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O ATRATIVO DO CRUZEIRO

(Conto de Pierre Clastres retirado do livro Arqueologia da violência)

Com impulso próprio, o grande barco percorre os últimos metros e encosta, sem choque, junto à
praia. O guia salta em terra e exclama: "Mulheres e crianças primeiro!". Risos alegres saúdam o
gracejo. Galantemente, ele oferece o braço às damas e o desembarque efetua-se num animado
vozerio. Estão todos ali, os Brown e os Murdock, os Fox e os Poage, os MacCurdy e os Cook. Antes
da partida, foram aconselhados a cobrir-se bem, mas vários dos senhores preferiram ficar de shorts.
Eles dão-se palmadas nas pernas e coçam os grossos joelhos rosados que os mosquitos logo
perceberam. Mas e daí! Afinal não se vai passar a vida toda nos hotéis climatizados; de vez em
quando é preciso viver duramente e conhecer a natureza.
— Tornaremos a partir dentro de duas horas... e cuidado com os escalpos!
É talvez o décimo contingente de turistas que ele conduz à aldeia indígena. Para ele é rotina. Por
que renovar seus ditos espirituosos? São sempre acolhidos com benevolência. Mas para essa gente é
muito diferente. Eles pagaram uma quantia bastante elevada para ir ver os selvagens. E recebem em
troca de seu dinheiro esse sol que não perdoa, os cheiros misturados do rio e da floresta, os insetos,
todo esse mundo estranho que estão bravamente dispostos a conquistar.
— Com essa luz? Acho que vou começar por...
A alguma distância, avistam-se os domos das quatro ou cinco grandes casas coletivas. Movimento
das câmeras, estalidos dos aparelhos: o cerco começa.
— Eu tinha muita vontade de ver esses negros! Seus ritos são tão curiosos!
— ... Não mais de dez dólares - eu disse a ela. No final, ela concordou.
— Eles são muito atrasados. Mas bem mais simpáticos que os nossos, não acha?
— ... depois, quando vi que o mesmo preço incluía uma visita às Bahamas, então eu disse à minha
mulher: está decidido, vamos até lá.
O pequeno grupo avança lentamente por um caminho margeado de árvores de urucum. O sr.
Brown explica que os índios pintam-se com o suco vermelho dos frutos quando partem em guerra.
— Eu li num livro, não lembro mais sobre qual tribo. Mas isso não tem importância, são todas
parecidas.
Tamanha erudição suscita respeito.
— Os Prescott? São uns idiotas, simplesmente. Disseram que estavam cansados.
Na realidade, vou lhes dizer, estavam com medo! Sim, medo dos índios.
O caminho atravessa um grande pomar. O sr. Murdock observa as bananeiras, ele bem que gostaria
de pegar uma fruta, mas é um pouco alto, teria que saltar.
Hesitante, ele tira por um instante o chapéu e enxuga seu crânio calvo.
— Você, pelo menos, não corre o menor risco de escalpo!
Ele renuncia à banana. Todos estão de bom humor. Eis que chegam ao final do caminho, entre duas
enormes cabanas. Param por um momento, como num limiar. A praça oval está deserta, limpa,
inquietante. Parece uma cidade morta.
— É aí que eles fazem suas danças, durante a noite.
No centro, um mastro ornado de losangos pretos e brancos. Um cachorro magérrimo rega sua base,
late debilmente e se afasta em passos miúdos e apressados.
— E aposto que ali é o poste de tortura!
O sr. Brown não tem muita certeza, mas é o especialista. Murmúrios, fotos, deliciosos
estremecimentos.
— Você acha que os ensinam a falar?
Amarelos e verdes, vermelhos e azuis, os papagaios e as grandes araras fazem a
sesta, empoleirados no alto dos telhados.
— Bem que eles podiam dizer alguma coisa, não custava nada eles aparecerem para nos receber,
poxa!
Isso acaba se tornando perturbador, esse peso de silêncio e luz. Felizmente, os
habitantes começam a emergir por minúsculas aberturas, mulheres com seios nus, crianças agarradas
a suas saias, homens que olham os estrangeiros das pernas para baixo e lançam preguiçosamente
pedaços de ossos aos cachorros. Conversas imprecisas se iniciam, as senhoras querem acariciar a
cabeça das crianças, que escapam, um homem jovem com sorriso aberto repete sem parar: "OK!
Good morning! OK!". O sr. Poage está encantado.
— E então, meu jovem, tudo bem?
Ele dá um tapinha nas costas do poliglota. Em suma, rompeu-se o gelo, estão entre os selvagens,
nem todo mundo pode dizer o mesmo. Claro que não é exatamente o que se esperava, mas ainda
assim... Os índios estão ali, arcos e flechas apoiam-se contra as paredes de palma das casas.
Agora se dispersam, cada um para o seu lado. Visivelmente, não há nada a temer e, em relação às
fotos e ao resto, é preferível que não fiquem amontoados, que não dêem a impressão de se preparar
para a guerra.
Decidido, o sr. Brown, seguido pela esposa, dirige-se ao índio mais próximo. Metodicamente, ele
fará a visita completa da aldeia. Duas horas para conhecer a tribo, não é tempo demais. Mãos à
obra. O homem está sentado à sombra num banquinho de madeira em forma de animal. De vez em
quando, leva à boca um tubo de terracota; fuma seu cachimbo sem deslocar o olhar, que parece
nada ver. Não se mexe nem mesmo quando o sr. Brown se planta à sua frente. Sua cabeleira negra
cobre livremente os ombros, sem ocultar as orelhas que exibem um grande furo.
No momento de passar à ação, alguma coisa detém o sr. Brown. Que vou dizer a ele? Afinal, não
vou chamá-lo de senhor. E, se tratá-lo por tu, pode ficar zangado e criar dificuldades.
— O que você acha? Como se dirigiria a esse... a esse homem?
— Não diga nada, simplesmente! De todo modo, ele certamente não compreenderia.
Ele avança e enuncia, entre injunção e pedido:
— Foto.
Os olhos do índio sobem dos pés até os joelhos do sr. Brown.
— Um peso.
Bom, ao menos ele sabe o que é o dinheiro. Era de se esperar... Enfim, não é caro.
— Sim, mas é preciso retirar essa roupa! Foto, mas não com essa roupa!
O sr. Brown faz o gesto de baixar as calças ao longo das pernas, ensina a desabotoar a camisa.
Despe o selvagem, desembaraça-o de suas velhas roupas imundas.
— Eu tirando roupas, cinco pesos.
Santo Deus, não é possível estar interessado a tal ponto. Ele exagera, para uma foto ou duas. A sra.
Brown começa a impacientar-se.
— Como é? Vai tirar essa foto?
— Mas veja bem, ele inventa histórias a cada vez.
— Mude de índio.
— Será a mesma coisa com os outros.
O homem prossegue sentado, indiferente, fumando tranqüilamente.
— Tudo bem. Cinco pesos.
O índio desaparece alguns instantes no interior e volta a sair, inteiramente nu, atlético, calmo e livre
em seu corpo. Rápidas nostalgias passam pela mente do sr. Brown e, em torno do sexo, a sra.
Brown deixa vagar um olhar.
— Você acha realmente que...
— Ah! Não me complique as coisas! Esse está bom.
Clique, clique... Cinco fotos, sob ângulos diferentes. Pronto para a sexta.
— Acabou.
Sem elevar a voz, o homem deu uma ordem. O sr. Brown não ousa desobedecer.
Ele se despreza, se detesta... Eu, homem branco civilizado, convencido da igualdade das raças, cheio
de sentimentos fraternos em relação aos que não têm a sorte de ser brancos, cedo à primeira palavra
de um miserável que vive nu, quando não está vestido de andrajos fedorentos. Ele exige cinco
pesos, e eu poderia dar-lhe cinco mil.
Não possui nada, vale menos que nada e, quando diz "acabou", eu paro. Por quê?
— Por que diabos ele age assim? Que pode significar para ele uma foto ou duas a mais?
— Você escolheu uma vedete que se faz pagar caro.
O sr. Brown não está em condições de apreciar o humor.
— Afinal! O que ele vai fazer com o dinheiro? Essa gente vive de nada, como animais!
— Talvez ele queira comprar uma máquina fotográfica.
O índio examina longamente a velha nota de cinco pesos, depois vai guardá-la na casa. Senta-se e
retoma seu cachimbo. É realmente irritante, ele não nos dá a menor atenção, estamos aqui e é como
se não estivéssemos... Ódio: eis o que começa a sentir o sr. Brown diante desse bloco de inércia.
Mas e toda essa viagem, as despesas extras? Impossível manter uma atitude digna e não humilhar
esse selvagem mandando-o aos infernos! O sr. Brown não quer ter vindo por nada.
— E as plumas? Não tem plumas?
Ele faz com grandes gestos o índio enfeitado, com ornamentos na cabeça, munido de longas asas.
— Você tirando foto minha com plumas, quinze pesos.
A oferta não é discutida. Leve sorriso de aprovação da sra. Brown. Seu marido escolhe o martírio.
— OK, quinze pesos.
Uma nota de cinco, uma nota de dez, submetidas ao mesmo paciente exame. O homem volta a
entrar em sua casa. E é um semi-deus que surge do antro obscuro.
Sobre a cabeleira, agora presa num rabo de cavalo, está fixado um grande cocar, um sol rosado e
preto. Nos furos obscenos das orelhas, dois discos de madeira. Nos tornozelos, feixes de plumas
brancas; o vasto torso é dividido por dois colares de pequenas conchas passados a tiracolo. A mão
está apoiada num tacape pesado.
— Apesar de tudo, valeu a pena. Que beleza!
A sra. Brown não esconde sua admiração. Clique, clique... O semideus só intervém depois da
décima foto, quando o sr. Brown, modesto e paternal, posa ao lado do pele-vermelha.
E tudo recomeçou quando ele quis comprar pequenas estatuetas de argila cozida, enfeites, flechas,
um arco. Uma vez indicado o preço, o homem não dizia mais palavra. Era preciso passar por isso.
As armas propostas são ricamente trabalhadas, ornadas com penas brancas de pássaros. Muito
diferentes do grande arco, do punhado de longas flechas que repousam contra a cabana, sóbrios,
desprovidos de ornamento, sérios.
— Quanto?
— Cem pesos.
— E aquelas?
Pela primeira vez, o índio exprime um sentimento, uma leve surpresa perturba provisoriamente o
semblante gelado.
— Aquilo? Meu arco. Para animais.
Com o beiço, ele mostra a massa da floresta e faz o gesto de disparar uma flecha.
— Eu não vender.
Essa parada vai ser minha. Veremos quem é o mais forte, se ele é capaz de agüentar.
— Mas eu quero aquele, com as flechas.
— Afinal, que está querendo? As outras são muito mais bonitas.
O homem olha alternadamente para suas próprias armas e para as que ele fabricou, com cuidado,
para eventuais compradores. Pega uma flecha e aprecia sua retidão, passa o dedo na ponta de osso.
— Mil pesos.
O sr. Brown não contava de modo algum com essa.
— Quê? Está louco? É muito caro!
— Aquele, meu arco. Eu matar animais.
— Você está sendo ridículo. Pague. Azar o seu!
O marido estende uma nota de mil. Mas o outro recusa, quer dez notas de cem.
Foi preciso pedir ao sr. Poage para trocar a nota graúda. O sr. Brown, arrasado, afasta-se com o arco
e as flechas de caça na mão. Tira as fotos que lhe restam às escondidas, como um ladrão,
aproveitando que as pessoas não olham pra ele.
— Que bando de ladrões, essa gente! Completamente corrompidos pelo dinheiro!
O sr. MacCurdy resume aproximadamente o sentimento geral dos turistas que retornam ao barco.
— Duzentos pesos! Imaginem, para filmar três minutos essas garotas enquanto dançavam nuas!
Tenho certeza que elas se deitam com qualquer um por vinte!
— Eu, pelo contrário! É a primeira vez que vejo meu marido deixar-se tapear. E logo por quem!
— ... E não há como negociar. São realmente uns brutos. Uns fingidos. É fácil viver assim.
— Os Prescott? Bem que eles tinham razão!

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