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ASAS

PARA
TEOTINO

Leopoldo Pontes
©MMI

Capa de THL Pontes

1
Sumário
INTRO ............................................................................................................................................ 5
PEQUENOS MOVIMENTOS ............................................................................................................ 7
A COCEIRA ................................................................................................................................... 13
Do caderno de PENSAMENTOS DE TEOTINO .............................................................................. 14
DELIRES ........................................................................................................................................ 16
VOAR ........................................................................................................................................... 21
O PREFEITO.................................................................................................................................. 26
O .................................................................................................................................................. 41
Livro ............................................................................................................................................. 41
De ................................................................................................................................................ 41
Theotinus,.................................................................................................................................... 41
Filho de ........................................................................................................................................ 41
Esteves e de................................................................................................................................. 41
Lucília........................................................................................................................................... 41
O CARTÃO DE NATAL................................................................................................................... 42
VIAJAR ......................................................................................................................................... 45
THEO E CLÉO................................................................................................................................ 47
AULA PARTICULAR COM A PROFESSORA CLEO ........................................................................... 55
A CHAPAÇÃO ............................................................................................................................... 57
Liber............................................................................................................................................. 60
Medíocre ..................................................................................................................................... 60
BREVE ANÁLISE A RESPEITO DA MEDIOCRIDADE........................................................................ 60
(Cinco reflexões a partir do mito do herói) ................................................................................. 60
I .................................................................................................................................................... 62
II ................................................................................................................................................... 63
III .................................................................................................................................................. 64
IV ................................................................................................................................................. 67
V .................................................................................................................................................. 69
O .................................................................................................................................................. 71
Último .......................................................................................................................................... 71
Capítulo ....................................................................................................................................... 71
D’O livro de.................................................................................................................................. 71
Theotinus,.................................................................................................................................... 71
Filho de ........................................................................................................................................ 71
Esteves......................................................................................................................................... 71

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E ................................................................................................................................................... 71
Lucília........................................................................................................................................... 71
O JANTAR..................................................................................................................................... 73
Liber............................................................................................................................................. 76
Somnii.......................................................................................................................................... 76
O SONHO PRIMEIRO .................................................................................................................... 77
O SONHO SEGUNDO.................................................................................................................... 78
O SONHO TERCEIRO .................................................................................................................... 79
O SONHO QUARTO ...................................................................................................................... 80
Andrô ........................................................................................................................................... 83
ENCONTRO COM ANDRÔMEDA .................................................................................................. 85
A BRONCA DE ANDRÔ ................................................................................................................. 87
NA ESTAÇÃO ................................................................................................................................ 92
DOCE REENCONTRO .................................................................................................................... 95
ANDRÔ FICA NERVOSA ................................................................................................................ 97
A DAMA E O VAGAMUNDO ......................................................................................................... 98
Ficha catalográfica pelo autor ................................................................................................... 104
........................................................................................................ 106
NOTAS SOBRE O AUTOR ............................................................................................................ 108

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Asas para Teotino

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INTRO

Teotino.

Foi-se tornando estranho com o passar dos anos, até o chegar da adolescência. Creio que
ainda não terminou de adolescer.

Juntava penas e mais penas, sua casa era um encher de penas.

Quem passava em frente, dizia: - Eis uma casa de penas!!!

Seu nome era diferente, pensava. Quem, afinal, chama-se Teotino? Só eu. Um dia, conheceu
Delires.

- É, isso mesmo que você ouviu, Delires!!! O nome é esse mesmo, D de desgraçada, E de
enervada, L de ladainha, I de insípida, R de ralada, E de estupidez e S de sofrimento.
Deeeeeeeee-liiiiiiiiiii-reeeeeeeeesssssssss... Meus pais deviam estar delirando quando me
deram esse nome!

- Delires... É um nome bonito. Parece um poema.

- Mais um! Tá cheio de homem dizendo que meu nome é um poema, eu devia ser um
romance, mas eu num aguento mais esse nominho chumbrega, preferia ter outrop nome,
quero trocar, mas não acho advogado que queira fazê-lo, todos dizem que o processo é difícil
e que depois posso me arrepender, já tô com o processo prontinho, é só dar entrada. Você é
advogado?

- Não Bilives, eu não...

- Não é Bilives, e Delires. Lembre-se quem tá delirando, meu nome é Delires!

- Imagina quando sua mãe chamava você, tava lá brincando e sua mãe chamava pra almoçar: -
Delires! E você não sabia se era pra almoçar ou delirar.

- Essas brincadeiras com meu nome já me encheram até o tampo. Pior é que não dá nem nem
para dizer que me chamem pelo segundo nome.

-Segundo nome?

- É, eu me chamo Delires e só. Depois vem já o sobrenome. E você?

- Eu não.

- Qual o seu nome?

- Teotino.

- Tive um avô chamado Timótheo. Já vi também Teotônio. Mas Teotino nunca vi, parece nome
de rua.

- Pois é. Teotino.

- Teotino e Delires. Belo par. Delires de cá, Teotino de lá, noves fora, não sei quem tem nome
mais esquisito.

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- Não é esquisito. É só diferente. Nossos nomes são esteticamente estranhos para pessoas
comuns. Não são feios, são bonitos, são belos por serem diferentes. E a diferença é o que faz
as coisas andarem. A vida acontece porque alguém faz a diferença. Eu amo chamar-me
Teotino. Quando era criança, não gostava. Agora amo, sempre que falarem de mim saberei
que é de mim mesmo. Dificilmente haverá por perto outro Teotino. Se houver, a gente dá um
jeito de comemorar.

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PEQUENOS MOVIMENTOS

Delires trabalha num escritório. Todos olham para ela, todos chamam-na pelo nome, todos
gostam de Delires, ela acena para todos. Antes era balconista. Trabalhava numa loja de
tecidos, onde o patrão a fazia subir e descer escadas com decâmetros de tecidos, simples,
duplos, de seda, juta, náilon, tafetá.

Trabalhava de dia, estudava à noite. Terminado o ciclo básico, soube que estavam precisando
de uma secretária um escritório de advocacia. Foi correndo, pediu entrevista, colocou um saia-
e-blusa para parecer mais seriazinha. Armou o cabelo em coque para dar jeito de mais adulta.
O que ajudavam eram alguns fios brancos de nascença, que se misturavam aos meio-cachos
ondulados cor de siena queimada. Quem a entrevistou foi uma moça, não parecia muito mais
velha que ela. Era um trio que comandava o local, formado por essa advogada civilista, um
trabalhista e previdenciário e um criminalista. O escritório já havia passado por algumas
reformas, o trio jurídico fora anos atrás um grande grupo, do qual originalmente sobrou
apenas o causídico trabalhista. Delires mostrou prática na digitação, um falar correto, boa
postura e discrição. Seu senso de organização também foi muito notado pela doutora.
Admitida, foi correndo demitir-se da loja de tecidos. E assim, como secretária, já vem
trabalhando há cerca de seis ou oito meses.

Bateu seis horas da tarde. Delires fecha o escritório e vai pra escola. Não dá tempo de comer, o
ônibus passa às 6 e dez, meia-hora de viagem, depende um pouco do trânsito, desce no Largo
Paissandú e anda mais um pouquinho. A aula começa às sete, tem dia que chega atrasada.
Delires quer fazer secretariado ou administração, quem sabe uma faculdadezinha qualquer,
um pé-de-meia, um casamentinho, um maridinho, uns filhos pra cuidar e pra reclamar, uma
aposentadoria que a possibilite ter uma velhicezinha tranquila, com os netos cuidando dela.

Que sonhos tem Delires? Inconfessáveis, ela mesmo não os conhece, se pega assustada até
mesmo quando sonha acordada. Nascida no subúrbio paulistano, continua a morar na mesma
casa em que nasceu.

Tem uma irmã que não quer saber do batente, fica batendo perna o dia inteiro, é quatro anos
mais nova que ela, está agora cantando sambinhas num grupo de baile. Seu nome é Sansara.
Delires tem inveja de sua irmã, porque ela ganhou um segundo nome, podendo ser chamada
de Sansara Suniata. Fora o sobrenome.

O pai é barbeiro e a mãe costureira. A casa ainda não foi terminada, vive no cimento, vem
sendo construída pouco a pouco desde que Delires se conhece por gente. Sansara ajuda a mãe
nos afazeres domésticos, quando não está na rua ou sabe-se-lá-onde.

O pai das duas irmãs foi batizado no norte do Paraíba como Juselino da Conceição e aos 18
anos desceu para Salvador, ver se ganhava uns trocos como barbeiro. Naquela época ele abriu
um buraquinho com o nome de

JUSELINO’S CABEILÊRERO’S
Cortassi cabelo de masculino e de feminino

Aliza cabelo com xapinha

Atendissi tabem Senhoras

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Era ele com 18 anos e um sócio com mais de 50. Juselino cortava cabelo da rapaziada e o seu
Tonico faia os “clássicos”. Foi no dia-a-dia que Juselino conheceu Jovenita da Cruz Salgado. Ela
foi no salão, que media pouco mais de 6 por 5, duas cadeiras de barbeiro, uma torneira para
lavar cabelo, com aquele monte de fios dourados, aquela voz fininha, aquela bochechinhas
morenas, mesma idade, tocava no rádio uma bonita música de Francisco Alves, o Chico Viola,
quando ele lavou pela primeira vez as ondas de Jovenita. Ela voltou muitas vezes para acertar
as pontas, até o dia em, que ele a convidou para sair no sábado à noite, ela falou que ia pedir
pra mãe dela, a mãe deixou desde que o irmão fosse junto e assim um dia eles acabaram se
casando, ela com um véu de sete metros e ele com um cravo branco na lapela, lá na Igreja de
São Martírio, na cidadezinha onde ela nasceu, em Minas Gerais. A mãe de Juvenita chorou
muito, a de Juselino também. Os pais não, eram homens, não podiam chorar senão dava
vexame. Passaram a lua-de-mel em Arrecife. Era 1955.

Com um ano de casados, nenê na barriga dela, desceram para o sudeste, onde Juselino abriu
um salão de barbeiro só pra macho, porque a Jovenita era muito ciumenta. Foram morar num
dois-cômodos de Pirituba, cidade de São Paulo, comprado na bacia-das-almas, onde nasceram
Delires e Sansara.

Delires nasceu fácil, em 1956, mas dez anos depois o dinheiro escasseava, tinha muito rapaz já
de cabelo comprido, Juselino ficava na porta da barbearia vendo os cabeludos passarem, ele só
olhando, olhando... Delires já tinha gasto na infância fraldas e mais fraldas, era um mundaréu
de pano secando no varal, e tinha que dar comidinha, comprar roupinha, acordar de
madrugada para darmamar, ouvir choro, casa pequena, conta pra pagar... Agora já tava
crescidinha, dava pra ajudar a mãe no serviço de casa.

Quando nasceu Sansara, em 1960, a casa já tinha mais um cômodo, só pras crianças. A
roupinha já tinha da irmã maior, as contas estavam mais em dia, mas a moda do cabelo
comprido ainda ia começar e no fim da década seguinte iria se misturar com a dos punks e
discotequeiros.

O salão do Juselino era só dele, em 1965, na frente de casa, e tinha agora uma placa assim:

JUCELINO’S
SALAO DE BARBEIRO MÁSCULINÔ
Córtes moderno e clacicôs

Jovenita achou estranho a mudança do nome, Juselino falou que assim ficava mais com cara
de chique. Parecia nome americano. Era pequenininho, mas dava pra colocar uma cadeira para
cortar cabelo, outra especial só pra lavar e umas cadeiras encostadas na outra parede, revistas
numa mesinha, a conversa era futebol, mulher, tempo, economia nacional,... assuntos assim.

Quando as meninas começaram a ficar moças, já por 1972, o salão começou a encher mais, os
cabeludos vinham para acertar o corte, os outros vinham pra tirar a juba e assim os dias iam se
passando. Dinheiro até que entrava, ia dando para aumentar a casa, fazer o quarto de costura
que a Jovenita tanto queria, poder atender com mais intimidade as freguesas, o trabalho dela
também estava aumentando, tinha muita calça pra aumentar a boca, veio o tempo das batas,

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a Jovenita aprendeu a fazer bata indiana, e o que dava de bata e boca, era um tal de
mulherada frequentando a costureira, Jovenita ficou craque de saber quem era quem na
vizinhança.

Sansara gostava de cantar músicas do Luís Ayrão, do Wando, da Clara Nunes, do Benito de
Paula e do Martinho da Vila. E dos Demônios da Garoa. A mãe não aprovava, mas o que fazer?
Ninguém segurava aquela menina... Já a Delires preferia o rádio baixinho, músicas
românticas... Começou a gostar de Sandra Sá e balanço quando conheceu Teotino em 1976.

Teotino é persistente. Não é brilhante, poucos o notam. Mas é persistente. Achando uma
peninha na rua, cata. Não há o que o demova de tanto. Peninhas, penões, penas mil. O
movimento de Teotino é imperceptível. Em meio à multidão, ninguém o vê, não se sobressai.
Atrapalha um pouco os passantes, na sua catação de penas. É uma peninha aqui, outra ali, vai
pondo nos bolsos, vai guardando na pasta...

Ele é contínuo, o que se convencionou, num bom e correto linguajar nacional, chamar de boy –
office-boy -- , trabalha a pé em passos descontinuados, sempre misturando documentos e
penas. Mas como ninguém o percebe, ele continua colecionando penas, enquanto entra e sai
de bancos, de filas, de escritórios. O incrível é que ninguém o apelida por isso. Por quê? É um
inotável.

À noite, Teotino estuda num colégio técnico de contabilidade. Não tem sonhos, só projetos. Os
sonhos ficaram na casa de sua mãe.

A sua aparência é comum, sua roupa é sempre o mesmo figurino, aquela calça jeans com
camiseta branca, uma jaquetinha no frio. O cabelo é sempre cortado no mesmo barbeiro, que
já sabe que vai resultar naquele curtinho-bem-batido. Teotino é filho de um português de Trás-
Os-Montes com uma mulata mineira. É todo ele a cara da mãe. Do pai, só puxou mesmo
alguns detalhes, como o buço sob o nariz e os olhos, os olhosdequemfazcontas, sempre a olhar
o nada, o infinito, o além-mares. Acostumado com o batente, desde os cinco anos já fazia
entregas de encomendas de salgadinhos, docinhos, tortas e bolos de sua mãe para a freguesia.
Seu pai tinha uma mercearia, mas meteu-se nos jogos e perdeu tudo o que tinha, caindo na
bebida, na sarjeta e na cirrose. Morreu há cinco anos. Teotino era o mais velho de sete irmãos,
todos mulatinhos como ele. Mas todos com o carimbo da cara do portuga. Tinha 17 anos, saiu
de casa para tentar a vida na cidade de São Paulo. Há poucos meses vem estudando à noite e
trabalhando de dia. Todo início de mês envia dinheiro para a mãe. É um rapaz quieto, não
mexe com ninguém, nem namorada tem. Está na pesquisa. Sábados à noite vai dançar bleque.

É verão. Teotino já tá com 20 anos, decide conhecer outras praias, vai pra São Sebastião, litoral
norte paulista. Lá conhece Sansara, num barzinho onde ela canta com seu grupinho de samba.
É na hora do refrão, do vamolá, que ele decide ir pra pista e pedir pra dançar com Sansara.
Nem ele acredita, foi lá e pediu, e ela aceitou! O grupo fica dando aquele som pauleira de
sambão e Sansara faz Teotino ficar com cara de prego torto, pra lá e pra cá. Até que a música
acaba e Teotino fica sem saber se casa ou se compra uma bicicleta e volta desenxabido para
sua mesa. Sansara vai atrás e puxa papo:

- Posso sentar?

Teotino não crê no que vê e no que ouve, aquela gatinha doidona está perguntando se pode
sentar? Claro, senta logo, tô loco pra te conhecer! Ele diz:

- Se quiser,... Senta aí...

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- Obrigada.

- (sorriso amarelo) Você vem sempre aqui cantar?

- Não, é só este fim-de-semana.

- Você canta bem. E dança, também.

- Obrigada.

- Vai onde, depois daqui?

- Meu namorado vem me buscar.

- Ah...

- Gostei de ver você, que coragem, pedir assim para dançar com a cantora do conjunto.

- É... (sorriso amarelo.)

- Você é de onde?

- Moro em São Paulo.

- Sério? Que cê tá fazendo aqui?

- Tô a negócios...

Teotino não era de mentir, mas na hora do aperto, fazer o que? O que ele iria dizer? Que tava
numa pensão? Sozinho? Vivia o mês com salário mínimo e tava passeando com dinheiro
economizado de alguns almoços transformados em churrasco-grego? Que não ia gastar aquela
noite mais que um guaraná com misto quente? Mas mentiu e achou que Sansara acreditou.

- Depois a gente se fala.

- Falou, tenho mesmo que ir, estou com horário marcado para daqui a pouco. - Imagina, que
coisa boba, dizer que tem compromisso, quem é que tem negócio marcado pra sábado de
madruga? Será que ela engoliu? Também, deixa quieto, nunca mais eles vão se ver, nunca mais
ele vai voltar nesse bar...-

Teotino segue chutando lata pela rua. No caminho, um grupo de ciganas. Uma delas pula pelo
braço dele e diz:

- Nossa, quanta inveja em cima de você! Me dá 50 dinheiros que eu leio o seu passado e o seu
futuro.

- Ô, moça, não tenho dinheiro.

- Só 50, leio a sua mão, seu passado, seu futuro.

- Tenho 25, não dá.

- Deixa eu ver sua mão. Essa não, a outra. Tô vendo que você está passando por dificuldades
financeiras, mas isso vai passar, é só por enquanto.

- É verdade, dona.

- Tô vendo que você tem problemas com dinheiro, trabalha muito, mas o seu patrão não
reconhece o seu esforço. Tô vendo tudo!

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- É verdade.

- A sua mãe se preocupa muito com você. Você tem mulher?

- Não, sou solteiro.

- Mas está de olho numa mulher, não está? Dá 5 dinheiros que eu falo mais.

- É verdade, aqui está, 5 dinheiros.

- Isso. Estou vendo que sua mãe não conhece essa mulher que você está pensando. Você está
pensando nessa mulher, não é?

- Sim.

- Sim, tem música, vocês estão dançando juntos. Ela dança bem, sabia? E é muito bonita! Dá
mais 5 que eu digo mais!

- Tá aqui, mais 5 dinheiros.

- Estou vendo que você está preocupado com dinheiro, também.

- Isso a senhora já disse. Me fala mais da mulher.

- Ah, o amor, a juventude! Você é um belo rapaz, vai ter a mulher que deseja. Você está
pensando nela agora, não é?

- Sim, estou, vou namorar com ela?

- Namorar... estou vendo você com ela, vocês estão dançando, e agora... agora... estou vendo
vocês...

- Sim?...

- Dá mais 10 dinheiros, que pra falar isso que eu vou falar tem que dar pelo menos 10, senão
não falo.

- Está bem, aqui tem 10!

- Isso, vocês estão se beijando, vejo vocês se beijando. Se isso não é namorar então não sei o
que é. E você a leva agora pela mão, vocês estão passeando juntos.

- Estamos de anel no dedo?

- Sim, vocês estão com anel de ouro, cigana vê ouro de longe, vocês estão com anel de ouro,
bem grosso. E você está levando ela para um lugar, um lugar muito bonito. Estão muito felizes,
você fala coisas para ela e ela sorri, pondo a mão no seu ombro.

- Fale mais, cigana, fale mais!

- Dá mais 5.

-Aqui tem, fala mais!

- Estou vendo agora que você não tem mais dinheiro no bolso. Não posso mais ler.

E saem todas as ciganas a rir, alto e sonoramente. Teotino quer ir atrás, pegar o dinheiro de
volta, mas fica no meio do caminho. Como é que ele vai voltar pra São Paulo? Deu todo o
dinheiro para a cigana.

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Volta pro bar? Pede emprestado pra Sansara? Fala que foi assaltado no meio da rua! É isso!

- Oi rapaz, voltou? Já vamos cantar de novo!

- Sansara, acabei de ser assaltado por dois malandros, me levaram tudo, todo o dinheiro.

- Te deixaram o relógio.

- ... É mesmo, vai ver não viram...

- Quanto?

- 25 pila tá bom. Te devolvo assim que chegar em São Paulo, passo da minha conta para a sua.
Cê me deixa o número da sua conta...

- Fica frio, irmão. Leva aí 30 mango que é por conta da casa. E vê se toma mais cuidado com as
ciganas, tá cheio delas aqui por perto.

- ...obrigado... puxa... desculpa...

- Fica frio, cê aprende. A gente se vê!

- (A gente se vê? Nunca mais volto aqui, só me deu azar, ainda fiquei duro e passei vergonha.
Tá certo que lucrei cinco pau, mas com que cara que eu fico?) Falou, San, a gente se vê por aí.

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A COCEIRA

Teotino está com coceira. Coça tudo, desde o dedinho do pé até a raiz dos cabelos.

Mas não coça de uma vez só, é agora uma coceirinha aqui, depois uma coceirinha lá, tem hora
que dá uma coçada no cocoruto, tem vez que a coçadinha é no braço, outra hora no meio das
costas, vez por outra na barriga, às vezes um lugar novo e assim por assim repetindo em
diversas oportunidades.

Aliás, o sentimento de Teotino é que as únicas oportunidades na vida que lhe aparecem são
para coçar.

- Tá com bicho carpinteiro, diria a mãe.

- Deve ser sarna, diria a tia Noca.

- Não, deve ser de alguma coisa que ele anda comendo, diria a vizinha do lado.

- Mal da idade, diria seu pai.

- Isso não é coceira, é cosquinha involuntária, diria Sansara.

- Você devia ir no médico, falou Delires. Pode ser que esse montão de penas que cê vive
juntando esteja te fazendo mal.

- Isso não pode. Afinal, cada pena que eu junto eu limpo muito bem e mantenho sempre
estocada sem deixar mofar. Sem deixar estragar. Tá tudo muito bem guardadinho.

- Tá bom. Mas eu ainda acho que cê devia ver isso no médico.

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Do caderno de PENSAMENTOS DE TEOTINO

O sorriso da menininha era igual ao sorriso do primo. Ela tem cabelinhos


cacheados e louros, ele tem cabelinhos curtinhos e escuros. Ela tem a pele
de um pêssego, ele também. Pele de nenê, de criança novinha. De onde
vem esse sorriso? Inteiro, gostoso, verdadeiro, parece um sorriso celestial.
Acho que isso é o sorriso do Céu, o sorriso dos Deuses, o sorriso celestial
deve ser algo próximo, afinal vieram de lá há tão pouco tempo... 

Uma colega de escola foi ontem apresentada pra mim, o nome dela era
Tereza, a irmã dela que me apresentou. Foi assim:

- Teotino, esta é a Tereza, minha irmã.

- Oi.

Tereza pegou minha mão e não soltava, enquanto sua irmã dizia que ela
era estudante de técnica de alguma coisa, não me lembro, perguntei se
estava tudo bem, se ela morava na cidade, essas coisas. Ela não soltava
minha mão, como se fosse um cumprimento em câmera lenta, em que as
mãos se esquecessem juntas, imagina só, se esquecessem juntas... Preciso
escrever isso. Mãos que se esquecem juntas. Então, escorreguei minha
mão da mão dela e coloquei minha mão no bolso. No bolso da camisa.
Peguei a caneta e fiquei segurando como se fosse uma... sei lá, uma caneta.
Tereza olhava para mim com um olhar de queroteconhecer e eu não sabia
se podia. A irmã dela, eu ouvi ela dizer “Tê e Tê”. Então elas foram para
um lado e eu fui para outro, pensei que deveria ter pego o telefone dela,
sei lá, alguma coisa, ela parecia que tinha vindo me beijar. Fui tão
esquivo! Engraçado. O sorriso dela parecia igual ao da irmã, embora
sejam tão diferentes uma da outra... Isso me lembra o sorriso de Delires.

É. Delires parece igual a Sansara. Mas elas são tão diferentes, Delires é
de São Paulo, Sansara é de... Não, não pode ser, são muito diferentes,
mas... o sorriso é igual. O sorriso de uma é o de outra. Como pode o sorriso
ser a marca de alguém? O sorriso pode ser um sinal de reconhecimento.
Há o sorriso sincero, igual ao da menininha, ela sorri porque sorri. E há
o sorriso interessado, o sorriso que telepatiza vontade de namorar. Tem
também o sorriso de vendedor, tão verdadeiro quanto uma mentira. O
sorriso de jaca, é aquele que se faz por desvontade. O sorriso sem jeito,
aquele que a gente dá quando fica bobo. O sorriso hipócrita, que parece
um papel colado no rosto, cheio de dentes. Sorriso é coisa do coração, pode
refletir o que os olhos não conseguem dizer. Dizem que os olhos dizem

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tudo, mas nem sempre estamos tão perto assim. Para mim, é mais fácil
ler bocas que olhos.

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DELIRES

Era fim de tarde. Teotino encontrou-se com Delires na saída do escritório.

- Ôi, Teotino, estou correndo, senão me atraso pra aula.

- Que aula, que nada! Camôn guérol, vamos ver o Tim Maia!

- Tim Maia? Cê gosta dele?

- Uau! Tim Maia e Jorge Ben, um não é mais que o outro, pra mim são os dois maiores. E agora
tem a Sandra Sá, deve tar pra lançar um disco, que eu acho muito joia!

- Mas onde cê tá indo ver o Tim Maia?

- Vai ter um show dele, lá em Pirituba. Vem comigo, vai ser legal.

- Puxa, pertinho de casa. Mas eu vou perder aula.

- Eu também, mas hoje é sexta-feira, vai todo mundo nesse baile, vai ser ótimo, eu pago.

- Nossa, desde quando nasce goiaba em bananeira?

- O chefe deu abono pros boy hoje. Todo mundo ganhou o abono. O papai aqui tá com boa!

- Falou, broda, então eu vou com você. deixa só eu avisar minha irmã. Cê tem ficha pro
orelhão?

- Cê vai telefonar? Não tenho ficha, mas sei ligar o telefone público sem ficha, quer ver?

- Cê é loco?

- Tá vendo esse orelhão perto da esquina? Ele tá ligando sem ficha.

- Como é que cê sabe?

- Eu sei. Cê acha que boy que é boy num conhece as manha?

- Tá legal, deixa eu ligar pra minha irmã, avisar que vou chegar tarde e depois ela avisa em
casa.

- Por que cê num liga direto pra sua casa?

- Ah, minha mãe num vai deixar.

- Ela não deixa você telefonar?

- Ô, mano broda, tô dizendo que ela não vai deixar eu ir. Então eu vou, depois eu conto. Peço
pra minha irmã chegar cedo e passar a conversa.

- Pô, que barbada... Telefona aí, então, que eu quero chegar cedo no bailão, se a gente chegar
antes das oito cê entra de graça.

- Teotino, não precisava também contar, né?

- Ah, em vez de pagar duas entradas a gente paga uma só e ainda a gente fica com a graninha
pro guaraná e pro pastéis.

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- Tá. Deixa eu ligar.

- ...

- Alô... San? Olha, tô aqui com um colega da escola, nós vamos pegar um cinema depois da
aula, falou?

- ...

- É, tô ouvindo, fala com a mãe, para mim. Segura essa, vai, nunca te pedi nada assim, tô
sempre...

- ...

- O quê?

- ...

- Tá. Me livra essa que eu sempre faço isso por você, agora é a sua vez, falou?

- ...

- Bai!

- ...

- E aí, senhor Teotino? Estou na linha. Vamos?

- É, cê tá bem arrumadinha, nem parece que vai num bailão com o Tim Maia.

- Num vou com o Tim, vou com o Téo.

- Téo?

- Posso te chamar de Téo?

- Pode...

- Ninguém te chama assim?

- Tenho uns amigos que me chamam assim.

- Ô, Téo, qual o ônibus que a gente tem que pegar?

- A gente pode pegar no Largo Paissandú, lá passa um que vai pertinho.

- Estamos na rota! Vamo lá, mano broda!

Delires nunca namorou. Não é que não quisesse, mas nunca teve um cara que a chamasse para
isso. Ela passa uma imagem de inatingível, mas para o Teotino, quero dizer, para o Téo, parece
que ela está tão perto... Ela parece mais velha que ele, alguns anos. Teotino quer namorar
Delires, ela sente isso, dá uma força, mas não tem coragem de dizer nada.

O bailão rende umas dancinhas, os dois juntos, e daí ele fala que a ama, quer namorar com ela.
Ela diz que não sabe, tem medo, ele fica surpreso. Como é que uma gatinha dessa nunca
namorou, todo mundo conhece ela, ela fala com todo mundo, todo mundo olha pra ela, faz o
maior sucesso, como é que ela dá uma dessa? Incrível, estranho... Mas Téo é insistente.

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Uma luz aparece no palco, o conjunto já entrou, deixando o som de fita, mas agora parece que
vai começar o show. Sai um fumacê pelo palco, deve ser gelo seco, tem um cheiro forte de
incenso de umbanda. O conjunto do Tim começa a dar o tom. É tunc-tumtum, tunc-tumtum, e
lá vem a paulada, um som de balanço, os metais dançam pra lá e pra cá, e quando a gente tá
esquentando... entra o Tim! Aí ele começa a falar, cantar, Teotino só dança e olha, canta junto.

Delires se sente fora de mão, só consegue entrar no clima na hora do É


primaveeeeeeeeeeeeeeeeeeeeraaa, ti â-mu! Ela acha que o Téo vai olhar para ela, mas ele não
olha, só olha pros caras do conjunto. Os garotos são estranhos. Téo também, mas ele é
diferente. Será que dá para encarar?

.........................................................................................................

18
O concerto foi ótimo. Saíram suando, mas o perfume de Delires ainda funcionava. O
desodorante do Teotino, não. Ele ficou envergonhado, ela nem se tocou. Delires pediu para
que ele a levasse pra casa. Bom, a casa dela era perto, eles iriam a pé. Ao chegarem na porta
da casa, ela disse:

- Téo, minha casa é aqui. Como é que você vai embora?

- Pego um busão! Moro na Lapa, no Central Parque.

- Você vai ter que esperar até as cinco horas da manhã, num vai ter ônibus antes.

Teriam que esperar até as cinco da matina, pra chegar o ônibus por bairro dele. E aí? Iam ficar
na frente do portão? Ia pegar mal. Delires falou:

- Vou chamar minha irmã pra ficar com a gente. Fica frio.

Delires bateu na porta devagar, baixinho. Sansara viu pelo olho mágico e bateu de levinho, de
volta. Téo ficou ouvindo o destrancar da porta como se fosse a abertura de um cofre. E foi!

- Conheço você! Cê é aquele carinha de São Sebá que dançou comigo, foi dele que eu falei pra
você, maninha.

- Coincidência. Você me falou muito dele mesmo... Olha, eu tô muito cansada, cê pode ficar
aqui fazendo companhia pra ele, até as cinco horas, pra ele pegar o ônibus pra casinha dele?
Tô morta de cansaço. Tchau pra vocês dois.

- Olha, Deli, tô morta também. Ô, Téo, num fica triste não, mas a gente se vê outra hora,
preciso levantar cedo, daqui a pouco. O ponto é logo ali, tá vendo?

- Ah, tô, falou, obrigado...

- Vai pela sombra que eu acho que você marcou bobeira.

Sacanagem, marquei a maior bobeira, como é que vou dar uma dessa? Beliscar duas
maçãzinhas e quando vou ver são do mesmo galho. Tô danado.

.......................................................................................................

19
- Ô Delires, vem cá, num vai dormir, não!

- Dormir? Eu tô é furiosa!!! FU-LA!!! FU-RI-Ó-SÍSSIMA!!! O carinha é um cachorro!

- Ô maninha, ele é homem, eu sou uma mulher, só isso, o cara nem sabia que eu era sua irmã.
E depois, nem chegamos a ter um caso, foi só uma noite de dança, depois a gente se viu mais
umas vezes, mas foi só amizade.

- Mas você sempre falou dele com muito entusiasmo!

- É que o Téo é um cara legal, só isso. Mas num serve pra mim. Gosto de cara mais máquina,
motoqueiro, cara que dê umas bolas aqui e ali, mais encorpadão, o Téo é legal, mas é muito
crianção. Pra mim ele é um garotinho engraçado, só isso.

- ...

- Cê ficou com ciúme?

- ...

- Cê tá a fim dele?

- ...

- Vai nessa, menina, se você quer ele é todo seu! O olho dele brilhava quando vi ele olhar pra
você.

- Eu sei, eu notei que o olho dele brilhava, mas achava que era por causa da fumaceira que saía
do palco do Tim Maia...

- Quem diria, minha irmãzinha romantiquinha, vinda de um shouzasso do Tim Maia, a


caretinha de plantão virou a mesa. Vai nessa, menina! Ele é todo seu!

- Tô muito a fim dele. É que ele parece tão imaturo... Pra você ver, ele coleciona penas, a mala
007 dele vive cheia de penas, no meio das papeladas de escritório.

- É, já notei, a primeira vez ele tentou dar uma de executivão, mas desencanou logo, sentiu
que a mama aqui tem faro. Desencanou, cheguei até a pagar uns caldo-de-cana com pastéis
pra ele.

- É mas ele gosta mesmo é de churrasco grego. De rua.

- Tem a ver com ele.

- O churrasco ou a greguice?

- A falta de grana. Ele é um durango!

- É, fui amarrar meu burrinho num Durango Kid, pode?

- Vai firme, o amor não tem preço e é mais raro que nota de três.

- Vamos dormir, maninha, tô com sono.

20
VOAR

Teotino tem passado os últimos meses muito ocupado. Foi demitido sem justa causa e decidiu
pôr em prática um antigo projeto: as penas!

Delires continua sem namorado. Pensa e repensa em Teotino. Sansara manda ela ligar para o
rapaz, ela não liga, prefere manter o orgulho e fossilizar-se na estafa.

Nunca mostrou-se tão trabalhadeira e estudiosa! Recebeu aumento de serviço no escritório,


nem liga, faz tudo e continua saindo religiosamente às 18 horas para não atrasar no colégio.
Virou aluna nota dez, mas há um mês já não consegue mais se enganar, vive distraída,
esquecida, faz seus patrões perderem prazos em algumas ações e deixarem de ir a audiências
por puro esquecimento de colocar as datas e as publicações nas agendas respectivas.

Hoje ela recebeu uma advertência, o negócio começou a ficar bravo. Por outro lado, como ela
sempre foi boa funcionária, os doutores já estão achando por bem dar a ela as merecidas
férias seguidas de uma licença aí de uns trinta dias, pelo menos, com os beneplácitos do
escritório, ver se ela consegue se recuperar.

Sansara deve ter andado por aí desbocando o que devia ficar guardado. Teotino começa a ser
conhecido pelo nome, encontrado às vezes dentro de corações desenhados em folhas
timbradas do escritório, no fundo das gavetas de Delires.

Sansara continua cantando. Está agora com uma banda menor. Tem o Luís Alberto na bateria,
tem o Garratuja na guitarra e Budóia no baixo. Ela mesma se acompanha no ringo em forma
de lua ou no pandeiro. O som mudou, está bem elétrico, nada mais de sambinhas, agora
entrou num experimental, com letras de seu novo namorado, o Duda. Ele é um poeta que
adora os versos de gente como Jorge Mautner e Salormon, os sons de Arrigo Barnabé e Itamar
Assumpção. E mostrou para ela discos de Eliete Negreiros, Vânia Bastos, Tetê e o Lírio
Selvagem, Janis Joplin, Elza Soares e Maria Bethânia.

Não é preciso dizer que a música mudou!!!

Os ensaios têm sido na garagem da casa do Duda, praticante de meditação e Tai-Chi. A banda
tem o inacreditável nome de Adventosos Cultuadores da Poesia e do Som Megaplástico
Espacial. Nada mais a ver com o que ela cantava nos tempos de São Sebá, o negócio agora é

21
Paulicéia Desvairada, nos melhores termos andradinos. Às vezes Sansara pendura uma guitarra
e passa o lenço pelas cordas, só pra dar um ar de Patti Smith. Continua balançando, mas com
mais força na barriga, mais empostação e garganta tirando os gritos da alma! Quando
aparecem os velhos amigos, ainda dá uma canja para os cavacos, entretanto seu coração é
todo Duda.

Teotino, como já dissemos, está direto com seu projeto. Vive do fundo de garantia que retirou,
mais as parcelas do seguro-desemprego. Gasta pouco, poupa bastante e realiza na prática o
projeto que por tanto tempo acalentou: está construindo enormes asas com as milhares de
penas que guardou.

..........Passa-se mais um mês ...............

22
Teotino recebe uma carta perfumada, cheiro de perfume comprado nas Casas
Pernambucanas, ele reconhece. A letra é de Delires, apaixonada, doida nas pernas que nem
uma avestruz!!! Delires, Delires, ... Delírio. Teo quer mostrar a ela uma coisa, vai pro orelhão e
telefona para ela:

- Delires? ... Não, chama a Delires, obrigado....

- ...

- Delires?

- Téo?

- Delires, me encontra no Viaduto do Chá. Fala pra Sansara ir também, eu vou te fazer uma
surpresa, você vai se orgulhar de seu namorado.

- Mas eu não tenho...

- Vai ter, vai ter, eu te prometo!

- Que horas?

- Meio-dia!

- Tá bom, eu te... eu te quero dizer que vou avisar a Sansara.

- Tá. Tchau. Um baccio!

- ...

23
O sol arde, muito sol, muito ar pesado. Sansara. Duda e toda a banda estão lá, junto com
Delires. E cadê o Teotino? Luís aponta lá para baixo, tem um cara magrinho, equipado com
duas asas ENORMES, que parecem feitas de penas diversas. Ele consegue ver as penas porque
está com um binóculos. Dá uma coisa em Delires, ela pede o instrumento visual com
apreensão e reconhece o Teotino.

- Que cara louco, então é para isso que ele juntava as penas???

- Ele que é o Teotino?

- Maluco Beleza!

- Deve estar doidão!

- Teotino não é assim, ele só toma guaraná caçulinha, é o maior cabeça! Tenho certeza que
isso não é fantasia de carnaval.

- Ele vem vindo pra cá.

- Não, ele está andando dum lado para o outro.

Nunca ocorreu isso. Os carros começaram a parar, todo o trânsito parou, os camelôs
recolheram suas mercadorias, ficaram olhando. Os passantes pararam e ficaram olhando. Os
motoristas trancaram seus carros, ônibus, motos, ficaram olhando. Todo mundo olhava aquele
rapazinho, andando de um lado para o outro, abrindo espaço, com aquelas enormes asas, ele
havia já atravessado a cidade vestido com aquele par de asas enormes, feitas com as melhores
penas por ele juntadas há tanto tempo. Por onde passara, arrebanhara gente, curiosos, e
naquele momento era multidão, todos olhando. A polícia parou, os bandidos pararam, os
trombadinhas pararam, todos pararam. Estão todos olhando. Apenas se movimenta Teotino.

O silêncio acontece. E do silêncio nasce a voz, que se torna, nos limites do humano, poderosa:

- Vou voar!

Todos olham, admiram os belíssimos maravilhosos instrumentos de voo do rapaz, simples e


belos como ele.

Em meio ao S I L Ê N C I O , apenas entrecortado por suas palavras, vou voar, vou voar, os
passarinhos estão pousados nos fios. Os cães e gatos deitaram-se onde puderam e também
olham para Teotino.

- Vou voaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar.....,
diz Teotino, e começa lentamente a bater as suas imensas asas, levíssimas pareciam,
lentamente batendo, lentamente,
leeeeeeeeeeeeeeentaaaaaaaaaaaaaaaaaameeeeeeeennttttteeeeeee...

Seus pés vão saindo do chão os tênis caem dos pés, as meias foram escapando com o vento
que as asas fazem, descalço, vai lentamente subindo para o ar, batendo as asas, chegou
voando perto de Delires, ela consegue dar um beijo no rosto dele, e aí Teotino sobe mais alto,
alto, aaaaalllllllltttttttoooooooo..................

Ninguém acredita, mas realmente agora ele plaaaaaanaaaaa, não mais precisa bater as asas.
Teotino voa!!!

Delires não crê no que vê. Admira seu amado no ar, voando sozinho...

24
A surpresa inicial vai se transformando em inveja na multidão. Inveja e ódio. Sansara Suniata
corta o silêncio e grita sem fazer som, grita de inveja. Teotino não poderia ter quebrado o
círculo, era um perdedor, tinha que ser um eterno perdedor, era um anti-herói, ele tem que
cair, tem que cair, tem que cair... Ora, ainda que caia será um vencedor, pois teve seu minuto
de glória. Sansara consegue finalmente falar e sua inveja e ódio contagia os ânimos da
multidão, já exaltada, que consegue toda externar os mesmos sentimentos:

- Cai, cai, cai, cai, cai, cai, cai ...

Em uníssono, toda a multidão, junto com Sansara, diz cai, cai, cai ...

Somente Delires fala em seu coração: - voa, voa, voa, meu amado, voa...

Tanta inveja e ódio irradiou-se da multidão que foi acertar bem nas asas do pobre Teotino, que
acreditara poder voar. Suas asas despregam-se, as penas se espalham pelo ar, caindo sobre as
pessoas, os carros, caminhões, ônibus, motos, bicicletas,....................nunca se viu tantas penas
despregadas caírem espalhando-se por sobre a multidão... e todos tentam se livrar daquelas
penas pegajosas, fedidas, parece que não saem de onde caem. Os cães e gatos não são
vitimados pelas penas. Nem os pássaros, que respeitosamente continuam parados nos fios. O
trânsito recomeça e tudo volta ao normal.

Delires olha para cima e ainda vê Teotino. Ninguém mais olha pra cima. Só Delires, que
continua vendo Teotino voar, voar, voar m seu voo pleno, como se nada tivesse ocorrido.

Ele não precisava de asas para voar.

25
O PREFEITO

O Prefeito da cidade do Porto, onde aconteceu o feito, sentiu-se indignado pela petulância do
cidadão. Onde já se viu?

Depois de dias, Teotino recebe em sua casa a visita de um Oficial de Justiça com um
papelzinho para ele assinar. Vai ter que comparecer em audiência daqui a uma semana no
Forum, com horário marcado e tudo. E com advogado. Que fria!

Teotino corre pra falar com Delires. Delires está morando sozinha, agora, brigou com Sansara.

- Téo, eu conheço um bom advogado para você. Ele é meio louco, que nem você, cobra caro
pra dedéu, tem um escritorinho pequeno na casa dele mesmo, mas é muito bonzinho. Ele
pode te ajudar. Eu tenho uma grana comigo, te ajudo a pagar o doutor.

- Num precisa.

- Cara, cê precisa sim, o caso é sério!

..................................................................................................................................

26
Chega a hora da audiência. A juíza pergunta:

- Tem acordo?

A advogada Dra. Emília Telles diz que não. Ela está defendendo a Prefeitura, que através do
Assessor Parlamentar Eduardus, acusa o Teotino de:

1. Loucura;
2. Ser um sujão;
3. Voar sem a permissão da municipalidade;
4. Desmanchar asas em pleno ar sem requerer ofício à Prefeitura;
5. Humilhação do povo;
6. Invocar inveja dos que olhavam Teotino voar;
7. Subverter a lei da convivência pacífica;
8. Subverter a lei da pacatez;
9. Subverter a lei da gravidade;
10. Irracionalidade humana.

O advogado de Teotino cita a Constituição, que dá o direito de ir, vir, ficar e permanecer, o
qual não infere se o ir e vir só pode ser na terra, podendo por extensão também ser no ar.
Voar é um ato livre para qualquer cidadão que o queira. Diz ainda que:

1. Os atestados médicos legais demonstram total sanidade do Réu;


2. O Réu não é porco e tem suas mãos mais limpas que a do ilustre assessor parlamentar;
3. Não existem precedentes na lei para necessitar de permissão para o voo ou para
qualquer ato afim. O Réu voou, voou sim, e não se arrepende disso, pois nada fez de
mal, apenas realizou um sonho legal, porque não há na lei nada que possa coloca-lo
como arregimentador de ilusões;
4. O Réu é inocente, não tendo ativado em ninguém qualquer sentimento impuro, pelo
contrário, mostrado às pessoas que todos podem alimentar seus sonhos com
realizações, isto é, todos os seres humanos têm o direito de buscar os seus sonhos e
vive-los.

A juíza dá o caso por encerrado, manifestando-se totalmente a favor da Prefeitura.


Imediatamente o defensor de Teotino pede a suspensão da Sentença para demonstrar
seu desagrado. Desce até a sala dos advogados do Forum e redige uma Ação de
Desagrado e protocola.
Três meses depois, recebe publicação do escritório que defende o Assessor
Parlamentar da Prefeitura.

27
28
ADVOCATIA
TELLES Y
TELLES
Dra. Emília Telles
Dr. Maximilianus Wagner Vianna Telles
Dra. Semínima Wagner Vianna Telles
Dr. Absentus Dalmeida Pradus Tulis e Telles
Dra. Juscelina Biltris Telles
Dr. Ascépio Esculápio Telles
Dr. Zezinho
Estagiário Piriquito Telles
Estagiário Juanilho Telles
Estagiária Evelin
Estagiária Irmã da Evelin

EXMA SRA DRA JUIZA DA CIDADE DO PORTO, UM PAÍS MAGNÍFICO.

Processo 497294/ Annum XXI


Ação de Desagrado

Rua Doze de Outubro, 1978, Lapa, Comarca de Paulus Sanctus, Unidade Federativa do
Porto, Um País Magnífico.

29
EDUARDUS AMOREIRA BENICACTUS
MAGNIFICUS, nascido e vivente da Cidade Aduaneira, casado, portador do documento de
identidade sob R.G. n°. 3agg8PP.Aduana, inscrito no C.P.F./M.F. sob o n°. 999555888B63222A,
Assessor Parlamentar da Prefeitura, Representante Fiel, Duradouro e Jurídico Máximo da
EMINÊNCIA DEMOCRÁTICA DE UM PAÍS MAGNÍFICO, no processo indevido que lhe é removido
pelo insolente cidadão THEOTINO CASTRUS MOURIANUS RODRIX PIANTAO MAHA LUX,
nascido na comarca do Porto, solteiro, vagabundo, portador do documento de identidade sob
R.G. n°. 123ab58w.Porto, inscrito no C.P.F./M.F. sob o n°. 268999P0002594K, residente e
domiciliado na rua Filipe, 121, Porto, vem, com todo acato e respeito merecido, diante de
V.Exa. para

CONTESTAR

na AÇÃO DE DESAGRADO,

pelos motivos como se seguem.

Preliminarmente

O Autor carece do direito de ação. Não existe o direito que ele pede.

Dos Fatos

1. O Autor é um louco. Só um louco juntaria penas.


2. O Autor é um porco. Só um porco deixaria sua casa, seu lar, sua moradia, repleta de
penas, assim como seus bolsos, malas, bolsas maletas e diabaquatro.
3. É proibido voar sem a permissão da Municipalidade.
4. O Autor não requereu ofício à Prefeitura para desmanchar asas em pleno ar.
5. O Autor humilhou os presentes, altissonando-se e alimentando as suas invejas.
6. O Autor é um subversor de leis da convivência pacífica, da pacatez e da gravidade.
7. O Autor vai contra a racionalidade humana. É impossível um homem voar com asas de
penas, ou, pior, por si mesmo, sem qualquer artifício.
8. Uma das maiores conquistas da escola do marquez de Beccaria foi estabelecer a
igualdade de todos os homens perante a lei. Tais são palavras de J.P.Porto-Carrero, em
seu belíssimo livro, Psicanálise de uma Civilização, Editora Guanabara, RJ, s/d [1939],
p.193. O Autor se diz um desses espíritos livres, e que não depende do racionalismo
inócuo... Ora, o que é isso, senão loucura, invalidez racional, subversão dos valores do
ser humano normal, do cidadão cumpridor de seus deveres cotidianos?
9. A ousadia contra o Poder, seja ele qual for, deve ser castigada.
10. Não pode o infrator ficar impune.
11. É um absurdo!

Dos Direitos

I. Mente o Autor a citar a Constituição da República De Um País Magnífico, em seu


artigo 5° e incisos concernentes, em especial ao direito de ir, vir, ficar e
permanecer, pois ele acresce um direito inexistente, o de voar.
II. Há, sim, impedimento de voar sem brevê, e o Autor não o tem, conforme a lei
específica.

30
III. Os movimentos de um homem não devem ultrapassar o mediano; mais que isso é
euforia catastrófica.
IV. O Estado não está para apoiar segmentos minoritários, mas à massa impensante,
como se sabe pelos princípios não escritos de nosso Direito.

Pleiteamos:
I) A aplicação das multas impostas pela Prefeitura;
II) O cálculo da mora e correção monetária;
III) A repressão do Poder Judiciário ao ato do insano cidadão contra o
representante oficial do executivo municipal;
IV) O pagamento das custas e despesas judiciais, assim como os honorários
advocatícios, pela parte autora.

É tudo mentira o que ele diz e podemos provar o que dizemos.

Pelo prosseguimento e consequente indeferimento da inicial, com prisão do


meliante por desbocamento e safadeza geral.

Comarca de Paulus Sanctus, 22 de abril do ano XXI

Dra. Emília Telles


Dr. Maximilianus Wagner Vianna Telles
Dra. Semínima Wagner Vianna Telles
Dr. Absentus Dalmeida Pradus Tulis e Telles
Dra. Juscelina Biltris Telles
Dr. Ascépio Esculápio Telles
Dr. Zezinho
Estagiário Piriquito Telles
Estagiário Juanilho Telles
Estagiária Evelin
Estagiária Irmã da Evelin

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Outra juíza revê o caso, analisa a Ação de Desagravo do Advogado de Teotino e dá
razão para o Réu. Mas manda que, ainda assim, Téo pague as custas processuais.

Lá vai o advogado do Téo manifestar-se contra o pagamento das custas.

32
Dr. Leopoldo Pontes
Advocatvs

EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUIZA DA CIDADE DO PORTO, UNIDADE FEDERATIVA DO


DISTRITO FEDERAL, CAPITAL DE UM PAÍS MAGNÍFICO.

Processo n° 497294/annum XXI

THEOTINUS CASTRUS MOURIANUS RODRIX


PIANTAO MAHA LUX, no processo movido contra o representante fiel, duradouro e jurídico
máximo da EMINÊNCIA DEMOCRÁTICA DE UM PAÍS MAGNÍFICO, EDUARDUS AMOREIRA
BENICACTUS MAGNIFICUS, ambos qualificados, nos melhores termos, por seu advogado, vem,
perante Vossa Excelência,

MANIFESTAR A SUA IMPOSSIBILIDADE DE ADIMPLÊNCIA DO VALOR


FIXADO PARA AS CUSTAS PROCESSSUAIS,
na forma e pelos motivos como a seguir.

1. O suplicante, evidentemente não teria proposto ação de desagravo, caso não


considerasse direitos certos e líquidos ter. Sequer pensou em requerer os beneplácitos
da Justiça Gratuita por considerar-se naqueles dias em condições de arcar com
eventuais despesas futuras.
2. Ao propor ação coma certeza pessoal de vencer, portanto, o Autor não hesitou. Na
data da distribuição, contava ainda com suas economias. O contrato feito com seu
Patrono foi unicamente de risco, posto a certeza de seus direitos já de sua própria
consciência. Não teve, assim, gastos de imediato.
3. Infelizmente, a r. Sentença da magistrada não considerou verídica a reclamação do
suplicante, envergando considerações segundo seu convencimento jurídico. Dura Lex,
Sed Lex.
4. Atualmente, porém, está o Autor desempregado, buscando pequenos expedientes
para sua mera sobrevivência. Ficou o trabalhador restrito ao limbo social e judicial.
5. Dessa forma, não pôde sequer pensar em recorrer ao grau superior, dado o altíssimo
valor financeiro que deve dispor o pretendente; tal, não possui e nem vislumbrou
conseguir no prazo legal.
6. Não tem o pleiteante meios, pois, de resolver a pendenga. Seus poucos bens são para
a própria sobrevida. Não tem quem lhe possa oferecer ajuda pessoal. Ainda, portanto,
que venha a MMª admiti-lo como devedor, não poderá arcar este sem primeiro

33
prejudicar-se com gravidade. Está, o trabalhador desempregado, inerte e inábil para
recolher as custas processuais. Grand litige, travail doublé.
7. Sabe o Patrono do Autor que poderia ter requerido a Justiça Gratuita para o
desempregado em tais condições como as acima referidas, mas no dias em que propôs
a ação a sua situação não era ainda periclitante, a esperança lhe acenava melhores
condições, não uma perda total e bancarrota, como vem se aproximando.
8. Ora, O Direito vive para alimentar a Justiça, maior que a Lei. Esta, deve servir àquela,
ampliando em longas mãos o Direito onde a Letra não possa alcançar.
9. A Constituição, Magna Lex, só terá sentido se identificada com as premissas de seu
preâmbulo, o qual declinamos a seguir (negrito nosso):
Nós, representantes do povo de Um País Magnífico, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a aprovação popular, a seguinte CONSTITUIÇÃO DE UM PAÍS
MAGNÍFICO!
10. Não há como nos esquecermos do princípio da isonomia, que impõe a igualdade como
nivelando os desiguais na medida de sua desigualdade: O atual artigo isonômico teve
trasladada a sua topografia. Deixou de ser um direito individual, tratado tecnicamente
como os demais. Passou a encabeçar a lista destes direitos, que foram transformados
em parágrafos do artigo igualizador. (CELSO RIBEIRO BASTOS. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo. Saraiva. 1992. Página 169.)
11. Há de haver flexibilidade no entender da legislação, em prol do ser humano como
indivíduo e como cidadão, que vive em prol do Estado e, por sua vez, é protegido por
esse mesmo Estado, produzindo em prol do desenvolvimento desse estado, e isso com
mais importância que totalitariamente pagar custas com o que não tem.
12. Não há sentido em dirigir um Estado Democrático sob a égide de uma Carta Máxima,
se esta não corresponder às necessidades e vontade de um povo. E o povo é o que o
Estado representa, através de um Poder. O Judiciário é ainda o mais casto e límpido
representante desse anseio popular, e deve utilizar a Constituição como resguardo
para cada um dos que compõem essa massa. Pois, apesar de ser regra para um totum
sem face, cada caso concreto mostra as rugas e os músculos das partes que se
enfrentam num litígio.
13. A liberdade do homem é a liberdade do cidadão num estado democrático, não pode
ser condicionada ao seu estado de pobreza ou riqueza, mas há de manter a igualdade
isonômica.
14. A sentença judicial tem consequências na vida das partes, que são nada mais ou
menos que cidadãos, seres humanos. E a vida dessas pessoas estão na mão de outros
seres humanos, investidos da Magistratura, o poder judicial.
15. Todavia, como deixar in albis na memória e consciência o acontecimento da vida
prática, do cotidiano? O tempo, em sua passagem, muda as pessoas e suas
possibilidades vitais. Faz alterações que podem tomar rapidamente insípidas as mais
torrenciais fontes, isso incluindo a condição humana.
16. É a verdade real que se deve buscar, não a ficta. Ainda que a consciência de uma
magistrada a leve a uma sentença que destrone o reclamante de sua certeza, a

34
verdade não é algo puramente intelectual, mas implica na vida inteira, e a razão não é
tão pura como pretende o racionalismo.
17. Lembramos, destarte, das palavras do insigne Ruy Barbosa: Quem dá às Constituições
realidade, não é, nem a inteligência, que as concebe, nem o pergaminho, que as
estampa: é a magistratura, que as defende. (Epígrafe do capítulo Rui Barbosa e a
Constituição de 1891, no opúsculo RUI BARBOSA E A CONSTITUIÇÃO DE 1891. RJ.
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985.)

Ante o exposto, vem requerer:

I) A anistia dos valores a recolher ou


II) Os benefícios da justiça gratuita, retroativamente no processo;
III) A juntada e consideração do documento acostado aos autos (declaração de
pobreza), no sentido de considerar a incapacidade deste em resolver dívida de tal
porte.

Nestes Termos,

Pede a Reconsideração deste Juízo.

Comarca de Paulus Sanctus, 11 de dezembro do ano XXI.

Dr. Leopoldo Pontes

Advocatus

R. Roma, 166, Lapa, Comarca de Paulus Sanctus, Unidade Federativa do Porto, Um País
Magnífico.

35
A juíza analisa a petição do defensor de Teotino e anistia o nosso herói de todos os valores a
recolher, mandando ainda, na sentença, à Prefeitura de deixar de ser tão burra e mesquinha.

.................................................................................................................

36
Ah, sim, o namoro de Téo com Delires não deu em nada, mas ela nunca foi tão feliz como
agora, que tá noiva do Duda. E tá cantando no lugar de Sansara naquela banda da pesada.
Nunca mais pisou no escritório de advocacia.

Sansara Suniata decidiu escrever um livro. Ainda não achou editora para publicar, é muito
chato.

37
Teotino assimilou a nova assinatura para Theotino. É assessor parlamentar para a organização
de um partido de oposição e vai concorrer para prefeito nas próximas eleições.

38
Theotino vai ser eleito prefeito, provavelmente, tem tudo para isso. Até já está sendo
publicado um livro sobre sua vida, uma biografia naturalmente não autorizada, que o trata
como Theotinus, inventa nova filiação e coisas assim.

Dizem as boas línguas que o Theotinus é o verdadeiro Teotino e que o voo sem asas foi apenas
um sonho durante a viagem de um ano pelo país que Theotinus teve. E que decidiu ele
escrever.

Mas Theotinus, durante sua viagem pelo país, esteve com Andrômeda, trazendo-a para a
memória de seu autor.

39
40
O
Livro
De
Theotinus,
Filho de
Esteves e de
Lucília

41
O CARTÃO DE NATAL

Sab, ñ esqueça seus sonhos.

O mundo é d qm acredita.

Vale a pena o sofrimento de qm aguça a

Sua própria sensib’lidad e se d’scobre.

Quebre o círculo!

V tocou nosso coração, agora vá e toq

O mundo!

Toq o coração

Do mundo.

Eu acredito.

Queira crer e

Acredite.

Vc pod. Vamos compartilhar juntos o

Milênio!!!

Aos atheos, pagãos, Evohe!

Aos q têm coragem d crer, Ah-Mem!

De seu amigo e irmão

Theo.

1 fliz Natal d 1 portentoso seclo. Amor na vida. Cragoah, XXII decembri.

Gosto de homens e de mulheres que

Sonhem o impossível

E digam aos seus corações

Por que não?

Spencer W. Kimball

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- E aí, Cléo, gostou do cartão? Fui eu que fiz, no meu computadorzinho de 8 megabaites.

- Ficou bonito.

- ...

- Cara, me emocionou. Tocou fundo. Foi esse Spoenceur que escreveu?

- Não é Spoenceur, é Spencer. Spencer W. Kimball, um Profeta. Mas ele escreveu só a frase
“gosto de etc etc etc...”

- É, eu achei muita coincidência que você tivesse achado justamente um escrevedor que
tivesse tanto o seu jeito de falar e sua pensada. Mas, em todo caso...

- Talvez eu tenha feito uma diagramação esquisita, pode ser. Dá mesmo impressão que tenha
sido tudo escrito por uma pessoa só. Mas fui eu que escrevi. E agora vou mandar assim
mesmo, você foi a primeira pessoa a receber, a crítica valeu!

- Não fui crítica, só pensei que...

- Tudo bem, no problems, fica assim como uma velada crítica construtiva,

- Não seja cínico.

- Não estou sendo cínico.

- Claro que está!

- Oh, Cléo, tá tudo bem. Você tá bem, meu cartão de natal e ano novo ficou jóia, tá meio
mocréu, assim como direi mais para zaromba que para djiridjiridú, masssssssssssssss
noooooooooou próblemmmmmmmmmmmmmssssssssssssssssssssssss, você atentou para um
problema que eu não tinha notado. Agora já foi. Vai assim mesmo, vou mandar esse cartão
pruma pancada de gente. Bom, não tanta gente assim, mas pelo menos para os que me
tocaram este ano. Falta ainda assinar. Pôr nos envelopes, correio, e esperar que cheguem.

- Por que você não manda por e-mail?

- I don’t have internet, ma bêibe. Nem meio de mandar e-mail, meu computadorzinho
adorado só tem 8 megabaites.

- É, tem aquele negócio de pegar vírus por e-mail...

- Ô, garota, tudo tem seu risco, para se ter um pouco de alegria é preciso arriscar. Para se ter
um pouco de beleza é preciso quebrar a pedra com cinzel e buscar a Vênus que já está naquele
pedaço de mármore. Basta saber aonde está a luz, ir em direção à luz, os riscos são inevitáveis,
mas você passa por eles e nem sente, vira arranhão de caminhada e acampamento. É tudo
música! (Citação de uma frase de Hermeto Paschoal.)

- Tá certo. Obrigada pelo cartão. Vou guardar.

- Não precisa guardar na bolsa. Guarde no seu coração.

- Vou pôr no meu diário. Vai estar guardado para a História. Um dia, meus descendentes
saberão que tive um relacionamento com você e essa relação vai poder ser provada por este
cartão de natal.

- É um cartão feito em meia folha de sulfite.

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- É um cartão de Natal! Fiquei muito comovida. Está lindo! Não esquecer os sonhos. Lembro-
me que u dia você me disse que não tinha sonhos, só projetos. Então eu te falei, sonhe, não
tenha medo de sonhar. E hoje você diz para a gente não esquecer os nossos sonhos e vivermos
o que acreditamos.

- Veja, Cléo, não é para negar o que está à sua volta, como se nada existisse, criar um mundo
de cristal e morar nele. Falo de procurar a verdade, o que é real, o que existe na verdade. Você
sabe, temos cinco sentidos, temos a nossa percepção sensorial, mas o mundo é mais que isso.
Falando em termos de bobinho, é como se eu dissesse que não conseguimos por exemplo ver
o ultravioleta ou ouvir o infrassom. Mas é mais que isso. Se tivermos de repente a percepção
de todas as coisas como elas são, enlouquecemos, porque não estamos preparados.

- ... sei...

- Moisés viu Deus com seus olhos espirituais, que Deus abriu para que ele pudesse perceber a
presença divina. Depois veio o diabo e Moisés viu o cara com seus olhos naturais, os mesmos
com que ele via qualquer outra coisa, olhos iguais aos meus e aos seus e ele disse...

- Ele quem?

- O diabo disse pro Moisés adorá-lo e o Moisés falou: quem és tu, eu posso ver com meus
olhos naturais? Deus, para que eu possa ver, tem que me preparar, e você posso ver como
vejo a qualquer de meus semelhantes.

- E assim Moisés desbancou o coisa-ruim.

- É isso aí, mais ou menos isso, mas o importante é que o sacrifício de se aguçar a própria
sensibilidade vale a pena. Não sermos bois que se entregam ao matadouro...

- O touro se conhece pelo chifre, o homem pela palavra.

- É, temos que ter a nossa palavra, conhecermos as nossas fraquezas, não negá-las, mas
enfrentarmos essas fraquezas e transformarmos elas em pontos a serem fortalecidos.

- Cê tá agora parecendo autor de livro de auto-ajuda.

- Pois é.

- E que círculo é esse que você fala em quebrar?

- É o círculo que Filipe ouviu sua vó falar. É, na verdade, a circunferência da predestinação, que
só existe se você deixar que seja. Não se pode ir pela predestinação, não há destino inexorável,
você tem a escolha, você sempre pode escolher entre o que o Destino manda ou buscar Deus
e os seus caminhos. Quebrar o círculo é ter a coragem de crer, e de viver o que acredita, mas
depois de buscar a verdade e, então, acreditando, ir em frente.

- E por que seclo.

- Não captou? Contração de século, sexo, ciclo, o eterno. Os ciclos lembram círculos, mas
devemos lembrar que não há porque pensar em predestinação e por isso falo em quebrar o
círculo, o ciclo, o seclo, porque o tempo não existe da forma como pensamos, é outro, terá um
dia que ser redescoberto. O tempo será conhecido através do amor. Amor na vida.

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VIAJAR

Theotinus é filho de Lucília. Circunciso, segundo a mãe, por razões higiênicas. O pai, Esteves,
intelectual de carteirinha, aprovou a decisão materna, gabrielista convicto que era. Teve Theo
mais irmãos, porém foi ele o mais velho. Um dia, aos 14 anos de idade, decidiu sair de casa:

- Vou sair, mãe, conhecer o mundo. Pegar estrada.

- Meu filhinho, preciso de você. Você é o exemplo e o apoio dos seus irmãos...

- Tá bom.

Passaram-se dez anos. Theotinus achou que era hora de sair.

- Tô indo, mãe, avisa o pai que eu fui.

- Cuidado com as más companhias. Seus irmãos seguram a barra.

- Você entende, mãe, vi seu diário, você também viajou muito. Preciso encontrar essa viagem.

- Eram outros tempos, filho. Naqueles dias, queríamos fazer uma revolução, eu era uma
sonhadora, encantada com as lideranças políticas, queria fazer parte das mudanças da história.

- É isso que eu quero, mãe. Estou me mudando para a estrada. Em algum lugar talvez eu pare,
então te mandarei um postal.

- Com que você vai se sustentar?

- Vou levar seu violão. Posso?

- Ninguém hoje em dia consegue mais pagar viagens com um polegar e um violão.

- Você não se lembra da música?

- Que música?

- D’O Som Nosso de Cada Dia!

- Manito nos teclados...

- Isso!

- Muito louco. Devem estar todos no manicômio.

- Não fala assim, mãe. Eles buscaram algo que estava atrás do muro.

- É verdade. Talvez seja. Ou, não sei, a gente pensava que ia.

- E a música? Lembra?

Lucília pensou, pegou o violão, afinou aqui e ali, cantou umas notas, buscou o tom e entoou,
com sua voz de soprano:

- Não vou encher de falhas

Meu ouvido meu querido

Só vim aqui pra dizer

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Que O Som Nosso de Cada Dia

Foi feito pra alegrar

A cidade e registrar

A mocidade de nosso tempo-A

A mocidade de nosso tempo.

Porque esses livros todos

Não adiantam nada

Nada vale mais

Que um polegar em cada mão

Isso sim, isso sim,

E um coração, um coração,

De samba-canção...

- Tá faltando uns pedaços, num tá, mãe?

- É, tá, mas é o que eu sei. Eu gostava muito dessa música. Temos o disco em casa, aqui.

- O toca-discos tá sem agulha, mas eu gravei faz tempo esse disco, vou passar pra cedê. Um
dia.

- Não diga nada mais. Vai, pega seu caminho, mas manda notícias. Qualquer coisa, leve o
cartão do Amaral Vieira, é um grande compositor. Se precisar e estiver passando lá por perto,
fale com ele, pode te dar umas dicas de música contemporânea. Lembra de Tecladofonia? É
dele, tenho uma gravação piratinha que fiz no Festival de Inverno de Campos do Jordão. Foi
um grande amigo de seu pai, anos atrás. Ele vai se lembrar e vai te tratar bem.

- Fala desculpa pro meu pai, não quero ver ele ficar chateado.

- Ele nunca demonstra. Diz culpa.

- Culpa.

- ... Chau...

- Té um dia. Estamos ainda fazendo a Revolução. Só não sei se é a mesma.

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THEO E CLÉO

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Theo segue estrada. Tem um dinheiro guardado de seu trabalho como ajudante de
bibliotecário, na faculdade onde o pai dá aula. A demissão nem aconteceu, foi puro abandono
de emprego. Pega um ônibus para uma cidade vizinha, onde vai falar com sua amiga Cléo.

- Cléo, vou viajar.

- Legal, pra onde cê vai?

- Um polegar e um violão. Por aí.

- A estrada está perigosa. Qual é o lance, meu irmão?

- O lance é não perder tempo, ou pior ainda, é não se encontrar. Alguém que passa pela vida e
não se vê, como se apenas passasse, nada mais. Vive assim como se fosse brisa, passa e acaba,
e só. Como pode não haver mais tempo? É pouco o tempo, tem que ser o mesmo, é o
paradoxo do tempo e da vida, da vida do tempo, do tempo vital, é o fim da picada!

-Alô. Aqui é da Terra! Theotinus, está me ouvindo?

- Não faça pouco de mim, estou falando sério, estou preocupado com a minha condição como
ser humano, eu dentro do universo.

- Theotinus, eu te odeio! Eu te odeio porque te acho profundamente inteligente.

- Eu estou entediado.

- Eu sei, isso é muito mau. Queria ser tua inimiga, mas não posso, eu te amo com todas as
minhas faces, acho que nasci para você.

- Fica quieta, Cléo. Deixa-me afundar no insano tédio!

- Tenho um fraco pelos entediados quando são ilustrados. São tão cultos.

- Posso pôr um som?

- Claro, Theozinho, aproveita e põe esse que tá aí, bem na sua frente.

- Banda Sinfônica, com o maestro Farias... Não é o que eu queria ouvir. Gosto bastante, mas
estou mais em outra sintonia. Você não tem aí nada do Naná?

- Naná Vasconcelos? O Gaby levou e nunca mais me devolveu. Serve Pepeu?

- Pepeu Gomes? O guitarrista mais esperto do Brasil? Ôrra, esse cara é demais! Cê tem o quê
aí?

- Tenho o primeiro vinil solo. Serve?

- Nota mil! Bota na ponta da agulha que já estou vibrando, ó!

Cléo liga o toca-discos, o amplificador, limpa a agulha, mexe na coleção de discos, puxa um,
puxa outro, até que acha o prometido. Theo está ansioso, anda de um lado para o outro,

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coloca a mão em tudo, olha os quadrinhos e penduricalhos do quarto de Cléo, até que as
caixas começam a se mover, quero dizer, os papelões dos wafers começam a bater e os
tweeters ressoam a guitarra pepeônica! O som é tão alto que engole qualquer grito de
estupefação e alegria. Zóim! A magia da música! Cabeças se movem, silêncio entre as bocas, só
Pepeu reina naquele quarto.

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Ao fim do lado A, o braço da vitrola volta ao lugar. Cleo abaixa o volume, vira o disco e...
desliga. Theo detona:

- Estou com medo. Perdi o sentido do ser.

- Theotinus, Theo, Tell... Você não me ouve e eu não consigo te entender. Onde está você?

- Ô, garota, eu estou falando da existência, da gente viver além de nossa condição


simplesmente humana, deixarmos de ser macacos para sermos realmente pessoas, indivíduos
pensantes, sentimentais e sensíveis.

- Teu medo é a tua busca, voa como um grande pássaro, os outros te seguirão.

- Tudo é Um! Eros e Thanatos se encontram quando o primeiro se perde e o segundo o


arrebata. Aparentemente é lindo, mas é terrífico, porque é o fim, é uma pancada fatal. É tudo
enraizado num só ponto, apenas muda os graus, mas é tudo um só princípio, a busca de um
quê perdido.

- Um quê?

- Um quê! É isso. Quando você partir desta para a melhor...

- Vestir o paletó!

- É. Quando você chegar nesse ponto, a primeira coisa que vai acontecer é o encontro com
uma intensa luz! O terrível e o maravilhoso se encontram e, então, você escolhe a realidade
que viverá, de acordo com a que estiver preparado, conforme seja a realidade para aa qual
você se preparou.

- Você está falando muito de morte, hoje. É como se você unisse o nascimento com a morte.
Quando você nasceu, se não quisesse sair, você sairia?

- Se eu não quisesse sair, seria tirado por cesariana.

- Tá, mas não é isso o que estou dizendo. Se não houvesse como fazer essa operação, e na
hora de nascer você não fizesse esforço para sair, o que aconteceria?

- Eu morreria.

- Você não viveria...

- É... A casca não se romperia.

- É isso, você tem medo de viver, Theo, o medo de romper a casca é o medo de sair do ovo, é o
medo de viver. É o medo de sair pra rua, é o medo de enfrentar...

- É o medo de enfrentar a realidade.

- E o que é real?

- Não sei. Você sabe, Cléo?

- Eu sei. Você também sabe. A realidade está além de nós mesmos. Nós estamos inseridos
nessa realidade e não percebemos quase nada dela mesma. Olha, tem um anjo ali.

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- O quê?

- Tem um anjo ali. Está olhando para nós, tem quase dois metros, ou mais. Você não vê?

- Não.

- E porque você não vê, ele não existe.

- Não sei.

- Para onde terminou indo Dante?

- Não sei. Quando observo meu cão, vejo que ele vive como se fosse qualquer tempo, qualquer
época da História. Tanto faz para ele quem seja o Presidente do país ou o tesoureiro da
Associação dos Aposentados. Tanto faz para ele que qualquer um deles seja um
socialdemocrata, um pós-moderno, um vagabundo, um corrupto, tanto faz para ele se a casa é
grande ou pequena, basta-lhe um cantinho, qualquer cantinho, e ele se coça sem pressa,
dorme quando quer, come o que tiver, bebe quanta água houver, se tem ração é o mesmo que
se tiver arroz, acostuma com tudo. Está sempre feliz em nos ver quando a gente chega em
casa... Tanto faz para o meu cão se estamos no início de um novo milênio ou nos meados de
qualquer outro, para ele é sempre a mesma coisa, meu cão não conhece o tempo e os
mistérios do tempo... Nós vivemos essa ilusão dos anos que se passam, meu cão não. Ele não
participa dessa ilusão humana.

- Mas você não é seu cão.

- Claro que não. Mas quando eu falo, as palavras vivem. Quando a palavra é dita, ela passa a
existir, mas só enquanto é falada. Acabou, acabou. Existe só naquele momento. Pode ser
gravada, mas isso será o registro de um momento ou será outro momento. Cada vez que for
tocada a gravação! Há aquela ilusão de tempo, mas cada vez que eu falo há vida.

- Theo, a palavra é como um pulso.

- Esquece a comparação. A vida é um grande pulso. As palavras são pequenos pulsos, que
ajudam a vida a ser vivida.

- Como se fosse um livro.

- Sim, Cléo, a incompletude de um livro é que faz a sua beleza. Quando ele é fechado, deixa de
existir; enquanto é lido, seu leitor o reescreve em sua mente, em seu interior, em seu coração.
Há uma transcrição e uma transliteração dos sentidos. É o segredo da Capitulina, de Machado
de Assis.

- Capitu capitulou?

- Você captou?

- Só existe enquanto vivido, Theo. Se deixado de lado, é a morte. Leschvii Kroasmaenn disse: O
que é a vida, senão morte? O que é a morte, senão vida?

- Eu sei, Cléo, lá vem aquele papo do Hesse, que quem quiser nascer tem que destruir um
mundo... Você anda lendo demais, Cléo! Leia menos e pense mais no que você está captando.
Esquece a epistemologia que hoje eu tô existencialista.

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- Isso é muito ruim. Desaba o mundo e você fica olhando, analisando, dizendo que isso é de um
jeito, aquilo de outro, e tal e qual fica igual ao modelo xis etcetera e tal e não repara que o
mundo desaba.

- Não é isso! Quero te dizer que existem coisas que importam, realmente. É como o sonho de
Leí, que viu no sonho um fruto branco, deleitou-se com tal fruto de forma que queria que
todos os seus familiares o provassem. Alguns provaram, outros não. Leí queria que todos
pudessem ter o prazer de provar o fruto branco, mas teve gente que nem sequer teve a
ousadia de experimentar. Falo dessa alegria de descobrir a beleza, porque a verdadeira é doce,
mais doce que o mel, mas não enjoa, é uma sensação de paladar e tato, é a felicidade de saber
ser.

- Ser o quê, Theo?

- Isso, é ser o quê, é ser aquele quê do qual falei agora há pouco.

- Conversa de doido! Você vive o seu sonho?

- Eu não sonho, Cléo, tenho projetos.

- Não tem porque não sonhar, sonhar é bom, levar o sonho para ser vivido na realidade.

- Isso é psicose, Cléo, armar um castelo de papelão e viver nele como se fosse o Palácio do
Alvorada é o ícone da loucura!

- Há uma pequena diferença. É o que difere o santo do louco. De longe, é um ponto só.
Quando chega mais perto, se vê que são dois pontos em locais diferentes e cada qual vai para
um lugar. O louco vive o sonho como se fosse real, o santo transforma a realidade para que
todos a possam ter como ele pôde sonhar. E não é um sonho de um só, é para ser
compartilhado.

- ... entendo...

- Theo, compartilhe com os outros os seus sonhos, faça com que sejam reais. É o que distingue
Maha e Maya. Os hinduístas dão o título ou nome de Maha aos que são grandes, poderosos ou
virtuosos. Veja: Mahatma Gandhi, Maha é grande e Atma é alma. Aquela banda, Mahavishnu
Orchestra. É o contrário de Maya, ilusão. Maya é ilusão. Tão próximos os nomes, Maha e
Maya, tão díspares. Um é a cara do outro, mas são tão diferentes que não podem ser
comparados.

- Como no hebraico, o rei e o louco são parecidos, têm o mesmo valor numérico. Porém são
incomparáveis. MeLeCh é o rei e LeMeCh o louco. Apenas inverte-se a posição das letras.

- Nem sempre são opostos, nem sempre se completam.

- Nem sempre, realmente. Os opostos podem não ser opostos, mas um ser a negação do
outro. O diabo nega Deus. Ambos existem, mas você não precisa do diabo. Deus tem, em si, o
yin e o yang. O diabo quer que você desconheça o Tao, o equilíbrio. Mas como o caminho para
o Tao é alternado e dinâmico, nada mais justo que se dê ao homem e à mulher a possibilidade
de conhecer a verdade divina por uma porta que dê para entrar, sem necessitar pular janelas e
muros, cair em espinhos e não se encontrar.

- Theo, isso é revolução!

- Isso é o movimento da vida.

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- ...

- ...

- ...

- Tchau.

- Onde cê vai, Theo?

- Embora. Tá tarde.

- O tempo é uma ilusão. Você sabe, eu sei. Por que não saímos dessa eterna teia de aranha?

- Não sei viver ainda sem essa ilusão. Aliás, sei, mas não seria correto, ela tem que ser vivida
até que eu saiba reconhece-la como ilusória.

- Ilusão ilusória.

- É.

- O tempo tem que ser vivido porque é um imperativo categórico que o tenhamos que fazer. É
uma fase necessária e crucial. Seu cão não passa por essa fase. Mas também não alcança a
segunda volta do parafuso.

- Você está falando e eu não estou entendendo nada. Deu o clic. Desliguei... Chau. De novo.

- Té. Cê num quer dar uma volta?

- Vamos. Tem alguma idéia?

- Andar por aí bater perna, vadiar. Às vezes é bom. Passei o dia navegando na internete, tô
estafada! Tô só com a cabeça no delete, agora.

- Tá bom.

-Depois cê viaja.

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52
Saem os dois pela rua. O violão vai na mão de Cléo. O instrumento tem uma correia onde se lê
“Theotinus”. Começam a andar sem rumo, feito casal vadio. Sem assunto. Silêncio. Cada um
com seus próprios pensamentos. Então, depois de meia hora nessa base, Theo dispara:

- Me dá o violão! Quero tocar. Tô com música na cabeça.

- Nossa, já ouvi falar nisso. Um tio seu tinha isso.

- Tem isso. Gaby tá vivo. E ele não é meu tio, é só amigo da família. Meio dedéu, mas é um
bom cara.

Sentaram-se num banco de jardim. Theo começou a tocar, tocar, tocar,... Fez uns acordes, uns
pequenos solinhos aqui e ali e começou a improvisar.

- Theo, cê tem que tocar pra mais gente, não adianta tocar só pra mim.

- Eu sei, Cléo, tô louco pra isso, mas quem vai querer me ouvir?

- Muita gente!

- Isso que eu toco é muito difícil de agradar. Eu não toco aquela, toco o que vai pelo meu
coração, quero emocionar as pessoas, quero tocar o coração de cada um. É assim que vale a
pena tocar. De coração para coração. E quando a gente se prepara para tocar, é como se
ficasse descalço. E se as pessoas não prestam atenção, ficam dispersas, falam entre si, não
ligam para você, então é como se você pisasse no asfalto quente, embora estivesse preparado
para uma areia fina, macia e tépida. Você fica ferido. E eu não sei tocar assim, preciso de um
sopro de Amor. É assim que a gente consegue tocar bem. Como agora.

- Difícil. As pessoas não são assim.

- São, sim. Se elas se dispõem a te ouvir, elas atentam suas sensibilidades. Mas se você aparece
no meio de um festejo qualquer, vão te pedir que toque aquela. E isso é muito frustrante.

- Você é um artista.

- Quem vai entender essa conversa? Como explicar isso para alguém?

- Ora, eu entendo. Algumas pessoas, tenho certeza, te entenderão. Eles abrirão as portas para
as sensibilidades das outras pessoas. Fale com o Dougue, ele vai te entender.

- Pode ser.

- Sim, ... e alguns amigos nossos, eles têm sensibilidade. O Gaby...

- No tempo da minha mãe era mais fácil. Os tempos agora estão muito duros.

- Nada disso, são os tempos como têm que ser, quem muda somos nós. Temos que mudar o
mundo!

- Você tá falando que nem meu pai.

- É isso aí. Tô falando que nem a sua mãe, que nem o Gaby, a revolução agora é outra, mas não
podemos parar. Você precisa viajar, então vai, mas eu estou te esperando.

53
- Fica fria, Cléo, eu volto logo.

- Um dia você voltará. E eu talvez não esteja mais te esperando.

- Então será outro dia. Assim são as coisas.

- É isso. Fica com seu violão. Tô indo pra casa. A rodoviária é virando a próxima esquina. A
estação de trem é mais longe. A gente se vê, mano broda.

- ... tá ...

54
AULA PARTICULAR COM A PROFESSORA CLEO

Theotinus viajou. Foi pela estrada, pegou um ônibus para a Capital, viajou por todo Um País
Magnífico, ficou um ano nessa vida. Na volta, foi direto conversar com Cléo. Encontra-a na
porta de sua casa.

- ... oi, Cléo...

- Só oi? Eu quero um abraço e um baijo! Como foi a viagem?

- Eu queria a resposta.

- Quero te abraçar.

Theotinus larga a mochila no chão, o violão, está sujo, fedido, molambento, cabelo ensebado.
Mas tá embebido com perfume de patchuli, muito forte, que era de seu pai. Fica parado. Cléo
vai até ele e o abraça, beija. Beija, beija, beija beija... Ele, parado, com ar de nada. Ela o leva
para dentro de casa, senta-o na poltrona, põe as coisas dele para dentro, fecha a porta e
dispara:

- Qual a pergunta?

- A pergunta é essa: eu queria a resposta.

- Não a mais quer?

-Eu quero a resposta!

- Faça a pergunta certa, meu chapinha.

- Qual a pergunta?

- Você quer uma resposta, mas não sabe ainda a pergunta certa. Faça a pergunta certa, meu
irmão!!!!!

- Bom... Qual a saída para a condição humana?

- Mal formulada. Não é isso o que você quer saber. Faça a pergunta certa.

- E qual a pergunta certa, meu?

- A pergunta certa é dependente do que realmente você quer saber, não do que você pretende
ouvir. Eu preciso ouvir a pergunta, entende-la, analisa-la, compreende-la, cientificar-me
contigo se a pergunta formulada é a mesma que eu estou entendendo ou se pelo menos se
aproxima. Isso então será uma indagação correta.

- Então, digamos que eu tenha encontrado a pergunta certa.

- Minha resposta será provavelmente uma nova pergunta. Você deverá responder a minha
resposta com uma nova pergunta, a fim de ter perfeito entendimento, ou quanto possa, do
que estou dizendo, para então reperguntar o que havia já antes indagado, e assim vamos
aproximando as minhas respostas de seus questionamentos.

- E se você me der uma resposta que me satisfaça?

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- Será essa a sua resposta naquele momento e lugar. Valerá. Será a resposta certa para a
pergunta certa.

- Tudo bem.

- Quando achamos que temos uma resposta, é porque ainda não achamos a nova dúvida. São
as perguntas que movem o mundo, o medíocre nunca pergunta, faz apenas aquelas que já
vêm com a resposta embutida.

- Estou triste. Às vezes entro num pique enorme, explodo de energia, até que sem razão
nenhuma, caio nesta tristeza.

- Eu também. Por isso nos entendemos bem. Vamos tomar um chimarrão, Theo?

- Tá. Mas não deixa ferver a água.

- É, senão queima a erva.

- E o bico.

- E a língua.

- A erva tá boa?

- Verdinha, cheirosinha e quase sem galhos.

- Eu aguardo.

56
A CHAPAÇÃO

Theotinus dormiu no quartinho do fundo da casa de Cléo. No dia seguinte, pegou o trem para
ir para a casa de seus pais.

- ... oi, mãe... Cadê o pai?

- Tá na faculdade, dando aula. Me dá um abraço! Que saudade!

- Passei ontem na casa da Cléo. Como é que alguém pode saber das coisas?

- Viajando, filho.

- Mas eu viajei, mãe, viajei o país inteiro... e fui aprender mais com a Cléo, que ficou em casa,
do que durante todo o ano que viajei.

- A viagem é de dentro pra fora. Não adianta você pegar estrada, sem viajar por dentro. Abra
as portas da percepção, filho. Vá falar de novo com a Cléo, daqui a uns dias. Fica um pouco
com a gente, depois você volta pra ela e pergunta sobre isso.

- As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, cês têm aí na biblioteca, já li há alguns anos.

- Não falo dessa viagem.

- Fala então de meditação?

- Também não. Estou agora sem palavras, não sei como explicar. Vou ligar pra Cleo. Converse
sobre isso com seu pai, hoje à noite.

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Theotinus está com fome. São umas treze horas, o sol está inclemente, decide almoçar na casa
de Cléo.

- ...oi, Cléo!

- Cê chegou na hora! A sua mãe falou que você não entendeu sobre abrir as portas da
percepção. Cê tá achando que eu tô tomando droga?

- É, pensei... Depois achei que fosse meditação, ioga...

- Cara, tu tá doido demais! Viajou por um ano por este país e não aprendeu nada! A
sensibilidade se aguça com o conhecimento, com a oração, o jejum, o amor.

- Amor?

- All you need is love! Love, love, love. Amor, meu grande amor… Amor de mãe, amor de pai,
amor de irmão, amor de amigo, amor de esposa, amor de Deus, amor supremo. Amor de dar a
mão, amor de beijar, amor de abraçar, amor de conversar e de compartilhar. Essa é a maior
viagem!

- Isso é uma cantada?

- Você acha que esperei um ano por você à toa? Tô esperando a sua pergunta.

- Quer namorar comigo?

- Perguntinha bêsta...

- Ô, menina, cê quer me deixar zoréu? Já num entendo mais nada...

- Vamos fazer diferente. Você quer namorar comigo?

- Quero.

- ...

- ...

Daqui por diante, é o que todo mundo já sabe. Cléo se casou com Theotinus, tiveram filhos e
um dia Theo decidiu escrever um livro. E escreveu:

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59
Liber
Medíocre

BREVE ANÁLISE A RESPEITO DA MEDIOCRIDADE

(Cinco reflexões a partir do mito do herói)

60
A mediocridade não é falta de inteligência é uma questão emocional, de esprit,
muito mais que intelectiva.

61
I

A mediocridade é grau de desinteresse ao que se relaciona a tudo que esteja acima do


humano. Pode-se falar em pessoas portadoras de estados de hybris violentos, movidos por
ímpetos interiores, que as movimentam para grandes envolveres em locais do conhecimento,
da sabedoria, acima de seus próprios limites corriqueiros. Não há necessidade de um Q.I.
elevadíssimo, porém de um querer exacerbado, no mínimo um querer que a mova para os
píncaros, ao métron. Essa pessoa irá caminhar para o acima do normal, ainda que não seja
propriamente inteligente, erudita, porém detentora de um específico pessoal.

Há de ser herói. O herói não é medíocre. O sábio cultivou seu estado de espírito e deixou de
ser medíocre, continua cultivando porque é sábio, ou deixaria de cultivar e não mais o seria.
Tornar-se-ia medíocre. A cautela existe no sábio, que refreia com ela sua hybris; o medíocre
não tem hybris, substitui a cautela pela covardia. O sábio tem profundas crises de némesis,
cansaços extremos, por exemplo.

Disse Arthur Rimbaud que o poeta se torna vidente através de um longo e sistemático
desregramento de todos os sentidos. Isso é um ocidentalismo puro, pois apenas sabemos a
syntesis por meio do exacerbamento dos extremos.

O caminho do Tao é estranho ao europeu, cioso de seu emocional fleumático alhures e


impulsivo anures, o que o leva a inúmeras lutas corporais ao tempo de regras de educação e
etiqueta estritamente formais. O americano, seja de origem anglo saxônica, africana ou latina,
é impulsivo e fleumático, todavia em outras direções, o que nos particulariza como seres
diferentes. E qual é essa distinção?

O olhar do cientista vai mudar, já se está ampliando, toma novos contornos. Destarte, o
sentido que se dá à lógica deve ser outro, o caminho será o que já chamaram de terceira via,
mas que ninguém ainda sabe exatamente qual é. Talvez a chamada intuição nocional, intuição
conceitual, a segunda volta do parafuso, uma volta acima do que já se foi anteriormente
conhecido, experimentado, organizado. O racionalismo existirá, o método científico, porém
integrado. O europeu descobriu a dialética e a estuda racionalmente, a américa latina a vive. A
terceira via é para ser vivida, a fim de que adquiramos a sabedoria não por instinto, nem por
raciocínio, mas por intuição intelectual!

O medíocre desconhece as vias de conhecimento. Nunca será um sábio. O medíocre é uma


pedra no meio do caminho, as quais são em número excepcional. São os heróis que se tornam,
vez ou outra, sábios.

62
II

Diz o comum:

- Há um vazamento na rua do asilo

Responde seu interlocutor:

- Em que altura?

- Na rua do asilo!

- Sim, mas em que altura?

- Já falei, no asilo!

.......................................................................................................

Telefona o cidadão para a companhia de saneamento básico e informa:

- Tô com vazamento aqui.

- Onde é a rua?

- Num é na rua, é na entrada do relógio.

- Qual o número da casa?

- Ô, bem, qual o número daqui?

- ...

Ah, moço, eu num sei, mas chegando aqui é fácil saber.

63
III

Diz o medíocre: Fui a Paris. Comprei um quadro caríssimo. Está na sala do Epifânio, para quem
eu estava devendo um presente. É que quando ele foi a Maiâmi, trouxe um enorme tapete
persa de lá, tive que pôr na sala pra mostrar pra todo mundo, o preço fiquei sabendo etc etc
etc...

Diz o sábio: Estive em Paris. Pude visitar o Louvre... Puxa, emocionante, não sabia se
contemplava séculos ou se eles me contemplavam, mas sabia que era contemplado com
pátinas e pátinas de arte.

Diz o herói: Passei por Paris, saboreei o que havia de belo, entendi porque roubaram os
gregos. Quase furtei os parisienses, mas não havia como tirar daquela bela cidade nada, tudo
era alma! Penetrar a cultura é perpassar pelo perscrutável, ao tempo em que se impulsiona
para o âmago do impensável! Paris tem que ser aqui. Ego sum Paris!

..................................................................................................

64
Há intelectuais que são medíocres, outros sábios, outros heróis.

Os primeiros contentam-se em decorar mentalmente superfícies de sabedoria e mostra-las aos


incautos.

Os intelectuais sábios são os que usam sua intelectualidade para fazer de suas vidas o melhor
para alguma coisa, para alguém, para si e para todos.

Os últimos são como os sábios, porém desmedidamente.

..............................................................................................................................

65
O gênio pode ser um medíocre, se tiver a desmedida apenas em uma direção. Então o herói
poderá ser medíocre, caso sua desmedida se projete uma única vez e numa única meta.

O gênio pode ser sábio: esse é o verdadeiro gênio, pois porta super medidas humanas em
diversas direções, vagando por variadas tendências do conhecimento humano.

O gênio pode ser herói, quando sua desmedida ultrapassa a própria limitação.

O heroísmo pode atingir a loucura, caso não alcance a emoção.

66
IV

O heroísmo é para o inocente, o desconhecedor do perigo. Por isso é dado ao jovem ser herói,
não ao adulto. A maturidade vem, pois, com a queda do ímpeto revolucionário. Por quê? A
noção do perigo, da existência dele, da proximidade do desconhecido, faz com que a pessoa se
torne cautelosa e temerosa.

O herói pode ser inteligente ou não, pode até ser um burrinho. Pode ser um homem comum,
que como Gauguin, numa saída de trabalho, planejadamente pegou um navio para ilhas
paradisíacas e se tornou um pintor. Um medíocre pintor, de quadros medianos, em seu tempo.
Todavia, um artista que fez de sua obra uma eternidade, a partir do tempo seguinte. Por isso,
um gênio. Qual era seu quociente de inteligência?

67
68
V

Há o gênio potencial, que pode mas não realiza. Torna-se um medíocre, apesar de todo seu
talento. Tem a liberdade e não sabe o que fazer com ela.

Há o em espécie, que pode e realiza.

Há o heroico, que pode e realiza mais que seu limite suporta..

Há, contudo, o não-gênio medíocre, em constante estupor, sem hybris nem némesis. É o ser
humano comum. O herói é o super-homem do medíocre.

69
70
O
Último
Capítulo
D’O livro de
Theotinus,
Filho de
Esteves
E
Lucília

71
O livro de Theo foi publicado em edição especial, cem exemplares numerados e rubricados por
ele, e mais 5.000 em tiragem normal, tudo por uma editora famosa. Foi um fracasso editorial.
Theo entrou em depressão profunda e ficou uma semana sem conseguir sair de casa. Só uma
semana.

Depois de vários meses se tratando com um psiquiatra e uma psicóloga, conseguiu se


equilibrar. Teve amigos que acreditaram nele, mas a maioria dos conhecidos se afastou,
deixou-o esquecido como se portador de doença altamente contagiosa fosse. Sua esposa e
filhos deram apoio total, foi vivendo com alguns artigos que conseguia publicar em revistas de
literatura e afins.

Agora, Theo já está bom. Voltou a adquirir seu amor-próprio, começou um curso de sociologia
e política na Universidade, Tá que ninguém aguenta, como diz a Cléo.

72
O JANTAR

- As classes sociais já não estão tão nitidamente marcadas, Cléo. Confunde-se o mendigo com
o não-pedinte, alguém da classe minoritária torna-se Poder. Alguém da antiga classe média
perde o dinheiro que tinha, o emprego, a posição social...

- Sim, Theo, há uma crueldade nos contrastes entre os barracos palafitados na beira do rio
poluído da cidade enorme e os imensos cartazes que os encobrem. Cartazes que divulgam
riquezas que poucos podem ter, os prometidos paraísos artificiais à imitação de idealizações
futuristas.

- Os escritórios mudaram também, estão mais claros, têm som ambiente que já é considerado
ruído, mas ainda encobrem a pobreza de seus trabalhadores.

-A maior pobreza é a mental. O ser humano não conseguiu acompanhar a sociedade, Theo. A
sociedade está doente, modificou o mundo e agora não consegue viver nele. Ou você fica
doente junto ou fica são e leva a cura para a sociedade.

- Cléo. O nosso jantar será uma representação da vida. Veja, primeiro teremos um pouco de
água. Será para vicejar nossos paladares.

- Depois da água, vejo o pãozinho, os patês, a manteiguinha, alguns vegetais de sabor meio
amargo.

- Se nos ativermos demais à entrada, não teremos lugar no estômago para o prato principal.

- Acho que entendi, Theo. A juventude é a entrada, que nos serve para melhor saborearmos o
prato principal, que é a maturidade.

- A sobremesa seria a velhice, Cléo?

- Sim, e pode ser diversificada, a começar pelas frutas e terminar pelos doces.

- Por fim, um chá.

- Para poucos, Theo, apenas para os que souberem saborear toda a vida. Então sorverão o chá
com prazer inolvidável. Pois, no fim, terão direito ao merecido descanso, as lembranças do que
foi o jantar e as boas conversas, talvez um pequeno sono e um novo dia.

- Claro, boas conversas intermediadas pelo silêncio consagrador, nada inquisitivo. Mas isso não
resolve o problema social. Econômico. Político. Cultural.

- Fundamentalmente cultural. É o que eu digo. Começa-se por ensinar o povo, Theo.

- Um dia, disseram que podia-se fazer a revolução cantando.

- Quem falou isso foi sua mãe. Assim iniciou o movimento gabrielista.

- Ouvi dizer, Cléo. Mas quem sabe? A História nem sempre conta as coisas como foram, mas
como se queira vê-las.

- É, Theo. E o violão? Não vai sair o concerto?

- Não vai ter quem queira me ouvir.

- Outra vez essa conversa? Vou marcar uma data para você tocar no coreto.

73
- No coreto não, tem muito barulho.

- Tá, no teatro, então, no Teatro Municipal da Capital.

- ...

- Vou falar com a Lucília e o Esteves, eles arrumam a data pra gente.

- Mas eles não fazem mais parte do governo. Não tem mais ligações com o pessoal.

- Cê que pensa! Como é que você acha que seu pai consegue manter suas aulas na
Universidade até hoje?

- ...

- Vou ver isso. Cadê o celular?

- Usa o fixo, meu celular tá sem crédito.

...........................................................................................................

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75
Liber
Somnii

76
O SONHO PRIMEIRO

Voltei a trabalhar na Rádio Emissora.

Diferente, um estúdio insólito. Eu podia entrar no aquário, onde os programas eram locutados,
mas lá não havia microfone, era só entrar e falar, o som seria transmitido. Sem retorno.

À frente, não havia mesas de som. Dois técnicos, sim, mas o que fariam? Cadê os discos, alto-
falantes?

Todos numa boa, sem fazer especificamente nada, até que chegou o gerente. Ele era bem
magro, mais alto que eu, bem mais alto que qualquer um de nós, tinha camisa e calça brancas,
e se apresentou a mim como Theotinus. Eu falei: - Também me chamo Theotinus. – E nos
abraçamos. Então, reparei que ele tinha o bolso da camisa bordado com suas iniciais e que
naturalmente o segundo nome dele é que era Theotinus, não o primeiro, como o meu.

Disse-lhe que poderia trabalhar melhor se tivesse um computador, uma mesa...

Ele me ouviu falar e sorria, como se o que eu dissesse não fizesse diferença alguma.

Eu estava lá, todos trabalharíamos, ganharíamos dinheiro, estávamos felizes. E eu me sentia


inseguro, pensando, o que será que eles querem que eu faça? E no entanto parecia que
qualquer coisa que eu fizesse, ou mesmo se não fizesse nada, estaria tudo bem, ninguém
ralharia, ninguém diria que estava errado, era tudo bem.

Havia por lá também duas moças, estavam visitando a rádio, era tudo muito normal.

Não havia o que fazer, não precisava fazer nada, tudo já estava sendo feito, mas se quisesse
fazer algo, era só ir em frente, tudo bem, no problems, e assim foi.

77
O SONHO SEGUNDO

Haviam trilhos onde corriam carrinhos iguais àqueles de trem fantasma de parquinhos de
diversões. Eles nos levariam ao tempo que quiséssemos, passado, futuro, qualquer época.

Tive muita curiosidade e avidez!

Tive também muito medo, fosse nos trilhos, nos tempos onde aparecesse, sempre havia
preconceito, violência, falta de respeito. O futuro, num âmbito geral, era melhor que o
passado, pois se havia a violência não tinha hipocrisia. O respeito e a dedicação à proteção
dos menos favorecidos pelas diversas ocasiões eram maiores.

Podia ver acima das nuvens e podia descer ao local e viver naquele lugar e tempo se quisesse.

Amava, senti amor dentro de mim, senti que o amor era maior que o medo, tinha amor pelas
pessoas que viviam naqueles lugares e tempos onde iria.

Sentia também que o tempo passaria para mim, envelhecendo-me normalmente, mas isso não
me angustiava. Era como se pudesse viver diversas vezes numa só vida.

78
O SONHO TERCEIRO

Eram muitos meninos, muitos mesmo, centenas de monstrinhos que eu não sabia se eram
crianças ou diabinhos, terríveis que eram. Tentei me integrar, entretanto não era possível, eu
era grande demais para eles, que dominariam qualquer um que quisessem. Suas brincadeiras
eram cruéis, lacerantes, por qualquer risada seriam capazes de rasgar alguém.

Você poderia ver que muitos já estavam machucados, faltando pedaços, e continuavam
brincando, cruelmente brincando. Procurei me esconder onde pudesse, havia grandes salões
de enorme pé-direito, quiçá uns dez metros de altura, e quartinhos aqui e ali.

Procurava me esconder num desses quartinhos, sentir-me-ia protegido, mas mesmo assim
sabia que não estaria a salvo por muito tempo. Busquei saídas que não fossem a porta, pois
esta daria para o salão e eu tinha que achar uma saída daquele inferno. Tensão, muita tensão.
Sabia que acharia alguma saída, ouvia-os lá fora brincando cruelmente, queria sair.

Acordei. Estava deitado, minha esposa ao lado, o ventilador de teto ligado à toda, livros ao
lado, meus óculos sobre o criado-mudo, o relógio marcando horas da madrugada. Voltei a
dormir.

79
O SONHO QUARTO

Este foi o mais importante. Foi o último dos grandes sonhos revelados a mim, Theotinus,
durante minha viagem pelo país. Não foi um sonho. Realmente me encontrei com Andrômeda,
ela reclamou de ter sido relegada ao esquecimento, seu autor não se lembrava mais dela.

Decidi interceder, falar com o autor, com quem tenho boas relações por causa de minha mãe,
a qual é grande amiga de Gabriel, por pelo menos vinte anos.

Andrô estava desfocada, transparente, sumida do consciente.

Foi esse meu maior e grande sonho, e foi o que me fez decidir: intercedi, usei toda minha
retórica e oratória, consegui com que Andrômeda saísse das prateleiras pessoais do autor e
tornasse à vida.

80
Quanto ao concerto, saiu a data. Theo vai tocar no Municipal, solo de violão e de guitarra
elétrica. O programa não foi ainda impresso, mas deverá ser algo mais ou menos assim:

‘ Improvisação n° 1 para violão

‘ Improvisação n° 2 para violão adaptado

‘ Intervalo

‘ Improvisação n° 1 para guitarra elétrica e pedais

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Andrô
Autoria de Leopoldo Pontes

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.....................................................................
CABELOS soltos ao vento, parece caindo no mar. Não afunda, pois o mar lhe é pesado. Está com
frio, quer se aquecer, o mar está quente, quer mergulhar. Não há como. Olha para o céu e vê
os anjos e carros celestes. Não se pode dizer que seja uma anormal. Também não é pessoa
comum. Apenas diferente.

Seus braços são longos, está concorrendo novamente ao pomo de ouro. É uma filha de Vênus,
tem muitas chances de vencer. As pesquisas indicam probabilidade entre 30 e 40 por cento.

Chora, e como por desencanto ri, volta a olhar para o céu e acaba estropiando os tendões de
seu tio. Ele fica irado. Ela canta para que Aquiles fique. Ele não quer mais ser conhecido apenas
pelo seu calcanhar, ela sabe, diz que não esperava por tanto, mas vai-se o tio e fica
Andrômeda.

Quando lhe perguntam a idade, fala apenas que é limitada ao número de seus anos. Agora,
anda em direção ao ar, como cantasse nova vida. Nota algo em suas costas, tem asas. E como
são enormes, nunca as percebera! Por isso estava sempre no ar, suas asas são tão imensas que
não deixam Andrômeda ficar com os pés sobre o solo. Necessita por isso pousar sempre em
locais altos.

O mar lhe traz um espelho, limpo, pronto para uso. Ela o recolhe e se vê. A cor de sua pele
modifica-se de acordo com a hora: pela manhã é amarela, vermelha ao meio-dia, verde ao
entardecer e à noite azul. Nos dias chuvosos sua pele é negra, marrom nas chuvas de verão,
nos dias enevoentos branquíssima! Rósea quando o tempo vira.

................................................................................................................
Loi D’Hamppertinni, Andrômeda Anadyômeda.

(Versão para o português por Leschvii Kroaesmaenn,

do original alemão Andenken und Anbiss. Ed.do Autor: Berlin, 1754.)

Editora Hépenin: Penajóia (Portugal), 1864, pp. 3/4.

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ENCONTRO COM ANDRÔMEDA

Dizem que isso chama-se metanoia masculina. Então você pensa que vai morrer porque todas
as coisas que te passaram pela infância, juventude e maturidade começam a volutar sobre
você. Volteiam como ninfas, mostrando a cara linda e dizendo você já esteve aqui, não está
mais, quer voltar? Claro, não há volta, mas você sente vontade de mandar um abraço pra
velha, mandar ela se tratar, se guardar, mande um abraaaaço pra veeeeeeeelhaaa, diz que é
prela se tratar, tchurá!, tchurá!, tchurá!... Depois você volta prum apartamento, perdido na
cidade, achando que as coisas vão ser diferentes, a gente não consegue ficar indiferente
debaixo deste cé-é-éu. Você revê sua vida e assim lembrei-me de Andrômeda.

Estava ela a tocar sua lira quando ouviu ruídos estranhos. Sons diferentes, profanos demais.
Sons de passos, mas simples, pesados, indignos, sem arte. Aliás, passos binários, muito pobres.
A profanação era demais! Parou de tocar. Esperou que o ser bípede chegasse.

Doloroso aguardo, aumentava o horrível som pouco a pouco.

Andrômeda teve um acesso de implacidez e olhou para baixo: lá estava, ele, subindo uma
escada invisível e assobiando. Assobiando!!! E improvisando!!!

Visto de cima era um piolho. Totalmente desgrenhado.

Tremor! Ficou totalmente tomada pelo pânico! Apavorada!!! Um piolho desgrenhado,


assobiando e improvisando, subindo a escada invisível...

Voltou a seu lugar na montanha inacessível e ali ficou, tentando tocar sua lira. Mas as musas a
abandonaram, a imagem do piolho assobiando era demais!

Era então esperar. E ali ficou, parada, muda, dedos fixos nas cordas...

Surgiu o tipo:

- A senhora é Andrômeda?

- E você, então, aquele miserável piolho assobiante?

- Músico improvisador.

- Uma reles melodia.

- Improvisação sobre um tema. Inicia-se por uma apresentação inicial repetida algumas vezes,
passa-se às variações e por fim se improvisa.

Andrômeda desconversa. Mora em ares púrpuros, vive a cantar com sua voz sopranino. Pensa
um pouco e desfere:

- Você não sabe o que é música. Meu sentir se impele aos clássicos padrões. Eu, exempli
gratia, já faz mais de muitos anos venho praticando nesta lira. Minha vocalização, então, nem
se diga, está maviosa!!!

- Bom, eu trouxe meu violão. Não é nenhum Di Giorgio, mas dá pra tirar um som.

- Você só anda em ritmo binário, isso é desconcertante para mim. Muito pobre. Páupere. Veja
eu: ando em compassos ternários, quaternários, setenários, ando em compassos complexos...

85
e você nem imagina como consigo transformar meus gestos mais simples em dança etérea ou
satúrnica...

- Deixa então eu te mostrar um pouco de meu som.

Desatei toda minha criatividade. Urrei, grunhi, gritei, pulei, até cantei. Ao final do primeiro
número, fui às partituras que carregava a tiracolo e escolhi a ária na corda de sol, de Bach.
Claro, no meu arranjo pessoal, com momentos de inteira liberdade extropectiva!

Andrômeda gritou, gemeu, entrou no ritmo, pareceu estar adorando! E arrastou consigo mil
seres estranhos, um bando de gnomos, sereias, elfos, ... Jorravam da sua boca histórias de paz
e de terror, vertiam de seus lábios os maiores cantos da Terra. Sua figura era o centro de toda
a atenção. O melhor da festa foi quando Pã entrou com sua flauta e o ursinho Pum solou com
seu tambor orgânico. A maravilhosa e divinesca Andrômeda emitiu agudos tão altos que a
escada invisível quebrou. E eu rolei.

Pois é, rolei escada abaixo.

86
A BRONCA DE ANDRÔ

Voltava eu de meu labor diário quando senti que algo me impelia para cima, em direção
àquela montanha indevassável onde conheci Andrômeda e aquele punhado de gente
esquisita. Tomei pé da escada invisível e subi. Fui saltando para cima e os ares me levantando
cada vez mais além, e além, e além...

Então entrei numa camada de ar quente. Clareou o ambiente. Eis que me vejo diante
novamente da bela Andrômeda.

- Oi, Andrô!

- Eu cá entretida com meus penteados e meus dulcíssimos cantos, quando vieram me avisar
que você vinha vindo. Estou horrorizada! Como você teve a petulância de voltar... e ainda
desgrenhado?

- Não sei, algo me trouxe.

- Caro senhor, muitos perdões. Equivoquei-me. Por favor, comece a falar, estou muito ocupada
com meus afazeres imortais. Não, falarei eu, pois eu tenho o desejo de falar. Por isso você está
aqui.

Fiquei nervoso. Quem, afinal, pensa que é essa estapafúrdica donzela anciã? Achei melhor dar
um final em tudo.

- Sei que posso estar sendo um tanto quanto mal-educado, porém ouça-me, antes de falar: por
que eu, somente eu, sou chamado a falar contigo? Não tem mais ninguém que possa vir?

Triste minha sina. Pergunto e me arrependo. A diva põe-se a buscar os melhores gestos para
enxugar uma furtiva lágrima que cai de seu olho direito. Logo, outra lhe acompanha do
esquerdo, em breve ambos marejam e um chorinho suspirante vai se tornando compulsivo. E a
lirista começa a prantear copiosamente!

Ela não conhece ninguém, ninguém a conhece. Vive naquele local solitário, junto a miríades de
seres estranhos, desesperadamente em busca de um tempo inexistente.

- Queria conversar sério com o autor desta história, finaliza Andrômeda.

- Está a falar com o próprio.

- Eu sei. Com todo o destemor preconceitual, porém com acolhimento legal, doutrinário social
e moral, posso dizer que autor de historinha vagabunda só poderia mesmo ser um
desgrenhado como você.

Isso me tocou. Deixou-me profundamente amargurado. Tanto trabalho para criar um


personagem, tanto amor naquela que sai de nossos dedos, e ela se volta contra nós, criatura
contra criador. Quero impor sobre ela o respeito que deve a mim e a ameaço de transformá-la
numa mulher comum, bem comum e sem atrativos, sem talentos, burra, paupérrima,
enfadonha, posso até transformá-la numa estrelinha de novela. Ela que se espavente, ... lá
vem ela com sua poemática cantoril:

- Está muito bem!

Muito que bem, como diz Maria.

87
Pois, se quer saber, eu até gostaria,

Mesmo, pelo menos poderia

Conhecer mais gente,

Em lugar de ficar aqui tocando lira

E bancando uma bobona.

Eis que naquela tarde

De 1975

Apareceu você,

Com seus cabelos penteados pelo vento,

Acompanhado de uma autoridade professoral,

Que mal

Me olhava

E ao que você fazia,

Apenas me rabiscava

Aqui e ali.

- Como você se lembra?

- Ora, eu estava lá. Pareceu, então, ao meu parco entendimento, que tal era mesmo um
professor com poderes de retirar-me do seio da história para entregar-me ao cesto de lixo. Era
o professor Maluf, tão odiado por uns, tão elogiado por outros. Tão só a ingenuidade foi o que
fez com que eu cresse naquela pretendida autoridade, ficando atônita e deixando que me
rabiscasse, observando sem saber como proceder, acreditando que tivesse o professor algum
instrumento de força legal, deixando a mera aparência de Poder superar a verdade.

- Mas prometi que você estaria protegida.

- Deslavada mentira, você me esqueceu completamente durante esses anos todos!

- Ah, num foi assim também, não esqueci tanto.

- Sim, mas você não disse nada e parecia que o professor me levaria a lugar incerto e não
sabido, onde você não mais tivesse condições de visitar-me. Senti um tom de ameaça,
desprezo, e foi claro que seria rápido. Lembro-me bem, o primeiro contato que você teve com
a Lígia foi através dele e nem se lembrou de falar de mim para ela.

- Sim, a Lygia Fagundes Telles... Ela morava num apartamento em São Paulo. Tinha um gato.
Consegui falar com ela, vi na estante uns livros de Rimbaud e ela me falou do fogo existente
naqueles versos, aí eu queria perguntar sobre As Meninas, mas achei que ela estaria estafada
de falar sobre o seu livro. Acabei não perguntando. Queria perguntar mais, porém tinha muita
gente pra tirar fotografia com ela, e a minha foto alguém acabou levando embora.

- Você a reencontrou depois.

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- Na primavera de 1993, eu a entrevistei para a Rádio Emissora de Campos do Jordão e ela me
respondeu: não quero ser compreendida, quero ser amada!

- Certo. Ela te deu um livro autografado por ela e você comprou outro, que ela estava
lançando, e ela também autografou. Na palestra que ela fez naquele dia para a Academia
Jordanense de Letras ela disse: A cega esperança se alimenta da sua cegueira. Ela falou
também do grão do imprevisto, e que Deus está nesse imprevisto.

- Mas como você sabe de todos esses acontecimentos? Você não estava lá, eu não te vi.

- Claro que estava, você que não me viu. Nem falei com você, porque notei que havia
esquecido de mim.

- Minha cara Andrô, fiz um compromisso deixando você morar no meu antigo caderno. Nunca
te esqueci.

- Senhor autor, o tempo prometido para a concretização da ideia está no limiar. Há, portanto,
um periculum in mora caracterizado pelo fato de que, ao chegar a mão no teclado de seu
computador, não mais encontrar a ideia, tendo este respeitável autor que busca-la no
desespero. A busca desesperada não tem a mesma eficácia que a realizada no aconchego de
uma mente serena.

- Andrô. Saiba que...

- Ora, senhor autor, se o professor Maluf, do Colégio Campos Salles, em 1975, mostrou-se
fugaz comigo, jogou-me no esquecimento, eu tive medo.

- Andrô, Andrô, fiquei tanto tempo sem te ver que nem me lembrava mais de você.

- Enfim, a verdade. Por quê?

- Escrever, para mim, é culpa, escrever sobre você é realizar um ato com espírito de culpa.
Escrevo com sentimento de fazer algo que não deveria, algo inútil, atividade para a qual sou
inapto.

- Não é assim, Leo, você sabe que não é. Você sempre escreveu bem, por que evitar o dom?
Você tem o dom, use-o. Dependo disso, sem você eu não existo. Goste-me, Leo, por favor!
Estou explodindo dentro do papel, anseio por liberdade, quer voar e você me deixa amarrada
na sua memória arcaica, por 25 anos, misturada com uma multidão de personagens loucos
para sair, todos germinando, alguns já grandes, esperando para sair num jorro desses que você
vive tendo, o jorro tem que ir para o lugar certo, é como um ato de amor, eu sinto isso, nasci
de um ato de amor, cresço por atos de amor, você briga comigo, mas às vezes tem que me
engolir.

- Não sei se vou conseguir te escrever.

- Deixa de ser egoísta, dê a chance às outras pessoas para que também me conheçam. Tem
mais gente querendo sair, estamos numa agrura! E se você parar de escrever? E se você
morrer? Para onde vamos, nós que não houvermos nascido???

- Ora...

- Teríamos nascido do seu jorro, da sua vertente, não de outro autor? Autora? Tenho medo.
Estou com medo. Faz-me progredir, Leo.

89
- Dentro de mim uma voz troa: você tem outras coisas mais importantes para fazer... e eu não
escrevo. Preciso sufocar a voz e resistir.

- Leo, não adianta negar a dor, ela existe, você tem que conhecer a dor e saber conviver com
ela, a voz é a sua dor, você tem que suplantá-la, saber de onde ela vem. Dor é vida!

- É a mesma voz que diz que não conseguirei fazer o que quero, seja lá o que for. Então,
iniciada a escrita, ela para, porque essa voz diz: você não vai conseguir, não vai conseguir... Aí
eu digo sim e mando pau.

- Mas ainda assim você faz de conta que não é com você. Torna-se indiferente à dor, como se
ela não existisse. Só que ela está lá, te atormentando e quanto mais você fica indiferente a ela,
mais ela bate na sua porta. Eu fiz isso contigo. Bati na sua porta. Tô aqui, não tô? Por mais que
você me tentasse esquecer, por mais que fosse indiferente comigo, sabia que eu estava aqui,
do seu lado. Eu sei, é difícil admitir que essa personagem te perturba, é insinuante, insidioso,
intruso, pica feito agulha de injeção. Não te deixa quieto. Mas eu digo, estou cada dia mais
viva, mais forte, e você não me deixa sair para a vida. Deixe-me viver!

- Você fez isso...

- Invadi a sua casa, entrei nas conversas de sua família, fiquei amiga de seus cachorros, abri a
geladeira, fiquei na sala com vocês todos, interrompi o seu cotidiano, até que você
abandonasse a ideia de Lucília e Gabriel e me deixasse sair à tona. Estou aqui, eis-me toda viva,
sou uma personagem viva e pulsante! Deixe-me ter espaço, deixe-me sentar diante do
computador e escrever.

- É isso o que você quer? – estou com os dedos no teclado e ela nem se altera, está
definitivamente decidida.

- Você vai contar a história do jeito que eu quiser?

- Depende. Você está dizendo que será como?

Parece que a peguei de saia curta. Ela mesmo não sabe o que quer. Apenas decidiu que não vai
mais ficar de imortal. Quer ir à luta, brigar, ter filhos, marido, estudar, mas não sabe o que
quer ainda. Por fim, desfia:

- Eu escrevo num papel, depois dou o papel pra você e daí é só copiar e pronto. Que tal?

- Bem, eu...

- Não, não, é melhor fazer de outra maneira, veja só. Pensei melhor. Vou digitar no teclado e
você só observa, corrige o que estiver muito fora do ar e vai me dando diretrizes. Mas a
história é minha.

- Minha criatividade, vai pro brejo?

- Eu sou a estrela, a persona, as primícias da verve. A personagem principal. Sem minha


participação, inexiste a história.

Não posso dizer que ela não tenha razão. Poderia abandoná-la, mas teria que então reescrever
tudo. Andrômeda nasceu em 1975, no meio de algumas redações escolares, floresceu
naqueles dias e foi abandonada por todo este tempo. Há poucos meses, veio bater à porta de
minha biblioteca e se apresentou à minha família. Tive que convidá-la a entrar, se sentar, o
que foi minha experiência mais terrível, pois Andrô se intrometeu em nossas conversas, já foi

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na cozinha, abrindo a geladeira, campeou lugar na frente da televisão, fez amizade com a Baba
e a Bia, nossas cadelinhas, e não saiu mais de nossa casa. Virou agregada, até que finalmente a
tive que expor nestas humílimas páginas de meu computador.

- Vamos tentar. Deixa-me voltar, ainda não jantei. Presumo que irá jantar conosco hoje.

- Sim, obrigada. Soube que sua esposa fez hoje gelatina transparente. Ainda deve ter aquela
gelatina azul de ontem.

- Tem

- Foi o que achei.

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NA ESTAÇÃO

Estava Andrô numa estação de trem, de pé, esperando um acontecimento.

Apenas a estação de trem, no meio do nada, uma linha férrea passando em frente e o
nevoeiro cobrindo tudo.

Então a névoa se dissipa, forma-se uma cidade atrás da estação e uma belíssima paisagem
campestre forma-se à frente, com algumas vacas e um extenso gramado. Surgem montanhas
ao fundo, o céu azulece, como que pinceladas de aguada sobre uma tela; pássaros marrons
esvoaçam e Andrô decide sentar-se. Alguém aparece e senta-se a seu lado. Até então ela
estava só, agora uma companhia. E não sou eu, é um senhor da estrada.

Andrô não nota. Deixa-se pasmar pela beleza do lugar.

O vagabundo tem cheiro, algo entre o nauseabundo e o nojento.

Andrô percebe o odor, interferente naquele bucólico ambiente, mas espera que chegue logo o
trem. E pensa que é melhor não prestar atenção no companheiro ao lado, fede muito, melhor
fazer de conta que não existe. E busca com suas narinas o aroma da dama-da-noite ao cair da
tarde, nas árvores plantadas ali pertinho.

O vagabundo começa a cantarolar conto contigo, da Moto Perpétuo, uma banda dos anos
1970. Desafina, entope umas palavras, faz cara de quem está sensibilizado com a poesia da
canção que desentoa.

Andrô tem descendência semidélfica. Havia, é claro, de se perturbar com tamanha indecência
estética:

- Você não tem nada mais a fazer do que ficar aqui desafinando?

- Oh, madame, não tive a intenção, desculpe-me, por favor. Foi a inspiração que as Musas me
trouxeram junto com o fog de aparência londrina.

- Oh, madame, não tive a intenção, desculpe... ora, será que não há um lugar onde eu não
precise encontrar esses panacas faladores? Quem vem me mandar esse marmanjo imitando o
educado? Será que não tem ninguém melhor?

- A senhora omitiu o por favor, que eu também falei.

- Não sou madame, sou uma senhorita solteirinha da conta.

- Ora, ora, eis então o porquê de tua presença em minha história... És a frágil heroína que
salvarei de algum tonitroante acidente ferroviário.

- Eu sou a heroína da história, sim, mas a principal personagem e você é que veio adentrar
misteriosamente no meu cenário. Deixe-me escrever sozinha a história, a deixa tem que ser
minha, eu escrevo. E comigo não tem fog, é ruço, neblina, nevoeiro.

Nesse momento em que Andrô me bafeja um mortífero desafio, volto a entrar na página para
digitar eu mesmo a história. Porém é difícil, o segundo personagem está adquirindo a força da
primeira. Ele é tão forte quanto ela. Quase. Só lhe falta um nome. Ele vai falar:

- Senhorita, não nos apresentamos ainda. Meu nome é Androlino. Sua graça?

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- Andrômeda.

- Andrô? Somos quase xarás! Pois, senhorita, devo comunicar que você não é mais a
personagem principal, agora sou eu! A hora que quiser sair, pode fazê-lo, tem uma cidade lá
atrás e um belo campo à frente. O trem já passará e a poderá levar para algum outro grande
papel.

- Rá! E você acha que o farei? Ficarei aqui até o fim! Andrô por Andrô, fico eu, que sou a
escritora.

- O fim? O fim de quê, cara senhorita?

- Sempre esperamos pelo fim. O fim de um ato, o fim da história, o fim de um livro, o fim da
página, o fim do mundo, o fim da vida, o fim do fio, o fim do filme, o fim do mistério, o fim da
violência na tevê, o fim do governo, o fim da navalha...

- O fio da navalha, Andrô!

- O fim da música, o fim da peça, o fim do rio, o fim do mar, o fim da desgraça, o fim do final.

- Não creio que alcance tanto, senhorita Andrô, meu talento é tão grande que suplantarei
vossa querência.

Como está feliz nosso amigo, calmo e risonho. Tão confiante. E desata a cantar, agora mais
forte. E fortíssimo! Levanta-se para uma ária de Leoncavallo – Vesti La Giubba (I Pagliacci).
Nada lhe sobrepõe. É música inteiro! Ao final da tenórica intervenção, lágrimas correm
delicadamente sobre sua face. Andro se emociona, diz que ele canta como Enrico Caruso. Por
sua vez, levanta-se, e canta com a sensibilidade de uma Maria Callas, uma ária de Giuseppe
Verdi – D’amor sull’ali rosee (Il Trovatore).

Estão completos. Nada mais lhes falta.

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O trem chega. O condutor chama:

- Vai partir! Quem embarca?

Sobe no embalo da consequência e ligeireza o homem da estrada. Sem perceber, pegou o


trem sozinho. Foi-se, acenando pela janela para Andrô.

- Vou a caminho da aventura! Vagamundarei sem destino, porém um dia estarei cá. Eu
voltarei, eu voltarei...

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DOCE REENCONTRO

Como é pequeno o mundo!1 Ali estava Andrô, ainda na estação de trem, aliviada pela ausência
de nosso terno amiguinho, admirando a paisagem, andando a passo trinário, ouvindo os
passarinhos, quando lhe sobreveio uma voz familiar:

- Olá, cara senhorita! Por onde tem andado?

Era, claro, Androlino, o senhor da estrada, radiante e afável. Havia tomado banho e estava
com cheirinho de sabonete de calêndula.

- Eu é que pergunto, caro senhor. Afinal, quem pegou o trem foi você. Eu cá estou porque aqui
fiquei.

- Obviamente, por um momento equivoquei-me. Tu permanecestes cá, enquanto fui eu para


lá. Porém estou retornando por um fausto engano do autor. Tal foi que peguei o trem para o
Anonimato. E não é para lá que quero ir.

- E eis tu cá de volta!

- Estás feliz, percebo... Minha gentil senhorita, estou aqui por pura e simples vontade do
eminente autor.

- Não seja puxa-saco! Será que você não vê que está aqui porque eu escrevi que você aqui
estaria?

- Sim, a senhorita me quer na sua história, sabe que sou importante para o desenrolar da
trama.

- Não diga nada!

- Nada direi, apenas sussurro aos ouvidos do leitor atento algumas penículas de sabedoria.

- Apenas fique.

- Ficarei sim, como um servo humilde, um fâmulo disciplinado, ao dispor de sua mestra e
senhora.

- Senhorita.

- Parto, se quiser.

- Não vai partir não, vai ficar aqui comigo esperando o trem. Olha aqui pra minha cara, eu sou
a personagem principal.

- Cara senhorita, vou-me. Aí vem o trem.

1
O mundo é deveras pequeno... Conforme tradução da atriz Renata Zanetta, na edição crítica para a
editora angolana Sapiens. Ed.1997. Zanetta ainda explica, no prefácio para o público brasileiro de seu
livro O Enigma de Leila na Obra Videográfica Leopoldiana (Ed. Brasiliana, SP, 1986), que as expressões
utilizadas pelo autor no original são de complicada versão, vez que a literalidade se faz imprópria e a
musicalidade acaba também se perdendo à custa de um entendimento melhor dos sentidos
metalinguísticos. Tal questão interfere na tradução dessas obras para os públicos anglo-saxões e até
mesmo para os de língua neo-latina, mas pouco para os de falar semítico, conforme o parecer da
filóloga e jornalista Cláudia Colucci (The Leopoldian Scripts, Shaumm ed. London, 2000).

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- Vá, pois. Necessito de silêncio para trabalhar.

- Adeus, senhorita Andrô. Vai partir um homem que sempre te amou.

- Vá!

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ANDRÔ FICA NERVOSA

As horas passaram e Andrô continua sozinha. Dormiu na estação quando a noite chegou.

Amanheceu. Andrô lembra de uma frase que leu outro dia: O que é a vida, senão a morte? O
que é a morte, senão a vida? (Li Fu Shin, Tratado Filosófico, Ed.Matheus, Curitiba, PR; 1919.)

É cedinho, cedinho, faz frio. Andrô gosta de lugares quentes. Sai da estação seguindo a linha
do trem. Está ansiosa. Não conhece o caminho que está tomando. É primeira vez. Acostumada
com o veranico constante de seu antigo paraíso na montanha, movimenta-se bastante, a fim
de tentar se aquecer.

A jornada fica tediosa, nada alenta a Andrô. Sente falta de alguém para conversar. Conforme
cresce seu fastio, junto a fome e a saudade. A claridade vai aumentando.

- Devo estar me aproximando do sol. Colocarei óculos escuros.

É como se o desenhista houvesse parado de pintar a estrada de ferro. Ela acaba de supino.
Cadê? E Andrô segue pelo meio do mato, muita luz à sua volta e continua a descobrir coisas. O
calor já é grande, seus óculos escuros protegem sua vista da luminosidade excessiva. Afinal,
não é só de agrura que se vive na Terra. Aromas suaves, familiares, confortáveis, invadem sua
atenção. Andrô se deixa ir pelo caminho dos perfumes e chega a um lugarejo de sublimes
condições. Ouve uma leve alternação de sons. Começa a se excitar.

Anda mais rápido, no velho e decantado ritmo binário, e de tanto marchar, quase correndo,
depara com uma das cabanas, um casebrinho sutilmente diferente dos outros. É que, da porta
aberta ao lado, vê-se que alguém lá dentro afina um instrumento de cordas.

Andrô está perplexa, fica no aguardo. Senta-se no chão, próxima à porta, e ouve. O violeiro sai
tocando uma toada, nem sequer nota a presença de Andrô. Das cordas duplas faz um
ponteado, senta-se no alpendre e começa a fazer variações e improvisos sobre o ponteado.

Andrô ouve, ouve... o som se desdobra em circunferências e mais circunferências, envolvendo-


a sem que ela mesmo note, ela quer olhar o violeiro, mas o chapéu que ele usa tem abas
grandes, está abaixado para a frente, ela tenta reconhecer...

Pulsa, coração, pulsa,

Num eterno feedback emocional.

...mas dorme.

97
A DAMA E O VAGAMUNDO

De volta à estação de trem. Ela acorda, se vê deitada no banco. De pé, admirando-a, está
nosso velho e bom amigo, o senhor da estrada. Surpreende-se:

- Olá, amigo, como vai?

- Muito bem, e a senhorita?

- Otimamente, obrigada. Onde está a violinha?

- Um vagamundo como eu sabe a diferença.

- Vamos sair daqui?

- Fugir, como os amantes de Verona?

- Quero nos levar pra outro planeta.

- Para um vagamundo como eu, tudo é possível e fácil. Tem gente daqui da Terra que já esteve
lá.

- Onde, homem?

- Lá.

- Ipso facto, como diria Gabriel. Mas iremos juntos, não é?

- Feche os olhos.

Olhos fechados. Ao abrir, Andrô está em outro lugar, belo, estranho. E cadê o senhor da
estrada, o vagamundos violeiro, onde se encontra? Faz um inútil esforço de reconhecimento,
ninguém por perto, Androlino enganou-a.

O autor aparece para avisar que seja mais cautelosa com seus dedos na digitação.

Pausa para os anunciantes.

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98
Volta Androlino à cena. Diante de Andrômeda, sem palavras. Ambos sem proferir o que quer
que seja. Suspiram e suspiram. Ela, emocionada com a presença do tenor; ele, sem poder
cantar, garganta e barriga doloridas.

99
Andrô tem medo da vida. Não quer também prescindir da vida e tem uma vontade imensa de
viver! Invadida pelo amargo, tem o doce dentro de si e sempre tenta impulsionar o melado
para erradicar o fel. Pulsa dentro de Andrô o querer, mas lastreia à sua volta a desvontade.
Luta de dois dentro de um. Ela quer sair, saltar, se jogar no ar e correr. Mas uma força
contrária a impulsiona para seu próprio interior. E fica parada, tentando reunir as
musculosidades para contrariar o desânimo.

Ela teme o que está por vir, não consegue entender seu meio e está com uma grande, imensa
dor, a dor de querer, porque, quando se muito quer, esse querer chega a doer e dói porque é
vontade de fazer. Participar. E não sentir o viver sair pelos poros, fica tudo dentro de seus
sentidos particulares. A explosão acontece, vez por outra, o descontrole, o exasperar e o
consequente estado de exaustão.

Andrô sabe disso, sabe de si. Ela conhece seus limites, mas não sabe o que fazer com esse
conhecimento. É como se tivesse encontrado o tesouro escondido numa caverna e agora não
soubesse reconhecer o caminho para a saída.

Onde está a saída? Ela pensa, tem perguntas. Não são dúvidas, são indagações de quem quer
saber mais. O tesouro está à sua frente, ela o vê, mas não o compreende. Ela quer requerer a
suspensão do processo até a efetivação completa do acordo, mas não pode, a vida não
permite suspensão, enquanto isso o tempo passa. Você pode entretanto interromper,
começar da estaca zero, mas sabendo que o caminho à frente será menor, com a graça da
experiência anterior.

100
fim

101
Sumário

Intro

Pequenos Movimentos

A coceira

Do caderno de pensamentos de Teotino

Delires

Voar

O Prefeito

O LIVRO DE THEOTINUS, FILHO DE ESTEVES E LUCÍLIA

O cartão de Natal

Viajar

Theo e Cleo

Aula particular com a professora Cleo

A chapação

LIBER MEDIOCRE

Há de ser herói

O caminho do Tao é estranho ao europeu

O olhar do cientista vai mudar

Diz o medíocre

Diz o sábio

Diz o herói

É dado ao jovem ser herói

O herói é o super-homem do medíocre

O jantar

O LIVRO DOS SONHOS DE THEOTINUS

O sonho primeiro

O sonho segundo

O sonho terceiro

102
O sonho quarto

ANDRÔ

Andrômeda Anadyômeda

Encontro com Andrômeda

A bronca de Andrô

Na estação

Doce reencontro

Andrô fica nervosa

A dama e o vagamundo

Fim

Ficha catalográfica pelo autor

Palavras que plainam

Nota sobre o autor

103
Ficha catalográfica pelo autor

(Cia Brasileira do Livro)

PONTES, LEOPOLDO

Asas para Teotino

1. Literatura Brasileira – Ficção – Contemporâneos


2. Literatura Brasileira – Poesia
3. Música
4. Filologia
5. Direito – Introdução ao Estudo do Direito
6. Direito – Filosofia do Direito
7. Direito – Direito Constitucional
8. Sociologia
9. Filosofia Contemporânea
10. Psicologia
11. Comunicação Social – Teoria da Comunicação
12. Comunicação Social – Jornalismo
13. História do Brasil
CDD 869.93
869.91
780
640
400
340.1
342
300
190
150

104
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A GRANDE COISA DESTE LIVRO É QUE ELE NÃO É COMO GABRIEL.
SE GABY FORMAVA UMA ESPIRAL SINFÔNICA,
ESTE É MAIS SONAMBÚLICO.
GABRIEL REPETE-SE QUEBRANDO O CÍRCULO CONSTANTEMENTE,
SEM DEIXAR-SE REPETIR.
TEOTINO REVELA POR FIM AS POSSIBILIDADES QUE UM SER HUMANO TEM
PARA CRESCER, SER SUPER-HUMANO, SER UM
DEUS.
TEOTINO É A CONTINUAÇÃO DE GABRIEL,
NÃO SE PODE ENTENDER O SEGUNDO SEM A LEITURA PRIMEIRA DO ANTERIOR.
O TERCEIRO NATURALMENTE SERÁ A CONTINUAÇÃO DE TEOTINO E DE GABRIEL,
PORQUE A INCOMPLETUDE ESCANCARADA DO SEGUNDO NÃO APARECE TÃO CLARA
COM TEOTINO.
O PENTAMERÃO SEGUE O PROCESSO DOS JOGOS DE ARMAR,
PORÉM NÃO PERMITEM VARIAÇÕES DE LEITURA,
DOU SEMPRE AS LINHAS POR ONDE DEVEM SER TRILHADAS AS LEITURAS.
FIZ ISSO COM GABRIEL E FAÇO CÁ NOVAMENTE.
A PRIMEIRA LEITURA SEMPRE SERÁ A METADE DO CÍRCULO,
QUE SÓ SE COMPLETARÁ COM A SEGUNDA DO MESMO LIVRO.
AS PRÓXIMAS INICIARÃO A ESPIRAL.
ISSO É O QUE CHAMO DE UM ROMANCEIRO DIALÉTICO.
E NÃO FICA SÓ NISSO.
HÁ A NECESSIDADE DE SE TRAGAR OS SENTIDOS QUE VIAJAM PELAS PÁGINAS,
COMO SE FOSSEM UNIVERSOS,
ENTENDER QUE A DENSIDADE É PRECIOSA
PARA PODER DEPOIS SE ESVAIR EM PÁGINAS DE LÍMPIDA LEVEZA.
FLUTUE COMIGO.

[O autor]

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NOTAS SOBRE O AUTOR

Leopoldo Pontes nasceu no outono de 1958 na cidade de São Paulo. Hoje mora em
Caraguatatuba, Litoral Norte Paulista. Gosta de todas as artes de todos os tempos. Sua
preferência é a contemporânea, seja na música, nas artes plásticas, na literatura, no teatro
etc... Escreve como forma de expressão principal. Nunca foi participante de grupos, sempre
atuou solitariamente. Editou livros por conta própria em mimeógrafo e off-set. Tem vários
registrados e inéditos: literatura, dramaturgia, poemas, ensaios etc... Trabalhou como
jornalista escrevendo, reportando e fazendo programas de rádio. Também advogou durante
alguns anos. Recebeu o VII Prêmio Arthur Bispo do Rosário, outorgado pelo Conselho Regional
de Psicologia/SP e publicado em coletânea em 2015, com o conto “A Casa de Gelatina”. Foi
também premiado no Prêmio Inclusão Social, promovido pelo Conselho Federal de
Psicologia/LAPS/Fiocruz com o conto “Por que mulheres cozinham o que não podem comer?”,
também publicado em coletânea.

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