Você está na página 1de 83

MATRIX

E OUTROS FILMES
E TEXTOS ANALISADOS

LEOPOLDO PONTES

Todos os direitos reservados


© 2001
_________________________________________________________
_________

- A senhora não sabe que na hora do almoço deve estar em


casa?
Quis explicar-lhe – o que, nem sei – mas ele não permitiu:
- Cale a boca! Quando eu falo não admito respostas...
- Mas, Papai!
- Cale a boca, já disse...
- Mas...
- Cale-se!...
Senti-me invadida por um sentimento de revolta, veio-me à
cabeça uma frase anarquista que ele gostava muito de recitar. Não
vacilei, levantei-me da mesa, encostei-me à porta e larguei o verbo,
com a mesma entonação com que havia aprendido, com o mesmo
dedo em riste que ele empregava:
- “Quando la fórza e la ragion contrasta, vince la fórza, la
ragion non basta!” – e escapuli-me pela casa adentro.
Preparada para receber a primeira surra de meu pai, fiquei
esperando lá no quarto de mamãe. Eu abusara desta vez, excedera-
me, enfrentando-o. Quem teria a coragem de afrontá-lo daquela
maneira? Nem mesmo mamãe!
Não demorou muito, apareceu Vera, ainda assombrada com
o que acontecia:
- Papai mandou chamar você para ir almoçar, disse que a
comida está esfriando.

(Zélia Gattai. Anarquistas, Graças a Deus)


____________________________________
Sumário
Primeiro texto: “Mocidade e Morte”, poema de Castro Alves............................................................4
PROÊMIO.......................................................................................................................................4
I............................................................................................................................................................4
Da Escolha do Poema:.....................................................................................................................4
Em Si e o Porque de Si....................................................................................................................4
II..........................................................................................................................................................5
Da Análise do Texto Escolhido.......................................................................................................5
Intermediada pela Teoria.................................................................................................................5
MOCIDADE E MORTE.................................................................................................................5
E perto avisto o porto..................................................................................................................5
IV.......................................................................................................................................................12
De um Singelo Cotejamento..........................................................................................................12
V........................................................................................................................................................18
Será que foi isto que o Autor quis mostrar?..................................................................................18
VI.......................................................................................................................................................18
Possêmio........................................................................................................................................18

Segundo texto: Conto “O Medalhão”, de Machado de Assis............................................................20


Análise e Comentário do Conto....................................................................................................22
Teoria do Medalhão, de Machado de Assis..................................................................................22

Terceiro texto: Letra da canção “Por Enquanto”, de Renato Russo..................................................27


Relações de sentido:......................................................................................................................28

Quarto Texto: o negro e o preto; o vermelho e o rubro.....................................................................31

Quinto texto: filme “Crossroads”(A Encruzilhada)..........................................................................33


1986, EUA, Dir. Walter Hill,............................................................................................................33

Sexto texto: filme “The Matrix”, com Keanu Reeves.......................................................................42

Sétimo Texto: filme “Luz del Fuego”...............................................................................................47


Brasil, 1981/2 (?), direção de David Neves, roteiro e diálogos de Joaquim Vaz de Carvalho.........47
No elenco, Lucélia Santos (Luz del Fuego), Walmor Chagas (João Gaspar), Ítala Nandi (mulher de
Gaspar), Wilson Grey (Heleno), Guilherme Karan (travesti), Tamara Taxman (Yara Satã), Cecil
Thiré, Mariana de Moraes e Monique Lafond, entre outros ............................................................47

Oitavo texto: FILMES “CARLOTA JOAQUINA” e “NASCIDO EM 4 DE JULHO”...................50


TEXTOS QUE MOSTRAM O ESPÍRITO DEFLAGRADO NO BRASILEIRO.......................59
JOSÉ ESTÊVÃO COELHO DE MAGALHÃES.........................................................................59
HERÓIS!............................................................................................................................................59
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1827/1886).......................................................60
TEXTO QUE MOSTRA O ESPÍRITO DEFLAGRADO NO ESTADUNIDENSE....................61
JOHN F.KENNEDY.....................................................................................................................61
Observações:.................................................................................................................................62
Primeira: É como a história de Gandhi:........................................................................................62
Segunda: o trato social entre os brasileiros...................................................................................63
Observação: trabalhar com filme na sala de aula..........................................................................64

Nono texto: RESENHA de “O Modelo dos Modelos”, de Ítalo Calvino..........................................66

Décimo texto: “Processos de Organização do Texto”, de Elisa Guimarães......................................70


Décimo-Primeiro texto: “Notas para uma Didática do Português”...................................................75
Posfácio.............................................................................................................................................77
Bibliografia........................................................................................................................................78
SOBRE O AUTOR...........................................................................................................................82
Primeiro texto: “Mocidade e Morte”, poema de Castro
Alves
PROÊMIO

Marisa Lajolo e Samira Campedelli escreveram: “E o poeta


falece... fortalecendo dois mitos românticos: o do poeta tuberculoso e o
da morte precoce. Morreu na Bahia, mas continuou a viver no coração
do povo brasileiro, para quem seus versos ensinam os caminhos da
liberdade e do amor.”1

Há um narrador? Este que se pode projetar pelo Eu.

Dentro de uma proposta de análise, podemos buscar um


estado inicial da peça poética, onde se apresenta um cenário,
personagem ou grupo de personagens, harmônico no sentido de
completude, não necessariamente equilibrado, mas delimitante de um
assunto, de um lugar, de uma situação.

Do inicial, passamos para o estado contrário, onde se discute


o anterior, conflitando-se, de categorias positivas e negativas
(eufóricas e disfóricas, ou também eufóricas e não eufóricas, ou ainda
disfóricas e não disfóricas, etc), para se chegar ao fim, à conclusão, um
estado que sintetiza o que se passou, não necessariamente o resultado
esperado, matemático, porém dialético, segundo o que leva o Autor a
crer que será aquele o resultado que se deve aguardar.
I
Da Escolha do Poema:
Em Si e o Porque de Si

Mais que tudo, a forma do poema tem me atraído pela sua


semelhança com outros, e seu espírito o mesmo tanto. Ler Mocidade e
Morte é reler diversos autores, tamanha a ocorrência de historicidades
possíveis.

1
ALVES, Castro. Seleção de Textos, Notas, Estudos Biográfico, Histórico e Crítico e Exercícios
por Marisa Lajolo e Samira Campedelli. Da coleção “Literatura Comentada” . São Paulo. Abril
Educação, 1980.
Trata-se de uma escolha, entretanto, puramente pessoal,
unívoca, sem motivos mais que prazerosos, não pela tragédia em si,
mas, como já disse, pelo seu ritmo, sua profundidade e beleza plástica.

II
Da Análise do Texto Escolhido
Intermediada pela Teoria

Faremos a análise junto com o poema.

MOCIDADE E MORTE

O título era pra ser “O tísico”, dizem alguns. Naturalmente, se assim o


fosse, não teria a mesma força, o mesmo impacto e beleza.

E perto avisto o porto


Imenso, nebuloso, e sempre noite
Chamado – Eternidade. –
Laurindo

Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.


Dante

O poeta, cá, cita Laurindo Rabelo como a mostrar que a morte é ponto
de chegada e sempre escura, triste. Depois, cita Dante Alighieri,
quando este fala do inferno na sua famosa trilogia, mais lembrada que
lida, A Divina Comédia. O fragmento por Castro Alves citado diz algo
em torno de: Deixai do lado de fora toda a esperança, vós que entrais.

Ao longo do poema, percebe-se um materialismo do poeta,


mencionando alma somente com um sentido simbólico do amor físico
e da vida, nunca teológico ou metafísico. Dante foi lido por Cecéu
como um Autor literário, mas a citação de um trecho de uma pretensa
visita aos três locais para onde as almas podem ir após a morte é
apenas maneira de emoldurar com um discurso autorizado a verdadeira
opinião do Poeta do Povo, a qual irá se apresentar após os por ele
considerados os seus mestres inspiradores para o que se segue.
Engano, porém, será nos atermos aos sentidos originais das citações,
sendo melhor despi-las de seus contextos e trazê-las ao universo do
poeta baiano.

Oh! eu quero viver, beber perfumes


Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh’alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n’amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
-Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.

Eis na primeira estrofe a categoria positiva, eufórica, mostrando as


belezas e prazeres da vida. É o estado de liberdade, do aproveitar o que
existe sobre a terra.

Mas uma voz responde-me sombria:


Terás o sono sob a lájea fria.

O poema é drasticamente cortado pela negação do estado plácido


anterior, vida versus morte, isto é, uma categoria positiva, eufórica,
seguida por uma não-eufórica, se administrarmos o sentido de morte
como não-vida. Analogamente, movimento versus repouso.

Morrer... quando este mundo é um paraíso


E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher – camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas,
Minh’alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...

Aqui na Segunda estrofe o poeta começa a trazer para o edênico estado


de vida alguns elementos significativos da morte. Assim, seu primeiro
verso já apresenta a dicotomia entre morrer e paraíso. Eis que o Autor
não dá sentido espiritual à morte, embora já lembre ao leitor do prazer
da vida no Éden, ligando esse prazer ao mundo.
Então, nos versos consequentes, o poeta busca a fuga da morte
inexorável nas comparações das delícias terrenas.
E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: - impossível!

Novamente, o refrão fatídico, como se fosse o próprio diabo a chamar


o poeta como se este já se condenasse: um cristão católico devoto ou
um ateu?

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.


Vejo além um futuro radiante:
Avante! – brada-me o talento n’alma
E o eco ao longe me repete – avante! –
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após – um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária:-


Teu Panteon – a pedra mortuária!

Neste ponto, a contradição retorna após uma discussão mais


metodizada. As categorias positivas se encaixam todas na estrofe
maior. O refrão disfórico é a tônica dos dois versos geográfica e
aparentemente isolados no texto.
Dizer que sente o borbulhar do gênio em si é falta de humildade? Não,
é constatação pessoal de sua própria capacidade criativa. Castro Alves
tinha a sensibilidade à flor da pele, traduzindo-a em seus versos. Mas
se a tinha para os versos, a deveria também possuir para a sua própria
vida, e dessa forma, não podendo reter a sua própria sensibilidade
junto ao cotidiano, somatizou na tuberculose, o mal do século, doença
que atacava os que buscassem a vida num sentido maior. Cecéu talvez
praticasse superficialmente a religião católica, mas tão só como um
verniz social, aliás nem social, pois sua relação com Idalina e depois
com Eugênia revelavam essa contradição interior. Tinha, sim,
indagações espirituais, porém mal resvalavam pela prática religiosa,
apenas deslizavam por vocábulos indecisos. Quando dizia alma, o
fazia como sentimento, coração apaixonado amoroso ou paixão por
ideias, era forma de mostrar um ímpeto de revolução, fosse política,
social, ou como expressão de si mesmo. Che Guevara teria sido um
revolucionário como Castro Alves, se ao invés de pegar em armas o
fizesse numa pena e tinteiro. A sensibilidade de Castro Alves dava-
lhe a necessária vidência do poeta, pelos meios propugnados pelos
então futuros decadentistas franceses, sentindo o baiano que seu nome
e sua obra seriam conhecidos após sua morte, sabia que seria
reconhecido também após o túmulo, sabia que seria tão ou mais
aplaudido do que já era em sua vida. Mas não confiava que veria seu
sucesso após a morte, não mostrava crer na vida após a morte, não via
nesta mais que o simples findar dos prazeres.

Morrer – é ver extinto dentre as névoas


O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado – escutar dobres de sino,
- Voz da morte, que a morte lhe lamenta –
Ai! morrer – é trocar astros por círios,

Entope o leitor da imagem da morte, através da palavra em suas várias


formas e figurações. A categoria negativa, disfórica – morte – se
sobrepõe a tudo nesses cinco primeiros versos desta estrofe, mesmo
quando não se diz o vocábulo: extinto dentre as névoas, escutar
dobres de sino, lamenta, círios... Até a ideia da Voz é fatalista.

Leito macio por esquife imundo,


Trocar os beijos da mulher – no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.

Eis, cá, novamente, continuadamente, a ideia da morte como


desprazer, quando o poeta diz estar trocando o leito macio por um
esquife imundo, os beijos da mulher pelo visco da larva. Creio estar
achando novo elemento, um não-eufórico, ao constatar, não o não-
prazer, mas o desprazer, ao lado do prazer, i.e., o esquife (não-
eufórico) e o leito macio (eufórico), o visco da larva (não-eufórico) e
os beijos da mulher (eufórico).2

Ver tudo findo... só na lousa um nome,


Que o viandante a perpassar consome.

2
Pode ser os beijos da mulher sob o visco trocados pela larva, dependendo se a palavra visco
estiver no sentido figurado ou não.
O mote, o refrão, altera suas palavras mantendo o espírito. É sempre
disfórico, morte como fim e ausência dos prazeres, contrapondo-se à
vida como desfrute de prazeres.

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito


Um mal terrível me devora a vida:

A tuberculose. O mal devora a possibilidade de se entregar aos


prazeres da vida.
Sempre disfórico.

Triste Ahasverus, que no fim da estrada,


Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu’inda mesmo flórido,
Sombra de morte no ramal encerra!

Inconsolável, o poeta só vê a morte, ainda que em vida. É o disfórico


contrapondo-se agora ao não-eufórico, depressão total!

Vivo – que vaga sobre o chão da morte,


Morto – entre os vivos a vagar na terra.

Não vê mais a vida lhe restando, só a iminência da morte. Continua


depressivo.

Do sepulcro escutando triste grito


Sempre, sempre bradando-me: maldito! –

Olha aqui o corvo de Poe: Never more! Castro Alves criou também o
seu corvo, mas este é incorpóreo e lhe grita: maldito!

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,

Esse Deus para quem o poeta clama é o mesmo Deus dos desgraçados
d’Os Escravos. É a quem ele pergunta: por quê? Por quê? E no
presente caso, “por que eu, na aurora da existência?”

Quando a sede e o desejo em nós palpita...


Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida – novo Tântalo –
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O ‘stilete de Deus quebra-me a taça.

Culto e erudito, Castro Alves usa e abusa de imagens clássicas para dar
a ideia de degradação da matéria. São ideias tiradas da Bíblia – o
dourado pomo, o fruto podre, Asfaltita (Mar Morto) – e da Mitologia
Greco-Romana – o Tântalo, rei que morreu de fome e sede tendo à sua
volta muitos alimentos e água. Assim, o poeta demonstrava sua dor,
sentindo os prazeres à sua volta, ao alcance de sua mão, porém já
destituídos de sentido, pois a morte lhe era iminente e inevitável.

É que até minha sombra é inexorável


Morrer! morrer! soluça-me implacável.

Novamente a fatalidade, a predestinação, como a dizer sempre: faça o


que quiser, estarei aqui durante todo o tempo, será inevitável o fim,
não há como retardá-lo, é já! O choro (soluça-me) de sua sombra é a
imagem do desespero. Retorna o discurso disfórico puro!

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!


Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!

Volta o não-eufórico, a categoria positiva negada, o não-prazer, mais


que o desprazer, a ausência, o vazio, pior talvez que o próprio negar,
pois é a ausência, a omissão.

Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga


Os prantos de meu pai nos teus cabelos.

A imagem de sua irmãzinha querida, Adelaide, aparece junto com a de


seu já falecido pai.

Fora louco esperar! fria rajada


Sinto que do viver me extingue a lampa...

O frio é a morte, a vida a luz. Há uma disforia: fria rajada; há uma


euforia: viver; há uma não-euforia: me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro – a terra
Por glória – nada, por amor – a campa.

Vida – não vida;


futuro – terra : euforia - não-euforia;
glória – nada : euforia – não-euforia;
amor – campa : euforia – não-euforia.

Adeus! arrasta-me uma voz sombria


Já me foge a razão na noite fria!...

A imagem do abandono: Adeus!


Que voz sombria é essa que o arrasta, incorpórea, inominada? É a
portadora da morte ou a própria morte?
A razão é, na figuração castrina, apenas possível enquanto na vida,
imagem eufórica, e a noite fria uma disforia exasperante e uma não-
euforia tanto quanto, unindo os dois elementos de sua desdita: a noite
escura, tenebrosa, vazia, disfórica, e a ideia de fria, como ausência de
calor, não-vida, portanto, e assim, não-euforia. Se fosse católico
praticante, e pensasse num inferno, seria escuro e quente (infernal); se
pensasse no paraíso, seria claro e fresco (celestial).
Um equilíbrio existia quando a categoria positiva dominava a Primeira
estrofe!
De lá, o refrão fatalista iniciou uma dialética.
A Segunda estrofe começou a discutir as ideias vida-morte e desfrute-
vazio.
A Terceira estrofe busca desesperadamente o retorno ao equilíbrio
inicial, mas o refrão volta a chamar para a fatalidade.
A Quarta estrofe insere justamente o desprazer, nova figura, o não-
eufórico, dispondo-se como terceiro elemento, complementar ao
eufórico e ao disfórico.
A Quinta estrofe continua a discussão, retendo agora o disfórico e o
eufórico se contrapondo, mas também estes, cada qual, com o terceiro,
o não-eufórico.
A Sexta estrofe aparenta, a uma primeira vista, uma acomodação
conformista, mas é na verdade um inconsolável perpassar de olhos ao
que já pôde conhecer em seus anos. É a ideia da conclusão iminente, a
síntese que se antevê.
A Sétima estrofe confirma a estrondosa síntese fatal, retomando o
equilíbrio da Primeira estrofe. Mudou do Eufórico para um patuá
formado por imagens disfóricas e não-eufóricas, ambas se contrapondo
às eufóricas.

1864.

Castro Alves morreu em 1871, sete anos depois do poema escrito.

IV

De um Singelo Cotejamento

Há similaridades entre o espírito dos poemas de Castro


Alves com os dos poetas de seu tempo, advindos de outras plagas,
assim como de clássicos ou do passado então recente. Vejo-as não só
com os autores que ele mesmo cita como seus inspiradores, no caput
de diversos poemas, porém mesmo com alguns que parecem estar no
inconsciente coletivo dos intelectuais daqueles dias.

Vejo a pouca distância ocupada por exemplo entre o Poeta


do Povo e o francês Arthur Rimbaud: um fogo interior e contaminador,
refletor de todo um ímpeto jovem/juvenil; obras cantantes, musicais,
versos que soam à música, mesmo se livres ou não símiles com as
composições de seu tempo; ambos tiveram um curto período de
produção, Castro Alves até os 24, idade de seu triste passamento, e
Rimbaud dos 16-17 aos 20-21, quando morreu para a poesia, embora a
tenha vivido, quiçá, em outras formas, como nos daguerreótipos.
Infeliz coincidência: ambos perderam uma perna, o primeiro
aproximadamente um ano antes de morrer, o outro no período
infrutífero, na África. Há, todavia, uma lancinante e flagorosa escarpa,
levando o poeta brasileiro a píncaros jamais alcançáveis pelo jovem
francês: Castro Alves não se escondia atrás de símbolos indecifráveis,
poetava ao sabor popular, suas obras eram recitadas, principalmente na
Bahia, ainda durante os anos de nosso século, por pessoas que sequer
sabiam ler e escrever, mas que as decoravam oralmente; romântico no
mais puro sentido do termo, se considerarmos romantismo um viver do
ideal, um querer acreditar, um lutar por ideias.
Deixa-me ocupar algumas linhas de exacerbação
apaixonada! Impossível falar de Castro Alves sem arrebatamento.
Quem assim o faz, é porque nunca compreendeu o poeta. Sejamos
parciais, sejamos puros, sejamos crentes, sejamos felizes! Sem tal,
nunca entenderemos a poesia. Enquanto Rimbaud apenas desmontava
as crenças da burguesia, sem apresentar soluções, embebendo-se das
drogas da época, o Condoreiro empunhava bandeira, seguia o caminho
dos inconfidentes. Os decadentistas franceses buscavam as flores do
mal, o diabo; Castro Alves clamava por Deus e pela liberdade, e no
leito de morte, pediu para que lhe abrissem as janelas ao sol do meio
da tarde: os primeiros, cultuavam a destruição; o segundo, a vida.

No prólogo de Espumas Flutuantes, no terceiro parágrafo,


Castro Alves inicia escrevendo, em fevereiro de 1870: Longe, inda
mais longe... os cimos fantásticos da serra dos órgãos embebiam-se
na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio
celeste. Estará citando Rimbaud? Ou o nascido na Gália o fêz? Ou a
Musa Inspiradora adornou as mentes de ambos poetas com o mesmo
verso? Ou é mera imaginação pessoal? Vejamos o poema do francês:

SENSAÇÃO

Pelas tardes azuis do estio, pelo caminho irei,


Fustigado pelos trigais, tocando a erva miúda:
Sonhador, em meus pés o frescor sentirei,
E deixarei o vento banhar minha fronte desnuda.

Já não falarei, ne’ em nada pensarei:


Mas o amor infinito n’ alma, quando vier,
Longe, bem longe, como um boêmio irei,
Pela Natureza, -- feliz como com u’a mulher.
Março 1870.

SENSATION

Par les soirs bleus d’eté, j’irai dans les sentiers,


Picoté par les blés, fouler l’herbe menue;
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l’amour infini me montera dans l’âme,
Et j’irai loin, bien loin, comme um bohémien,
Par la Nature, -- hereux comme avec une femme.

Mars 1870.

Aqui, o original. A tradução é pessoal. Não é a melhor,


porém é minha, portanto a que me satisfaz em maior grau dentre as
que já vi: essa a razão por estar ela, não outra. Mas, tratando-se este
de um trabalho acadêmico, sinto-me obrigado a citar outra, de Paulo
Villaça:

Nas noites de azul verão, sairei caminhando,


fustigado pelos trigais, tocando ervas macias.
Sonhando, sentirei frescos meus pés
Desprotegido, deixarei que o vento inunde meus cabelos

Não falarei, não pensarei


Mas todo eu serei infinito amor
E como um cigano, feliz, seguirei longe, muito longe,
pelos caminhos da Natureza: homem-mulher.

A meu ver, tal versão aparenta-nos hábil e insolente, mas


parcial, típica do final dos 1970, início dos 80, tendo saído num seu
artigo, numa revista daquele tempo. Mas é uma belíssima versão.
Rimbaud não fala de amor, a não ser nas Primeiras Prosas,
antes de sua ida a Paris. Ainda que aparente simples pulcritude
romântica, ao leitor ingênuo, em seus versos, há um sadomasoquismo
visível, como por exemplo em A Virgem Louca e o Esposo Infernal,
onde interpretam os rimbaudianos como tendo sido escrito sobre o
feroz relacionamento amoroso entre o parnasiano Verlaine e o enfant
terrible em questão. Já Castro Alves faz o prontuário de Eros, ou ele
mesmo, quiçá, é o próprio:

Teus olhos são negros, negros,


Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

(...)

Teu sorriso é uma aurora


Que o horizonte enrubesceu,
(...)

Teu seio é vaga dourada(...)

(d’O Gondoleiro do Amor)

Porém, o ímpeto da juventude, da revolução, é o mesmo nos


dois poetas. O espaço cá é pequeno para copiar, mas basta lembrarmos
das estrofes d`Os Escravos e compararmos com as, por exemplo,
seguintes, de Uma Estação no Inferno (versão pessoal):

FOME (Faim)

Eu só sinto certo gosto


Pela terra e por pedrisco.
Matinal de ar eu quero
De pedra, carvão e ferro.

(...)

Que eu durma! E que eu ferva


Nos altares de Salomão.
(...)

NOITE DO INFERNO

Tomei uma grande dose de veneno. – Que seja três vezes


aclamado o conselho que me chegou! – Ardem-me as entranhas. A
violência do veneno tritura meus membros, me converte em disforme,
me derruba. Morro de sede, sufoco, não consigo gritar. É o inferno, as
penas eternas! Veja como levanta o fogo! Queimo como é devido.
Venha, demônio!
Havia vislumbrado a conversão ao bem, à felicidade, à
salvação. Posso descrever a visão. O ar do inferno não suporta os
hinos. Eram milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto
espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, eu que sei?
As nobres ambições!
E no entanto isto é a vida. Sim, a condenação é eterna! Um
homem que quer se mutilar está condenado. Sério? Creio no interno,
logo estou nele. É a execução do catecismo. Sou escravo de meu
batismo. Padres, vocês fizeram a minha desgraça e a vossa. Pobre
inocente! O inferno não pode atacar os pagãos! – No entanto isto é a
vida! – Mais tarde, as delícias da condenação serão mais profundas.
Um crime, súbito, que eu caia no nada conforme a lei humana.
(...)

Castro Alves publicou O Navio Negreiro alguns anos antes


de Rimbaud escrever O Barco Ébrio (Le Bateau Ivre – provavelmente
de 1872). O primeiro é declaradamente político, com preocupações
sociais, deflagra bandeira, solta o verbo e canta! O segundo é
mesquinho, embora ouse na pancadaria, num tempo em que os poetas
franceses ainda se deixavam encantar pelo Parnaso... Rimbaud caiu
desse edênico local para entre os decadentistas, e de lá aflorou como
um príncipe/rei do Simbolismo.

O poema em questão, por nós analisado, o belíssimo
Mocidade e Morte, lembra-me bastante d`O Corvo, de Edgar Alan
Poe. No refrão de Poe, canta o corvo: Never more! Never more!, que,
traduzido por Machado de Assis, ficou Nunca mais! Nunca mais! Ora,
o poema castrino tem a mesma latitude, uma fatalidade iminente:

(...)
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.
(...)
E a mesma voz repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: - impossível!
(...)
E a mesma voz repete funerária: --
Teu Panteon – a pedra mortuária!
(...)
É que até minha sombra é inexorável
Morrer! morrer! Soluça-me implacável.
(...)
Adeus! Arrasta-me uma voz sombria
Já me foge a razão na noite fria!...

Cecéu ama a vida. Mas a fatalidade iminente a decepará em


breve! O homem na biblioteca quer sair, mas sabe do inferno a prendê-
lo eternamente, da impossibilidade de mudar, de alterar o seu destino,
da destruição de sua liberdade, de seu alvedrio.

Hodiernamente, outros escritores e poetas falaram dessa


fatalidade: Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, através do
personagem masculino principal, lembra uma ópera de Beethoven com
um trecho em que diz: Tem que ser assim , tem que ser assim! É a voz
da inexorabilidade, como no pensamento islâmico, refletido na obra de
Mohamed, o Corão. O compositor Cazuza o fez, em composições
como Por que a gente é assim? (Cazuza, Frejat, Ezequiel Neves):

Mais uma dose?


É claro que eu estou a fim
A noite nunca tem fim
Por que a gente é assim?
(...)

Pergunto: há maior tristeza, maior sentimento de impotência,


de estar acuado, do que quando Cazuza diz que O tempo não para?
Como admitir que nada será possível fazer para esperar e ver o que
acontece?

Como admitir que o tempo se esvai rapidamente, os segundos


ultrapassando as horas, os dias, a morte a chegar? Eis aí uma tradição
que poderia ser creditada também a Augusto dos Anjos, entre outros
simbolistas tupiniquins. O Tempo foi maravilhosamente, entretanto,
descrito no Livro do Eclesiastes, capítulo 3, versículos 1 a 8. Em
português, qualquer Bíblia pode ser consultada, sendo reputada a
melhor tradução a de João Ferreira de Almeida. Talvez não seja a mais
bela, o que poderá ser discutido pelo leitor. Em inglês, a do Rei Tiago.
A musicalidade desses versículos, no original hebraico, é
impressionante! Senão, vejamos o segundo e o terceiro versículo,
numa vocalização aproximada:
Tsete laledet , ve tsete lameot;
Tsete lamatset, ve tsete latsecur nathaotsa.
Tsete laerug , ve tsete lirefuh ;
Tsete leperutz, ve tsete lebenut.

V
Será que foi isto que o Autor quis mostrar?

O eterno dilema. É claro que o poeta condoreiro não pensou


se estava trabalhando com categorias positivas e negativas, isso é
evidente, é possível que nem sequer percebesse as influências fortes
dos autores não citados por si, mas encontrados em estímulos e
nuanças. Como já disse em minha monografia3, “notamos alguns
famosos e prestigiados autores serem pernósticos e petulantes, dizendo
a seu admirador, que o estuda infatigavelmente, que tudo aquilo que
foi dito sobre sua obra é invencionice, bobagem, fruto da imaginação
de intelectualoides ou algo assim.” (...) “O fato é que o artista nunca
sabe o que faz, pois se o soubesse não seria artista, porém mero artífice
de utilitários. O que transforma a arte em elemento revolucionário é a
sua atitude criadora e organizadora, ligando o inconsciente do artista,
através de sua obra, com o dos que a usufruem. Torna assim o artista
instrumento para o desenvolvimento dos que usufruem sua obra, e ele
mesmo termina vivendo esse espaço, esses portais, que ligam o
consciente à inconsciência.”(...)

Não é, pois, uma viagem inconsequente pelas poesias, mas


buscamos nelas o melhor que podemos encontrar, honestamente, pelos
meios que considerarmos sinceros e corretos.

As imagens do inconsciente nem sempre dizem o que o


artista gostaria de mostrar.
VI
Possêmio
Breves palavras.

3
PONTES, LEOPOLDO L.R. A Leveza e o Peso no Preâmbulo da Constituição Brasileira.
Monografia de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Literatura. Caraguatatuba (SP): Faculdades
Integradas Módulo, © 2001.
Quero dizer que somente a existência de pessoas que possam
dar valor à crítica, não ao gosto-não gosto, mas aos porquês, aos
comos, somente essas pessoas poderão conscientizar o povo de que o
poder está no conhecimento. A sensibilidade deve ser enaltecida e
buscada, mas desde que possa se concretizar na sabedoria. Para isso
serve a análise do texto, seja ele de que forma for: escrito, pictórico,
musical etc.
Segundo texto: Conto “O Medalhão”, de Machado de
Assis
I
INTRODUÇÃO

Shakespeare era representado em meio a um barulho de


pessoas das mais variadas estirpes, idades e interesses, que chupavam
laranja enquanto os atores diziam to be ou not to be... Esqueça a ideia
de um Autor clássico que sempre fora nascido para ser clássico, um dia
ele foi pop, rastaquera, chinfrim, o tempo o lapidou e aos seus leitores.

As peças de Sófocles e Eurípedes foram apresentadas uma


vez só, em seu tempo. Hoje as estudamos como se fossem escrituras
sagradas, mas um dia estiveram como somente participantes de meros
festivais.

O tempo para o homem da era medieval não era linear e reto


como para nós, todavia circular, aqui-e-agora, ou algo assim. Ian Watt 4
diz que para o medievo a natureza é imutável, como a própria natureza
humana, e os relatos já são o repertório definitivo da experiência
humana. Isso quer dizer que não seria possível, para a mentalidade do
homem medieval, criar-se nada, pois tudo já o estava. Faz-me lembrar
do romance de Umberto Eco – O Nome da Rosa –, onde o espírito
reinante entre os monges era esse. Aliás, Eco é um estudioso da Idade
Média, gostei de seu opúsculo Arte e Beleza na Estética Medieval (RJ.
Globo, 1989), no qual ele analisa o olhar do homem daquela época.
Cito como exemplo um pequenino trecho na página 136: Se liga o
estético e o artístico, a Idade Média tem, contudo, pouca consciência
do especificamente artístico. Lembra-me também o livro de Hermann
Hesse, o belíssimo O Jogo das Contas de Vidro, no qual o espírito
reinante é também o de um tempo em que nada mais pode ser criado,
tão só preservado. A própria noção de tempo, na Idade Média, era
outra, não se cogitava de evoluções. A realidade era uma só: vivia-se
um presente sem saídas. Penso nisso ainda muitas vezes. Nos é
desconcertante: o palco simultâneo, a concepção temporal da Idade
Média.

4
IAN WATT. A Ascensão do Romance. São Paulo. Companhia das Letras, 1990.
Hoje deparamo-nos com a ideia de que o cartesianismo já
não mais responde às nossas perguntas, apesar de ter sido a solução do
renascentista. Isso é o que eu chamo de “a segunda volta do parafuso”,
algo que ao incauto pode parecer mera repetição, mas que ao
conhecedor dialético é uma volta acima do que já se foi anteriormente
conhecido, experimentado, organizado. A dialética existe,
independentemente se a sabemos ou não. Reconhecemo-la conforme a
estudamos mais e mais nos compêndios livrescos, informáticos ou
vitais. A dialética não evolui, é a própria evolução; as teorias sobre ela
podem vir se aproximando mais e mais do real, de um real ainda
percebido mas não desvelado aos nossos sentidos. Um amigo certa vez
me explicou que todo mundo fala sobre a dialética, mas ninguém sabe
direito o que ela é. E eu falo já da polialética. O que é isto?

Na verdade, uma percepção mais aguçada da mesma velha e


boa dialética, cuja síntese é impensável até chegar-se a ela como nova
tese. Platão percebeu uma dialética, Hegel foi mais fundo, Marx foi à
práxis, os existencialistas a cultuaram de forma parcial, os hippies a
viveram e a propagaram sem o saber, adolescentes dos anos 90 a
reconheceram como um mal a ser dissipado, buscando uma áurea
mediocridade que teria existido durante o chamado “milagre
econômico” no Brasil, o retorno impossível ao cartesianismo, ao ,
quem sabe até, positivismo “aplicado” getulista... O filho discordando
do pai, mas ligando-se com seu avô, formando as gerações elos
evolutivos. Só assim o filho compreende o pai, e o avô seu filho. Aliás,
quando falamos aqui em evolução, não o fazemos com juízo de valor,
mas como indicação de movimento consequencial.

Salta-me aos sentidos o prazer de ouvir um conto. A


oralidade é um onirismo nos tempos atuais . Ler uma história em voz
alta, ouvintes a prestar atenção e viajar mentalmente por imagens que
lhes ressoam familiares, outras que apenas ecoam similaridades, outras
quiçá esvoaçando novos horizontes, sempre evocando experiências
individuais, acima das tradições coletivas, é dar aos que ainda se
situam na mentalidade asséptica da televisão, do vídeo e dos
programas prontos de computador, a oportunidade de imaginar.
Professor, leia para seus alunos, dando ênfase aqui e ali, fazendo o
texto vibrar, ter vida! Estou falando, naturalmente, aos de graduação e
pós. Se a classe não colaborar, reclame, é o seu direito, e ensine aos
alunos o direito de reclamarem, não de emitirem gritos primais, porém
de ouvirem, participarem, discutirem com civilidade. Se chegaram até
a faculdade, ou a um curso de pós, devem respeitar a oportunidade.

Apresento aqui um trabalho sobre um texto de Machado de


Assis. Tenho, naturalmente, gosto por esse Autor, alegria em observar
seu modo de tratar as palavras, o fraseado, a elegância de sua ironia, a
qual nunca beira a grosseria ou a ignorância, nem mesmo o
trocadilhismo oligofrênico. Seus argumentos são de teor político e
social conservador demais para o século vinte, embora dificilmente
algum colega literário desse tempo que o sucedeu possa dizer que o
tenha superado e combatido efetivamente suas ideias. Com isso, torna-
se o texto machadiano essencial para quem quer que pretenda
convencer o leitor, fazendo-o, no entanto, pretender-se concorde com o
Autor.

Vamos à nossa breve análise de “Teoria do Medalhão”.

II
Análise e Comentário do Conto
Teoria do Medalhão, de Machado de Assis

Eis a apologia da mediocridade! Machado a faz por


inversão, e o leitor atento verá que se trata de uma inversão, onde o
Autor coloca o Dever Ser ao contrário, como se dissesse: Preste
atenção no que descrevo, porque o que quero dizer não é o que meus
personagens dizem, mas o inverso; o que é difere do que deve ser, e o
que o personagem diz que deve ser é, na verdade, o que não deveria
ser, mas acontece. Leia ao contrário, o espelho te dará a imagem
verdadeira.

Podemos dizer que o conto observa a seguinte forma:

1. O que existe: o poder na mão do medíocre;


2. O que se impõe fazer: ser medíocre para ter poder;
3. O que na verdade se deveria fazer: combater a
mediocridade para mudar o poder.

Causa-nos estranheza, porém, sabermos que Machado era


um antirrepublicano, monarquista ferrenho5, conservador portanto.
5
De onde veio essa informação? Não me lembro, porém é-me recente. Li isso há poucos dias...
Ora, o medalhão existia nos tempos de Dom Pedro II como subsistiu –
e vem até hodiernamente – nos dias republicanos. A crítica social
supera, aqui, o homem político.

Machado não propôs, no conto, mudanças, o que não parece


ter mesmo sido a sua motivação, em nenhuma de suas fases literárias;
expôs, propriamente, o ridículo da vida entre os pequeno-burgueses,
prontos a cair pela linha de pobreza, mas atentos em mostrar
exteriormente um bem-estar ao qual, verdadeiramente, não têm acesso.
Dessa forma, a teoria do medalhão é um meio de se estabelecer um
lugar ao sol do Poder, ser objeto do desejo numa vitrine social,
mediante a redução da interioridade, da individualidade 6, com o fito
de ascender. O que impressiona é o tipo de crescimento a que se é
proposto, destituído de todo ímpeto revolucionário, inserindo-se
conformista, coquete, ignóbil. Não há pelo pai ao filho um querer
torná-lo justo, correto, inteligente, sábio, mas apenas um flagrante
medalhão, adornador dos meios: Começa nesse dia a tua fase de
ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a
necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades: elas virão
ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desajetivados,
e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, (...).

Não há dúvida que o diferencial do medalhão em relação à


sociedade em meio da qual ele quer se destacar é uma insubstância, um
oco, ao contrário do personagem título em O Alienista: este se
distingue pela concretude intelectiva, pela discussão consigo mesmo,
pela filosofia. No entanto, o primeiro busca vencer, e talvez o consiga,
pela própria inconsistência da sociedade que o carregará, ao passo que
o segundo se auto-destrói, inconfiante em si, anti-herói por excelência,
assímile ao populacho que o rodeia. A relação entre os dois contos é a
de inversão de valores, onde o bom parece mau, o mal bem, nada é o
que parece ser e tudo é ensinado pelo avesso, como a mostrar que o
que deve ser é o que não se diz dever ser7.
6
Conforme apostila de autoria da Professora Cláudia de Arruda Campos, LENDO CANTIGA DE
ESPONSAIS, de MACHADO DE ASSIS, folha 9.
7
A relação que se estabelece entre um e outro conto de Machado é a própria discussão sobre a
loucura: (...) o louco se encontra excluído do universo comum dos mortais. Qual o sentido desta
exclusão? Em que critérios ela se baseia? (...) Como diz Marcasse, pensador contemporâneo da
chamada Escola de Frankfurt, ‘’a fuga para a interioridade e a insistência numa esfera privada
podem bem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da
existência humana ‘’. Nesse sentido, se a loucura é uma experiência que selvagemente afirma a
subjetividade, a imaginação, a fantasia, o louco é aquele que emerge da rede de relações de troca e
O jovem que ouve a teoria do medalhão é o que não regerá,
provavelmente, sua vida, mas se deixará levar pela ideia alheia, fará de
seus dias, caso acolha os conselhos paternos, meros condutos pré-
localizados, por onde passará o que restar de consciência e autoestima.
O mundo interior do jovem é relegado à preteridade máxima, para que
possa então afiar-se com as veleidades, as inutilidades, os meros
enfeites, assim como atualmente a chamada música pop e suas
vertentes: axé music (sic), rock-pop etc...

Se em tempos anteriores, já se distanciara da ingenuidade


epistemológica (de que os sentidos, per si, nos oferecem uma
percepção verdadeira do mundo), para afirmar a importância do
Indivíduo, Machado demonstra como a interioridade se torna
fundamental na compreensão de mundo, de forma que ninguém é igual
ao outro, embora todos se encaixem em divisões que se possa conceber
como pós-existentes aos fatos. Já não há, em seus escritos, a ideia de
grandes heróis, nem a dos potenciais, mas dos pequeno-burgueses que
se sobressaem através da mentira, do insólito, do risível, do fracasso.
Ora, a vitória do medalhão é o superficial vencendo o interior, o fútil
estraçalhando com a profundidade, a inteligência de ameba superando
em êxito social a einsteiniana.

O Autor trata o conto, portanto, numa divisão dicotômica,


como a uma comédia; mais pormenorizadamente, uma farsa, por
dispor o leitor acima dos personagens, ironizando. O incômodo se dará
se se acomodar num olhar também realista, do chamado drama
realista, quando o leitor atento observar que o medalhão existe,
espezinha-se insidiosamente na cultura brasileira e aflora aqui-e-ali,
deixando de ser uma piada por se tornar um verdadeiro parasita. Mais

dos valores de troca, retira-se da realidade da sociedade burguesa e faz sua entrada em outra
dimensão da existência. Isto é, deslocando o indivíduo para fora do domínio do princípio da
eficácia e da obtenção do lucro para a esfera dos recursos íntimos do homem, a loucura pode ser
considerada uma força poderosa na invalidação dos mais caros valores burgueses. (...) Em suma,
numa sociedade que tem horror ao diferente, que reprime a diversidade do real à uniformidade da
ordem racional-científica, que funciona pelo princípio da equivalência abstrata entre seres que não
têm denominador comum, a loucura é uma ameaça sempre presente. O que a história da loucura
nos revela, pondo em questão toda a cultura ocidental moderna, é que o louco é excluído porque
insiste no direito à singularidade e, portanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é nesse
mundo patologia ou anormalidade é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou uma
impossibilidade." (FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é Loucura. Coleção Primeiros
Passos, vol.18. São Paulo. Abril Cultural/Brasiliense, 1985. P.12 e 101/102.)
incômodo será percebermos que um leitor ingênuo poderá tomar o
texto como sério, verdadeiro, e buscar seguir os seus, digamos,
ensinamentos. Então, nesse último patamar, o ridículo tornar-se-ia
heroico, tal como vemos não raramente ocorrer cotidianamente: um
homem que em 1980 foi chamado de “ladrão” em coro por estudantes
universitários, anos depois foi eleito para cargo majoritário; outro,
conhecido pelo mesmo epíteto em áureos tempos, no Ministério da
Fazenda, hoje dá conselhos econômicos e é respeitado nos círculos do
meio como excelente apontador de falhas nos planos governamentais;
ainda outro, ...

III
Por que logo aos primeiros travessões o pai diz que o filho
está com vinte e um anos recém-completos, e no final do conto fala em
vinte e dois? A ideia pode estar em que o jovem sequer se dá conta do
próprio tempo, ou que o pai há de preferir aumentar a idade do rebento
até que este possa chegar, com mais rapidez, aos quarenta e cinco
anos. Ora, já que o pequeno sequer pode conduzir sua vida, seu
caminho, então seu pai faz o que considera aprimoramento no filho, a
começar por mentir sua idade. A profª. Cláudia de Arruda Campos,
nesse aspecto, mostrou-me outra forma de analisar tal fato. Para ela,
“não existe aí nada de sentido oculto. É que quando a gente completa
um ano, entra no ano seguinte, não é? Um nenê que faz um ano, entra
no ano seguinte de vida, e assim por diante. Desse modo, quem faz 2l,
entra no 22º.”

Mostrar que também sou pintor é um termo antigo, a dizer


que os fúteis podem também fazer como os artistas e os gênios, mas
sem profundidade, apenas como simples macacos, isto é, ao dizer a
frase acima implica-se em explicar sua própria inutilidade na área
especificada, embora sem o êxito para tanto: faz-se mal, porém o faz
para querer provar que também é capaz, ainda e geralmente não o
sendo. É o mero fazer superficial, sem arte, inócuo, insípido.

Scibboleth é um termo hebraico, citado no Antigo


Testamento. Conta lá que eram dois povos, provavelmente ambos de
línguas semíticas. Ocorre que um pronunciava a letra derradeira do
alfabeto hebreu como shin (xin), ao passo que outro como sin. A
mesma letra pode ser pronunciada de ambas as formas, conforme a
região (ou ainda a acentuação, nos dias atuais). Na história bíblica,
havia que ser pronunciada de certa forma, a fim de que passassem
apenas os pertencentes a um só dos dois povos, pois a intenção
justamente era distinguí-los pelo sotaque. Por isso, os guardas
inquiriam: Diga Shibolet! E se o sujeito dissesse Sibolet, não passava,
pois mostrava ser estrangeiro. Não importa o que significa o vocábulo,
só a maneira de pronunciá-lo. No presente caso, o objetivo é dar aos
partidos somente a sigla, não se aprofundando no que possam
representar efetivamente. Ficam os discursos frios, sem vida, vazios,
espantando qualquer pensamento ou descoberta política. A memória
para ser utilizada como um armazém, sem transformar o que este
acolhe, apenas usar o já conhecido. Palavras que não digam nada,
frases de efeito sem conteúdo.

Por fim, ao negar a ironia ao pretendente a medalhão, o


Autor diz ao leitor atento: quem me seguir não será um deles, porque
eu o não sou, eu uso a ironia. A chalaça é deles, porque da massa
impensante. Eu não faço parte disso.
Terceiro texto: Letra da canção “Por Enquanto” 8, de
Renato Russo

Mudaram as estações
Nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente
Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber que o pra sempre sempre acaba
Mas nada vai conseguir mudar o que ficou
Quando penso em alguém só penso em você
E aí, então, estamos bem
Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está
Nem desistir, nem tentar
Agora tanto faz
Estamos indo de volta pra casa

Breve comentário: Houve um tempo em que os decanos


Chico Buarque de Hollanda e Caetano Telles Velloso tiveram um
programa televisivo na Rede Globo. Ali, os novos talentos se
apresentavam e faziam verdadeiros salamaleques aos dois Monstros da
nossa Música Brasileira Popular. Ocorre que, na vez do Legião
Urbana, os rapazes do grupo de novos não se dobrou à dupla sagrada.
Aliás, foi até irônica a fala de Renato Russo, que disse algo como: ‘É,
acho que vai ser bom pro nosso currículo”...

Será que alguém ainda se lembra disso? Será que está


gravado ainda esse programa? Alguma coisa aconteceu naquela noite,
já que Renato sempre admirara os dois músicos, e não parecia haver
razão para qualquer falta de sincronia. A imitação que Caetano tentou
fazer da dança de Renato, foi plena e intencionada? Foi homenagem
ou chiste? Renato não ficou para a grande cena final do programa,
onde todos tocavam juntos. Quem escorregou aquela noite? Podemos
perguntar a alguém, mas a metade da resposta já não pode ser dada.
Uma das versões, do Renato Russo.

8
ELLER, Cássia - (CD) Cássia Eller – PolyGram, 1990
Relações de sentido:
a) sinonímia lexical (levantamento de semas comuns e de um
diferenciador);

NADA (mudou)
Vazio
Branco
Transparente
Claro
Zero

(Mas eu sei que ALGUMA coisa aconteceu)


Vazio
Branco
Transparente
Claro
Pouco

O nada é muito próximo ao alguma, no contexto acima. O


nada é reflexivo, generalizante, de modo a dizer que, se algo mudou,
foi insignificante. O alguma apenas se difere por conter algum
elemento de importância em seu interior. Ambos os vocábulos são
colocados com proximidade semântica muito grande, de modo que o
trajeto de uma frase a outra denota uma descoberta, ou seja, nada
mudou, nada que se possa dar importância, mas afinal existe algo que
mudou, alguma coisa, então a imperceptibilidade inicial se transforma
numa sutil distinção. No contexto, senti as palavras nada e alguma
como quase sinônimas, o que não ocorreria numa leitura puramente
linguística, cujo distanciamento entre tais vocábulos seria muito maior.

b) sinonímia estrutural (apenas a indicação da ideia);

[alguma coisa aconteceu] [Está tudo assim tão diferente]

Se alguma coisa aconteceu, algo mudou. Se noto esse algo, é


porque tem muita importância para mim. Quando o Autor deu a
importância, dentro do nada, para alguma coisa, essa tal coisa foi tão
importante que invadiu o interesse do Autor. Daí a tornar-se
estruturalmente sinônimas, tais frases o fazem contextualmente.
[deixar tudo como está] [não desistir nem tentar]

Se não desisto, tenho uma atitude positiva; se não tento,


negativa.: entre o sim e o não, nenhum dos dois, inatividade total. Eis
então essa mesma inatividade na primeira frase: deixar tudo como está,
isto é, não mexer em nada, nada modificar, inalterar, inatividade total.

c) hiponímia ( o acarretamento do específico ao


genérico);

a) [só penso em você]


b) [e aí, então, estamos bem]
c) [de volta pra casa]

Isto é (do menor para o maior) : a) eu penso em{você},


b) eu resolvo por{nós},
c) eu te levo para o{nosso
lar}.

d) antonímia (nuança levantada);

[ desistir] [tentar] Contextualmente, ambas as palavras


fazem parte do [deixar como tudo está], pois ambas são precedidas da
negação.

e) contrário (apenas levantamento das categorias “opostas”);

[ o pra sempre ] [ sempre acaba ]

O eterno (pra sempre) não tem fim, a não ser na repetição de


sua negação (sempre acaba).
O Autor diz :{Se lembra quando a gente chegou um dia a
acreditar
Que tudo era pra sempre}.

Depois entra com o contrário: {Sem saber que o pra sempre


sempre acaba}.

f) contraditório (indicar as estruturas e o esvaziamento).


[Mudaram as estações] [Nada mudou]

Ora, se tudo mudou,


houve alteração.
Porém, diz
o autor:

Não houve mudança.

Esvaziou, o Autor, a ideia de modificação inicial. Começou


dizendo que o tempo passou, os meses passaram, levando-nos a pensar
que todas as coisas, os eventos, os acontecimentos, tiveram suas
alterações com o cenário geral. No entanto, logo no segundo verso ele
esvazia o primeiro, fazendo-nos tropeçar na pedra de Drummond; no
meio do caminho das mudanças, descobriu-se que nada de importante
mudou, só houve alterações inúteis.
A próxima análise é sobre duas diferenciações semânticas de
vocábulos soltos, onde o leitor perguntará: qual o contexto? No caso,
será a minha vivência pessoal. Vale a pena o estudioso buscar o seu
próprio contexto para exercitar de acordo com o que apresento adiante.
Quarto Texto: o negro e o preto; o vermelho e o rubro

NEGRO
Brilho
Anarquia
escuro
masculino
sério

PRETO
Fosco
Caos
escuro
masculino
sério

Minha ideia de anarquia é a de um sistema político acéfalo,


mas ordenado; caos é confusão, desorganização, bagunça!

VERMELHO
fogo
forte
sangue
fosco (cor de lápis)

RUBRO
fogo
forte
sangue
brilhante(cor de esmalte)

Lembro-me de um filme que tinha uma sequência onde


apareciam diversas crianças nuas, no campo, carregando bandeiras
negras e bandeiras vermelhas. Na época, não tive dúvida: minha leitura
era de uma apologia ao anarquismo e ao comunismo como irmãos,
formas políticas que se amalgamavam. Lendo Eni P.Orlandi 9, num

9
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP, Pontes, 1999.
opúsculo recomendado pela profª Cibele10, obtive outra leitura das
bandeiras negras: fascismo! Então, ao invés de um comunismo a par
do anarquismo libertando os povos, teríamos as ditaduras de direita e
de esquerda oprimindo os povos, embora com a inocência infantil?
Espero que não, ou meu equívoco leitor será afetado na lembrança
como um grande erro com respeito ao diretor daquele filme. Que
filme? Não me recordo de sobremaneira.

10
Cibele Mara Dugaich, que nos ministrou matéria de mesmo nome – Análise de Discurso - em
pós-graduação.
Quinto texto: filme “Crossroads”(A Encruzilhada)

1986, EUA, Dir. Walter Hill,


com Ralph Macchio, Joe Seneca, e Steve Vai.
Trilha Musical de Ry Cooder.

a) Nomeação dos operadores do quadrado actancial


O sujeito, projeto de realização, é, a princípio, a busca da
canção perdida de Robert Johnson, mas vai se tornando o próprio
blues em sua forma de tocar verdadeira, isto é, com dor, não qualquer ,
mas uma especial, que só a estrada lhe poderia ensinar. É, na verdade,
a busca do autoconhecimento. John Lennon teria dito, certa vez, que o
blues é como a cadeira, não uma cadeira qualquer, mas a primeira
cadeira: você não olha ou aprecia aquela cadeira, pois ela foi feita para
se sentar; você senta naquele blues. Quando e onde ele disse isso, não
sei, mas se não me engano está no livro de MUGGIATI, Roberto,
Rock, o Grito e o Mito, já em sua primeira edição, de 1973.

O objeto do desejo é a canção perdida, que ao sabê-la


inexistente, lhe faz cair num paradoxo: se nunca existiu o que procuro,
então o que busco não é apenas uma canção, mas o blues; mais que
isso, descubro que minha busca é de mim mesmo. A caverna de Freud
não aparece no filme, senão imperceptivelmente e sem intenção do
diretor (creio, pois não é uma obra hermética), porém estaria no bar
onde ocorre o duelo final: herói versus inimigo, cada qual com a sua
guitarra.

O protagonista não alcançou seu objeto inicial, porém outro,


o qual foi inserido pelo personagem que o acompanha na estrada, o
velho tocador de gaita (o Cachorro Louco Fulton). Sem saber,
alcançou o autoconhecimento, quando juntou o que aprendeu antes de
percorrer a estrada dos blues com os ensinamentos desta, justamente
durante o duelo.

O herói teve no velho o adjuvante. O oponente era himself,


toda vez que decidia não acatar os conselhos. O adjuvante, sem que o
herói soubesse, imprimia o sujeito na direção do objeto.

b) O percurso do herói
Nos primeiros minutos do filme, a música: blues do início do
século, mais exatamente Robert Johnson. Quem foi Robert Johnson?
Lendário violonista e cantor de blues, teria vendido sua alma ao diabo
para poder tocar e cantar melhor, para poder ser um astro, para
conseguir ser “the best”.11 O trajeto de R.Johnson vai se repetir mais à
frente, pois trata-se de um mito antigo, em que o herói vende sua alma
(ou a troca) por valores terrenos, banais. Sim, banais por serem
pequenos diante da imensidão da Eternidade. Há que se pensar, nesse
caso, sobre o que é eternidade: inexistência de limites, de horizontes,
de medidas; o infinito não é alcançável pela mente humana, por mais
que se tente apenas visualizamos imensidões, porém não o infinito.

Há descrições de momentos em que Deus pôs na mente do


homem, temporariamente, a noção do infinito. Verba gratia, isso
ocorre aproximadamente na Pérola de Grande Valor: “E aconteceu
que Moisés olhou e viu o mundo no qual ele fora criado; e Moisés viu
o mundo e seus confins e todos os filhos dos homens que existem e que
foram criados; e maravilhou-se e assombrou-se muito com
isso.”(Moisés 1: 8) Deus é chamado de Infinito, em Doutrina &
Convênios (Seção 19, versículo 10): “...Pois eis que eu sou
infinito”...”,pois Infinito é meu nome.”...

O mito em que o herói vende a alma para o diabo é comum


nas memórias de vários povos da Terra, e passa com muito sucesso nas
histórias em quadrinhos, nos antigos bang-bangs, passando pelos
números da heavy metal e nas atuais graphic novels. No Brasil é
reconhecido entre os violeiros, que, já por tradição, guardam dentro de
suas violas de 10 cordas um chocalho de cobra para o instrumento
“soar melhor”... , mesmo que as usem em procissões católicas e
quetais. Mick Jagger teria vendido sua alma para angariar uma
juventude eterna? Foi traído, porque não mais tem o frescor dos
tempos de Satisfaction. Seu fã e pretendente a clone Steven Tyler
também envelheceu cantando com o Aerosmith.

O DEVER
O herói é, aparentemente, o garoto, que aparece entre fitas e
livros de blues, tocando violão. Logo na primeira sequência ele está
11
Diz a História da Música que morreu assassinado por um marido traído.
entre dois, um clássico e um ... de tocar blues. São mundos distintos: a
técnica do primeiro é completamente distinta da do segundo em sua
forma de tocar, na sonoridade e até nos detalhes da construção do
instrumento. Ambos são chamados de acoustic guitar, mas pertencem
a tradições diversas. O garoto, após tocar no modo clássico, troca de
violão e passa a tocar os blues. Há uma nítida separação, como se fosse
impossível unir o que parece oposto.

A dicotomia se repete no conservatório: o garoto toca para o


professor uma peça de Bach, no violão clássico, em meio a um
ambiente acadêmico e conservador. Às últimas notas, improvisa um
breve fraseado blusístico (bluesístico). O professor o repreende: repete
a dicotomia entre os dois mundos. O garoto aprende que se pode
pertencer a um se não se imiscuir no outro. E vice-versa. No caso dos
Estados Unidos, isso é um diálogo que se também adentra no aspecto
racial, como vemos em cenas mais adiante, quando tocam em bares de
brancos ou de negros.

O QUERER
O garoto descobre que no hospital está internado um velho
tocador de gaita, o “Cachorro Louco Fulton” que teria conhecido a
canção perdida de R.Johnson. O encontro entre ambos é patético, o
garoto em plena hybris e o velho em némesis. O garoto mostra como
toca blues e o velho o repudia, o humilha veementemente.

Ambos fogem do hospital. A viagem para o sul é a trajetória


vital. O garoto saiu do dever (Eu devo conhecer aquele que fez a
música com R.J.) para o querer (Eu quero conhecer essa canção).

O SABER
Conforme vai se passando o filme, o velho vai convencendo
o garoto a mudar: fá-lo trocar seu violão por uma guitarra elétrica com
caixa amplificada portátil. E ainda lhe apresenta o slide.

To Slide, deslizar. Inicialmente, uma boca de garrafa de


vidro cortada, para enfiar no dedo e dar um som deslizante sobre as
cordas, trabalhando com as notas em legatto, ou seja, ligando-as sem
iniciar novos ataques, intermitando ataques com ligaduras, formando
teias sonoras ininteligíveis ao ouvido europeu. Conhecida forma de
tocar entre os havaianos, que o fazem com o instrumento já no chão,
assim como os tocadores de slide guitar da música caipira
estadunidense. Não é o caso dos bluesmen, que utilizavam o violão na
posição normal, muitas vezes um dobro (corpo totalmente de aço,
como explica Roberto Muggiatti em seu opúsculo Rock, o grito e o
mito), assim como não é o caso desse garoto. Tal técnica, transplantada
para a guitarra, pôde ser melhorada com o uso de um tubo de metal, no
lugar da velha boca de garrafa. Em 1977/78, Dudu, guitarrista do
Arnaldo e a Patrulha do Espaço, grupo paulistano de rock, ganhou e
utilizou bastante um anel que tinha por objetivo fazer slide, embora
alcançasse apenas uma ou duas cordas simultaneamente. Na verdade,
possibilitava misturar técnicas.

A hybris é presente aqui e ali, mas tão só no garoto; o velho


não compartilha, apenas se aproveita do suposto herói para amealhar
vantagens.

A viagem ao sul dos Estados Unidos é também a que ocorre


dentro do garoto, aproximando-o do velho. É o caminho do saber, não
especificamente o saber aquela música perdida, mas saber the blues,
conhecer o fundamento. Isso é mostrado principalmente durante os
números musicais. Em frente a um clube de brancos, a dupla começa a
tocar, juntam-se pessoas, até que o dono do local os ameaça: o garoto
sofre o mesmo que o velho, ambos tocavam juntos a mesma peça e
ambos foram expulsos.

Dentro de um clube de negros, próximo ao primeiro, o velho


está flertando. O garoto, que é branco, entra com uma moça, branca,
que os vinha acompanhando desde um certo ponto da estrada. Essa
mesma moça, mais à frente, simplesmente sairá da estrada e do filme.
Faz parte apenas de um trecho. Mas aqui, para que não soem estranhos
ao local, estritamente racista neste clube, como no anterior, o velho
chama o garoto para subir ao palco com ele, chamando-o novamente à
hybris, desta vez o velho, que é reconhecido pela plateia como o
“Cachorro Louco”. A hybris envolve a dupla, a moça que os
acompanha, toda a plateia, os músicos do palco. Vê-se o guitarrista (o
garoto) e o gaitista (o velho) virando ambos para cá e para lá, ao
mesmo tempo, no melhor estilo dos blueseiros, indicando o momento
do ápice, onde a dupla está mais afinada, o métron, que entretanto não
é o cume do filme.
Na cena seguinte, o garoto se acha o máximo e tenta
compartilhar com o velho a sua alegria. Este esfria as emoções, não
existe mais a dupla afinada porque, segundo o velho, o garoto tocaria
melhor se pusesse mais tempo suas mãos sobre a guitarra que sobre a
garota. Isso é um ensinamento, que vai frutificar logo adiante.

A GLORIFICAÇÃO NEGATIVA
Quando a moça se vai, após manter um rápido caso de amor
com o garoto, este toca sozinho no quarto de um hotel. Eis o motivo
único da passagem feminina, além de aumentar o ibope para a venda
do filme, claro, pois como poderia um filme estadunidense ser
vendável sem um caso de amor? Tem que ter um toque de Love Story,
ou de E O Vento Levou,... Mas o que leva importância no presente
contexto, semanticamente analisado, é o novo toque do garoto: o velho
ouve e reconhece, no toque, os blues que ele tem como verdadeiros,
pois saídos da alma. É a música do sofrimento, daquele que passou por
uma desilusão, e o espectador do filme pode reconhecer um estilo
lânguido, diferente de todos os que já passaram até então: ele usa, pela
primeira vez, exclusivamente a técnica do slide. É o momento de uma
némesis glorificadora, pois necessária, reflexo de uma alimentação
espiritual baseada na dor, fruto aguardado pelo velho em relação ao
garoto – eis a glorificação negativa.

O PODER
Crucial, a bem dizer, é quando o velho diz ao garoto, numa
encruzilhada, para que toque com toda sua alma, a fim de que ele
venha. A cruz formada pelas estradas, seja em Y ou em X, é
significativa para a cultura negra, egressa da África, seja para os
ingressos em qualquer parte da América. É símbolo de pacto, de
diferenças que se encontram. De modo geral, as seitas como o Vodu,
Candomblé, entre outras, valoram tais locais como propícios ao
encontro com as forças das trevas. Não poderia deixar de ser diferente
aqui, pois é num local desses que o velho agora se encontra. Ele quer
encontrar o demônio, para quem um dia, ainda jovem, vendeu sua
alma, a fim de garantir sucesso pessoal. Ora, o demônio é chamado, na
Bíblia, o pai da mentira: como um contrato com o pai da mentira
poderia ser cumprido por este?

O demo chega, o velho conversa com ele. O garoto ainda


continua tocando no melhor estilo. Está no ápice, mas fica no fundo,
enquanto o velho tenta negociar com o diabo. Este diz que não há jeito,
o negócio foi feito e está acabado. O velho propõe um desafio e diz
que se perder o demônio pode levá-lo. Eis a resposta: “MAS VOCÊ
EU JÁ TENHO!”

O garoto sai do fundo, arrogantemente, da posição de quem


já passou pelo dever, pelo querer, pelo saber, envereda agora pelo
poder. Aparentemente, não acredita no pacto, não consegue se imiscuir
totalmente no mundo do velho, porque este é um negro, cultura
indevassável pelo branco. O garoto branco aprendeu a música do velho
negro, mas não a apreendeu de todo, porque ele ainda é um branco,
não reconhece os valores da cultura negra. Ainda que conheça histórias
de músicos que tenham vendido sua alma ao diabo para tocarem
melhor, fazerem sucesso, ganharem dinheiro e afins, ainda que esteja
frente a frente com o demônio, frente a frente com um encontro entre
as partes pactuantes do contrato demoníaco, ainda que esteja
presenciando um fato metafísico, espiritual, não participa e ainda
desafia, porque trata-se de uma cultura que ele não reconhece. O
diabo, entretanto, aceita o desafio. O velho, negro, diz ao garoto,
branco: “Não se meta”, porque aquilo está entre os negros, branco não
pode, não deve se meter. Sem saber, o garoto entrou no mundo do
velho, este o vê no mundo dele, mas o branco não reconhece e ainda
faz pouco: “Ele está blefando!”

O FAZER
O ápice do filme é esse desafio. Na trilha sonora, quem toca
o som do representante do diabo e quem toca o som do garoto é o
mesmo guitarrista, Steve Vai, mas isso é apenas um detalhe da
produção. O garoto chega com o velho ao lugar combinado, um clube.
O velho lhe empresta seu mojo, um saquinho da sorte, protetor,
equivalente ao patuá baiano (patois). Um excelente guitarrista está
tocando no estilo do blues-rock anos 70, com muita distorção, guitarra
ágil e leve, som pesado e firme. Então, para de tocar e um apresentador
chama ao palco o próximo. Eis a subida do suposto herói para o palco,
onde demonstrará o aceite do desafio. O filme é para quem gosta de
música, pois essa é o grande sinal simbólico, principalmente agora. O
desafiador usa uma guitarra vermelha, cor do vestido da dançarina; a
do garoto é branca. (Símbolos.)
O guitarrista toca uma frase. O garoto responde, no seu
modo, com a técnica aprendida na estrada, abusando do slide. Outra
frase, outra resposta, sempre à altura. Então, o guitarrista faz uma
escala. O garoto a reapresenta, mas inclui um sobrepor de técnicas: da
estrada, volta ao que aprendeu no conservatório, uma escala no estilo
europeu, branco!

A GLORIFICAÇÃO POSITIVA
A vitória já se ilumina pelo desespero que se antevê no rosto
do representante do diabo. Este tira o casaquinho e tenta repetir, a seu
modo, o feito. Não consegue, porque não teve nunca o acesso ao
mundo branco, europeu, da música clássica. Sim, pois a música só é
dita “clássica” se advinda de um repertório branco, europeu, do povo
dominador, cujos valores estéticos impostos são dos do dominado,
vindo da África e estabelecido na América. Então, o Bem é europeu,
branco e “clássico”; o Mal é africano, negro e destoante da técnica do
“clássico”. O garoto vence quando usa a técnica aprendida no
conservatório, que não é a que aprendeu com o velho. Com isso, salva
a alma do “Cachorro Louco”.

Significativo é o guitarrista do demo ser branco. Mas está


tomado pelos valores negros, inclusive no tocar seu instrumento.
Tornou-se um branco com alma negra, e portanto do Mal.

Quem salva quem? O Branco buscou no Negro a sua técnica,


mas o Negro ficou, nos melhores momentos, por baixo, porque o
Branco é a representação do Bem. O velho, no final, age sem a
arrogância de até então, tornou-se um negro de alma branca, portanto
do Bem. Olha aí o cheiro do racismo impregnado na ideologia inserida
intrinsecamente no filme.

c) Símbolo que salta do filme: A ESTRADA

No meio do caminho, encontrei-me numa estrada escura e


12
tenebrosa .

Em Conversa de Bois, Guimarães Rosa propõe a


representação da vida numa estrada que sobe e desce13.
12
Precisa dizer? Dante Alighieri, A DIVINA COMÉDIA, canto 1.
13
Sagarana.
A estrada era um símbolo caro e premente aos jovens dos
anos 1960 e 70, significava a busca, a procura, o desafio, o desapego
dos valores estabelecidos pela Sociedade, a Sabedoria, o encontro, o
crescimento, a libertação e a liberdade, entre outros valores.

O filme é dos anos 1980, mas captou o espírito da estrada, e


por isso a encruzilhada, símbolo de encontro de caminhos distintos,
estradas que se encontram.

A estrada é a representação da vida. No filme, quando o


garoto e o velho saem do hospital, suas estradas se juntam. Vem
participar dessa mesma estrada a moça, durante um período. Depois
ela sai, deixando apenas a dupla original. No encontro das estradas, o
garoto evolui. Quando a dupla encontra-se com o demo, é numa
encruzilhada, porque o caminho do diabo não é o do garoto, mas num
momento as sendas se encontram: pode ser para um regozijo ou para
um embate; naturalmente, o mote do filme é o encontro, a
encruzilhada, que dá inclusive nome ao filme no original e na versão
dublada. Após vencer o desafio, o guitarrista perdedor sai de cena, o
diabo põe seu chapéu, levanta-se e também sai com seus asseclas.
Acabou a encruzilhada, voltam o garoto e o velho a compartilharem,
só eles, a mesma estrada. Mas o filme deve terminar. Deixa-se claro
que a estrada vai se repartir, cada qual pegará uma rota diferente.

Há, sim, outros símbolos, mas já os descrevi anteriormente.


São eles: o Bem, representado pela cultura branca; o Mal,
representado pela cultura negra, que só se assenta quando entremeada
pela do branco. O diabo é negro, de roupa preta, acompanhado por
uma negra, num carro escuro. Ele aparece quando o garoto (branco)
toca um blues em belíssimo estilo (negro). O guitarrista do mal é
branco, mas toca música de negro, e por estar do lado do mal se
apresenta num bar de negros, acompanhado no palco por uma
dançarina negra. O garoto (branco) vai salvar o velho (negro), mas só
o conseguirá quando tocar o seu estilo (branco). Então, ao final do
duelo, eles relaxam tocando música negra. Porém, o que fica patente, é
que na hora da seriedade o que vale é a cultura branca, pois essa vence
tudo! Decididamente, the Uncle Sam está vivíssimo nesse cult-movie
dos rock-blueseiros.
d) Porque escolher ...
Gosto de música. Gosto também dos blues, do rock, fazer o
quê? É parte da chamada “arte imperialista”, mas I like it... Fui
transformado em minha adolescência por ela e embalado naqueles dias
por ela. E como já disse em outro lugar, da mesma forma como a
bossa-nova embalou o jazz, o rock fez o mesmo com a música popular
brasileira. E quem pode dizer que não existe roque brasileiro ou samba
estadunidense? A invasão é recíproca. E o roubo e o empréstimo
também.

O filme tem um interesse especial porque seu momento


culminante não o é para a dupla, mas apenas para o personagem que
desde o início parece ser o herói... Há, destarte, o métron da dupla,
seguido pelo do suposto herói, ao lado e dentro do da música.

Trata-se de um enlatado, mas sob a leitura de um musicista


é um grande filme, um clássico!
Sexto texto: filme “The Matrix”, com Keanu Reeves

Eis um filme a que dificilmente o assistiria: muita gente


comentando, muito ruído, nada que o atraísse para nós. Trata-se de
uma obra estritamente comercial, de apelo circunstancialmente jovem.
Quem nos recomenda esse filme são sempre pessoas jovens, que não
tiveram ainda muita experiência (ou alguma) com percepção extra-
sensorial, por exemplo. Traz-nos, entretanto, algumas lembranças.
Exempli gratia, o que se segue.

1º. Thimoty Leary e o LSD: nos últimos anos, trocou, o papa


do ácido lisérgico, as drogas pelo computador. Mas dizia que, se
soubesse estar um dia em doença terminal, iria querer fazer a última
viagem digamos, ... viajando.

2º. Aldous Huxley e As Portas da Percepção: no filme,


ainda nos primeiros momentos, quando Neo/ Mr.Anderson pergunta a
um cliente se já sentiu um dia não saber se dorme ou se está acordado,
esse lhe responde tal ser o efeito da mescalina, justamente a droga
utilizada por Huxley quando da experiência que culminou na obra
científica.

3º. O filme Uma Simples Formalidade, dirigido por


Giuseppe Tornatore, com Gérard Depardieu e Roman Polanski, Itália,
1994, onde o brincar com a realidade é estar vivo ou estar morto: as
folhas onde o escrevente bate à máquina estão vazias, v.g.

4º. O filme O Vingador do Futuro (Total Recall), EUA,


1990, Dir. Paul Verhoeven, c/ Arnold Schwarzenegger: O que é real?

5º. O filme Caçador de Androides (Blade Runner), c/ A.


Schwarz., EUA: será que somos androides? Sou um androide que
pensa que é um ser humano? Ou Humano? Super Homem
Nietszcheano?

6º. Brazil, o Filme: estou vivendo o que penso que estou


vivendo, ou tudo é apenas ilusão minha? O que é real?
7º. O filósofo Sócrates: Só sei que nada sei. E como é
citado no filme Matrix: Conhece-te a ti mesmo.

8º. Não há melhor lugar no mundo que o nosso próprio lar.


Assim disse Dorothy no filme O Mágico de Oz, naquela clássica
versão hollywoodiana dos anos 30. Dorothy foi citada no Matrix,
assim como

9º. Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. O gato


pergunta para Alice onde ela quer chegar. Ela responde que não sabe.
Ora, se não sabe onde quer chegar, não importará o caminho que tome.
Além do mais, as alusões óbvias aos alucinógenos, se for coincidência,
é muita: comer e ver tudo diminuir, encontrar-se com um caramujo
fumando narguilê e apoiado sobre um cogumelo, a impressão é muito
forte.

10º. Um dia, um homem dormiu e sonhou que era uma


borboleta. Tão real foi o sonho, que ao acordar teve dúvida: sou um
homem que sonhou que era uma borboleta, ou borboleta que sonha que
é homem? (Historinha/ensinamento contada pelos chineses.)

a) Nomeação dos operadores do quadrado actancial


O sujeito é a busca da realidade: o que é real? É a busca da
libertação.

O objeto é a liberdade, a realidade, o poder de escolher, do


alvedrio.

O adjuvante é Morfeu, o personagem líder da equipe de


resistência à Matrix.

O oponente é a Matrix.

O sujeito alcança o objeto.

b) O percurso do herói
Mr. Anderson é um homem comum no mundo criado pelas
máquinas, o mundo ilusório. Leva uma vida dupla, em que seu
segundo personagem é um hacker que se autointitula Neo. A hybris se
dá entre seus companheiros, digamos, revolucionários, de resistência.
Seu momento de sobrenaturalismo é quando, ao final do
filme, começa a acreditar. É quando diz: Esse (Anderson) não é meu
nome. Meu nome é Neo.

A cena final é quase uma némesis. Mas não passa de um


enlatado.

c) Símbolos que saltam do filme


Morpheu, Morfeos: o deus dos sonhos. No filme, Morfeu é o
personagem exatamente que busca dar aos homens a realidade, tirá-los
do sonho em que se encontram14.

Neo: Novo (a mesma pronúncia foi utilizada para dizer o


nome do personagem no grego e no idioma de Shakespeare: Níl =
New). O nome é o oculto do protagonista. É seu nome de hacker, não
seu comum. Na Grécia antiga, tinha-se um nome social e outro oculto:
dar este a conhecer a alguém seria dar a alma 15 . O Neo passou a ser o
nome oculto de Mr. Anderson, e foi com esse nome que ele
permaneceu, salvando a si mesmo, ao líder do grupo de resistência e à
humanidade, devolvendo a esta o livre arbítrio.

Maya: os hinduístas nomeiam assim a tudo o que é ilusório.


O mundo que percebemos é Maya, ilusão ; o mundo criado pelas
máquinas é Maya. Prefere você viver o Maya ou a realidade? A pílula
azul é Maya, a vermelha realidade.

Para os ocidentais, azul é o céu, vermelho o inferno; para os


hinduístas, azul é a cor de Krishna (Krsna, Críshina, encarnação de
Vishnu, o Conservador), deidade, mas o vermelho, apesar de ser cor de
Shiva ( o Destruidor, a Destruidora), é por vezes entremeado nas cores
em que é pintado Krishna. A companheira de Krishna, Radha (Rada), é
de cor laranja, embora deidificada. O Criador, Brama (Brahman),
branco.

No filme, o vermelho é difícil, mas necessário, e portanto


bom; a pílula azul, senda para a ilusão, o Maya. Vem daí uma nova
14
Ele não morreu, apenas acordou do sonho da vida. (Shelley, citado por Mick Jagger no funeral de
Brian Jones, segundo contam as lendas do Rock’n’Roll...)
15
Conf. aula de 26 de janeiro de 2000, pela Prof ª Dr ª Dina Maria Martins Ferreira, em
Caraguatatuba, de Lingüística e Semântica, para nossa turma de Pós-Graduação.
questão: ilusão ou alucinação? Ora, a primeira segue uma lógica
determinada, ao passo que a segunda não. Todavia, o alucinado,
enquanto dentro do sonho, tem a alucinação como algo muito lógico.
Vemos o exemplo de quando sonhamos coisas fantásticas, irreais,
situações inacreditáveis, as quais, no momento do sonho, são
perfeitamente cabíveis, mas que fora deles se tornam impossíveis. São
alucinações ou ilusões?

Sonhos podem ser realizados, se deixam de ter o estigma de


irrealizáveis: nossas alucinações, ilusões e sonhos acontecem em meio
a uma redimensionalização de nossas lógicas, indo além, naturalmente,
das quatro dimensões nas quais vivemos cotidianamente (largura,
altura, profundidade e espaço-tempo). Basta que admitamos a
existência real de novas dimensões para que possamos nos embrenhar
em novas realidades, as quais parecerão loucura aos olhos dos comuns.
Disse já alguém que a sabedoria de Deus é loucura para os homens.

A liberdade traz angústia16. O traidor do grupo de resistência


é alguém que não suportou o real, pesado demais para si. O que sentia
não era a liberdade, mas queria o poder, de mando e de toda espécie. O
que fazer com a liberdade que ele havia adquirido? Ninguém sabe o
que fazer da liberdade17.

O traidor é Judas do Novo Testamento, nos Evangelhos


Sinóticos. É também Lúcifer, que negou o plano Divino e caiu,
levando consigo um terço dos anjos (Pérola de Grande Valor).

d) Porque escolher ...


Meu filho mais velho, Caê, pegou o filme na locadora
porque dizia que eu tinha que assisti-lo. Tal veemência causou-me
espécie, o que fez com que utilizasse a manhã deste sábado, 4 de
março de 2000, para o ver. Ao final, ele apareceu no quarto do vídeo e
me perguntou: “Gostou, pai?” Como iriam começar ainda os letreiros,
não respondi. Ele voltou à mesma pergunta, tive que responder e o fiz:
“Interessante...”

Voltei a rever Matrix meses depois, e o impacto foi menor.


Não o vejo como grande espécie, embora corra o risco de se tornar um
16
Prof ª Dr ª Dina (cit. supra) – aula de 27 de janeiro de 2000.
17
Id.ib. supra.
clássico. Mas será apenas um cult movie, não uma verdadeira obra de
arte. Diferentemente do que vamos analisar a seguir.
Sétimo Texto: filme “Luz del Fuego”

Brasil, 1981/2 (?), direção de David Neves, roteiro e diálogos de


Joaquim Vaz de Carvalho.

No elenco, Lucélia Santos (Luz del Fuego), Walmor Chagas


(João Gaspar), Ítala Nandi (mulher de Gaspar), Wilson Grey (Heleno),
Guilherme Karan (travesti), Tamara Taxman (Yara Satã), Cecil Thiré,
Mariana de Moraes e Monique Lafond, entre outros .

a) Nomeação dos operadores do quadrado actancial


O sujeito é a busca pela projeção pessoal até o Poder: o
Poder de Mando e o Poder de Ter. O Objeto do Desejo é o Poder. A
protagonista consegue projeção, mas não chega ao Poder almejado.

Adjuvante é o conjunto de situações que Luz aproveita para


sua auto-projeção.

Oponente é a Morte, a sua morte. Mas o diretor do filme faz


com que o oponente seja adjuvante para colocar a protagonista num
virtual poder, o da Eternidade.

b) O percurso do herói
O momento do metron seria quando finalmente Luz del
Fuego está com sua ilha de nudismo funcionando. Entretanto, a
nemesis é ocorrente, pela decepção e pelas intervenções político-
sociais-financeiras. A Ilha do Sol foi comprada, o nudismo
institucionalizado, mas o metron não chegou.

Ao iniciar-se o filme, o ambiente é de lembrança, anos 80.


Volta-se aos anos 40, Luz del Fuego jovem, muito jovem. Dentro de
um trailer velho, o trapezista interrompe seu ato sexual com a jovem,
sai e a deixa só. Ela se levanta, vai à penteadeira e usa o batom que
tem o nome que ela usará artisticamente (Luz del Fuego). É o início da
hybris. Nesses dias, é apenas uma entre outras vedetes.

Continua a ascensão nos anos 50, Luz já famosa, quando


solta de uma prisão de uma noite, tenta obter mais fama aproveitando o
fato danoso para se sobressair através dos jornais. Vai obtendo assim
fama de acordo com as oportunidades que lhe aparecem. É a ascensão
ao métron. Há uma sequência, clássica nas décadas de ouro do rádio
no Brasil, onde se discute na televisão se a rainha do rebolado ou afim
é Luz ou Yara Satã.

Nos anos 60, finalmente inaugura-se a Ilha do Sol, onde


instituído foi o nudismo como prática obrigatória. Luz del Fuego lança
o Partido Naturalista Brasileiro, em que a vedete fala, discursa
politicamente, proclama pela participação no poder, terminando com o
grito de guerra: Povo do meu Brasil, todo mundo nu! É a continuidade
da hybris. Seguem-se as intervenções de Luz pelo Rio de Janeiro, com
seu discurso político (O povo precisa de mais feijão e menos roupa.).
Juntam-se a sua ascensão na vida social, financeira e política, digamos
assim, com sua vida pessoal amorosa.

Não há momento de métron. Luz morre antes disso. A


némesis se inicia abruptamente, com a morte do herói/ heroína/
protagonista do filme.

A sequência final é a essência do filme, onde Luz, de volta à


cena inicial, muito jovem, no trailer, diante do espelho da penteadeira,
diz: Eu sou uma luz que não se apaga. O que permanece para o
interlocutor/cinespectador é o momento de começo de um percurso, o
início da hybris, congelado como uma perpetuidade. Na falta do ápice,
o impulso inicial tornou-se mais importante.

O DEVER
Luz pensa no seu crescer profissional. Mas há uma
conotação de política libertária, de transformação de valores, que se
revelará mais à frente.

O QUERER
Ela quer se projetar pela fama. Há uma conotação política
mais visível, onde confunde-se sua relação com um político poderoso
(João Gaspar) e sua própria plataforma política.

O SABER
Luz aproveita todas as oportunidades para ir se projetando
no cenário artístico, embora adentre pelo político pela brecha aberta
por João Gaspar.
O PODER
Ela adquire a Ilha do Sol, momento máximo.

O FAZER
Inaugura a Ilha do Sol e o Partido Naturalista Brasileiro.

A GLORIFICAÇÃO
A morte a glorifica. Nos dias correntes de então,
negativamente, como derrota. Entretanto, o diretor da obra
cinematográfica, em plenos dias de abertura política recente no Brasil,
buscou uma glorificação positiva para a vedete, impondo um métron
na sequência final do filme, mostrando Luz no fulgor de sua
juventude e de seu percurso heroico. Construiu assim o Mito,
consolidando-o nesta sequência final (Eu sou uma luz que não se
apaga).

c) Porque escolher ...


Eu queria analisar um filme brasileiro. Lembrei-me deste,
que além de tê-lo assistido com minha esposa há muito tempo,
diversos anos antes de nos casarmos, ainda o adquiri em livro 18. Foi
consultando o opúsculo e puxando pela memória que fiz a análise
descrita acima.

Claro, poderia tentar um filme de Gláuber Rocha (gênio!),


Roberto Santos, Walter Hugo Khouri, Bruno Barreto, entre diversos
outros. Busquei este por mera afinidade pessoal. Recomendo a busca
de nossos clássicos e nossos filmes cultuados, como Sinhá, Marvada
Carne, Auto da Compadecida, Sonho Sem Fim, O Ébrio... Dói-me
saber que os únicos filmes brasileiros transpostos para formatos
caseiros (videocassete, DVD,...) são os consagrados pela crítica,
digamos assim, estadunidense… Poucas cópias existem, em formato
caseiro. Títulos de péssima qualidade se multiplicam, apenas por
obterem as graças deste ou daquele.

18
SILVA, Aguinaldo. Luz del Fuego. Rio de Janeiro, Codecri/Morena Produtores de Arte, 1982 –
Coleção Edições do Pasquim, v.122.
Oitavo texto: FILMES “CARLOTA JOAQUINA” e
“NASCIDO EM 4 DE JULHO”
O filme brasileiro foi dirigido pela atriz Carla Camurati,
tendo nos papéis principais atores conhecidos por suas atuações
televisivas, como Marieta Severo e Marcos Nanini. Grande ator e
grandes atrizes, admiro-os. Coloco-os na primeira linha de meus
preferidos, e gostaria de vê-los mais vezes na tela grande.

O filme estadunidense tem a direção de Oliver Stone, a


participação no elenco de Tom Cruise e Willen Dafoe, tendo sido
produzido em 1989, pela Universal City Studios. Stone se consagra
com filmes polêmicos. Para mim, faz parte da nata que flutua sobre a
mediocridade geral.

LEVANTAMENTO DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO


EXTERNAS
No filme brasileiro, as condições de produção externas são
de uma época em que estamos prestes a completar os 500 anos do
chamado descobrimento do país. Carla Camurati, prenhe de intenção
crítica, procurou fazer um filme que possa discutir a validade dos
heróis nacionais, colocando-os em posição ridícula, de tal forma que a
própria descendência da antiga família real luso-brasileira não gostou
da maneira como seus ascendentes foram retratados.

No estadunidense, Oliver Stone pôs em dúvida a validade do


chamado “sonho americano”. Afinal, sentia-se no ocidente que o
comunismo havia naufragado, saindo fragorosamente vencedor o
capitalismo. O estadunidense médio estava muito à vontade para expor
suas feridas, achava-se por cima dos soviéticos, vencera a luta contra o
comunismo, a União Soviética esfacelara-se, o muro de Berlim caíra,
os movimentos da Perestroika e da Glassnost sufragaram e a Guerra
Fria terminara.

LEVANTAMENTO DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO


INTERNAS
No filme brasileiro, o lugar de enunciação é o de um
estrangeiro contando uma história estranha, de um país distante e
diferente, muito diferente, um inglês e uma menina escocesa. Ou
ambos escoceses, ou simplesmente ingleses. Conta a história ocorrida
muitos anos atrás. Mas a escracha, como se a farsa tivesse a honra de
ser a única forma de contá-la. A diretora releu a própria história de seu
país como se um estrangeiro distante a lesse, na posição de um
dominador sobre o dominado. Essa visão do narrador é muito cruel
para nós, se não nos distanciarmos o suficiente para tê-lo apenas como
um mero olhar pessoal. É a nossa história? Pode ser, enquanto obra de
Carla Camurati, mas não é a única, existem outras. Segundo o
narrador, no Brasil as condições históricas se deram de maneira
deformada. Senão, vejamos:

0. Dom João, não educado para ser um rei, tornou-se porque


Dom Pedro III de Portugal e Dom José morreram, deixando um branco
a ser preenchido: só havia o João para tanto;

1. Dona Maria I, sem filho e sem esposo, enlouqueceu e


passou a cometer atos insanos, com o dinheiro da realeza portuguesa;

2. Carlota Joaquina, vinda da alegria da corte espanhola,


caiu na modorra e tristeza da corte portuguesa, onde sobretudo reinava
a Igreja Católica, representada sempre pela figura de uma divindade
humana sofrida, ensanguentada, vencida;

3. Casou-se com um príncipe que a desgostou já nos


primeiros momentos;

4. Dom João foi Príncipe Regente contra sua vontade, pois


tinha medo de alçar a tal posição, para a qual não fora devidamente
preparado;

5. Na invasão por Napoleão, partiu Dom João sem dizer


uma palavra a seu povo, enquanto este imaginava o Brasil como a terra
da fartura (Hy-Brazil). Nos mapas antigos, descortina-se por vezes
locais onde o imaginário constava ser uma terra de prazeres e delícias,
fartura e alegria, portanto uma verdadeira Terra da Cucanha. Foi tal
imaginário, segundo certos teóricos, que deu origem ao nome de nosso
país.;
6. Na nova terra, presenciando a Família Real, o povo
brasileiro pasmou-se diante dos novos modos e costumes, tais como a
touca branca da rainha. Tal foi o início da integração do discurso
nativo no alienígena, formando um discurso protonacional, eivado
porém de vícios ideológicos trazidos pela incompreensão dos fatos
portugueses. Eles trouxeram um discurso em processo, nós entramos
nele como crianças. (Eni, op.cit., pg.35);

7. O Poder instaurado no Brasil de então, com sua sede de


se manter com os hábitos mais espetaculares possíveis, teria originado
a inflação nacional, a partir já do preço do frango, de dois para dez
dinheiros;

8. O novo Poder vindo da Europa trouxe ao brasileiro o


sentido de ser menor que a realeza: ao nobre, cabia mandar e dizer
agácha-te, enquanto ao populacho era única saída obedecer e agachar-
se, tornar-se menor que sua própria estatura, a fim de acrescentá-la ao
que já era, por direito não se sabe de onde, maior;

9. Os títulos de nobreza pipocaram entre os membros do


povo a fim de pagar dívidas da corte, trocando assim dinheiro por
honraria, ou melhor, comprando os plebeus por ninharias;

10.Os novos nobres procuravam, então, evitar o trabalho,


para assim melhor se assemelharem aos da corte advinda da Espanha e
Portugal, originando dessa feita o pensamento brasileiro, de que
trabalhar não é nobre;

11.Crescido o filho Pedro, este gostava de Noemi dentre


prostitutas e quetais, porém houve por bem casá-lo com Leopoldina;

12.Dom Pedro I era um epilético (epiléptico), que herdara de


sua mãe o apetite sexual, vivendo entre o povo, mas distinguindo-se
por ser filho do Poder e estrangeiro como o pai;

13.Dom Pedro torna-se herói porque já era escolhido para


tanto desde o nascimento, não saíra dentre os novos nobres ou do reles
populacho;
14.Com todo o tempo vivendo e reinando no Brasil, ainda
assim a família real não se considerava da terra, haja visto a ferina
crítica da Princesa Carlota Joaquina diante do retrato da corte, dizendo:
- O problema é que Debret não é Velásquez, comparando o pintor que
era uma instituição cultural no seu país de origem com o que ainda
nada era no país que a acolheu;

15.Diferentemente ocorria com D. João, apreciador do país


onde fora tido como Rei, não mais como simples Infante: apreciação
estranha, para tão só explorar, extrair;

16. Carlota Joaquina terminou sua vida com a inglória do


suicídio de uma perdedora.

O filme trabalha com as relações de poder, onde mostra a


origem deste no Brasil como de um monarca fugido (o rei fujão), que
substituiu o prazer da carne pelo prazer de comer carne de frango
(preferiu queimar os autos que incriminavam a princesa que passar a
vergonha de ser tido como atraiçoado). Eis que sua covardia perante a
vida era tamanha que, ainda conhecedor de que já era notória a traição
conjugal de sua esposa, fazia-se de ouvidos moucos, por exemplo, no
velório de sua mãe, onde os sons da infidelidade eram ouvidos à beira
do caixão de Dona Maria, a Louca. Assim, diz a obra fílmica, que
nosso Poder estaria ainda sofrendo essa síndrome de covardia,
espelhada do próprio povo, que aprendera com aquele antigo e
primeiro monarca português no Brasil a esconder os segredos de
Polichinelo, assim como a queimar arquivos (literalmente), dando
impunidade aos poderosos, ao tempo que quebra os ossos do popular,
mesmo que inocente. Eni 19 diz que o sujeito discursivo funciona pelo
inconsciente e pela ideologia: a diretora pode não ter pensado
conscientemente nisso, mas a conotação está lá, a semiótica inscrita na
ideologia do inconsciente.

A música que integra o corpus é um interdiscurso:

1. Inicia pela música escocesa, a do enunciador;

19
ORLANDI, Eni P. Op.cit., p.20.
2. Passa para a espanhola, uma alegre música de violão e
castanholas, servindo como pano de fundo para a dança e as
comemorações;

3. Portugal é representado pelo silêncio, como a ilustrar a


vinda das cores rubras, trágicas e fortes para as negras, mortiças e
defuntas, de Portugal, até que a infante princesa espanhola dá o tom de
seu domínio, enfrentando a tradição do primeiro país que a acolhe,
dizendo: - A boa música não se para!: nunca mais pararia ;

4. A música brasileira mais dengosa veio com o amante


negro, Dom Fernando Carneiro Leão, mas só na primeira relação;
depois, o encanto inicial passado, a dominação volta para a Princesa,
que retorna a ser representada com a música espanhola a partir do
velório da Louca;

5. Sem música espanhola, o que sobra pelo filme afora é


sempre o silêncio;

6. O retorno à Europa é acompanhado por música não


pertencente a nacionalidade alguma dentre as de até então
referenciadas, mas da que um dia seria a Tchecoslováquia, uma música
que nada tem a ver com o contexto, como a idealizar um futuro que
não aconteceria para Carlota Joaquina, um fundo musical de
imaginação, de nostalgia de algo que na verdade nunca teria para ela
existido, e que nunca iria ocorrer. São os acordes iniciais de Ma Vlast
(Minha Terra), de Bedrich Smetana, descritos pelo Autor em 1879 da
seguinte forma: As harpas dos videntes começam uma melodia sobre
os acontecimentos no antigo lar dos reis boêmios, sobre a glória,
esplendor, torneios e batalhas, até o declínio e ruína finais. (CD
SMETANA. Ma Vlast. Vladimir Fedoseyev rege a Orquestra
Sinfônica da Grande Rádio e TV da União Soviética, Moscou.
Audiophile Classics. Intermusic S/A (copyright 1994). Movieplay do
Brasil.)

No filme estadunidense há momentos diversos: o lugar de


enunciação é o presente, aproximadamente na virada dos anos 80 para
os 90, embora inicie a narração em 1956 e termine vinte anos depois.
Aliás, termina com o herói glorificado.
A obra completa um círculo:

1. Nascido em 4 de julho de 1946, em Massapequa,


cidadezinha do interior do norte dos Estados Unidos, Ron Kovik é
flagrado com dez anos de idade brincando de guerra com seus amigos,
depois num desfile cívico – no dia de seu aniversário – onde o
Rock’n’Roll é a apresentação musical seguida por velhos combatentes
da Segunda Guerra e de outras, alguns com marcas de combate.

2. A mãe, Mrs. Kovic, é a própria “Voz da América”: aliás,


da região mais rica dos Estados Unidos, o norte, em dias do auge do
domínio estadunidense no ocidente. Ela diz ao filho: “É meu pequeno
ianque”. São dias de confiança no país, fé em Deus e no governo.
Kennedy faz seu discurso na TV, o país vive imerso na imagem da
glória! Existe um inimigo comum a ser combatido, o comunismo, mas
o povo confia na vitória. No fim dos anos 50, início dos 60, a grande
neurastenia ianque era do fantasma comunista e da bomba atômica que
os sovietes pudessem a qualquer hora enviar para a América.
Especificamente, para os Estados Unidos. Mrs. Kovic, a “Voz da
América” (especificamente dos Estados Unidos), diz ao filho: I has a
dream. Sim, dizer que teve um sonho é sinal de que algo está para
acontecer. Em Woodstock também alguém disse no microfone I has a
dream, ou I have a dream. Luther King já o dissera, antes. E aqui, a
“Voz da América”, quando vê Kennedy discursar ao povo pela TV,
profetiza: Eu tive um sonho, você falava para uma multidão, como ele,
e dizia coisas muito sérias;

3. Por volta de 1963, 17 anos de idade, tudo ainda faz


sentido para Ron Kovic, esportista, devoto das tradições patrióticas e
religiosas, transgressor apenas no que o consumo permitir (revista
Playboy); os fuzileiros navais palestram na escola de Kovic, ele se
anima e se alista, vai participar no Vietnã de uma guerra que está
começando, a fim de combater o comunismo, o inimigo vermelho com
cara de amarelo; sua mãe, a “Voz da América”, diz que é a vontade de
Deus que vá; nesse meio tempo, vê o irmão mais novo, no quarto,
tocando ao violão uma canção de protesto, mas isso não lhe toca, o
“sonho americano” lhe envolve e ainda lhe acalenta o espírito;
4. O pai, veterano de guerra, gostaria de dizer ao filho para
não ir, mas não tem coragem; o filho tem nos pais os ensinamentos do
respeito à pátria e à religião, como símiles e complementares;

5. O campo de batalha é inicialmente lógico, o discurso


parcial e unívoco: Acenda a aldeia como uma árvore de Natal! Mas
acaba vendo famílias de camponeses vietnamitas civis sendo
covardemente mortos, e ainda acaba matando, por engano, um
companheiro; termina levando um tiro na perna que o paralisará da
cintura para baixo; passa uma temporada num infernal pronto-socorro;
mas é um herói da guerra, como seu pai;

6. Em 1968, no Hospital de Veteranos do Bronx, conhece


opiniões que não sabia existir, por pessoas que não reconhecem seu
heroísmo;

7. Retornando a Massapequa em 1969, toma contato com os


pacifistas que proclamam contra a ida de jovens ao Vietnã, hippies,
mas é a volta para fechar um círculo, onde voltará a ouvir canções de
protesto e reverá a antiga namorada; o lar, entretanto, fica estranho
para o ex-atleta, confinado agora a uma cadeira de rodas, e ele mesmo
tenta fazer com que tudo volte a adquirir sentido, através da verdade,
mas não consegue; a “Voz da América” prefere o véu da mentira, qual
Dom João no filme brasileiro;

8. No México, ele pergunta: Lembra quando as coisas


faziam sentido?

9. Falar a verdade passa a ser a chave para se fechar o


grande círculo, desde a visita aos familiares de Wilson, o soldado raso
que ele matou sem querer, até o final do filme;

10.O discurso no protesto em frente ao comício dos


republicanos pró-Nixon, em 1972, é notável. Alguns
excertos: ...enganou o povo de seu país. Não posso expressar como
esse governo me enoja! (...) Amamos os americanos, mas não o seu
governo(...) Queremos que ouçam a verdade.(...) Por que lançam gás
e lutam contra nós? Porque é uma mentira. (...) Mataram uma
geração de jovens! (...)
11.Seu reatamento se dá através da honestidade, aquela que
ele sentia na infância, a qual sente recuperar, quando diz, no seu
comício para eleger-se presidente, em 1976: “Estamos em casa
mesmo!”

É um plano vencedor, pois termina o filme em pleno vigor


do herói. Não importa se ele ganhará ou não a eleição, mas que
superou suas dificuldades e enfrenta a vida e um enorme público,
tornando real a profecia de sua mãe.

Fechou assim o grande círculo, retomou o sentido.

VALE A PENA SER HERÓI ?

O herói: quem precisa dele? Eu preciso, porque sou um ser


humano. Há uma necessidade interior de se espelhar em alguém que se
nos afigure acima do normal, acima da mediocridade humana, um
super-homem, como queria Nietzsche. Não basta ser humano, há que
se ser sobre-humano!

Todos necessitamos de heróis. Os heróis são exemplos para


nós. Podemos ser como eles. Devemos ser como eles. Queremos ser
como eles. Encorajamo-nos para nos parecer com eles, para os sermos.
Então, não chegará sermos como heróis, haveremos de ser heróis!

Desejo ser um herói, assim estarei acima da mediocridade


cotidiana. Que tipo de herói serei?

Dizem que sou louco, por pensar assim.


Dizem que sou louco, por viver assim.
Mais louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz.
Sim, sou muito louco, (...)
Se eles têm três carros, eu posso voar.
Se eles são bonitos, sou Alain Delon (...)
Se eles são famosos, eu já estou no ar (...)
Se eu posso pensar que Deus sou eu e brrrrrrrrrrrr...(...)
Mais louco é quem me diz e não é feliz.
Eu sou feliz.
(Os Mutantes, Balada do Louco)

Quero ser um herói, mas pronto para sair de meu cotidiano e


viver a aventura. Não a aventura de minha vida, mas uma das
aventuras de minha vida: então, Easy Rider será uma coletânea
transformada num grande e único filme.

Mas Jimi Hendrix é um herói americano, Janis Joplin, Jim


Morrison... Morreram no auge, foram heróis, vivem nos Corações e
Mentes dos jovens de sempre. E não parecem seguir o modelo
estadunidense de herói, já que morreram sem conhecer ... sem
conhecer o quê? Eles foram famosos, os filmes os mostram sempre
lindos, maravilhosos, afinados com o mundo em que viviam – ainda
que contestadores, mas ganhando muito dinheiro, contestando o
sistema e consumindo os valores que ele inventou, os produtos que ele
constantemente cria, usando instrumentos, roupas etc, Dormindo com
o Inimigo.

Exemplo de herói brasileiro é, por excelência, Tiradentes:


morreu para ser herói, só o foi depois de ir desta para melhor, ... Não
conheceu a fama em vida, como ocorreu aos acima citados.

Quando vemos Jimi em Woodstock, seus primeiros olhares


do palco à multidão são acompanhados de um sorriso ingênuo, do
garoto que se surpreende com o número de pessoas que o amam, ou
que no mínimo o respeitam.

Janis pergunta ao bando de malucos e congêneres que a


assistem, naquele longínquo festival de 1969: Estão todos bem
chapados? E ri, talvez embriagada, dopada, sabe-se lá, porém adorada!
Ela conheceu a fama em vida.

Morrison, no segundo meado dos anos 60, já se atirava sobre


o público, sabendo que o iriam segurar, não o deixariam cair, porque
ele era o herói, O Ídolo do Público.

Criara-se naqueles dias a figura do Guitar Hero, o Herói da


Guitarra, que prosseguiu pela década seguinte: Eric Clapton, Jimi
Hendrix, Jimi Page, Santana, Alvin Lee, Jeff Beck, entre outros. (No
Brasil, entre os grandes seguidores tínhamos – e temos ainda vivos -
Sérgio Dias Baptista, Pepeu Gomes, Lulu Santos, Robertinho do
Recife, ...) Na verdade, era a continuação da pungência jazzística dos
saxofonistas como Charlie The Bird Parker, Colleman Hawkins, dos
trompetistas (ou trumpetistas, se preferirem) como Louis Amstrong,
Miles Davis, sopristas enfim como Benny Goodman. Era pois um
estereótipo a ser mantido, não o herói beethoveniano sofredor, que só
“viu” a fama depois de abotoar o paletó, mas do que só vestiu o paletó
de madeira após ser uma estrela, tornando-se eterno: o imortal
brasileiro é um herói com cara de sofredor; o estadunidense, de
vencedor.

Um clássico de Hollywood: A Star is Born, seja em qualquer


das duas versões pré-hippies, ou na dos anos 70, como outros filmes
similares, faz o espectador sair do cinema com a cabeça no
crescimento do herói, fazendo-o até imaginar nas possibilidades ainda
a serem possíveis para aquela atriz que conseguiu chegar até lá e que
ainda irá ser mais rica, linda e famosa. O American Dream é
constantemente alimentado. O cinespectador quer ser aquele herói,
quer realizar o sonho possível.

TEXTOS QUE MOSTRAM O ESPÍRITO DEFLAGRADO NO


BRASILEIRO
I
JOSÉ ESTÊVÃO COELHO DE MAGALHÃES
(Nascido em Aveiro, Portugal, no ano de 1809, frequentava
o curso jurídico de Coimbra, quando ocorreu a revolução
constitucional do Porto. Tomou parte e depois fugiu para a Inglaterra.
Na volta ao torrão natal, foi eleito deputado. Politicamente liberal,
considerado grande orador, foi mais político que jurista e professor.
Faleceu em 1863. Dele é o texto a seguir.)

HERÓIS!
Os heróis são exceções monstruosas da nossa natureza;
podemos vangloriar-nos de vermos os seres de nossa espécie exceder
as condições ordinárias da nossa existência, mas essa vaidosa
satisfação custa sempre cara. Os heróis são uns filhos pródigos da
natureza e da sociedade, que dispõem, em proveito das suas paixões,
do ouro, do sangue e da honra do mundo; que sacrificam aos seus
caprichos quanto há nela de mais santo, de mais nobre e mais
simpático; e a Providência, que castiga sempre, ainda que por diversos
modos, os que se esquecem da humildade do berço comum, ou lhes
esconde a lousa da sepultura para que os deslembrem, ou lha deixa
apontada à indignação pública para que os aborreçam.

As ondas tocadas da tempestade batem furiosamente no


penhasco que as assoberba. Nesta lide, atropelam-se, amontoam-se;
sobem umas sobre as outras, repetem assim os ataques, redobram os
arremessos, até que galgam a altura onde a resistência as levou, e de lá,
fatigadas e desfeitas em espuma, caem no mar, de onde saíram, no
mar, de onde eram, no mar, que lhes dera a força, no mar em que se
tornam. Os heróis são estas cataratas passageiras, estes cachões
espumosos. O mar é a humanidade; como ela, largo, vasto, imenso;
como ela, querendo sempre saltar fora das suas barreiras, fugir às leis
que o domesticam, e voltando sempre, apesar da sua inquietação, aos
princípios de harmonia natural a que perpetuamente está sujeito, e para
conservar os quais foi criado. E, serenada a tempestade, que resta dos
penhascos em que as ondas já não batem, que o mar apenas roça, que
já não atraem as nossas vistas pela luta que sobre eles se travara?
Pedras de irregular conformação, sem belezas que satisfaçam a nossa
curiosidade, nem excitem o nosso pasmo.

(...)

Por estas razões, para mim, quanto menos heróis melhor; e,


se digo isto dos heróis que verdadeiramente o são, que será dos heróis
que verdadeiramente o são, que será dos heróis que apenas pretendem
arremedá-los?

(Discurso Acerca do Apresamento do navio Charles et


Georges em 1857 - Discursos Parlamentares, ed. Souza Maia,
Aveiro, 1878, pp. 330/331 – cit. p/ LAET, CARLOS DE e
BARRETO, FAUSTO. Antologia Nacional ou Coleção de Excertos
dos Principais Escritores da Língua Portuguêsa do 20.º ao 13.º Século.
28ª ed. Francisco Alves. RJ, SP, BH. 1950)

II
JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA (1827/1886)
(Sempre um monarquista, embora liberal. Considerado grande
orador.)
CONTRA O PROTECIONISMO

Não sejamos os últimos a trilhar a senda dos progressos


econômicos e políticos. O sistema protetor está condenado, (...).

Três são os principais argumentos da escola protecionista,


posto que todos se possam reduzir a um só: independência nacional,
acréscimo de produção, diversidade de desenvolvimento.

Independência! Ser independente do estrangeiro, exclamava


um dos membros eminentes da liga contra as leis dos cereais da
Inglaterra, é o termo favorito da aristocracia. Pois bem, contemplemos
este advogado infatigável da independência nacional. Seu cozinheiro é
francês, e seu criado suíço. Resplandecem pérolas nos ornatos de sua
mulher e sobre a cabeça formosa, plumas de terra estranha. As carnes
de sua mesa vêm da Bélgica; e os vinhos do Reno ou do Ródano.
Pousam-lhe as vistas sobre flores vindas da América do Sul, e
embriagam-lhe o olfato as folhas vindas da América do Norte. (...) Se
quer distrair-se, ouve cantores italianos ou contempla dançarinas
francesas. Seu espírito mesmo é um arremêdo de contribuições
exóticas: a Filosofia e a Poesia vêm da Grécia e Roma, a Geometria de
Alexandria, a Aritmética da Arábia, a Religião da Palestina. Desde o
seu berço afiou os seus dentes no corar do Oceano Índico e depois da
morte ornamentará seu túmulo o mármore de Carrara. Oh! Sejamos
independentes!

(...)

(Discurso proferido na Câmara dos Deputados, em 7 de


junho de 1865 -cit. p/ LAET, CARLOS DE e BARRETO,
FAUSTO. Antologia Nacional ou Coleção de Excertos dos Principais
Escritores da Língua Portuguêsa do 20.º ao 13.º Século. 28 ª ed.
Francisco Alves. RJ, SP, BH. 1950)

TEXTO QUE MOSTRA O ESPÍRITO DEFLAGRADO NO


ESTADUNIDENSE
I
JOHN F.KENNEDY

(...) Senhores Membros do Congresso. A Constituição não


nos torna rivais no poder, porém companheiros no progresso. (...)
Constatei, como estou convencido de que os senhores também
constataram em suas viagens, que, em toda parte, o povo, a despeito de
desapontamentos ocasionais, nos contempla – não à nossa riqueza ou
poder, mas ao esplendor de nossos ideais, pois nossa nação está
destinada, pela história, a ser ou a observadora do fracasso da
liberdade ou a causa de seu êxito. Nossa obrigação primordial, nos
próximos meses, é satisfazer as esperanças do mundo satisfazendo
nossa própria fé.

Essa tarefa deve começar em casa, pois, se não pudermos


realizar aqui nossos próprios ideais, não podemos esperar que outros
os aceitem.(...)

(...)
Se esta nação deve crescer em sabedoria e força, então cada
diplomado capaz, do ensino secundário, deve ter oportunidade para
desenvolver seu talento. (...)

(...)
Um ano atrás, ao assumir as tarefas da Presidência, declarei
que a poucas nações, em toda história, fôra dado o papel de ser a
defensora da liberdade em sua hora de máximo perigo. Essa é a nossa
boa fortuna; e recebo-a, agora, como o fiz há um ano, pois é o destino
desta geração – o dos senhores, no Congresso, e o meu, como
Presidente – viver numa luta que não começamos, num mundo que não
criamos. Mas as Vicissitudes da vida nem sempre são distribuídas
mediante escolha. E, embora nenhuma nação tenha jamais enfrentado
semelhante desafio, nenhuma nação se mostrou, tanto quanto a nossa,
tão pronta a assumir a responsabilidade e a glória da liberdade.

E, nesta alta emprêsa, possa Deus velar pelos Estados


Unidos da América.

(Segunda Mensagem Sobre a Situação da União ao


Congresso em 11 de janeiro de 1962 – NEVINS, ALLAN (colig.). O
Pêso da Glória. São Paulo, Melhoramentos.1965.)
Observações:
Primeira: É como a história de Gandhi:
1- ele era um indiano com cabeça de inglês, vindo de estudos
na Inglaterra, achando que era como um verdadeiro Lord;
2- descobriu ser tratado como um indiano, no pior sentido
que pudesse ter essa palavra, i.e., mesmo tendo dentro de si um Lord,
ele ainda era um hindu, além de indiano;
3- buscou o indiano que havia dentro de si, despindo-se do
Lorde;
4- usou o Lorde para ensinar o hindu, mas sabia que era
mesmo um hindu, este ensinaria seus iguais e aos lordes de onde quer
que viessem e fossem.

Segunda: o trato social entre os brasileiros


Quando fiz Comunicação Social, principalmente nos últimos
dois anos, quando nossa turma separada era unicamente a voltada para
o jornalismo, nosso contato com o corpo docente era sempre de
coleguismo, chamando-os como eles a nós, por “você”. Isso fazia parte
do profissionalismo. É usual entre jornalistas o trato informal, os
modos folgados e um olhar crítico sobre tudo. O jornalista é crítico
sempre, ainda quando tenha sido moldado para um mercado de
trabalho. Felizmente, meus professores de então não estavam, de modo
geral, preocupados com nosso envolvimento no mercado mais que
com nossa postura crítica, o que nos fez uma turma muito especial, da
qual saíram ótimos jornalistas, que hoje trabalham de maneira mais
crítica que simplesmente mercadológica. Não discuto cá o mérito em
ganhar ou não dinheiro (R$, U$, ...), mas o de fazê-lo com felicidade
no coração. E isso posso observar com os jornalistas anteriores à
minha geração, assim como com os da minha e os posteriores, há uma
informalidade no trato pessoal e entre os da classe muito grande,
embora não haja união profissional.

Quando fiz Direito, aprendi outra forma de tratar as pessoas,


outra forma de ver o mundo, aprendi como enquadrar, como às vezes é
necessário se distanciar formalmente, e da necessidade dos
formalismos nas relações humanas.

Passou-se o tempo e descobri, pouco a pouco, passo a passo,


as virtudes dos formalismos, ao lado de minha velha informalidade.
Uni ambas as formas, utilizando-as de acordo com o que acho mais
palpável. Naturalmente, vejo como o brasileiro usa a formalidade no
trato inicial. Procura manter essa formalidade quando há uma relação
de poder, na qual ele esteja como dominado. Se preza o dominador,
trata-o com o maior respeito possível, porque sabe que a relação é
delicada. A informalidade vem com a amizade.
Observação: trabalhar com filme na sala de aula

Não vejo porque não trabalhar com filme na sala de aula.


Ora, os métodos são amplamente válidos quando se pode saber como
fazê-lo. Trata-se de savoir faire, de se ter o know how, i.e., há que,
portanto, saber manipular. Nada adianta ter uma poderosa máquina na
mão, sem o manual de instruções. O que se vê, em geral, são
profissionais destituídos do saber como, impressionados com um
maquinário e com a possibilidade de se ocupar tempo com qualquer
coisa que os livre de uma responsabilidade, pondo-os no contato
indireto com seus alunos. Para tanto, precisamos fazer valer a exceção,
que seja a regra.

Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, entra Gláuber


Rocha e sai Carla Camurati, por exemplo. Um professor deve saber
tirar partido da Carla e do Gláuber. Não adianta colocarmos um aluno
diante de um filme sem fazer com que a obra possa ser vista como um
produto do homem, não como simplesmente um canal de divertimento,
de diversão oca. Posso aprender a ser feliz com a sabedoria, esta me
alegrar mais que um filme vazio. Então ensinarei como professor os
meus alunos a verem filmes, não como escapismos, porém como obras
de pessoas como nós mesmos.

A grande coisa é dizer que não foi fácil realizar a película,


mas somos os maiorais e ultrapassamos as dificuldades até completá-
la. O aluno tem que aprender a pertencer ao grupo que pode fazer, que
sabe porque foi buscar como saber. Um filme deve ser muito bom, não
ruim para que desça a meu nível, mas bom, tanto que possa me elevar
e me fazer, enfim, um ser melhor, levando-me a ser superior ao que eu
mesmo pudesse anteriormente imaginar.

O filme na sala de aula deve mostrar ao aluno que existe um


discurso, o aluno deve saber que o discurso é um entre muitos
possíveis, além de constatar as diversas leituras que o mesmo filme
congregue. Essa participação na desconstrução fílmica tem que ser
prazerosa, há que dar ao aluno a chance de sentir: a estafa do
conhecimento, a necessidade de retornar à inocência perdida da
ignorância, a consciência do retorno impossível e finalmente o saber
que pode dar a segunda volta no parafuso, chegar onde se diz chamar
intuição nocional.
Para tanto, o professor tem que se especializar mais e mais,
saber mais e mais, estudar e estudar, buscar o conhecimento, deixar de
ter o remorso de ser um privilegiado por ter formação universitária
num país de iletrados, e só assim mostrar-se um exemplo possível aos
seus alunos. Dessa maneira, o filme funcionará na sala de aula, não
feito um mero recurso didático para encher o tempo, sim como recurso
didático de apreensão epistemológica do Autor da obra, não de
conhecimento da realidade, sim como captação de formas de ver o
mundo. O aluno terá que aprender a ver. Eni 20 fala da incompletude
como condição da linguagem: deve ser tratada com respeito pelo
mestre, que irá ensinar o aluno a agir conscientemente nesse processo.

É possível, há que se acreditar que é possível, há que se


acreditar. Eu quero acreditar que é possível. Eu sei que é possível.
Disse um profeta moderno que um sonho é apenas um sonho quando
imaginado por um só, mas que pode se transformar em realidade
quando sonhado por muitos... I have a dream.

20
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso. Campinas (SP). Pontes, 1999. Pg.37 a 39
Nono texto: RESENHA de “O Modelo dos Modelos”,
de Ítalo Calvino

Ítalo Calvino é italiano, escritor contemporâneo. Sofreu


influências do surrealismo dos anos 40 e 50, entremeado com o pós-
moderno literário. Naturalmente, autores de ficção acabam
influenciando uns aos outros em sua própria época. Também Calvino
não sai ileso: é nítido seu entrosamento com o universo de intelectuais
portugueses ateus, não o burguês, mas um tipo que crê no homem
como projeto de um futuro Deus.

O existencialismo sartriano é pinçável em sua obra, pois


Calvino viveu a época, a angústia da condição humana, adquiriu-a na
carne, sublimou-a até a mente, sendo hoje um cronista ficcional,
passeando num caminho que não chega à autoajuda por falta de
hipocrisia, mas que inaugura um movimento no planalto central do
velho ocidente. Caetano Velloso : Sobre a cabeça os aviões/ sobre
meus pés os (...)Eu inauguro um movimento no planalto central do
país/ Viva a bossa-sa-sa, viva a palhoça-ça-ça-ça-ça/ Viva Ipanema-
ma-ma (...) . Lembra?

Não tem uma legião de fãs por estar excluído do rol dos
fabricantes de melhor-vendidos, mas seu público o reputa como um
exímio contador de ensinamentos, ideias e, veja só, emoções.

O modelo dos modelos é um conto integrante do livro


PALOMAR, editado em 1985 pela Teorema, de Lisboa, Portugal.

O relato inicia com uma apresentação metodológica do


pensamento de Palomar, ou melhor, do senhor Palomar : científico,
pois utiliza o método cientifico clássico.

Mostra também a falta de criatividade e a insegurança de


descobrir novos meios, de Palomar. Este quer sempre um patamar
seguro, uma plataforma já delineada, a fim de construir um modelo.
Busca Palomar um modelo ideal, uma verdadeira máquina perfeita, um
moto perpétuo quintessencial.
Suas tentativas de neutralidade fizeram com que mais e mais
percebesse a realidade imperfeita, mesmo tentando sempre se adaptar a
ela através de seus modelos pré-determinados.

Com o tempo, foi descobrindo que a realidade, distante de


seus modelos iniciais de perfeição, era mais interessante que a teoria,
embora esta não perdesse seu valor. Ocorreu que mudaram os valores
para Palomar, tornaram-se referências para conhecimento da realidade,
deixaram de ser rígidos controles.

Por fim, eliminou Palomar de sua mente todos os modelos


possíveis, e procurou conhecer o melhor possível a realidade. E agora
usa de seus conhecimentos anteriores para mitigar os problemas reais
da sociedade. Aproveita da experiência cotidiana para constantemente
entrar ar fresco em suas ideias.

Ora, mal começamos a ler o texto, reconhecemos de plano o


método quantitativo, científico:
1.º) a hipótese;
2.º) a experimentação da hipótese na realidade cognoscível;
3.º) conclusão final.

No caso, o dado ideológico adentraria quando o senhor


Palomar faz as correções necessárias para que o modelo coincida com
a realidade.

O modelo dos modelos é uma idealização palomárica de um


positivismo à toda prova, semelhante `a Utopia de Thomas Morus:
estático, perene e imóvel, feito uma estátua que se tivesse estagnado
num único tempo-espaço, congelado num hic et nunc helênico.

Outro dado de importância é a maneira como Palomar


deduz: Jean-Paul Sartre comentou, certa feita, que os marxistas
consideram que a contemplação é um luxo, nos reconduz à uma
filosofia burguesa.21

Palomar reflete o ser mediano, para o qual o mundo tem que


ser especificamente medido, conhecido através de régua-e-compasso;
21
SARTRE, Jean-Paul. L’EXISTENCIALISME est un humanisme. Paris (França): Nagel, 1963
(impr.) . P. 9/10.
as mentes condicionadas assim funcionam, feito esquizofrênicos que
sofrem de uma loucura solidária, pois se trata de um conjunto de
alucinações coletivas, conformes a um universo real para eles. Palomar
busca esse universo, vive nele, teme discuti-lo seriamente, preferindo
tomá-lo como base para qualquer estudo. A sua coerência é a coesão
construída entre os elementos pertencentes às alucinações coletivas.
Machadianamente, se todos são loucos e o médico são, interne-se o
segundo, pois a ordem é mantida quando a maioria prevalece, e a
normalidade é o que a maioria crê. Quando Luiz Carlos Maciel 22 falou
sobre a questão da realidade palpável, num de seus inúmeros artigos
sobre pensamento oriental etc explicou que A aparência “física”
dessas duas categorias (tempo e espaço) é construção mental; são
engendramentos, entre tantos outros, obedientes à Lei da Originação
Dependente ou Produção Condicionada. Para a mente desperta e
desapegada, em conseqüência, as condições do momento não são
dados congelados, mortos e passivos – como os encaramos em nossa
distorcida experiência cotidiana mas elementos vivos que não podem
ser divididos, separados, do agir efetivo. Na realidade, os pretensos
“tempo” e “espaço” são descontínuos e instantâneos; a farsa começa
quando, através das artes enganadoras da memória e da imaginação,
adquirem uma aparente continuidade.

Ser ou imaginar-se? Age Palomar de acordo com sua


imaginação? Existe o Tao de Lao-Tsé, o Ser Primordial de Sartre, a
realidade humana de Heidegger23, “um ser que existe antes de
definido”; a existência precede a essência ou vice-versa?

Lao-Tsé (Lo Tzê, Lau-Tzé, ...), pensador chinês, teria escrito


o Tao-Te-King (Tau-te-ching,...), segundo tradição daquele país. Nesse
escrito, o filósofo/mestre indica os meios pelo qual se chega a ser um
“Santo”, ou segundo uma tradução mais ocidentalizada, um “Sábio”,
através da chamada “Não-ação”. O Tao é um princípio e uma meta; o
Tao-Te-King o caminho para o Tao. A não-ação é um agir de acordo
com os movimentos do universo, um agir que não destrói, não
desmonta nem constrói, mas evolui acordante com as Leis Naturais, ou
acima destas até onde se as conheça. O Taoísmo, por sua vez, é uma
leitura displicente, ao “pé-da-letra”, destoante dos princípios/metas

22
MACIEL, Luiz Carlos. A MORTE ORGANIZADA. São Paulo/Rio de Janeiro: Global/Ground,
[1978]. P.168/169.
23
SARTRE. Op.Cit. P. 21.
remontantes ao Tao, servil a uma dominação política, econômica,
social e cultural; é uma ditadura equivalente à Inquisição Católica
medieval: não-agir passa a ser uma sinonímia de ... não agir . Martha
Graham (Memória do Sangue, trad. Cláudia Martinelli Gama, SP,
Siciliano, 1993, p.79) conta: “- Essa mulher muda. Ela é Tao – a mãe
disse mais tarde. E foi tudo. A mãe dela temia esse elemento de
mudança. A mudança é a única constante. Sabe, não se pode colocar
o pé duas vezes na mesma corrente de água porque ela se vai. Está-se
num novo lugar na corrente.”...”Acredito na mudança porque é
eterna. Ela não permanece em um lugar.”
A pretensa neutralidade científica de Palomar é facilmente
identificável como forma de escolha. Qual escolher? E se o jovem
[católico] escolhe um padre resistente, ou um colaboracionista, já
decidiu o gênero de conselho que receberá. Assim, vindo me procurar,
ele sabia a resposta que lhe daria, e eu não tinha que uma resposta a
dar: você é livre, escolha, quer dizer, invente.(...) Se ele veio te pedir
um conselho, é porque já escolheu a resposta. Na prática, eu já
poderia muito bem lhe ter dado um conselho; mas porque ele
procurava a liberdade, quis eu lhe deixar decidir.24

O método qualitativo é humilde, despretensioso no senso de


extrair a síntese final, abrindo o leque ao invés de fechar. Seu
tratamento é dialético, entretanto, e adentra na maneira feminina de
pensar, na intuição que segue à razão, não aquela dos magos,
cabalistas e bruxas, porém a de uma dialética prática.

A pesquisa qualitativa não fecha o círculo, abre a linha para


que se una a outras e outras, formando a final um imenso e muito
maior círculo que o da quantitativa. É científica porque seu método
não é irracional, segue sistemas, doutrinas, citações, entre outras
coisas; apenas é diferente, amplia o raio de ação, deixa de ter um fito
próximo, olha para o horizonte que se perde ao distante. Não é
científica porque seu método não é necessariamente silogístico. Não
apresenta gráficos, tabelas e quetais. Torna-se científica por seu
interesse, mas não por seu meio. O Senhor Palomar ainda não
entendeu isso.

24
SARTRE. Op.Cit. P. 46/47 e 141.
Décimo texto: “Processos de Organização do Texto”,
de Elisa Guimarães

Ressalta Elisa Guimarães ser este procedimento, o da


organização temática, uma das muitas sendas para se intrincar na
questão textual. Faz-nos crer na apreensão de um todo através do que
chama a confluência de muitos direcionamentos, embora deixe claro
que se limita, no caso, a determinadas orientações objetivas,
concebendo texto a partir da previsão, suposição, presunção da
existência de um sentido principal, o que na verdade é o sentido que
espera o Autor passar ao leitor, e este crê estar sendo o que capta do
Autor. Aliás, tal intenção é a proposta pela noção de pertinência
comunicativa.

Evidente que um parágrafo como o acima estaria se


distanciando da tal pertinência... Ora, o rebuscado do estilo – que a
Autora chama de prolixidade e exagero verbal - faz o leitor se perder
e, não raro, se de boa vontade, reler e treler até entender.

A pertinência comunicativa pode se desdobrar em três


princípios:
do novo;
da homogeneidade;
da lógica.

Eis que o novo faz o movimento, partindo do conhecido,


como um caminho, a fim de se chegar ao novo, construindo assim uma
ideia. Se não há ideia, ganha-se apenas a redundância. Mas se não se
iniciar pela repetição de algo já sabido pelas pessoas interativas, perde-
se a coerência.

Essa mesma coerência se obtém identicamente pela


sustentação da continuidade semântica, i.e., um único sentido, um
único encadear de ideias, a construção de uma ideia a partir de algo
conhecido para se chegar a um novo, mas desde que o segundo tenha
familiaridade com o primeiro, similitude semântica.
Integrando-se os diversos níveis em que se pode estabelecer
a coerência (sintático, semântico, temático, estilístico etc) temos uma
coerência global. Pessoalmente, diria que é feito a quadratura do
círculo, sempre a mais e mais arredondar, nunca se chegando ao fim,
mas cada vez mais perto. Assim, a indeterminação recupera a noção
da existência fatal das falhas inevitáveis na comunicação; a
ambiguidade trai, com o ar psicanalítico de que nem sempre o que se
diz é o que se quer dizer. Não se pode, entretanto, confundir as
sutilezas de estilo com os comuníssimos e crassos erros do vulgo e do
que engendra engodos. Exemplifica a Autora com a distinção entre o
discurso ambíguo e o simplesmente impreciso, em que aquele pode ser
intencional, enriquecendo o texto como recurso de comunicação, ao
passo que este é apenas falta de saber fazer.

Entra por essa porta o princípio da polivalência: abre um


leque de sentidos primordiais.

A lógica busca a não-contradição, e é o sequente na linha


iniciada pelo princípio do novo e continuada pelo da homogeneidade.

Há uma lógica textual que segue o cartesianismo, de que


João pensa, todo ser que pensa existe, ele pensa, logo existe. E assim
termina o texto, dizendo algo como: “Portanto,....”

Há outra lógica textual, mais próxima ao proposto por Elisa,


que trabalha com a dicotomia, trazendo à tona duas ideias
contraditórias, as quais mostram uma terceira, desnecessariamente
exposta conclusivamente, geralmente obtida pelo entendimento do
leitor, este agora tornando-se mais Autor, menos passivo. Não que
inexista a exposição de uma conclusão, mas ela é mais sensorial que
científica. Creio terem aí se enganado os marxistas leninistas e
trotkistas, assim como lamentavelmente os existencialistas sartrianos:
distanciaram-se dos sentidos, sentimentos, sensibilidade e, por que
não, espiritualidade ou extrassensorialidade, acreditando estarem dessa
forma se aproximando de resultados mais palpáveis, pois mais
científicos, experimentados, medidos estatisticamente, transformados
em tabelas, gráficos,... A semântica expõe feridas inexplicáveis, eis
onde se imiscui a lógica dialética, cuja conclusão de uma ideia termina
sendo o comentário do tópico, mais que o inverso. Ao se obter uma
síntese, um tema, um tópico, sem demora ou muito após, mas quiçá
inevitavelmente, encontraremos algum tipo de antítese, um novo que
lhe contraporá, surgindo uma discussão entre ambos, a análise, o
comentário, a rema. Ora, para se apresentar um tema, há de se ter uma
ideia, uma ideologia revestida por um discurso, conceitos, presunções,
e esse verdadeiro mundo ideal dará ensejo ao pensar nele: o rema só
existirá quando houver primeiro um tema. Não é necessariamente
previsível o rema, como observa-se na lógica formal, aqui ele
pressupõe a existência de um contratema, não explicitado, mas que dá
ao rema o estado de discussão. E um tema seguido por um rema
poderá ensejar um novo tema. Vejamos adiante, conforme o exemplo
da Autora.

Tema: A elevação do nível educacional da população


brasileira.

Um possível contratema: O rebaixamento do nível


educacional da população brasileira.

Rema: (A elevação do nível educacional da população


brasileira) é o principal desafio enfrentado pelo país.

Outros remas: O principal desafio enfrentado pelo país é (a


elevação ou o rebaixamento do nível educacional da população
brasileira).
O principal desafio enfrentado pelo país é (a balança onde
uma classe econômica da população brasileira se encontra no
rebaixamento e outra na elevação do nível educacional).

Um rema não precisa ser contraposto a outro, nem sequer


parecido, como vemos no exemplo do 3º. parágrafo, proposto pela
Autora na página 27, onde cada rema dá ao tema um novo caminho,
nova ideia, novo percurso interativo. Vai o Autor, assim, construindo
seu texto com menos temas e mais remas, pois estes nascem daqueles,
como filhos de um mesmo pai.

Isso faz a progressão temática. Então, diversamente da velha


lógica formal, tão apreciada pelos instrutores de redação de
vestibulares, onde uma só ideia é apresentada, elaborada e concluída
(“Em resumo...”), passamos à elaboração de textos mais dinâmicos,
assim como à leitura de textos de maneira mais aberta, discursiva,
“remática”...

A repetição conduz o leitor como nos faz Dante Allighieri


pelas Estações, modificando em sua progressão, porém mantendo
sempre um Fio de Ariadne. Ainda que introduza novos cenários, a
ponto de se dividir em três locais totalmente diversos – Inferno,
Purgatório e Paraíso - , sempre se tem em mente que a viagem é
ilustrativa dos merecimentos de nossos atos em vida. O fio condutor
do texto é a repetição, mais da ideia que das palavras.

A rema informa, como a cigarra arrebenta o verão, ilumina,


e enche de som o ar.25 Se o tema é solitário, não há ideias, não há
crítica, não existe espírito no texto, e ele murcha.

Um texto circular é a representação de uma escrita autista,


embora possa se assemelhar à ideia-fixa , sutilmente fronteiriço, como
entre a concepção da redação escolar apresentada pela Autora na
página 29 ( Nós, jovens que... ) e a de um velho filme cultuadíssimo
pelos arte-cinéfilos, conhecido por um nome algo em torno de O ano
passado em Marienbad. Um é o exemplo da falta de progressão
temática por repetir demasiadamente a mesma carga semântica; outro
faz da falha deste a sua característica: Phillip Glass e o Minimalismo.

Pela experiência de Elisa no magistério, a grande dificuldade


é, para o aluno, a organização de suas ideias em um texto. Ideias não
são objetos, que se pode contar, classificar e ordenar, mas vêm
profusas, repentinas, voláteis, necessitando o discente de aprender a
domá-las, como faz o domador de feras, ensinando-as a respeitar
caminhos, lógicas, e buscando mnemonias, com o fito de poder
comparar, classificar, coordenar. Há de se condicionar a mente para
organizar as ideias num texto, pois a própria noção de coesão textual é
cultural, devendo o aluno compreender a feitura do texto e a cultura
que o cobre, para só então partir para um descondicionamento e novo
condicionamento para um mundo maior, assim continuamente, com
uma organização cada vez mais complexa, para textos mais ricos e
bem arquitetados.

25
Isso é algo pertencente à letra de uma canção que a Simone cantava em, +, 1980.
Escrever se aprende com o hábito, mais que com a correção
de um professor entediado, cuja preocupação – certeira – com a forma
do texto fá-lo se esquecer do conteúdo, levando este a ser quase
formal, como o fazem aqueles instrutores de redação que se baseiam
nos manuais impostos por este ou aquele Autor, este ou aquele editor.

A construção do texto é para a chamada “totalidade de


significação”, fazendo do leitor um bom escritor, redator, produtor de
textos, não mero fazedor de sequência de frases desconexas.
Décimo-Primeiro texto: “Notas para uma Didática do
Português”

O objetivo desde texto é apresentar uma proposta


pedagógica para o ensino de texto, seja leitura ou produção.

As três perversões , no dizer de José Luiz Fiorin, no ensino


da língua materna no Brasil, são:

1) mais se ensina a metalinguagem que a própria língua:


gramática, análise sintática, entre quetais, são mais valorizados que
tornar o aluno usuário mais eficiente das diferentes matizes da língua
materna. Aprende o discente a classificar a frase, mas não a usa
estruturada em seu falar. É-lhe dado particularidades, nunca o textual
completo;

2) explicam-se as categorias gramaticais sem que sejam


devidamente relacionadas na linguagem funcional;

3) o texto é analisado fragmentariamente, como sucessão de


frases; no entanto, aguarda o professor que seu aluno faça um texto
coeso, sem nunca ter-lhe mostrado essa coesão durante a leitura.

Deve o professor de língua materna se afeiçoar à produção


de textos como um meio de se treinar os mecanismos discursivos de
constituição de sentido no aluno. Defende o Autor que o talento para
escrever, como a sensibilidade no ler, adquire-se por
desenvolvimento, e assim crê que a explicitação dos mecanismos
discursivos de constituição do sentido do texto é mola propulsora para
o desempenho na compreensão e produção de texto.

Comunicar é fazer com que o receptor compreenda a


mensagem do emissor, aceitando, crendo, sendo levado a fazer algo.
Comunicar é obter adesão. Persuadir é levar o receptor a aderir ao
que se diz. Argumentar é raciocinar sobre uma tese: é mais que
escolher entre duas alternativas, é se utilizar de ambas para se obter o
mais justo, oportuno, útil. O argumento pode desconstruir a conclusão
para explicá-la, levar-nos às premissas, relacionando-as, ou persuadir,
levando a crer que tal ou tal tese é preferível, ainda que não totalmente
agradável, ou que a outra não seja apenas menos preferível. Assim, o
argumento é o que o dominador de uma situação tem como
instrumento contra o dominado.

O texto, no sentido estrito, será sempre argumentativo. Leva


o leitor a crer que fala de coisas reais, as quais devem ser por ele
aceitas como verdadeiras.

Pode ser baseado na competência de leitura do emissor,


centrando-o no discurso, tornando-o agente de confiança do leitor.
Pode ser baseado na do receptor, fazendo este querer ser parte de um
mundo como persuadido a crer. Pode ser baseado no referente, citando
estatísticas, exemplos, ...Pode ser baseado na mensagem, ou até no
código linguístico. Pode ser, enfim, em qualquer dos estágios do
mecanismo da comunicação.

O Autor acredita que apresentando ao aluno fórmulas de


escrita, entremeadas com teorias do discurso e do texto,
inevitavelmente teremos melhores autores. Penso que a técnica deve
sempre ser aliada ao desenvolvimento do talento pessoal, a fim de
aquela servir este, nunca vice-versa. Ou teremos simples redatores
presos aos manuais de redação de veículos comunicativos.
ONZE TEXTOS ANALISADOS
POR LEOPOLDO PONTES
© 2001

Posfácio
Este pequeno livro tem o objetivo de auxiliar professores e
alunos de cursos de Letras e de Comunicação Social, incluindo
outros que desejem se aprofundar no estudo da língua, como os de
Direito, seja graduação ou pós, com textos diversos analisados por
diferentes aspectos.

Na maioria dos casos, não apresento o texto original, apenas


minha análise. Na bibliografia, ou em meio ao trabalho, por vezes há
indicações necessárias, caso o leitor queira conhecê-los. Embora
escrito em linguagem usual, é permeado aqui e ali de termos técnicos,
a fim de habituar o estudioso e colocá-lo em contato com novos
códigos.

Por fim, gostaria de deixar aqui bem claro a nossa concepção


de “texto”: é todo e qualquer “corpus” a ser estudado, podendo
apresentar-se não necessariamente sob a forma escrita. Assim, um
filme pode ser um texto, como também apenas uma palavra, letra, ou
imagem (figura, seja ícone ou símbolo). Concebemos, pois, texto,
como integrado a um sistema: quando o estudamos à parte, é um
recorte que fazemos de um todo.
O autor
Outono de 2001.
Bibliografia

BASTOS, Neusa (organizadora). Língua Portuguesa: História,


Perspectiva, Ensino. São Paulo: PUC-SP / EDUC, 2000.

CAMPOS, Cláudia de Arruda. Lendo Cantiga de Esponsais, de


Machado de Assis (Apostila).Caraguatatuba (SP), 2000.

CASTRO ALVES, Antonio de. Espumas Flutuantes. Porto Alegre:


L&PM, 1997.

FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. O que é Loucura. Coleção


Primeiros Passos. São Paulo, Abril Cultural/Brasiliense, 1985.

GRAHAM, Martha . Memória do Sangue. Trad. Cláudia Martinelli


Gama. São Paulo: Siciliano, 1993.

GREIMAS, A . J. apud CHAMIE, Mário. A Linguagem Virtual. São


Paulo: Quíron, Conselho Estadual de Cultura, 1976.

GUARNIERI, Gianfrancesco. Castro Alves Pede Passagem. Libreto


da peça teatral com montagem pela FAEC (Fundação de
Assistência aos Empregados da CESP). [São Paulo, 1972 (ou -?)
Rio Claro, 1978].

IAN WATT. A Ascensão do Romance. São Paulo. Companhia das


Letras, 1990.

JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Reunidas e


editadas por Aniela Jaffé. Tradução de Dora Ferreira da Silva. 2 ª
ed. R J.: Nova Fronteira, [1975].

LAET, Carlos de e BARRETO, Fausto. Antologia Nacional ou


Coleção de Excertos dos Principais Escritores da Língua
Portuguêsa do 20.º ao 13.º Século. 28ª ed. Francisco Alves. RJ,
SP, BH. 1950)

LAJOLO, Marisa e CAMPEDELLI, Samira . ALVES, Castro:


Seleção de Textos, Notas, Estudos Biográfico, Histórico e
Crítico e Exercícios por Marisa Lajolo e Samira Campedelli.
Da coleção “Literatura Comentada” . São Paulo: Abril
Educação, 1980.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Contos Escolhidos – Seleção


de Roberto Alves.Coleção Vestibular. O Estado de São
Paulo/Klick Editora. São Paulo,[ 1999].

MACIEL, Luiz Carlos. A Morte Organizada. São Paulo/Rio de


Janeiro: Global/Ground, [1978]. P.168/169.

MUGGIATI, Roberto. Rock, o Grito e o Mito. SP ? / RJ ? : Edit ? ,


197...

NEVINS, ALLAN (colig.). O Pêso da Glória. São Paulo,


Melhoramentos.1965.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce-Homo – Como cheguei a ser o


que sou . Trad. Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Edições
e Publicações Brasil, [19...].

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e


procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PONTES, Leopoldo Luiz Rodrigues. A Leveza e o Peso no Preâmbulo


da Constituição Brasileira – Demonstração da Invisibilidade e
da Sustentatibilidade de um Projeto de Defesa Para o Cidadão,
com Ênfase Para a Separação Entre Igreja e Estado.
Monografia de Conclusão para a Pós-Graduação em Língua
Portuguesa e Literatura. Faculdades Integradas Módulo:
Caraguatatuba(SP), © 2001.

RIBEIRO, Renato Janine. Tudo o que devemos ao filósofo . (jornal) O


Estado de São Paulo, São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de
2000, Caderno 2/ Cultura, p. D5.

RIMBAUD, Arthur. Une Saison en Enfer. “In” Rimbaud, Obra


Completa – Prosa y Poesía – Edición Bilingüe – Trad. J.F.Vidal-
Jover . Barcelona (Espanha): Libros Río Nuevo, 1975.
RIMBAUD, Jean-Nicolas-Arthur. Uma Estadia no Inferno / Une
Saison en Enfer. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983.

RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1991 (volume


1: Parte Geral).

SARTRE, Jean-Paul. L’EXISTENCIALISME est un humanisme. Paris


(França): Nagel, 1963 (impr.) .

SEGRE, Cesare. Os Signos e a Crítica . São Paulo: Perspectiva, 1974


(Coleção Debates).

SILVA, Aguinaldo. Luz del Fuego. Rio de Janeiro: Codecri/Morena


Produtores de Arte, 1982 (Coleção Edições do Pasquim, v.122) .

SMITH, Joseph A Pérola de Grande Valor. Cidade do Lago Salgado,


Utah (EUA): A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias, 1997 .

________ Doutrina e Convênios. Cidade do Lago Salgado, Utah


(EUA): A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias,
1997.

THE BIBLE SOCIETY IN ISRAEL. Hebrew Bible. Jerusalem


(Israel): The Bible Society in Israel, [ 198...].

VERÍSSIMO, Luís Fernando et al. (jornal) O Estado de São Paulo.


São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 2000.

Discografia

ELLER, Cássia. Veneno Antimonotonia. Faixa 11: Por que a gente é


assim? (Cazuza, Frejat, Ezequiel Neves). São Paulo: Polygram,
[199...].

ELLER, Cássia. Cássia Eller. Faixa 7: Por enquanto (Renato Russo).


São Paulo: Polygram, [199...].
SMETANA. Ma Vlast. Vladimir Fedoseyev rege a Orquestra
Sinfônica da Grande Rádio e TV da União Soviética, Moscou.
Audiophile Classics. Intermusic S/A (copyright 1994).
Movieplay do Brasil.
SOBRE O AUTOR
Leopoldo Pontes nasceu às quatro e meia da manhã do
dia quatro de abril de 1958, na cidade de São Paulo.
No final dos anos 1970 e início dos 80, publicou por
conta própria vários livretos de poesia, na base do mimeógrafo e off-
set.
Tem algumas premiações por contos, estadual e
nacional.
Sua formação acadêmica inclui Jornalismo e Direito,
além de uma pós-graduação em Língua Portuguesa e Literatura.
Tem outros livros publicados pela Amazon.

Contato com o autor: leopoldopontes21@gmail.com

Você também pode gostar