Você está na página 1de 46

Coletânea

de Textos
Contos, Crônicas, Fábulas e
Poemas

@portuguessemtedio
OLÁ, PROF!

Quero compartilhar com você este material contendo textos distribuídos


em contos, crônicas, fábulas e poemas. São 40 textos com mensagens
reflexivas e motivacionais ideais para serem utilizados com a sua turma em
um início ou final de aula, no início do ano letivo ou em outra situação.

Espero que este material faça a diferença em suas aulas para que elas sejam
sempre sem tédio!

r
ise Xavie
Prof.ª De

Ao adquirir este arquivo, você pode usá-lo nas suas aulas com seus alunos, ou seja,
você pode compartilhá-lo com seus alunos de maneira impressa ou digital.
Este material não pode ser comercializado.

@portuguessemtedio

portuguessemtedio@gmail.com

Português sem Tédio

@portuguessemtedio
SUMÁRIO
FÁBULA DA CONVIVÊNCIA.................................................................................................................4
SEMENTES...............................................................................................................................................5
A HISTÓRIA DO LÁPIS...........................................................................................................................6
CARROÇA VAZIA....................................................................................................................................7
BAGAGEM DA VIDA................................................................................................................................8
PARÁBOLA DAS PEDRAS......................................................................................................................9
O CARPINTEIRO....................................................................................................................................10
LENÇÓIS SUJOS.....................................................................................................................................11
A VIAGEM DE TREM..............................................................................................................................12
O TOCO DE LÁPIS.................................................................................................................................13
SOPA DE PEDRAS.................................................................................................................................14
AS TRÊS PENEIRAS..............................................................................................................................15
A CORRIDA DE SAPINHOS..................................................................................................................16
A ASSEMBLEIA DOS RATOS...............................................................................................................17
A RAPOSA E A CEGONHA....................................................................................................................18
A PISCINA DE CROCODILOS...............................................................................................................19
A ÁGUIA E A GALINHA.........................................................................................................................20
UMA IDEIA TODA AZUL.......................................................................................................................21
A MOÇA TECELÃ...................................................................................................................................22
O RETORNO DO PATINHO FEIO......................................................................................................24
O CORAÇÃO DE BAOBÁ......................................................................................................................25
A LENDA DO FLOQUINHO DE ALGODÃO.......................................................................................26
A OUTRA NOITE...................................................................................................................................27
FELICIDADE CLANDESTINA...............................................................................................................28
A ÚLTIMA CRÔNICA.............................................................................................................................29
O HOMEM CUJA ORELHA CRESCEU................................................................................................30
NÓIS MUDEMO.....................................................................................................................................31
COM SUA VOZ DE MULHER...............................................................................................................33
O PADEIRO............................................................................................................................................35
CAFEZINHO............................................................................................................................................36
FELIZ E ORGULHOSO, ENVAIDECIDO MESMO.............................................................................37
FALECEU ONTEM A PESSOA QUE ATRAPALHAVA SUA VIDA...................................................38
VER VENDO...........................................................................................................................................39
O TEMPO...............................................................................................................................................40
ANINHA E SUAS PEDRAS...................................................................................................................41
ORA DIREIS OUVIR ESTRELAS.........................................................................................................42
TIMIDEZ.................................................................................................................................................43
METADE.................................................................................................................................................44
A ARTE DE SER FELIZ.........................................................................................................................45
É PRECISO MUDAR..............................................................................................................................46

@portuguessemtedio
FÁBULA DA CONVIVÊNCIA

Durante uma era glacial, quando parte do globo terrestre esteve coberto
por gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram indefesos,
por não se adaptarem às condições do clima hostil.
Foi então que uma grande manada de porcos-espinhos, numa tentativa
de se proteger e sobreviver, começou a se unir, ajuntar-se mais e mais. Assim,
cada um podia sentir o calor do corpo do outro. E todos juntos, bem unidos,
aqueciam-se mutuamente naquele inverno tenebroso.
Porém, os espinhos de cada um começaram a ferir os companheiros mais
próximos, justamente aqueles que ofereciam mais calor, aquele calor vital,
questão de vida ou morte. Então, todos se afastaram-se feridos, magoados e
sofridos. Dispersaram-se, por não suportarem por mais tempo os espinhos de
seus semelhantes.
Doía muito. Mais essa não foi a melhor solução porque separados logo
começaram a morrer congelados. Os que não morreram voltaram a se
aproximar, pouco a pouco, com jeito, com medo, com cuidado, de tal forma
que, unidos, cada qual conservava uma certa distância do outro, mínima, mas o
suficiente para conviver sem magoar, sem causar danos recíprocos. Assim,
suportaram-se resistindo à longa era glacial. Sobreviveram.
Conclusão: O melhor do relacionamento não é aquele que une pessoas
perfeitas, mas aquele onde cada um aprende a conviver com os defeitos do
outro, a admirar suas qualidades.

• É fácil trocar palavras, difícil é interpretar o silêncio!


• É fácil caminhar lado a lado, difícil é saber como se encontrar!
• É fácil beijar o rosto, difícil é chegar ao coração!

A Fábula da Convivência é de autoria desconhecida, foi adaptada da metáfora “O dilema do porco-


espinho” do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860)

@portuguessemtedio
4
SEMENTES

Um homem morava numa cidade grande e trabalhava numa fábrica.


Todos os dias, ele pegava o ônibus e viajava cinquenta minutos até o trabalho.
À tardinha, fazia a mesma coisa voltando para casa.
No ponto seguinte ao que o homem subia, entrava uma velhinha, que procurava sempre
sentar à janela. Abria a bolsa, tirava um pacotinho e passava a viagem toda jogando alguma
coisa para fora do ônibus.
Um dia, o homem reparou na cena. Ficou curioso. No dia seguinte, a mesma coisa.
Certa vez, ele sentou-se ao lado da velhinha e não resistiu:
— Boa-tarde. Desculpe a curiosidade, mas o que a senhora está jogando pela janela?
— Boa-tarde, respondeu a velhinha. Jogo sementes.
— Sementes? Sementes de quê?
— De flor. É que eu viajo neste ônibus todos os dias.
Olho para fora e a estrada é tão vazia. Gostaria de poder viajar vendo flores coloridas por
todo o caminho… Imagine como seria bom.
— Mas a senhora não vê que as sementes caem no asfalto, são esmagadas pelos pneus
dos carros, devoradas pelos passarinhos? A senhora acha que essas flores vão nascer aí, na
beira da estrada?
— Acho, meu filho. Mesmo que muitas sejam perdidas, algumas certamente acabam
caindo na terra e, com o tempo, vão brotar.
— Mesmo assim, demoram para crescer, precisam de água…
— Ah, eu faço minha parte. Sempre há dias de chuva. Além disso, apesar da demora, se
eu não jogar as sementes, as flores nunca vão nascer.
Dizendo isso, a velhinha virou-se para a janela aberta e recomeçou seu “trabalho”.
O homem desceu logo adiante, achando que a velhinha já estava meio caduca.
O tempo passou…
Um dia, no mesmo ônibus, sentado à janela, o homem levou um susto: olhou para fora e
viu margaridas na beira da estrada, hortênsias azuis, rosas, cravos, dálias… A paisagem estava
colorida, linda.
O homem lembrou-se da velhinha, procurou-a no ônibus e acabou perguntando para o
cobrador, que conhecia todo mundo.
— A velhinha das sementes? Pois é, morreu de pneumonia no mês passado.
O homem voltou para o seu lugar e continuou olhando a paisagem florida pela janela.
“Quem diria, as flores brotaram mesmo”, pensou. “Mas de que adiantou o trabalho da velhinha?
A coitada morreu e não pôde ver esta beleza toda.”
Nesse instante, o homem escutou uma risada de criança. No banco da frente, um
garotinho apontava pela janela entusiasmado:
— Olha, mãe, que lindo, quanta flor pela estrada… Como se chamam aquelas azuis?
Então, o homem entendeu o que a velhinha tinha feito. Mesmo não estando ali para
contemplar as flores que tinha plantado, ela devia estar feliz. Afinal, tinha dado um presente
maravilhoso para as pessoas.
No dia seguinte, o homem entrou no ônibus, sentou-se numa janela e tirou um
pacotinho de sementes do bolso…

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
5
A HISTÓRIA DO LÁPIS

O menino olhava a avó escrevendo uma carta. A certa altura, perguntou:


- Você está escrevendo uma história que aconteceu conosco? E por acaso, é uma
história sobre mim?
A avó parou a carta, sorriu, e comentou com o neto: - Estou escrevendo sobre
você, é verdade. Entretanto, mais importante do que as palavras, é o lápis que estou
usando. Gostaria que você fosse como ele, quando crescesse.
O menino olhou para o lápis, intrigado, e não viu nada de especial. - Mas ele é
igual a todos os lápis que vi em minha vida!
- Tudo depende do modo como você olha as coisas. Há cinco qualidades nele que,
se você conseguir mantê-las, será sempre uma pessoa em paz com o mundo.

Primeira qualidade: você pode fazer grandes coisas, mas não deve esquecer nunca que
existe uma Mão que guia seus passos. Esta mão nós chamamos de Deus, e Ele deve sempre
conduzi-lo em direção à Sua vontade.

Segunda qualidade: de vez em quando eu preciso parar o que estou escrevendo, e usar o
apontador. Isso faz com que o lápis sofra um pouco, mas no final, ele está mais afiado.
Portanto, saiba suportar algumas dores, porque elas o farão ser uma pessoa melhor.

Terceira qualidade: o lápis sempre permite que usemos uma borracha para apagar aquilo
que estava errado. Entenda que corrigir uma coisa que fizemos não é necessariamente
algo mau, mas algo importante para nos manter no caminho da justiça.

Quarta qualidade: o que realmente importa no lápis não é a madeira ou sua forma
exterior, mas o grafite que está dentro. Portanto, sempre cuide daquilo que acontece
dentro de você.

Finalmente, a quinta qualidade do lápis: ele sempre deixa uma marca. Da mesma maneira,
saiba que tudo que você fizer na vida irá deixar traços, e procure ser consciente de cada
ação.

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
6
CARROÇA VAZIA

Num certo dia, um pai convidou o filho para irem de Maratona a Atenas
a pé. O filho aceitou com entusiasmo, e disse:
– Que bom! Meu querido pai, quem sabe se não vejo os ilustres sábios a
discursarem na ágora de Atenas. E foram caminhando...
Depois de um certo tempo, pararam para descansar debaixo de frondosas
árvores à beira de um riacho. Se fartaram de beber água e descansaram sob as
sombras ouvindo as melodias dos pássaros. Nesse ínterim, também se ouvia um
barulho. O menino apurou os ouvidos e disse:
– Esse barulho deve ser de uma carroça.
– Isso mesmo, disse o pai do menino. É uma carroça vazia...
O filho perguntou ao pai:
– Papai, como o senhor pode saber se a carroça está vazia se ainda não a
vimos?
Então disse o pai:
– Ora, é muito fácil saber se uma carroça está vazia por causa do barulho.
Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que ela faz.
O menino virou adulto, e quando ele via uma pessoa falando demais,
inoportuna, se intrometendo nas conversas dos outros, tinha a impressão de
ouvir a voz do pai dizendo: "Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho."

Moral da história: "Quem muito fala, muito erra."

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
7
BAGAGEM DA VIDA

Quando sua vida começa,você tem apenas uma mala pequenina de mão...
À medida que os anos vão passando, a bagagem vai aumentando. Porque
existem muitas coisas que você recolhe pelo caminho... Porque pensa que são
importantes.
A um determinado ponto do caminho começa a ficar insuportável carregar
tantas coisas. Pesa demais ! Então você pode escolher: Ficar sentado a beira do
caminho, esperando que alguém o ajude, o que é difícil, ...pois todos que
passam por ali já tem sua própria bagagem.
E ai, você pode ficar a vida inteira esperando. Ou você pode aliviar o peso,
esvaziando a mala. Mas, o que tirar ? Primeiro, você começa tirando tudo para
fora, e descobrindo o que tanto tem dentro. AMIZADE AMOR AMIZADE AMOR
Nossa ! Tem bastante, e o curioso... Não pesa nada ! Porém, tem algo ainda
pesando.... Você faz força para tirar.... É a RAIVA , e como ela pesa ! Aí você
começa a tirar, tirar e aparecem a INCOMPREENSÃO, o MEDO, o PESSIMISMO
Nesse momento, o DESÂNIMOquase te puxa pra dentro da mala ...
Mas você puxa-o para fora com toda a força, e aparece um SORRISO, que
estava sufocado no fundo de sua bagagem.... Pula para fora outro sorriso e mais
outro, e aí sai a FELICIDADE.
Você coloca as mãos dentro da mala de novo e tira pra fora a TRISTEZA.
Agora, você vai ter que procurar a PACIÊNCIA dentro da mala, pois vai precisar
bastante.... Procure então o resto: FORÇA ESPERANÇA CORAGEM ENTUSIASMO
EQUILÍBRIO RESPONSABILIDADE TOLERÂNCIA BOM HUMOR.
Tire a PREOCUPAÇÃO também, e deixe de lado. Depois você pensa o que
fazer com ela... Bem, sua bagagem está pronta para ser arrumada de novo... Mas
pense bem no que vai colocar lá dentro ! Agora é com você... E não se esqueça
de fazer isso mais vezes.

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
8
PARÁBOLA DAS PEDRAS

Certo dia um grupo de pessoas se reuniu para traçarem um objetivo,


que era o topo de uma montanha. Como estas pessoas nunca tinham estado
neste lugar e então, resolveram cada qual se preparar: em um saco colocaram
mantimentos e trocas de roupa e começaram a jornada.
No meio do caminho, ouviram uma voz um tanto quanto trovejante,
que lhes disse: Parem onde estão! Olhem ao seu redor. Vocês irão se dar conta
que existem muitas pedras. Apanhem pedras, tantas quantas puderem ou
quiserem. Coloquem em seus sacos. Ao atingir, cada qual seu objetivo, olhem
novamente estas pedras. Neste instante cada um de vocês irá sentir muita
alegria, mas ao mesmo tempo muita tristeza. E a voz se foi...
Restavam agora para cada um, em sua liberdade de escolha, apanhar
pedras. Algumas pegaram dez, outras vinte, e um e outro, que infelizmente
sempre questiona a voz do UNIVERSO, para não dizer que não pegou nenhuma,
colocou uma ou outra pedra.
Quando já estavam se aproximando do topo da montanha, todos foram
acometidos de expectativa, e porque não dizer, de ansiedade, para descobrirem
o porquê, haveriam de sentir alegria e tristeza ao mesmo tempo. Chegando lá,
colocaram os sacos no chão, abriram e sentiram muita alegria. Todas aquelas
pedras que haviam apanhado tinham se transformado, ao longo da jornada, em
belíssimos, e maravilhosos diamantes. Sentiram muita tristeza: porque não
pegaram mais pedras? Afinal estavam lá, à disposição.
Assim é nossa vida. Muitas vezes não nos damos conta que o UNIVERSO
é abundante em pedras, e que estão ao nosso redor. O que nos compete é
apanhar estas pedras e através de uma vida que valha a pena, transformá-las
em nossos diamantes.

Disponível em: https://palestrante.srv.br/artigos/fabula-e-parabola/parabola-das-pedras

@portuguessemtedio
9
O CARPINTEIRO

Um velho carpinteiro estava para se aposentar. Contou a seu chefe os


planos de largar o serviço de carpintaria e de construção de casas para viver
uma vida mais calma com sua família.
Claro que sentiria falta do pagamento mensal, mas necessitava da
aposentadoria.
O dono da empresa sentiu em saber que perderia um dos seus melhores
empregados e pediu a ele que construísse uma casa como um favor especial.
O carpinteiro consentiu, mas com o tempo, era fácil ver que seus
pensamentos e coração não estavam no trabalho.
Ele não se empenhou no serviço e utilizou mão de obra e matéria prima
de qualidade inferior.
Foi uma maneira lamentável de encerrar sua carreira.
Quando o carpinteiro terminou o trabalho, o construtor veio inspecionar a
casa e entregou a chave da porta ao carpinteiro e disse:
- Esta é a sua casa, é meu presente para você!
Que choque! Que vergonha! Se ele soubesse que estava construindo sua
própria casa, teria feito completamente diferente, não teria sido tão relaxado.
Agora iria morar numa casa feita de qualquer maneira.
Assim acontece conosco. Construímos nossas vidas de maneira distraída,
reagindo mais que agindo, desejando colocar menos do que o melhor.
Nos assuntos importantes não empenhamos nosso melhor esforço. Então,
em choque, olhamos para a situação que criamos e vemos que estamos
morando na casa que construímos. Se soubéssemos disso, teríamos feito
diferente.
Pense em você como um carpinteiro. Pense sobre sua casa. Cada dia você
martela um prego novo, coloca uma armação ou levanta uma parede. Construa
sabiamente!
Mesmo que tenha somente mais um dia de vida, esse dia merece ser
vivido graciosamente e com dignidade. Sua vida de hoje é o resultado de suas
atitudes e escolhas feitas no passado. Sua vida de amanhã será o resultado das
atitudes e escolhas que você fizer hoje.

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
10
LENÇÓIS SUJOS

Um casal, recém-casado, mudou-se para um bairro muito tranquilo.


Na primeira manhã que passavam na casa, enquanto tomavam café, a mulher
reparou atraves da janela em uma vizinha que pendurava lençóis no varal e comentou
com o marido:
- Que lençóis sujos ela está pendurando no varal!
- Está precisando de um sabão novo.
Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas!
O marido observou calado.
Alguns dias depois, novamente, durante o café da manhã, a vizinha pendurava
lençóis no varal e a mulher comentou com o marido:
- Nossa vizinha continua pendurando os lençóis sujos!
Se eu tivesse intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas!
E assim, a cada dois ou três dias, a mulher repetia seu discurso, enquanto a vizinha
pendurava suas roupas no varal.
Passado um tempo a mulher se surpreendeu ao ver os lençóis muito brancos sendo
estendidos, e empolgada foi dizer ao marido:
- Veja, ela aprendeu a lavar as roupas, Será que outra vizinha ensinou??? Porque eu
não fiz nada.
O marido calmamente respondeu:
- Não, hoje eu levantei mais cedo e lavei os vidros da nossa janela!
E assim é.
Tudo depende da janela, através da qual observamos os fatos.

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
11
A VIAGEM DE TREM

A vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns
acidentes, agradáveis surpresas em muitos embarques e grandes tristezas em alguns
desembarques.
Quando nascemos, entramos nesse magnífico trem e nos deparamos com algumas
pessoas, que julgamos, estarão sempre nessa viagem conosco, nossos pais.
Infelizmente isso não é verdade, em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos
do seu carinho, amizade e companhia insubstituível. Isso porém não nos impedirá que durante
o percurso, pessoas que se tornarão muito especiais para nós, embarquem. Chegam nossos
irmãos, amigos, filhos e amores inesquecíveis!
Muitas pessoas embarcarão nesse trem apenas a passeio, outras encontrarão no seu
trajeto somente tristezas e ainda outras circularão por ele prontos a ajudar quem precise.
Vários dos viajantes quando desembarcam deixam saudades eternas, outros tantos
quando desocupam seu assento, ninguém nem sequer percebe.
Curioso é constatar que alguns passageiros que se tornam tão caros para nós,
acomodam-se em vagões diferentes dos nossos, portanto somos obrigados a fazer esse trajeto
separados deles, o que não nos impede é claro que possamos ir ao seu encontro. No entanto,
infelizmente, jamais poderemos sentar ao seu lado, pois já haverá alguém ocupando aquele
assento.
Não importa, é assim a viagem, cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, despedidas,
porém, jamais, retornos. Façamos essa viagem então, da melhor maneira possível, tentando
nos relacionar bem com os outros passageiros, procurando em cada um deles o que tiverem
de melhor, lembrando sempre que em algum momento eles poderão fraquejar e precisaremos
entender, porque provavelmente também fraquejaremos e com certeza haverá alguém que
nos acudirá com seu carinho e sua atenção.
O grande mistério afinal é que nunca saberemos em qual parada desceremos, muito
menos nossos companheiros de viagem, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado.
Eu fico pensando se quando descer desse trem sentirei saudades. Acredito que sim, me
separar de muitas amizades que fiz será no mínimo doloroso, deixar meus filhos continuarem a
viagem sozinhos será muito triste com certeza… Mas me agarro na esperança que em algum
momento estarei na estação principal e com grande emoção os verei chegar.
Estarão provavelmente com uma bagagem que não possuíam quando embarcaram e o
que me deixará mais feliz será ter a certeza que de alguma forma eu fui uma grande
colaboradora para que ela tenha crescido e se tornado valiosa.
Amigos, façamos com que a nossa estada nesse trem seja tranquila, que tenha valido a
pena e que quando chegar a hora de desembarcarmos o nosso lugar vazio traga saudades e
boas recordações para aqueles que prosseguirem a viagem.

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
12
O TOCO DE LÁPIS

Lá, num fundo de gaveta, dois lápis estavam juntos.


Um era novo, bonito, com ponta muito bem feita. Mas o outro – coitadinho! –
era triste de se ver. Sua ponta era rombuda, dele só restava um toco, de tanto
ser apontado.
O grandão, novinho em folha, olhou para a triste figura do companheiro e
chamou:
– Ô, baixinho! Você, aí embaixo! Está me ouvindo?
– Não precisa gritar – respondeu o toco de lápis. – Eu não sou surdo!
– Não é surdo? Ah, ah, ah! Pensei que alguém já tivesse até cortado as suas
orelhas, de tanto apontar sua cabeça!
O toquinho de lápis suspirou:
– É mesmo... Até já perdi a conta de quantas vezes eu tive de enfrentar o
apontador...
O lápis novo continuou com a gozação:
– Como você está feio e acabado! Deve estar morrendo de inveja de ficar ao
meu lado. Veja como eu sou lindo, novinho em folha!
– Estou vendo, estou vendo... Mas, me diga uma coisa: Você sabe o que é uma
poesia?
– Poesia? Que negócio é esse?
– Sabe o que é uma carta de amor?
– Amor? Carta? Você ficou louco, toquinho de lápis?
– Fiquei tudo! Louco, alegre, triste, apaixonado! Velho e gasto também. Se
assim fiquei, foi porque muito vivi. Fiquei tudo aquilo que aprendi de tanto
escrever durante toda a vida. Romance, conto, poesia, narrativa, descrição,
composição, teatro, crônica, aventura, tudo! Ah, valeu a pena ter vivido tanto, ter
escrito tanta coisa, mesmo tendo de acabar assim, apenas um toco de lápis. E
você, lápis novinho em folha: o que é que você aprendeu?
O grandão, que era um lindo lápis preto, ficou vermelho de vergonha...

Pedro Bandeira

@portuguessemtedio
13
SOPA DE PEDRAS

Era final de um dia frio e começava a nevar. Um mendigo estava vagando pelo campo ,
sentia muita fome e frio, quando deparou com uma casa muito bonita. Ao se aproximar, notou
que lá dentro havia uma família reunida em volta de uma lareira. Os adultos conversavam, as
crianças brincavam e a empregada colocava a mesa para o jantar.
Juntou alguns gravetos que conseguiu arranjar próximo ao bosque; acendeu uma fogueira
e tirou uma panela velha de dentro de uma sacola. Colocou neve dentro da panela para
aquecer, e acrescentou uma pedra de bordas arredondadas para ferver junto.
Foi até a casa, pela porta dos fundos, e solicitou um pouco de comida. Como a resposta foi
negativa, pediu então, um pouco de sal.
-Mas por que o senhor quer um pouco de sal?
-É que eu vou fazer uma sopa de pedra e seria muito bom se tivesse algum tempero.
Logo depois, voltou à casa e pediu à empregada se ela poderia arrumar alguns legumes,
um resto de cenoura, um pouco de batata, etc. Conseguiu e foi colocar em sua panela.
A cozinheira começou a ficar curiosa. Separou outros legumes e foi até ele para ver o que
estava acontecendo.
-Tome, consegui mais alguns legumes e uns outros temperos. Deixe-me ver o que está
fazendo.
Olhando para dentro da panela com água fervendo, pode notar que no fundo havia uma
pedra.
-O senhor está mesmo cozinhando uma pedra?!!
-Sim, esta sopa é uma delícia !! A senhora nunca experimentou?
-Cozinho a muitos anos, mas sopa de pedra eu nunca tinha visto !
-Ela fica muito melhor quando se acrescenta alguns ingredientes, como pedaços de carne
de frango, tomates e bons temperos. Mas o segredo está na pedra !
Como boa cozinheira que era, entrou dentro da casa e foi providenciar os ingredientes que
faltavam e tratou de trazer outros, só para ver como ficava a sopa.
Percebendo a movimentação que acontecia fora da casa, a família procurou saber o que
estava ocorrendo.
Tomando conhecimento do fato, o senhor foi falar com o mendigo e , morrendo de
curiosidade acabou experimentando da iguaria.
-Muito interessante... até que é bem gostosa!!
O mendigo foi, aos poucos acrescentando em sua sopa, tudo o que lhe davam, sob os
olhares curiosos de todos. Tudo fervia dentro daquela panela, inclusive a pedra. E enquanto
esperavam pelo resultado, tiveram a oportunidade de conversarem e até de fazerem uma
outra fogueira bem maior para se aquecerem.
Quando a sopa ficou pronta, o mendigo pediu alguns pratos, pois só tinha um. O senhor
da casa assim o fez. Cada um foi servido pelo mendigo e degustaram da deliciosa sopa. Todos
comeram e adoraram...o sabor realmente ficara muito diferente com a pedra.
E de longe, podia-se ver uma casa não só iluminada por dentro mas, por fora também,
pessoas que nunca tinham se visto, confraternizavam-se ao redor de uma panela velha cheia
de sopa de pedra.
O que se pode tirar dessa história é uma enorme lição de vida. Podemos fazer tudo dar
certo se realmente quisermos e soubermos usar os temperos certos, mesmo tendo uma pedra
como o único ponto de partida.
Conto Tradicional Português

@portuguessemtedio
14
AS TRÊS PENEIRAS

Olavo foi transferido de projeto. Logo no primeiro dia, para fazer média com o
novo chefe, saiu-se com esta:
— Chefe, o senhor nem imagina o que me contaram a respeito do Silva. Disseram
que ele...
Nem chegou a terminar a frase, Juliano, o chefe, aparteou:
— Espere um pouco, Olavo. O que vai me contar já passou pelo crivo das três
peneiras?
— Peneiras? Que peneiras, Chefe?
— A primeira, Olavo, é a da VERDADE. Você tem certeza de que esse fato é
absolutamente verdadeiro?
— Não. Não tenho, não. Como posso saber? O que sei foi o que me contaram. Mas
eu acho que...
E, novamente, Olavo é interrompido pelo chefe:
— Então sua história já vazou a primeira peneira. Vamos então para a segunda
peneira que é a da BONDADE. O que você vai me contar, gostaria que os outros
também dissessem A SEU respeito?
— Claro que não! Deus me livre, Chefe! - diz Olavo, assustado.
— Então, — continua o chefe — sua história vazou a segunda peneira. Vamos ver a
terceira peneira, que é a da NECESSIDADE. Você acha mesmo necessário me contar
esse fato ou mesmo passá-lo adiante?
— Não chefe. Passando pelo crivo dessas peneiras, vi que não sobrou nada do que
eu iria contar — fala Olavo, surpreendido.
— Pois é Olavo! Já pensou como as pessoas seriam mais felizes se todas usassem
essas peneiras? — diz o chefe sorrindo e continua — Da próxima vez em que surgir um
boato por aí, submeta-o ao crivo dessas três peneiras: Verdade — Bondade —
Necessidade, antes de obedecer ao impulso de passá-lo adiante, porque: PESSOAS
INTELIGENTES FALAM SOBRE IDÉIAS, PESSOAS COMUNS FALAM SOBRE COISAS e
PESSOAS MEDÍOCRES FALAM SOBRE PESSOAS.

Disponível em: http://www.inf.ufpr.br/urban/2018-2%20CI-205/LeiturasAleatorias/AsTresPeneiras.pdf.

@portuguessemtedio
15
A CORRIDA DE SAPINHOS

Era uma vez uma corrida de sapinhos.


Eles tinham que subir uma grande ladeira e, do lado havia uma grande
multidão, muita gente que vibrava com eles.
Começou a competição.
A multidão dizia:
– Não vão conseguir! Não vão conseguir!
Os sapinhos iam desistindo um a um, menos um deles que continuava
subindo. E a multidão a aclamar:
– Não vão conseguir! Não vão conseguir!
E os sapinhos iam desistindo, menos um, que subia tranquilo,
sem esforço.
No final da competição, todos os sapinhos desistiram, menos aquele.
Todos queriam saber o que aconteceu, e quando foram perguntar ao
sapinho como ele conseguiu chegar até o fim, descobriram que ele era SURDO!

MORAL DA HISTÓRIA: Quando queremos fazer alguma coisa que precise de


coragem não devemos escutar as pessoas que falam que você não vai conseguir.
Seja surdo aos apelos negativos.

Monteiro Lobato

@portuguessemtedio
16
A ASSEMBLEIA DOS RATOS

Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer tal destroço na rataria duma


casa velha que os sobreviventes, sem ânimo de sair das tocas, estavam a ponto
de morrer de fome.
Tornando-se muito sério o caso, resolveram reunir-se em assembleia
para o estudo da questão. Aguardaram para isso certa noite em que Faro-Fino
andava aos mios pelo telhado, fazendo sonetos à lua.
– Acho — disse um deles — que o meio de nos defendermos de Faro-
Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxime, o guizo o
denuncia e pomo-nos ao fresco a tempo.
Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia. O projeto foi aprovado com
delírio. Só votou contra, um rato casmurro, que pediu a palavra e disse — Está
tudo muito direito. Mas quem vai amarrar o guizo no pescoço de Faro-Fino?
Silêncio geral. Um desculpou-se por não saber dar nó. Outro, porque não
era tolo. Todos, porque não tinham coragem. E a assembleia dissolveu-se no
meio de geral consternação.

Moral da estória: falar é fácil; fazer é que são elas.

Monteiro Lobato

@portuguessemtedio
17
A RAPOSA E A CEGONHA

Um dia a raposa convidou a cegonha para jantar. Querendo pregar uma


peça na outra, serviu sopa num prato raso. Claro que a raposa tomou toda a sua
sopa sem o menor problema, mas a pobre cegonha, com seu bico comprido,
mal pôde tomar uma gota. O resultado foi que a cegonha voltou para casa
morrendo de fome. A raposa fingiu que estava preocupada, perguntou se a
sopa não estava do gosto da cegonha, mas a cegonha não disse nada. Quando
foi embora, agradeceu muito a gentileza da raposa e disse que fazia questão de
retribuir o jantar no dia seguinte.
Assim que chegou, a raposa como ganhar dinheiro extra se sentou
lambendo os beiços de fome, curiosa para ver as delícias que a outra ia servir. O
jantar veio para a mesa numa jarra alta, de gargalo estreito, onde a cegonha
podia beber sem o menor problema. A raposa, amoladíssima, só teve uma saída:
lamber as gotinhas de sopa que escorriam pelo lado de fora da jarra. Ela
aprendeu muito bem a lição. Enquanto ia andando para casa, faminta, pensava:
“Não posso reclamar da cegonha. Ela me tratou mal, mas fui grosseira com ela
primeiro.”

MORAL DA HISTÓRIA: trate os outros tal como deseja ser tratado

Fábulas de Esopo. [tradução de Heloísa Jahn]. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1994.

@portuguessemtedio
18
A PISCINA DE CROCODILOS
Um milionário promove uma festa em uma de suas mansões e, em determinado
momento, pede que a música pare e diz, olhando para a piscina onde cria crocodilos:
- Quem pular na piscina, conseguir atravessá-la e sair vivo do outro lado ganhará
todos os meus carros. Alguém se habilita?
Espantados, os convidados permanecem em silêncio e o milionário insiste:
- Quem pular na piscina, conseguir atravessá-la e sair vivo do outro
lado ganhará meus carros e meus aviões. Alguém se habilita?
O silêncio impera e, mais uma vez, ele oferece:
- Quem pular na piscina, conseguir atravessá-la e sair vivo do outro
lado ganhará meus carros, meus aviões e minhas mansões.
Neste momento, alguém salta na piscina. A cena é impressionante.
Luta intensa, o destemido se defende como pode, segura a boca dos crocodilos com
pés e mãos, torce o rabo dos répteis. Nossa!!! Muita violência e emoção. Parecia filme
do Crocodilo Dandy!
Após alguns minutos de terror e pânico, sai o corajoso homem, cheio de arranhões,
hematomas e quase despido. O milionário se aproxima, parabeniza-o e pergunta:
- Onde quer que lhe entregue os carros?
- Obrigado, mas não quero seus carros.
Surpreso, o milionário pergunta:
- E os aviões, onde quer que lhe entregue?
- Obrigado, mas não quero seus aviões.
Estranhando a reação do homem, o milionário pergunta:
- E as mansões?
- Cara, eu também sou rico, já tenho mansões, carros e aviões. Não quero nada
que é seu.
Impressionado, o milionário pergunta:
- Mas se você não quer nada do que ofereci, o que quer então?
E o homem respondeu irritado:
- ACHAR O SACANA QUE ME EMPURROU NA PISCINA!

Moral da estória: " Para superarmos obstáculos aparentemente impossíveis as


vezes só precisamos de um empurrãozinho" .

José Joaquim

@portuguessemtedio
19
A ÁGUIA E A GALINHA

"Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em
sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia
milho e ração própria para galinhas.
Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto
passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
– Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia
– De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia.
Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
– Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este
coração a fará um dia voar às alturas.
– Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a
disse:
– Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e
voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as
galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
– Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
– Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos
experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à graça:
– Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
– Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia.
Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram para
fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos
das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:- Águia, já que você é uma águia, já que você
pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe! A águia olhou ao redor. Tremia como se
experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do
sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte. Nesse
momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se, soberana,
sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais para o alto. Voou… voou… até
confundir-se com o azul do firmamento…”
Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas há pessoas que nos fazem pensar como
galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, abramos as asas e voemos. Voemos como águias. Cada pessoa
tem dentro de si uma águia. Ela quer nascer. Sente o chamado das alturas. Busca o sol. Por isso somos
constantemente desafiados a libertar a águia que nos habita. Sejamos águias em nossas vidas e não
galinhas!
E você, já se preparou para alçar seus voos?"

Leonardo Boff.

@portuguessemtedio
20
UMA IDEIA TODA AZUL

Um dia o Rei teve uma ideia.


Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou com aquela ideia azul, que não quis
saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com ela nos gramados,
brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com igual
alegria, linda ideia dele toda azul.
Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.
Foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo. Sozinha no
seu sono, solta e tão bonita, a ideia poderia ter chamado a atenção de alguém. Bastaria esse
alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma ideia. Quem jamais saberia que já tinha dono?
Com a ideia escondida debaixo do manto, o Rei voltou para o castelo. Esperou a noite.
Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus aposentos, atravessou salões, desceu
escadas, subiu degraus, até chegar ao Corredor das Salas do Tempo.
Portas fechadas, e o silêncio.
Que sala escolher?
Diante de cada porta o Rei parava, pensava, e seguia adiante. Até chegar à Sala do Sono.
Abriu. Na sala acolchoada, os pés do Rei afundavam até o tornozelo, o olhar se embaraçava em
gazes, cortinas e véus pendurados como teias. Sala de quase escuro, sempre igual. O Rei deitou
a ideia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta.
A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.
O tempo correu seus anos. Ideias o Rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado
estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais que
mentiam a verdade. Apenas, sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido
vontade de brincar nos jardins.
Só os ministros viam a velhice do Rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe
que já podia descansar e o libertaram do manto.
Posta a coroa sobre a almofada, o Rei logo levou a mão à corrente.
– Ninguém mais se ocupa de mim – dizia atravessando salões e descendo escadas a
caminho das Salas do Tempo – ninguém mais me olha. Agora posso buscar minha linda ideia e
guardá-la só para mim.
Abriu a porta, levantou o cortinado.
Na cama de marfim, a ideia dormia azul como naquele dia. E linda. Mas o Rei não era mais
o Rei daquele dia. Entre ele e a ideia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo parado
na Sala do Sono. Seus olhos não viam na ideia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que
fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia.
Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha guardado
para a maior tristeza.
Depois baixou o cortinado, e deixando a ideia adormecida, fechou para sempre a porta.

COLASANTI, Marina. Uma ideia toda azul. São Paulo, Global, 2005.

@portuguessemtedio
21
A MOÇA TECELÃ

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E
logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia
passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o
horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca
acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida
pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a
chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os
pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar
a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear
para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que
o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que
entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela
própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria
bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida,
começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu
desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato
engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos,
quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o
chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça
pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas
coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram
dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa
para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta
imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas,
e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e
ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os
pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear
o mais alto quarto da mais alta torre.

@portuguessemtedio
22
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave,
advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os
cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria
fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio
com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de
novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos,
as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as
maravilhas que continha.
E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura acordou, e, espantado, olhou
em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu
seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o
peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a
devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti

@portuguessemtedio
23
O RETORNO DO PATINHO FEIO

Alfonso era o mais belo cisne do lago Príncipe de Astúrias. Todos os dias ele
contemplava sua imagem refletida nas águas daquele chiquérrimo e exclusivo
condomínio para aves milionárias. Mas Alfonso não se esquecia de sua origem
humilde.
– Pensar que, não faz muito tempo, eu era conhecido como o Patinho Feio…
Um dia, ele sentiu saudades da mãe, dos irmãos e dos amiguinhos da escola.
Voou até a lagoa do Quaquenhá. O pequeno e barrento local de sua infância. A pata
Quitéria conversava com as amigas, chocando sua quadragésima ninhada. Alfonso
abriu suas largas asas brancas.
– Mamãe! Mamãe! Você se lembra de mim?
Quitéria levantou-se muito espantada.
– Se-se-senhor cisne… quanta honra… mas creio que o senhor se confunde…
– Mamãe…?
– Como poderia eu ser mãe de tão belo e nobre animal?
Não adiantou explicar. Dona Quitéria balançava a cabeça.
– Esse cisne é mesmo lindo… mas doido de pedra, coitado…
Alfonso foi então procurar a Bianca. Uma patinha linda do pré-primário. Que
vivia chamando Alfonso de feio.
– Lembra de mim, Bianca? Gostaria de me namorar agora? He, he, he…
– Deus me livre! Está louco? Uma pata namorando um cisne! Aberração da
natureza…
Alfonso respirou fundo. Nada mais fazia sentido por ali. Resolveu procurar um
famoso bruxo da região. Com alguns passes mágicos, o feiticeiro e astrólogo Omar
Rhekko resolveu o problema. Em poucos dias, Alfonso transformou-se num pato
adulto. Gorducho e bastante sem graça. Dona Quitéria capricha fazendo lasanhas para
ele.
– Cuidado para não engordar demais, filhinho.
Bianca faz um cafuné na cabeça de Alfonso.
– Gordo… pescoçudo… bicudo…. Mas sabe que eu acho você uma gracinha?
Viveram felizes para sempre.

Marcelo Coelho.

@portuguessemtedio
24
O CORAÇÃO DE BAOBÁ- LENDA AFRICANA
No coração da África, havia uma extensa planície. E no centro dessa planície, erguia-se uma alta e
frondosa árvore. Era o baobá.
Um dia, embaixo do sol escaldante do meio-dia africano, corria pela planície um coelhinho, que,
cansado, quando viu o baobá, correu a abrigar-se à sua sombra. E ali, protegido pela árvore, ele se sentiu
tão bem, tão reconfortado, que olhando para cima não pôde deixar de dizer:
- Que sombra acolhedora e amiga você tem, baobá! Muito obrigado!
O baobá, que não costumava receber palavras de agradecimento – como muitos de nós também não
recebemos - ficou tão reconhecido, que fez balançar os seus galhos e tremular suas folhinhas, como
numa dança de alegria.
O coelho, percebendo a reação da árvore, quis aproveitar-se um pouquinho da situação e disse assim:
- É, realmente sua sombra é muito boa.... Mas e esses seus frutos que eu estou vendo lá em cima?
Não me parecem assim grande coisa...
O baobá, picado no seu amor próprio, caiu na armadilha. E soltou, lá de cima de seus galhos, um
belo e redondo fruto, que rolou pelo capim, perto do coelhinho.
Este, mais do que depressa, farejou o fruto e o devorou, pois ele era delicioso. Saciado, voltou para
a sombra da árvore, agradecendo:
- Bem, sua sombra é muito boa, seu fruto também é da melhor qualidade. Mas... e o seu coração,
baobá? Será ele doce como seu fruto ou duro e seco como sua casca?
O baobá, ouvindo aquilo, deixou-se invadir por uma emoção que há muito tempo não sentia.
Mostrar o seu coração? Ah... Como ele queria... Mas era tão difícil... Por outro lado, o coelhinho havia se
mostrado tão terno, tão amigo... E assim, hesitante, o baobá foi lentamente abrindo o seu tronco. Foi
abrindo, abrindo, até formar uma fenda, por onde o coelho pôde ver, extasiado, um tesouro de moedas,
pedras e joias preciosas, um tesouro magnífico, que o baobá ofereceu a seu amigo.
Maravilhado, o coelho pegou algumas joias e saiu agradecendo:
- Muito obrigado, bela árvore! Jamais vou te esquecer!
E chegando à sua casa, encontrou sua esposa, a coelha, a quem presenteou com as joias. A coelha,
mais do que depressa, enfeitou-se toda com anéis, colares e braceletes e saiu para se exibir para suas
amigas.
A primeira que ela encontrou foi a hiena, que, assaltada pela inveja, quis logo saber onde ela havia
conseguido joias tão faiscantes.
A coelha lhe disse que nada sabia, mas que fosse falar com seu marido.
A hiena não perdeu tempo: foi ter com o coelho, que lhe contou o que havia acontecido.
No dia seguinte, exatamente ao meio-dia, corria a hiena pela planície e repetia passo a passo tudo o
que o coelho lhe havia contado.
Foi deitar-se à sombra do baobá, elogiou-lhe a sombra, pediu-lhe um fruto, elogiou-lhe o fruto e
finalmente pediu para ver-lhe o coração.
O baobá, a quem o coelhinho na véspera havia tornado mais confiante e mais generoso, dessa vez
nem hesitou. Foi abrindo o seu tronco, foi abrindo, bem devagarinho, saboreando cada minutinho de
entrega.
Mas a hiena, impaciente, pulou com suas garras no tronco do baobá, gritando:
- Abra logo esse coração, eu não aguento esperar! Ande! Eu quero todo esse tesouro para mim, eu
quero tudo, entendeu?
O baobá, apavorado, fechou imediatamente o seu tronco, deixando a hiena de fora a uivar
desesperada, sem conseguir pegar nenhuma joia.
E por mais que ela arranhasse a árvore, ela nada conseguiu.
A partir desse dia é que a hiena ganhou o costume de vasculhar as entranhas dos animais mortos,
pensando encontrar ali algum tesouro.
Mal sabe ela que esse tesouro só existe enquanto o coração é vivo e bate forte.
Quanto ao baobá, nunca mais ele se abriu.

História retirada do blog Contos & Cantos: http://contoscantos.blogspot.com.br.

@portuguessemtedio
25
A LENDA DO FLOQUINHO DE ALGODÃO

Havia uma pequena aldeia onde o dinheiro não entrava. Tudo o que as pessoas compravam
tudo o que era cultivado e produzido por cada um, era trocado. A coisa mais importante, a
coisa mais valiosa, era o AMOR.
Quem nada produzia quem não possuía coisas que pudessem ser trocadas por alimentos, ou
utensílios, dava seu AMOR. O AMOR era simbolizado por um floquinho de algodão.
Muitas vezes era normal que as pessoas trocassem floquinhos sem querer nada em troca. As
pessoas davam seu AMOR, pois sabiam que receberiam outros num outro momento ou outro
dia.
Um dia, uma mulher muito má, que vivia fora da aldeia convenceu um pequeno garoto a
não mais dar seus floquinhos. Desta forma, ele seria a pessoa mais rica da cidade e teria o que
quisesse. Iludido pelas palavras da malvada, o menino, que era uma das pessoas mais
populares e queridas da aldeia, passou a juntar AMOR e, em pouquíssimo tempo, sua casa
estava repleta de floquinhos, ficando até difícil de circular dentro dela.
Daí então, quando a cidade já estava praticamente sem floquinhos, às pessoas começaram
a guardar o pouco AMOR que tinham e toda a HARMONIA da cidade desapareceu. Surgiram a
GANÂNCIA, a DESCONFIANÇA, o primeiro ROUBO, o ÓDIO, a DISCÓRDIA, as pessoas se
OFENDERAM pela primeira vez e passaram a IGNORAR-SE pelas ruas.
Como era o mais querido da cidade, o garoto foi o primeiro a se sentir-se TRISTE e
SOZINHO, o que o fez procurar a velha para perguntar-lhe se aquilo fazia parte da riqueza que
ele acumularia. Não a encontrando mais, ele tomou uma decisão. Pegou uma grande carriola,
colocou todos os seus floquinhos em cima e caminhou por toda a cidade distribuindo
aleatoriamente seu AMOR.
A todos que dava AMOR, apenas dizia:
- Obrigado por receber meu AMOR.
Assim, sem medo de acabar com seus floquinhos, ele distribuiu até o último AMOR sem
receber um só de volta.
Sem que tivesse tempo de sentir-se sozinho e triste novamente, alguém caminhou até
ele e lhe deu AMOR. Um outro fez o mesmo... Mais outro... E outro...
Até que, definitivamente, a aldeia voltou ao normal e o AMOR voltou a ser distribuído.
Não devemos fazer as coisas pensando em receber algo em troca. Mas devemos, sempre,
lembrar que os outros existem. O sentimento sincero nos é oferecido espontaneamente.
Aqueles que te quiserem bem se lembrarão de você. Receber sem cobrar é mais verdadeiro...
Receber AMOR é muito bom. E o simples gesto de lembrar que alguém existe é a forma
mais simples de fazê-lo.
Resultado de imagem para floco de algodão. Este é o meu floquinho para você !!!
Não acumule seus floquinhos... Distribua-os a todos... Eles podem ser na forma de um
abraço, um beijo, um aperto de mão, um telefonema, uma oração, uma carta e também um e-
mail ! Distribua...
E lembre-se: NUNCA GUARDE O AMOR QUE VOCÊ TEM! É DANDO AMOR, QUE SE RECEBE
AMOR!

Autor desconhecido

@portuguessemtedio
26
A OUTRA NOITE

Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e
chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo
e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens,
estava um luar lindo, de Lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade
eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.
Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou um sinal
fechado para voltar-se para mim:
– O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem
mesmo luar lá em cima?
Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma
outra - pura, perfeita e linda.
– Mas, que coisa. . .
Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva.
Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador
ou pensava em outra coisa.
– Ora, sim senhor. . .
E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito
obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito
um presente de rei.

Rubem Braga

@portuguessemtedio
27
FELICIDADE CLANDESTINA
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da
blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria
de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho
barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do
Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho.
Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem
notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela
não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim um tortura chinesa. Como
casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.
E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e
que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim
numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o
livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em
breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu
modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia
seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava,
andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e
diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte.
Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com
meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não
escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja
precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro
esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E
eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,
apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua
casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco
elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe
boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui
de casa e você nem quis ler!

In Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

@portuguessemtedio
28
A ÚLTIMA CRÔNICA

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de
cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto
da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou
num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na
lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço
então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de
mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e
palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça,
toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as
perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que
compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém,
que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso,
aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a
redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a
aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-
lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A
meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do
bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia
triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom
deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em
torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta
como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E
enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a
menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente
põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam,
discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você…”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-
las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A
mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de
bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se
encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba
sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Fernando Sabino

@portuguessemtedio
29
O HOMEM CUJA ORELHA CRESCEU

Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite,
estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava
pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas
cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de
cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam
crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas
de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas
não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O
melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se
tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não
conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa,
enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa.
Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A
esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha
crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas
enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O
sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde,
toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite,
sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e
quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do
guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a
porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os
hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o
quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia
inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os
favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes,
vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas,
carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um
administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição
racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a
estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne
de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada
e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se
cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao
prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a
um policial: “Por que o senhor não mata o dono da orelha?”

Ignácio Loyola Brandão

@portuguessemtedio
30
NÓIS MUDEMO

O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo ao Porto


Nacional.
Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado
nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio,
todo poesia e misticismo.
As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes
heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.
– Por que você faltou esses dias todos?
– É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
– Não se diz “nóis mudemo” menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?
– Tá fessora!
No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!
No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
– Pai, não vô mais pra escola!
– Oxente! Módi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
– Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da
mininada! Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da
semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome
dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio – Lúcio Rodrigues
Barbosa. Achei o endereço.
Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapaz tinha partido
no dia anterior para casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu fio não aguentou as gozações da mininada. Eu tentei fazê ele
continuá, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di tê
ficado na fazenda coa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me despedi.
O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao
menos de minha parte.
Uma tarde, um povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando
alguém me chamou.
Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com
aparência doentia.
-O que é, moço?
-A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstitui num momento meus longos anos de
sacerdócio, digo de magistério. Tudo escuro.

@portuguessemtedio
31
-Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se
chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
– Eu sou “Nóis mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
– Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome?
– Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa.
– O que aconteceu?
– Ah! Fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o
diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui boia-fria, um “gato” me
arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como
escravo, passei fome, fui baleado quando conseguir fugi. Peguei tudo quando é
doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante as veis fais coisa sem querê fazê. A
escola fais uma farta danada. Eu não devia tê saído daquele jeito, fessora, mais não
aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje
não sei.
-Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada,
comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei
o rapaz, o que restava do rapaz que me olhava atarantado.
O ônibus buzinou com insistência. O rapaz afastou-me de si suavemente.
– Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras
apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma
assassina a caminho da guilhotina. Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas,
ele muda, nós mudamos… Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina
dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna, a língua que a
criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas – e se torna o terror dos alunos. Em
vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando
centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os Lúcios da vida, os milhares lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas
de aula:
“Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer: “Você está
errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A
certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas
raízes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar!
Seja uma sombra!”
E siga desarmado para o matadouro da vida…

Fidêncio Bogo

@portuguessemtedio
32
COM SUA VOZ DE MULHER

Aquele deus era dono daquela cidade como um mortal seria dono de fazenda ou sítio. Não
era grande a cidade. O templo, casas, e campo ao redor. Mas porque era dono daquela cidade,
o deus era também responsável pela felicidade dos seus habitantes.
E um dia, pelas preces, percebeu que os habitantes não eram felizes.
- Nada lhes falta, disse o deus, em voz alta. Cuido para que as estações se sigam em boa
ordem. Garanto-lhes colheita no campo e comida na mesa. Nenhum grão apodrece nas
espigas. Nenhum ovo gora nos ninhos. E seus filhos crescem. Por que então não são felizes?
Porém os homens desconhecem as perguntas dos deuses. E embora tivesse falado em voz
tão alta que poderia ser ouvida de uma estrela a outra, ninguém lhe respondeu.
A cidade estava na palma da mão do deus. E ainda assim tão longe que ele não via os
sentimentos daquelas pessoas.
- Irei até lá, disse a alta voz. Entre eles, verei melhor que se passa.
E tendo decidido, abriu seus imensos guarda-roupas à procura de uma identidade com a
qual apresentar-se no mundo dos mortais. Havia ali peles e couros de todos os animais, da lisa
pele da gazela à áspera couraça do rinoceronte. O pescoço da girafa pendia de um cabide,
plumas coloridas despontavam na prateleira e numa gavetinha enfileiravam-se as preciosas
carapaças dos insetos. Mas dessa vez não seria como animal que desceria à terra. Remexeu
entre as peles dos humanos, suspendeu uma escura, bronzeada de sol, hesitou por um
instante. Depois escolheu a mais lisa e macia, fechou-se bem dentro dela, cobriu-se com uma
túnica. E desceu.
E eis que aquela mulher de longos cabelos apareceu na cidade dizendo que era deus, e
ninguém acreditou. Fosse deus, teria vindo como guerreiro, herói, ou homem poderoso. Fosse
deus, apareceria como leão, touro bravio ou águia lançando-se das nuvens. Até o crocodilo e a
serpente poderiam abrigar deus em seu corpo.
Mas uma mulher vinda das ruas estreitas nada mais podia ser que uma mulher.
E assim o deus prendeu seus longos cabelos sobre a nuca e foi procurar um trabalho. Mas a
uma mulher não se dá trabalho de ferreiro, nem se põe na carroça a conduzir cavalos. Uma
mulher não é aquela que comanda soldados. Uma mulher não é sequer aquela que conduz o
arado. E depois de muita procura, o deus-mulher só conseguiu empregar-se em uma casa para
ajudar nas tarefas domésticas.
Era uma boa casa a que a acolheu. A esposa diligente, o marido trabalhador. Poeira não se
juntava nos cantos, embora a trouxessem em suas sandálias. E os filhos cresciam como
crescem filhos que não tem doenças. Porém, pouco sorriam. Cumpriam suas tarefas de dia. À
noite juntavam-se no estábulo para aproveitar o calor dos animais. As mulheres fiavam. Os
homens consertavam ferramentas ou faziam cestos. Ninguém falava. As noites eram longas
depois de longos dias. Os humanos se entediavam.
Até mesmo o deus, de fuso na mão, se entediava. E uma noite, não suportando a mesmice
dos gestos e do silêncio, abriu a boca e começou a contar.
Contou uma história que se havia passado no seu mundo, aquele mundo onde tudo era
possível e onde viver não obedecia regras pequenas como as dos homens. Era uma longa
história, uma história como ninguém nunca havia contado naquela cidade onde não se
contavam histórias. E as mulheres ouviram de olhos bem abertos, enquanto o fio saía fino e
delicado entre seus dedos. E os homens ouviram esquecidos de suas ferramentas. E o menino
que chorava adormeceu no colo da mãe. E as outras crianças vieram sentar-se aos pés do deus.

@portuguessemtedio
33
E ninguém falou nada enquanto ele contava, embora em seus corações todos estivessem
contando com ele.
A noite foi curta aquela noite.
Na noite seguinte, reunidos todos no estábulo, como todas as noites, o deus não falou. As
mulheres olhavam para ele de vez em quando, por cima do fuso. Os homens evitavam fazer
barulho, deixando o silêncio livre para ele.
Todos esperavam. Mas as crianças, que brincavam com o deus-mulher durante o dia, vieram
juntar-se ao seu redor.
Uma puxou de leve a saia do deus-mulher e pediu:
- Conta!
E com sua voz de mulher o deus contou.
Assim, noite após noite, o deus entregou suas histórias à família como até então lhes havia
entregado as frutas maduras cheias de sementes. E não apenas àquela família, porque logo o
vizinho da frente soube, e à noite apresentou-se com os seus no estábulo também para ouvir. E
depois foi a vez do vizinho do lado. E em pouco tempo o estábulo estava cheio, e as pessoas
amontoavam-se nas janelas e porta.
Agora, durante o dia, enquanto aravam, martelavam, enquanto erguiam o machado, os
homens lembravam-se das histórias que tinham ouvido à noite, e tinham a impressão de
também navegar, voar, cavalgando trovões e nuvens como aquelas personagens. E as
mulheres estendiam lençóis como se armassem tendas, repreendiam o cão como se
domassem leões, e atiçando o figo chuçavam dragões. Até o pastor com suas ovelhas não
estava mais só, e as ovelhas eram sua legião.
Os homens sorriam debruçados sobre suas tarefas, as mulheres cantavam e tinham gestos
amplos nos braços, e as crianças se enrodilhavam estremecidos de medo e prazer. O tédio
havia desaparecido.
Foi quando uma mulher que havia estado no estábulo passou a repetir as histórias do deus
para outros habitantes da cidade. Repetir exatamente, não. Aqui e ali acrescentava coisas,
tirava outras e cada história, sendo a mesa, era outra. Mais do que contar, recontava. Depois
houve um rapaz, que também. E, o tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de
onde tinha vindo esta ou aquela história, e quem a havia contado primeiro.
Ninguém podia dizer, tampouco, qual o paradeiro daquela mulher de longos cabelos presos
sobre a nuca, que um dia havia aparecido na cidade vinda não se sabe de onde. E que em outro
dia havia partido com seu carregamento de histórias.

Marina Colasanti

@portuguessemtedio
34
O PADEIRO

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e
abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo
instante, me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do
pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um locaute, greve dos patrões, que
suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da
manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o quê do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E
enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci
antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a
campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
“Então você não é ninguém”?
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes
lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou
outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era;
e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o
padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma e se despediu ainda sorrindo. Eu não
quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos
importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno.
Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma
passagem pela oficina ― e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros
exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante
porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera
sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem
cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade
daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro”!
E assobiava pelas escadas.

Rubem Braga

@portuguessemtedio
35
CAFEZINHO

Leio a reclamação de um repórter irritado que precisava falar com um delegado e


lhe disseram que o homem havia ido tomar um cafezinho. Ele esperou longamente, e
chegou à conclusão de que o funcionário passou o dia inteiro tomando café.
Tinha razão o rapaz de ficar zangado. Mas com um pouco de imaginação e bom
humor podemos pensar que uma das delícias do gênio carioca é exatamente esta
frase:
– Ele foi tomar café.
A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar com um número excessivo
de pessoas. O remédio é ir tomar um “cafezinho”. Para quem espera nervosamente,
esse “cafezinho” é qualquer coisa infinita e torturante.
Depois de esperar duas ou três horas dá vontade de dizer:
– Bem cavaleiro, eu me retiro. Naturalmente o Sr. Bonifácio morreu afogado no
cafezinho.
Ah, sim, mergulhemos de corpo e alma no cafezinho. Sim, deixemos em todos os
lugares este recado simples e vago:
– Ele saiu para tomar um café e disse que volta já.
Quando a Bem-amada vier com seus olhos tristes e perguntar:
– Ele está?
– Alguém dará o nosso recado sem endereço.
Quando vier o amigo e quando vier o credor, e quando vier o parente, e quando
vier a tristeza, e quando a morte vier, o recado será o mesmo:
– Ele disse que ia tomar um cafezinho…
Podemos, ainda, deixar o chapéu. Devemos até comprar um chapéu
especialmente para deixá-lo. Assim dirão:
– Ele foi tomar um café. Com certeza volta logo. O chapéu dele está aí…
Ah! fujamos assim, sem drama, sem tristeza, fujamos assim. A vida é complicada
demais. Gastamos muito pensamento, muito sentimento, muita palavra. O melhor é
não estar.
Quando vier a grande hora de nosso destino nós teremos saído há uns cinco
minutos para tomar um café. Vamos, vamos tomar um cafezinho.

Rubem Braga

@portuguessemtedio
36
FELIZ E ORGULHOSO, ENVAIDECIDO MESMO

E ai começaram a chegar os passarinhos, e o fazendeiro teve a idéia de colocar um


espantalho no meio do milharal. E isso foi o seu erro.
O milharal era à beira da estrada e todas as pessoas que por ali passavam se
divertiam com aquele espantalho:
__ Que espantalho engraçado! – diziam todos.
O fazendeiro, ouvindo tais comentários, ficava feliz e orgulhoso, envaidecido
mesmo por ter feito um espantalho admirado por todos que por ali passavam .
Então, para se sentir mais feliz e orgulhoso e mais envaidecido, o fazendeiro
colocou no milharal um outro espantalho. Eram dois agora os espantalhos, e as
pessoas duplamente elogiavam. E o fazendeiro fez três, quatro, cinco... O fazendeiro
colocou centenas de espantalhos em seu terreno. Os pés de milho eram arrancados e
em seus lugares eram colocados espantalhos.
E o fazendeiro deixou de ser feliz e orgulhoso e envaidecido, pois as pessoas que
por ali passavam comentavam desoladas:
__ Que fazendeiro mau! Ele não gosta dos passarinhos, por isso colocou um
exército de espantalhos para espantá-los.
E como o fazendeiro não era malvado, plantou no seu “espantalhoal” um pé de
milho para poder atrair os passarinhos. E as pessoas que por ali passavam, ao ver um
único pé de milho no meio de tanto espantalho, comentavam:
__ Olha que belo pé de milho!
O fazendeiro voltou a se sentir feliz, orgulhoso e envaidecido por possuir um pé de
milho que as pessoas admiravam, quando por ali passavam. E para sentir-se mais feliz,
orgulhoso e envaidecido, o fazendeiro plantou dois, três, cinco... centenas de pés de
milho. Os espantalhos eram arrancados e em seus lugares eram plantados pés de
milho. Assim o “espantalhoal” voltou a ser um milharal.
E aí começaram a chegar os passarinhos, e o fazendeiro teve a ideia de colocar um
espantalho no meio do milharal. E isso foi o seu erro.

Nani

@portuguessemtedio
37
FALECEU ONTEM A PESSOA QUE ATRAPALHAVA SUA VIDA

Um dia, quando os funcionários chegaram para trabalhar, encontraram na portaria


um cartaz enorme, no qual estava escrito: "Faleceu ontem a pessoa que atrapalhava
sua vida na Empresa. Você está convidado para o velório na quadra de esportes".
No início, todos se entristeceram com a morte de alguém, mas depois de algum
tempo, ficaram curiosos para saber quem estava atrapalhando sua vida e bloqueando
seu crescimento na empresa. A agitação na quadra de esportes era tão grande, que foi
preciso chamar os seguranças para organizar a fila do velório. Conforme as pessoas
iam se aproximando do caixão, a excitação aumentava:
- Quem será que estava atrapalhando o meu progresso?
- Ainda bem que esse infeliz morreu!
Um a um, os funcionários, agitados, se aproximavam do caixão, olhavam pelo visor
do caixão a fim de reconhecer o defunto, engoliam em seco e saiam de cabeça
abaixada, sem nada falar uns com os outros. Ficavam no mais absoluto silêncio, como
se tivessem sido atingidos no fundo da alma e dirigiam-se para suas salas. Todos,
muito curiosos mantinham-se na fila até chegar a sua vez de verificar quem estava no
caixão e que tinha atrapalhado tanto a cada um deles.
A pergunta ecoava na mente de todos: "Quem está nesse caixão"?
No visor do caixão havia um espelho e cada um via a si mesmo... Só existe uma
pessoa capaz de limitar seu crescimento: VOCÊ MESMO! Você é a única pessoa que
pode fazer a revolução de sua vida. Você é a única pessoa que pode prejudicar a sua
vida. Você é a única pessoa que pode ajudar a si mesmo. "SUA VIDA NÃO MUDA
QUANDO SEU CHEFE MUDA, QUANDO SUA EMPRESA MUDA, QUANDO SEUS PAIS
MUDAM, QUANDO SEU(SUA) NAMORADO(A) MUDA. SUA VIDA MUDA... QUANDO
VOCÊ MUDA! VOCÊ É O ÚNICO RESPONSÁVEL POR ELA."
O mundo é como um espelho que devolve a cada pessoa o reflexo de seus
próprios pensamentos e seus atos. A maneira como você encara a vida é que faz toda
diferença. A vida muda, quando "você muda".

Luis Fernando Veríssimo

@portuguessemtedio
38
VER VENDO

De tanto ver, a gente balaniza o olhar – ver… não vendo.


Experimente ver, pela primeira vez, o que você vê todo dia, sem ver.
Parece fácil, mas não é: o que nos cerca, o que nos é familiar, já não
desperta curiosidade.
O campo visual da nossa retina é como o vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta.
Se alguém lhe pergunta o que você vê pelo caminho, você não sabe.
De tanto vê, você banaliza o olhar.
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio
do seu escritório.
Lá estava sempre, pontualíssimo, o porteiro.
Dava-lhe bom dia, às vezes, lhe passava um recado ou uma
correspondência.
Um dia o porteiro faleceu.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima
idéia.
Em 32 anos nunca consegui vê-lo.
Para ser notado o porteiro teve que morrer.
Se, um dia, em seu lugar tivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser,
também, que ninguém desse por sua ausência.
O hábito suja os olhos e baixa a vontade. Mas a sempre o que ver; gente;
coisa; bichos.
E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê aquilo que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpo
para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez, o
que, de tão visto, ninguém vê. O pai que raramente vê o próprio filho. O
marido que nunca viu a própria mulher.
Os nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos.
…e por ai que se instala no coração o monstro da indiferença.

Otto Lara Rezende


@portuguessemtedio
39
O TEMPO

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.


Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e
inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais
voltará.

Mário Quintana

@portuguessemtedio
40
ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir…


Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina

@portuguessemtedio
41
ORA DIREIS OUVIR ESTRELAS

Ora (direis) ouvir estrelas! Certo


Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto


A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!


Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!


Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac

@portuguessemtedio
42
TIMIDEZ

Basta-me um pequeno gesto,


feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…

– mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída


das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes…

– palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,


entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

– que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,


os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…

– e um dia me acabarei.

Cecília Meireles

@portuguessemtedio
43
METADE

Que a força do medo que tenho Que o medo da solidão se afaste


Não me impeça de ver o que anseio E o convívio comigo mesmo se torne ao menos
Que a morte de tudo em que acredito suportável
Não me tape os ouvidos e a boca Que o espelho reflita meu rosto num doce
Porque metade de mim é o que eu grito sorriso
A outra metade é silêncio Que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
Que a música que ouço ao longe A outra metade não sei
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre Que não seja preciso mais do que uma simples
amada alegria
Mesmo que distante Pra me fazer aquietar o espírito
Pois metade de mim é partida E que o seu silêncio me fale cada vez mais
A outra metade é saudade Pois metade de mim é abrigo
A outra metade é cansaço
Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece nem Que a arte me aponte uma resposta
repetidas com fervor Mesmo que ela mesma não saiba
Apenas respeitadas como a única coisa E que ninguém a tente complicar
Que resta a um homem inundado de Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
sentimentos Pois metade de mim é plateia
Pois metade de mim é o que ouço A outra metade é canção
A outra metade é o que calo Que a minha loucura seja perdoada
Pois metade de mim é amor
Que a minha vontade de ir embora E a outra metade também
Se transforme na calma e na paz que
mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
A outra metade um vulcão

Oswaldo Montenegro

@portuguessemtedio
44
A ARTE DE SER FELIZ

Houve um tempo em que minha janela se abria


sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as
plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim
não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que
caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecilia Meireles

@portuguessemtedio
45
É PRECISO MUDAR

É preciso mudar! Basta existir para mudar, tudo que existe MUDA.
Caminhe por outra rua, mude os móveis de lugar
Use aquela roupa velha. Na pressa pode esperar
Corte, pinte seu cabelo… sem seguir nenhum modelo
Pois é preciso Mudar

Pinte a parede da sala, sem medo de se sujar


Devore a lasanha, a coxinha… sem culpa por engordar
Frequente novos lugares, respire outros ares
Pois é preciso mudar!

Escreva uma carta à mão, esqueça o celular


Visite alguém que faz tempo que não vem lhe visitar
Fale mais, digite menos. Construa em novos terrenos
Pois é preciso mudar!

Aprenda uma nova língua, talvez volte estudar


Tome mais banho de chuva, deixe a vida lhe banhar
Pule muros e barreiras. Crie novas brincadeiras
Pois é preciso mudar!

Meu povo, há mudança até na dor, basta a gente observar


Deixar a casa dos pais, mesmo querendo ficar
Ver amigos indo embora, sentir a dor de quem chora
Sofrer também é mudar

Perder aquele emprego, não ter grana pra gastar


Estudar pra um concurso e mesmo assim não passar
Ser largado, ser traído, se sentir meio perdido, tudo isso é MUDAR

Enfim… o vento que às vezes leva é o mesmo vento que trás


Leva o velho , traz o novo, se renova, se refaz
Transforma agito em sossego, desconforto em aconchego
E faz a guerra virar paz

A vida, o mundo, o tempo nos muda desde criança


Modificam nossos sonhos
Renovam nossa esperança
E a mudança mais feroz, fazendo tudo de nós um dia virar lembrança

Bráulio Bessa

@portuguessemtedio
46

Você também pode gostar