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1
POEMAS
PARA
SEREM LIDOS
EM VOZ ALTA

Antologia

Leopoldo Pontes

2
3
A gafe
O vexame
A vergonha
Nascem das regras de etiqueta
Que nos libertam das decisões.

O que não tem importância?

Quero cometer a gafe!


Quero dar vexame!
Não existe a gafe
Nem o vexame.
Só a vergonha de saber que existe
Uma etiqueta.

Ela nasceu para a convivência


E sobrevive a pressionar
E separar
Cada um de nós de nós..
Caraguatatuba, inverno de 2001. © 2001.

4
A Ioga do Vento

5
Caraguatatuba, inverno de 2001.

6
Algumas das manhãs no quintal
de nossa casa
Todas as manhãs em nosso quintal

Pequenos pássaros saúdam o unicórnio

Todos os dias, pela manhã,

O estranho potrão branco de manchas pretas

Conversa com as avezinhas de várias cores

Pássaros azuis cantam felizes

Buscando consolar a tristeza do unicórnio

Que pisa sobre as flores e come as folhas verdes

Quando se vão, um cheiro de madressilvas fica no ar.

Os azuis revoam em bandos

E os mais humildes comem dos flocos de pão esparramados pelo

chão

Os cães permanecem calmos

O unicórnio desaparece

E volta na manhã seguinte.

____________________________________________Caraguatatuba, sexta-feira, 13 de julho de 2001.____

7
Ana e Cátia
Ana e Cátia eram duas amigas,
Tão amigas, que se chamavam por “meu bem”.
Mas apenas isso: amigas.
Davam-se as mãos ao passear,
Comentando entre si os sentimentos mútuos e pessoais.

Ana e Cátia eram muito amigas,


E se apelidaram Ânion e Cátion,
Ana era pra cima,
Cátia sempre deprimida.
Mas Ana alegrava Cátia e
Cátia deixava Ana feliz.

Ânion e Cátion eram casadas, cada qual com seu marido.


Ânion e Cátion saíam juntas, seus maridos separados.
Ana e Cátia eram felizes.
Seus maridos, não sei, porque esta é a história de Ana e Cátia.

Saía Ana pra comprar vestido


E chamava Cátia pra ajudar a escolher.
Cátia dizia que não queria gastar,
Mas Ana a convencia que o dia iria chegar.
Que dia?, perguntava Cátia.
E Ana respondia: o dia em que você me amar.

Cátia comprava o vestido


E Ana voltava sem.
Ana e Cátia se amavam,
Eram duas amigas de muito querer.

Tanta amizade fez um dia uma terceira perguntar:


- Muito bem, quem é o Bátimam e quem é o Róbim?

Ana e Cátia continuaram amigas.


Entre si.
A terceira até hoje se pergunta:
- Por que não sou feliz?

8
CRISIS
Apud Pierre Louis
Duplo
Dúbio
Crisis tem ciúmes de Crisis
Quem é Crisis? Eu ou ela?
Crisis vive o dia a luz o sim
Crisis é a negação de Crisis, é a sombra o não
Crisis é violência é paixão
Ela mata sua duplicidade mas a sua dor não morre jamais
Duplo
Dúbio
Crisis não sabe o que é o vulto que mal percebe nem o
sofrimento
Crisis é a tempestade na dupla vida de quem quer e não
sabe o que quer
Crisis quer querer
Crisis quer saber
Crisis é dúbio
Crisis duplo nas sombras e na imensidão eterna
Ninguém conhece Crisis
Nem ela
Corre, Crisis, vai atrás das tuas visões e dos teus
sonhos
Descobre a dualidade que destruiu Crisis
Remonta
Renasce
Dia após dia
Com suas asas quase iguais
Crisis tem ciúmes de Crisis
Crisis não sabe quem é Crisis
Uma sabe que a outra existe
Nada faz para confortá-la
Outra não sabe que a segunda existe
E a mata continuamente como se fosse a maior de suas
inimigas
9
Crisis chora
Ela não me quer
Crisis não quer morrer
Mas Crisis quer matar Crisis
A tempestade faz Crisis correr sem olhar por onde avança
E Crisis bate de frente com Crisis
E Crisis choram
Choram as Crisis
O vulto o escuro a dor o sofrimento a clareza
Parceiras no destino e na Providência estendem suas
nobrezas
Homem e super homem

Caraguatatuba, outono de 2001.

10
Obsessão
A intuição feminina informa
Que as imagens insistem em voltar sempre
As mesmas imagens sempre

O racional masculino insiste


Que a cura é se livrar do sonho

A intuição feminina quer o sonho

O racional masculino quer se livrar do pesadelo

A intuição feminina quer fazer do pesadelo sonho


realidade

Obcecado
Estou obcecado pelo sonho
Não sei pesadelo ou realidade
Sonho
Obcecado

Obsessivo compulsivo
Mata a tua dor
Descobre teu sonho na tua dor
Levanta tua dor das cinzas
Da tua dor vai nascer a tua realidade
Que um dia foi sonho

Caraguatatuba, outono de 2001.

11
O BOM HUMOR DE DEUS
Quando você gosta, gosta mesmo!
Faz do inimigo indiferença apática e desandada!

Quando você gosta, gosta mesmo!


Desprega os pés e salta sobre todos os riscos e desvios!

Quando você gosta, gosta mesmo!


Pra que curar?, se a tua insatisfação é a tua
inteligência!
A tua escolha arromba o inexorável
E faz virar túmulo o que era pra ser praticidade.

Você gosta, gosta mesmo, de tudo o que é verdadeiro!


Você ri, você abala as bases
E ninguém sabe o que você diz

O gostar é o amor é o riso o sorriso no canto dos olhos


O querer é o saber que o amigo se encontra no sempre
No sangue no ócio no livre andar e conversar

O amor é ter o bom humor da Providência


E rir de si mesmo
Fazer do mundo uma grande eloqüência
Que pode ser drama ou piada

O amor é estar com o coração macio e dócil


Fazer do pouco o que ainda resta o melhor
E tocar
Caraguatatuba, outono de 2001.

12
Fila
Por que na fila todos parecem tão sérios ocupados prontos
para atacar o inimigo?
Por que na fila todos parecem tão panacas omissos
desacordados inúteis?
Por que na fila todos parecem tão despojados de suas
próprias personalidades?
Por que na fila todos parecem tão desesperados loucos
abocanhados pelo tempo?

Todos na fila parecem ser o que não são


Todos na fila parecem saber alguma coisa que eu não sei
Todos na fila parecem ter alguma coisa que eu preciso
Todos na fila parecem estar pensando em alguma coisa
importante

Ninguém é tão importante para ser objeto do desejo de


alguém
Ninguém é tão objeto do desejo que possa ser de alguém
Ninguém é tão esperto que saiba porque está na fila
Ninguém é tão esperto que saiba onde está a fila

Cada um pode ser objeto do desejo de si mesmo para alguém


Cada um pode ser alguém tão esperto
Cada um pode ser alguém que saiba porque entrou na fila
E pode sair da fila quando quiser

Caraguatatuba, outono de 2001.

13
Os fragmentos de cores voavam
pelo quarto
E o artista os contemplava indiferentemente.
O que os movia? Quem os fizera?
Os fragmentos de cores aguardavam uma ordem:
Aleatórios, iam e vinham, rolavam assimetricamente.

Pés quebrados juntaram-se aos sonetos perfeitos métricas


rimas consonâncias
E os desafinados ousaram grafitar e pincelar
Desafiando a falta de um muro uma tela um papel.

Pedaços de vocábulos voavam pelo quarto do artista


E polifonias de vento se batiam com os meios-tempos e
compassos réguas cordas
Tabelas inacabadas
Escalas exóticas
Acordes imperfeitos

O artista no quarto que não é seu.


São dele as cores palavras sons que volutam e o seduzem
Envolvendo o artista e o fascinando

Eis quer o artista um alívio e clama pela musa


Dá-me voz!
E ela aparece feito um vento que não se vê, e responde
Fala, meu artista, explode a tua arte! Se quer
inspiração, diz e ela aí está.

O artista enlouquece de tanta pressão


Sai do quarto
Esse quarto não é meu! Some, desaparece, musa!

14
A musa responde
Organiza os teus delírios e o poema aparecerá
Com todas suas tintas cores sons melodias acordes
escalas palavras sincopadas

E o artista dançou uma pintura poética.


Depois, descansou.
E a musa disse
Eu volto, não precisa pedir.
Caraguatatuba, outono de 2001.

15
Minha cara amiga
Existe um grupinho de pessoas na minha cidade
Registrado como literatos
Homens e mulheres sensíveis e interessados
em transcender a cotidiana mediocridade

Existe uma ligação com o poder sim


Como sói ocorrer em quase todos os lugares
Mais do que gostaríamos mais do que necessário
Porque somos filhos de amorosa mãe

Não são débeis tecnocratas


Que compõem a literália
São gentes independentes
Que se elevam na municipalidade

Eu quero ser essa gente literata e levar o que eu tiver


de mais precioso
Dividir com o conselho de poetas e poetisas a minha
vontade de transcender
Compartilhar o desejo de formalizar o informal e desancar
o estiloso
Observar a beleza das formalidades sinceras e incitar à
aceitação
O aceite de cada qual por si mesmo e por todos

Quero a independência desse grupo de literatas e poetisas,


livrescos e poetas
Múltiplos pendores de todas as cores e sabores
Quero um conselho que possa ser um ideal
Quero uma academia de literatura na minha cidade
Quero que possamos um dia ser independentes e ajudar a
nossa mãe
Mãe que hoje, quero crer, nos abriga como filhos
E que aguarda ciumenta pelo nosso crescimento.
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Que seja a literatura música poesia jornalismo
O dia já não depende da doença e a noite já não tem
necessidade de remédios
Somos um grupo ordeiro em nossas bagunças
Relaxo dou risada me emociono com as récitas declamações
dramatizações citações
Autores que se explicam no que escreveram e disseram
Queria ter a oportunidade de ouvir Monteiro Lobato
Explicando Cidades Mortas e Urupês

Eu queria declamar mas não sei mais que gritar os meus


dissabores e conquistas
Meu jeito é Patti Smith em Mil Novecentos e Setenta e Sete
do arroubo
E “daquela coisa” que nos ensinou uma professora de teatro
Acompanhado por um baixo bateria guitarras roucas secas
duras
Grunhidos e uivos psicodélicos punk intelectualizado
Uma voz que ao fundo ore descompostamente e com ardor um
salmo de David
Multiplicando todos os sons enquanto eu desfio meus versos
Cantando porque a noite e com todos os fios brancos que
eu tenho direito

Minha cara amiga, ame os teus fios brancos, são parte da


nossa beleza.
Amo cada fio de minha barba negra ruiva branca e rala.
Se meu verso é primal, é porque meu grito é primacial.
A proto-história de nossas vidas é um encontro que poderá
ser retomado um dia.

Eu te convido, cara amiga,


Venha participar de nossa proto-academia!
Supera a fase do vamos dançar e da musiquinha robotizada
E venha aprender a cantar melhor do que nunca o fez em
sua vida!
Esquece o sambinha, vem cantar o nosso sambinha.

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Esquece o rigor, vem aprender o nosso rigor.
Conheça os graves e agudos da tua sensibilidade.

Eu sei que você nunca tem férias


E dificilmente virá conhecer nossa cidade e nosso
grupinho.
Mas eu tenho um amigo que está na Europa
E também vai terminar as férias sem conhecer nossa cidade
Mas um dia, minha amiga, poderemos juntar nossas famílias
Comer nesta cidade de praia um pastéis uma pizza uma
saladinha um sonrisal
Sei lá.

Um abraço
Do seu amigo leo
De quem você disse gostar
Do sorriso no canto da boca
Mesmo quando fala coisas sérias.

Caraguatatuba, outono de 2001.

18
Identidade
Inexorável inexiste.
Escolho meu caminho.
O que quero? O que sou?
O que escolher, se não sei quem sou?
Crise!
Nada é total, nada é para sempre, nada é lá, tudo é aqui
e agora
Tudo ao mesmo tempo aqui e agora.
Crise!
Inexorável crise
Entre muitas e muitas crises pelas quais já passei.
Estou extinto
Viverei como um túmulo apodrecido
E partirei como fênix rediviva
Chamuscado
Criticado e crítico.
Minha crosta é rústica
Roída e repelente.
Minha música é sublime.
Ouve minha música
E conheça as minhas asas
Estou vivo, baby.
Sobrevivi.
Caraguatatuba, outono de 2001.

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AS HORAS SELVAGENS
Quem não conhece o inesquecível?
Irresistível, o que não se arranca da cabeça!
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você.
São as horas selvagens.
A fúria e as sombras
Dão a primeira enxadada
E um ninho de cobras
Surge, de repente, sobre a terra!
Elas vêm das trevas
Trazem a morte e a doença.
É hora de morrer e olhar
E de ficar morrendo aos poucos.
Eu sinto dor e sofrimento,
Eu sinto, mas não vejo!
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você.
São as horas selvagens.
Posso sentir o que você está pensando.
Posso sentir o que você está querendo.
Posso sentir o que você está sentindo.
São as minhas horas selvagens!
Eu sinto, mas não vejo.
Sinto, mas não ouço.
Sentir é dentro do corpo inteiro,
De dentro para fora.
De dentro para fora.
Você não fica dominado, ninguém te doma!
Você não fica domado, ninguém te domina!
Mas é como se ficasse coberto
De dentro pra fora!

20
De dentro pra fora.
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você.
São as horas selvagens.
Posso sentir o que você está pensando.
Posso sentir o que você está querendo.
Posso sentir o que você está sentindo.
São as minhas horas selvagens!

A violência arrebenta
E eu estou ficando desesperado!

E eu falo Ossia Ossia Ossiam!


E as cobras insurgidas das trevas,
Os corvos insuflados pelas sombras
E os abutres emergidos da morte
Se transformam em pombas,
Negras pombas da paz.
Caraguatatuba, inverno de 2001.

21
Bambolê
Era uma doce e linda menininha,
Sozinha e cheia de priminhas.
Ela era gordinha, chatinha e bobinha.
As priminhas, magrinhas e espertinhas.

O pai da menininha era doutor;


O das priminhas, operário.
A nininha solitária e doentinha,
Enquanto brincavam de roda-pião.

Um dia a menininha ganhou um bambolê,


Mas caiu de sarampo.
O pai mandou a menina ir pra cama
E ela olhava o bambolê jogado na grama.

Chegaram as priminhas, todas magrinhas,


Brincando com o bambolê. Ê, coisa gostosa!
E aí bamboleando e gritando:
- Ela não passa no bambolê! Xô, saramposa!

Menininha gordinha e solitária,


Filha de médico e de atriz aposentada.
Menininha doente, mas gritava:
- Deixa meu bambolê, suas danada.
Mãe cuidosa, tia rica, falava pra filha:
- Deixa elas, coitadas, são pobres,
Deixa brincarem com seu bambolê.
Um dia você sara e pode voltar a comer.

Mas, quê! A menininha solitária e rica,


Mal veio a noite e se foram as primas,
Foi-se a gritaria e caiu a pititica
Na febre, remediada com xarope e enzimas.

Dia seguinte, melhorzinha,


Olha pela janela, a menininha:
Bambolê na grama, convidando:
- Que você está tramando?
Corre, corre, menininha,
22
Vai buscar o seu brinquedo.
Sai do quarto, sai da linha,
Bamboleia e não tem medo.
Bambolê, bambolê,
agora eu brinco com você!
Vou pro quarto, mas te levo,
Tu é meu e se dane o resto.
Menininha levadinha,
Foi pro quarto e não deitou;
Subiu na cama rapidinha,
Bamboleou, bamboleou.

De repente sua mãezinha


Acudiu: - O sarampo, a saúde,
não saracoteia, deita já,
seu bambolê eu vou guardar!
Meninha piquitinha,
Deitou e dormiu.
Feliz.

Sarou.
Cresceu.
Casou.
Teve um casal de filhos.

Suas priminhas magrinhas


Também cresceram, casaram-se e tiveram filhos.
Não são mais tão magrinhas.
Já não passam pelo teste do bambolê...

Mas aquela menininha agora passa,


E neste Natal
Vai mandar de presente a cada priminha,
Embrulhadinho em papel-jornal,
Um bambolê para as filhinhas.

23
Bett e Fred

24
Já faz alguns anos que moramos juntos. Fred nunca lembra as datas, tenho
sempre que ficar dizendo. Fred não sabe data de aniversário de ninguém, nem a data
de aniversário de quando nos vimos pela primeira vez, nem de quando a gente se
viu e se comprometeu. Fred nunca sabe quando foi a coisa que aconteceu, nunca
lembra que o contado foi ocorrido, a não ser quando é pra me corrigir. Aí, ele diz
assim:
- Não, Bete, não foi assim que aconteceu etc etc etcetera...
Ele me chama de Bete porque meu nome é Diana Elisabett, com dois tês no
final, mesmo, sei lá porque. Fui registrada assim. Eu sou negra, magra e alta, já fui
modelo por um bom tempo, dava uma grana assim pro dia-a-dia, mas era muita
sofrido, ficava fazendo sessões de fotografia e desfiles, tinha que aguentar as
provocações e assédios dos superiores e até mesmo das próprias colegas. Foi um
tempo legal, mas não me interessa mais, agora eu sou uma senhora, tenho um filho
de 18 anos e uma filha de 14.
Fred me conheceu quando eu trabalhava numa butique, enquanto ele fazia
arquitetura e trabalhava num escritório de um político escroque. Hoje, Fred e eu
dividimos o mesmo computador. Quando eu entro no bate-papo, nunca digo se sou
homem ou mulher, e me denomino Fred, mesmo. Na verdade, o Frederico, o meu
Fred, sempre foi estranho na sexualidade, e com isso ele me deixa louca de prazer!!!
Somos da mesma altura, então sempre que ponho salto alto fico mais alta que ele.
Acaba fazendo parte da nossa curtição. É como se ele me conhecesse por igual, e
então desempenhasse o papel masculino. Eu já conheci muitos homens antes dele,
mas nenhum como Fred, o gênero. Por isso, e com a anuência dele, uso o nome dele
como sendo o meu nos bate-papos da internete. Se bem que já ando cheia desses
bate-papos, nunca saem da mesma mediocridade. Vou ser como Frederico, que usa
o computador pra coisas mais interessantes. Aliás, ele é bastante inteligente, o que
me deixa com água na boca e me faz ser uma verdadeira gueixa para ele. Bom, nem
sempre, afinal somos ambos feministas. Mas é que, isso foi ele que se tocou e nos
deu a entender, sempre que a gente chega num ponto de cumplicidade e convívio
constante de muito tempo, mesmo que nossos princípios sociais rompam barreiras,
nada impede que, dentro de nosso relacionamento pessoal, façamos ajustes aqui e
ali, tudo na busca de um viver melhor, mais gostoso, mais sei lá.
Lembro que eu fazia artes plásticas, mas a biblioteca era a mesma do pessoal
da arquitetura, e nós nos conhecemos lá. Ele falou o nome dele para a bibliotecária
e eu dei risada. Achei o nome dele muito gozado. Ele se sentiu ofendido e me falou:
- Achou engraçado meu nome? Qual o seu?
- Não, eu ri de outra coisa, não foi de você. Meu nome é Diana.
- Diana, a caçadora, a lésbica. Ela não tinha homens, seu papo era outro.
- Peraí, você está tirando uma comigo?
- Você que começou. E nem estou tirando nada, tudo o que eu te disse é
informação, tá nesses mesmos livros que você na sua frente. Você já notou
que existem livros na biblioteca, né? Ou você só vem aqui pra ler o
horóscopo do jornal?
- Eu não ri de você e você está sendo estúpido!
- Desculpa.

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- Diz culpa.
- Como?
- Diz... culpa...
- Culpa.
- É isso aí. Meu nome é Diana, qual é mesmo o seu?
- Frederico. Pode me chamar de Fred.
- Meu avô se chamava Frederique. Também era chamado de Fred.
- Meu pai é Frederico, que nem eu, e meu avô também.
- O que você está levando?
- Um livro sobre a arquitetura greco-romana e outro de Nietzsche, “Assim
falou Zaratustra”. E você?
- Só vim ler o horóscopo do dia...
- Entendo...
- Vou levar um catálogo do Louvre, se eles deixarem. Se não, copio de
minha colega. É que preciso apresentar um trabalho oral sobre esse
museu, sabe, aspectos históricos e metodológicos. Posso juntar o que
pegar de minha colega com aquilo que já sei por conta própria.
- Se quiser ajuda, tenho alguns catálogos do Louvre na minha biblioteca
particular. Não empresto os livros, mas posso trazer aqui amanhã para
você ver, anotar o que precisar, me devolver, e aí trago de novo no dia do
teu seminário.
- Tá. Obrigada. Não precisa, eu me viro.
- Cê que sabe. Tô indo pra aula. Chau, Diana.
- Tchau. Fred!!!
- O que foi?
- Nada. Só falei tichau, Fred.
- Mmm. Tá. Desculpe. Chau.
Achei-o tremendamente antipático, pedante e pretensioso. Mas o que vale a
pena na vida, senão desafios? E ali estava um rapaz que marcaria minha vida futura.
Difícil, parecia que já o conhecia de antes, mas era isso impossível, porque senão eu
saberia de primeira!!! Guardo feições e silhuetas com muita facilidade. E ele não me
parecia estranho, mas talvez fosse parecido com alguém que eu já conhecesse de
antes. Com quem?

Na noite seguinte, reencontrei com Fred na cantina da faculdade de Artes


Plásticas.
- Lembrei, Fred, de onde conheço você.
- Você me conhece? Claro! Nos apresentamos ontem à noite.
- Nããããããão!!! Eu te conheço de antes. Lembrei de onde.
- Ô Lôco!
- Você não foi num concerto de rock no Ginásio Esportivo, onde tocou
diversos grupos, começou às 9 horas da noite e terminou às cinco da
manhã?
- Faz tempo...

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- Cinco anos atrás. Você era mais cabeludo e tava junto com uma menina
que parecia cigana.
- Ela era cigana.
- Vocês ficaram vendo, dançaram, depois você colocou sua cabeça no colo
dela, deram um tempo, aí foram lá pro fundo...
- Você me filmou!!!
- Só não fui atrás de você porque cê tava acompanhado.
- Entendo...
Tem gente que se preocupa demais com o futuro. Aprendi que o presente é
que deve ser vivido. O futuro é consequência do presente, que é já o futuro de nosso
passado. Já estamos vivendo o futuro. O resto é consequência, vamos viver o hoje!
Depende do nosso hoje o nosso amanhã. Parece tudo tão idiótico e simples, mas
ninguém se toca disso. E haja tarô, leitura de mão, todo mundo querendo saber o
que vai acontecer... Só o que não se tocam é que o que vai acontecer vai depender do
que escolhemos agora. O futuro começa no instante seguinte ao que estamos
vivendo. Pensamento segue pensamento, ato segue ato, contato segue contato,
disque-disque segue fofoca, palavra sábia segue sabedoria.
Eu lia tarô e mão. Fred lia o tarô, também, mas só com os arcanos maiores,
usava jogos que ele mesmo confeccionava. Estudava cabala, ocultismo, fazia ioga,
era todo esotérico, hinduísta, misturava zen com budismo e catolicismo, dizia-se
universalista e ateu devoto. Acreditava num universalismo natural. Quando o
conheci, ele estava nos primórdios dos estudos, e eu já lia tarô e mão pra todo
mundo. Com o passar dos anos, nunca mais li pra ninguém, ele me suplantou, lia
melhor que ninguém, até que, de repente, decidiu parar.
- Não leio mais tarô!
- Por quê, amor?
- Não vou mais estudar cabala, nem vou me meter com ocultismo, nem com
coisa alguma. Vou esperar por uma religião. Ou nada. Mas se eu continuar
como estou, só vou me emaranhar cada vez mais numa teia, e isso vai me
deixar louco!!!
- Os judeus dizem que o estudo da cabala sem um instrutor pode levar à
loucura. Talvez você pudesse continuar com o estudo das escrituras.
- O problema é saber quantas e quais escrituras estudar. Só a Bíblia tem
diversas versões. E têm os Vedas, os Anacletos, e o diabaquatro!!!
- Entendo. Então, desmarco as leituras de tarô que estão marcadas.
- Desmarca e manda todo mundo pro inferno!
- Que é isso? Você está nervoso...
- Manda cada um procurar seu caminho por si mesmo. Eu não posso mais
ser guru de ninguém. Não estou preparado para isso.
- Mas ninguém vem aqui te procurar como guru.
- Você é que pensa.
No dia seguinte, Fred recebeu uma carta selada com o lacre real d’Um País
Magnífico.
- Mas esse país não existe!
- Claro que sim, Fred.

27
- Então, Diana, me mostra onde ele se situa. Pega um Atlas e me mostra.
Mostrei pra ele no mapa do mundo onde ficava Um País Magnífico. Contei
para ele sobre a história do país e das revoluções recentes que o haviam marcado1.
Mas Fred notou algo que o deixou encafifado: a carta vinha endereçada “Para a(o)
Sr(ta.) Fred dos Anjos do Porto”. Lembrei-o de que o nome Fred não era
necessariamente masculino, vale para ambos os sexos. Mas o conteúdo da carta era
mais estranho. Dizia assim:
Vemos por este convocar Vossa
Majestade para ocupar o lugar de maior
dos maiores no Trono Real, uma vez ser
de Vosso Direito e Dever, por
hereditariedade. Aguardamos contato
por um dos meios abaixo colocado.
Assinado Primeiro Ministro Filipe
Terceiro.
Tinha vários números de telefone, endereços oficiais, inclusive eletrônicos2.
Fiquei espantada, porque o meu Fred iria embora para um país tão longínquo.
Então, ele me chegou a dizer que, já que ninguém sabia se o Fred era menina ou
menino, se eu quisesse ir, no lugar dele, tudo bem... Dei a maior bronca no moleque!
Apesar da queda que eu tenho por ele, não nego, não faria uma coisa dessas. Mas
tive uma tentação muito grande, e me convidei para ir junto. Realmente, junto à carta
havia uma passagem de avião de primeira classe, com direito a acompanhante.
Nunca vi isso, mas era assim. Por que não mandaram de cara duas passagens?
- Fred, teu sobrenome é este mesmo?
- É, Diana, por quê? Alguma implicação?
- Outra vez a mesma história. Não é implicação, é que nunca você falou
sobre isso.
- E por que deveria?
- Por quê? Ora, não tem porque. Eu apenas achei que você se chamasse
Frederico Monguço.
- Monguço é, na língua portuguesa, a tradução do meu sobrenome no
idioma d’Um País Magnífico3. Mane é Anjo, Mong é Dos Anjos. Uço seria
literalmente Portuário ou Portuária. E lá4 o nome Frederico é apenas Fred
ou Frede. E Frederica é Freda, mas também pode ser Fred. São, portanto,
três formas, sendo uma válida para ambos os sexos.

1
Vide “Gabriel”. (N.A.)
2
Ou, como se diz em português do Brasil, “imêius”.
3
Vide “Gabriel”, do mesmo autor deste livro.
4
Um País Magnífico está soberbamente relatado, em termos históricos, na monografia da Doutora Fernanda
Terremoto, “Ascensão e Queda do Sistema Monárquico de Um País Magnífico”, editado em 1995 pela
Graunde Associados, RN.

28
-Êpa! Você parece saber mais do que eu nessa história do país. Conta
direito pra mim. Primeiro você disse que não existia, nem sabia onde era
no mapa. E depois vem com essa história de “idioma” do tal país? Alguma
coisa você está escondendo.
- Diana, vê se entende. Acontece que desde pequeno eu estudo essa língua,
embora pensasse tratar-se apenas de algo fantasioso. Nunca pensei que
fosse mais que uma imaginação de minha parte, algo que...
- Algo que...
- Peraí, menina, eu tenho um livro infantil que fala sobre esse país, e eu o
devorei diversas vezes. Enquanto outros liam o Pequeno Príncipe, eu lia
esse, “Histórias Maravilhosas de Um País Magnífico”. O personagem
principal era Gabriel dos Anjos do Porto, o que na língua deles seria
Gabrielin Monguço. Agora está tudo fazendo sentido.
- Claaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaro, meu nobre Watson. Estou a ver navios...
- Eu sou um sobrinho-neto de Gabriel dos Anjos do Porto, o Grande Herói
Gaby! Eu sempre me achei parecido, mas achava que tudo não passava de
lenda, de conto de fadas. O que deve ter ocorrido é que, com a morte de
Godonécio, o Parlamento se foi quebrando em diversas facções
inconciliáveis. Meu tio Gaby, segundo sei, teria sido sondado novamente
para governar o país e declinado. Nesse meio-tempo, a Monarquia pode
ter se instaurado novamente, criando um impasse: qual das famílias terá
o direito e dever de ocupar o trono? Provavelmente, a tchurminha do meu
tio deve ter pedido também para os filhos dele.
- E ninguém deve ter aceitado...
- E na hierarquia geral, passando daqui para ali, acabou chegando em você,
que pode ...
- É. Eu posso aceitar ou não.
- Pois é. E agora você tem uma passagem para esse mundo paralelo.
- Não é um mundo paralelo, você mostrou para mim o país no mapa.
- Eu sei, é modo de dizer. Vamos fazer as malas.
- Você vai comigo?
- Eu iria perder essa?
O grande problema que eu sinto é que Fred vive suas loucuras como se
existissem realmente. Quero dizer, Um País Magnífico existe, tá no mapa do mundo,
mas nem todas as pessoas conseguem encontra-lo. Tem fronteiras, governos,
revoluções, passou por guerras, tem História e é geograficamente localizável. A carta
que meu gato recebeu é de verdade, existe um reino, e ele deverá ocupar o trono
desse reino. Um trono que já foi de um tal de Esquiábolum 5, um país que já passou
pela ditadura e agora caminha tartamudeantemente em busca de novos caminhos.
Era de centro-esquerda, passou para a extrema-direita, foi para a nova-esquerda e
agora está no rumo do anarquismo-social de esquerda. Pelo menos é o que informam
os jornais.
Ah, sim, você não lê jornais, só a página dos quadrinhos... É, o Fred sempre
diz que o mais importante é começar o jornal pelos quadrinhos. Não sei o que ele

5
Vide “Gabriel”.

29
quer dizer com isso, mas o que importa é que ele considera o aspecto cultural como
um ângulo de primeiro interesse. Suas posições costumam ser um tanto
heterodoxas, poucos o ouvem, ninguém o entende. Acho que nem eu, no mais das
vezes. Ele não consegue ser capaz de viver dentro do sistema social brasileiro, que
não é, fundamentalmente, diferente dos sistemas sociais de outros países. Fred se
incomoda com os partidarismos, as competições, as picuinhas, as tradições e
convenções inúteis, respeitando apenas as que considera essenciais e profícuas. Ele
não se sente à vontade no meio social, em qualquer emprego ele sempre acha uma
forma de, mesmo não querendo, mostrar suas habilidades e conhecimento amplos.
Nunca se dá bem nos empregos, acaba ficando entediado, não consegue ser parte do
todo. Extremamente individualista, no que diz respeito à coletividade, e
extremamente socialista, no que diz respeito aos direitos das pessoas como seres
vivos. Uma palavra que o possa definir é liberdade.
Ao mesmo tempo, ninguém é tão cheio de amarras quanto meu amor.
Também é muito inconstante, essa é outra palavra que o define. A faculdade de
arquitetura ele não terminou, parou no meio, começou depois uma de jornalismo,
parou no meio, acabou se formando em letras. Depois, fez pós-graduação em
literatura. Liberdade e inconstância.
Diferente de mim, que terminei minha faculdade de artes plásticas e fiz
mestrado em semiótica visual. Agora, dou aulas de artes plásticas para alunos de
diversas idades, em duas escolas, quatro dias por semana. Temos um carro, que eu
uso para ir e voltar das minhas aulas.
Fred está novamente desempregado e sem motivação para trabalhar. É que
tudo o que ele sabe fazer não dá dinheiro. Ele não sabe consertar uma pia, não tem
habilidade com alicates, a torneira fica pingando três meses até ele chamar um
encanador para trocar a borrachinha. Nunca aprendeu a dirigir automóvel, nem
motocicleta, nem ônibus ou caminhão. Só bicicleta. Não tem patrão que o suporte,
nem ele consegue trabalhar sob pressão. Detesta seguir um padrão imutável, quer
de sua vida um levar aos ventos.
Nosso filho consegue entende-lo. Não concorda com as posições do pai, mas
já vem mostrando que será um homem dentro dos padrões sociais e tenderá a se dar
bem nos negócios. Ele é muito empreendedor, está sempre buscando alguma coisa
para trabalhar, os patrões gostam dele e todos o conhecem como de boa figura.
Nossa filha, em compensação, discorda totalmente do pai. E quanto mais
elabora as suas interlocuções e autodefesas, mais se parece com o Fred. Tem sempre
problemas com as amizades que arruma e dificilmente consegue manter
relacionamentos duradouros. Por isso mesmo, suas duas principais amigas são de
infância e pré-adolescência, formando um trio que só elas mesmas se entendem.
Ambos são, pelo menos, compreensivos um com o outro, conseguem desfiar
qualquer problema deles entre si, além de se intrometerem nos nossos. Por isso
mesmo, eu e Fred achamos que podemos viajar para Um País Magnífico, deixando
nossos filhos com os avós até o final do ano. Fred toma posse do trono, eu sei lá o
que vou fazer, depois a gente vê o que acontece. Agora, temos que tirar passaporte,
acertar nossas documentações, vai ser uma trabalheira louca! Minhas aulas vão pro
espaço, vão ter que arrumar substituta em uma semana.

30
Puxa, Fred como rei deve ser uma experiência e tanto. Vai querer colocar suas
ideias fora do normal em prática. O pior é que elas têm tudo para dar certo, por mais
paradoxais que pareçam. Ele acredita no anarquismo, põe fé no socialismo, nunca
acreditou no Muro de Berlim e acha que a ciência é a religião dos tolos. Bom, eu
ainda não sei se o ser humano realmente pisou sobre a Lua ou se tudo foi uma
encenação... Fred é meio descrente com a ciência e com qualquer coisa que lhe diga
ser uma certeza. Ele diz:
- Quem pode me garantir que a Terra é redonda? Lembro quando diziam
que ela tinha a forma de uma pera... Quem pode me garantir que o Sol é
uma bola de fogo? Tudo é questão de acreditar. A gente acredita porque
alguém falou pra gente, ou lemos em algum lugar, ou ouvimos ou vimos.
E quem garante que os meus sentidos de percepção estão antenados na
mesma frequência que os seus? A ciência é a religião dos ateus.
Tenho que concordar com Fred. Ele não tem lugar neste mundo, ninguém
está preparado para ele e ele não está preparado para ninguém. Olha o que ele
escreveu outro dia:
Não tenho lugar no mundo.
O mundo é dos tolos que ignoram
quem controla suas vidas.
Eu não tenho lugar no mundo.
O mundo é teu!
Não pense nisso como algo triste. Prefiro dizer que é desesperado! É esse o
homem que está sendo chamado para governar Um País Magnífico.
Você pode estar achando que eu sou maluca. Ora, como é que iriam achar
meu Fred assim com tanta facilidade? Simplesmente procuraram saber onde ele
estava morando, acharam e mandaram a correspondência. Para quem está no Poder,
tudo é mais fácil. E bota Poder nisso... É a grande cúpula. Poucos pertencem a essa
cúpula, não são conhecidos pelo grande público, e são os verdadeiros donos da Bola,
seja ela redonda, em forma de pera ou quadrada.
Enquanto a gente se prepara para a viagem, penso no que é, quem é realmente
o meu Fred, pra entender até onde vai seu raciocínio, até onde vão os seus limites.
Ele viaja! Eu mesma fico sem saber.

31
A viagem
Deixamos nossos filhos com os pais do Fred. Os meus não aceitam nosso
enlace, então com eles não tem conversa. Fomos com meu carro até o aeroporto e
ficamos com os documentos na mão. Despedimo-nos do pai do Fred, a mãe ficou em
casa para cuidar dos netinhos.
Achar a plataforma foi a coisa mais fácil, tinha gente nos esperando, uns caras
uniformizados, de ar confiável, extremamente cerimoniosos conosco. Eu me senti a
própria Rainha da Abissínia. Só depois de alguns minutos é que percebi que havia
também uma verdadeira roda à nossa volta de seguranças, com rostos fechados e
peitos grandes. Entramos no avião numa classe especial, onde apenas estavam os da
nossa turminha... Sabe como é, ficamos na verdade num avião em que só tinha como
passageiros eu e o Fred. Os outros eram os que eu já mencionei, além de mais
seguranças com outros tipos de uniformes.
O avião havia sido fretado para nós, porque Um País Magnífico não tem
veículos especiais para seus governantes, que os compram com o dinheiro de seu
próprio trabalho. Mesmo a família real tinha que se virar com seus salários.
Bom, na verdade, como eu veria mais para a frente, não precisaríamos de
muito dinheiro para viver em Um País Magnífico, onde todos vivem com pouco,
porque é onde as gentes são alegres, carinhosas, afáveis, muito visitadeiras e sempre
levam alguma coisinha junto com a visita6. E no Palácio onde iríamos morar, sempre
iríamos receber visitas e presentes, dos mais variados tipos, desde galinhas,
verduras e hortaliças, objetos de artesanato, quando eram populares, até joias
preciosas e semipreciosas, passando por novidades tecnológicas de ponta de vários
setores do conhecimento humano, nas visitas oficiais, ou de grandes empresários.
Tive que aprender a agradecer apenas com um aceno de cabeça. Mas depois de
alguns dias, Fred decidiu quebrar os protocolos e abraçar os populares, falar
“obrigado”, o que me deixou muito à vontade para acompanha-lo.
É costume no país até hoje, sempre levar alguma coisinha quando se visita
alguém. E sempre voltar a visitar as pessoas, para que elas não se sintam sozinhas.
Da mesma forma, saber receber também é importante: nunca a pessoa sai de casa
sem tomar ou comer alguma coisa. Assim, o Palácio do Governo refletia a realidade
do país. Aliás, um país onde, sempre que se tinha que se esperar alguém, esperava-
se sentado. O Palácio do Governo tinha muitíssimas almofadas sobre tapetes em
algumas salas de espera enormes!!! Noutras salas, também enormes, muitas
cadeiras... Tudo no palácio refletia o país.

6
Esse dado pode ser conferido no capítulo quinto da Tese de Doutorado da Doutora Rita Cadilac, “Aspectos
Sociais Comparados dos Países Sub-Equatoriais durante o Século Vinte”, revisada pela própria autora para
publicação feita pela Gênios Editora, SP, 1999.

32
A chegada
Foi surpreendente para mim aquela coisa toda porque, quando o avião
começou a sobrevoar o país, o que eu via parecia saído de um conto de fadas
misturado com aqueles desenhos de Roger Dean7. E tem mais: fiquei estupefata de
como meu marido via tudo com naturalidade, com a impressão de que já conhecia
o lugar de cor e salteado.
- Sonhei muitas vezes com esta vista. Ela me é totalmente familiar. Agora
entendo porque sonhava tanto com essas viagens.
Quando o avião pousou, pude perceber que uma enorme comitiva nos
esperava. Ao chegar na porta de saída, Fred acenou largamente com sua mão direita,
ao que foi imediatamente respondido pela turba que já tentava chamar nossa
atenção no lado de dentro do aeroporto. Meu marido estava sendo realmente
esperado naquele país. O engraçado é que eu não fiquei de fora, todos sabiam da
minha existência e tivemos que passar em meio a uma fila de seguranças, militares
e civis. A multidão gritava vivas ao “Rei Fred Primeiro” e à “Rainha Bett”... Me senti
uma formiguinha dentro de um campo de futebol, mas Fred agia com a maior
naturalidade, como se houvesse sido preparado para tudo aquilo durante toda a sua
vida. Acenava com a mão igual o Juscelino.
Fomos levados a uma limusine azul-petróleo, linda. O motorista se curvou
diante de nós e fez-me entrar. Ah, sim, o detalhe: nem eu, nem Fred, estávamos
devidamente vestidos. Eu estava com um vestido indiano e sandálias, cabelão solto.
Meu marido de calça rancheira8 azul desbotada, camiseta branca meio-sujinha, com
uma estampa enorme da Cássia Eller na frente. Ah, sim, ele estava de chinelo-de-
dedo. Quer dizer, fomos recebidos como rainha e rei sem que estivéssemos vestidos
para tanto. Mas o povo nos reconhecia.
Quando a limusine começou a rodar pelas ruas da capital de Um País
Magnífico, reparei que haviam cartazes com fotos do Fred e minha, todas com a
frase: “Eles voltarão!” Comecei a ficar assustada com o tom messiânico da
propaganda, além de não saber como é que eles conseguiram as fotos.
- Fred!
- Sim?
- Você pode me explicar essas fotografias? Como é que eles conseguiram?
- Sei lá.
- Você está sabendo de alguma coisa e não quer me contar.
- Oloco, Bett. Se eu soubesse de algo, teria dito. Tudo é tão misterioso para
mim como deve estar sendo para você.
- Mas você age como se conhecesse todo o protocolo.
- Faço por intuição. Não sei como é, mas faço. É o jeito, sei lá.

7
Roger Dean era o desenhista das capas do grupo de rock progressivo Yes, durante os anos setenta.
8
Jeans

33
A situação
A Câmara dos Maiorais estava governando interinamente, enquanto não se
resolvia a celeuma de quem deveria ocupar o trono. Porém, nossa chegada ao país
foi considerada como resposta. Definitivamente, o povo saiu às ruas para eleger Fred
como rei por aclamação. Mesmo assim, meu marido ponderou:
- Bett. Quando se passarem os primeiros dias, faremos um plebiscito em
todo o país, a fim de saber se o desejo do povo é realmente esse ou se essa
turminha que saiu nas ruas é só a opinião da capital. Um País Magnífico
não é apenas a capital, tem também o interior, o litoral e a região serrana.
Preciso ter certeza do apoio popular.
- Mas você tem já o apoio político. A Câmara dos Maiorais está com você.
- Essa Câmara sempre foi um antro de sanguessugas. Há diversos setores,
dentro mesmo das outras Câmaras Federais, que tenho que ouvir.
- E o Senado.
- Aqui não existem senadores. O que há é um Parlamento, dividido em
facções diversas, formando o Legislativo. O Poder Executivo voltou para
a família real, que agora, pelo que vejo, somos nós. O Judiciário trabalha
como sempre, cumprindo seu papel melhor que os dois outros poderes
juntos.
- Se ficarmos por aqui, teremos que trazer nossos filhos.
- Claro, Bett, claro, mas o negócio é a gente primeiro saber se vamos
realmente ficar por aqui ou se terei de renunciar.
- Ah, num renuncia não, tá? Tão bom assim, tô gostando. Acho que a mosca
verde do Poder me picou.
- Cuidado, menina, isso pode ser perigoso. Governar é, acima de tudo, ser
responsável por um povo. Não sabemos ainda se os cartazes são obra da
fétida Câmara dos Maiorais, ou se têm realmente o apoio popular do país
afora.

34
O Livro dos Pensamentos de Frederico dos Anjos do Porto

35
I- Antes do relógio
Antes do advento do relógio, as pessoas não tinham a ideia do tempo como nós temos
hoje. Não se marcava um encontro para uma hora exata. O esperar era uma constante, fazia
parte do viver. Dizia-se: “Vamos nos encontrar amanhã antes do sol nascer!” e então se
deparavam em momentos diferentes, talvez com diferenças de vinte minutos, mas isso não
era atraso, desde que fosse “antes do sol nascer”... Os casais marcavam encontro “ao cair da
tarde”, e sempre um chegava depois do outro. Às vezes, bem atrasado. Mas isso não era
considerado atraso, porque o “cair da tarde” tinha uma duração de vários minutos... E
ninguém ligava para isso, porque ninguém conhecia os minutos, as horas... Falavam em
horas, mas baseados na posição do sol. Quando havia um eclipse era um sinal dos Céus.
Havia dias de chuva e dias de sol; noites em que a chuva caia e outras em que não. Havia a
estação do plantio e a da colheita. Tudo se repetia e isso era a segurança do ser humano: saber
que no dia seguinte haverá um sol novamente nascendo e na estação das chuvas choverá, na
do estio fará muitos dias de sol. Os dias amanheciam, o sol se levantava, se punha a pino e
se deitava: os homens, as mulheres e as crianças também se levantavam, se punham a pino e
se deitavam. Dia após dia. Noite após noite. As sombras eram imensas ao amanhecer,
mínimas no pico do sol e máximas novamente ao final do dia. Sempre era assim. O cotidiano
era a marca da existência. Fora do cotidiano, nada existia, só o grande Mistério Insondável,
a loucura. Como hoje em dia, os medíocres preferiam não se perguntar o que havia além do
cotidiano.
Não se pensava no futuro, porque só se vivia o presente. O passado eram histórias
contadas pelos mais velhos e a experiência da mesma tecnologia que os filhos e os filhos dos
filhos iriam ter. Não se pensava em progredir, porque também não havia a regressão. Não
havia a lembrança de tempos em que o arado não existia, mas imaginava-se que tudo fora
criado assim, num átimo, e assim continuava até os então dias atuais. Por isso não havia a
ideia do progresso. Regredir seria imaginar voltar no tempo, e o tempo sequer era imaginado.
Vivia-se o tempo como um eterno presente, aguardando-se o Dia Final, ou alguma Grande
Catástrofe. Sem saber, o ser humano estava no que, futuramente, seria chamada a Idade
Média na Europa. Assim como no Velho Mundo, também muitas mulheres, homens e
crianças de outras civilizações marcavam suas vidas.
A invenção do relógio trouxe às pessoas a ideia do existir dentro de uma grande
máquina. Então, o pensamento levou os seres humanos a crerem que tudo estava contido
dentro de um grande relógio. Aliás, ainda se pensa dessa forma, quando se acertam os
ponteiros de acordo com um relógio mais “preciso”; que “precisão” é essa? Quem nos garante
que o mundo gira sempre na mesma velocidade em torno de si mesmo e sempre na mesma
rota em torno do sol? Aliás, nem dessas coisas temos certeza, acreditamos nelas como se
fossem dogmas religiosos, porque aprendemos que “é assim”...
O ritmo de cada pessoa funciona de maneira diferente. O ritmo biológico é pessoal,
nem todos funcionam igualmente. Atrevo-me a dizer até que ninguém tem o mesmo ritmo
biológico que outro. Fora isso, não há garantias de que entre uma alta e uma baixa no
biorritmo de determinada pessoa não estabilize repentinamente num estado e ali permaneça
por alguns instantes. Creio que pensar numa ideia de biorritmo estável, eternamente estável,
é o mesmo que ter a ideia de que nosso corpo é um relógio. Não se pode ter a ideia de um
corpo como se fosse uma simples máquina, externa ao meio em que vive. Sabe-se atualmente
que o meio influencia o ser, vivente ou não, como o ser influencia o meio. Uma pequena
pedra pode fazer alguém tropeçar, como se pode tirar a pedra do lugar. Ao se tirar a pedra de
um lugar, ela vai para outro ou se transforma em pedriscos. Isso movimentará outras pessoas
em direção a outras ideias.

36
Então, o biorritmo é um caminho, mas não inexorável. Gatilhos podem ocorrer para
desestabilizar o ritmo de uma pessoa, e isso tanto mais ocorre quanto mais se vive prestando
atenção nos acontecimentos externos. Também o internar-se leva a desvios do biorritmo
exato: por exemplo, numa autorreflexão, ou numa sessão de psicanálise, o paciente descobre,
de repente, algo que o deprime ou o levanta, independente de que momento esteja em seu
ritmo vital.
Há pessoas que inconscientemente desprezam seus biorritmos. São as instáveis.
Dentre as primeiras, cito as Depressivas, por exemplo, que não conseguem ter controle sobre
seu próprio bem-estar, e passam no “fundo do poço” por vários dias, meses, às vezes anos...
Dentre essas, algumas sofrem do Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), antigamente
chamado de Psicose Maníaco-Depressiva (PMD). Os bipolares não têm biorritmo: passam
do máximo para o mínimo a qualquer instante e vice-versa; e seus máximos e mínimo são
muito além dos picos dos biorritmos. Pode-se dizer que um bipolar vive em patamares, ora
em ritmo aceleradíssimo e batendo pino, ora deprimidíssimo, inativo por completo. Não têm
curvas suaves, não têm ligações entre um e outro patamar. São depressivas, mas também
maníacas. As fases de mania tornam essas pessoas muito falantes, pensantes, ativas,
compradoras, aquisitivas, organizadoras, planejadoras. A fase maníaca transpõe o sujeito a
um estado além do normal, em que ele próprio não se contém. È a fase em que a pessoa sente
que o tempo é curto demais para realizar tudo o que quer, o que precisa, e passa a trabalhar
mais e mais, ou então o trabalho é pouco para absorver toda sua energia, e ela passa a dominar
outras atividades além de seu trabalho normal. Além disso, começa a dormir menos e menos,
e da falta de descanso a doença se alimenta, consumindo a bipolar até que uma doença física
a derrube, ou simplesmente caia em depressão, quando então a inatividade e a falta de
esperança imperam. Quando, num instante qualquer, vem a depressão, calam-se, o
pensamento se desorganiza, são capazes de se desfazer de tudo que têm, não veem mais razão
para planejar. E tudo é inconsciente, incontrolável.
Por fim, existem as “Mixed”, que passam por, digamos, estações, nas quais são
maníacas e depressivas ao mesmo tempo. Inexplicável a sensação. É como se o coração
batesse muito rápido e ao mesmo tempo muito devagar. É como se sua cabeça trabalhasse
muito e seu corpo não obedecesse aos chamados do pensamento. É quando se pensa em
diversas coisas ao mesmo tempo, ou encadeando uma na outra sem parar, enquanto se faz
outras que nada têm a ver com aquelas. É o nível de instabilidade mais difícil de controlar,
porque a própria pessoa se vê despregada da realidade que a cerca. Não consegue achar uma
posição onde se estabilize. É como um elétron, que nunca tem uma posição definida: pode se
coagular numa posição quando está sendo medido, mas ao ser detectado não mais está lá.
Dizem que a órbita do elétron é indecifrável: assim é o estado do portador de TAB, e
igualmente do “Mixed”, um tipo específico de bipolar, que já é um específico dos
depressivos.
O instinto autodestrutivo, catártico ou suicida pode acontecer em qualquer dos
estágios de qualquer dessas pessoas instáveis: seja no momento de depressão profunda,
quando nada parece fazer mais sentido, ou num instante de mania extrema, quando se sente
a necessidade de uma catarse, ou no estado de “Mixed”, na busca de uma solução final ou
temporária.
Voltando ao passado, quando as pessoas não tinham relógios para marcarem seus
compromissos, funcionavam de acordo com seus biorritmos pessoais. Uma depressiva
poderia ser dada como preguiçosa, assim como um bipolar em sua fase maníaca seria um
grande trabalhador. Ou não.

37
II- Da Necessidade da Contestação
Existe uma capacidade de absorção pela nossa sociedade, capacidade essa que
transforma a pessoa de consumidora em consumista. Isto é, o indivíduo vai perdendo a
sensibilidade crítica. Consome o que lhe é apresentado sem se perguntar se aquilo lhe é
realmente necessário ou não, apenas acreditando que o é porque aprendeu dessa maneira, seja
por quem o criou, pelas instituições (Escola, Igreja, Estado,...), ou pelos meios de
comunicação, de massa ou diretos.
Portanto, ao nascer um movimento de contestação ao sistema estabelecido, a própria
sociedade começa, com o passar do tempo, a absorver os elementos desse movimento,
incluindo-os na sua vida diária, mas sem o significado original. A sociedade estabelecida
constrói ícones para a indústria da alta moda, que depois vão barateando e sendo
desmistificados. Tais ícones são formados a partir dos elementos do movimento contestador,
derrubando-o com a pior arma que podemos conceber: a da imposição de ideias, distorcendo
o sentido original e o levando a ser apenas mais uma febre de verão.
O contestador, antes que se dê conta, já foi eliminado por uma das seguintes fórmulas: a
primeira o “regenera”, levando-o a ser um adulto ajustado às normas sociais antes combatidas; a
segunda o marginaliza, deixando-o sem alento, tornando-o “doente” (depressivo, transtornado,
psicótico, esquizofrênico,...).

Há, porém, sementes que germinam para gerações futuras. Podem ser ideias de antigos
contestadores que se ajustaram ao sistema social ou dos marginalizados. Quaisquer desses são
chamados de agentes de transformação social. Somente a existência de tais agentes é que faz o
sistema progredir, pois o obriga a discutir ideias, conhecer os argumentos prós e contras, questionar
o que até determinado momento é tido como intocável (tabu), para, finalmente, não aceitar
gratuitamente a ordem estabelecida.

O agente de transformação marginalizado é o que, institucionalmente, não


amadureceu, continuando adolescendo e incomodando o sistema que o oprime. Às vezes,
essas pessoas são tomadas por paranoicas. Outras, por videntes. É a ínfima distância entre o
santo e o louco, tão diferentes entre si, embora tão parecidos para quem está do lado de fora.
Para a imensa maioria, o louco é o portador de alucinações, o psicótico grave, o paranoico
obsessivo. Mas, por um incidente qualquer, por acasos que possam ocorrer, pode ser tido
como vidente, quando então a chamada paranoia passa a se chamar fé. E quem pode garantir
que a fé não remove montanhas? A paranoia, sem dúvida, não tira a montanha nem um
centímetro de seu lugar. A fé, sim. Mas nem sempre. E quando não mover, quem dirá se a
pessoa é santa ou paranoica?

38
III- O Medo
O que não contesta é porque tem medo, mas o contestador também teme represálias. O
medo é o que o faz reagir. O objeto do medo pode estar tomado pelo mesmo medo de nós. O
contestador pode ter medo da sociedade estabelecida, mas ela também o teme e busca afasta-lo
ou doma-lo, como já vimos anteriormente. O medo pode criar a dor ou elimina-la temporariamente,
nascendo uma valentia do aparente nada. O descontrole de si mesmo e o medo de perder o controle
faz o agente determinar suas ideias para que deem certo.

39
IV- Você Acredita no Acaso?
O acaso é a possibilidade de acontecer algo. Não é a certeza. É o Destino. Sempre
houve o fatalista, aquele que diz “será assim”, “tem que ser assim”, “ o Destino é
inexorável!”... Essa história, inclusive, de darmos tanta importância ao futuro, que o
chamamos de Destino, com inicial maiúscula.
A ideia de fatalidade pressupõe a inexistência do livre-arbítrio. Tudo está escrito nas estrelas
e não pode ser modificado. A quiromante diz:

- Me dê a tua mão esquerda.


- Não pode ser a direita?
- A direita é das tuas escolhas. Você pode ir modificando a cada instante essas linhas. Por
isso não as posso ler. Dá-me tua mão esquerda.
A ciência cartesiana é fatalista, pois crê no movimento perpétuo das coisas.
Aproxima-se bastante da ideia do Destino. A ciência atual deixou de ser a clássica,
percebendo o impalpável como a ideia mestra. Decoramos tanto a fórmula de Báscara, entre
outras dezenas, centenas, algumas que talvez possam ocupar toda esta página, até
descobrirmos que nada é, mas apenas tende a ser. A grande contribuição da Teoria da
Relatividade foi de nos mostrar isso, da tendência a ser, de modo que ninguém é, mas apenas
está sendo. Minto: está tendendo a ser.
Se não existe o acaso, não se pode falar em coincidência. Posso afirmar que nada é
por acaso, tudo tem uma razão de ser, mas nem por isso deverá sempre ocorrer da mesma
forma. Mesmo que tenhamos guardado um filme conosco, cada vez que o assistirmos será
uma nova experiência, porque tudo é alterável. Há um leque de potencialidades a partir de
cada ação praticada, incluindo diversas coincidências possíveis. Mas apenas uma
possibilidade acontece de fato, se concretiza e se torna presente.
Ainda assim, cada um de nós vive esse momento de maneira particular, única.
Compartilhar uma experiência, um momento, uma vivência, é a ilusão de se conectar com os
mesmos processos vitais. Ilusão, sim, pois cada pessoa tem seus órgãos de percepção
funcionando diferentemente, histórias pessoais diferentes, vivências diferentes. Compartilhar
deve ser encarado como uma tentativa de se agregar, uma tendência a se juntar numa
experiência parecida, nunca igual.
Por isso, quero acrescentar que um ponto de vista não é opinião. O primeiro (ponto
de vista) é como a pessoa apreende o que está à sua volta; o segundo (opinião) é a ideia que
a pessoa formaliza diante de sua realidade apreendida. Através do ponto de vista, sentimos.
A opinião é a nossa vontade perante o que apreendemos da realidade que se nos apresenta.
Existindo o acaso, sempre podemos ter esperança. Somos envolvidos pelo sistema,
porém também agimos sobre ele, seja por omissão ou por ação desejada. Sempre temos culpa
do que fazemos, porque somos donos de nossas escolhas. Os resultados podem não ser os
desejados, o que, de certa forma, nos justifica, ou nos faz pensar que podemos estar
justificados:
- Puxa, não pensei que pudesse acontecer isso...
- Nossa, se eu soubesse que fosse acontecer assim...
- Uau, não imaginava que você fosse se sentir tão triste com aquilo...
A justificativa de que a ação ou omissão resultou diferente do que se esperava é a
eterna desculpa do agente. Resta ao outro aceitar ou não a desculpa do primeiro. Talvez não
tenhamos sempre culpa do que fazemos, pois a culpa implica em desejar um resultado, mas
não necessariamente o ocorrido. Mas, se participamos, temos parcela na ação ou omissão
cometida. Nada acontece por acaso, sempre tem um porque anterior. Se quisermos nos
confortar, dizemos que por acaso aconteceu. Sem querer. Não foi intencional. E daí?

40
Ora, nada está completo, tudo está constantemente em mutação. Nossas tentativas de
controlar situações nunca vão a contento, mas apenas tendem a chegar lá. Somos como
apátridas em busca de suas próprias identidades. Todos somos “coringas”. Podemos, até
independentemente de nossas vontades, ser levados a situações inimagináveis, mas nunca
por acaso, e sim por meio de acontecimentos cruzados com as nossas vidas.

41
LINHAS DA VIDA

A loucura invade
Os porões e as torres
Os portões e as mortalhas
As montanhas e as muralhas!
Loucas mulheres, loucas, loucas,
Fazem uma prece para o nada
Diante de sua futura sepultura!
Garranchos, gemidos, gritos
Gargantas escancaradas
Clamando contra os canalhas!
É a aliança da morte repentina
Separando as loucas dos vivos
E alimentando a depressão dos oprimidos!
Que toquem os sinos
Para o que já não os podem ouvir.
Lucidez, beleza, crianças
Mas ressoam de ontem os ecos ainda hoje:
A fúria, as armadilhas,
Os delinquentes, as maldições...
A ausência.

42
LINHAS DA VIDA nº.2
A fúria a matilha a mortalha

A armadilha as linhas da vida A torre

A loucura invade as montanhas e os vales!

Louca mulher louca louca,

Faz uma prece para o nada

Diante de sua fotografia na sepultura!

Garranchos gemidos gritos

Gargantas escancaradas Gonorreia lança estaca

Clamando contra os canalhas!

É a aliança da morte repentina

Separando os loucos dos vivos

E alimentando a depressão dos oprimidos!

Que toquem os sinos

Para o que já não os podem ouvir.

Lucidez beleza crianças

Mas ressoam de ontem os ecos ainda hoje:

A fúria as armadilhas

Os delinquentes as maldições... a ausência

43
Qualquer lugar é o q você quiser
Se você quiser.
Se você diz q é alguém
Você passa a ser essa pessoa;
Se você diz q é alguma coisa
Você passa a ser aquela coisa.
Então quando te disserem:
“toque aquela coisa...”
Você saberá quem você é
E o q deverá tocar.
Qualquer lugar é o q você quiser Se você quiser.
Se você tem música na tua cabeça
Canta ou curta um instrumento
E deixa o som rolar!
Qualquer lugar é o q você quiser Se você quiser.
Deixa que tua música saia para o ar!
Só não vale a prepotência, o egoísmo,
A arrogância e a safadeza dos pernósticos.
Qualquer lugar é o q você quiser Se você quiser.

44
Amanhã Estaremos Juntos
To-Morrow

To More

To More Roll

To More Rules

Tomorrow

Chaves
Claves

Caves

Keys

Kiss

Ki

Two cats

Together

45
Desculpem a minha falta de
memória
Desculpem a minha falta de memória
Mas é q eu sou 1 sobrevivente
Sobrevivi às drogas e às bebidas
E às derrotas da política de chumbo
Ao rock e à bossa-nova
Desculpem a minha falta de memória
Mas é q eu sou 1 sobrevivente
Do cinema-novo e da sétima arte
Dos cursos de teatro e música
Da tropicália e dos bicho-grilos
Sobrevivi aos escritórios e gravatas,
Canetas, interrogatórios e bravatas,
Ao caos urbano e ao Times Square.
Sobrevivi também aos cometas.
Desculpem a minha falta de memória
Mas é q eu sou 1 sobrevivente
Nada é fácil nem difícil,
Só existe o querer fazer.
_______________________________________________________________

46
EU QUERO É ROCK! (dedicado ao
Luís Brunetti)

Sol! Haldol! Haloperidol! Anafranil! Pamelor! Metadona! Valium! Lidocaína!


Hidrocortizona! Ludiomil! Tofranil! Clorazil! Serzone! Clorazil! Diazepam!
Não-não-não-não-não! Eu quero é rock!
Já dormi a manhã inteira
Me acordaram pro remédio e pro café da manhã
Os comprimidos engoli com gosto amargo
E capotei no som e na fúria!
Eu quero é rock!
Mais um dia e foi um saco!
Dormi a tarde inteira e acordei
Com uma bateria solando dentro de minha cabeça
Curei-me ouvindo muito rock
Mas a batera ainda não parou de todo
Já são 22 horas
Ela não dói
Mas atrapalha o meu sono noturno.
Sol! Haldol! Haloperidol! Não-não-não-não-não! Eu quero é rock!
Sol! Haldol! Haloperidol! Não-não-não-não-não! Eu quero é rock! Eu quero é
rock!
Eu quero é rock! Eu quero é rock! Eu quero é rock! Eu quero é rock!

47
M-51
Que se danem as instituições!
Que se ferrem os partidos políticos!
Que não me falem de gatilhos!
Eu estou mal, muito mal!

Minha cabeça dói,


Meus dentes doem,
Meus ouvidos doem
Minhas têmporas doem

Uma dor insuportável


E ainda tenho outra dor
Profunda e insubstituível
Que não consigo arrancar
De dentro de mim!

Um anjo passou e me disse que


Eu posso me curar e que
São três etapas
E ainda estou na primeira fase

E ainda estou na primeira fase

48
Roer
Roer
Ruir
Ruptura
Roedura
Raridade
Realidade

Carrapaticidas
Pulgicidas
Têm efeito residual
É preciso tratar o ambiente

Muito papel de banca


Que se arranca amassado
Já rasgado e desintegrado
Feito pó
De arroz
Em lugar algum
Em algum lugar
Agora e aqui
Aqui e agora

Nowhere
Here & now Nowhere
Here & now Nowhere
Here & now Nowhere
49
Here & now Nowhere
Here & now Nowhere
Here & now

Roer
Anywhere

Qualquer lugar

50
Estrelas
Estrelas fugidias e asteroides
Como se não houvesse começo
Fazem trajetórias muito longas
Como se não houvesse fim

Estrelas fugidias e asteroides


Circulam ou elipsam
Partilhando um pedaço
Do universo.

51
Vontade
Eu vejo as tuas mentiras
E tenho vontade de vomitar!
Você só comete impropérios
Cemitérios de tuas entranhas
Que dá vontade de arrancar
Pra te fazer uma pessoa melhor
Eu vejo as tuas mentiras
E tenho vontade de vomitar!
Fico mal porque não posso
Arrancar de você o teu mal
Fico mal porque dependo
De você querer
Eu vejo as tuas mentiras
E tenho vontade de vomitar!

52
Para sempre
Não importa o que se passa
Tudo pode ser para sempre
Não importa o que se passa
Nada pode ser para sempre
Tudo vive
Pulsa você
Socorre teu ímpeto
Arrebenta os teus poros
Com as notas da minha guitarra
Não importa o que se passa
Tudo pode ser para sempre
Não importa o que se passa
Nada pode ser para sempre
E ainda não basta! Eu quero mais!
E ainda não basta! Eu quero mais! E ainda não basta! Eu quero mais! E ainda
não basta! Eu quero mais! E ainda não basta! Eu quero mais! E ainda não basta!
Eu quero mais! E ainda não basta! Eu quero mais!

53
O Espelho
U’a mulher qualquer
Traz crianças ao mundo
Planeta Terra
Cada criança é o resultado
De toda u’a humanidade potencial
Que pré-vive na barriga da mulher

54
Apartamento n°.1
Estranho.
Acordo e não sei onde estou:
Na minha cama?
Numa clínica psiquiátrica?
Estranho.
Já não sei o período do dia em que me encontro
Se é manhã ou tarde,
Anoitecer ou madrugada.
Estranho.
Cadê o tempo?
Meu corpo não quer se adaptar
Ao horário pré-estabelecido
Minha mente voa entre sonhos e realidade.
Lembro ao longo dos dias
Momentos sonhados como se vividos
E já não sei o que foi sonho ou real
E todos os dias se passam
Nesta clínica psiquiátrica
Como se fossem um único e longo dia
Intermediado por noites e noites
E é sempre o mesmo dia
e as mudanças repetitivas.

55
No meio da pedra
Havia no meio da pedra um caminho
E alguém penetrou nesse caminho
Era mais que uma pedra
Era uma casa, um hímen rompido
Percorrido foi esse caminho
Por onde sempre voltamos.
Sempre voltamos para nossa casa
E alguém aqui entrou nessa nova casa.
No meio da pedra tinha um caminho
Tinha um caminho no meio da pedra
Alguém foi morar nesse caminho
Viver o caminho
Transportando esse caminho
Para onde for
Como um caramujo

56
nariz de borracha
Menina do nariz de borracha
Perfumada sem eu saber do que
Sua beleza tem dias contados
Ela não gosta é de perder
Menina do nariz de borracha
É decidida e não pensa em mais nada
É cobiçada linda e triste
Não sabe escrever amor
Nunca disse eu te amo
Nem nunca amou um perdedor

57
MEDIOCRIDADE
Tão vasto e tão casto seu mentir
Que passa por verdade
E a gente se confunde sem saber
Que o pior é se deixar levar
Pensar que ser ingênuo é bem melhor
Passar por ser uma pessoa ignorante
Talvez seja melhor que se destacar
Mas então não vou mais conseguir tocar
E sem tocar não vivo
Sobrevivo mal e tensamente
Até morrer.

58
RELÓGIO
Antes do relógio explodir
Faça alguma coisa
Por mais idiota que seja
Mas por favor faça algo inteligente
Antes do relógio explodir
Fale alguma coisa inteligente
Por mais idiota que seja
Porque depois ninguém mais vai te ouvir
Antes do relógio explodir
Aprenda alguma coisa
Por mais idiota que seja
Mas por favor aprenda algo inteligente
Antes do relógio explodir
Não venha me avisar
Porque todo mundo já sabe
Que o relógio não existe mais.

59
Musas
Se de tanto sorriso fecha e de tanta dor se esconde,
De amor já não reza e a solitude arrebenta a garganta,
A inquirir o porquê das musas não se tornarem mulheres,
Parte o mancebo à busca de meretrizes e mocinhas de programa.

60
Cidadão maior de idade
Por que não precisa votar quem tem mais de sessenta e cinco anos de idade?
Por que é obrigatório o voto de quem tem menos de sessenta e cinco?
E se eu não quiser votar?
E se eu anular meu voto?
E se eu protestar?
Se eu dissesse pro mundo e fundo que ia votar no fulano
e votasse no beltrano?
E se exercer o direito de voto com a minha escolha de não votar?
Por que tem que ser um dever o que quero que seja um prazer?
Então o maior de dezesseis pode? Será que ele quer?
E se alguém puxar no computador quem votou em quem e descobrir:
O tal votou no sicrano... Chi, cadê minha intimidade?
Disso não faço parte. Que é então ser cidadão? É ter entre 16 e 65? É votar?
Mas eu não quero fazer xis, nem apertar botão,
quero dar a minha opinião descritiva.
E aí, cidadão? Vai ficar muito tempo nesse mesmo lugar? Vai trabalhar!
Cidadão produz.
O maior de 65 quer produzir. Vadiar e trabalhar.
O direito ao ócio é o direito ao trabalho.
Aposentado e desempregado.
Cidadão abandonado.
Maior de 65.
Eu não quero ônibus de graça, quero poder pagar o ônibus que uso
e dizer obrigado só porque eu sou educado!
Eu não quero dever pro governo,
eu quero cobrar pelo que já paguei a vida inteira!
Eu não quero remédio, quero saúde,
eu não quero eutanásia, quero vida!
Eu não quero advogado, quero respeito!
Eu não quero bravata, quero solidariedade,
eu não quero dó, quero ser amado,
eu não quero bronca, quero liberdade!

Sou um jovem maior de sessenta e cinco. De carteirinha.

61
Coincidências?
Coisas do Destino.
Coincidências pesam e aprisionam.
O Destino pode ser fortalecido pelas linhas do tédio.
Adeus, implacável Destino!
Adeus, adeus...
Quem conquista sua liberdade,
Não consegue aceitar imposições.
Adeus, inexorável prisão do fastio!
Adeus, adeus...
Quem cria seu próprio caminho,
Escolhe suas virtudes e
Encampa seu próprio território.
Não invade o de ninguém.
Adeus, coincidências misteriosas!
Adeus, adeus...
Ser humano é aceitar o conhecimento de todas as coisas
E apagar o medo de se oficiar.
Mal é querer e desejar, o Bem empreende e realiza:
O primeiro é invejoso, ciumento, infiel às próprias idéias;
O segundo anuncia o feito e avisa das mudanças.
Adeus, implacável Destino, inexorável prisão do fastio!
Adeus, adeus... Adeus, intocáveis coincidências, inexplicáveis premonições!
Adeus, adeus...
Primavera de 2001.

62
COMO UM URUBÚ
NUNCA FUI E S T A M P A D O E M B A N D E I R A !
NINGUÉM M E Q U E R N A S C A M I S E T A S !
O CRIADOR M E P Ô S N O M U N D O P A R A S E R U R U B Ú .
URUBÚ!

N Ã O N A S C I P A R A A S S U S T A R N I N G U É M , M E U
I R M Ã O ,
SÓ VOU ATRÁS DO QUE NINGUÉM MAIS Q U E R :
A CARNIÇA,
O OSSO,
O LIXO.
AS ENTRANHAS
S Ã O M I N H A S C O N H E C I D A S D E V E L H O
URUBÚ!

S O U P R E T O P O R Q U E O C R I A D O R M E Q U I S A S S I M .
T E N H O P O N T A S D E A S A S B R A N C A S E N I N G U É M V Ê .
S O U P R E T O D E A S I N H A B R A N C A , I R M Ã O ,
E T E N H O M U I T O G O S T O , E U S O U
URUBÚ!

MINHA CABEÇA É BAIXA E C O R C U N D I N H A ,


MAS O MEU VÔO É DOS P Á S S A R O S M A I S N O B R E S !
EU SOU NOBREZA E, OL H A Í ,
NUNCA FUI ESTAMPADO E M B A N D E I R A
E NINGUÉM ME QUER N A S C A M I S E T A S . . .

V I V O C A Ç A N D O O Q U E É M E U P Ã O ,
S Ó V O U A T R Á S D O Q U E N I N G U É M M A I S Q U E R :
A CARNIÇA,
O OSSO,
O LIXO.
AS ENTRANHAS
S Ã O M I N H A S C O N H E C I D A S D E V E L H O
URUBÚ!
63
VIVO E M B A N D O
E ME U S C H A P I N H A S M E R E C O N H E C E M .
SOU G R A C I O S O E H U M I L D E .
É...

NÃO SOU AMADO COMO AS GARÇAS,


MAS ELAS NÃO TEM A BELEZA QUE MEU S O L H O S
JÁ PUDERAM VER, MEU IRMÃO,
E QUE GUARDO NA MEMÓRIA DA MINHA R E T I N A ...
ELAS QUE SEJAM GARÇAS,
EU SOU URUBU! VIVA!

VOC Ê T Á P E N S A N D O Q U E V I V E M U I T O A L T O ,
MAS E U V Ô O M U I T O M A I S A L T O E O L H O D E
L O N G E !
VOCÊ SE ACHA VITORIOSO,
MAS EU AINDA TENHO PENA DE TI.
VOCÊ SE PENSA TÃO ALTO E VIGOROSO,
TALVEZ UM DIA SEJA MINHA A TUA CARNIÇA.

S Ó V O U A T R Á S D O Q U E N I N G U É M M A I S Q U E R :
A CARNIÇA,
O OSSO,
O LIXO.
AS ENTRANHAS
S Ã O M I N H A S C O N H E C I D A S D E V E L H O
URUBÚ!
V O C Ê V I V E E P E N S A O T E M P O T O D O E M S E
V I N G A R !
ESPARRAMA A TUA CABEÇA NO FOFO
T R A V E S S E I R O ,
PLANEJA AS FALCATRUAS SOBRE TEU
C O M P A N H E I R O
E UM DIA ESQUECE DE ACORDAR,
POR CAUSA DE UM ESTOURO NO CORAÇÃO. ..
SÓ VAI SOBRAR O TEU CADÁVER,
TEU ORGULHO, TUA AVIDEZ E TUA PRESSA .

64
S Ó V O U A T R Á S D O Q U E N I N G U É M M A I S Q U E R :
A CARNIÇA,
O OSSO,
O LIXO.
AS ENTRANHAS
S Ã O M I N H A S C O N H E C I D A S D E V E L H O
URUBÚ!

TEM G E N T E Q U E T E M M E D O D A G E N T E .
MEDO D E U R U B Ú É O M E D O D E S I M E S M O .
VOCÊ T E M M E D O D E U R U B Ú , M E T E M E E S E
A F A S T A
E EU TENHO MED O D E V O C Ê .

N Ó S V I V E M O S A F A S T A D O S .
I N V E R N O D E 2 0 0 1 .

65
Eis que, certo dia, sabendo de um curso de História da
Arte Brasileira, prontamente decidi me inscrever. Muito
gentilmente, minha terapeuta mudou um dos dias de nosso
encontro bissemanal, justamente para que eu não perdesse a
oportunidade de fazer esse valoroso curso. Eu estava ansioso!
Mesmo tendo sido informado apenas depois de já ter corrido a
primeira aula, que seriam semanais, ainda assim curvei-me ao
distinto mestre. Busquei ao máximo a sua experiência, sabedoria
e cultura pessoal. Na verdade, o que todo professor costuma
gostar é exatamente das aulas em que os alunos se interessam,
perguntam, inquirem, discutem. Aliás, são essas as chamadas
aulas de sucesso, são esses os professores que se sentem mais
motivados! São esses os mais invejados... Toda regra tem sua
exceção.
Eis que o lente a ministrar a série de aulas não conhecia
a didática que vem sendo ensinada aos corpos docentes desde,
pelo menos, os anos sessenta do último século passado, i.e., o
vinte, pelo que sei. A esse improfícuo dedico este singelo
poema a seguir...

66
Coração de amigo salmodiador
Pobre coração ameaçado!
Expulso,
Tiraram seu chão e sua fala.

Destruído e acuado,
O páupere coração amedrontado
Se defendeu com unhas, garras e dentes!

Afiou sua própria língua


No inimigo que lhe tentou cortar suas asas,
Pois, onde havia a porta,
O asno só viu presas.

Pobre coração,
Parado e interrompido em sua angústia,
Viu suas dúvidas e bem-querer
Serem tomadas como heresias.

Pobre coração,
Incompreendido,
Destruído por seu amor pela sabedoria,
Agora não pode voltar .

Nem quer se desculpar


Pelo que não fez.

O coração ferido
Sabe de sua relevância
E prefere contar belas histórias
Para suas crianças.
O coração
Que ouve as vozes das musas,

67
Não tem intenção de destoar
De quem já há muito se sentiu
Desencontrado,
E que preferiu
O inculto encanto da mentira
Que o encontro brusco
E minucioso da verdade.

Valei-me, coração destoante,


Seja minha musa
Para as palavras tonitroantes!

Enquanto eu vivo for


Vou preferir as entranhas
Vomitadas pela minha musa
Que as falsas pérolas
De um sonâmbulo espectro do autoritarismo
Arcaico, machista e preconceituoso.

Amém.

PS: Quando gosto,


eu amo até as últimas consequências,
mas quando pisam no meu calo...
aiaiai, que vontade que me dá
de arrebentar os colarinhos
do ignorante ignóbil egolátrico!

Leopoldo Pontes
Caraguatatuba, outono de 2001.

68
DANÇAR CIRANDA Nº.2
Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

Mas se andam muitos vagaluzes,

Soltos na escuridão,

Iluminam nosso caminhar,

Ou não.

Talvez não saibam voltar.

Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

E se são pequenos seus amigos,

Ele não se importa;

O que vale é ser um vagaluz, vagaluz...

Vagaluz, dança o teu balé,

Teu ritmo certo, inconstante!

Voa, voa, vagaluz,

Vaga solto, livre e doido,

Faz teu corpo me encantar,

Faz tua dança me envolver

Em tua luz presente,

Vagaluz, vagaluz, vagaluz...

69
Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

Luz esvoaçante, vagueante e só,

Incompleta, livre e sã,

Vem e encanta o meu olhar.

Vagaluz, dança para os poetas.

Vagaluz, alegria da cidade

Que não se fez vagaluz,

Porque ela é luz parada sem vagar.

70
DARMA

A DOR DE DEUS

É DOR DE ALMA.

E SE REFLETE NO CORPO

PORQUE O CORPO É ALMA.

SERÁ QUE NINGUÉM PERCEBE

QUE ESTOU PEDINDO SOCORRO?

DÓI.

MINHA DOR É A DOR DO MUNDO.

SOU ATLAS E SOU FÊNIX,

MAS PROMETEU ACORRENTADO.

Outono/inverno de 2001.

71
DOCES LÁGRIMAS DE SANGUE
Doces lágrimas de sangue
Espirram e queimam
a dureza dos hipócritas.
Minhas doces lágrimas de sangue
Destroem a hipocondria dos incautos...

As doces lágrimas de sangue


Espertas e destemperadas
Do cotidiano de nossos pares
Acusam o bem estar da burguesia
E enfiam-se pelos narizes
de quem as não quer ver.

As tuas doces
Lágrimas de sangue
Desesperadas e corrosivas
Entulham falsos versos
Com ar de pundonorosos
Da inesperada malícia
Estigmática do apaixonado.

As nossas
Doces lágrimas de sangue
Aguardam pelo susto dos ateus
E revelam a verdade pútrida
E saborosa
O amor
De quem sabe o que quer
E o que espera.

Lágrimas de dor e sanguinolentas


Escorrem suaves e lentas

72
Tão doces e tão sinceras
Pelos reinos enigmáticos
E errantes
Dos absolutamente vernaculares.

Caraguatatuba, domingo, 17 de junho de 2001.

73
Então eu explodi!
Tem gente que têm o que dizer
E se torna escritor
Tem gente que decide ser escritor
Mas não tem o que dizer.

Algumas têm o verbo, o impulso,


A verve e a espada, o meneio,
A inquietação do atormentado,
Do obcecado, do angustiado.

Dizem que estão num meio perturbado,


Mas só querem escrever, tocar, cantar e dançar,
E mostrar a vida pra toda a gente.

Tem gente que aprende a técnica


E se pensa escritor, artista e poeta.
É mais que abrir o coração, é expor as entranhas de quem
passa
E não quer ver.

Você se lembra quando as coisas não eram tão fáceis?


Sim, eram muito menos complicadas.
Você se lembra?

Tem gente que quer viver se lembrando do passado.


Tem gente que quer viver pensando no futuro.
Eu quero expor as feridas de hoje!
A ferida, a chaga, o estrago e os estigmas.

Você se lembra quando as coisas não eram tão fáceis?


Sim, eram muito menos complicadas.
Você se lembra?

74
Quem tem o impulso
Age sem medo e expõe suas feridas,
Seus estragos, suas chagas e seus estigmas.

Olha a estupidez do arrogante!


Ele tira o teu chão porque te acha maior que ele.
O arrogante tem medo
E te deixa como um animal acuado.

Você se lembra quando as coisas não eram tão fáceis?


Sim, eram muito menos complicadas.
Você se lembra?

Tem gente que decide ser artista,


Mas não tem o que dizer.
Então quer mandar.

O artista tem o impulso, a espada,


A inquietação do atormentado,
Do obcecado, do angustiado.

Dizem que estão apenas meio perturbados,


Mas só estão com ansiedade,
E se importam em mostrar a vida pra toda a gente.
É mais que abrir o coração, é expor as entranhas de quem
passa
E não quer ver.

Alguém vai me ligar e eu espero


Me liga e eu digo que não estou pronto
Só pra poder ter tempo de lembrar.
Minha ansiedade em mostrar só me faz esquecer
E querer ver.

75
Você se lembra quando as coisas não eram tão fáceis?
Sim, eram muito menos complicadas.
Você se lembra?

Hoje eu não estou aqui para aguentar as provocações!


Hoje alguém me tirou o chão
E eu fiquei no ar
Parado num canto desconhecido
Como um animal acuado
Desesperado
Atordoado
Sugado
Traído
No ar
Sem
Ar.
E eu arrebento os encordoamentos e expulso os demônios de
quem me ataca!
Atiro minhas palavras como balas de um canhão que sabe onde
quer chegar!
Cuspo toda minha raiva e o temor dos covardes e dos
desgraçados,
Mostro ao arrogante poderoso que ele não é nada mais
Que um covarde que cresceu.

Você se lembra quando as coisas não eram tão fáceis?


Sim, eram muito menos complicadas.
Você se lembra?
Eu não.

Eu sei, o cara me deixou no chão,


Mas acabei com a arrogância dele
E o esmaguei com a minha palavra.
Já não vale mais que um fio de cera
Tirado de um velho disco riscado.

76
Um fio de cera
Tirado de um velho disco riscado.
Um velho disco riscado.
Um velho disco riscado.
Disco riscado.
Riscado.
Riscado.
Riscado.
Riscado.
Riscado.
Riscado.
Riscado.
Rrrrrrrrrrrrrrrrrssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss
sssssssssssssssssTÓC!

77
ESCREVE TEU POEMA COM TUA
SEIVA ESCARLATE!
DAS VEIAS TRILACERADAS VAI ESCORRER A TINTA
ESCURA...
O MAU SANGUE É PROGRAMADO;

VINGA, DESDE JÁ, AZUL,


E DEIXA FLUIR TEU AZULÍCIO,
PORQUE NÃO SABER VIVER PROGRAMADO
E FALHAR,
É DE ONDE NASCERÁ O TEU DOM.

2001

78
(“Eu nunca soube nada...”)
Eu nunca soube nada
E ninguém percebia nada.
Nunca perceberam nada.
Mas quem é que sabe alguma coisa?
Alguém sabe algo? Ninguém sabe.
Sabem o nada, e se arvoram de tanto saber.
Nada. Sabem nada. E eu também sei nada.
Cada um pensa que o outro sabe mais
E faz cara de quem sabe mais.
Cena de quem sabe.
Ninguém sabe. Todos sabem nada. Cada qual um nada.
Eu não sei nada.
E quem sabe?

79
FEBRE
ondas que vêm e vão
nunca somem

epifania
falar
e se sentir ouvido

opção de crer
e do que espera
ter

macular
os privilégios
e desprezar o anjo anunciador

recuperar orelhas que se abrem


olhos que brilham
narizes ávidos pela vida

o hímen reconstruído é o liame que se revê


vir e virago amam e percebem a ligação que não se quebra
porque nunca existiu de fato mas se apresenta de direito

A febre chega de mansinho e bate fundo


Que não seja o hábito nem o simples abandono de si mesmo
Seja o querer o devotar-se no encontro do caminho que não tem
mandares inexplicáveis

Chega de mansinho e bate fundo


O ar é inspirado pela boca e ao sair pelo nariz é retomado
O vício se impõe como gerador.

80
Mas a geratriz clama pelo que gerou e reconduz a inspiração
pelas vias nasais
Chega fundo e bate mansinho
Bate mansinho
O banzo se instala
Geratriz e gerador se deixam ser reconhecidos por seu filho

O manso é forte e contesta

O filho do vício
Vir e virago
Retorna
Ao lar
E estende sua dor perante o gerador e a geratriz
Suplica e socorre a um só tempo
Os que o desconhecem
E chora

Gera
Seus próprios filhos
Por acreditar abandona o antigo mar de revoltos enxames
pinaculares
Para se entregar a desfacções de impérios seculares e de
falsos devotos e avatares

As ondas que vão e vêm


Fortalecem o filho que gera filho
Estremecem os vícios catalisadores de dogmas
E trazem de volta as geratrizes e geradores de suprema
energia profilática

Não há hímens nem conceitos nem definições ou exegeses


Senão os que se cria para o entendimento
Mas que sejam passagens
Pontes
Não portos

81
Nem espaços mortos

Avança, ser fraco e de mente débil,


Torna-te ágil, inteligente e espirituoso,
Porque o riso que esconde o pranto é temeroso.

Avança, ser franzino e de espírito senil,


Sustenta-te sobre as pernas renovadas e ri,
Porque o riso do santo é como o do louco:
Parece tanto e é tão pouco.

Estende tuas asas


E voa

Se o mercúrio subir mais que o termômetro pode suportar


Dane-se o termômetro
E voe você

Ar
Luz de sol
Miríades de luminares brilhantes
Chegam de mansinho e batem fundo
Ressoam em nossas profundezas
Ecoam vozes esquecidas
Desatam nossos nós
E reaprendemos
A chorar
E rir

Deusas e Deuses,
geratrizes, geradores, gerados e geradas,
acalmam as minhas instabilidades!
___________________________________Caraguatatuba, inverno de 2001._______

82
Minha medida é pelo tempo,
Não pelo espaço.

Há de se espacializar

Onde apenas se é horizontal

Ou vertical.

Percorrer caminhos através

Do tempo, não do

Espaço.

Há de se crescer

Como se estivesse numa pinacoteca,

Entre as obras de arte

Da mais rara pulcritude!

Sublimar o terror

Com sensibilidade.

83
(Diante de uma representação
escultural de Netuno)
(Apud Drummond: “FONTE GREGA”)

Avestátua!
Marmórea
Glória de um instante estagnado
sufocado
decepado da amplidão dos tempos
Netúnea implandecente
Estanca!
nua
objeto
nem êxtase
excitação
deslumbramento
Netúnea insplandescente
sim olhar
Imóvel não ver-se etern
Forte sem poder
Indelével recato adecente.
Sina
de Ser aberto
à visitação pública.

____________________________________________________________

84
(À vista de duas estátuas em
Brasília, em frente ao Palácio do
Alvorada.)
Vira-se uma estátua à outra
e diz:
- Meu cabelo está tão duro...

Languidamente
responde a outra à primeira:
- Deve ser a maresia...
__________________________________________

85
D’UM FILME
“C’est la vie.”
(À vista de um filme europeu dos anos trinta na Cinemateca de Santos)

O trágico de ontem
Hoje é mágico.

A Morte não mais assusta;


O escuro virou brilho.
Preto e Branco não,
Prata e Ouro. Luz!

Medo com o que é leve?


Criação tem muitas formas...

Querer morrer:
Não como fim; para transpor.
Querer morrer
A cada instante: é a vida!
______________________________________________________________

86
Cinemateca nº. 2
(Para Maurice, um francês santista)

Pelos campos da Espanha e Portugal


Cinematógrapho
Cinematograph’co
Mare ares roda
ares
ar
ar
ar
rotação rodar
ar
ar
rotas ares

Pelos ares da
Espanha e Portugales
Cine Pã
Mar Terra
ar Erra pelos mares
ar ares
água ar
águafogoterraeaaaaaaaaaaaaaaaaar
roda rotar
roda rodas

Pelos caminhos da Espanha e Portugal


Cinematógraphos
Grafo Cinema
_________________________________________________________

87
Tô indo pra num sei onde
Quem nem rumo ou prumo aldeia minhas laçadas.
Rotineiramente polialético
Nem cá nem lá minha distância altera.

Sopro num cadinho os últimos grãos


E os refaço novamente com outros pincéis.

Pratos garfos colheres e facas


Espaço pontas portos e cortes
O fio corta mas não aquece
Navalha cega não altera nem semeia.
Torto como cada instante deparado
Não me desespero mais frente ao futuro.
______________________________________________________________

88
Quero a palavra que se não há
como dizer
a música que não se entoe
o poema que se não leia nem a baixa voz
o som que não se há como ouvir.
Quero a rispidez das guitarras de neão
a fertilidade das colmeias
cujo mel se extravasa aos potes.
Arte é isso
Não se pode explicar
senão por Si.

89
A dor tece enquanto o condoreiro
adormece
Adortece
A dor vos se cunhé
Se adôr se cunhê
Será Adôr.

Adorlhece
Adormimce
Adornosce

A dor dussé cluvim teteá dormesse


A dor dussé cludizenov’ jafoi
A dor dussé cluvintiúm serador dusseclo
Vintiúm sendôr

Adortece
Adorveste
Adorpeste

Adôr dusseclo nué adôr dussexo


Adôr dusséu nué a dorda Terra
Adôr dusséu nué a dordo Homem
Adôr dusséu transforma Cecéu de poeta em imortal.
__________________________________________________________

90
Liberdade, liberdade, onde tuas
asas?
Foscas vestes de um ofuscar fosco de morte negreira, transforma-te em beleza!
Serás lúcida e brilhante, límpidas águas de riacho borbulhante.

O povo perdeu mais uma vez.

Vencerá um dia, não sei por que égide. Venceremos.


Os dias passam.
Os dias passam e por passarem levam junto as promessas
E as memórias de quem subiu ao poder
Ilicitamente.
O povo reclama e ninguém se responsabiliza pelos votos ao vencedor
Fraudulento.

O tempo passa e assim tempo também passará para as vitórias irrisórias.


Não há mentira que para sempre dure.
Não há verdade que não seja um dia desvendada.

Liberdade, ó doce e fugaz liberdade,


Ó doce e saudável, longínqua e futurista liberdade!
Avante aos filhos da pátria nossa!
Liberdade, onde tuas asas?
____________________________________________________

91
Um Profeta é um poeta.
A profecia, poesia.
O professor ministra, o Profeta ministra, mas o poeta nem sempre
ministra.
O Ministro deveria ministrar, mas, nem poetiza, nem profetiza,
nem ministra.
O maestro ministra como se deve tocar, poetando e às vezes
profetando.
O mestre ministra ao discípulo.
Ora, o Profeta é um poeta específico.
Nem toda pessoa poeta, menos profeta e muito menos professa.
O mestre às vezes poetiza, e até fala em tom de profecia.
Mas o mestre nem sempre professa.
A Profecia é poesia que professa, ministra e dá o tom…
É a poesia de Deus.

92
Nova profissão
Toda nova profissão
É sempre a mesma e velha profissão.
Todo empregado é sempre o mesmo e velho
Empregado.
Todo novo é sempre o mesmo e velho,
Enquanto não for, o novo, novo.

A repetição é desgastante,
Pode ser um novo início, não um recomeço.

O novo é um novo início,


Diferente do que já foi, inusitado, desconhecido, caverna nova.
Amedrontador: não é novidade, é um novo caminho!
Ai...
_________________________________________________________

93
A Cegonha Carregou o
Nascimento
A cegonha carregou o nascimento
conheceu o dia e a noite
partiu e chegou só

A cegonha fez a vida e a sorte


se velou para subir
e desceu meio discreta

A morte sobra

A cegonha é sua amiga


Pois uma é a outra.
_____________________________

94
Acróstico
Abrir-se-ão os céus,
Belos sonhos e visões.
Celestes seres nos visitarão
Dos Céus, a regalar aos justos.
E a todos irá a boa palavra.

Farão com os homens e mulheres o trabalho que restar,


Guardadas as medidas e as obras,
Heranças dos bons.

Inúmeras crenças desabarão,


Jovens serão chamados,
Leigos serão ensinados.

Mortos serão levantados,


Nenhum pensamento relevado.

Os meninos e as meninas escutarão;


Povos libertados de seus domínios e dominadores;
Quanta terra existir, toda será libertada;
Restará uma só e única:
Sem fronteiras,
Todos os joelhos se dobrarão.
Últimos dias serão.
Veremos Deus.
Xendengues serão fortalecidos
Zarparão todos os males.
_______________________________________________________

95
Eu nunca soube nada
E ninguém percebia nada.
Nunca perceberam nada.
Mas quem é que sabe alguma coisa?
Alguém sabe algo? Ninguém sabe.
Sabem o nada, e se arvoram de tanto saber.
Nada. Sabem nada. E eu também sei nada.
Cada um pensa que o outro sabe mais
E faz cara de quem sabe mais.
Cena de quem sabe.
Ninguém sabe. Todos sabem nada. Cada qual
um nada.
Eu não sei nada.
E quem sabe?

96
Jovem
A oportunidade de ser jovem para sempre
É se poder mudar, mudar o rumo, as ideias,
Encontrar o que sempre achou que deveria procurar.
Ser jovem é começar como se nunca houvesse ainda existido,
Mas ter vivido
E saber que uma vida já se foi
E outra inicia.

Nunca se viveu tanto.


Nunca se teve tanta oportunidade.
Viva a crise, eu vou mudar.
Mudar de casa, profissão, de bicicleta,
Mudar meu pensamento e opinião.
Detesto a crise.
Vou começar a reclamar. Envelhecer. Endoidar. Esquecer.
Aposentar e me acalmar.
Apeie-se.

Juventude é poder dar a opinião e fazer valer,


É viver a opinião.
É mudar quando quiser a palavra, o tato, o diacho da cascata!
É mostrar a carcaça da mentira
E ter coragem de olhar.
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97
Propaganda
Tem muita galinha cacarejando,
Ninguém mais presta atenção!
Tem muito galo anunciando,
Ninguém mais aguenta ...

A propaganda tem que mudar seus paradigmas.


O publicitário tem de parar de falar de paradigmas.
Tem muita galinha anunciando que botou ovo,
Tem muito galo repetindo o mesmo coro.

Quanta agressão, quanta violência, quanto grito inútil, quanta virulência!


Publicidade e propaganda, dane-se o patrão e o seu cliente.
Quero silêncio, generosidade e o ser gentil.

______________________________________________

98
Meus 16 anos
Hoje eu acordei diferente.
Não, não, sou eu mesmo!
Cinquenta anos menos.
E cinquenta anos atrás.
Seria meu aniversário de 66. E agora?
Levanto-me rápido, lépido e ligeiro
E vou direto para a cozinha.
- Feliz aniversário, filho! Dormiu bem?
- Feliz aniversário, garoto!
- 16 anos, já é um homem!
- Feliz aniversário, mano, hoje cê num vai pra escola! Maior boa
vida, né?
Não sou eu. Cadê eu? Onde foram parar cinquenta anos já vividos?
Se de volta aos 16, será tudo novo. De novo?
Ou diferente?
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99
A carreira política
Diz o mestre ao discípulo que
A Política é uma arte.
Responde o fâmulo que sempre aprendeu que
A Política é uma droga.
Diz o mestre ao discípulo que
Existe a Política e a Política.
Nesse ritmo de zenconversa, pergunta o discípulo a
Diferença entre Política e Política.
Diz o mestre sabiamente que
Política é quando as pessoas do povo agem em prol da
Sociedade como um todo. E
Política é quando algumas pessoas saídas do povo agem em prol de suas
Carreiras políticas.
A pergunta vem de supino:
A Política não é uma carreira?
A resposta:
Quando a Política é uma carreira,
Deixa de ser Política,
E passa a ser profissão.
Quando a profissão é a carreira política,
Deixa o político de trabalhar pela comunidade e passa a
Fazer política.
A carreira política é um dano à Política.
Política não é política.
Então, desce o aprendiz do alto monte, não sem antes matar seu mestre,
O mestre agradece e também desce do alto monte.
Ambos vão ensinar como se faz Política.
_____________________________________________________________

100
O livro e a música
Não existe a palavra escrita.
Exceto no momento em que é digitada.

Não existe a palavra guardada na estante:


somente quando lida.

Quando você fala, a palavra vive!


A incompletude do livro é o que faz a sua beleza:
apenas existe se alguém o lê.

Leia a voz alta, faça o mundo compreender que


a palavra falada é palavra cantada,
e a música é a poesia dos sons revelados pela alma.
___________________

101
Ele andava pela rua com uma
elegância peculiar
LEVAVA UM CANIVETE NO CINTO PRETO E UM 38 NO BOLSO LARGO DE SEU BLU DJÍNS
UMA BATIDA PUNK MARTELAVA NA SUA CABEÇA QUANDO PENSAVA NO QUE APRONTAR
TINHA IDÉIAS MEIO ESTRANHAS
CAVAVA O CHÃO PRA VER SE ACHAVA UM POUCO DE MEL
SACUDIA OS BOLSOS PROCURANDO BAGULHO MOEDA COSCORÃO
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
NUNCA LEU NELSON RODRIGUES
NÃO SOUBE QUEM FOI AUGUSTO DOS ANJOS
MAS CONHECIA MUITO BEM O SABOR DO ESCARRO DE QUEM BEIJOU A SUA BOCA
ERA ASSIM
MEIO DELICADO DEMAIS PARA SABER A DIFERENÇA ENTRE O SAPATO E O CAMELO
ELE CARREGAVA UMA GILETE NA MANGA COMPRIDA DE SUA CAMISA NEGRA
NEGRA
E TINHA OS BRAÇOS CHEIOS DE PICADAS
ELE USAVA UMA BANDANA NA CABEÇA E UM BONÉ SUADO QUE NUNCA TIRAVA
UMA PORÇÃO DE PICADAS NA CABEÇA CABELUDA CHEIA DE CACHOS
HEROÍNA COCAÍNA
METAL
CALÇAS COMPRIDAS SEMPRE COMPRIDAS ALINHADAS AFINADAS EM SI MENOR
FAIXAS
ESPARADRAPOS
TRAPOS
ELE GOSTAVA DE ROCK E CHOQUE
LOBÃO PATTI SMITH RAIMUNDOS
AEROSMITH O A E O Z
NEBLINA PÚRPURA
TOCAVA GUITARRA PRA CARAMBA TEVE DE VENDER PRA FURAR ONDE AINDA NÃO TINHA FERIDA
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ

DETESTAVA SABONETE PAPO BREU BATIDINHA MEIO ALITCHE MEIO MUSSARELA


TIPO EXECUTIVO MÚSICA DE ELEVADOR FUNDO MUSICAL DE FESTINHA DE ANIVERSÁRIO DE CHEFE

102
FESTINHA DE CHEFE
CHEFE
CHEFE CHEIRANDO ÁGUA DE COLÔNIA COM CIGARRO ESTRANGEIRO
ELE SÓ QUERIA DAR UNS TAPAS
NA CARA DE TUDO QUE FOSSE CHEFE QUE APARECESSE PELA SUA FRENTE
ELE TAVA CHEIO DE TANTO CHEFE QUE SE TIVESSE DE APELAR SURRARIA PELO MENOS UM
UM
MAS ERA TANTO CHEFE TANTO CHEFE TANTO CHEFE MANDANDO EM CIMA DELE
MANDANDO
ERA CHEFE MANDANDO POR AS MÃOS SOBRE A JANELA E AS PERNAS ABERTAS
ERA CHEFE ENCOSTANDO ELE NA PAREDE PRA CONFESSAR O QUE NÃO TINHA ARRUMADO
CHUTANDO SUA CANELA ELE AMARRADO NA CADEIRA COM MAIS UM CHEFE DE CADA LADO
UM CHEFE DE CADA LADO
E ELE ERA TÃO DELICADO QUE ATÉ CHEGAVA A ACHAR QUE O CHEFE TINHA RAZÃO
PORQUE ALGUM FILHO DE CHEFE ANDOU DIZENDO QUE O CHEFE SEMPRE TEM RAZÃO
E O CHEFE SEMPRE TINHA RAZÃO
RAZÃO
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
DE TANTO LEVAR BORDOADA COMEÇOU A ACHAR QUE O CHEFE NÃO TINHA MAIS RAZÃO
COMEÇOU A ACHAR QUE O CHEFE NUNCA TEVE MESMO RAZÃO PRA TER RAZÃO
PORQUE TINHA CHEFE QUE PASSAVA A MÃO NA SUA CABEÇA ABRAÇAVA PEDINDO VOTO E
SEGREDO
SEGREDO
TINHA CHEFE FAZENDO DE CONTA QUE MANDAVA SÓ OBEDECIA NÃO ERA DE VERDADE
TINHA CHEFE FRITANDO NOS MINISTÉRIOS TINHA CHEFE MANDANDO ACABAR COM A GENTE E
MANDANDO ACABAR COM CHEFE QUE MANDAVA CHEFE ACABAR COM CHEFE
TINHA CHEFE FAZENDO ROLO TROCANDO FAVOR PRA MANTER GENTE COM FOME SEM ÁGUA
TROCANDO FAVOR PRA MANTER GENTE COM FOME
FOME
E GENTE SEM ÁGUA
SÊCA
TINHA CHEFE COM A MÃO NO TREIS OITÃO FALANDO QUE ERA MAMADEIRA
TINHA CHEFE PIRADO COMPLETAMENTE DROGADO FAZENDO CAMPANHA CONTRA
ENTORPECENTES
CONTRA TRÁFICO CONTRA JOGO FAZENDO SUA FEZINHA FREQÜENTANDO FESTINHA

103
TRÁFICO JOGO FAZENDO SEU JOGO FREQÜENTANDO FESTINHA
DANDO DINHEIRO PRA QUEIMAR ÍNDIO DANDO DINHEIRO PRA TIRAR SAFADO DO SARRAFO
TINHA MUITO CHEFE QUERENDO FAZER DE CONTA QUE TRABALHAVA E QUE VIVIA ROUBANDO
PRA CHEFE QUE ERA CHEFE A MERCADORIA NUNCA IA MISTURADA
ELE SABIA QUE PRA ELE SEMPRE IA SOBRAR SÓ RESTO E MIGALHA
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
ELE TINHA RAIVA
ELE TINHA MUITA RAIVA
ELE TINHA MESMO RAIVA DEMAIS
VONTADE DE ARREBENTAR A CARA DO CHEFE
QUALQUER CHEFE
CHEFE
ELE TINHA ÓDIO DE CHEFE
ESTAVA DOIDO PRA ARREBENTAR COM QUALQUER CHEFE
SEGURAVA PORQUE PRECISAVA
VIVER SOBREVIDA ALÉM DOS MUROS DE UM LAR DESCONHECIDO
ANTIGAMENTE ELE MARRETAVA FLANELINHA ENGRAXATE PEDINTE NO MEIO-PERÍODO
JUNTAVA UNS TROCOS E APROVEITAVA O TEMPO QUE SOBRAVA PRA VADIAR
PRA VER A MOLECADA PASSAR O TEMPO CHEIRANDO COLA E O DIABO
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
O TEMPO PASSOU PORQUE O TEMPO SEMPRE PASSA E ELE TINHA QUE PASSAR COM O TEMPO
ELE PASSOU JUNTO COM O TEMPO E COLOCOU IMPLANTE NO NARIZ
NARIZ METAL
ROCK DE RUA ZUAVA NA RUA ZURUTAMBETA MUITO LÔCO E DJÔIDJO SAÍA POR AÍ
CAIU E ANDOU CAINDO BABANDO LEVOU LAMBADA LAVADA LAMBIDA DE CACHORRO NA BOCA
ACORDOU NA U-TE-Í ALGUMAS VEZES E FOI LEVANDO
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
O TEMPO PASSOU PORQUE O TEMPO SEMPRE PASSA E ELE ACABOU FICANDO DE MAIOR
TEVE QUE ENTRAR NA RESPONSA PORQUE A COISA TAVA PESANDO MUITO
COMÉRCIO SEMPRE CRESCENDO A CONCORRÊNCIA PEGANDO CHEFE EM CIMA FAZENDO PRESSÃO
CHEFE MANDANDO DE UM LADO PRA COMPRAR CERTO
CHEFE MANDANDO DE OUTRO LADO PRA DEIXAR VENDER
COMPRAVA USAVA UMA PARTE MISTURAVA 0 RESTO VENDIA

104
SÓ QUE
NAQUELE DIA
NAQUELE DIA ELE MISTUROU DEMAIS ACABOU USANDO O QUE ERA PRA VENDER
FOI ESTOURAR UNS CHEFES POR AÍ
FOI SÓ ESTOURAR UNS CHEFES
TINHA MUITO CHEFE PRA POUCO PROLETÁRIO E ERA JÁ MUITO DEPOIS DAS TRÊS
É!!!
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
TAVA NA HORA DE COMEÇAR O DIA
NARIZ METÁLICO
PENEIRA NO BRAÇO NAS PERNAS NO TRONCO NA CABEÇA
DEDOS LENTOS PÉS PESADOS
A NUCA VOAVA PELO ESPAÇO JÁ NÃO SABIA SE RIA OU SE FESTEJAVA
MAIS UM CHEFE ESTOURAVA
CHEFE POR TUDO QUANTO É LADO
ELE TAVA MUITO LÔCO
LÔCO PRA VADIAR CONTRA AQUELE MONTE DE CHEFE
MUITO LÓKI E DESESPERADO
PESADELO DE EXTASIADO
UAU!!!
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ

NAQUELE DIA ELE MISTUROU DEMAIS PERDEU ONDE ESTAVA A GILETE A GILETE A GILETE
MAS VIU UMA LÂMINA BRILHANTE E ENORME LENTAMENTE DESLIZAR PELA SUA ROUPA
UMA LÂMINA CHEIA DE BRILHO PASSAVA LENTAMENTE E MUITO FUNDO PELO SEU PEITO
VIAJOU PELAS ESTRELAS VENDO MUITO TRANSPARENTE A LÂMINA ESCORREGANDO
ELA PASSEAVA PROFUNDA E LINDAMENTE PELA SUA PELE MACIA
VERMELHO ESCURO POR TODA PARTE ELE CURTIA E DANÇAVA COMO UM POSSUÍDO DE EXÚ
CANIVETE NA MÃO
MÃO
CHEFES EM VOLTA TAMBÉM SE VESTIAM DE VERMELHO VERMELHO VERMELHO
MUITOS BRILHANTES REVOAVAM EM TORNO DE SUA CABEÇA E A CABEÇA CABEÇA CABEÇA
ESPIRRAÇÃO DE SANGUE ERA DEMAIS VERMELHA ESCURA BRILHAVA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
TAVA CHEIO DE CHEFE CAINDO CHEIO DE CHEFE VOANDO CHEIO DE CHEFE POR CIMA DELE

105
CHEFE VERMELHO ESCURO CAINDO LEVANDO CANIVETADA E ELE LEVANDO BORDOADA
TODOS TINHAM SEUS 38 E DE REPENTE UMA SARAIVADA
TATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATATA...........
O SOM DA METRALHADORA ECOAVA PELAS PAREDES TATATATATATATATATATATATATATATATA.......
O ECO DA METRALHADORA FAZIA FIGURAS NO AR ESTRELAS DA MANHÃ
ELE NUNCA FOI CHEFE
MAS NUNCA TAMBÉM VIU TANTO BRILHO E VERMELHO SANGUE
COMO NAQUELA MADRUGADA CHEIA DE ESTRELAS ENORMES
ELAS CHAMARAM ELE PRA SER CHEFE DA GANGUE
DERAM UMA GUITARRA BRANCA CORDAS EM FORMA DE LÂMINA CORREIA VERMELHA ESCURA
AFINADA EM MI MENOR PALHETA DE OSSO ELE IA SER O LÍDER DA BANDA
ELE ERA ASSIM
UM TANTO QUANTO DELICADO DEMAIS PARA A RUA DEPOIS DAS TRÊS DA MANHÃ
ANTES DE PEGAR O PRÓXIMO COMETA PRO FUTURO ELE FALOU:
- CÊ ACHA QUE EU VOU METER MINHA MÃO NESSA CUMBUCA???

106
Os passageiros rugem c/ seus
canhões podres

Os passageiros rugem c/ seus canhões podres

E as panteras fazem groaaaaaaaaaaar...

Na luta e na vida o q se perde são os momentos de suor

Graves, latentes, ardentes, num turbilhão d idéias

Q vêm e q vão, q vêm e q vão,

Feito sopas q se derramam sobre pratos cheios

Ou colheres doidas e tortas num inferno de talheres metálicos!

Queremos a delicadeza de um sukiaki ao pôr-do-sol.

Um gato ou uma cadelinha que se aninhe em nossos colos

Com seus pelos macios.

107
Há a asa nº. 2

Há a asa azul
Há a asa amarela
A asa sua partiu
A minha asa singela
Há a asa verde
Há a asa aérea
Quando te faço um flerte
É por uma camélia.
Há a asa ao céu
Há a asa ao léu
Há a asa aberta
Há a asa coberta
Minha asa partiu
Por sua asa singela.

108
Meu repúdio!
Quero manifestar o meu repúdio!
Há de se ter um mínimo indispensável
de respeito pelo ser humano. Dor não é comédia.
Quero ter a certeza de encontrar, em cada mulher e homem,
a dignidade necessária para transpor os umbrais
da incúria, do destrato palavrório
e da impertinência.
Nota de agosto, em jornal classista, de Mil Novecentos e
Noventa e Oito,
comenta a transferência de encarcerados.
A foto:
homens enjaulados, sentados, com as mãos nas grades,
cada um num espaço próprio e pessoal...
A frase:
“Oba, oba! Tem gaiola no avião.”

109
Tanto
Tanto é muito pouco
Todo esse tanto
é pouco para o que quero
e todo esse tempo
é pouco para o que preciso
porque o que quero é muito
e o tempo que necessito é
a partir de já!
______________________________________________________________

110
Tempo ido, tempo perdido, na
busca do ido e perdido
O pior não é perder, mas nunca ter procurado entrar, tentar encontrar.
Passar pela vida sem ver a si mesmo, como se passar a vida fosse nada mais.
Como pode não haver mais tempo? Tem que ter mais tempo pra viver!
Tem que ter motivo para o tempo ser o mesmo,
Tem que ter vivido e experimentado o indizível,
Tem que ter cuidado, amado e perdidamente atordoado sua razão.
O pior é o paradoxo do tempo e da vida sem tempo, tanta vida e
Tão pouco tempo para viver.
_____________________________________________________________

111
Por que as brilhas pinham?
Pergunta você porque as brilhas pinham.
Ora, elas pinham por você!, não por sua pessoa, mas porque você as faz
brilhar.
Pinham as brilhas quando há para isso motivo.
Seria melhor que não pinhassem, pois os brilhos só ocorrem quando há luz, e
se as brilhas pinham é porque estão apagadas.
Toda vez que Dougue passa por um cão, o cão o segue. Quero dizer, os cães
seguem Dougue, os pássaros e as aranhas também.
Assim como o Dougue tem uma atração pela natureza, ela o respeita na
mesma medida: os pernilongos não o picam se ele dá uma bronca neles.
Dougue consegue se entender com as pedras, as plantas e os animais. Quando
passa por um poste de iluminação elétrica, daqueles que têm célula
fotossensível, o brilho de Dougue parece tão grande que faz a lâmpada apagar.
Multilhões de vezes isso já aconteceu, Dougue passando pelos postes e postes
durante a noite, lendo um livro qualquer que fosse, e nem notou que a luz ia
apagando enquanto passava, seu brilho era tão intenso que nem dava
diferença, ele continuava a ler no escuro como se fosse claro, e nem se
apercebia do que estava acontecendo.
Dougue tem a força e não sabe o que lhe dá, o potencial que ele tem, mas usa
o dom com a sabedoria de um menino, não um menino, mas um menino que
não foi civilizadamente contaminado.
Dougue teve barba cedo, aos 14 levava no rosto um cabelaço e uma barbona.
Um dia ele conheceu a Si, e ela adorou o visu.
Outro dia, ele cortou a barba e deixou o bigodinho, o cavanhaque e a ligação
fazendo um bodinho: ela adorou.
O cabelão foi cortado no exército, e nunca mais cresceu.
Agora as brilhas pinham e as pinham brilhas e ninguém sabe o porquê. Por
quê? Ora, deixemos de bobagens e vamos ao que iniciamos: por que as brilhas
pinham?
As brilhas não pinham por razão. Não há um quê que as faça pinhar. Não há
um porquê, esse é o mistério.
Não existe mistério quando a luz se faz presente. Ah, então é por isso que falei
do Dougue. Essas perguntas me matam, parece que a resposta está ali, tão
suave e doce, que sequer conseguimos pronunciá-las.
Pinham as brilhas por ti.
Ah, é, bebé? Isso é o mesmo que perguntar a diferença entre o travesti e o
drague cuim. Não importa, pode ser que o um não tenha a alegria do outro,
mas e daí? Coca ou Pepsi? Loiro ou moreno? Liso ou ondulado? No baile ou
no cinema? Azul ou vermelho? Decotado ou plissado? Qual a diferença? Oh,

112
crueldade das dúvidas cruciais desimportantes! A verdade é que grupos
minoritários se unem em grupos maiores e tentam ser a maioria. Quando se
apoderam tornam-se tão perniciosos quanto a antiga maioria. E por quê?
Porque o preconceito vem embutido nas criações e no cerne do antigo
rejeitado. Não sabe se desvencilhar do preconceito, e é o minoritário tão
preconceituoso consigo mesmo que preconceitua o contrário do que era
preconceituado. Vira o tabuleiro, trocam as cores das pedras. Não tirou o
tabuleiro da mesa, o majoritário ainda é maior.
Por que tem que existir o dominante e o dominado? Por que tem que existir a
competição? Por que o masculino é o primeiro sexo? Quem garante que o
segundo não é tão primeiro como o primeiro? O complementar é diferente mas
não necessariamente inverso nem contrário, apenas encaixa. E por quê?
Porque sim.
Mas afinal, por quê as brilhas pinham? Por quê?
Ora, pinham as brilhas pela miséria dos barracos palafitados atrás dos cartazes
enormes chamados autidóres.
Pinham as brilhas porque o pai bate na mãe e o filho decide descontar sua
raiva na filha dos outros.
Pinham as brilhas porque pensar é diverso de duvidar: nem sempre é
contestar, mas questiona e discute.
Pinham as brilhas porque não sabem que a pergunta é mais importante que a
resposta.
Brilham as pinhas descoladas, sonham ser pinhas desdobradas e descobertas.
Querem ser pinhas livres dos pinheiros e dos pinhais, e tirar de dentro de si
todos os livros que contêm. É a sabedoria das pedras.
Haja análise. Agora sei porque as brilhas pinham. E você também agora sabe.
___________________

113
Ar
Respirar.
Ainda existe para respirar.
Respire. Estou na Terra.
Planeta Ar.
Costas eretas, cabeça ereta, olho pro céu.
Inspiro pelas minhas narinas, encho minha barriga.
Lentamente.
Enquanto o ar vai entrando por todos os meus poros, penso
Que vivo num tempo onde existe ar na minha Terra.
Deixo sair, devagarinho, desinchando a barriga,
... e penso que vivo num tempo onde o ar existe na Terra.
Repetindo, repetindo, fico até meio tonto. Zonzo.
Admiro o céu que me cobre, sinto a qualidade do ar qu’inda respiro.
O amor começa pela respiração, pulsação, fluxo e refluxo, giro e
rodopio.
Pulsar é música.
Alimento-me com a música, o ar e a comida.
Como, bebo, respiro, amo, penso, fluo.
Ainda existe o ar na Terra.
Eu vivo.
Você está na Terra. Respire.
___________________________________________________________

114
Voar
Hoje sonhei que voava.
Fazia tempo que não era assim. Na adolescência, planávamos.
Naqueles dias, o voo liberdade, sem ninguém nos notar.
Planávamos sobre todas coisas do mundo, mas
sempre voávamos.
Braços abertos, prazerosamente.

Nem todos nossos amigos voavam.


Vi alguns discutirem sobre saltar, grandes saltos, mas não voar.
Pensei coitados, estão presos ao sistema. Devemos para eles parecer
muito loucos, porque nós voamos, eles apenas saltam.

Um dia, sem saber quando, paramos de voar.


Nunca mais.
Houve um tempo em que nosso voo já não mais era liberdade,
se tornara um acelerar de passos mais e mais longos, até voar.
Mais um tempo, e nunca mais voei. Nunca mais. Ninguém mais voou.

Outro dia, sonhei que voava planando a pequena altura. E


minha família viu. Com toda a minha força, eu conseguia finalmente
voltar a voar. Mas só eu. Fenômeno isolado.

Dias depois, voávamos para chegar mais rápido, feito super-homens,


braços para a frente, tão rápido, sem controle, passávamos do ponto.
A fonte era incontrolável. A fome de querer, dilacerante!

Maior por dentro que por fora, como crisálidas que explodem as cascas.
Sabe como é, impulsão, parece explodir, a sensação de que vai escancarar!
... mas não acontece.
Você fica alterado, atomizado, parece que seus elétrãos ficam mais rápidos,
viagens mais amplas, batendo, trocando rotas um do outro.
Fusquinha com motor de avião.
Sensação de descontrole sobre o que faz.
Antigamente, a gente conseguia visualizar, e entender, olhando por um
... plano geral. Cinema. Tela grande!
Agora tão rápido, tudo pela telinha mínima, o tempo é curto.
Mergulhamos. E nosso voo é mergulho.
Quero achar as respostas intensamente. Quero ir lá.
Deixo de observar e participo mais. Do quê? O que há para se participar?

115
Licença.
Quero ver minha planilha.
___________________________________________________________

116
Movimentações Empresariais
(Apud 1: Rimbaud: “Os caminhos são difíceis/ o ar está quieto/ Os montes se cobrem de ervas/ Que distantes
se sentem os pássaros e as fontes/ Avançando não acharemos mais do que o fim do mundo.”
2: “O Tempora, o Mores!”)

A perseguição é solitária.
Carneiros se unem ao lobo para espicaçar a ovelha negra.
Tempo difuso: temperatura amena, raios à vista.
O carneiro negro tem trovões na mão, enquanto a outra segura uma
balança.

Oh, tempo, que reata as pequenas coisas da vida.


Os abutres comem as carniças de quem pára no caminho, mas quem
avança?
Também encontrará abutres. Mais poderosos.
Trevoso dilema, qual a paz romana. Quem sabe? Eu não.
Agora vamos, amanhã quem sabe?
Pássaros escuros rodeiam nosso caminho,
Mas guias podem nos conduzir em segurança. O que você sabe?
Que pensa?
Fumaça. Fumaça nos rodeia. Colibris cantam o entretanto.
E o papagaio enche os seus pulmões de desavenças.
Medo dos lobos? Não, o lobo é ele. Não! Ele não é um lobo,
É um papagaio a serviço dos lobos. Ele tem medo de Ritalí.
É tão chocante! Sim, tá tudo certo... A Ritalí vai conversar com o
papagaio.
Antes que os abutres comam seu fígado.
A cartada é do leão. Ou do lobo, como queira.
Maestro, toque aquela canção! Toque outra vez,
Que os lobos vão ter que tremer.

Grito.

117
Metanoia
Sim.
Existem os dias da metanoia.
Consciente e fragorosamente.
Ou fisicamente.
Um estampido.
Mas há uma terceira classe
de pessoas: passam ao largo.
Sem remos,
sem questionamento vital,
deixam de inquirir,
esquecem de perguntar.

O estigma da tábua rasa do cotidiano.


E o metanoico vê os monstros.
Ressurgindo, por todo o Tempo!
Foram fantasmas. Deixaram de sê-los.
Suas carantonhas estão vivas!
Descobre que não é, apenas tende a estar.
Eis o relativismo do Ser metanoico.
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118
Prana
Milhões de luzes partículas inexatas.
Entre elas,
Bolhas minúsculas,
Caindo refletidas pelo dia,
Limpo e brilhante, depois da chuva.

Virado pro mar, de costas pra rua,


Com seu movimento intenso
Nesta cidade de turistas.

Santos, 1982.
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119
O processo
Um dia é uma parte do processo de um ano.
Como se pode entender plenamente um processo?
Vive-se-o.
Tudo é um processo?
O todo é um processo?
Todas as coisas fazem parte de um processo?
Ora, ele se multiplica e não se compreende.
Vive, entretanto.
É vivo como um Ser.
Humano?
Quase-humano?
Sobre-humano?

Quer compreender a dinâmica do processo?


Compare-o com outro.

Comparar, todavia, é fechar um círculo.


E fechar um círculo é quebrar a continuidade.
Mas o processo é uma longa reta
Segmentada em partes.
Não tem começo, não tem fim.
Se nunca para, como entendê-lo?
Não há como percorrer a reta
E saber seu funcionamento.
Quebre a reta e una as pontas de cada segmento.
Unindo os círculos,
Começamos a entender os procedimentos.
E esquecemos da sua dinâmica.
Viva hoje a fragmentação, amanhã a totalidade.
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120
De lá pra cá nº. 3
Caminhada. Caminhar é preciso.
Nem que seja a obrigar a mocidade
No poder de nossos velhos.
Bakunin, Kropotkin,
Marx e Adam Smith,
Ninguém teve razão.
A república não deu certo.
A monarquia se perdeu.
Avante!
À utopia!
Qual delas?
Caminhar, não jurar, nem prometer.
Voltar, impossível voltar.
Além, muito além, os moços serão idosos.
E os velhos ensinam os jovens
Os vícios de sempre.
O novo poder terá que ser diferente.
Vamos abrigar a juventude de todas as idades,
E ensinar a eliminar os vícios.
Do antigo poder,
Os vícios e falcatruas das antigas formas de poder.
Não é mais possível parar.
Nem voltar.
Vou-me conectar ao mundo e buscar ajuda.
Já!
Sbruff.
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121
Solitude
A solidão horrível.
Cheia de dúvidas e pensamentos.

Ah, o prazer de um pequeno fogareiro queimando e a água fervendo um chá,


O ar fresco da manhã, sol que entra e sai,
Um livro, a estátua verde-escura no mesmo lugar de sempre.

Engraxates em bando. Todavia,


Descobrimos o prazer da solidão, necessária e preciosa:
Ajuda a pensar.

Casa, fórum, ônibus, ponto final, simplicidade.


Solidão: amodeio-te tanto!
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122
Machado
Grandes escritores
nos acompanham.
Machado, por exemplo: na adolescência, aprendi seu modo de falar;
depois, o esqueci.
Na juventude, o redescobri no jogo sutil da ironia;
depois, o esqueci.
Na maturidade, o redescubro no poder da linguagem e da lógica.
E assim em várias fases de minha vida.
Algum nos embriaga com humanismo, outro com universalismo,
outro ainda com o espiritualismo, poesia, filosofia, vivência,
essência.
Entre os períodos, nos entediam.
Os bons permanecem, vão e voltam. São os grandes!
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123
Realidade
Não existem linhas, tudo são cores.
Luz e sombra são variações das dores.
O traço: geometria trabalha com a ilusão
Para explicar o real. E o que é realidade?
Se para cada aspecto existir um contrário,
O que será o inverso de cada um? No universo paralelo,
Preto é o outro lado do carmim, do branco ou do transparente?
E o que se contrapõe à justiça? A injustiça ou um bom acordo?
Onde há som, deverá haver ultrassom? Infrassom?
Já ouviu falar em ouvir o silêncio?
Da noite será o dia? E o inverso do sol: a chuva, a neve, o breu?
Da vida, o nascimento? A morte? A eternidade?
A virtual realidade nós criamos, sabemos qual a verdadeira?
Não existem linhas, apenas cores.
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124
Bem que o avisei!
Vivesse tanto,
Acabaria morrendo.
Mas ele não me creu...
Nem adiantou
Cleonildo Mundolindo
Ser avisado
Por seu guru Panaceu.
Privadescamente acomodado,
Cachimbaticamente inclinado,
Despediu-se deste mundo
Sem avisar ninguém.
Nem seu mestre,
Que lhe era alguém.
Cleonildo Mundolindo
Se foi como viveu:
Sem saber o porque.
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125
Pico do Itapeva
Nem a cavalo sobe-se o Pico do Itapeva:
Assim disse o vereador.
Tanta cratera, parece até a lua!, disse o vendedor.
O pasteleiro lá não sobe, porque o Pico não resolve,
O pipoqueiro não se sabe, pois Itapeva só de leve.
E no Pico do Itapeva só se vai de motocrós,
O cavalo já se nega: - Lá não boto meus pocotós.
E o Pico do Itapeva, quem não foi já não se leva,
A não ser de helicóptero, avião ou ultraleve.

Ninguém mais vai


Ao Pico do Itapeva.

Campos do Jordão, anos 1990.


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126
O problema da carne
Diz o produtor que a carne é problema ingrato:
Quando faz o abate é num pasto de alguém,
E se vende na tabela não resta um vintém.
E ele diz que o custo operacional, mais a perda,
É o que o faz trabalhar no prejuízo. Vale a pena?, pergunta.

Esse custo e a perda


é a limpeza
dos futuros bifes transgênicos
de nossa mesa.

Que bifes?
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127
Ornamento e Preço
- Qual o seu preço, rapariga?,
Diga-me e darei conforme a minha vontade.
- Mais do que está pensando.
Você não pode comprar a minha dignidade.
- Qual o preço da sua decência?
Diga-me e farei conforme a sua formosura.
- Ninguém custeará minha demência,
Nem você poderá comprar minha compostura.
- Muito bem, minha rapariga,
Quanto você quer pela sua lisura?
- De você, muito mais do que pode pagar,
Pois ninguém custeia a minha intimidade.
- Quanto?
- Esqueça. Prezo demais a minha liberdade.
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128
Áforas
Metaforicamente,
Metaforizamos a nossa metáfora.
Euforicamente,
Euforizamos a nossa euforia.
Apolepticamente,
apoleptizamos a nossa apoléptica.
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129
O olho da mente no olho do
furacão
(Apud Cazuza)

Vê o amargo sal do tempo esparramar o seu delírio.


Vai, homem, aprender do sal e da escória, a garra e a lascívia,
o rastro e o pasto, o Ser e o Nada, o Nirvana e o Inferno.
Vê com o olho da tua mente o inesperado e o incorruptível.

Não há mais tempo de procurar: o céu já se desdobra em flamas!


Enigmáticas visões emudecem teu coração assustado.
Eia, mulher, o perjúrio não se manifesta antes da sua hora.
Desvela o garrancho sonambúlico e perspique o homem embrutecido.

O olho da mente está no centro do furacão materno. Agarra-te ao plenil.


Juvencie teu vigor e sonhos, leva o teu fragor.
Homem, não espera pela onda, arrisque-se e não se contenha,
comungue tua retórica com o furacão
e desaba tua onipotência inaugureira.

O olho da mente vê o que a gente não quer saber, não há mais tempo,
é só
correr,
correr e
não esperar.

Acabou o medo.
Sou negro e minha pele é marrom
como a pele de Deus.
Sou chinês, sou índio, oriental, e minha pele é pálida, vermelha e amarela
como a pele de Deus.
Sou branco e minha pele é rósea
como a pele de Deus.
O medo e o preconceito são piores do que a doença.

Declina diante do desconhecido e do icognoscível a tua dúvida primacial


e suporta a dor.
A ordem é desmistificar o processo: os círculos se fecham.
Completam-se os círculos e perde-se a noção da reta.

130
Quero esquecer o círculo e participar da eterna e grande reta espiralar,
a verdadeira lei.
Uma punção de lucidez desafia a compreensão do homem e a mulher explica.

O medo destrói a confiança


e o preconceito solidifica o libelo dos autoritários.

Grunhe, ranja, estruma, arrota, tritura as ignomínias, a escuridão será tua.


Eu não.

Mulheres, levantem seus homens para a luta;


homens, sustentem suas mulheres para a roedura das cangas: é agora!

Sejamos aqueles que nunca mais terão medo,


porque entre o sal e a escória,
a garra e a lascívia,
o rastro e o pasto,
o Ser e o Nada,
o Nirvana e o Inferno,
escolhemos o movimento do olho da mente no centro do furacão.
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131
O pontual
1962.
Toca o relógio, levanta da cama, olha o relógio, reclama.
Abre a boca, escova os dentes, olha o relógio.
Põe o sabonete no corpo, esfrega, fecha o chuveiro, olha o
relógio.
1972.
Pedaço de pão corrido, notícia no rádio, horas e
conferência no relógio.
Engole o chá mate e corre pro elevador.
Os segundos demoram.
Bolsa de Valores.
1982.
O escritório, o calor, o patrão, o jornal embrulhado
debaixo do braço.
O relógio. A marmita.
O arroz, a mortadela, a escova de dentes. O relógio.
O frio, o casco, a gravata, a mulher, o telefone, o patrão, o
nariz.
O suor com desodorante passado, o sinal, o fim do dia, o
relógio.
O ônibus lotado, o cheiro de desemprego. O relógio
roubado.
1992.
Roupa amassada. Notícia vista no momento que acontece.
Na frente!
Na hora.
Acorda! Levanta! Olha o relógio! Escova de dentes. Fio
dental. Anda!
Olha o relógio. Elevador que desce. Sapato que aperta.
Metrô. Serviço. Hora.
Patrão barbeado. Gel. Loira digital na mesa da frente.
Morena. Desemprego.
Carteira. Inss. Aposentadoria. Banco. Fila.
2002.
Bolso. Fundo de garantia. Advogado. Tempo. Morte.

132
O Terrível e o
Maravilhoso
(Apud Ariano Suassuna e cantadores nordestinos)

Eis que se encontram o Terrível e o Maravilhoso.


Eles tão no fim de nossa vida, quando todo Ser
Tem finalmente de escolher.
Diz o Terrível ao Maravilhoso: - Esse cabra
Escolheu durante a vida o seu destino
E perseverou não importa em quê.

Viveu com o ardor e a paixão


De um adolescente enamorado.
Sempre elevado, garboso e atacado!
Diz o Maravilhoso: - Esse é meu!
Escolheu o seu destino e não desatinou.
Não duvidou do que fez e acreditou.

Diz o Terrível: - Mas o próximo é meu,


Nunca escolheu, só andou em cima do muro,
Nunca encarou nada de frente, nem pensou no que foi duro.
- Mas então também é meu, diz o Mará,
Porque ardeu em febre santa, trabalhou e confiou temente.
Não vem de sargentão porque eu vou é de tenente!

- Mas isso de andar no muro? Não escolher, ficar no pente?


Só de soslaio, sem ir pra frente, nem pros lacraio?
Isso não é gente, é farrapo e lambisgóio, é sarrafo de finório.
- Té tem razão, por algum lado, mas por outro não tem não.
Os lacraio é perigoso e ir pra frente saboroso,
Pode ser covarde, mas não é de dar alarde.

Mas pois é, fica contigo. Eu já o não quero não,


Num é por ser bondade, nem por sofridão, mas é
Pela covardia e indecisão.
Diz o Terrível: - Desse jeito também num quero,
Dado assim parece trapo, enjeitado feito sapo,
Deixa quieto, assim de lado, que depois a gente trata.

Assim na lata, o Terrível fez um trato com o gaiato

133
E levou ele pro saco. – É , acabou ficando meu,
O que já era meu de fato! Que safado, ma’ que pato!
Filosofa o Maravilhoso: - Que terrível assim viver,
Sem saber o rumo, nem sequer querer,
É melhor ficar na gema que apegar-se ao meio-fumo.

O que importa é estar sabendo e ir querendo


Fazer o certo sobre o incerto, o sabido sobre o doído,
Porque quem sabe não dói, e fica certo o bicho perto.
- Tu tá falando asneira, ô Maravilha! Quem fala desse jeito
Sou eu! Quem foge a vida toda desta encruzilhada, meu irmão,
Um dia vai ter que inevitavelmente escolher! E aí, tá danadão!

- Falo aqui da transcendência, coisa à toa que tu não entende,


Porque o Tetê não cria mundos, nem descobre os que já têm,
Só se enfia no buraco e espera o moribundo sua vida terminar.
- Maravilha de palavra, ó Mará, mas acabou a sua métrica.
Cê ficou sem rima e sem medida e eu aqui gostoso estou.
Sou Terrível, esse é meu nome, e dou cabo de quem bobeou.

- E agora, já que Eu Sou o Maravilhoso,


Vou ficar com este aqui, que no momento de sua morte,
Viu a luz e me escolheu, e cê num tava lá, e eu vi ele e ele é meu.
- É, Mará, até que tu tá certo, esse é teu e ninguém tira.
A vida dele foi buscar e te buscar e te encontrar. Não tem como,
A rede é tua, pega logo esse teu peixe. Mas o próximo é meu!

Que beleza de filó, existencialista que nem ele só,


Nunca creu, nunca valeu um grão de pó, niilista de dar dó!
Cê não me tira este, foi drogado, meditabundo e dogmático!
- Êpa, êpa, meu Tetê! Jogo sujo, isso não. Sem querer você falou
Meditabundo e dogmático: esse cara teve idéias, criou um mundo
E não tirou férias. Acreditou e viveu sua crença, não se entregou.

Dá aqui que ele é meu! Ele buscou o que não era, mas no fundo
Acreditou. Meditabundo e sorumbático, ainda assim vivenciou
Seu tempo e sua comunidade, seu povo e sua genialidade.
O Terrível se enraivece e mostra agora o seu fainal:
- Ô, Mará, digo homem como um ser social, e a sociedade
Vai mal. Se depender desses nego incréu, fico só eu na maldade!

Dá aqui uma palhinha: não é verdade que você

134
Fez acordo com Moché? E o acerto com os Apóst’lo,
Cumé que é? Vai ficar só na saudade, ou é balela pra mocidade?
- Ó, Tetê, fica calado, cê num entende de contrato.
Meu povo me conhece, e quem me busca me apraz.
Pega aí seus arreceio que eu levanto o contumaz.

- Mará, Mará, por mais que fale, quem te ouve?


Por mais que avise, minha sacola é bem mais cheia.
Pode ficar à vontade, que a maioria é de minha grelha.
- Não tem nada não, Tetê, conta farola, sua mentira e cabriola.
Dou a cada um o que é seu. Eu cá os separo em escala e valor.
Essa é a Lei desde os tempo d’antanho e até hoje não mudou.

Quem nunca vadiou, nem vacilou, também nunca amou.


Vai-te longe, tu é do breu, quem quer luz vem até mim:
Eu leio o coração das gentes, sou contente e vivo sim.
E agora, seu Tetê, pego a viola e vou embora,
Porque o dia foi longo e bastante pra cachola.
Fosse você ia já pro seu escuro, esperar meu desafio.

- E quem sou eu, Mará, pra encarar teu desafio?


Eu tenho é raiva e tenho inveja, quero mais gelar seu brio.
Os que me cabe e me sobeja, não tô nem pra lá de reza.
Fico eu na minha ardência, minha querência e safadeza.
Meu direito é do avesso e meu avesso é lerdeza. Mas eu sou
Esperto e ainda agarro muito mundo. Deixa estar, seu Raimundo!
__________________________________________________________

135
Musa.
Inspira teu poeta
e poema para meu coração.

Não ouço o que digo,


o que escrevo,
não entendo o que faço
quando digito,
canto ou
desenho.

Se assim é,
como alcançar
o sentido de meu desejo?

Desconheço teu poder.


Reconheço tuas virtudes.
Concebo a tua voz.

Descreve o inominável
e arranca de meu peito
a tradução.

Assim,
sei,
cilha-me poeta.

136
Quando falei de Rita Lee
Quando falei de Rita Lee
Me perguntaram com surpresa:
- Você gosta dela?
Eu a achava tão singela em mil novecentos e sessenta e nove, e naquele dia respondi:
- Sim, eu gosto de Rita Lee.

Quando falei de Cássia Eller


Me perguntaram com surpresa:
- Você gosta dela?
Eu achava sua voz tão bela em mil novecentos e noventa e nove, e naquele dia respondi:
- Sim, eu gosto de Cássia Eller.

E por que não? Qual a razão do não?

Quando perguntei o porque


Me perguntaram com surpresa:
- Você gosta dela?
Eu achava sua voz tão bela e tão singela em dois mil, e naquele dia respondi:
- Sim, eu gosto. Mas perguntem com a voz de quem quer saber,
não de quem desafia.

Antigamente eu me rolava em explicações


e explicações das explicações,
feito um Talmude.
E ninguém queria realmente saber o porquê.

Não tenho a obrigação de justificar minha heterodoxia.

Quando falam de Rita Lee e de Cássia Eller,


De Cazuza e Legião,
Me perguntam com surpresa:
- Você gosta dela?
Eu a achava tão singela, voz tão bela, inteligente e tal,
em dois mil e um
e neste dia respondi:
- Sim, eu gosto de Rita Lee, Cássia Eller, Cazuza e Legião.
- Mas nós não gostamos por motivos extra-musicais.

Ouço e fico quieto,


deixo o interlocutor falar,
ouvir sua própria voz,
igual minha cadela quando late por latir,
só pra se ouvir.

Quando ele ouvir


Eu falarei,

137
E nesse dia talvez gostará
De Rita Lee, Cássia Eller, Cazuza e Renato Russo.

E eu?
Talvez não.

138
Mônica e Eduardo
Ela disse
Não sabia qto eu era fraca
E alguém lhe respondeu
Você não é fraca, é frágil.

Qual a diferença?

Fraca é a q não tem força para se levantar


Frágil é a q se quebra com facilidade

Ela disse
Sou fraca e frágil

Ele disse
A fragilidade é um dom
A fraqueza uma dor
Ambos existem para nos fortalecer

Ela disse
Vai se danar!

139
A dor escorre
A dor escorre

feito dor no porre!

Tu só escarnece

do q ñ conhece!

Um longo caminho

percorre o poeta na

busca de sua candura

140
Minha medida

Minha medida é pelo tempo,

Não pelo espaço.

Há de se espacializar

Onde apenas se é horizontal

Ou vertical.

Há de se crescer

Como se estivesse numa pinacoteca,

Entre as obras de arte

Da mais rara pulcritude!

Sublimar o terror

Com sensibilidade.

141
DANÇAR CIRANDA Nº.2
Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

Mas se andam muitos vagaluzes,

Soltos na escuridão,

Iluminam nosso caminhar,

Ou não.

Talvez não saibam voltar.

Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

E se são pequenos seus amigos,

Ele não se importa;

O que vale é ser um vagaluz, vagaluz...

Vagaluz, dança o teu balé,

Teu ritmo certo, inconstante!

Voa, voa, vagaluz,

Vaga solto, livre e doido,

Faz teu corpo me encantar,

Faz tua dança me envolver

Em tua luz presente,

Vagaluz, vagaluz, vagaluz...

142
Dança, dança vagaluz,

Vaga luz na escuridão.

Vaga, vaga, vagabunda luz.

Vagabundo vagaluz, vagabundo lume vaga só.

Luz esvoaçante, vagueante e só,

Incompleta, livre e sã,

Vem e encanta o meu olhar.

Vagaluz, dança para os poetas.

Vagaluz, alegria da cidade

Que não se fez vagaluz,

Porque ela é luz parada sem vagar.

Voa, voa, vagaluz.


Vagamundo, lume vaga só.
Vagabundo, vagaluz,
Vagamunda, lume vaga só.
___________________________________________________________

143
Tassiana
O que diferenciava Tassiana
dos habitantes dos barracos palafitados na beira do rio?
Imensos cartazes divulgando riquezas e promessas
encobrem a miséria dos barracos palafitados na beira do rio.

Um pouco de sorte, algum sucesso na vida, e só.


Espelhava-se Tassiana
nos habitantes dos barracos palafitados na beira do rio
e só via semelhança.

Fina casca a distingüia


e Tassiana fazia questão de que essa fina casca aparentasse
um grosso casco tartarugueiro.

E no dia em que Tassiana se formou em Direito,


decidiu ser vereadora, e iniciou sua campanha.
Seus cartazes de promessas de riquezas encobriam
a pobreza dos habitantes dos barracos palafitados na beira do rio.

Tassiana foi eleita por maioria esmagadora


e achou por bem canalizar o rio em que
os habitantes dos barracos palafitados da beira
pescavam. Sem os consultar. E a lei de sua autoria foi aprovada.

Tassiana abandonou a vereança e foi eleita deputada estadual.


Conseguiu fazer passar a lei que desapropriava os terrenos
dos habitantes dos barracos palafitados na beira do rio canalizado.

Tassiana foi eleita deputada federal.


Tassiana foi eleita deputada federal pelo partido que representava
os habitantes arrancados de seus barracos palafitados
nas beiras dos rios do Brasil.

Tassiana, bacharel e deputada federal, conseguiu aprovar lei nacional


que deixa colocar imensos cartazes divulgando riquezas e promessas
para encobrir a miséria dos barracos palafitados nas beiras dos rios do pais.

Os habitantes enxotados de seus barracos fizeram


outros barracos em rios ainda não canalizados, e
pescam enquanto a deputada Tassiana não os ver.

A deputada federal quer virar senadora e depois diplomata,


e quem sabe presidente do Brasil, coroando
a sua carreira política.
Tassiana, a deputada federal, bacharel em direito e potencial senadora,
quer engrossar sua fina casca de distinção,
mas a única grossura é ainda de sua educação.

144
Tassiana ainda não aprendeu o que é representar
os habitantes dos barracos palafitados na beira do rio,
porque ela quer esconder o fato de que poderia também ter sido
habitante de um barraco palafitado na beira de um rio do Brasil.

145
¿O q ficou
entre Kafka e Rimbaud?
Meus pobres versos desentendidos

E perdidos num passado distante etc.

Nada + há q dizer!

Quando eu peço o q eu quero

É + do q eu peço,

Porque o q eu quero é +

E ñ tenho tanto assim.

Você me estranha

Entre o palco e a aranha.

Desculpe se me desculpo tanto,

Mas é q vivo explicando

E tentando achar respostas

P/a o q nunca existirá.

Penso q há pessoas q se grudam

E se fazem completas num lugar d nada,

Saem

E se descontraem.

Aí, o preço da batatinha sobe,

O preço do aplique e do vestido.

146
Mana broda, é tudo tão frágil!

Nossa negritude é > q nossos olhos europeus,

Graças a Deus.

147
A gafe
O vexame
A vergonha
Nascem das regras de etiqueta
Que nos libertam das decisões.

O que não tem importância?

Quero cometer a gafe!


Quero dar vexame!
Não existe a gafe
Nem o vexame.
Só a vergonha de saber que existe
Uma etiqueta.

Ela nasceu para a convivência


E sobrevive a pressionar
E separar
Cada um de nós de nós...

148
A Ioga do Vento
Lançamento nacional:
A Ioga do Vento!
O amor e a vida
transpõem
o passado e o futuro
E carregam
em suas mãos
o conhecimento.

149
AS HORAS SELVAGENS
Quem não conhece o inesquecível?
Irresistível, o que não se arranca da cabeça!
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você. São as horas selvagens.
A fúria e as sombras
Dão a primeira enxadada
E um ninho de cobras
Surge, de repente, sobre a terra!
Elas vêm das trevas
Trazem a morte e a doença.
É hora de morrer e olhar
E de ficar morrendo aos poucos.
Eu sinto dor e sofrimento,
Eu sinto, mas não vejo!
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você.
São as horas selvagens.
Posso sentir o que você está pensando.
Posso sentir o que você está querendo.
Posso sentir o que você está sentindo.
São as minhas horas selvagens!
Eu sinto, mas não vejo.
Sinto, mas não ouço.
Sentir é dentro do corpo inteiro,
De dentro para fora.
De dentro para fora.
Você não fica dominado, ninguém te doma!
Você não fica domado, ninguém te domina!
Mas é como se ficasse coberto
De dentro pra fora!
De dentro pra fora.
Eu posso sentir os seus sonhos.
Estou perto de você.
São as horas selvagens.
Posso sentir o que você está pensando.
Posso sentir o que você está querendo.
Posso sentir o que você está sentindo.
São as minhas horas selvagens!
A violência arrebenta
E eu estou ficando desesperado!
E eu falo Ossia Ossia Ossiam!
E as cobras insurgidas das trevas,
Os corvos insuflados pelas sombras
E os abutres emergidos da morte
Se transformam em pombas,
Negras pombas da paz.

150
Fecha a boca e abre os olhos,
que eu vou te contar uma coisa:

a Festa do Camarão já começou.

Eu sei que você detesta camarão,

mas que tenho eu a ver com isso?

Camarão,

tem gente querendo te devorar...

Faz de conta que não é contigo,

arrebenta

o que há de podre no escuro

e se explode.

Do profundo mar nascem as espumas

que trazem Vênus,

e também você,

cujo cheiro entope minhas narinas

e meu sossego.

151
O cão
Observo o cão de minha casa.
Ele não sabe quem foi Getúlio, Gêisel, ou Garrastazu.
O cão de minha casa vive.
Ele não participa da ilusão do tempo.
O cão de minha casa é um sábio, pois não se ilude com a passagem
do tempo.
Ele sabe o seu e que um dia acabará.
Sem início, meio e fim, como se fosse um instante.
No infinito.
Observo meu cão.
Meu cão.
Cão.
_______________________________

152
PULSA,
CORAÇÃO,
PULSA,
NUM ETERNO FEEDBACK
EMOCIONAL.
Santos,1981.

153
Por onde anda hoje você?
Por onde você tem andado? Comentado [LL1]: Aqui um par de versos introduz um
ritmo para a canção que se segue.
Comentado [U2R1]:
É tanta hoje a leviandade.

Temo com pavor o seu cuidado.

E a gente assim com tanta saudade...

Quase um certo horror de ser amado.

Oh, meu amigo,

Por onde anda hoje você?

Por onde você tem andado?

Faz tempo que a gente não + se vê. Comentado [LL3]: O ritmo se renova aqui.

Você fazia aquela cara de contente.

O mal e o bem, o bom e o mau,

Nada tão excelente.

Mas qual!!!

Você sabia tudo o que havia pra se saber.

Parecia que o redor em nós era tão coerente.

Você vivia muito o que queria que fosse acontecer.

E a gente acreditava que nunca passaria o presente

E nos trairia. Comentado [LL4]:

Por onde anda hoje você?

Por onde você tem andado?

Faz tempo que a gente não + se vê. Comentado [LL5]: Tal parece um estribilho. E é.

Você e eu

E a gente sempre vivia

154
Cada dia mais pra frente.

Incansável,

Indolente,

Amável,

E a gente parecia até

Meio independente.

155
Um dia eu acordei
Um dia eu acordei e percebi que havia sido enganado por
todo aquele tempo. Nunca existira dinossauros, muito menos, é
claro, o Elo Perdido.
Por toda minha vida fora embalado pelos sonhos da
arqueologia, que mostrava-se tão perfeita e maravilhosa, tão
incólume e sábia, tão altiva e generosa, tão embriagadora e
formosa, não havia como desconfiar. E no entanto tudo era
mental!
Foi assim. Eu dormia saborosamente, mas acordei ainda com
o dia escuro, um dia ainda não nascido, um dia que iria clarear.
Subitamente, recebi um sinal de que tudo o que acreditara até
então havia sido uma enorme, grandiosa, gigantesca máscara da
realidade.
Sim! Eu vi o quanto fora enganado por todos aqueles anos!
A história, que sempre me fora apresentada numa elegante toga
branca, com olhos no infinito horizonte da busca, morrera
assassinada!!!
Não, nunca morre aquele que ainda não nasceu, não vive
quem não tem nascido, por isso mesmo não tem como morrer. A
arca do tempo, como fora apresentada durante toda a minha vida,
na verdade nunca existiu. Foi apenas um conto-de-fadas para
que eu pudesse dormir meus sonos e sonhar acreditando que tudo
tem uma explicação razoável, racional e perceptível aos
sentidos, quero dizer, aos cinco sentidos principais de nosso
físico.
Naquele dia eu acordei e percebi que nunca existira
dinossauros. Todos os bonequinhos que colecionei, montei,
aprendi, os nomes dos tiranossauros e pterodactilos, todos
falsos, moedas de três dinheiros, perdera-me entre os nomes de
gêneros e espécies que nunca existiram de fato, apenas na
imaginação de cartesianos e aleivosos dialecticos. Tudo
mentira, apenas um pano de fundo. Pensei, naquela hora, se
apenas eu estava sendo enganado. Será que não todo mundo? Todas
as pessoas estavam sendo enganadas? Ou será que alguns eram
por outros? Ou um grupo de gentes se apartam do populacho, e
escondem para si o que creem verdadeiro, dando aos restantes
uma ideia bem formada? Propagam pelas universidades e centros
de saber que a grande sabedoria é científica, e que a
cientificidade é a que prova a existência dos dinossauros.
Mas... e se não for? E se apenas a imaginação dos
arqueólogos responsabilizou-se pela interpretação do que
achava, e decidiu que cada montículo de ossos achados aqui e
ali, formavam um único animal representante de toda uma raça?
E se cada exemplar dos encontrados foi apenas um animal
156
defeituoso, ou uma pequena raça que se perdeu, sem deixar
sucessores? E se os mamutes foram animais criados no mesmo
tempo que os elefantes, tendo sobrevivido apenas estes últimos?
Dirá talvez um ser daqui a um século que o macaco-prego é o
antecessor do gorila, e este o sucessor do homem. E olha que
ainda não cheguei na mulher! Será que o homem vem do macaco-
prego e a mulher da gata-angorá? E um dia o macaco-prego se
deixou engraçar pela gata-angorá, e uma talvez mutação genética
fez nascer o primeiro exemplar dos mauricistas. Então, os
mauricistas se generalizaram e se subdividiram em maurícios-
de-sousa e mauricinhos. Os primeiros estão se estinguindo, não
encontram mais tanto campo para se alimentar, caso não haja um
rápido movimento de ajuda, estarão em breve condicionados a
pequenos espaços. Os segundos, pelo contrário, de tão
protegidos pelos órgãos governamentais, tornam-se uma peste,
uma espécie já predatória. O que salva os mauricinhos de serem
tão predatório são as patricinhas, uma variação que reúne os
melhores genes do macaco-prego e da gata-angorá. Apesar das
patricinhas serem tão renegadas pelos maurícios-maiores,
dentre os quais está a espécie já citada anteriormente dos
maurícios-de-sousa, elas se conservam e se multiplicam pela
sua capacidade em formarem, junto com os mauricinhos,
agrupamentos familiares, o que garante a sua sobrevivência.

157
Sangue
Eu bebo
Na forma d suco d morango
Nest final d manhã no
Sanatório

Mal, acordei muito mal,


Tomei ansiolíticos e litium etc voltei a dormir
Deitei no chão e dormi até sonhar
C/ minha cadelinha pretinha

Do meu lado um colega toma uma coca


e um troço c/ quetichupi
Indiferente ao q toca nos meus ouvidos

Nos fones de ouvido d meu tocador d cedês


Ouço Centurion
Tentando acordar p/a o dia
Lindo.

Enquanto ainda acordo


e o ansiolítico me levanta
A música me desperta
Continuo lentamente a sorver o sangue

158
d morango do vale
Nest final d manhã
do baihaus.

E o rock rola nos meus ouvidos


Só nos meus ouvidos
Me desbaratinando do barulho
dos homens na mesa de bilhar
No baralho
E nas suas vozes.

159
Como vai, garoto?
Ah, não se avexe, não se apresse, não me queira

enganar.

Eu sei

Que a verdade é uma toalha que se põe sobre o

corpo nu.

E você sabe que o medo é que te faz perder

E se mostrar de corpo inteiro no espelho para ver

O quão é grande a sua barriga!

É, garoto,

Você ainda vai, qualquer dia desses, para o Pinéu

(ou pro Bairral)

Porque vão dizer que você é tão louco que se

mostra nu.

Mas é bom, garoto, para mostrar-se inteiro e dizer:

- Eu sou eu! E estou aqui!

E assim você coloca todos eles até

Debaixo de teu pé

Dá um sorriso doce e professoral

160
E diz: - Tchau!

161
Há a asa nº. 2
Há a asa azul
Há a asa amarela
A asa sua partiu
A minha asa singela
Há a asa verde
Há a asa aérea
Quando te faço um flerte
É por uma camélia.
Há a asa ao céu
Há a asa ao léu
Há a asa aberta
Há a asa coberta
Minha asa partiu
Por sua asa singela.

162
Vagaluzes

Voa, voa, vagaluz.


Vagamundo, lume vaga só.
Vagabundo, vagaluz,
Vagamunda, lume vaga só.

Mas se encontram muitos vagaluzes


Soltos na escuridão,
Iluminam nosso caminhar, ou não.

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