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Todos os cachorros são azuis

Rodrigo de Souza Leão

Nota do editor

Este livro tem uma história longa e sofrida.


Recebi os originais da primeira versão de Todos os cachorros são azuis em 2003, e
fiquei bastante impactado pela leitura. Na ocasião, não tínhamos condições de investir na
publicação [as mesmas dificuldades de sempre para distribuição e comercialização de autores
estreantes], mas entrei em contato com o Rodrigo para comentar minha impressão positiva
sobre o texto, tentar uma parceria para viabilizar a edição e incentivar o envio também a
outras editoras maiores, pois se tratava de um dos melhores originais que já havia recebido.
A partir dessa primeira conversa, assumi o compromisso de publicar o livro logo que
tivéssemos condições para isso – o que só veio a ocorrer cinco anos depois graças ao apoio de
uma bolsa oferecida pela Petrobras, que permitiu ao Rodrigo trabalhar na versão final do texto
e à editora produzir uma tiragem inicial de 1.500 exemplares.
Durante esses anos, conversamos algumas vezes por telefone [ele não saía de casa] e
fiquei impressionado com a lucidez e a clareza com que ele me contava sobre sua condição – a
esquizofrenia, os remédios, as paranoias, as internações -, o que só fez aumentar minha
admiração pelo seu talento e pela sua arte.
No período em que trabalhamos no livro, o contato mais estreito do Rodrigo passou a
ser com a Valeska de Aguirre, que foi a editora responsável peça preparação final do texto e se
tornou uma espécie de amiga – os dois se falavam, sempre por telefone, quase diariamente,
sem contar uma extensa troca de e-mails sobre os outros projetos literários do escritor, que
acabaram ficando póstumos.
Apenas no dia do lançamento de Todos os cachorros são azuis – uma tarde de
autógrafos marcada para o playground do prédio onde Rodrigo morava com a família –
pudemos enfim nos conhecer pessoalmente. Ali já era possível perceber o reconhecimento de
várias pessoas do meio literário ao trabalho dele, cultivado e divulgado nos contatos via
internet. Da primeira edição, o próprio Rodrigo ainda adquiriu uma boa cota de livros para
enviar a diversos críticos, escritores e jornalistas, sempre confiando no próprio taco.
Alguns meses depois, veio o anúncio da indicação da obra entre os 50 finalistas do
Prêmio Portugal Telecom. O livro dele foi citado especificamente [em meio a nomes de alguns
dos mais consagrados autores de língua portuguesa] como um sopro de renovação e
originalidade na literatura brasileira, na noite em que os concorrentes foram anunciados. No
dia seguinte liguei para o Rodrigo – que a essa altura andava saindo mais de casa, fazendo um
curso de pintura no Parque Lage – para comentar a boa notícia. Durante o telefonema ele se
emocionou bastante, ficou com a voz embargada, e conseguiu dizer apenas: “é muito
sofrimento”. Repetiu a frase e não conseguiu dizer mais nada, talvez eu mesmo tenha ficado
sem palavras antes de desligarmos.
A notícia da morte do Rodrigo caiu como uma bomba na editora. Confirmando, de
certa forma, uma previsão do próprio autor [numa mensagem que misturava sua lucidez
delirante com uma pitada de ironia], só depois de morto seus livros iriam fazer sucesso. Pelo
menos acho que ele pôde ainda sentir um pouco em vida a reação positiva dos primeiros
leitores e críticos, que souberam perceber a força e a dimensão de sua prosa contundente.
Não foi possível compartilhar com o Rodrigo a alegria de ver a primeira edição do livro
esgotada [sucesso raro para um estreante neste país de ainda poucos leitores], mas posso
imaginar que ele ficaria feliz e realizado ao ver esta nova edição circulando, ganhando vida a
cada novo leitor – assim como imagino que cada novo leitor irá sentir o mesmo impacto que
tive ao descobrir esta obra tão densa, rica e original, e que ainda redescubro melhor a cada
nova leitura.
Jorge Viveiros de Castro

Junho/2010
Tudo ficou Van Gogh

Engoli um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um
eletrodo em minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos
estavam galopando. Menos o cavalo-marinho que nadava no aquário.
Ele tem um problema mental. Será que tem alguma sequela? No fundo deste meu
mundo, lá no quarto escurecido por doses de Litrisan, veio um psiquiatra e baionetou uma
química na minha celha esquerda. Enquanto outro puxava a minha banha, esticando para que
não sentisse a injeção de Benzetacil.
Benzeta.
Benzeta.
Uma dor imensa na bunda. Tudo girando ao meu redor e eu girando também. Tiro uma
meleca e coloco na mesa do canto, bem longe da escuridão no quarto. A escuridão é asséptica.
Só o pessoal de branco pode frequentar aquela linha impura. Seguram-me de novo. Recebo o
beijo de minha mãe. Deve ser dia de visita. Acordo e como uma lasca de goiabada com o
sanduíche de atum que mamãe trouxe para mim. Escuto uma música tão alta que não entro
nos meus pensamentos e estou fora, agora a cocaína não vai chegar. A conexão foi
interrompida.
Mamãe mal chega, mal vai.
Ele continua achando que engoliu um chip.
Ela diz que tudo começou há uns dez anos, quando eu achei que havia engolido um
grilo.
Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Minha mãe disse isso afagando meus lábios e me dando um beijo na bochecha. Por
alguns segundos lembrei-me de algo que havia acontecido no dia anterior. Eu havia quebrado
toda a casa com uma fúria gigantesca. Nunca mais tomo Haldol na minha vida.
Foi por você não ter tomado o Haldol que você ficou assim, diz o chip. E eu começo a
falar: Só no Anhembi é tupi. Só no Anhembi é tupi.
O engolidor de espadas engole uma nesga de fogo por vez. Tá todo mundo engolindo
alguma coisa neste exato momento. É hora do jantar. Mamãe se foi. A música volta a me
colocar fora de mim.
Entro no quarto. Tiro o pau pra fora e começo a bater uma punheta. Dança da
motinha. Dança da motinha. Eu engoli um grilo quando tinha meus 15 anos de idade. Foi a
primeira vez que consegui conviver comigo mais intensamente. Salvei uma casa do cupim
maldito que queria destruí-la. Eram cupins gigantes. Tenho certeza de que salvei aquela casa.
Tenho certeza de que por alguns segundos fui Jesus Cristo.
Ainda continuo na jaula. A minha boca está fechada com uma mordaça. Meus pés
estão presos.
A música sai de mim e volta, não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo.
Tudo começou com um grilo. Havia um grilo naquele primeiro dia. Havia um gene também. Da
mesma forma não, mas de outra forma. Estou engolindo tudo, o tempo todo. No canto escuro
do quarto, que é onde só vão os ratos. Sou podre. Porco. Imundo. Sou selvagem.
Quantos grilos você me fez engolir, filho.
Olho o jornal e não consigo ler nada. As doses dos remédios devem estar altas. Porque
eu não fiz nem quarenta anos e não consigo ler de perto. Arregaço as mangas da camisa e vou
jogar sinuca com o Ruy Chapéu do lugar, que é um gari da Comlurb, internado por utilizar a
bebida em demasia até em horário de trabalho. Antes, uma crente faz uma roda e manda que
alguém reze. Ninguém ali sabe rezar porra nenhuma. São todas almas sem paraíso à vista. Eu
começo: Pai nosso que estais no céu. Pelo menos eu sei rezar. A crente disse aleluia. Ela
segurou a minha mão. Eu tirei o pau pra fora e não pude jogar sinuca. Voltei para o cubículo
três por quatro, onde me colocaram para sorrir com baionetadas ans veias. Segura a banha e
estica a banha, e toma mais injeção.
Tudo começou quando engoli um grilo em São João da Barra. Eu tinha 15 anos de
idade. Estava indo ou voltando. Sempre estava indo ou voltando. Só parava pra voar. Assim
eram meus 15 anos, e foi como tudo começou. Nenhuma mulher saiu de mim, Nunca. Fui eu
quem sempre entrou em minha mãe. Lá estava ela bela e bonita, transando com papai. E eu vi,
e era apenas mil novecentos e setenta. Não foi um trauma. Eu costumava andar com um
cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro não era gay por ser azul. Só era azul. Também não
tinha as noções de feminino e masculino naquela idade, ou tinha. Na verdade, eu já me
masturbava, e papai, com muito jeito, pedia para que eu tirasse a mão do meu pinto. Lembro-
me de uma psiquiatra nos meus verdes 15 anos, que me dizia que eu era homem porque me
masturbava, não tinha por quê ter crise de identidade. Eu não tinha crise de identidade,
porque vivia correndo atrás daquela mulher no horário da sessão. Ela chegou a me ameaçar,
dizendo para o meu pai que se eu continuasse a querer agarrá-la eu teria que sair da análise.
Ela falou que não aguentava dar conta de mim e reclamou porque eu não fazia um desenho e
não brincava com a massinha. Eu imitava um golfinho deitado no divã. Meu pau ficava duro e
eu o friccionava o tempo todo, enquanto o golfinho nadava dentro de mim.
Uma vez, virei uma planta por uma hora de sessão. A mulher pensou que eu estava em
estado catatônico. Ela ficou nervosa. Foi a mesma coisa que fiz com uma namorada, e ela teve
a mesma reação. Fiquei sem falar e parado. Como se tivesse engolido uma baleia. Durante
uma hora, a baleia que estava dentro estava fora, e eu vivi preso dentro de um manicômio. Os
manicômios são lugares muito bonitos. São lugares com muitas flores e árvores. Não fiquei
num lugar cinco estrelas, também não fiquei no pior lugar, mas vi muita coisa quando Alfonso
me dizia que ia para Paracambi. Paracambi é aqui.
Tudo era um pouco ficar calado o tempo todo como se ninguém merecesse que você
falasse algo nobre e importante.
O que todas aquelas pessoas de branco tinham a ver com o fato de eu estar vomitando
sangue? Levaram-me para o Miguel Couto. Pensaram que eu estava com tuberculose. O
Miguel Couto era o hospital referência para casos de dengue. Havia uma epidemia de dengue
na cidade. Havia muitos hipopótamos deitados. Algumas tartarugas andando de quatro rodas.
Passei pela porta do hospício. Quis me levantar e fugir. O pior: fugir pra onde? Quem iria
acreditar na ideia de que eu estava com um chip implantado dentro de mim? Havia tanta
gente, que se eu dissesse que o Maracanã em dia de jogo do Flamengo estava ali não seria
nenhum eufemismo.
Botaram tubos em mim e começaram a fazer sucção. Fui abduzido por extraterrestres.
Eu via uma luz passando pelo meu corpo de menino de cinco anos e segurei meu
cachorro azul. Desmaiei por alguns segundos. Depois Fronsky estava lá.
Voltaremos para te buscar quando você tiver 18 anos.
Marcas por todo o campo. Gente andando com soro dependurado. Tubos saindo da
boca de extropiados. Tudo ali era Acneton. Da minha veia, tiraram o meu sangue. Eu agora
estava indo tirar uma chapa torácica. Como é que um cara gordo como eu pode sofrer com
algum problema que não seja obesidade? Eu devia estar num spa, e não no Miguel Couto com
aquela crise de dengue. Uma samambaia começou a crescer do meu lado, feito um pé de
feijão. Eu fui subindo as escadas, ancorado por dois médicos fortes e gordos como eu. Havia
toda aquela gente pobre, superpobre: aquilo era o Brasil. Uma zona total. Gente caída no
chão. Gente chegando morta. Gente morrendo. Uma fileira de corpos deitados com etiquetas
no pés. Todos munidos de seus prontuários. E aqueles médicos tão jovens, que não sabem
muito mais do que eu sei de biologia, fazendo gozação com a sua cara.
Olha que cara gordo!
Que homem gordo!
Que baleia!
Um dia completei um triatlo e terminei entre os primeiros da minha categoria. Estou
gordo agora e dormindo como no dia do triatlo. Vivo sedado e cheio de doses altas de remédio
na veia. Tudo para ser invadido por uma música, tudo pra manter a boa ordem do estado.
Somos a minoria, mas pelo menos eu falo o que quero.
O bom do cachorro azul era que ele não crescia e não morria. O negócio era eu cuidar
para que ele não envelhecesse. No ano 2000, vou ter 35 anos. Estarei tão velho que mal
saberia disso. Eu escovava a pelúcia do bicho. O cachorro azul era a minha melhor companhia.
E se existisse mesmo um cachorro azul? Seria do grande caralho ter um. Será que se ele tivesse
um filho nasceria azul também? Se ele pudesse latir e pudesse comer, o que comeria um
cachorro azul? Alimentos de sua cor? E quando adoecesse, tomaria remédio azul? Muitos
remédios são azuis, entre eles o Haldol. Eu tomo Haldol para não ter nenhuma ilusão de que
morrerei louco, um dia, num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco. Uma
oligofrênica, dos seus setenta anos, uniformizada, surge diante dos meus olhos e me dá um
beijo na boca. Vejo estrelas cor-de-rosa. Elefantes carregando Rimbaud na África. Verlaine
comendo sua mulher, mas pensando em Rimbaud. Eu estou pensando em Nastassja Kinski e
seus seios pequeninos em flor. Eu estou no lado escuro e mal posso me mover, mas dá para eu
me masturbar muito devagarinho. Eu gozo e minha mão fica toda branca, tomada de sêmen.
Minha mão vira uma luva branca. Eu acordo às cinco horas da manhã com o esporro colossal
de um enfermeiro. Durmo mal. Acordo mal. Não sei qual dos dois pesadelos é o pior: acordado
ou dormindo. Saio da jaula. Já estou na jaula há um bom tempo. Quando me tirarão de lá e me
deixarão ficar com os outros? Entro na fila para tomar um café da manhã. É um café com leite
que tem mais água do que leite e um pão com uma passada de manteiga na ida. Eu pago para
estar neste lugar, mas só a ida da faca com manteiga no pão está nos custos. Hoje eu acordei
querendo dizer coisas bonitas. Aproveitei um pouco de tempo que me deixaram livre do lado
de fora e apanhei uma flor no jardim. Levei a flor para o quartinho. O enfermeiro encrencou
com a flor. Deu-me outro esporro.
Você virou viadinho? Que coisa horrorosa é esta? Gordo e viado.
Eu só queria ver algo colorido aqui do fundo.
Vou comunicar esta sua vontade a um psiquiatra e ele falará com você. Eu aqui sou só
o enfermeiro. Cuido de vocês, os enfermos. Meu cachorro azul não tinha nome. Nada que eu
gosto tem nome. Tudo que é perigoso tem nome. O nome não é dado a alguém para
diferenciá-lo. Senão nenhum nome seria igual. O nome é dado para você ser igualado ou ser
diferenciado dos outros. Ele voa. Ele anda em aeronaves. Ele é o meu cachorro azul. Tem outra
coisa boa em relação aos cachorros de pelo e osso: ele não faz cocô e nem xixi pela casa. Tudo
o que tenho é meu cachorro azul. Há muito tempo que eu não brincava com ele. Até quebrar
tudo lá em casa. Tava um tempão sem olhar pro meu amigo. Sem passar uma escova nele. E se
em vez de cachorro fosse um elefante de verdade meu bicho de estimação? Imagina a
quantidade de merda que iria ficar no meu quarto? Ia dormir na merda. Mas pelo menos teria
uma ducha mais forte do que a lá de casa para tomar banho. Coma tromba ele poderia me
molhar todinho. Um elefante domesticado incomoda muita gente. E se eu tivesse dois? Seria
um sonho. Eu ia incomodar meio mundo. Ia fumar uns baseados dentro do elefante e soltar
pela tromba. Porque estes bichos todos sou eu. Menos o cachorro azul. O cachorro azul é da
cor do Haldol. É meu amigo.
Você quer ver algo mais colorido?
Quero.
O que você quer ver?
O sol.
Amanhã iremos à praia e jogaremos bola e devoraremos as joaninhas e afogaremos os
tatuís. Vamos viajar pra Ibicuí, para a casa de amigos que serão amigos pela vida toda. Eu tinha
um amigo que estava com Aids, mas o cara foi forte e aguentou, e eu tenho que aguentar essa
porra toda.
Nós só fazemos eletrochoque com sedação. O doente não sente nada. Quem sabe
levando uns choquinhos ele volte ao normal? Quem sabe tudo volta ao normal? Vivo com uma
velha de noventa anos. Eu gosto dela. Ela defeca em tudo. É lambona pra caralho. Mas eu
gosto da velha. Um dia a velha danou-se a comer isopor e plástico. Passou mal e teve que ser
internada. Enfermeira! Um grito lancinante vindo do âmago de um dos internos. Por que não
internam as mulheres junto com os homens? Será que ia virar uma confusão sexual geral?
Acho que louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bolinando.
Mas isso ocorre mais nas ruas. Estou sem o meu cachorro azul aqui, estou despido do que sou.
Na prática não sou ninguém. Não adianta eu gritar socorro. Aqui todos estão sendo levados a
algum lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares.
Meu pai aparece num dos dias de visita. Foi ele quem me internou, mas eu não tenho
ódio no coração. Gosto deste homem. Ele me dá um beijo.
Como você tá, filho?
Quero sair da gaiola.
Ele diz que sairei quando estiver melhor. Movimento-me em sua direção e dou um
beijo em sua face. Será o beijo de Judas? Será que trairei meu pai em minha loucura? E se
agora viessem dois homens e me crucificassem e me colocassem de cabeça pra baixo? Será
que a cruz ia aguentar toda a banha?
Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha
ficado na gaiolinha. Minha mãe mentiu-me, dizendo que eu havia ficado n ala melhor daquela
clínica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficavam os casos sem
solução. Mas eu achava que tinha solução. Apenas algumas pessoas estavam me perseguindo,
e se essas pessoas resolvessem dar uma festa para mim naquele dia? Naquele dia em que a
chuva abundava, foi internado o Temível Louco. Temível Louco, quando pequeno, tinha
atitudes psicopáticas. Já havia matado muita gente, segundo rezava a lenda. Temível Louco me
deu um beijo na face direita e deu duas voltas em volta de mim, disse que seria meu amigo.
Isso foi na minha última internação. Não sei se lembra de mim.
Era hora do almoço e estavam todos os loucos na fila quando chegou o Temível Louco,
que cuspia onde queria, defecava onde queria, peitava os enfermeiros, e só não era líder,
porque louco tá cada um na sua paranoia. Louco não pensa na coletividade.
Eu tinha uma paranóia muito louca. Uma espécie de compulsão. Toda vez que me
davam três remédios, eu tinha de tomar o quarto. Eu enchia tanto o saco que me davam
quatro logo. Se tomasse três, coisas horríveis podiam acontecer.
O Temível Louco começou a comer tudo o que via. Mordeu a falangeta de um outro
louco. Foi repreendido por enfermeiros. Todos os enfermeiros eram gordos. Os que não eram
gordos eram fortes.
Eu sempre dava um cigarro para um louco que, na hora do almoço, dava cabeçada nas
paredes. Imagina se esse doido fosse jogador de futebol. A cabeçada dele ia ser poderosa.
Acostumado a cabecear paredes, ele ia estourar todas as bolas que cabeceasse. Quem sabe a
seleção brasileira não o convocaria?
Toma um cigarro. Fuma o cigarro todo. Vê se não dá mais cabeçada na parede.
Eu já estava tomando tanto remédio, que estava com aquela baba elástica bovina e
viscosa, como dizia o escritor.
Depois do almoço eu contava as estrelas do céu e não via nenhuma. Depois do almoço
eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que agradecia por
aquela comida com uma boa oração. Só porque o cara é louco, tem que comer o pior. Lasca de
goiabada. A única coisa boa era a lasca de goiabada. Era o tipo de goiabada cascão que
grudava no dente. Os loucos comiam. Minha mãe, toda vez que vinha me visitar, me mandava
tomar um banho. Eu tomava um banho onde os outros tomavam. Era um lugar limpo, que
tinha de ser limpo toda hora. A cada minuto vinha um louco e cagava no chão e deixava a
merda toda lá. Imagina se houvesse um louco que fosse uma pomba. Ia sair voando e
defecando por aí. Não ia ter mais careca de vovô, vidro de carro, chapéu ou boné sem merda
incrustada. Às vezes se lambuzavam todos.
Minha mãe me trazia o sanduíche de atum que eu devorava como se fosse filé mignon.
Eu tinha saudade de casa.
Mãe, quando vou sair daqui? Vou sair pior do que entrei?
Se ameaçar, a gente fica mais tempo. Por que você só fica na penumbra deste
cubículo?
Um dia vinha minha mãe e no outro vinha o meu pai. Parecia que eles tinham a
consciência pesada por ter me internado.
Eu quebrei a cristaleira.
Eu quebrei os copos de vidro todos.
Mas consegui livrar a casa dos maus espíritos.
Lá vem a turma me aplicar as injeções. Eles puxam a banha e dão a Benzetacil.
Benzeta.
Benzeta.
Eu quero uma injeção de Benzetacil. Benzetacil por conta de uma ferida que tenho na
perna. Preciso perder 50 quilos. Uma enfermeira disse que eu era até bonitinho, mas precisava
perder uns quilinhos. Eu podia fazer o programa das Casas da Banha. Vou dançar o chachachá.
Casas da Banha. Era um porco. Suíno. Sujo. Não tinha noção do que era degradante. Mas um
dia, sem dúvida, ia criar alguma espécie de biodegradado, remover minhas impurezas e ficar
limpinho. Limpo por fora. Por dentro estaria sempre com aquelas marcas que os animais
deixam, das mordidas. Com os hematomas na alma. Estaria sempre me procurando e
encontrando e encontrando pedaços aqui e acolá. Temível Louco passou ao fundo. Ele já
estava fora do cubículo dele.
Quando vão me tirar daqui, enfermeira?
A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício.
Liberdade, só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando
em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo.
Eu podendo sair por aí com Rimbaud e Baudelaire. Viajando pra Angra dos Reis.
Rimbaud matou uma onça que circundava o meu corpo outro dia, de noite. Outro dia,
de dia, comemos junto a gororoba do hospício. Eu e Rimbaud. Ele está internado devido a
drogas. Ele manca um pouco. Deve ter seus quarenta anos. Cheguei a perguntar por que
escreveu tão pouco. Ele me disse que detestava escrever. Eu gosto é de sentir o vento sobre os
meus cabelos. Há brisas perigosas para um cara franzino como Rimbaud, mas ele é um cara
safo, sabe se livrar das adversidades. Logo estará recebendo alta.
De volta ao cubículo e às injeções. Eles não confiam mais em mim. Só me dão
remédios via injeção. Acham que eu vou cuspir o remédio ou malocar em algum lugar. Que
raiva têm de mim esses médicos? Vêm cinco me segurar. Eu me debato como uma baleia. Mas
depois fico quieto. Depois me aquieto. E quase não sinto devido a tanto que puxam a banha.
Eu quase nem sinto a dor das injeções.
Abriu um belo arco-íris que só eu via através de uma janela ao longe, bem ao longe.
Aquele dia eu chorei por estar sozinho. Chorei por não ter um emprego. \chorei por não ter
uma mulher. Chorei por não ter filhos. Chorei por não ter uma família. Chorei por ter 37 anos
de idade e viver ainda como um adolescente.
Por que você está chorando, Gordo? Eu choro pelos gordos do mundo, pelos que
querem comer agora uma torta de maçã, um brigadeiro. Mas não têm dinheiro pra comprar
todas as guloseimas do mundo. Eu mesmo choro porque queria te comer. Oh filho da puta! Te
comer assado. Ia fazer que nem os canibais e ia comer gente. Mas eu prefiro não ser tão doido
e comer açúcar. Bomba de chocolate, mil folhas, sorvete de flocos, cocada, pé-de-moleque. Ia
virar a Dona Redonda e estourar de tão gordo.
A única hora em que eu saía do cubículo era no horário das refeições. Mas tinha um
enfermeiro que não tirava o olho da turma nenhum minuto. Imagina se eu fosse um
funcionário do hospício? Deve ser muito difícil lidar com toda aquela clientela, com gente de
todo tipo. Com caras da zona sul e com garis da Comlurb. Com velhinhos oligofrênicos e com
Procuradores- Gerais da República senil. Os loucos mesmo devem ser os mais fáceis de ser
cuidados. Todas as vezes, eu desacreditava em Deus. Se havia um lugar como o hospício, era
sinal de que Deus não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem estava dentro daquele
pequeno inferno.
Eu era menino ainda e estava no clube me divertindo na piscina, quando vi uma
criança pequena, menor do que eu, quase um recém- nascido, se afogando. Eu fiquei
impactado pela cena e demorei a salvar a criança. Fiquei ali parado. Abobado. Veio outro guri.
Foi mais rápido, pegou a criança que se afogava e tirou- a da piscina. Fizeram uma festa para o
herói. Uma festa que era pra mim. Fiquei quieto no canto. Percebi neste dia que uns nascem
pra ser heróis, outros nascem pra ser seres comuns. Eu estava condenado a ser um ser
comum. Jamais seria um super-homem.
Eu voltava pro cubículo. De bom só a goiabada e a bundinha da enfermeira. Às vezes
eu vou dormir e fico pensando na enfermeira da noite. Ia gozar só de botar meu corpo sobre o
dela. Só de poder sentir sua carne sob a minha. A primeira vez que fiz sexo foi com um javali.
Seguraram o bicho pelas patas e falaram penetre. Eu penetrei quinze centímetros dentro do
bicho e aí o soltaram. Eu gozava justamente porque o javali pulava e pulava. O cu do bicho era
espinhoso. Doía meu pênis. Como doía meu pênis! Depois de muito tempo o bicho ficou
cansado. Gozei seis vezes direto. Acendi um baseado, ele foi pra outra esquina, e eu fiquei ali
chapado. Eu usei muitas drogas na adolescência. Uma vez, quando tomei um chá de cogumelo,
fui parar nas cisternas da casa, batendo um papo filosófico com o meu eu. O pior é que eu
encontrava respostas. Nem sabia que tinha um eu superior. Arriscava umas perguntas sobre o
futuro e o eu me dizia tudo. Só que depois da ação do chá de cogumelo não me lembro nada
que o eu disse.
Um Papa Mike entrou armado.
Eu ouvia os tiros da ação. Andava de um lado pro outro. Minha adrenalina aumentava
na madrugada. A madrugada começava com aqueles tirambaços. Será que alguém está ferido?
Ontem, mãe, deram tiros aqui dentro. Conta pra mim o que houve? Conta pra mim?
Você sabe que eu sou curioso.
Se isso ocorresse eu te tiraria daqui na hora, meu filho. Você está aqui para melhorar.
Parar de destruir a casa de mamãe e ponto.
Na verdade, tinham matado uma cara lá dentro. Um policial militar atirou no outro
com uma arma branca. Temível Louco estava envolvido.
Todo dia antes de dormir eu rezava a ave-maria. Todo o dia eu pedia a Deus que me
tirasse dali o mais rápido possível e que o mais rápido possível fosse o dia seguinte. Depois eu
não acreditava nem em Deus e nem na Ave Maria, mas eu rezava. Não custava nada rezar. Não
pagava nada pra pedir. Algum cristão, num dia de domingo, aparecia bem perto da minha cela
e deixava um folhetinho. Eu olhava e lia quando as doses não eram altas e me deixavam ler,
depois rasgava o papel. Meu Deus! Os crentes estão ganhando o mundo. Até aqui eles vinham
para angariar os fodidos. A religião virou uma sacanagem do caralho. Acho que sabiam que
havia muitos alcoólatras lá dentro. A religião não é só o ópio do povo. Mas é o que mantem o
povo feliz. Triste do povo que precisa da religião para se apoiar. É pior do que um louco que
tem cura, mas precisará sempre de um apoio de outra pessoa para ser feliz. É melhor ser louco
incurável.
Temível Louco comia a comida dele com a mão. Dizem que ele matou gente e tudo. Sei
que nos dias de visita ninguém nunca veio ver Temível.
As pombas voavam no céu, prontas para defecar em alguma cabeça ou algum vidro de
carro. Lembro-me de uma vez em que um doente mental levou formicida para dar às pombas.
O resultado foi aquele rastro de pombas pelo chão. Mortas. Todas elas.
Havia um louco ali que era homem, mas se vestia de mulher. Gostava de dar
cabeçadas na parede e vivia tremendo. Outra lembrava a minha avó por parte de mãe, sempre
muito elegante. Outra, ainda, tinha hábito muito estranho: enchia um copo inteiro de café e
outro de leite e tomava cada um sem misturar. Não era coisa de gente louca. Uma vez cheguei
perto dela e ela falou de Heráclito e Parmênides com um sotaque espanhol. Era chilena. Criei
uma ficção na minha cabeça de que lutara por Allende e perdera como todos os chilenos. Fora
perseguida política. Recebeu os maus- tratos do estado. Foi torturada e acabou num hospício
no Brasil. Ela era professora de sociologia. Com certeza, devia ter filhos que não sabiam de seu
paradeiro e viviam de lugar em lugar procurando a mãe. Quantas coisas os governos fazem
para destruir a vida dos que incomodam. Incomodar parece ser condição de bom funcionário
estatal. Ver as maracutaias e não fazer nada, ver o povo perdendo força, o povo sem dinheiro
perdendo dinheiro, pagando salários altos aos burocratas...
De súbito, ouvi berros, Desespero. Alguns internos estavam fazendo arremesso de
oligofrênicos. Pegavam e jogavam oligofrênicos pra cima e numa vala também. Internos menos
loucos comandavam o evento. Sim, aquilo era um evento. Uma espécie de ritual.
Eu continuava com a minha paranoia e com o meu chip implantado dentro de mim.
Tinha engolido um grilo aos 15 anos. E com seis, fui visitado por extraterrestres que me
buscariam em casa aos 18. Já havia passado dez anos e os extraterrestres não vieram me
buscar. Fronsky não veio me buscar. O chip é para a CIA e a KGB me dominarem. Sou
importante, porque sei peidar sem sentir o próprio cheiro. Desenvolvi uma técnica de
filtragem. Brincadeira à parte, sempre me senti um ser perseguido. Ando nas ruas sempre
olhando pra trás e de vem em quando saio em desabalada correria. Uma vez meu psiquiatra
pegou o ônibus comigo, só pra provar que não havia problema nenhum em andar de ônibus no
Rio, na zona sul. Morreu em 2000 paus, mais o relógio. O ônibus foi assaltado.
Pegaram uma interna e arremessaram. Os doidos tavam arremessando todo mundo
que aparecia na frente deles. Jogavam num barranco. A pessoa podia se machucar, mas os
outros loucos riam e queriam mais. Formavam uma fila para ser arremessados barranco
abaixo.
A noite chegava e com ela vinha o pior: a trilha sonora. O hospício ficava do lado da
favela. Era funk a noite toda e o dia inteiro. Lacraia, lacraia, lacraia. Vai, Serginho. Dormir
ouvindo aquele lixo... Aos berros!
Eu achava que ali havia uma porta muito estranha de onde as pessoas não mais
voltavam. Entravam por aquela porta e sumiam. Ficava de olho. Há dois dias que a chilena
havia entrado e sumido.
Eu vou pra Paracambi. Se você não comer, vai pro Caju.
Não aguentava mais ficar no cubículo. Estava sofrendo com problemas nas
articulações. Nenhum louco merece aquele tratamento. Sei que no meu caso era um castigo
por ter quebrado a casa toda. Era algo que funcionava como castigo de criança.
Já tive que escrever 200 vezes, detestando o professor de matemática, “eu gosto do
professor de matemática”. Agora o copiar e colar do computador acabou com o castigo.
Quando vinha o sol, ia pingando um a um cada funcionário. O hospício cheio. Estava
superlotado. Era domingo, dia de visita. Havia horário para visita diária e dia de visita universal,
que era o domingo. Eu ainda estava com o meu chip, que Às vezes me incomodava
fisicamente. Pensava até que ponto o meu chip era um derivado do grilo de antes. Tinha
momentos de lucidez. Eram poucos, mas tinha. As drogas usadas às vezes têm ação sobre o
organismo. Mas tem gente que não melhora nem com remédios. Pra que serve internação
então? Pra reunir o entulho humano.
Quando o hospício estava cheio, era a hora de ficar quieto. Qualquer coisa e você
poderia ser amarrado á cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte. Muitos alcoólatras
viviam amarrados devido à síndrome de abstinência. O grande mal das clínicas é que elas
misturam os doentes.
Tinha vontade de comer o bolo da vovó. Mas eu não tinha mais vovó. Muito menos o
bolo da vovó. O que havia era uma paçoca de fubá, muito sem gosto. Mas que todo mundo
comia arregalando os olhos. A comida de hospício era aquela comida feita pra duzentas
pessoas por vez. Era Matrix. Não tinha tempero. Era muito ruim mesmo. Mas fica até chato
reclamar, quando tem tanta gente passando fome e quando tinha gente dentro do hospício
que achava aquilo a oitava maravilha do mundo.
Hoje não teve goiabada.
Eu estava ali há dez dias. Há dez dias que comia mal. Pelo menos ia emagrecer. Tinha
saudade da comida de casa. Quando não tinha goiabada não havia nada que gostasse. Mesmo
que grudasse nos dentes, era boa. Lembrava infância. Lembrava o nordeste. Eu queria comer
uma maçã. Há muito tempo não tinha uma maçã. Fruta ali era banana. Eu queria maçã,
abacate. Estava seco por uma vitamina de abacate.
Entrou uma barata no cubículo. Tive que matá-la com a mão. Não havia outro
instrumento ao meu alcance. Os cubículos são feitos pra pessoa que está dentro não ferir
ninguém, mas também não se ferir. Pra não me ferir não havia nada no cubículo. No começo
da internação às vezes ficamos amarrado. Cada um tem um tratamento que varia de acordo
com a sua periculosidade.
Há muito que não se fazia mais a operação de lobotomia. As práticas de eletrochoque
só eram ministradas com sedação. Havia a luta antimanicomial. Mas onde pôr as pessoas que
não têm família e são casos perdidos?
Eu tinha medo do futuro. Talvez fosse aquele mesmo, conviver com todo o tipo de
gente. Gente sã, gente doida, policial, gari. Não tinha nada contra os garis, eles eram muito
limpos e sempre queriam fazer uma faxina. Mas o dia inteiro preso, vendo tudo de longe. Era
triste. Caiu um toró. Chovia. Ficava mais triste. Eu não me lembrava de um amor. A última vez
que fora amado, ela disse que não me amava. Tinha se apaixonado pela loucura que há em
mim. O louco às vezes é muito sedutor. Sentia saudade de ler um bom livro num dia de frio,
num dia de calor também. Sentia vontade de ler um Henry Miller.
Havia muitos morros em volta do hospício. Em vinte anos tudo estaria tomado pela
favela. O morro ia comendo o morro, e cada vez mais existia menos lugar verde e mais telhado
e casas insalubres. Naquele cubículo era sempre inverno. Sempre fazia frio. Eu não me
incomodava, gosto de frio. A gente não tem que tirar a camisa. Mostrar as banhas não é o
melhor programa para um gordo.
Detesto espelho. Espelho só serve pra mostrar como a gente piora com o tempo. A
primeira coisa que quebrei lá em casa foi o espelho. Nem me importei com os sete anos de
azar. Depois fui pras bebidas e, tomado de uma loucura inconteste, fui jogando, uma a uma, as
garrafas de uísque no solo. Ficou um lugar perigoso. Um mar de cacos de vidro. Algumas coisas
não quebraram, como o vidro da grande mesa da sala, que se mostrou indestrutível. Um
enfeite da mesa também era inquebrável. Havia coisas que se derretiam só de tocar, que se
autodestruíam com um afago, e outras que se mantinham impávidas. Meu pai veio e pediu
para que eu parasse. Eu não parava. Minha sobrinha pequena gritava. Meu irmão gritava.
Minha mãe gritava. Minha irmã gritava. A empregada lá de casa gritava.
Não, isso não!
Isso eu quebro e vou quebrar mais. Eu quebro. Eu quebro. Quebro.
Chegou a polícia e me algemou.
Levaram- me pro Pinel.
Por que você quebrou?
Quebrei, porque sou feito de cacos e quando os cacos me convidam, desordeno tudo.
Tudo estava muito calmo. Menos eu. Engoli um chip. Bebi um chope na rua e botaram um chip
dentro do chope. Engoli o chip que faz com que eu faça tudo isso, até o que não quero. Mas eu
só podia me ferir com tantos cacos, ainda mais andando descalço pelos cacos.
Você vai ser removido para a Clínica. Nós estamos superlotados.
Eu não quero ir pra Clínica e nem ficar aqui.
E comecei a quebrar o consultório do médico, até vir um enfermeiro com uma
baioneta.
Por que você não morre?
Há tanta gente velha aqui.
Um dia ainda sobrevivo pra mostrar todo este jogo sujo.
Fui pra perto do Cristo. Da minha cela dá pra ver o Cristo. Colocaram- me lá pra ver se
eu morro um pouco de vergonha por não crer em Deus. Havia borboletas por todo lado. O
hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas podre por dentro. O modelo do hospício tinha
que ser mudado. Mas como a minha família me aguentaria quebrando tudo? Nas horas em
que me vem uma pertinência maior, vem a pergunta: o que eles poderiam fazer? No dia da
crise não se pode fazer nada. E o que fazer pra não entrar em crise?
Você é um caso perdido. Você é um idiota, você é gordo e escroto. Você só fala isso,
porque estou amarrado.
Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado. A ambulância dourada. As
enfermeiras douradas tocando- me com suas mãos douradas.
Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos
enfermeiros.
Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de
Maiakovski e não deixei.
Pra que isso, Rimbaud? Deixa que detestem a gente? Deixa que joguem a gente num
pulgueiro. Deixe que a vida entre agora pelo poros. Não se mate, irmão. Se você morrer, não
sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim. Rimbaud, tudo vai ficar da cor que
quiser. Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
Tudo ficou verde da cor dos olhos do meu irmão Bruno e da cor-do-mar. Do mar.
Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.
Tudo ficou Van Gogh. A luz das coisas foi modificada.
Enfim, me deram uns óculos. Mas com os óculos eu só via as pessoas por dentro.

Deus não: deuses

Foi como mergulhar. Finalmente, me tiraram do cubículo. Eu passeava agora como


igual entre os iguais. Alguns me olhavam com medo. Outros me pediam um cigarro. Se você
um dia for visitar um hospício, leve um cigarro. Todo mundo fuma. Imagina aquela turminha
fumando uma tora, uma bazuca das boas.
Eu me sentia livre como uma borboleta dando o seu primeiro vôo. Eu sabia que aquele
era o primeiro passo para sair daquele lugar.
Rimbaud aparecia e me mostrava alguns novos amigos... Peter Perfeito gostava de
andar de mãos dadas com Clark Kent. O Demolidor beijava o Batman. Havia amor livre
naquelas brincadeiras de homenzinhos de Rimbaud.
Rimbaud, pára de brincar com homenzinhos.
Foda-se você, que não sabe brincar. Meu negócio é brincar. Eu brinco. Brinco. E brinco.
Rimbaud tirou do bolso um boneco do Coringa e me disse, você tem o sorriso do
Coringa. Não sei se você é uma alucinação minha ou se sou uma alucinação sua.
Puxei para os meus pulmões o ar da liberdade e deixei Rimbaud falando sozinho.
Talvez eu não tenha andado tanto assim na noite escura. Foram só uns três
quilômetros no breu e o que ele viu foi um ritual de magia negra. Depois engoliu este grilo. O
grilo que engoli é o mesmo chip de hoje.
Ele é doente mental, esquizofrênico. Tem distúrbio delirante, tem delírios
persecutórios. Ninguém acredita numa pessoa com distúrbio delirante e delírios persecutórios.
Aquela pessoa pode estar sendo perseguida realmente e ninguém acreditar na história dela.
Rimbaud e seus bonecos. O Falcom está fodendo a Barbie.
Sai, Rimbaud. Enquanto você não virar adulto, não falo mais com você.
Eu brinco. Brinco. E brinco.
Estendi minha mão para Temível Louco. Temível fez que não me viu. Fui atrás dele.
Por que você não quer me cumprimentar?
Você é papai. E papai bate em mim.
Descobri, então, que devia ser parecido ou lembrar o pai de Temível. Ele tinha medo
de seu pai, conseqüentemente, tinha medo de mim. Fiquei contente. O cara temido por todos
tinha medo de mim. Logo eu, apenas uma gelatina.
Peguei um dos bonecos do Rimbaud e esfreguei na cara dele. Não vê que isso é coisa
de criança?
Eu quero ser criança. Eu sou Rimbaud.
Graças às injeções de Benzetacil, estava curado da erisipela. Passaram a fornecer-me a
medicação via oral. Eu cuspia tudinho. Escondia entre a língua, abria o ralo e jogava fora.
Colocaram-me no quarto com mais dois. Rimbaud, você dorme no chão. Só que os
outros dois não agüentaram dormir comigo. É que eu roncava muito. Voltei a fumar e depois
parei. Vomitava muito. O resultado foi que fi quei um tempo sozinho num quarto com três
camas.
Eu já tive vontade de ir pra cama com minha tia. Mas nunca pude. Já quis comer a
prima. E prima é manjar dos deuses. É a coisa mais bela que Deus pôs no mundo. Minha tia era
mulherão. Tinha um metro e setenta e cinco. Grandes coxas e bunda. Nunca tive vontade de
comer minha irmã. Era tão chata que nem dava pra sentir tesão.
Um bando de formigas foi saindo uma a uma de seu formigueiro. Formaram um
exército poderoso, entraram no meu quarto e levaram Rimbaud. Formigas são mais nojentas
que baratas. Rimbaud berrava e esperneava e ninguém fazia nada. Fui atrás do cortejo. Parecia
um desenho animado. Fui entrando mata adentro. Rimbaud foi posto em pé por dois
curandeiros e quando foram cortar seu braço, dei um grito de ataque Sioux, que aprendi nos
filmes de Daniel Boone. Todos correram. Não foi a primeira vez que ajudei Rimbaud. Ele não
sabe sair de suas encrencas sozinho. Tenho sempre que intervir para salvá- lo. Sou o seu super-
herói.
O bom era que eu passava os dias sozinhos no quarto. Eu e Rimbaud passávamos as
tardes jogando pôquer.
Rimbaud não estava acostumado às modernidades. Era um cara vindo de outra época.
Tinha que aprender tudo. Nunca mais escrevera um poema. Mas era um bom companheiro
para as horas perdidas e para o pôquer. Depois de um tempo, veio um depressivo para o meu
quarto. Ele dormia o dia inteiro. Dormia com a mão estendida no chão. A mão parecia uma
cobra, uma naja que às vezes crescia e vinha atacar a mim e a Rimbaud.
Vocês devem estar se perguntando se meu relacionamento com Rimbaud era sexual.
Apesar de saber que Rimbaud era apaixonado por mim, eu não dava muita corda, para não
ferir o coração do poeta. Afinal, eu só queria amizade de homens. Rimbaud se comportava
muito bem e jamais saía do meu lado. Era um amigo fiel, um escudeiro.
Ele gostava de flores. De vez em quando, estávamos cingidos de flores. De vez em
quando, andávamos nus. Eu gordo e ele bem magro. Fazíamos a dupla o gordo e o magro.
Um dia, salvei uma casa de seus cupins malditos, algo sobrenatural. Os cupins estavam
incrustados em tudo. Deixei cupins apenas nos chifres do diabo. O resto dos lugares ficaram
livres dos cupins. Eu já manifestava ter poderes aos 15 anos de idade. Era um verdadeiro
emanador de poderes transcendentes. Havia engolido um grilo que se movimentava no meu
pulmão.
Que engoliu grilo que nada!
Você está louco. Cruz credo, você precisa ser tratado.
Ele está ótimo. Precisa é de umas boas porradas.
E apanhei de tamburete.
Foi a última vez que apanhei, depois que cheguei ao Rio. Apanhei pelo vexame.
Isso é coisa de homem, achar que foi pego por um grilo? Você é que é um grilo falante.
Eu ainda não era amigo de Rimbaud. Se ele já fosse meu amigo não deixaria eu
apanhar tanto.
Tinha um outro amigo, o Baudelaire, que aparecia só de vez em quando. Mas com ele
era outra história.
Nem eu pedindo e ligando para ele, nem deixando recado, Baudelaire atendia. Ele
tinha um gênio danado. Mau humor. Mas naquela tarde ambos estavam lá, Rimbaud e
Baudelaire, conversando sobre poesia e vida moderna. E de repente ela passou por mim. Veio
de branco, toda de branco, perfumada e linda. Branca tipo porcelana. Fui invadido pela
música,
“ela vem toda de branco, toda molhada e despenteada que
maravilha que é o meu amor”

Jorge Ben me pegava pelas mãos. E eu olhava aquela mulher de jaleco passar.
Rimbaud e Baudelaire sumiram. Mas então Rimbaud voltou com uma margarida na cabeça,
colocada no ouvido esquerdo, e dançou e dançou. Ri com ele e ri dele. Rimbaud me divertia.
Muitas pessoas devem se perguntar se Rimbaud teve culpa de eu ter quebrado toda a casa.
Claro que foi Rimbaud quem me deu a idéia.
Quebra tudo. Mostra que você é homem.
Eu não virei mais homem por ter quebrado minha casa. Este Rimbaud às vezes me põe
numa furada. Fico tempos sem vê-lo, mas ele sempre volta.
Parei de levar baionetada. Comecei o medicamento oral. A medicação oral é fácil de
ser burlada. Sei quais os remédios que tomo. Cuspo sempre no ralo os que não quero. O ideal
para coibir isso seria medicamentos efervescentes. Os oligofrênicos não têm consciência
nenhuma, tomam os remédios direitinho.
Hora de ver televisão. A hora em que a Família Adams se reunia. Os doidos todos se
reuniam para ver novela. Um sargento, um gari da Comlurb, outros oligofrênicos e um que de
dois em dois minutos dava uma cabeçada na parede.
Já falei pra esse doutorzinho que ele vai quebrar a cabeça. Vai ter um derrame sério.
Eu blsjdsomdkm0ooooeeirrrriruuuuruuiirrriiirii.
Ninguém entende o que você fala. Louco burro. Eu vou pra Paracambi, se você morrer,
vai pro Caju.
Quero sair desse lugar, quero ir embora pra Pasárgada. Sabe a Ana? Vai matar o
Marcos. O Olivier vai voltar pro Marcos. O Pereira termina com a Maju. A Lina vai acabar com o
Maciel. Ernesto vai bater no Parado.
Era a tv falando de novela.
Eu sou o samba. Eu sou Jesus Cristo. Eu sou tudo e nada. Sou louco legal. Eparrei,
Iansã! Ogum bolum ai iê.
Rimbaud dançava ao som do rap do lixeiro da Comlurb. Ele estava lá se
desintoxicando.
Vê, meu filho. Você tá aqui pra se desintoxicar. Seu filho não vai querer te ver assim.
Eu babava.
Eu me ilhava em mim. Enquanto todos viam tevê, eu jogava paciência com Rimbaud no
quarto vazio. Rimbaud me olhava. Tentava me tirar a concentração.
Olhei o horizonte. O céu veio se abrindo. Por que o azul do céu é tão azul aqui no
hospício? Por que são mais azuis os dias?
A natureza é tão linda e lembra um cemitério.
De maca entra pela primeira vez e vai para um quarto o Procurador-Geral da
República.
Senhor, há uma série de agentes da kgb circundando o local.
Ele está velho, com 75 anos. Já é um pouco de senilidade.
Meu irmão veio me ver e lembrou o filho dele mais novo, o Erbert! É você, Erbert?
Venha falar com seu pai! Os agentes da cia estão em volta do recinto. Estamos todos
sendo monitorados.
Por que todos os loucos têm paranóias iguais? Sempre estão sendo seguidos por um
agente secreto. A cia quase sempre está envolvida. O meu caso mesmo (ter engolido um chip)
só foi possível graças à CIA e à KGB.
Dentro de mim a ação do chip era estranha e aos poucos eu vinha entendendo o seu
funcionamento. Quem me ajudava nisso era Rimbaud.
Ele verificava a minha pressão com um aparelho que ele mesmo inventava. Eram
formas estranhas de se verificar a pressão.
Ele tinha uma medicina toda própria. Fazia alguma espécie de curandeirismo. Rimbaud
me disse que quem curou o meu problema na perna fora ele. No entanto, Rimbaud era manco.
Ele dizia, quando eu duvidava, que o poder dele era para os outros e não podia ser usado em si
próprio.
O menino parou, olhou para o seu pai.
Pai, onde você está morando? Você mora aqui em casa?
Meu pai era médico. Passava dias fazendo plantão.
Depois que eu falei aquilo com ele, passou a dar menos plantões. Meu pai sempre foi
um bom homem, muito calmo e tranqüilo.
Eu fazia muita confusão no colégio. Havia sido expulso de quatro colégios. Estava com
16 anos, na quinta série. Avisaram-me que eu tinha que fazer o supletivo com os adultos, de
noite. Meu pai chorou tanto.
Foi isso durante toda minha vida: fazer meu pai chorar.
Um americano foi internado na clínica. O cara tinha sido combatente no Vietnã.
Mother fucker. Fire in the line zone, gritava.
Fire, gritava.
O sargento logo se enturmou com o americano.
Rimbaud fazia uma dança chamada a Dança do Pelicano Azul. Era uma dança cheia de
meneios com todas as partes do corpo. Diz ele que aprendeu na África. Mas será que havia
pelicano na África? Ele era livre pra dizer o que quisesse. Aliás, todos nós somos, mas se é
verdade ou não, aí são outros quinhentos. A verdade pode ser uma invenção tão malfeita e,
ainda assim, convencer todo mundo. Basta usar da força. Ou abusar da crendice.
Eu já defequei em mim mesmo. Já mijei na cama no primeiro dia do hospício para não
sair de onde estava. Esta é uma vida cheia de atos abjetos. Uma vida cheia de medos.
Nunca comi merda. Nem sou dado a rituais macabros de existência. Sou um louco
light, versão diet. Apesar de o meu problema com o chip ser punk demais.
Quando era criança, queria ser bombeiro. Tinha roupa, carrinho e tudo. Tinha um
sorriso tão feliz, que nunca mais tive. O sorriso encardido pelo tempo naquelas fotos-pôster.
Vivia feliz como Rimbaud. Hoje penso em tudo o que faço e tenho noção quando faço merda:
quando me fazem engolir um chip e eu quebro toda a casa. Esta é a cagada que fiz. Com
quantos anos se é feliz? Só se é feliz no passado. Estou sozinho no quarto. Ninguém vem me
visitar há algum tempo. Não fiz mal a nenhuma pessoa para estar preso. O único prejudicado
com minhas atitudes sou eu mesmo.
Mentira! Sua mãe vai ter um prejuízo com as coisas que quebrou.
Tudo bijuteria.
Até a cristaleira da sua avó.
Por que fiz isso? Essa culpa não sai de mim... Ter derrubado uma porta. Uma porta
caquética. Por que eles chamaram a polícia? Hoje em dia é a polícia que vem buscar. Bati boca
com os policiais, fi z eles entenderem que era um chip.
Havia um que nem sabia o que era chip. Queria era passar a algema na minha mão.
Com 15 anos, tive o meu primeiro ataque, aos 36 ainda estou tendo problemas. Qual
será o próximo problema? Sou um problema ambulante.
Chove e choro. Choro e chove. O som do funk estuprando os tímpanos.
Vai, Serginho.
Imagino que estou fora deste lugar, eu promoveria uma puta festa lá em casa.
Rimbaud apareceu. Onde estou em seus pensamentos?
Está brincando com Baudelaire.
Detesto Baudelaire. Ele tem um jeito de velho. É muito formal. Eu quero estar com
você. Não vai me dizer que está apaixonado.
Eu vivia distante. Naqueles dias de adolescência. Peguei um ônibus sozinho de Campos
pra São João da Barra. Peguei o ônibus errado. Só. Sozinho. O resultado é que fiquei andando
por três horas no meio de um matagal. Não podia viajar, porque fazia merda. Viajei certa vez
para o Rio Grande do Sul e dormi fora da casa do meu amigo gaúcho. Fui parar na polícia,
acusando o meu amigo de nada. A polícia não me levou a sério. Este é mais um louco. Os pais
devem penar. Olha só que história sem pé nem cabeça! Pode andar por aí. Vai lá até o fi nal e
volta.
Uma mariola. Quem quer uma mariola? Uma mariola. Quem quer uma mariola? Quem
quer comprar uma mariola?
O sol era um sorvete de manga. Havia calor pra ir à praia. E todos ali queimando feito
sardinhas na frigideira. Sorando. Suando.
Ouvi um berro lá de dentro. Corri para ver e Temível estava emborcado num canto do
seu quarto. Quem matara Temível Louco? Foi você. Ele tinha medo de você. Você vai ser
crucificado. Temível tivera um ataque cardíaco. Ninguém viu. Mas tinha um louco que repetia
que era eu o culpado. Foram infiltrados entre nós detetives A e detetives B para ver quem
matou Temível. Eu era inteligente e já tinha sacado que os polícias estavam infiltrados.
Os dias passavam e as noites eram calmas. Todo mundo dormia bem. Acordados
apenas eu e Rimbaud. Será que alguém matou Temível? Tem muita gente aqui. Ele não se dava
com ninguém. Era um louco de jogar pedra, como diria mamãe.
Hoje chegaremos a Cabo Frio. Daqui a duas horas, em Búzios. Mataram um menino em
Búzios. Tão dizendo que foi seu tio. Seu tio é viado, mas não anda com criança. Ele nunca
botou a mão em um de vocês. Eu estava no trabalho e ouvi minha mãe mandar eu ir embora
pra casa. Eu sabia que meu avô estava mal de saúde. Vovô morreu naquele dia.
O que é a morte, mãe?
A morte é uma novela da Globo, filho.
Temível passava numa cadeira. Era tão gordo que não dava numa maca.
Como uma poia dessa pode ser o Temível Louco?
Acho que só chamando o Batman pra resolver aquele problema.
Foi morto hoje no hospício da cidade o cidadão Temível Louco. O mesmo que atazanou
a população do município por 15 anos. Para alguns, foi enforcado. Para outros, teve um ataque
cardíaco.
Desliga a tevê. É isso o dia todo.
Outro grito de terror. Roubaram-me alguns folhetinhos crentes e mais mil dólares. Eu
começava a desconfiar de minha sombra. Será que Rimbaud está envolvido? Ele não gostava
de tevê. Estou com medo de Rimbaud. Estou com um puta medo de Rimbaud.
Seu tio é viado (hahahaha...). Cuidado, que ele pode comer a sua bunda.
Não fala isso, senão vai piorar a situação de seu tio. Aqui a cidade é pequena.
Deve ter sido alguém de fora que comeu o garotinho.
Meu tio era um gaiato. Ele gostava de tomar café. Gostava de tomar o café de graça.
Ele almoçava em boteco. Em boteco bem xumbrega, desses com ovo rosa e Malzbier. Comia a
comida vagarosamente. Pagava pela comida. Conversava com todo mundo do boteco. Ficava
amigo do pessoal. Adorava uma boa piada.
Você tá com a cara manchada.
Onde?
Ele apontava para o rosto do cidadão.
Vá ao banheiro limpar isso, rapaz!
O cara saía e ia ao banheiro. Meu tio aproveitava e tomava o café do cara e se
mandava. Fez isso muitas vezes. Um dia, numa das cinco vezes em que fez refeições em
boteco, no quinto golpe, o café estava quente demais. Ele demorou. Veio o cara e deu-lhe uma
porrada. Ele apanhou tanto, que nunca mais repetiu a sacanagem.
Meu tio tinha dinheiro, mas fazia isso pela adrenalina.
Muita gente faz coisa só pela adrenalina. Rimbaud andava sobre o muro.
Sai daí, seu filho-da-puta. Cuidado.
Fui para o quarto para não ver minha adrenalina crescer. Rimbaud logo veio atrás de
mim.
Estou só. Este mundo é assim. Cadê o Baudelaire? Está jogando sinuca.
É tão triste ter como amigos duas alucinações. Uma que está comigo quase todo o
tempo e a outra, que me aparece de vez em quando. Sai Rimbaud, você é só uma alucinação.
Os médicos da clínica tratavam as pessoas no varejo.
Você vai tomar choques, mas é com sedação.
Pai, eu faço tudo para melhorar. O choque com sedação não provoca aquela
tradicional contração muscular. O resultado é o mais próximo de um tique nervoso.
Rimbaud me apareceu e disse que tudo ia correr bem.
A noite chegou e fazia frio neste dia. A vontade era a de acender uma fogueira no
hospício. Uma grande fogueira. Mas os agentes B estavam trabalhando no caso da morte de
Temível Louco.
Por que Temível Louco temia você?
Sei lá. Eu tinha que dar uma de louco. E fazia muito bem quando queria. Não tente dar
uma de mais louco do que é na verdade.
Devia temer minha voz.
Sua voz não tem nada. Nem grave é.
Mas devia parecer com a voz do pai.
Explicação insuficiente. Você conhecia Temível Louco lá de fora?
Aquele interrogatório era foda. Eu era incapaz de fazer mal a uma mosca. Quanto mais
matar.
Fale com Rimbaud. Fale com Baudelaire.
Vamos fazer uma fogueira. Tá cheio de louco aqui. Você é louco?
Fui dormir.
O louco que tinha uma naja nas mãos não estava mais lá, havia recebido alta. O quarto
estava livre. Bati uma punheta pensando na enfermeira mais gostosa. Aquela do ela vem de
branco. Depois ouvi o sino para os remédios. 44 45 O sino ecoava estridente pelos sete cantos
do hospício. A turminha ia se encontrando.
Há dias que eu não via Rimbaud. Baudelaire também havia sumido. Era melhor fi car
sem eles.
Sentia falta do meu quarto. Do meu cachorro azul. Eu nunca havia dormido fora de
casa, na casa de amigos.
Na casa de meu amigo, vi o Esper na televisão. Comi almôndega. Eu não tinha
problemas pra comer. Sempre comi de tudo. Dormi no chão.
Quando meu primo ia lá em casa, meu avô dizia: Dê a cama pra teu primo dormir.
Não dou. Teu primo quer que você vá trabalhar em Brasília.
Só se for de Brasília. Tenho que me formar primeiro.
Daí eles morreram naquele acidente aéreo.
Não beijei a primeira garota que amei. Fui beijar outra menina pra aprender e só
depois beijar de um modo melhor a que eu amava. A que eu amava viu e me deu o pé na
bunda.
Compraram um karaokê e colocaram na sala de tevê. Era um tal de cantar pra maluco
dançar. O sargento se achava o Frank Sinatra. Cantava Altemar Dutra. Cantava mal. Meu
ouvido não era penico. O gari da Comlurb cantava Boemia. Cada qual com seu cada um.
Os agentes B ainda estavam em cima de mim. Chateavam-me com aquele negócio de
eu ter matado Temível.
Foi você.
Você estava perto. Ele tinha medo de você. Não fui eu.
Rimbaud surgiu rebolando e cantando Light my fire.
Foi você quem matou ele. Foi você. Você matou Temível Louco.
Passei a conviver com mais aquela paranóia na cabeça. Não sabia mais se tinha alguma
participação na morte de Temível. Rimbaud dizia que sim.
O café na mesa. Torradas. Geléia. Nescau. Queijo prato. Mesa de casa com toalha
nova.
Pão com uma ida de manteiga. Mesa do hospício.
Mais três PMs internados.
Meu quarto (até então eu estava sozinho) vai ficar superlotado.
Três da manhã. Acordei e fui mijar. Vi no escuro um PM se esfregando no outro. No dia
seguinte nem me lembrava mais disso.
Se há algo que incomoda alguém é um karaokê. Era todo mundo querendo cantar a
toda hora. O oligofrênico cabeceava Andança e Festa do Sol. Por que estes karaokês são feitos
com música que todo mundo sabe cantar?
Rimbaud berrava nos meus tímpanos: você matou. Eu não acreditava em meu amigo.
Jamais fizera mal a uma mosca. Tratava as moscas muito bem. Pegava-as, guardava em
saquinhos plásticos e soltava em outro ambiente em que não estavam.
Fui pro quarto. Estava vazio e repleto de bichos de luz. Eram tantos, que tive que
desligar a luz. Os bichos 46 47 vieram pra cima de mim. Fui tomar banho. Será que havia um
assassino entre nós? Nesse caso eu poderia estar correndo algum risco. Falei com meu pai que
eu estava correndo risco. Ele falou de meu tratamento. Disse que os policiais B estavam
proibindo qualquer alta. Eu especulei que aquilo poderia ocasionar mais transtornos psicóticos
nos psicóticos. Meu pai falou que se há um assassino, tem de ser preso. Em sete dias devem
defi nir tudo, meu fi lho. Agüente mais um pouco. Ou eu saio morto, ou eu saio pior. Eu não ia
fi car lá tomando uma hora de banho. O assassino podia vir na encolha, como no Psicose de
Hitchcock. A origem da loucura em mim não deve vir do meu pai e nem da minha mãe. Mas o
gene com certeza é da família de meu pai. Minha avó tem uma mania de perseguição horrível.
Acha que meu pai não gosta dela. Acha que deveríamos pagar o aluguel pra ela. A turma toda
fazia uma fi la indiana para entrar e almoçar almôndegas com arroz e feijão. O problema não
era o nome da comida, era como a comida era feita. Em grande quantidade. Como para
animais. A educação na mesa não podia ser exigida naquele lugar. Os policiais B estão atrás de
você. De mim e todo mundo aqui. Mas eu não matei ninguém. Eu sei que não matou. Eu
estava com você, falou Baudelaire. Você podia dizer isso pro Rimbaud. Muitos elefantes
andando em círculo. Cada um segurando o rabo do outro. Eu não sabia mais a quem apelar pra
não ser esmagado na parede pelos policiais B. Eles agiam com certa agressividade verbal que
eu não gostava. Talvez fosse o tom de voz. A família quer saber quem matou Temível Louco. A
família dele nunca veio vê-lo. Apenas o depositaram aqui. Você tem raiva da sua família?
Tenho raiva de todos eles. Pelo que sei eles vêm todos os dias te ver. Você guarda mágoa? O
que isso tem a ver com a morte de Temível Louco? Achamos que só alguém muito bem
estruturado poderia matar Temível. Temível Louco não era um louco qualquer. A noite
chegava e eu, enfi m, iria para o meu quarto curtir uma viagem a Porto de Galinhas.
Aumentava o som do walkman. Botava rock na rádio e foda-se estar ali. Rimbaud aparecia
como um malabarista, com tochas de fogo nas mãos. Rebolava com aquilo nas mãos. Comia o
fogo. Cuspia o fogo. Era um dragão humano. Mas eu já estava melhorando e sabia que
Rimbaud era uma alucinação que vinha pra me atazanar. Não posso negar que ele me divertia
um pouco. Eu quero um Jack. Eu não vou beber. Depois do show que fi z pra você, você não vai
me dar um Daniel’s. Resolvi não responder a Rimbaud. Você não ia falar comigo. Você não
consegue viver sem minhas aprovações. É verdade que as alucinações são coisas negativas.
Mas bem que poderiam ser doutrinadas para ser positivas. 48 49 Não faça isso. É errado. Mas
como ir pela cabeça delas? O vento corta a faca do meio-dia. Zaratustra deve estar andando
pela fl oresta. Como voar parado? Existe amor ao meio-dia? Quando ela passa por mim, babo.
Papai veio sozinho hoje. Disse que meu irmão quer vir me ver. Meu irmão é mais doente do
que eu. Tenho pena de meu pai. Carregar esses dois fardos. Meu irmão é bipolar de humor.
Sofre por ser triste. Sofre muito. Meu pai estudou psiquiatria por causa dele, depois, por causa
de mim. Meu pai era pediatra. Agora é psiquiatra. Eu queria ter feito minha formação em
Cambridge. Poderia ajudar mais os meus fi lhos. Meu pai chorou. Todos choramos. Vejo
Rimbaud desde os 23 anos. Baudelaire apareceu mais tarde. Eu não podia nem ouvir alguém
dizer boa-noite. Se alguém dissesse boa-noite tinha que ouvir isso mais três vezes. Minha vida
no mundo das cores era um inferno. Eu só vestia calça azul-marinho e camisa branca. Não
vestia preto nem usava roupa de grife. As roupas andavam sozinhas. Sozinhas e
fantasmagoricamente andavam em volta da fogueira. Algumas roupas se jogavam no fogo.
Faziam uma algazarra na noite. Esquizofrênicos com distúrbio delirante não têm palavra.
Guardam um ódio à doença muito grande. Ninguém dá valor ao que falam. Eu não podia dizer
pra ninguém que Rimbaud achava que eu tinha matado Temível Louco. Baudelaire não. Ele
sabia que eu não tinha feito nada. Fronsky fi cou de vir me buscar quando eu tinha 18 anos e
até agora não apareceu em seu disco voador. Dizem que é loucura ver discos voadores. Depois
do Haldol muito pouca gente vê santo ou óvni. Havia uma fera que rugia na minha barriga.
Pedia comida. Veio lanche e tinha bolo. Era um bolo. Os lou- cos todos em fi la. O Procurador-
Geral da República e o drogado brigavam pela caneca de café com leite. Eu vou pra Paracambi.
Se você não comer, vai pro Caju. O banheiro estava sujo pra cacete. Aquele frio horrendo.
Noite de cair neve. Caía neve do céu. Era Califórnia. Ca- lifórnia me deu um beijo. Trouxe os
remédios. Califórnia era o nome da terapeuta que fazia uma di- nâmica de grupo uma vez por
semana. Os únicos que não participavam eram os oligofrênicos. Eu contei a história de Garnizé,
que não só era gay, mas também tinha um fi lho gay. Os dois estavam com Aids. Tira a mão dos
meus peitinhos. Pow! Bang! O pau começou a quebrar entre Louco Nerd e Alcoólatra Cabelos
Brancos. O pau começou a brochar. Tira a mão dos meus peitinhos. Tira a mão. Tira. Pow!
Bang! Os dois rolavam pelo chão. Vieram dois enfermeiros monstros de gordos e fortes e
separaram os dois. Louco Nerd foi amarrado na cama. Todos estão vendo tevê. Ninguém pisca.
De dois em dois minutos ouve-se o som da cabeça de um oligofrêni- co na parede. A parede já
estava abaulada. O jogo do Brasil. Libera pra gente ver o jogo. Vocês podem ver até dez horas.
Rimbaud passa correndo e vai para o quarto. Eu es- tou vendo o jogo. O Brasil joga bem. Gol.
50 51 Fomos dormir tarde. Papai veio dormir em casa hoje. Mamãe fez um bolo de laranja.
Uma delícia. Toda sextafeira tem bolo. Seguraram-me e botaram a camisa-de-força. Agora
cada um vai fazer um desenho. Fiz um Cristo crucifi cado. Agora cada um vai mostrar o seu
desenho. O meu desenho é o céu e o mar. É quando o céu se encontra com o mar no infi nito.
No meu há um colibri pondo o pólen em cada estrela da noite. Você e o seu desenho. É como
eu me sinto, um ser crucifi cado. Antigamente, todo mundo que era diferente ou representava
algum perigo era crucifi cado. Hoje em dia fi ca em lugares como hospício, que é a melhor
forma de não melhorar. Os policiais B chegaram perto de mim. Vieram numa de amiguinhos.
Tudo bem, não foi você, nos desculpe. Somos animais noturnos. Imagens e sons estranhos nos
instigam. Aqui há o grito que é a forma de se comunicar. Há um enigma por detrás de cada
louco. O homem dentro do leite caixinha tipo B deu um tapa num outro dentro de uma garrafa
de xampu Colorama. Era um tipo de garoto diferente, ele gostava de ir com a mãe às compras.
Sempre sobrava um docinho na minha mão pelo bom comportamento. Era como eles faziam
no hospício: quando todos se comportavam bem, endorfi na neles: goiabada. Como se pode
sentir falta de um lugar de onde ninguém vem, pra onde só se vai? No hospício só chegam
pessoas. Senta ao meu lado a Senhora de Todos os Gritos. Ninguém sabe por que ou por quem
ela grita. Dizem que perdeu um amor e fi cou assim, possuída pelo grito. É um grito uterino.
Uma coisa horrorosa. Destrói os tímpanos da gente. Ela come com vagar o boi ralado, como se
aquilo fosse fi lé mignon. Utiliza os talheres com precisão. É dona de uma etiqueta. Deixa a
goiabada e dá um berro. Com a mão esquerda tira uma meleca e coloca na mesa. Algumas
pessoas ali não são loucas, são apenas velhas, senis, e parecem viver em outro tempo. É o caso
de Lembra-Vovó. Lembra-Vovó anda muito bem vestida num tailler. É uma senhora de fi no
trato. Anda maquiada, bem conservada nos seus 70 anos. Não existe muito papo. Conversa
boba. Aqui tudo é na base do grito ou do eu vou pra Paracambi, quem não comer, vai pro Caju.
O que é a solidão? É viver sem obsessões. Mas na vida às vezes a gente tem que escolher entre
esmurrar a ponta de uma faca ou se deixar queimar no fogo. Qual o pior? Um homem vestido
de gelatina deu um beijo dentro da garrafa de Coca-Cola. Você não deve escrever sobre
hospício. Não. Todo mundo tem um hospício perto. Ou é a sua bolsa que é um hospício. Ou a
sua casa. Ou ainda a carteira de dinheiro. Muita coisa pode ser um hospício. Não falo de
desorganização, falo de hospícios mesmo. Rimbaud apareceu vestido de índio apache. Disse
que eu estava virando o general Custer. 52 53 Havia muitas fl ores em toda clínica. Era um
lugar bonito. Por isso que digo que hospícios são lugares tão bonitos que lembram os
cemitérios. Aqueles cemitérios onde há enormes jardins. Rimbaud gostava de brincar com
fogo. Acendia velas. Baudelaire gostava do escuro. Mas não gostava de briga e muitas vezes
sumia quando Rimbaud aparecia. Rimbaud era meu amigo de todo o tempo. Um verdadeiro
porra-louca. Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Então viajei para Disney e dei
porrada no Pluto, metralhei o Mickey Mouse. Tudo porque eu gostava do Nacional Kid e dos
Incas Venezianos. A violência é tão fascinante e nossa vida tão normal. Falo de um tipo específi
co de violência. Tudo pode ser violento. Mesmo Deus. Deus não: deuses. Tenho rituais. Acendo
um cigarro atrás do outro e deixo que se fumem. Deixo que os deuses fumem cada um o seu
cigarro. Às vezes acendo todos ao mesmo tempo. Meus deuses fumam comigo. Fica uma
bagunça, orgia de fumaça. E Rimbaud dança. Baudelaire foge. Sorrio. Imagina se fossem
baseados? Os deuses todos doidões iriam sair feito capetas para a vida. Entrariam deuses e
sairiam demônios. Humphrey Bogart contra Charles Laughton Policias B decidem sair do
hospício. Não chegam à conclusão. O que é uma conclusão? É a certeza de perder defesas.
Alguém abre uma garrafa de Coca-Cola. Alguém busca uma receita de felicidade. Alguma
enguia em minha testa atesta que o eletrochoque é pra voltar ao normal. Mas será que eu
quero o meu normal de volta? Não sei bem sobre o grilo e o cachorro azul. São somente
animais azuis. Azul também é a cor dos olhos dela. Lembra-Vovó vem e me abraça. Quer
dançar um tango, mas eu não sei dançar tão devagar. Meu papo é outro. Acugêlê banzai! Já
estive no Japão. Era um lugar diferente. Bem parecido com um hospício. Cheio de gente. Às
vezes, quando me lembro do Japão, me vem a recordação de Temível Louco. Era um cara legal.
Havia matado seis pessoas. Estrangulado. Estuprado. Era um cara estranho, mas delicado
comigo. Como já disse, ele tinha medo da minha voz quando eu falava num tom mais grave e
forte. Temí- vel gostava de jogar xadrez consigo mesmo. Quem tinha matado Temível Louco?
Era um mistério que ecoava no pouco silêncio que existia num lugar como aquele. Quero botar
no silêncio minha voz. Na minha voz, um grito.

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