecem, mas


têm medo de mim. Medo, essa palavra estranha
que desconheço, mas que é tão humana. Não

127
sei se um dia serei humana, vivo na tua
imaginação, fui criada por você, mas sinto que
sempre existi, antes mesmo de você pensar em
mim. Por quanto tempo vive um personagem?
Morre com o autor? Ou pelo tempo em que
vive na obra a que pertence? Eu penso, e há
muito tempo eu sei que tenho um pensamento
pessoal, próprio, tenho alma, tenho espírito, sou
um ser racional, sensível, sensitivo. Movo-me
pela intuição, mas tenho instinto. Sei que
envelheço junto contigo, mas sou tão bela que
não me conheço. Não sou tão bonita quanto
você, mas você é encabulado comigo, e ao
mesmo tempo fica tão à vontade comigo, eu
acho que somos feitos um para o outro. Se eu
fosse implantada na Clarice, ela não
funcionaria, porque ela não é eu.

Clarice é incompatível com você. E o que ela diz


que eu espero dela é incompatível com ela. Não
tem como implantar Poho em Clarice, não tenho
poder para isso.

Você não faria isso, mas outros fazem.

Outros homens?

Homens e mulheres vivem a fazer essas coisas


com seus parceiros. Inventam histórias que
nunca aconteceram entre eles, até o dia em que
a relação arrebenta de tanta falsidade, tanto
erro. Os acertos são feitos de erros, mas nunca
vão existir se os erros não forem aceitos.

Os acertos são feitos de erros, mas nunca vão


existir se os erros não forem aceitos. (...) Entendo.

Faço tanto e nunca concluo nada. Nunca


consigo terminar o que começo, porque eu não
aprendi ainda a não pensar em você.

E eu não aprendi a gostar de mim. Sei que por isso


é que tento fazer tanta coisa e nunca consigo
terminar, sempre começo coisas novas e vou
adiando a finalização. A não ser quando é para me
transformar. Clarisse também é assim, vive a
buscar transformações em si mesma. Como se ela
mesma fosse nada, e tivesse que ter atitudes
diferentes para poder ser amada. Poho, estende a
tua mão, e vamos sentir o poder que vem dos
mitos, dos Deuses e das Deusas, e de todo o
Universo.

(Dão-se as mãos) É um poder muito grande.


Tenho medo.

Você disse que desconhece o medo.

Menti. Sou humana. Eu nem sempre suporto a


todas as coisas. Eu te amo.

Poho, eu amo você, e amo Clarice, Emília e


Marina. Um só amor, diversos amores.

Dizem que há diversos tipos de amor. Mas eu


não acredito. É tudo um só, variando a maneira
como se manifesta. Mas o amor é um só, uma
só força, uma só intenção, uma só interação
com o que te cerca. E não tem definição. É o
que é.

Nós estamos recomeçando. Nenhuma vida é


completa se não pode haver recomeços. O amor se
completa com os diversos recomeços. Recomeçar é
reiniciar do ponto onde se parou, com o fôlego para
uma nova vida. É o inspirar e expirar, a respiração,
o movimento,

Hoje recomeçamos nossa vida, Carlos.

Novos medicamentos. Estes não vão ser para


sempre. Não posso crer que tenha que me usar de
paliativos para viver. Tenho que fazer sair de
dentro de mim tudo o que preciso para viver. Está
tudo aqui dentro, não tem porque instalar
programas novos, já tenho todos aqui dentro, é só

129
ir fazendo funcionar os que ainda não foram
estimulados, e jogar fora os que não prestam.

Jogar fora você não consegue. Ninguém (Abre uma janela e observa o sol que entra por
consegue. Você é a conseqüência de tudo o que ela.)
já foi, somado à sua escolha atual. Teu hoje
pode ser novo. Tudo novo. Esperanças novas.
Psiquiatra novo. Horário novo. Novas maneiras
de encarar teus próprios procedimentos.

Significativo: abro a janela e um sol enorme


ilumina meu rosto, aquece meu tronco e meus
braços. Ainda meus olhos se sentem doídos pela
luminosidade, fecho os olhos e desço para a cama
para escrever este texto. Estou vendo o
redescobrimento de minha própria vida, de nossa
vida. Poho, é a nossa vida que eu vejo! Estou
vendo o readolescimento me pegar pela frente para
amadurar. O envolvimento de mim mesmo com
meu entorno é algo mais que estranho, é novo.
Sentimento de suavidade, renascimento, apesar da
constipação que se anuncia, minha cabeça pesada e
um sono ainda nos meus olhos.

Você vai acordar e não me vai mais ver.

Estou acordando e levantando para um novo dia,


cheio de promessas ainda não ditas. E ainda vejo
você em minha frente, Poho.

Claro. Eu existo. Você quis assim. Eu também.


Não sei como é. Eu não compreendo, mas eu
acredito. Eu te amo.

A vida é um festival de milagres que não


reconhecemos. Sequer sabemos os nomes de
nossos Deuses e Deusas, mas eles nos ensinam
quando precisamos. Estou pisando em terra santa.

E eu não tenho medo dos espelhos. A verdade


só me conforta.

Eu quero percorrer o caminho. Portos são para se


descansar e descortinar as novas viagens. Eu já
estou ficando velho, mas ainda gosto de percorrer
novos caminhos, viajar como um iniciante, um
neófito. Gostaria de passear agora montado num
camelo, conversar com alguns líderes religiosos, e
andar pela Rive Gôche, em Paris, de mãos dadas
com você.

Nós vamos. E já. Carpe Díem. Não há porque


esperar.

E Marina? Emília? Clarice?

Estarão juntas comigo. Já estão. Estão aqui,


todas. Pode ver.

(Marina, Emília e Clarice voltam ao palco, Estou vendo. (...) Marina do lado esquerdo, vem
cada qual como personalidade individual, vindo. (...) Emília vem do lado direito. (...) Clarice
todas muito seguras de si, prontas para está vindo lá do fundo, ela vai atravessar a platéia.
qualquer eventualidade. Elas dão a força que (...) Amor, estamos num palco!!!
Carlos precisa.)

NUM PALCO??? ESTAMOS NUM


PALCO??? E EU FALEI TUDO O QUE
DISSE, E ESSA GENTE AÍ OUVIU TUDO?

Não sei, Poho, não sei. Vocês prestaram atenção


em alguma coisa? (...)

(...) Vocês entenderam alguma coisa? (...)

É, alguém aí gostaria de dizer alguma coisa? (...)

GENTE DA PLATÉIA: (Conversas entre si,


murmúrios,

risinhos incontidos,

gente levantando e voltando a sentar, gente que


levanta o braço, faz que vai falar e não diz
nada...

Se tiver gente da platéia que inicie discussões,


o ator e as atrizes deverão acatar as discussões
e fazer com que façam parte do espetáculo, até
o momento que sentirem que devem voltar ao
texto. Então, falam o seguinte:)

131
MARINA: Gente, nós temos que terminar por
aqui. Não sei se vocês gostaram, se entenderam
alguma coisa, mas eu acho que a gente mesmo,
aqui no palco, está ainda tentando entender o
que o autor quis dizer com isto tudo.

CARLOS: São garatujas que o autor inventa pra


tirar linha da gente, deixar a gente, que é ator, sem
jeito, sem ter como responder. Imagina só! Alguém
aí da platéia já viu como é o texto desta peça?

CLARICE: Parece loucura, não tem uma lógica EMÍLIA (interrompendo Clarice quando
muito definida. É um texto que se desdobra em começa o texto sublinhado ao lado): Vocês aí
tabelas, explicações entre parênteses, coisas da platéia acham que a discussão que tivemos
que só vendo pra saber como é estranho. O com vocês foi toda planejada? FOI NADA!!! Só
autor nos deixou na mão!!! tem algumas breves instruções e a gente que se
vire... O autor é bom, o texto é estranho, as
atrizes devem se despir de seus egos, o ator
deve se olhar no espelho até não se ver mais, e a
gente vai perdendo a própria personalidade, só
para apresentar para vocês o que o autor quer
expressar.

CARLOS: E sabe o que mais? Nós gostamos


disso. Por isso trabalhamos com teatro. Temos
uma diretoria que nos enche a paciência até o
ponto em que nos tornamos o que devemos ser
e não queremos.

MARINA: Eu gosto disso.

POHO: Eu não. Quero ser eu mesma. Só que eu EMÍLIA (Interrompendo Poho quando começa o
não sei se sou a personagem ou a atriz. Não sei texto sublinhado): Crise de identidade!!! Poho é
quem está falando agora. Será a Poho ou será a muito anormal. Vive dos abismos da
atriz que representa a Poho. Quem sou eu? personalidade. Minto, não é anormal, Poho é
supernormal, porque além da normalidade aparente
eu vejo uma sociedade doente!!!

MARINA: ô, mas deixa de ser impertinente, quem


quer ouvir citação de Lacan agora??? Doida é tu!!!

POHO: Não liga, gente, isso tá tudo no texto.


CARLOS: MENINAS, vamos terminar com a
peça?

MARINA: Ih, já até esqueci. Vamos começar


tudo de novo?

EMÍLIA: Tá. Eu começo. Carlos. Meu amigo Carlos. Você não sabe que teus
ouvidos estão sendo provocativos? Você não sabe que você está ouvindo
agressivamente? Você não sabe que tudo o que você vê é com o olhar de quem só
enxerga o que não quer ver e que teme o porvir de si? Não quer o passado, quer o
presente unicamente, e só. Só teme o futuro, mas não quer o passado e só vive o
presente, mas não sem dor.

CARLOS: CHEEEEEEEEEEEEEEGA!!! A PEÇA ACABOU!!! CHEGA!!!

MARINA: Vamos embora. Dêem as mãos aqui pra mim, todos se dando as mãos no
palco, vamos lá. (...) Agora, a gente se abaixa, assim...

POHO: Ridículo! Eu vou pra platéia, assistir vocês. (Sai do palco e rapidamente volta.
Junta-se aos outros para o agradecimento final.)

____________________________________

fim

133
SOBRE O AUTOR:

Leopoldo Pontes nasceu na cidade de São Paulo em 1958 e mora atualmente no litoral
norte paulista, em Caraguatatuba.

No final dos anos setenta, início dos oitenta, publicou edições em mimeógrafo e afins de
seus poemas.

Formou-se em Jornalismo e Direito e fez pós-graduação em Língua Portuguesa e


Literatura.

Tem mais livros publicados pela Amazon.

Contato com o autor: leopoldopontes21@gmail.com


Sumário
FemininoMasculino: as Trelas e as Mazelas .........................................................................................5

Monólogo a 4 Vozes............................................................................................................................45

Um dia, eu acordei e percebi que havia sido enganado por toda a minha vida.................................60

A Farsa do Violêro, Onde Ele Trama com o Demo, Corta Contrato e Escolhe o que Quer. ................97

A Última Canção................................................................................................................................111

SOBRE O AUTOR: ...................................................................................................................................134

ESCREVE TEU POEMA COM TUA SEIVA ESCARLATE!....................................................................137

135
ESCREVE TEU POEMA COM TUA SEIVA ESCARLATE!
DAS VEIAS TRILACERADAS VAI ESCORRER A TINTA
ESCURA...
O MAU SANGUE É PROGRAMADO;
VINGA, DESDE JÁ, AZUL,
E DEIXA FLUIR TEU AZULÍCIO,
PORQUE NÃO SABER VIVER PROGRAMADO
E FALHAR,
É DE ONDE NASCERÁ O TEU DOM.

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