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Capítulo Um – Cherrybomb
Os cabelos longos e os shorts curtos com meia-calça arrastão e All Stars
detonados passavam uma clara mensagem: encrenqueira. Caminhando pelos
corredores com seus fones de ouvidos e pose de rainha, Karina não era nada
do que as pessoas costumavam rotular. Encrenqueira, prostituta, vaca, mal-
amada. Karina era somente o reflexo de anos difíceis escondidos sobre quilos
de máscara para cílios preta.
Sua história, na verdade, era muito simples, muito clichê. A garota que
perdeu os pais aos 5 anos, foi adotada aos 8 e era incompreendida aos 17.
Uma história que você consegue encontrar em qualquer lugar. Mas, naquela
pequena, gelada e conservadora cidade, ela era uma rebelde. Uma rebelde
sem drogas, com boatos sobre sexo e muito rock’n’roll.
E quando estava em seu quarto pulando ao som do Led Zeppelin, ela só
conseguia rir. Como eram idiotas! Se a maior ambição de sua vida não fosse
ser escritora, ela provavelmente seria uma excelente atriz. Por que Ká era
uma sonhadora. Uma ótima aluna, uma virgem de carteirinha, quase uma
santa. Não fosse o fato de não acreditar em Deus.
Quando ela deixou de crer, de rezar todas as noites, ela não sabia ao certo.
Talvez quando se deu conta de que estava sozinha no mundo, de que não
tinha nada para se apoiar. Ela precisava de coisas concretas, estáveis, e algo
que ela não podia tocar, que devia ‘sentir com o coração’ como as freiras do
Lar Redenção geralmente diziam, não era de grande ajuda. A garota sempre
pensara que tentar achar o sentido de tudo, ou a culpa de tudo, em algo que
nem sequer era provado que existia, só a tornava mais fraca e infantil. E tudo
que ela precisava naquela nova vida era força e uma cabeça no lugar.
Karina estudava em uma grande escola pública que ficava alguns quarteirões
longe da casa de seus pais adotivos, a qual ela nunca chamava de ‘minha
casa’. Era sempre ‘casa deles’. Dentre todas aquelas pessoas que passavam
diariamente pelas salas de aula, em somente duas ela confiava: Louis
e Carine, um casal de gêmeos que freqüentaram o mesmo orfanato que ela e
agora viviam com os Kallister, vizinhos dos guardiões da garota. Somente os
dois conheciam a verdadeira personalidade de Karina por trás da
personagem que assombrava os clubes de mães conservadores daquele
lugar.
E num dia qualquer de outono, ela os procurava pelos corredores, enquanto
intimidava primeiranistas com seu olhar cruel de dona do mundo. Os fones
de ouvido berravam músicas de Joan Jett, os passos rápidos indicavam que
ela só queria sair dali, o mais rápido possível. Louis, com seus
cachos castanhos escondidos por um gorro negro, estava jogado em frente a
um pobre salgueiro pichado nos jardins da escola, lendo um mangá qualquer.
O garoto tinha grandes olhos azuis e hipnotizantes e o sorriso mais bonito
que Karina já havia visto, o que certamente compensava a magreza
escondida por roupas de segunda mão. Sua irmã estava sentada ao seu lado,
olhando para o céu a procura de OVNIs, sua obsessão, balançando os longos
cabelos recém pintados de vermelho, contrastando com a mistura de xadrez
e flores que havia em suas roupas naquele dia. Isolados do resto do mundo
por andarem com Karina, ou por serem malucos o suficiente para que só ela
os agüentasse.
- Hey, folks – a garota sorriu – o que estão aprontando?
- A 21ª Guerra Mundial explodiu em Cristamolic no número 7 de As Ruínas
Perdidas de Fitting. O cara que escreve isso aqui é genial!
- Acho que uma nave Plasmatoniana está tentando se comunicar comigo,
mas é muito tímida para sair de trás daquela nuvem. Eu li isso no Novo Guia
do Dr.Floyd. E você?
- Tentando fugir de Esma e Rick – Karina bufou – Eles estão aqui para uma
‘reunião de pais’.
- Você devia pegar mais leve com os caras, Ká. Afinal, eles te sustentam.
– Louis cantarolou.
- Nunca pedi que o fizessem, você melhor do que ninguém sabe disso. Eu só
queria que eles parassem de encher meu saco. Tentar me mudar. Tentar ser
meus pais.
- Esse é o propósito da adoção.
- Preferia não ter sido adotada. Hey,McGivens! – ela gritou para um
primeiranista de grandes óculos de aro de tartaruga, que se aproximou
vagarosamente.
- S-sim?
- A patricinha loira, de vestido cor-de-rosa, quem é?
- Alicia Loren – ele sussurrou.
- Ótimo. Dispensado, continue com o bom trabalho – ela piscou,sorrindo.
- Outra vitima, pistoleira? – Louis riu.
- Ela disse que dormi com o irmão dela. Quero saber quem é o irmão. Saber
se vale a pena armar uma briga ou intensificar o boato.
-Você é terrível, Ká – Carine sorriu – vamos pra sala do coral? Tenho certeza
que existem Voluptilianos por lá. Eles são classificados numa escala 8.3 de
amabilidade. E as aulas do Ernandez são divertidas, também.
- Só espero que ele não me venha com músicas de igreja, de novo. Perdemos
uma semana com todo aquele papo de espiritualidade e amor no coração.
- É bem provável que esse tema se estenda por longas semanas, minha cara.
Perto da fonte, você já viu quem é nosso novo colega?
Sem discrição alguma, Karina levantou o pescoço para olhar. Sentado sob a
mureta, estava um garoto de cabelos castanhos e olhos verdes,que lia
alguma coisa serenamente : Harry Styles, filho do pastor da cidade.
XX
*Ripped her heart out right before her eyes, é um trecho de A little piece of
heaven,do Avenged Sevenfold : Arrancou seu coração bem em frente de seus
olhos,no sentido da música.
Era uma casa engraçada, com musgo cobrindo toda a fachada. As janelas
eram grandes e desproporcionais, assim como a enorme porta de madeira
com maçanetas de ferro. Havia um grande ipê de flores douradas que fazia
sombra ao pequeno jardim cheio de flores e estatuas de animais em
miniaturas. Um caminho de tijolos amarelos levava a entrada. Karina gostava
daquela casa, era simples, mas aconchegante como um abraço.
Os Kallister não eram nem de longe tão ricos quanto os Dawson. Caleb, o pai,
era professor de matemática na mesma escola que Karina e os gêmeos
freqüentavam e Linda, a mãe, braço direito de um importante empresário da
região. O que na teoria, era um cargo um pouco mais alto do que secretária.
Mas apesar disso tudo, os gêmeos sempre foram invejados pela garota: eles
não substituíam ninguém. Eram amados por serem eles mesmos. E como
eram amados.
Louis abriu a porta antes mesmo que ela batesse. Usava jeans e um moletom
cinza com capuz, e sorrindo maroto, confessou:
-Vi você chegando pela janela. Meu pai vai nos levar pra escola daqui a
pouco, se você quiser um carona.
- Não seria nada mau.
A sala era pintada com um tom caramelo- escuro, mas haviam sofás brancos
como a neve e um tapete vermelho felpudo embaixo de uma pequena mesa
de centro de madeira. Havia fotos da família por todos os lados, e um
pequeno lustre dourado no teto, uma herança de família, segundo Carine.
Uma grande estante repleta de livros, exceto pelo espaço que uma TV
simples ocupava, completava o lugar.
Karina poderia passar horas ali, ouvindo as histórias de Caleb e tomando o
chocolate quente de Linda. Quando criança chorava em seu quarto,
desejando ter sido adotada por eles também. Agora conformara-se com os
Dawson. Não eram tão ruins, afinal.
Largou a mochila em qualquer lugar do chão, acomodando-se no sofá maior
para que Louis pudesse se deitar em seu colo. Os olhos verdes do garoto a
observavam distraidamente enquanto ela passava as mãos por seus
cachos castanhos. Às vezes ele ainda parecia o menininho que ofereceu um
urso de pelúcia a ela em seu primeiro dia no orfanato. Ela chorava tanto por
ter que ir parar naquele lugar. Por mais terrível que fosse o relacionamento
com os pais biológicos, viciados em cocaína e álcool que batiam na garota
quando estavam chapados demais, pelo menos antes ela tinha um lar.
Quando chegou ao orfanato, viu seu mundo desabar mais ainda. E ele fora
gentil com ela. Um menininho de cinco anos lhe dera mais carinho do que os
pais lhe deram a vida toda. Karina sempre o amou mais, apesar do carinho
gigante por Carine. Louis era seu porto seguro, seu irmão, seu ursinho de
pelúcia.
- Então, pequena – ele começou enquanto fechava os olhos para aproveitar o
carinho – como foi com o Styles ontem?
- Não durma – ela sussurrou – você vai querer ouvir essa história.
E então contou-lhe. Sobre a outra face de Harry, sobre o bar, sobre as
cantadas disfarçadas, sobre Damian e o pesadelo. Desabafou, expôs todos
seus pensamentos conflituosos, suas dúvidas dolorosas. Sentia-se leve como
uma pluma. Louis somente ouvia, os olhos fixos em algum lugar na estante,
os lábios contraídos. Ao fim do longo discurso de Karina, ele sentou-se, mãos
juntas,cabeça baixa. Virou-se lentamente para a garota, olhando-a nos olhos,
afastando uma mecha de seu cabelo castanho para longe.
- Ká, eu não quero que você encontre esse cara de novo. Eu troco com você,
faço o aconselhamento. Mas eu não quero mais vê-la com ele.
- Por quê?
- Por que – ele suspirou – Eu me preocupo com você. Você não acha que já
machucou seu coração muitas vezes para destroçá-lo mais uma vez?
- Isso não vai acontecer. Não vou me apaixonar com ele. Também não
pretendo dormir com ele. Eu só quero entende-lo. Saber por que ele me
escolheu.
- Você nunca se olhou no espelho, Ká? Ele te escolheu por que você é
excepcionalmente bonita. Ele se revelou pra você por que quer te levar pra
cama.
- Não é só isso. Tem mais nisso tudo, Louis, eu tenho certeza que tem. Eu só
quero saber o que é.
- É a curiosidade que ainda vai destruir o ser humano. Quanto mais você cava
um buraco, mais presa nele fica.
-Isso não vai acontecer. Eu sei me cuidar.
Ele poderia ter dado uma boa resposta, se nesse momento Caleb e Carine
não tivessem chegado, sorrisos no rosto, braços dados. Caleb se passaria
tranquilamente por pai dos dois se ela não soubesse que eram adotados. Ele
tinha o mesmo tom de cabelos de Louis, e o mesmo ar sonhador de Carine,
por trás dos grandes óculos de aro negro. Era o típico professor de ensino
médio, com seu suéter caramelo e calças caqui, um sorriso que mostrava
todos os dentes e uma expressão paternal. Um abraço apertado concedido
em Karina quando a avistou reforçavam a sensação de que ela pertencia a
aquele lugar. Pertencia a aquelas pessoas.
Alguns minutos a mais e estavam rindo a bordo do pequeno Gol da
família. Louis a frente junto com o pai, procurando estações de rádio, Carine
e Karina atrás, a primeira trançando o cabelo muito liso de Karina como uma
mãe atenciosa. Ali era um lugar onde ela podia rir e ser ela mesmo mais do
que qualquer outro no mundo. Pelo menos por alguns preciosos minutos.
Karina não havia visto Harry pela manhã inteira. Onde diabos aquele garoto
se enfiava durante o intervalo ? Provavelmente estava trancado no banheiro,
comendo alguma vadia, foi seu primeiro pensamento. Até que se lembrou do
papo de manter as aparências. Ah, ele não era o bad boy fodão durante o
dia, que pena! Mas ela tinha certeza que o encontraria naquele último
período. Afinal, era mais uma aula do coral. Mais quarenta e cinco minutos
sobre rimas e do,ré,mi,fá. Que agora afinal, não seria tão chata. Tripudiar é
amor, provocar é sexo. Essas eram suas palavras de ordem.
Carine e Louis já estavam em seus lugares de sempre, discutindo sobre a
divisão de ‘Valerie’. E na fileira da frente, lá estava ele : paletó preto, camisa
azul marinho, calça social e caderno em mãos. Harry Styles versão padre. Ela
sorriu quando ele nem ao menos levantou a cabeça para olhá-la : ah,aquilo
seria divertido. Ela trocou o lugar de sempre no canto mais afastado da sala
pela cadeira ao lado de Louis, e exatamente atrás deHarry. Cutucou com a
ponta do All Star, e sorriu, fingindo inocência quando ele olhou para trás:
-Me desculpe, Harry. Foi sem querer. Espero que Deus me perdoe por isso.
- Deus sempre perdoa quem se arrepende verdadeiramente – ele respondeu,
a boca tremendo, os olhos desconfiados.
- Bom, então com certeza eu não vou pro Inferno – ela sussurrou,
ironicamente.
Harry deu de ombros, voltando a seu caderno. Louis observava a cena,
braços cruzados, lábios imóveis numa linha fina.
-Ká,Ká, o que você está fazendo?
- Nada! Não está um dia lindo? – a garota sorriu, piscando.
Ele revirou os olhos, voltando a discutir com a irmã. Karina fingia que
escutava um breve discurso de Ernandez, enquanto estava com a mente
longe, bolando um jeito de realmente provocá-lo. Por que se tudo aquilo era
um jogo, estava na vez dela andar algumas casas. A idéia veio como um fogo
de artifício quando seus olhos pousaram em Damian, a pose de emo
novamente, entrando na sala, atrasado.
- Sr.Ernandez, será que eu poderia sugerir um tema para a semana que vem?
– ela ergueu a mão, piscando os longos cílios varias vezes.
- Ahn, é claro Karina! – o mestre respondeu, visivelmente chocado.
- E se cada um escolhesse uma música que retratasse sua verdadeira
personalidade? Muitos de nós se escondem atrás de mascaras e
estereótipos, não é? Nos poderíamos mostrar quem somos de verdade, na
frente de todo mundo. Mostrar que temos orgulho disso! Harry poderia
cantar Like a Prayer*! Aposto que seria o sonho da vida dele realizado.
Styles não se moveu um centímetro de sua cadeira, apesar de Karina
conseguir notar a tensão em seus ombros. Ernandez sorria constrangido para
a garota, e Louis reprimia um risinho baixo. Para completar, ela novamente
cutucou Harry com a ponta do All Star. Xeque mate!
- Acho que seria incrível, Karina. Realmente, uma boa sugestão. Faremos
isso.
Mas o assunto não se estendeu. Ela recolocou seus fones de ouvido e passou
o resto do período observando Styles escrever furiosamente no caderninho.
Ela tinha pena do pobre objeto. Com aquela intensidade, ele ia acabar
rasgando-o em dois. Sem duplos sentidos, ela pediu a sua mente suja.
Quando o sinal tocou novamente, ela mandou um beijo para os gêmeos e
voou da sala, sabendo que ele a seguiria. Ele com certeza a seguiria.
E ele o fez. Ela já estava fora dos limites da escola, caminhando por uma
calçada mal-tratada, quando ele pôs-se a caminhar ao seu lado. Ombro com
ombro. Foram precisos alguns metros pra ela tomar a coragem necessária
para olhar para ele, e mais alguns para que ele abrisse a boca.
- O que exatamente foi aquilo, Ká?
- Ah, um pouquinho de diversão matutina, não foi engraçado?
- Não aos meus olhos. O que você planejava?
- Só você pode ser grosso e mal-educado comigo? Isso não é justo.
- Eu nunca disse que nossa amizade seria justa, Karina. E você adora que eu
seja grosso com você. Te deixa arrepiada – ele riu, malicioso.
- Não, eu acho nojento, se você quiser saber. E por que todo esse
ressentimento? Eu te pus em risco? Eu te expus?
- Você sabe que sim, Karina. Mostrar a verdadeira personalidade. Lindo.
Tocante. Uma bala disparada com o intuito de me atingir. Amigos não fazem
isso com amigos.
- Eu não disse que era sua amiga.
- É uma questão de tempo. E sabe o que vem depois de amigos? – ele os
parou em frente a uma casa que parecia saída diretamente de um filme de
terror, e sussurrou – Amigos com benefícios.
- Aham. Nos seus sonhos pervertidos, talvez.
- Com certeza nos seus também. – ele sorriu, uma carga imensa de segundas
intenções em seus olhos – eu te perdôo pela ofensa no coral hoje, Ká, se
você chegar cedo. Vou abrir uma garrafa de vodka em sua homenagem.
E tão repentino como chegou, ele se foi, a deixando plantada naquele
cenário nada agradável.
Era um tanto cômico o modo como ela se olhava no espelho. Como passava
mais rímel nos longos cílios e o batom vermelho que era sua marca
registrada nos lábios cheios. O decote era considerável, o comprimento não
muito longo. Esma provavelmente se surpreenderia ao vê-la vestida daquele
jeito. Um vestido negro com bolinhas vermelhas que nunca havia usado.
Meia-calça escura e o insubstituível All Star preto o acompanhavam.Karina
sabia por que estava vestida daquele jeito : para provocá-lo, impressioná-lo.
Era tudo por causa daquele idiota.
Mas ela não podia esconder o medo. As mãos que tentavam parar de tremer.
A cada vez que lembrava de seu pesadelo, suas pernas balançavam, seu
estômago revirava. Aquele certamente era um jogo perigoso. Mas ela havia
se proposto a jogar. Só deveria tomar cuidado para não apostar o próprio
coração. Somente se ele desse o mesmo em troca. Era estranha aquela
situação, tudo acontecera tão rápido. Rápido demais para ser considerado
seguro. Ela descia as escadas de madeira passo a passo, tentando evitar os
gemidos desgostosos daquela parte tão antiga da casa. Mas era o mesmo
que tentar fazer um bebê não chorar com uma canção de ninar das freiras do
Lar Redenção : impossível ainda era uma palavra muito otimista. E essa era
uma situação que ela já havia visto milhares de vezes. As irmãs conseguiam
ser mais assustadoras do que o bicho-papão.
Rick estava sentado na grande poltrona vermelha que ficava logo ao lado do
fim da escada, os óculos finos presos na ponta do nariz anguloso, os cabelos
negros estrategicamente penteados, a gravata frouxa em cima do colete
cinza escuro. Analisava as palavras-cruzadas do jornal matinal com um
interesse excessivo, como se ali pudesse achar a cura do câncer ou algo do
tipo. Mas sem muito sucesso, metade dos quadrados perfeitamente
alinhados continuava em branco. Rick era brilhante como advogado, mas um
fracasso em palavras-cruzadas. Ele sempre acabava se estressando com a
dica e passando para a seguinte.
- Ali, a palavra é ‘trouxa’ – Karina indicou um conjunto de seis quadrados no
canto superior da página já amassada – Uma pessoa não dotada de magia é
‘trouxa’. HP é Harry Potter.
- Eu achei que eles programassem esse maldito jogo para a terceira idade.
Vou ligar pro jornal e pedir pra que eles não sejam tão joviais nas questões.
- Como se você fosse muito velho – ela o beliscou, sentando-se no apoio de
braço da poltrona.
- Vou ter que arrumar suspensórios e uma bengala daqui a pouco, meu bem
– ele riu, aquela risada baixa e tímida que só Rick sabia rir. Karina tinha que
admitir que gostava dele; Rick fazia o máximo possível para ser um bom pai,
para compreende-la. Ele não se grudava ao passado. Diferentemente de
Esma
- Hey, você está bonita. Acho que nunca te vi usando um vestido na vida – ele
observou, intrigado.
- Claro que viu. No casamento de Tia Celeste, aquele troço azul que Esma me
obrigou a usar.
- Ah claro, como fui esquecer? Você manchou o vestido com um batom
vermelho que ela adorava – disse, fingindo descontentamento – qual é a
ocasião agora? Algum casamento que eu não fui convidado?
- Ocasião nenhuma. Eu só achei-o no meu armário. É bonitinho. Resolvi usar.
Tenho que sair mesmo.
- Aonde vai?
- Na casa do pastor Styles – ela bufou – pode me dar uma carona?
- Esma comentou que você é a conselheira de Harry. Devo me preocupar?
Tenho que usar a máscara de pai ciúmento?
- Sinceramente, Rick, ele é o filho do pastor – por fora, ela revirava os olhos.
Por dentro, concordava : ‘ Sim, Rick. Você precisa. Você devia me proibir de
ver esse garoto, ou algo do tipo’.
- Algo me dizia mesmo que ele não fazia o seu tipo – ele olhou para a filha,
um carinho absurdo transparecendo nos olhos cor de avelã – Vamos lá
garota. Esse pode ser carta fora do baralho, mas existem outros gaviões pela
rua.
Ele levantou-se, oferecendo o braço direito para Karina, como num filme dos
anos 20 ou um gentleman qualquer do século vinte e um. Revirando os
olhos, ela aceitou, grata por não ter que andar vestida daquele jeito pela
cidade. Em seu intimo sentia uma certa timidez que nunca antes havia se
revelado. Escondendo novamente a criança assustada que era dentro do
bolso, eles caminharam até o Audi da família, tão vermelho quanto as
bochechas da garota ao pensar no que Styles pensaria quando a visse
daquele jeito.
A porta era cinza como o asfalto sob a luz do luar. Era entalhada com
desenhos de lírios e rosas, era pesada e provavelmente cara. Assim como o
tapete vermelho sob a porta e o pequeno lustre que depositava pontos de
luz nas paredes imaculadamente brancas. Karina observava tudo aquilo um
tanto indignada : Harry desviava dinheiro do dizimo para comprar uma
motocicleta, e parece que isso vinha de berço. Acenou uma ultima vez em
despedida para Rick, que agora voltava para a rua principal a deixando ali a
mercê de momentos incertos. Suspirou, antes de tocar a campainha de uma
vez por todas.
Uma loira que parecia ter saído direto de um dos filmes da Disney atendeu a
porta. Ela devia ser uns 3,4 anos mais nova que Karina. Tinha grandes olhos
cinzas como um dia de tempestade, muito diferente dos verdes perigosos
de Harry. Os cabelos acabavam em cachos perfeitos assim como a
maquiagem leve que usava. Os traços do rosto eram um tanto comuns, mas
também sofisticados e elegantes. Vestia um conjunto de moletom cor-de-
rosa e em seu colo se encontrava um enorme e felpudo gato branco com
cara de poucos amigos. A garota analisou Karina de cima a baixo, antes de
sorrir com todos os dentes perfeitamente brancos e alinhados. O dizimo
devia realmente ser bem gordo para que ela tivesse um tratamento dentário
tão bom.
- Você deve ser Karina. Hazza disse que você viria. Eu sou Angelina, a irmã
dele.
- Como Angelina Jolie?
- Na verdade é uma variação do nome da nossa mãe, mas é, em partes como
Angelina Jolie. Todos me acham parecida com ela – ela riu histérica, os olhos
brilhando como duas pedras preciosas.
- Ahn, claro, claro – Karina concordou, desgostosa – E seu irmão?
- Ele pediu para que você subisse. Hazza está no quarto dele.
- Seus pais não vão se importar? Sabe, eu sou uma garota, e eu vou pro
quarto do seu irmão e vocês são evangélicos e ...
- Não se preocupe, eles não estão em casa. Vocês podem fazer quanto
barulho quiserem – ela piscou, acariciando o gato que parecia querer dar o
bote diretamente no pescoço de Karina, ou algo assim. Angelina puxouKarina
pela mão para dentro da grande casa dos Styles. Essa mania era de família,
pelo visto.
A sala de estar era enorme e fria. A decoração em tons de gelo e pérola não
ajudavam em nada a melhorar a sensação térmica. Haviam três lustres de
cristal, um ao lado do outro, acima de três sofás cor de creme e pufes
brancos. Não se via uma TV em lugar algum. Ao invés disso, quadros
impressionistas e uma grande imagem da Santa Ceia recobriam as paredes. O
carpete macio era cinza e no canto direito erguia-se a magnífica escada
prateada. Hey, os religiosos não deviam abdicar do luxo e da riqueza? Porra,
se aquilo era abdicar, o que era ostentar,hein?
- É só subir – ela indicou – é a primeira porta a esquerda.
Karina balançou a cabeça, num agradecimento silencioso. Subiu as escadas
como um pássaro ansioso pela liberdade. Angelina era sinistra. Toda aquela
casa era sinistra. O corredor do andar de cima era cheio de portas cor de
caramelo, num contraste interessante com as paredes cinzas. Parou em
frente à porta que imaginava ser a de Styles, hesitante. Deveria bater, ou
simplesmente entrar? Bom, se o propósito era provocá-lo, a resposta era um
tanto óbvia.
A maçaneta girou facilmente, silenciosa e macia. A primeira visão que teve
ao entrar no quarto bem arrumado de Harry a deixou um tanto extasiada. A
figura sem camisa exibia os ombros largos e costas musculosas. O corpo
semi-encostado nas portas de vidro de uma pequena sacada respirava
tranquilamente enquanto tragava outro cigarro. Ele era realmente viciado
naquela porcaria. E realmente estava distraído demais para notar a garota
que mordia o lábio inferior numa mania nervosa antes de se aproximar
silenciosamente.
- Você vai acabar morrendo de câncer no pulmão, sabia? – ela sussurrou ao
pé do ouvido de Harry, perigosamente perto para sua segurança.
- Pessoas educadas batem na porta antes de entrar – ele respondeu, sem se
virar para ela.
- Eu nunca disse que era educada.
Aquela frase tão típica de Karina arrancou um riso seco dos lábios tão
sensuais do garoto. Virando-se lentamente, ele apoiou a cabeça na soleira da
vidraça, os olhos verdes atingindo os azuis como flechas, para depois fazer
uma breve inspeção no corpo bem modelado de Karina. Ela não poderia
imaginar que tipo de pensamentos sujos se passavam pela cabeça dele
naquele momento.
- Como adivinhou que eu precisava de um tapete novo para o meu quarto? –
ele provocou-a, puxando a barra do vestido preto levemente. Karina não
respondeu, ignorou-o por um momento enquanto passeava pelo quarto
amplo e claro. Como o dela, também era pintado de azul, mas era
extremamente mais limpo e bem organizado. As paredes eram nuas, a cama
estava arrumada com um cobertor vermelho-sangue e havia um criado mudo
marrom-escuro onde um abajur de mesma cor estava depositado. O armário
embutido tinha portas brancas e longas. Uma escrivaninha cheia de papéis
etiquetados em ordem alfabética e um notebook prata completavam a
mobília. O resto sofria de um vazio, assim como a alma dele,talvez. Havia
uma porta caramelo que provavelmente daria no banheiro e luz por toda a
parte. O sol reinava naquele ambiente.
- Você tem realmente uma coleção de Playboys embaixo do colchão?
- Na verdade, elas não estão debaixo do meu colchão. Disse aquilo para
parecer mais...dramático,talvez. Eu tenho um compartimento secreto no
meu armário. – Harry deu de ombros.
- Seus pais nunca acharam?
- Eles nunca procuraram. Não tem por que desconfiarem de mim.
- Como você sai toda noite sem que eles notem? – Karina continuou
indagando, enquanto sentava-se sobre a cama dele sem constrangimento
nenhum. - Meus pais passam mais tempo na paróquia do que aqui. Eles não
tem muito tempo para notar essas coisas.
- E Angelina, sabe?
- Ela é minha pequena cúmplice. Contanto que eu não conte os podres dela,
ela não conta os meus – aproximava-se vagarosamente, sentando junto a ela
na cama – e se você continuar assim, tão sexy, logo, logo teremos alguns
probleminhas por aqui.
- É bom segurar seu amiguinho dentro das calças, Harry.
- Não tenho pressa, Ká. Nós temos bastante tempo livre. Mas você tem que
parar com isso.
- Parar com o que, exatamente?
- Parar de morder esse seu pobre lábio inferior. Isso dá água na boca, sabia?
– Harry passou o indicador pelos lábios cheios dela, a fazendo paralisar de
tensão num momento – parar de inclinar o colo para frente para ressaltar o
quão presos e tristes seus seios parecem. Você devia deixá-los livres. Eu não
me importaria – o dedo descia para a barra do decote, deslizando numa
caricia atrevida,enquanto ela tentava não suspirar longamente – e por
último, devia descruzar as pernas. Suas coxas já são bem visíveis e tentadoras
sem que você puxe o vestido mais para cima – ele finalizou, passando agora a
mão toda por toda a extensão da perna direita da garota.
- Pare. – ela sibilou, entredentes – pare de jogar esse seu charme barato de
banca de revista pra cima de mim. Você sabe por que estou aqui.
- Por que somos amigos desfrutando uma tarde agradável juntos? – ele jogou
as mãos para o alto, tão inocente quanto um político que jura que não
roubou enquanto coloca mais uns dólares na cueca. Incrível.
- Temos trabalho a fazer. Você já escolheu sua música? – disse ela, se
afastando o máximo possível dele.
- Achei que você tinha que me ajudar a fazer isso.
- Já te dei sugestões.
- Nenhuma que me faça morrer de emoção e gritar em voz alta o refrão.
- Deve ser triste viver numa mentira, Harry – ela cutucou, a agressividade
explicita na voz.
- Você deve saber disso melhor do que eu – ele devolveu, o olhar firme, as
palavras afiadas com uma faca.
- Por que?
- Vou provar que sou seu amigo Karina. Vou ser sincero com você – aquilo
soou mais como uma ameaça do que qualquer outra coisa – Em termos de
mascaras,será que sou eu que uso a maior? Sou eu que tenho fama de
encrenqueiro, mas passo as noites lendo livros em casa? Sou eu que sou
chamado de vadio, puto e adjetivos lindos como esse, mas provavelmente
ainda sou virgem? Sou eu que estou substituindo uma perda?
- Como... Você não tinha o direito – a voz dela falhara.
- Você mentiu pra mim, Ká – ele sorriu irônico – Não foi difícil descobrir. Nem
um pouco. Sua mãe gosta de desabafar com meu pai. Seus amigos falam alto
demais. Meus conhecidos problemáticos nem sequer sabiam o seu nome. Eu
sei juntar 1 + 1, Ká. Acho que sou eu que deveria estar chateado.
- Seu filho-da-puta, idiota! Você não tinha o direito de revirar a minha vida –
ela falava alto demais. Demais – Pra que? Era isso, você pretendia me levar
pra cama e me humilhar depois? Se você descobriu que não sou nada do que
você imaginava, por que ainda estamos nisso?
- Por que você me intriga – os olhos dele ardiam para ela. Sua expressão era
séria como ela nunca havia visto – por que você é extremamente gostosa.
Por que te entender passou a ser meu jogo favorito. É divertido.
- Então é bom arrumar outro jogo – ela levantou-se, tomando o rumo da
porta – É bom me deixar em paz. Pare de investigar minha vida. Não abra a
merda da boca pra ninguém.
- Tarde demais, já elegi você – ele se levantou, a seguindo a cada vez que ela
dava um passo para trás – nossa relação continua a ser igual. Mas agora eu
também tenho um segredinho seu. Isso não vai ser mais divertido? – era
possível tocar a ironia em suas palavras.
- Vá pro Inferno.
- Já estou nele – mais uns passos à frente – vá para casa. Desconte sua raiva.
Daqui dois dias nos vemos de novo. Vamos conversar com calma, meu amor.
Você vai sentir minha falta.
Aquilo já era demais. Ela saiu batendo a porta, voando escada a baixo
novamente. Tudo, tudo dera errado. Ela queria matá-lo, cortar seu pescoço
fora. Ela queria arrancar a sensação do toque dele de sua pele. Ela queria
simplesmente odiar Harry Styles, e não se sentir pervertidamente mais
atraída por ele.
Ela simplesmente não podia acreditar que estava sendo obrigada a ouvir
aquilo. Um balde, por favor? O chão não era digno de seu vômito. Era o
ataque das patricinhas zumbis. A sala do coral nunca esteve tão insuportável
como naquele dia. Alicia Loren e suas duas comparsas, todas com cabelos
perfeitamente loiros e ondulados e grandes olhos verdes e perigosos,
sentadas num banquinho, disfarçadas de viúvas negras em seus vestidos
pretos e rendados, com seus lencinhos imaculadamente brancos e lágrimas
falsas cantando Turning Tables*. E Ernandez realmente parecia prestes a
desabar de emoção também. Ok, duas opções para isso: ou uma pessoa
muito sensata havia chutado o professor, ou ele estava louco pra sair do
armário de vez, já que motivos para achar que ele gostava de jogar no outro
time não faltavam. Visto as sobrancelhas descoloridas e os conhecimentos
exagerados sobre as capas da Vogue. Só assim para uma pessoa ter a
capacidade de agüentar aquele circo de horrores.
Karina ia enlouquecer. Algum Joker* do ensino médio estava tentando
roubar a sua sanidade, sem deixar pistas e com muito sucesso. Na verdade,
ele deixara pistas. Uma pista alta, forte e que tinha um perfume viciante.
Sem falar na personalidade terrivelmente absurda. A sanidade
de Harry Styles já havia sido roubada há muito tempo, e parecia que ele não
fazia questão de recuperá-la. Talvez fosse esse afinal, o motivo pelo qual ele
adorava mexer com a imaginação da garota.
Há dois dias ela evitava qualquer contato físico, mental e sobrenatural com o
garoto. Vamos entender sobrenatural por sonhos pornôs e pesadelos com
pássaros negros. Apesar de que, sendo totalmente honesta, ela não
conseguira evitar o primeiro item. E isso era totalmente desprezível, em sua
humilde opinião. Não era o tipo de sonho agradável para ser ter com o cara
que você supostamente deveria detestar.
Não que o falso religioso não estivesse a sua espreita, pronto para atacá-la
sem dó nem piedade a qualquer momento. Ah, ele estava mais que pronto
para isso. Mas Louis estava lidando muito bem com seu papel de guarda-
costas pessoal nos últimos dois dias. Ou papel de ‘camisinha’, como ela
gostava de se referir a ele, para desgosto do garoto. Ele somente balançava a
cabeça e ria brevemente, como se a garota não tivesse salvação. Sua função
básica era não deixar que nada relacionado à Styles vazasse até chegar a ela.
Papel este que Louis aceitou de muito bom grado após uma sessão de
descarrego de ódio de Karina ao telefone. Parece que Harry havia achado seu
primeiro inimigo. Qual mocinho não tinha seu antagonista? Mas nesse caso
ele não era o cara legal. Ele era o vilão safado, filho-da-puta e gostoso o
qual Karina adoraria nocautear. Infelizmente, até nos sentidos sexuais.
Tratou logo de afastar a idéia da cabeça, correndo os olhos pela
apresentação vexaminosa das colegas para distrair-se. Não funcionou.
O que realmente a preocupava era a promessa dos dois dias. Ele havia
pegado leve até o momento. Mas admitir que ela ansiava pela hora que ele
realmente a obrigasse a falar com ele era difícil. Ela sabia que no final, ele
conseguiria de qualquer jeito. Por que a garota chegara a um novo estado
em sua relação fictícia com Harry. Ela chegara ao patamar da obsessão cega e
mortal.
O que explicava por que ela queria explodir aquela sala de aula. Ou matar
Alicia e seus longos cílios que piscavam insistentemente para Harry. Sintoma
número 2: ciúme. Isso não era nada bom. Mas o que a reconfortava era que
o tipo falsa santa não afetaria a libido do garoto. A não ser que ele estivesse
muito desesperado por sexo e suas mãos não estivessem mais dando conta
do recado. No fim, ela sabia que o tipo vaca descontrolada o divertia e o
instigava mais. E bom, ela era a vaca descontrolada ali.
A dor intestinal a qual elas chamavam de canção terminou, arrancando
aplausos educados de Harry e desesperados de Ernandez. Patético. Pelo
menos Karina não parecia à única enjoada ali. Damian estava verde.
Literalmente. O clima não parecia muito legal entre ele e seu irmão caipira
cujo nome Karina não fazia idéia, mas que cheirava a estrume de vaca e
barro úmido, o que reforçava a distância que ela mantinha do clã fazendeiro
da escola.Parece que ela e Styles não eram os únicos com segredinhos ali a
julgar pelos sussurros baixos e rápidos que os dois emitiam.
O alarme tocando era como música para seus pobres ouvidos ainda
machucados pela voz estridente de Alicia. Ultimamente andava pensando
por que resolvera se inscrever no coral em todas as aulas vagas de ultimo
período. Deveria ter entrado no clube de xadrez. Xadrez era menos estresse
e mais nerds por metro quadrado. Devia ser divertido... E broxante. De
braços dados com Louis, escapuliu pelo corredor, temendo olhar para trás e
encontrar os malditos olhinhos verdes piscando ironicamente pra ela. Ele
adorava fazer isso. Chegar a sua casa a salvo não fora uma coisa difícil. Fora
relativamente simples, na verdade. Louis a deixara sã e salva em frente a
porta de madeira cor de chocolate, depositando um beijo rápido em sua
testa antes de dizer um adeus. Ela sorrira e realmente se sentira segura por
um instante. Até lembrar-se que nenhum lugar era seguro. Ela
provavelmente se esconderia embaixo da cama pelo resto do dia. Ela era
uma Cinderella da pá virada, que só se sentiria livre a meia-noite. Na última
badalada do sino que ficava na igreja dele. Passou correndo por um Rick
distraído nas escadas carregando montes de papéis e livros jurídicos, que
gritou um ‘oi’ desajeitado, antes que a garota batesse a porta de seu quarto.
Com os fones de ouvido no máximo, recusou educadamente o almoço que
Esma veio lhe oferecer: um ‘eu não estou pra NINGUÉM. Deixem-me mofar
em paz‘. Realmente, uma lady.
Uma hora.Uma e meia. Duas horas da tarde. Será que ele realmente
resolvera deixá-la em paz? O maldito havia desistido dela? Seu cérebro
estava entrando em pânico, um conflito interno a preenchia de uma maneira
assustadora: querê-lo ou mandá-lo a merda? O que era certo e errado
naquela história toda? Karina tamborilava os dedos na cabeceira da cama
nervosamente. Sua mente sempre tão decidida e relaxada, agora trabalhava
a mil por hora, num turbilhão de novas inquietações por minuto. Tantas
dúvidas que a rondavam naquele instante, como se fosse uma criança que
acabara de descobrir o mundo e queria saber o ‘porque’ e o ‘como’ de todos
os fenômenos que ocorriam a sua volta, e queria sanar todas as questões
que lhe rondavam. Matá-lo e acabar com todo aquele sofrimento era uma
opção plausível. Se fosse uma assassina. Bom, todo dia é dia para aprender
uma coisa nova, era o que a falecida tia-avó de Rick costumava dizer.
Duas e meia da tarde. Passos pesados na escada e Esma tagarelando
alegremente, como sempre fazia quando algo a deixava realmente
empolgada. Duas e meia? Rick já estava no trabalho àquela hora. Oh-oh.
Parece que temos visitas. Adivinha quem vem para o jantar? * Era óbvio.
Parece que ao menos uma qualidade verdadeira o filho do pastor possuía:
era um homem de palavra. Uma, duas, três batidas firmes na porta. Será que
se fazer de morta adiantaria? Talvez ele arrombasse a porta, ela pensava. Ia
ser no mínimo divertido ver que explicação o bom moço Styles daria para os
Dawson quando questionado sobre por que havia danificado uma
propriedade privada.
- Eu sei que você está ai – a maldita voz de rock pornô a alertou calmamente,
como se falasse do tempo lá fora ou alguma coisa tão banal quanto essa –
Vamos, antes que eu chame Esma pra abrir a porta.
- Voltamos à pré-escola. Você deveria chamar a sua mãe, não a minha. – ela
bufou, um tanto divertida em sua cama, sabendo que estava protegida pela
grossa porta de madeira.
- Se você fizer questão. Posso chamar a cidade inteira se você não abrir a
porcaria da porta agora, Ká.
O tom que ele usava agora era ameaçador, como se fosse um psicopata
pronto para atacá-la. Mas a garota ainda era teimosa o suficiente para fingir
que não se importava. Ela restaurou o silêncio, voltando ao velho jogo de
provocação. Karina era uma provocadora nata.
- Eu não estou brincando. Abra por bem, ou eu posso forjar uma história
muito boa sobre como tive que arrombar a porta por que você estava
ameaçando se matar. Sou um ótimo ator. – era quase como um sussurro,
como uma confissão intima que disfarçava a impaciência dele.
Ela se arrastou da cama, se postando atrás da porta de maneira lenta.
Conseguia ouvir a respiração tranqüila dele. O cafajeste não estava
brincando. Ele era frio como uma pedra de gelo quando se tratava de
conseguir o que queria. Além do fato de que a garota conhecia o poder de
interpretação de Harry. Afinal, ele convencera a cidade inteira de que era um
bom menino, um religioso respeitável e um filho de ouro. Ah sim, aquele
maldito merecia o Oscar. Destrancou a porta, girando a maçaneta
lentamente.
Realmente não esperava o que acontecera a seguir.
Num minuto ela estava prensada pelo corpo dele sobre a porta já fechada
novamente. Harry a segurava firmemente pelos cabelos com uma das mãos,
os olhos verdes em chamas. Karina sentia seu hálito fresco acariciar-lhe a
pele, enquanto engolia em seco todos os sentimentos que lhe afligiam
naquele momento. Medo, surpresa, humilhação e uma tensão sexual que ela
odiava admitir que adorava. Se perguntassem, ela não saberia dizer qual
corpo era de quem naquela confusão. Confusão esta que ela achava
realmente interessante. Para não dizer extremamente excitante e deliciosa.
A outra mão do garoto apertava sua cintura por baixo da regata preta que
ela usava. Num roçar de narizes feito para parecer inocente, mas que só
conseguia enviar cargas elétricas para os corpos de ambos, ele soprou :
- Não aja mais como uma menina má, Karina. Eu tenho sido tão bom com
você, tão atencioso, tão paciente. Retribua a minha generosidade, por favor.
– havia alguma coisa na voz dele que a fazia querer ceder naquele exato
momento. Como se sua voz prometesse que nada no mundo seria tão bom
como experimentar aqueles lábios que a soltavam lenta e deliciosamente.
Mas o orgulho insano de Karina a obrigava a lutar um pouquinho mais. Só um
pouquinho mais.
- Acho que você precisa de um dicionário – ela conseguiu resmungar, um
tanto embriagada, mas sem conseguir passar o falso nojo que gostaria de
demonstrar naquele momento – Generosidade pelo que eu sabia era outra
coisa.
- Você não consegue calar a boca por um minuto – ele respondeu,
direcionando a boca contra a pele do pescoço macio da garota, como se
soubesse que aquele era um golpe realmente baixo – e aproveitar o
momento?
- Que momento? – a lucidez já a havia abandonado. ’Bingo!’, ela pensou, e
mandou o cérebro contrariado para o inferno, enquanto entrelaçava as
pernas desnudas pelo short em volta da cintura dele. Há momentos na vida
em que se deve simplesmente libertar as vontades presas na parte mais
profunda de nossas almas. Para Karina, era agora ou nunca.
- Eu realmente adoro quando você se faz de desentendida.
Harry puxou seus cabelos com um pouco mais de força, obrigando-a a olhá-lo
nos olhos, apertando-a mais contra a porta dura e fria. Era como se seus
olhos se devorassem mentalmente, refletindo as chamas da alma de cada
um. Seus dedos desenhavam círculos sobre a pele lisa da barriga dela,
despertando pensamentos em Karina que nem ela mesma sabia que era
capaz de pensar. O modo como ela mordia o lábio inferior, como se para
mostrar-lhe que era a coisa mais macia do mundo, o atiçava ainda mais,
mas Harry também era um apreciador de provocações. Num riso baixo,
beijou-lhe o pescoço avidamente, deixando marcas na pele branca deKarina.
Ela resmungou alguma coisa sobre ele ser um idiota, mas fechou os olhos
para aproveitar melhor a situação. Cada novo arrepio em sua espinha era
como um novo fogo de artifício explodindo no céu. Como se o falso recatado
soubesse seus gostos secretos e seus pontos sensíveis mesmo sem nunca tê-
la tocado daquele jeito antes. Ou ele tinha uma intuição muito boa, ou
experiências suficientes com garotas tolas como ela para saber o que as
agradaria. Apesar de acreditar mais na segunda opção, ela a ignorava,
deixando sua mente viajar pelo turbilhão de sensações que ele lhe causava.
Foi à deixa perfeita para que ele finalmente chocasse os lábios nos dela com
uma violência que ainda a deixaria louca.
Foi à vez de Karina agarrar os cabelos do garoto de um jeito selvagem,
enquanto dava passagem para que ele deslizasse a língua gelada dele por sua
boca morna, num conflito de temperaturas que só deixava tudo ainda mais
interessante. O beijo soava mais como uma luta pra ver quem conseguiria
tirar o ar do outro primeiro, quem ficaria com os lábios mais vermelhos,
quem se renderia de vez a tudo aquilo. Era pior do que tudo que ela havia
imaginado na vida: era uma passagem sem volta para um vicio eterno. Era o
próprio pecado ali, levantando sua blusa delicadamente enquanto quase a
matava com os lábios macios. Karina tinha consciência de tudo, e de nada. A
cada vez que ele puxava mais os longos cabelos pretos dela, era como se
quisesse engoli-la. Como se fosse o primeiro passo para fundir seus corpos
num só, prendê-la junto a ele até que o dia do Juízo Final chegasse e eles
fossem punidos por todas os prazeres proibidos que ele planejava para os
dois dali para a frente.
Chegava a ser doloroso o momento em que eles precisavam se separar para
buscar ar. Ela escondera o rosto no pescoço dele, passando com delicadeza
seus dentes sobre o pescoço do garoto, que massageava energicamente a
coxa direita da garota com uma maestria que qualquer um invejaria.
Inspirando o perfume amadeirado no qual ela já havia viciado no colarinho
dele uma última vez, ela voltou a procurar os olhos verdes que ela tanto
apreciava. Olhos verdes que carregavam uma carga de malícia, mas ao
mesmo tempo um certo deslumbramento que seria imperceptível se
naqueles poucos dias ela já não tivesse decorado cada variação daquelas
pupilas. Harry passava os lábios nos dela como se quisesse gravar o gosto
exato que eles tinham, sem pressa nenhuma. A mão que prendia seus
cabelos agora afrouxava o puxão, transformando-o numa carícia quase gentil
e arrebatadora, enquanto a outra mão trilhava o caminho da coxa da garota
até a barra de sua regata preta, levantando-a quase imperceptivelmente,
grudando seus olhares novamente como se a desafiasse a impedi-lo de
continuar. Ela não o faria. Não enquanto podia sugar-lhe o lábio inferior e
depositar um selinho demorado em seus lábios, só para finalizar a carícia
com a língua molhada os desenhando para finalmente mordê-los como fazia
com os próprios numa mania imutável. Aquela altura do campeonato os
dedos dele já tentavam se infiltrar por dentro do sutiã vermelho que ela
usava. Foi o momento ideal para que ela o beijasse novamente.
Era alucinante, quase assustador o modo como um queria o outro.
Desesperadamente, urgentemente. O mundo poderia explodir, eles não
ligavam, se estivessem ali, juntos sem que houvesse amanhã. Num beijo tão
intenso e devastador como o primeiro, ela lutava para desabotoar os
primeiros botões da camisa azul clara que ele usava, para finalmente poder
espalmar as mãos pelo peitoral definido que, se anjos realmente existissem
como ele pregava, só poderia ter sido esculpido por querubins. Aproveitou
para passar as longas unhas pintadas de preto por ali, deixando marcas
vermelhas que seriam um problema se ele não usasse camisas tão fechadas.
Como um castigo para a garota, ele quebrou o beijo por um momento, e,
num sorriso maligno que poderia significar qualquer coisa, abaixou
juntamente a alça da regata e do sutiã que cobriam a parte direita de seu
ombro, para poder depositar beijos terrivelmente sensacionais por toda a
extensão de pele nua de Karina, próximo demais de seu seio ainda coberto.
Um suspiro longo escapou dos lábios da garota, quase como uma súplica.
Súplica esta que ele teria atendido, não fossem três calmas batidas na porta.
*A little less conversation é uma música incrível e viciante do rei do rock, Elvis
Presley, e o retrato desse capítulo: Um pouco menos de conversa
*Turning Tables é uma canção linda da Adele
*Joker é um dos maiores inimigos do Batman,o bom e velho Coringa
*Adivinha quem vem para o jantar? é um filme estadunidense cômico-
dramático de 1967 dirigido por Stanley Kramer e vencedor do Oscar de
melhor roteiro original
- Está tudo bem ai, queridos? – a voz de Esma atravessava a fina porta de
madeira, doce, suave e irritantemente prestativa – Precisam de alguma coisa,
uma água, alguns biscoitos?
Harry precisou beliscar a barriga exposta de Karina para que ela saísse do
estado de choque em que se encontrava. Ela realmente não sabia com o que
estava mais surpresa: com Esma os interrompendo ou com o fato de que sim,
ela e Harry estavam praticamente se devorando ali naquela porta. No quarto
dela. Karina estava se amassando com o filho do pastor no quarto dela. Céus,
aquilo parecia errado, ou pervertido, em todos os sentidos. Uma cena
tragicômica de um filme sem graça alguma.
- Tudo certo, Esma. Estamos, ahn... – ela olhou feio para o garoto, que
recomeçara os carinhos em sua cintura, o sorriso largo e malicioso lhe
estampava os lábios quando ele deu a entender que queria se livrar das
peças de pano que cobriam os seios da garota. Ela o repreendeu num
resmungo baixo – estamos estudando algumas partituras. Não precisamos de
nada.
- Se precisarem de alguma coisa, qualquer coisa, me chamem! –uma última
tentativa de ser a mamãe prestativa que ela nunca era antes que os saltos
altos voltassem a castigar o chão de madeira, levando Esma para longe.
- Tudo bem, tudo bem – ela suspirou alto. Os olhos verdes ainda pareciam
querer engoli-la quando os azuis os encaravam. Os lábios dele voltaram a
roçar lentamente nos vermelhos e inchados dela, numa tentativa baixa de
restaurar o torpor anterior. A mão esquerda voltou a acariciar o pescoço da
garota, descendo lentamente até a barra da alça abaixada de sua regata. Foi
nesse instante que uma pequena lâmpada se acendeu no cérebro da garota,
a fazendo fincar os pés na realidade. A mão direita levantou no ar num ato
reflexo bem planejado, acertando a face de Harry com um tapa certeiro e
dolorido. Ao menos o barulho do encostar da palma da mão da garota na
face perfeita do filho do pastor fez tudo aquilo parecer mais dramático
ainda.
- Mas que vadia...! - Harry exclamou, a largando sem qualquer dó ou piedade
no chão gelado de madeira, massageando a bochecha dolorida enquanto se
afastava. Karina permaneceu ali, decidida a canalizar apenas o ódio e não
o calor, enquanto ele andava pelo quarto, nervoso, tentando talvez se
acalmar. A garota massageava as têmporas lentamente, mas o desejo se
recusava a sair de seu corpo tão facilmente. Queria pular em cima do garoto
novamente, sentir os lábios tão macios e decididos que se encaixavam
perfeitamente nos seus mais uma vez. Mas não iria se repetir. Erros são
feitos para serem cometidos apenas uma vez. Depois você precisa aprender a
lição e tentar não se foder completamente. Mas que disse que ela conseguia
dar essa ordem ao seu maldito cérebro? Ela somente conseguia observar o
objeto de desejo de seu corpo admirando a marca vermelha no espelho do
pequeno banheiro da garota. Uma pontinha de arrependimento surgiu na
boca de seu estômago.
- Você ainda está ai, é? Desista, depois desse tapa você está de castigo. Nós
não vamos transar hoje – Harry saiu do banheiro, abotoando a camisa azul
clara sobre o abdômen musculoso, parecendo mais arrogante do que nunca.
O arrependimento passou instantaneamente. Karina tinha que se lembrar
constantemente que Harry não valia o chão que pisava. Ela não precisava se
importar com ele, pelo simples fato de que ele não se importava com
ninguém. Harry era o centro de seu próprio mundo.
- Nem nunca, se depender de mim – ela respondeu, arisca, se levantando
para arrumar a regata preta bagunçada em seu corpo minutos atrás por
certas mãos que deixaram rastros de fogo em seu corpo. Se iria bater de
frente com o Senhor Oi-eu-sou-irresistível, queria pelo menos estar digna
para o campo de batalha.
- Não era o que parecia há cinco minutos atrás. – Harry se encostara na
imensa janela do quarto, puxando um cigarro do bolso e fingindo que a
garota era uma criança de cinco anos de idade. Como se ele tivesse uma
mente muito mais adulta.
- Aquilo foi um deslize. Um maldito deslize que nunca mais vai acontecer
– Karina rosnou, o sangue fervendo nas veias, um ódio misturado com resto
de tesão que ainda permanecia impregnado em todo o seu ser. Harry riu
seco, aquela risada irônica tão dele quanto o olhar provocante e o corpo
sedutor. Não foram necessários mais do que três passos largos para que ele a
puxasse sem cerimônias, e a encurralasse contra o vidro frio da janela. Os
olhos verdes nunca pareceram tão perigosos, a mão direita voltara a brincar
com o cabelo de Karina. Ele soltou a fumaça lentamente, direto contra os
lábios entreabertos da garota, um gesto silencioso, uma mensagem sublime.
Ele conseguia inebriá-la como a nicotina fazia naquele momento. E ela
somente engolia em seco, o medo tomando conta de cada célula de seu
corpo. Demonstrar isso seria bobagem, mas era meio que impossível não o
fazer com o garoto tão perto assim.
- Acho que você ainda não entendeu, Amy. – ele sussurrou, intimidador,
dando uma última tragada no cigarro antes de jogá-lo pela janela – Eu não
dou a mínima pro que você acha, pro que você quer, ou pro que você sente.
Eu sou egocêntrico demais pra isso. - uma risada baixa e maníaca escapava
dos seus lábios enquanto ele passava o dedo indicador pelo rosto da garota-
Nós vamos transar quando eu quiser. Não me importa se você está pronta
pra perder sua preciosa virgindade ou não. Não me importa se for no seu
quarto, no meu ou no pátio da escola. Quando eu quiser você de verdade, eu
vou ter. E você vai adorar, por que no fim, você é só uma masoquista filha-
da-puta, Amy. E eu adoro isso em você.
Puxando seus lábios para um último beijo rápido e possessivo, que,apesar do
gosto do cigarro misturado ao agora já conhecido sabor de chiclete de
hortelã, só conseguia fazer aumentar a vontade de Karina de ter Harry junto
a si novamente, ele sorriu uma última vez ao quebrar o contanto dos corpos,
indo em direção a porta do quarto.
- Por que não agora? Por que não aqui? – ela o provocou, afinal, querendo
bater a cabeça na parede a cada vez que se dava conta do quão facilmente
ela se rendia aos encantos do filho do pastor – Você não é homem o
suficiente para isso? Aposto que esse seu discurso é feito de promessas
vazias que nunca vão se cumprir.
- Por que, Karina, eu não preciso de você agora. Não estou morrendo por
uma transa. Eu tenho dinheiro, posso pagar uma prostituta qualquer da
cidade vizinha. Por que você não está pronta do jeito que eu quero. Por que
você foi uma menina muito, muito má e eu não vou te dar esse prazer de
transar comigo tão facilmente. E por último – ele piscou, marotamente,
antes de passar os olhos pelo quarto pintado de azul – por que este lugar
cheira a talco, fraldas e ursos de pelúcia.
E a porta se fechou no instante exato em que Karina jogou um tênis contra
ela, esperando acertar o maldito sedutor de olhos verdes.
Ernandez parecia mil vezes mais agitado do que o normal enquanto ajustava
os suspensórios vermelhos por cima da camisa azul clara de mangas curtas
que usava. Jogava os cabelos loiros demais para trás enquanto esperava seus
alunos lentos como lesmas se acomodarem nas cadeiras frias e duras da
pequena sala do coral. Karina havia voltado ao seu lugar de origem, o mais
longe possível de Harry. Um leve tremor de irritação ainda agitava seus
músculos a cada vez que se lembrava dos últimos acontecimentos
extasiantes e vergonhosos em seu quarto na casa dos Dawson. Seu cérebro
trabalhava rápido em maneiras de dar o troco, de fazê-lo tremer e se sentir
tão irritado quanto ela. Queria apagar de sua carne as lembranças que Harry
deixara, e se focar somente no fato de que o garoto em questão não
prestava. Nem merecia que ela gastasse tanto tempo pensando nele. Sextas.
Dias de apresentação voluntária. Ela poderia fazer algo. Dar um pequeno
recado ao filho do pastor, algo para que ele se lembrasse de que ela não era
tão fácil assim de se intimidar. Para mostrar-lhe que não era somente um
objeto que ele poderia manipular da maneira que quisesse, deliciar-se com
seu uso e depois encostá-lo na parede para voltar a utilizar quando bem
entendesse. Karina poderia ter um coração congelado pelos anos difíceis,
mas não era nenhuma tola. Também tinha armas a serem utilizadas naquele
jogo. Perdera o primeiro round: Harry rompera suas defesas com a facilidade
de quem rasga uma folha de papel em duas partes iguais. Mas era sua vez de
atacá-lo. Com um dardo que ela já havia arremessado antes, mas não com
força suficiente. Era hora de tentar outra vez.
No momento em que todos os estranhos membros do coral já estavam em
sua presença, o professor Ernandez dedilhou lentamente um piano negro e
antigo que raramente era usado, afim de tentar prender a atenção daqueles
adolescentes de hormônios em polvorosa e cabeças distantes. Abriu um
sorriso sem cor nenhuma, a pele muitos graus mais branca do que o
normal, Karina pode reparar. Suas mãos se esfregavam rapidamente, como
se tentassem se aquecer em pleno calor agradável que marcava num
termômetro em um canto distante da sala. Quando todos os pares de olhos o
fitavam curiosamente, ele apenas tossiu duas vezes, sem querer, antes de
começar a falar.
- Me desculpem. Algumas crianças do primário estavam gripadas, e elas
gostam de abraçar seus professores. Não estou me sentindo muito bem. Mas
não se preocupem, não pretendo passar nada pra vocês – ele riu, sem humor
– Tenho uma consulta daqui a 20 minutos, então, serão liberados mais cedo.
Mas, já que estamos aqui, temos tempo pra ouvirmos uma dupla de meias
canções. Exatamente meia canção para cada um, um trecho e um refrão. E
para difícil tarefa de nos entreter por alguns minutos, eu pensei em Karina
e Harry. Vamos ver se Harry está sendo bem orientado. Quem pretende
começar?
- As damas primeiro – Harry dirigiu os olhos verdes faiscantes para ela, um
meio sorriso misterioso no rosto – Karina e sua voz encantadora, no caso.
- Oh, ele é sempre tão gentil , não? – ela rolou os olhos – Idiota - Sussurrou
para ele, ao esbarrar propositalmente em sua cadeira. Caminhou lentamente
até ficar ao lado de Ernandez, observando os colegas por um momento antes
de ter uma pequena idéia surgindo em sua mente.
- Minha meia canção é Secret, do The Pierces – ela riu baixo de uma piada
interna qualquer – E eu a escolhi por que, bom, todos nós temos nossos
segredinhos, não é? Segredos sujos que contaminam nossos corações tão
puros – Karina piscou inocentemente para Harry, que fingia não perceber.
- Quando quiser – Ernandez apertou levemente seu ombro antes de sentar-
se em um banquinho de madeira ao lado do já esquecido piano. Um pigarro
escapou dos lábios vermelhos da garota antes de iniciar a canção.
- Got a secret, can you keep it? Swear this one you'll save. (Tenho um
segredo, você pode guardá-lo? Jure que esse você vai guardar) – Karina
entoava em sua voz sedutoramente angelical, passando os grandes
olhos azuis por todos os presentes ali, fixando-os junto com seu sorriso de
deboche nos olhos verdes de Harry. Ele permanecia sério, quase entediado,
como se o único motivo para que estivesse ali fosse o respeito pela
companheira de coral. Mas isso não abalou a garota, extremamente teimosa
- Better lock it, in your pocket, take this one to the grave. If I show you then I
know you won't tell what I said (Melhor trancá-lo em seu bolso. Leve-o para o
túmulo. Se eu te mostrar então eu sei que você não vai contar o que eu
disse) – Pela visão periférica ela conseguia ver um sorriso divertido se
formando nos lábios finos de Louis e direcionado com uma certa maldade
para Harry. O garoto conseguira entender melhor do que ninguém o que
estava acontecendo ali. Damian também se mostrava atento a canção
de Karina, mas a expressão era indecifrável. Os olhos pareciam escuros e
mergulhados numa tristeza absurda. A garota resolveu ignorar e voltar a
última parte de seu refrão - Cause two can keep a secret if one of them is
dead. (Porque duas pessoas podem guardar um segredo se uma delas estiver
morta)- A batida da banda de apoio a fez mecher as mãos de um lado para o
outro, acompanhando a melodia, colocando em cada palavra cantada tudo
aquilo que queria cravar na mente de Harry. Eles estavam nas mãos um do
outro, isso não podia ser negado. As pernas tremiam levemente toda vez que
se lembrava que ele também teria o direito de se expressar por meio de
notas e sinfonias, que poderia se vingar dela de todos os modos possiveis.
Mas ela não se importava. Tudo na vida de Karina havia se baseado nos
riscos. Certezas eram raras e perigosas, e ela aprendera a lidar com aquilo
- Why do you smile like you've been told a secret? Now you're telling lies,
because you just want to keep it . But no one keeps a secret. No one keeps a
secret. (Por que você sorri como se tivesse contado um segredo? Agora você
está contando mentiras, porque você só quer guardá-los. Mas ninguém
guarda um segredo. Ninguém guarda um segredo) – Apertando os olhos,
apenas sentindo a música envolvendo-a e a transportando-a para um lugar
qualquer. Era por isso que estava no coral. Por que Karina precisava de
música em sua vida tanto quanto de oxigênio - They burn in our brains,
become a living hell. Because everybody tells. (Eles queimam em nossos
cérebros,transformando-se em um inferno.Porque todos contam ) – Karina
gostava de finais. Do modo como as palavras dançavam em sua boca, sendo
estendidas até onde se era possível. Num suspiro longo seguido de um abrir
repentino de olhos, ela saboreou os últimos acordes - Everybody tells (Todos
contam).
Talvez os aplausos fossem a melhor parte de acabar uma canção. Sentir o
reconhecimento, os sorrisos estampados em rostos sinceros e olhos
brilhantes de entusiasmo. Exceto os olhos verdes que tanto a intimidavam,
que num brilho fosco, pareciam tramar algo. Karina tinha certeza que as
engrenagens do cérebro de Styles trabalhavam arduamente para achar um
modo de pisar em toda a dignidade que restara no corpo esbelto da garota.
Uma vingança doce talvez, uma música sobre uma boa moça disfarçada de
vagabunda. Ela tinha certeza de que deveria existir algo assim em algum
lugar. Mas precisava sentar-se novamente em seu banco junto à parede,
enquanto Harry se dirigia a frente do piano e sussurrava alguma coisa para
um guitarrista que passava ali ajustando as cordas de sua guitarra. Karina
segurava as mãos firmemente em seu colo, somente esperando os versos
iniciais. Com as mãos nos bolsos da calça social azul escuro que usava, Harry
direcionava a todos os presentes um tipo de sorriso recatado e doce que a
garota tinha certeza que era falso. Mas a carga de um simples olhar em sua
direção a fez se arrepiar totalmente.
- And I'd give up forever to touch you,'cause I know that you feel me
somehow (E eu desistiria da eternidade para te tocar,pois eu sei que você me
sente de alguma maneira)- Harry tinha o tipo de voz deliciosa demais para
que qualquer outro som fosse emitido no ambiente. Todos pareciam meio
hipnotizados, seduzidos pelo modo como ele dava vida àquilo que cantava,
como colocava corpo e alma em cada nova frase formada. A voz de rock
pornô que tanto arrepiava a garota quando sussurrada em seu ouvido
conseguia ser mais venenosa e encantadora quando usada daquela maneira.
E Karina arfou sem querer quando se deu conta da canção que saia daqueles
lábios que ela havia provado no dia anterior. E o fato de que ele não a
encarava agora, somente distribuía seu olhar vazio a aqueles que lhe pediam
desesperadamente pelo pouco de luz que ele conseguia emanar, só fazia
com que o estômago da garota se rebelasse e seu coração ficasse totalmente
comprimido na caixa torácica - You're the closest to heaven that I'll ever be
and I don't want to go home right now (Você é o mais próximo do paraíso
que sempre estarei e eu não quero ir para casa agora) – Karina já tinha
perdido completamente o coração ao ouvir aqueles simples versos, por que,
no instante em que eram proferidos, um sorriso de canto surgia nos lábios
daquele que domava as palavras, e os olhos verdes pareciam lhe indagar se
aquilo lhe parecia familiar. Todas as vezes que ela lhe afirmara que ele era o
Inferno, somente para ele acabar com todas as suas armas a chamando de
Paraíso. Tudo parecia tão azul e confuso, como se girasse num momento. Era
a cartada de mestre de Harry. Como se tirasse o coelho mais branco e peludo
da cartola -And all I can taste is this moment, and all I can breathe is your life,
and sooner or later it's over. I just don't want to miss you tonight (E tudo que
posso sentir é este momento,e tudo que posso respirar é a sua vida,e mais
cedo ou mais tarde se acaba.Eu só não quero ficar sem você essa noite) – E
por mais impossível que fosse, ela tentava se concentrar em qualquer coisa
que não fosse a canção mais romântica de todos os tempos sendo
interpretada de um modo a mostrar todas as segundas intenções e os
segredos escondidos de Harry. Por que enquanto Karina era boba e impulsiva
a ponto de insinuar que ele tinha segredos, o garoto era inteligente o
suficiente para colocá-los a vista para que todos pudessem compreende-los,
mas ninguém entendesse que aquela era a verdade nua e crua sobre o filho
do pastor diante dos seus olhos. Ninguém além dela -And I don't want the
world to see me 'cause I don't think that they'd understand. When
everything's made to be broken I just want you to know who I am (E eu não
quero que o mundo me veja porque eu não acho que eles
entenderiam.Quando tudo é feito para não durar eu só quero que você saiba
quem sou eu)- Todo o turbilhão de pensamentos que a puxavam para que ela
se afogasse eternamente em dúvidas forçavam seus canais lacrimais. Mas ela
prometera que nunca choraria por um homem. Ainda mais por um homem
por quem ela não sentia nada. Karina não sentia nada por Harry. Nada que
fosse positivo. Nada além de ódio, nojo e irritação. Era disso que ela tentava
se convencer. De que tudo aquilo não era um modo de o filho do pastor
mostrar que ainda tinha um pouco de humanidade no monstro que ele havia
se tornado. De mostrar que ainda possuía sentimentos que não lhe
beneficiavam. Que ainda se importava com alguém. Aquilo não passava de
outra artimanha para que Karina ficasse confusa e se rendesse de vez a ele.
Era aquilo que ela devia se agarrar. Não aos olhos fortemente fechados e as
mãos que gesticulavam enquanto a boca perfeita finalizava a canção. Ela
deveria continuar focada no jogo - I just want you to know...who I am (Eu só
quero que você saiba...quem eu sou)
. Os aplausos enchiam a pequena sala, fazendo com que alguns se
levantassem com lágrimas nos olhos e corações partidos. O Sr.Ernandez
parecia tremendamente abalado e encantado ao mesmo tempo. Karina se
ordenava a manter o rosto sério, sem transparecer tudo aquilo que sua
mente engenhosa se perguntava. Ela não queria saber. Não queria respostas.
Aquilo era um pesadelo e assim que Harry se cansasse, iria acabar. Mas ela
deveria deixar de lado essas doces ilusões.
- Cidade dos Anjos é realmente um filme lindo...e Iris, nossa, acho que você
não poderia ter feito escolha melhor Harry – o professor apertava
firmemente a mão do garoto, que somente agradecia em silêncio, um sorriso
discreto formado nos lábios – Muito profunda e perfeita para o seu tom de
voz. Parece que Karina está fazendo um trabalho excelente. Semana que vem
teremos a resposta definitiva – ele piscou para a garota, como se a
incentivasse – Por hoje é só, crianças. Até segunda.
O único trabalho excelente que estava sendo feito ali era o de Harry contra
os pobres neurônios da garota. E o placar somente aumentava, dando a
liderança da partida para o falso recatado. Ao menos por enquanto.
*Between the burning light and the dusty shade é um trecho da linda I was
broken, do Marcus Foster: Entre a luz queimante e a sombra poeirenta. Uma
bala pra quem adivinhar que é a luz e quem é a sombra nesse capítulo.
*Secret, música cantada pela protagonista, é a abertura do seriado Pretty
Little Liars e é cantada pelas lindas do The Pierces. Já o filho do pastor
canta Iris, música perfeita do Goo Goo Dolls e trilha sonora do filmeCidade
dos Anjos.
*Jesus of Suburbia é uma canção ÉPICA do Green Day, uma das minhas
favoritas deles, sobre um certo Jesus do subúrbio
*Coríntios 13 : Coríntios é como é conhecida a primeira epístola de S. Paulo à
igreja em Corinto. É nesta carta que é encontrada a famosa passagem sobre
a importância do amor genuíno, no capítulo 13. Por isso, Coríntios é
considerada uma das epístolas mais poéticas do "Apostolo dos Gentios"
como Paulo de Tarso chegou a ser chamado.
* Who gets the last laugh now? é um trecho de Lies, dos meus meninos
do McFLY, e que se encaixa muito bem nesse capítulo: Quem vai rir por
último agora?
*A Hidra era um animal fantástico da mitologia grega que tinha corpo de
dragão e sete cabeças de serpente cujo hálito era venenoso e que podiam se
regenerar.
* Bella Swan é a protagonista insossa da saga Crepúsculo (as opiniões
contidas aqui são minhas, sem ofensas) e True Blood é uma série incrível que
mostra vampiros de verdade.
* Game over, bitch: Fim de jogo, vadia.
Era um corredor escuro, apertado por suas paredes altas e lisas. Cheirava a
mofo e cinzas de cigarro há muito abandonadas pelos degraus de pedra bruta.
Havia marcas d’água em cada parede suja enegrecida pelo tempo que passava
rapidamente naquele lugar. Aranhas passeavam pela única lâmpada
incandescente presa ao teto, gasta e quase sem energia, que pulsava uma luz
fantasmagórica, transformando os rostos que por ali passavam em nada mais
do que caveiras sem traços definidos e sem um pingo de vida escorrendo por
suas veias.
Harry caminhava apressado, o coração aos pulos e o cérebro trabalhando
rapidamente. Cada degrau ultrapassado encarado como um obstáculo a menos
até seu objetivo final. Ele não se importava se John o seguia a passos largos,
atento a cada movimento daquele que considerava seu mestre. O garoto tinha
outros assuntos mais importantes para lidar do que a preocupação exagerada
de um de seus pupilos. A porta revestida de alumínio a sua frente tremeu ao
ser empurrada para trás violentamente, dando passagem para os dois rapazes.
A sala mediana de paredes vermelhas e sofás grandes e marrons era habitada
por um homem alguns anos mais velho, o cabelo ruivo brilhando sob a forte
luz incandescente e contrastando com seu terno creme italiano extremamente
bem cortado . Havia prateleiras de madeira repletas de cadernos negros em
toda a extensão do lugar. Cadernos como aquele que o homem observava
aberto sobre uma grande mesa de mogno repleta de canetas coloridas e
documentos importantes. Um anel de prata incrustado de rubis girava em seu
dedo anelar. Aquele homem parecia um magnata, um poderoso chefão de um
esquema criminoso qualquer, o líder dos políticos corruptos. Inspiraria medo
nos bêbados que se arrastavam pelo Sonic Underground. Mas ali, preso em
sua sala, ele era só um subordinado. E seu chefe havia acabado de chegar.
- Senhor Styles – ele levantou-se rapidamente, uma meia reverência exagerada
diante do garoto enfurecido.
- Cale-se, Sebastian – seus olhos verdes o fuzilaram – Onde está Gustav?
John, feche a droga da porta de uma vez.
- Gustav foi acertar um de nossos negócios pendentes. Se me perdoa senhor,
acho que um de seus olhos está roxo...
- Ah, não diga, Sebastian. É maquiagem. Vou fazer uma audição para o
próximo filme do Arnold Schwarzenegger. Eu sou o saco de pancadas, óbvio.
– Harry se jogou na poltrona, a cabeça entre as pernas, uma das veias de seu
pescoço pulsando.
- Briga de bar? – Sebastian sussurrou para John discretamente, enquanto este
fingia analisar algumas pastas vermelhas de uma prateleira ao leste.
- Patrick.
- Ah – o homem suspirou, observando o chefe fazer anotações furiosamente
em um caderno de capa azul escura – O que ele aprontou dessa vez?
- Arquivo 737. Arquivo Saxon.
- A garota. O que houve? – a voz de Sebastian agora exibia um pingo de
nervosismo, como se soubesse os grandes problemas que estavam por vir.
- Ela é gostosa e Patrick não vale o chão que pisa – John deu de ombros, como
se fosse um tanto óbvio – Eles se agarraram, o chefe ficou puto e tentou
quebrar a cara dele. Simples assim.
Harry mantinha as mãos cruzadas abaixo do queixo, as pontas dos dedos
batendo uma sobre as outras, como se houvessem muitas idéias martelando
sua cabeça. E havia. Seu cérebro epassava cenas e mais cenas, frases ditas,
beijos roubados. Tudo parecia estar dando tão certo, como se seu pequeno
plano estivesse sendo seguido as riscas, como um roteiro de teatro. Até aquele
momento. Porque o filho do pastor esquecera de somar algumas coisas as suas
equações. Uma delas era a teimosia extrema de Karina. Porque ali, em sua
cabeça e em suas divagações, ele tinha certeza de que ela seria mais suscetível
ainda. De que faria qualquer coisa por ele, e que hesitaria antes de dizer uma
palavra rude ou um ato impensado. Mas no final, a órfã só havia o
surpreendido mais e mais a cada grito, tapa ou ato de rebeldia. Algumas coisas
precisavam mudar. Suas investidas deveriam ser repensadas. Mas ainda havia
aquela segunda coisa, aquele aperto no fundo de sua garganta toda vez que
Damian, o maldito Damian, ou mesmo Patrick se aproximavam furtivamente.
Algo como um pequeno sentimento de posse, desenvolvido rápido demais. Ele
precisava se reafirmar. Colocar os dados na mesa novamente, focar nos
objetivos.
Gustav talvez fosse, dos quatro, o que mais se parecia com um marginal
verdadeiro, com seus cabelos raspados e tatuagens por todo o corpo, e o que
menos tinha tendência a isso, no final. Dera duas batidas na porta antes de
entrar, a camiseta vermelha ensopada de suor, os jeans sujos de grama e uma
mala preta na mão esquerda, que foi depositada calmamente em cima da mesa
de madeira. Ele sorriu para seus companheiros ao notar seus olhares curiosos,
deu de ombros e somente sussurrou ‘O 424 resolveu fazer o pagamento no
Stadium Park, mas os cachorros não acharam uma boa ideia’. Mas Harry não
tinha tempo de ouvir aquela história. Precisava achar Karina o mais rápido
possível.
- Gustav – os olhos verdes se voltaram para ele, impossíveis de se ler – O que
eu te disse depois que aceitamos o 737?
- Que era a melhor coisa que tinha acontecido em séculos. Dois coelhos com
um só tiro – Gustav o encarava, um tanto curioso – Que resolvia parte de seus
problemas pessoais, e que somava uma quantia extremamente interessante a
nossa conta bancária, que afinal, é o que me interessa. Por quê?
- Sebastian – ele ignorou a pergunta final – depois que pagou sua divida, por
que continuou aqui?
- Bom, o senhor paga melhor do que qualquer emprego regular na cidade,
não? E, além disso – ele pensou, antes de finalizar – Teoricamente, não
fazemos nada ilegal.
- Teoricamente - Styles avaliou a resposta. Passou seu olhar para John – E
você John, porque aceitou meu convite?
- Porque queria passar mais tempo com você, delicia – John riu, esparramado
em um dos sofás – Grana, é óbvio.
- Três anos atrás, isso aqui começou como uma grande brincadeira. O arquivo
número um era só um favor a um amigo. Mas a noticia se espalhou. Os
arquivos cinco e seis pagaram a compra dessa sala – ele relembrava um tanto
nostálgico – Um empresário aos 15 anos. Eu tinha acabado de conhecer o
mundo de verdade, fora daquela maldita igreja. E eu queria tanto o dinheiro, a
sensação de poder. E agora estamos aqui, uma pequena gangue, e as coisas
estão quase do jeito que eu quero. Falta tão pouco. Isso precisa dar certo. Eu
preciso manter a cabeça no jogo. Eu preciso da Karina.
Num rompante, Harry levantou-se, passando rapidamente pelos três homens
que pareciam compreender só metade de suas palavras. Ele não se importava.
Há muito tempo havia aprendido a viver mergulhado em seus próprios
segredos. Nunca tivera vontade de partilhá-los. Ao chegar a porta, virou-se,
como se houvesse lembrado de algo muito divertido.
- Você disse que os cachorros do Stadium Park não gostam de companhia
noturna, não é, Gustav? Peça pra Flanagan levar Patrick para dar uma
passeada por lá.
Voltando a andar pelo corredor escuro nos subterrâneos da Sonic
Underground, seu coração voltara a disparar, e suas idéias tentaram se
organizar uma última vez. Alguma estratégia, alguma forma de trazê-la mais
perto. Quando se quer muito algo, é normal aceitar dar alguma coisa em troca,
desistir de alguma preciosidade. Talvez naquela noite, para colocar os
acontecimentos nos trilhos corretos novamente, Harry Styles devesse desistir
de algumas de suas máscaras para que outras fossem usadas em cena.
Capítulo 12 – Under Pressure
Trilha sonora do capítulo
- Respire fundo, Karina. Isso não faz bem pro coração, sabe, surtar assim
desse jeito. – Harry agia como se não houvesse ouvido uma única palavra do
discurso raivoso da garota – Você precisa parar de ser tão neurótica e
desconfiada, meu bem. Eu tenho um nome perfeito pra isso: Paranóia. – ele
falou pausadamente, como se a garota fosse alguma débil mental que não
conseguiria entender a linguagem humana – Eu vi você no intervalo. Te achei
gostosa pra cacete. Como qualquer cara normal e interessado, eu fui pesquisar
sua vida um pouquinho. O acaso nos colocou no mesmo barco, querida, e eu
usei as cartas que tinha na manga. Simples assim. Por que isso não entra na
sua cabeça?
- PORQUE VOCÊ NÃO É NORMAL, PORRA. Você é insano. É doentio, é
tão falso quanto os peitos da sua amiguinha Kitty. Eu não consigo
acreditar, Harry. Eu estou aqui, olhando nos seus olhos, e eu simplesmente
não consigo acreditar em você.
- Por que você não quer – ele bufou, realmente parecendo sincero ou algo do
tipo. Seu lábio superior tremia ligeiramente enquanto ele falava – E só você
não vê isso. Você acha que sou cheio de lados obscuros e vidas secretas, e que
me aproximei de você porque quero dominar o mundo um dia de cada vez,
mas você não vê o quão estúpido isso é porque não quer, Karina. Você não
quer acreditar em mim, você escolheu isso. Eu posso não valer o ar que
respiro, mas não me enquadre como um vilão, porque, se eu te trato como
uma criança, é porque você pede e merece isso. E quer saber – seus olhos
pareceram aumentar, brilhantes e desejosos, e aquele sorriso maldito se
formara no canto dos seus lábios – Palavras aqui não adiantam. Nós
simplesmente não nascemos pra isso, então, pro inferno. Eu cansei.
Karina não deveria esperar por um direito de resposta. Ela sabia que não o
teria. Por isso não ficou surpresa quando Harry lhe beijou novamente, quente,
rápido, molhado. A merda com os escrúpulos. Para o inferno com cada motivo
negativo que seu inconsciente parecia lhe sussurrar para que ela desistisse
daquilo. Mesmo que quisesse, não teria como fugir, teria? Mas pra ser sincera,
teria sim. Conseguiria fugir, se fosse aquilo que ela realmente desejasse. Mas
que se fodessem as aparências, afinal. Mentindo para si mesma, ela tentava se
convencer de que tudo aquele desejo insano que nutria por Harry era pura
curiosidade desmedida e mortífera. Experimente da fruta proibida uma vez, e
depois a abandone-a. Nunca mais volte a prová-la. Ninguém nunca
mencionava que o que era proibido era geralmente viciante. Karina era boa o
suficiente em ignorar esse tipo de informação.
Então ela somente aceitou, jogou seus braços em volta do pescoço do garoto,
endireitou a coluna, beijou-o com mais afinco. Suas mãos fizeram o caminho
conhecido até seus cabelos, embrenhando-se entre eles, bagunçando-os,
arrancando fios distraidamente. O sentimento de precisar mais e mais
de Harry a consumia por inteiro, como fogo em gasolina, derradeiro e
impossivel de fingir ser inexistente. Harry sugava seu lábio inferior, e agora
ela dividia sua atenção entre a sensação que isso lhe causava e o desafio que
era arrancar os botões da jaqueta do garoto, um a um, antes que todos
rolassem pelo chão e ela finalmente conseguisse livrá-lo da quantiedade de
couro negro que lhe cobria, que juntamente com a camisa xadrez azul fora
pelos ares. O que foi suficiente para despertar o lado mais selvagem de Styles,
levando-a a tirar a camiseta branca que ainda restava em seu corpo e
apertando as coxas da garota de modo a levantá-la, deixá-la alguns
centímentros mais alta que ele. Harry passava os lábios pelo seu decote, a
cada movimento que Karina fazia, fosse passando as unhas compridas pelo
peitoral forte e nú dele, fosse pelo mexer involuntário de seus quadris em seu
colo. Tudo parecia atiçá-lo, instigá-lo, deixá-lo com mais sede. Sede
de Karina e seu corpo bem delineado, seus gemidos baixos em seu ouvido,
suas mãos numa temperatura entre o quente e o frio deixando rastros de calor
em seu corpo e sede de sua personalidade bipolar e inconstante.
E então todo aquele contato já não era o suficiente para ambos. Mais. Essa era
a palavra que vagava por eles, como se estampada em suas pálpebras e na
ponta de suas línguas. Mais e mais. Harry plantou as mãos nas costas da
garota, segurando-a firme para que pudesse deitá-la sobre a motocicleta, sua
cabeça repousando sobre a proeminência do farol, sua coluna se ajustando ao
desenho curvilíneo, seus olhos brilhando de ansiedade. E os de Harry
grudados nos dela, como se nada pudesse ser mais interessante do que aquilo.
Mas ele logo se deu conta de que podia. Seus dedos desenharam a costura
lateral do vestido azul, quando um sorriso cheio de segundas intenções
iluminou seu rosto. Ele abaixou-se, ficando na altura do rosto de Karina,
sugando seus lábios por um segundo antes de sussurrar:
- Eu espero que você não goste muito desse vestido.
- Por quê? – sua voz saiu mais divertida do que ela esperava. Oh, inferno, ela
realmente estava gostando de tudo aquilo, observando seus próximos
movimentos, deixando que ele a dominasse e a fizesse uma parte de seu
próprio corpo.
Harry riu baixinho antes de posicionar as mãos exatamente ao meio de seu
decote, deslizando alguns dedos para dentro dele, deixando a pele da garota
em chamas. E então, calmo e sereno como a noite, Harry começou a rasgar o
vestido, com uma precisão que assustaria uma desavisada. Ele assistia
maravilhado ao tecido cedendo, a pele alva aparecendo centímetro por
centímetro, até que fosse partido completamente. Karina aproveitou para se
desfazer dos sapatos de salto, deixando-os cair ao lado da motocicleta. Harry
não pode deixar de sorrir ao jogar o resto de pano agora inútil sobre uma das
bombas de gasolina e notar os seios fartos e redondos de Karina, com bicos
rosados que imploravam para serem tocados. Descendo os olhos mais alguns
centímetros era possível visualizar o único pedaço de tecido que ainda cobria
o corpo da garota, uma calcinha de renda preta e pequenos laços nas laterais.
- O vestido não era meu – ela sussurrou, visivelmente corada por estar
recebendo tanta atenção enquanto usando quase nenhuma peça de roupa. Mas
os olhos de Harry pareciam aquecer cada pedaço descoberto de seu corpo.
- Ops – Ele não parecia arrependido. Sua boca se encaixou na curva do
pescoço da garota, e ele sussurrou contra a sua pele – Tenho vontade de fazer
isso desde aquele primeiro dia no seu quarto, aquele seu maldito sutiã de
renda. Parece que valeu a pena esperar.
Ele cobriu os lábios dela com os seus uma última vez, num beijo calmo,
quente e sem pretensão de terminar, enquanto suas mãos escorregavam em
direção aos seus mamilos, friccionando-os, apertando-os, estimulando-os.
Mesmo sob o tecido grosso da calça jeans dele, Karina conseguia sentir um
volume crescente sendo pressionado contra seu quadril, e aquela mistura de
sensações a fazia arfar entre os beijos, os olhos apertadamente fechados,
somente sentido cada novo prazer que Harry parecia ensinar a seu corpo que
agora já deveria ter atingido uma temperatura febril. Suas mãos passeavam
por cada músculo definido nas costas do garoto, e cada pedacinho de si
parecia pedir que seus corpos se fundissem num só. A boca de Harry agora
trilhava beijos por seu pescoço, quase como se tentasse desviar a atenção das
intenções de uma de suas mãos atrevidas descendo pela lateral do corpo da
garota até chegar a um dos laços negros de cetim que prendiam sua calcinha.
Ele o desfez rapidamente, pressionando os dedos naquela região, desenhando
o caminho com o dedo indicador até o outro laço, livrando-se dele tão
magistralmente quanto do primeiro. Não foi difícil puxar o fino tecido,
depositá-lo junto aos restos do vestido e então provocá-la com seus
olhos verdes enlouquecedores. Era a primeira vez que se encontrava nua em
frente a um homem, e Karina tinha noção de cada parte de seu corpo vibrando,
e cada parte do dele em contato com o dela. Fechando os olhos novamente, ela
esperou, e riu baixinho, quase como de nervoso, ao ouvir as palavras dele.
- Ah, Ká...Ah, meu bem...
Seus lábios foram pressionados contra um de seus seios, para depois envolvê-
lo com a boca, deslizando a língua com avidez por todo a extensão de pele
macia e eriçada, mordiscando o bico já endurecido, repetindo os movimentos
de novo, de novo e de novo. A palma de sua mão direita passeava pela
intimidade extremamente umedecida da garota, enviado diferentes tipos de
arrepios para cada músculo paralisado de surpresa daquele corpo tão
feminino, tão delicado. Harry concentrava-se em estimular, massagear seu
clitóris com uma calma que parecia quase dolorosa se comparada a rapidez
com que agora ele sugava seu outro seio. Karina havia perdido cada pingo de
sanidade que lhe restava a cada mexer mínimo de dedos de Harry em si, mas
não se importava exatamente com isso. A única coisa que importava no
momento era acabar com aquela agonia, tê-lo dentro de si, aplacar a
necessidade que ela tinha de Harry. No mesmo instante talvez, Harry
compreendera que já era insuportável permanecer naquele estado.
I'm gonna give you every inch of my love, gonna give you my love
(Eu vou te dar cada centímetro do meu amor, vou te dar o meu amor)
E então ela já não agüentou, a mistura da voz de rock pornô de Harry em seu
ouvido lhe pedindo tão suplicadamente para se deixar levar pelo prazer e os
movimentos dos corpos em atrito a fizeram soltar um gemido mais alto que
todos os outros, a pronúncia exata do nome do garoto. E ondas irrefreáveis de
prazer se espalharam por seu corpo, trazidas por explosões de energia em cada
músculo, anestesiando-a, fazendo-a imaginar algo tão abstrato como nuvens
douradas ou um paraíso que só existia em sua cabeça. Em toda a sua vida ela
nunca havia se sentido assim, tão próxima ou ligada a alguém, tão feliz ou
relaxada. Era a melhor sensação de todo o Universo, e ela não conseguia parar
de se deleitar com ela. Harry a seguiu pouco depois, desabando
cuidadosamente sobre ela, arfando em seu ouvido. Ainda que de seu modo
torto e recheado de mentiras, ele sentia-se bem. Demais. Deveria ser proibido
sentir-se daquele jeito junto aquela garota, como se ela fosse única e nenhuma
outra transa com nenhuma outra garota fosse ser tão boa como aquela. Os dois
estavam afundados até o último fio de cabelo um no outro, as respirações
descompassadas se misturando, os olhos numa conexão inquebrável, os
corpos suados já acostumados com a presença alheia. Cansada como nunca
antes, agora ela lutava para manter os olhos abertos, para manter aquele
momento dos dois, aquele momento verdadeiro e inédito. Mas, ele, talvez tão
exausto quanto ela, reparou, separando-se da garota, deixando seu corpo
quente, causando uma sensação de vazio a ambos. Karina não podia dormir.
Ela precisava se manter inteira. Deixou seus olhos vagarem até ele, livrando-
se do preservativo, vestindo a boxer e os jeans surrados novamente. Isso a
preocupou por um instante, quando lembrou que o vestido que Carine havia
lhe emprestado havia sido completamente destruído pela selvageria de Harry.
Mas ele havia pensado nisso também, voltando para perto dela, vestindo-a
com sua calcinha de renda e a jaqueta de couro, mesmo que ela não houvesse
pedido ou emitido alguma palavra. O cansaço era quase impossível de se
agüentar agora, mais ainda quando ele pegou-a nos braços num impulso, o
pescoço dolorido pelo atrito com o metal da motocicleta. Karina não sabia
para onde estavam indo, mas ao menos no final daquela noite, ela confiava
em Harry. Rindo baixinho uma última vez, ela sussurrou contra a pele de seu
pescoço, antes de dormir profundamente:
- Feliz aniversário, Hazza.
Harry curvou os lábios num sorriso discreto. Com Karina ali, indefesa em seus
braços, toda a noite valera à pena. Seu grande trunfo afinal, fora a capacidade
de esconder mentiras, mascará-las como verdades simples e bobas. Se para a
garota tudo aquilo havia levado a um empate no jogo, para ele, era um passo a
mais para a vitória.
Fraco. Era assim que ele se sentia depois de ter cedido novamente aos desejos
carnais. Beijar Karina daquele modo, e deixar-se ser beijado por ela com
certeza não fazia parte de seus planos. Mudanças deveriam acontecer mais
uma vez. Algum modo de incluir aqueles deslizes sem que eles afetassem o
resultado final. Seria outra madrugada em claro planejando, ajustando,
reorganizando suas ideias anteriores. Mas ele trabalharia nisso. E passaria por
cima, como fizera de todas as outras vezes.
Angelina havia acabado de trancar-se com a garota no interior do posto de
gasolina, uma expressão mal humorada no rosto que ele havia aprendido a
ignorar com o passar dos anos. A sua frente agora só restava John, as sombras
de problemas estampadas embaixo dos olhos. Esse seria outro daqueles dias
em que Harry precisaria se transformar em 20 pessoas diferentes para não
enlouquecer de uma vez por todas. Aproximando-se do pupilo, deixou que ele
descarregasse as últimas bombas em cima dele.
- Patrick fugiu. Flanagan não faz ideia de onde ele pode ter se enfiado – O
garoto começou o relatório matinal, o lábio inferior tremendo como toda a vez
que o nervosismo tomava conta de si. Mas aquilo era pouco. Harry já esperava
que depois de tantas vezes, o dito amigo já teria aprendido a se esconder
melhor. Outra noite, em outra noite ele se vingaria – E, Greenfield ligou de
novo. Ele parecia um pouco ansioso. Dissemos que você estava fora lidando
com o caso, mas ele não acreditou. Quer que agilizemos o processo.
- Greenfield que se foda. Ele aceitou os termos do contrato – A voz de Harry
sairá uma oitava mais alto, a veia em seu pescoço saltando diante de seu
nervosismo – E esta tudo saindo conforme o plano. Hoje é o dia de um grande
passo. Você sabe disso.
- Eu sei... – John não encarava o chefe. Preferia olhar para o alto de um
pinheiro ou para qualquer uma das nuvens do céu, menos para os assustadores
olhos verdes de Harry – Não que isso seja da minha conta, Styles, mas não
seria melhor se a garota soubesse o que vai acontecer? Ela poderia ajudar.
- Não. Conheço Karina. A chave aqui é o elemento surpresa. Se dissermos
qualquer palavra que seja antes, ela vai ficar furiosa e enlouquecida. Eu sei o
que estou fazendo, Mackenzie.
- Claro que sabe. Eu só me pergunto...E se ela ficar enlouquecida depois e
resolver armar um escândalo? Não seria nada bom pra você.
- O choque vai ser suficiente pra acalma-la. Karina é influenciável e pensa
demais. E se deixa levar por sentimentos muito facilmente – Ele parou,
pensativo – Essa é a minha vontade. Karina é sentimento puro, mesmo que
não admita isso. Como eu já disse, eu a conheço.
- Eu bem que gostaria de ter o mesmo tipo de conhecimento que você tem
dela, Styles – John esboçou um sorriso malicioso, apagado de seu rosto
drasticamente a ver a expressão de Harry.
- Lave sua boca. Cuide a sua escolha de palavras, Mackenzie. Não quer acabar
como Patrick, quer? - John negou com a cabeça, colocando as mãos nos
bolsos e evitando encarar o filho do pastor novamente. Mas sua língua coçava,
e ele deixou a pergunta escapar, quase inocentemente:
- Você disse que Karina é influenciável e que se deixa levar facilmente. Mas
você não tem medo, Styles? Não teme se apegar demais a ela, se importar
demais, querê-la demais?
- Não seja ridículo – Harry quase cuspiu as palavras – São só negócios. Agora
vá buscar o carro. Ainda temos muito o que fazer.
*Dark Paradise é uma música da sensacional Lana Del Rey: Paraíso Negro
*Os Ursinhos Carinhosos faziam parte de uma série de 1985. No Brasil, foi
exibida até 2003. O desenho conta a hist,brória de uma família de ursos
carinhosos que ajudam as pessoas a trocarem bons sentimentos.
* Hell or Heaven? é uma música da banda Lynyrd Skynyrd: Inferno ou
Paraíso?
Os corredores eram tão frios quanto sempre foram, lotados como nunca por
adolescentes barulhentos e cheios de vida. Líderes de torcida escandalosas
flertando incansavelmente com atletas de algum esporte qualquer, enquanto
patricinhas riam em seus grupinhos numerosos, liderados por Alicia Loren e
seus olhos de gato. Os cowboys em seu canto, sempre quietos, como se
observassem a passagem do tempo por outra perspectiva quebravam qualquer
tipo de hegemonia que poderia haver por ali. Só mais um dia comum em uma
escola comum.
Para cada vez que sua sapatilha tocava o chão, algum desavisado lhe lançava
um olhar curioso. Karina havia visto muitos daquele tipo desde que pisara
pela primeira vez naquele mesmo corredor de mãos dadas comHarry. Ela
sabia que haviam sussurros, fofocas e conspirações, mas não importava.
Porque parecia seguro ao lado do filho do pastor. Mas era a primeira vez em
catorze dias que ela caminhava sozinha por entre os alunos, o olhar vago e a
mente distante. Mas atenta o suficiente para captar alguns olhares. Se antes
eles eram de medo e admiração, agora o que os dominava era respeito e uma
inveja comedida. A maior parte da ala feminina, ávida por arrumar um
possível futuro marido rico e de boa família. E havia alguém ali que
preenchesse a vaga melhor do que Harry? Provavelmente não. Mas o que
todos queriam saber era ‘ por que diabos ele está namorado logo a ex-
rockeira vinda diretamente do inferno? . A resposta, obviamente, ninguém
nunca saberia. Ninguém além de Karina e seu nariz empinado no ar, tentando
chegar sem maiores problemas a sua aula de matemática.
A sala cheirava a giz e perfume barato, proveniente provavelmente do terno
empoeirado do dinossauro que era o mestre daquela classe, o careca
Sr.Moffatt. As paredes pintadas de verde-musgo e carregadas de cartazes e
pinturas tornavam aquela a sala mais bizarra de todo o prédio. As mesas
duplas eram pequenas demais para que fosse possível ignorar o colega ao
lado, o que no caso de Karina era terrivelmente perturbador, já que seu
parceiro era ninguém mais ninguém menos do que Louis e seus olhos azuis e
acusadores. O mesmo Louis que antes era seu irmão, seu melhor amigo, e
agora se recusava veementemente a lhe dirigir a palavra. Afundado em seu
moletom cinza, fazia anotações desnecessárias em seu velho caderno dos
Vingadores, o sorriso iluminado que antes sempre preenchia seu rosto agora
não passava de uma linha fina quase imperceptível.
- Bom dia, Louis – Karina tentou, a voz o mais doce possível, sentando-se ao
lado do melhor amigo.
- Oh – ele dramatizou, os olhos arregalados e o sorriso sarcástico – Bom dia,
Srta. Jones, há alguma coisa que eu possa fazer por vossa santidade?
- Louis...
- Cale a boca, Karina – ele finalizou, escondendo-se no capuz folgado e
jogando os olhos azuis em qualquer direção, menos na da garota ao seu lado.
- Você sabe que eu não mereço isso – sua voz não passava de um sussurro
agora.
- Claro que não – uma risada anasalada escapou dele, quase que como um
deboche – Você merece ser transformada numa beata sem um pingo de
personalidade, submissa a um namorado que você sabe que não vale o chão
que pisa. Mas quem sou eu pra dizer alguma coisa? Sou só um pobre órfão
que não é digno de nem ao menos dirigir o olhar a toda a sua pureza e
superioridade.
Aquilo doía. A indiferença de uma das pessoas que mais amava em sua vida
era como a mais afiada das facas plantada diretamente em seu coração, sem dó
ou piedade. Karina sentia falta de Louis todos os minutos do dia, de sua risada
enérgica e suas histórias em quadrinhos de super-heróis. Sentia falta de deitar
em seu colo e ouvir sua voz suave cantando a mesma canção de ninar
repetidamente. Sentia falta de seu porto-seguro. Porque tudo que tinha ao seu
lado agora era uma pedra de gelo que a odiava. Era como perder seus pais,
tudo de novo. Órfã ao quadrado.
- Posso ao menos perguntar como está Carine? – A ruiva estava internada
havia uma semana no hospital. Debilitada como nunca antes. Karina se
preocupava profundamente com a garota, porque ninguém queria revelar o
mal que ela sofria. Era um segredo compartilhado por Carine e seus pais
adotivos, o que deixava Louis ainda mais frustrado e irritado. Mas pelo
menos Carine a compreendia. Carine não a odiava, ao contrário de seu gêmeo.
Isso só fazia a preocupação da garota aumentar.
- Na mesma – Louis gemeu em desgosto, as mãos se fechando em punhos –
Eu nunca a vi tão fraca em toda a minha vida. E eles não querem me contar.
Não querem...Eu estou com medo, Karina. Como nunca estive antes.
- Vai ficar tudo bem, Louis – ela procurou pela mão do amigo, segurando-a
firmemente antes que ele se esquivasse.
O silêncio voltara, mas cruel do que antes, como um vento gelado soprando
entre os dois. Karina somente deixou que seus olhos escorregassem até a
porta, como se esperasse alguém entrar. Sabia que Harry não viria, mas ainda
assim ela parecia esperar. Mas a única pessoa que entrou na sala apertada for
Damian, todo coberto de roupas pretas, os cabelos cheios de gel jogados para
trás. Ela se lembrava da última vez que os dois haviam conversado, mesmo
que ela estivesse bêbada demais. “Me procure no intervalo, embaixo das
arquibancadas da antiga quadra de basquete”. Mas esse encontro nunca
havia acontecido. Como se ele pudesse ler sua mente, seus lábios formaram
um sorriso amigável, antes de jogar uma pequena bolinha de papel amassado
em sua direção. Um dos olhos verdes como esmeralda de Damian lhe piscou,
como se um contrato estivesse sendo fechado. Abrindo o papel rapidamente,
ela encontrou rabiscadas em uma caligrafia apressada as seguintes palavras:
Karina procurou por Damian entre os rostos atrás de si, mas ele não lhe olhava
de volta. Estava absorto na tela iluminada de seu celular, como se algo muito
importante estivesse prendendo sua atenção. Suspirando alto ao notar
que Louis ainda lhe ignorava completamente, Karina escondeu o pequeno
bilhete no decote de seu vestido. Algumas manias ela nunca perderia.
*I’m Glad You Came é um trecho de Glad You Came, da banda britânica The
Wanted: Estou feliz que você veio, numa tradução literal. (Eu recomendo que
vocês vejam essa versão. Estrelando o muso máximo de Holy Fool,
senhor Grant Gustin
*Rachel Berry é a protagonista do seriado Glee. A autora que vos fala sofre de
síndrome de Rachel Berry. É.
Era totalmente gelado, mas era quente ao mesmo tempo. A sala de estar dos
Kallister nunca esteve tão cheia, mas parecia extremamente vazia. Linda
estava inconsolável nos braços de sua mãe, o marido ao lado não menos
devastado. Vários conhecidos estavam ali, além de colegas de escola e
vizinhos. Esma e Rick conversavam com os pais de Alicia Loren. Karina
podia ver Damian encostado em uma das prateleiras repletas de livros, os
olhos verdes absolutamente grudados em Louis . Havia uma peça faltando ali,
mas ela não conseguia encaixar corretamente. No momento, a única coisa que
conseguia fazer era segurar mais forte o melhor amigo em seus braços, deixar
que suas lágrimas manchassem seu vestido negro. No momento em que ela
chegara, Louis somente rira, os olhos vermelhos e paranoicos, e começara a
balbuciar ‘Eles estão mentindo pra mim, Ká . Eles disseram...Eles são loucos
não são? Isso é um pesadelo, não é?’. Mas então ele desmoronara em
lágrimas, agarrando-se a garota como podia. Era a cena mais triste que ela já
havia visto, e naquele momento, Karina teve vontade de deixar que as
lágrimas rolassem também. Mas ela precisava ser forte. Por Louis . Ela devia
isso a ele, e devia isso a Carine . Sua pequena amiga de cabelos ruivos,
obcecada por alienígenas e defensora dos fracos e oprimidos. Sua
pobre Carine . Seu coração já não mais existia naquele momento.
- Pessoal, o pastor Philip acabou de ligar – A voz de Caleb estava tão
embargada que Karina não sabia como ele conseguia continuar falando. Ou
até mesmo em pé – Eles...Eles estão nos esperando no cemitério. Para o
enterro.
Karina pode sentir todo o corpo de Louis estremecer em seu abraço. Ela
somente beijou-lhe os cabelos, ajudando-o a se levantar vagarosamente. O
cemitério ficava apenas algumas quadras dali, então todos iriam a pé, como
um último desfile em homenagem a Carine . O caixão estaria os esperando no
portão, segundo Caleb. Louis não conseguia manter-se em pé, e Karina
sozinha não conseguiria carregá-lo. Silencioso como um fantasma, Damian
surgiu ao seu lado, passando o braço pela cintura do garoto e carregando a
maior parte de seu peso. Karina somente o abraçou pelo outro lado, e juntos
eles começaram a caminhar.
- Dam...- Louis sussurrou, a voz quase sumindo.
- Shh – ela pode ouvir Damian sussurrando em resposta – Eu prometo que vai
ficar tudo bem, Louis . Vai ficar tudo bem.
Ele acenou com a cabeça, voltando os olhos azuis para a rua em sua frente. Os
filmes retratavam dias de enterro como dias chuvosos, onde todos usavam
guarda-chuvas negros e pesados casacos. Mas naquele dia o sol brilhava em
um céu azul demais. Era um dia lindo, daqueles em que Carine gostaria de
estender uma manta sobre a grama verde e passar horas e horas contando
histórias, apontando para nuvens engraçadas e identificando extraterrestres
nos mínimos movimentos de insetos nos arbustos. Abraçando-se mais forte ao
seu melhor amigo, Karina deixou que a dor a corroesse internamente.
O portão enferrujado do cemitério da cidade estava lotado de pessoas
lamentando a perda de uma das estudantes mais queridas da grande escola
pública dali. O caixão que os aguardava era branco, mas estava coberto pelo
milhares de lenços coloridos que Carine colecionava. Karina sabia que ela
teria preferido aquilo aos caixões de madeira tradicionais. Era chegada a hora.
Alguns dos parentes dos Kallister carregavam o ataúde deCarine , enquanto
Linda e Caleb tentavam caminhar logo atrás deles. Na fileira seguinte vinham
Damian, Louis e Karina , o resto da cidade as suas costas. Deram alguns
passos em silêncio, antes que Damian começasse a cantar, em sua voz
surpreendentemente bela, uma das canções favoritas de Carine .
Então Karina se lembrou se uma conversa que haviam tido anos atrás, num dia
qualquer no quintal dos Kallister, os três amigos rindo ao redor de uma garrafa
de chá gelado e seus planos para o futuro. E então o assunto surgira do nada,
como um clarão inesperado, e ela lembrava das palavras de Carine . Cada uma
delas. ‘No dia em que eu morrer, eu não quero que as pessoas chorem. Eu
quero que elas cantem, e se lembrem de como a vida é importante e breve.
Não quero que ninguém esqueça de ser feliz. E claro, se alguns Luminatix
quiserem aparecer, seria ótimo’. Karina não sabia o que eram os ditos
Luminatix, mas sabia que aquela era a melhor homenagem que poderiam fazer
a ela. Com o coração na garganta, ela seguiu a multidão que havia se juntado
ao coro de Damian. Até mesmo Louis parecia fazer algum esforço para
acompanhar.
Uma mão fria e macia segurou a sua, e Karina não precisava olhar para o lado
para saber quem era. Reconheceria a textura da pele de Harry mesmo entre
milhares de outras, o perfume amadeirado a envolvendo mais uma vez.
Pegou-se o observando, procurando alguma força para que conseguisse chegar
até o final daquilo. Ele vestia uma camisa preta de botões e havia uma rosa
branca em sua mão livre. Quando o filho do pastor retribuiu seu olhar, ela
soube. Karina viu naqueles olhos verdes que Harry não estava ali para manter
as aparências, para prestar o papel de namorado preocupado diante daqueles
que os cercavam. Pela primeira vez, ele estava ali porque sabia que era
importante pra ela. Porque sabia que ela estava sofrendo. Quando Karina se
agarrou a sua mão mais fortemente, pode ver pela visão periférica que ele
cantava junto.
Ver o caixão descendo fora sem dúvidas a cena mais dolorosa de todas. Louis
estava agora ajoelhado na grama verde como esmeralda, as lágrimas
escorrendo incansavelmente por seu rosto, Linda e Caleb abraçados a ele
protetoramente. Karina sabia que só continuava de pé por causa do abraço
de Harry , apertado ao redor de seu corpo. Damian estava ao seu lado, e por
um estranho instinto, ela não pode deixar de pôr uma de suas mãos nos
ombros do garoto, apertando-o levemente. A maneira que os olhos dele se
fecharam longamente e depois encontraram os dela era um agradecimento
claro. Então ali, cercada pelos irmãos Styles , Karina viu as primeiras pás de
terra cairem sobre o caixão, até que a cova fosse toda preenchida, um tapete
de grama a cobrindo.
*Tears In Heaven é uma das músicas mais lindas da história, escrita e gravada
por Eric Clapton em homenagem ao seu filho Conor, que morreu aos quatro
anos após cair de uma janela de um apartamento no 53º andar:Lágrimas No
Paraíso
*A canção do capítulo é Paradise, da banda britânica Coldplay (também
conhecida como uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos)
* E, reaparecendo nesse capítulo, temos um pequeno trecho de Iris, do Goo
Goo Dolls. Todo mundo lembra dela do capítulo 7? Espero que sim.
Capítulo 17 - It's Always Darkest Before The Dawn (Looking For Heaven,
Found The Devil In Me)
A noite é traiçoeira, a noite é perigosa. Toda vez que o manto noturno cobre
cada pedaço do planeta, anjos e demônios tomam conta do lugar. Porque é na
calada das madrugadas que a mente se torna um lugar fácil de navegar, onde
decisões parecem simples e medos mais intensos. Onde a consciência torna-se
nada mais do que uma balança, cada minuto do dia anterior pesando de um
modo diferente na conta final. O arrependimento é agridoce, é uma nuvem de
confusão em meio a um céu claro de certezas. E sob o testemunho da lua e das
corujas pardas da meia-noite, não há argumento que pareça suficiente. Há
somente um coração morno e uma cabeça destruída por anos e anos de
crenças que começam lentamente a ser questionadas.
As luzes fluorescentes do posto de gasolina permaneciam acesas em meio a
escuridão, mesmo que não houvesse ninguém em seu interior. O seu tão
jovem proprietário preferia um lugar mais calmo e gelado, mais macabro e
desafiador. Como o meio da rodovia. Harry permanecia deitado no meio da
estrada, exatamente em cima das linhas amarelas que a dividiam, os braços
abertos como em redenção. Sua situação o lembrava de alguma cena de The
Vampire Diaries que ele havia pegado Angelina assistindo alguns dias atrás.
O que sua querida mãe diria se soubesse que seus dois filhos não seguiam suas
regras estritamente severas? Harry riu, alto e seco. Pro inferno com sua mãe!
Pro inferno com sua merda de vida. As chances de um simples caminhão
resolver aparecer por ali naquele momento eram remotas, mas o garoto
mantinha alguma esperança. Diferentemente deDamon Salvatore, ele não era
um maldito vampiro. O fato de sua vida não ser nada além de uma chama de
vela prestes a ser apagada era agradavelmente reconfortante.
Ele se lembrava de cada uma das horas anteriores, embora preferisse apagá-las
de sua mente com algum tipo de Jack Harrys* preparado com algumas gotas
do Rio Lete*. Lembrava-se da conferência de sacerdotes extremamente
entediante da qual fora obrigado a participar, porque por algum motivo bizarro
o pastor Philip parecia acreditar piamente que seu filho pródigo seguiria seus
passos pelo caminho abençoado. Mas antes mesmo que seu pai pudesse
mencionar as palavras certas, o garoto já não estaria mais ali. Sumiria no
mundo. Faltava só mais um pouco, só essa última tarefa...Tarefa essa que
começava a parecer pesada demais, complicada demais. Como no momento
em que o celular do pastor tocara no meio de uma das palestras.
Todas as cores passaram pelo rosto de Philip. Todas as emoções, a tristeza, a
pena e a dor. E então a noticia. Carine Kallister havia falecido em decorrência
de um câncer no pâncreas. Mas Harry mal ouviu as explicações de seu pai,
algo sobre o porquê de uma família judia pedir a um pastor evangélico para
realizar o enterro. Algumas palavras sobre um rabino ausente e a preocupação
de Linda em não submeter a filha aos antigos costumes judaicos, o que só
teria prolongado o sofrimento de todos, além de os gêmeos terem sido
batizados no antigo orfanato onde residiram previamente. Harry não registrou
nada disso. Seus pensamentos estacionaram emKarina. Karina e seus grandes
olhos azuis, olhos que ele sabia que doeria ver cheios de tristeza. Karina que
havia perdido aquela que considerava sua irmã. Karina sozinha em sua dor.
E então seu cérebro se tornou nada além de poeira espacial, quando pela
primeira vez em anos Harry não planejou cada ação seguinte, cada pequeno
momento do dia. O mundo acelerava sob seus pés, ou talvez fosse somente o
garoto correndo mais rápido na direção dela. Seu pai não havia exatamente
ajudado com as suas palavras. “Karina desmoronou, Hazza. Você sabe que
precisa estar lá por ela, não sabe?” Ele lembrava de ter concordado
vagamente, ignorando todo o resto de tentativa de conversa que Philip se
empenhava em impor. O tempo em que o pastor fora seu herói havia passado,
quase como séculos atrás. O homem ao seu lado agora não lhe inspirava nada
além de repulsa.
Comprou uma rosa branca qualquer na floricultura junto ao local onde
deveriam buscar a lápide de Carine. Filha, irmã, amiga. Um arrepio
escorregou por sua espinha quando ele se deu conta de que era a irmã
de Louis Kallister que estava sendo enterrada, mas podia ser a sua. Angelina
era irritante como o inferno, mas era uma pessoa que o compreendia. Angelina
lhe apoiava. A morte era engraçada, quando não se fazia parte dela. Quando o
coração de alguém já não mais bate, isso te faz pensar. Sua vida não passa do
clichê de um filme diante dos seus olhos. E por algumas horas, você dá valor
aqueles que te rodeiam. Até que o mundo real te chama para brincar
novamente, e você se lembra porque seu coração é rodeado por trevas.
Havia uma multidão no cemitério, mas mesmo assim seus olhos verdes a
encontraram. Os longos cabelos pretos brilhavam no sol da tarde, e Karina
parecia mais velha em seu vestido de renda negra. Louis e Damian O’Hare
caminhavam ao seu lado, e Paradise era entoada por todas as vozes presentes.
Mas não importava. Quando ele segurou a mão dela, ele sabia que se
arrependeria. Quando os olhos azuis encararam os verdes,Harry sabia que o
arrependimento poderia ser adiado por mais algumas horas.
As horas passadas na sala de estar dos Dawson foram talvez as piores que ele
já houvesse encarado em sua curta vida. Enquanto Esma e Angel fantasiavam
cerimônias de casamento e vestidos de noiva, Karina estava trancada em
algum lugar no andar de cima, alheia aos preparativos adiantados demais que
as duas mulheres faziam. Philip e Rick pareciam disputar a quinquagésima
rodada de xadrez daquele dia, enquanto Angelina cochilava no tapete felpudo
que cobria a maior parte do assoalho. O relógio tiquetaqueava lento demais.
Outra xícara de café, pratos de bolo distribuídos a uma certa altura, e a
vontade avassaladora do filho do pastor de dar um murro na parede cor de
creme. Até que as palavras certas saíram da boca de sua mãe. ‘Harry, meu
bem, acho que você deveria passar a noite aqui, se Esma e Rick concordarem,
é claro. Caso alguma coisa aconteça a Karina durante a madrugada, você
estaria perto para confortá-la’. A matriarca dos Dawson aceitou energicamente
a ideia, não levando nada mais do que dois minutos para arrastar Angel a fim
de arrumar o quarto de hóspedes. A confiança daquelas famílias de que ambos
eram obedientes o suficiente para permanecerem em seus respectivos
dormitórios beirava o ridículo. Porque quando os Styles se despediram e as
luzes da casa se apagaram, o filho do pastor esgueirou-se até o cômodo azul
que ele tão bem conhecia.
Agora, deitado naquela rodovia e encarando o céu negro como um reflexo de
sua alma conturbada, tudo parecia distante, uma mera lembrança, embora suas
roupas permanecessem úmidas, não só pela água insistente do chuveiro, mas
pelas lágrimas sofridas de Karina. Harry sorria amargurado, a mão direita
apontada para a própria testa como um revólver.
- Pow – ele fingia disparar, falando sozinho como um lunático qualquer –
Morra, grande idiota. Ela é só uma maldita garota. Outra qualquer. Nada além
de um obstáculo no caminho da vitória.
Mas havia uma vozinha no interior de sua cabeça, um sussurro que ele tentava
combater há dias, e que ganhava força a cada minuto de viagem dentro de sua
mente insana, que lhe dizia coisas perigosas. Coisas como Mas ela é Karina.
- Karina – Harry bufou, como se pronunciar o nome dela machucasse –
Espero que você apodreça no inferno.
Um celular tocou, uma, duas, três vezes, quebrando o silêncio quase espectral
que o envolvia. O garoto tentou ignorar, fingir que não ouvia. Tudo que ele
não precisava no momento eram mais problemas. Descobre-se que o mundo é
um lugar injusto quando já não é mais possível nem martirizar-se em paz.
Praguejando em voz alta o suficiente para espantar algumas corujas
curiosas, Harry atendeu, a voz arrastada e nervosa de Sebastian sussurrando
do outro lado da linha:
- Inferno, onde você se enfiou? Greenfield está aqui. Quer falar com você.
Agora.
- Puta merda, mais essa agora? – Harry resmungou, uma das mãos
massageando as temporãs com força – Me dê cinco minutos.
Era chegada a hora, afinal. A realidade lhe abraçava, convidando-o a brincar
com seus tentáculos frios, abrindo seus olhos para coisas que ele não queria
ver. Levantando-se vagarosamente, o filho do pastor deixou seus olhos verdes
fitarem o caminho a sua frente. Lembrou-se de uma canção que Karina havia
cantado durante um de seus devaneios momentâneos, onde ela desligava-se do
mundo por alguns minutos. “A estrada é longa, e nós continuaremos, tente se
divertir nesse meio tempo”*. Quanta ironia. Alguém lá em cima deveria estar
se divertindo muito com a piada que era sua vida. E com esse pensamento
feliz, Harry deu as costas a paisagem, preparando-se para a dor de cabeça que
teria a seguir.
* It's Always Darkest Before The Dawn (Looking For Heaven, Found The
Devil In Me) são dois trechos da canção Shake It Out, de Florence + The
Machine: É sempre mais escuro antes do amanhecer (Procurando pelo
paraíso, encontrei o demônio em mim)
*Jack Daniels é uma famosa marca de whisky
*Na mitologia grega, o Rio Lete era um rio do Hades. Aqueles que bebessem
ou tocassem suas águas seriam experimentariam um completo esquecimento
* ”A estrada é longa, e nós continuaremos, tente se divertir nesse meio
tempo”, no original ”The road’s long, we carry on, try to have fun in the
meantime”, é um trecho de Born To Die, da musa de HF,Lana Del Rey
O chá estava morno na xícara de uma delicada porcelana chinesa, que poderia
facilmente ter pertencido a Maria Antonieta* de Kirsten Dunst. Camomila ou
erva-doce, o gosto era tão insosso que poderia ser qualquer um dos dois.
Poderia ser até algum maracujá, preparado especialmente para colocar a mais
forte das mentes num coma profundo e silencioso. A janela permanecia
aberta, o sol iluminava todo o cômodo, trazendo até um brilho as paredes
limpas demais. Os longos cabelos pretos de Karina estavam presos em um
firme rabo de cavalo, um pequeno topete que lhe dava um ar de personagem
de filme de época. O vestido hoje era azul claro, um cinto branco com um
pequeno laço dourado em sua cintura, sapatos altos cor de creme em seus pés.
Ela esperava, pacientemente, até que Patrick viesse buscá-la. Era essa a
mensagem que havia recebido de Louis pela manhã, e o tema da conversa que
teriam era um tanto previsível. Harry. A conversa era sempre sobre Harry.
O que estava começando a deixá-la irritada. Tudo bem, ele não era exatamente
o namorado perfeito. Nem ao menos um namorado minimamente decente.
Mas o filho do pastor estava menos pior nas últimas semanas. Eles saíram
algumas vezes como antigamente, algumas cervejas no Incantatem e uns
poucos beijos trocados no final da noite. Mas ainda era melhor do que
nada. Harry fora realmente compreensivo após a morte deCarine. Mesmo com
o comportamento estranho, o nervosismo e os cochichos no telefone, não era
tão ruim assim. E ela havia dito. Aquelas palavras. Era errado ter um
pouquinho de esperança de que algum dia ele seria capaz de retribuir aquele
sentimento?
Para seus amigos, era. Louis e Damian mantinham a mesma posição: “Você
vai se machucar. Ele não presta.” E Patrick estava sempre por perto, os olhos
cor de mel a observando, a cabeça concordando com cada palavra. Ele estava
mais suave nas últimas semanas, menos invasivo. Mas ainda era Patrick.
Karina já conhecia os argumentos que eles usariam. As táticas e as chantagens
emocionais. Ela não tinha certeza se queria ouvir. Mas o faria, pelo seu
melhor amigo. Os dias que ficaram afastados haviam sido os piores de sua
curta vida, os mais amargos e escuros. E agora Louis estava tão feliz,
aprendendo a seguir em frente, prestes a se casar com alguém que amava. A
garota lembrava-se do dia em que ele mostrara o anel de noivado, um circulo
simples e masculino de prata, tão discreto que ninguém diria do que se tratava.
Observando o próprio anel de compromisso ao lado do de Louis, a nostalgia a
tomou. Parecia ontem que eram duas crianças solitárias em um orfanato
qualquer. Agora seus corações pertenciam a outras pessoas. Talvez o mais
irônico era que haviam se apaixonado por irmãos tão diferentes. “Quem
diria, Louis? De algum jeito bizarro, estaremos na mesma família em pouco
tempo. É esquisito”. “É”, ele respondeu, observando suas mãos, “Só que eu
vou me casar por amor, com o irmão decente. E você, Ká? Vai continuar com
essa farsa com o irmão do mal pra sempre?”. Quem disse que a verdade dói,
estava completamente certo.
A campainha soou animada, uma, duas vezes. Sozinha em casa não lhe restou
outra opção se não atender a porta, já sabendo quem estaria do outro lado.
Seus pais adotivos haviam saído para visitar a centenária Tia Magnolia, uma
senhora desprezível que fora casada com um dos tios já falecidos de Rick, mas
que adorava implicar com Karina e tudo relacionado a ela. O único motivo
pelo qual ainda davam algum crédito a mulher era a insaciável mania de Esma
de aparentar ser uma dama caridosa da sociedade. E a herança. Alguns
milhares de dólares escondidos no porão da antiga casa de dois andares. Não
que Rick ligasse para dinheiro. Ele não o fazia. Mas Karina sabia que Esma
adoraria aumentar a coleção de terninhos Chanel em seu closet.
Patrick tinha o olhar perdido ao longe, as mãos nos bolsos do moletom
marrom de capuz, os jeans surrados de sempre e tênis de corrida
impecavelmente brancos. Os cabelos loiros cacheados brilhavam no sol do
inicio da tarde, e havia uma pequena ruga de preocupação entre suas
sobrancelhas. Era lindo e melancólico sem a máscara de bad boy brincalhão, e
pela primeira vez desde que o conhecera, a garota se perguntou qual seria a
idade real dele. Vinte e três, vinte e cinco? Era definitivamente mais velho,
mas parecia sempre tão jovem. Naquela primeira noite na Sonic Underground
ela imaginou que ele tivesse dezenove, vinte. Completamente errada,
observando o homem agora. Patrick havia perdido muito da sedução barata e
termos espanhóis do começo, mas sua essência continuava lá. Não demorou
para que os olhos cor de mel encontrassem os pretos , e um sorriso se
formasse em sua boca macia.
- Ká. Oi.- ele sussurrava, mesmo que não houvesse necessidade – Podemos
ir?
- Hãn, sim, claro. Eu só...preciso deixar um bilhete para Esma e Rick.
Hm...entre.
Os bilhetes eram outra das mudanças que Harry causara em sua vida. “Não dê
a impressão de ter sumido”, ele a orientara uma vez, “ao menos invente um
lugar quando for sair durante o dia. Você não quer levantar suspeitas”. Karina
podia sentir Patrick caminhando atrás dela, um perfume cítrico e marcante o
acompanha. O quão puritana soaria se dissesse que achava estranho estar
sozinha com um homem em casa, quando já ficara em situações bem mais
pecaminosas com Harry? Só que Patrick não era Harry. Ele a deixava
nervosa, irritadiça, até um tanto confusa. Patrick era como uma raposa que
rondava sua presa, sem pressa, estudando-a, envolvendo-a.
Parou em frente a uma velha mesa de canto, anotando palavras rápidas e
diretas num papel de seda que era o preferido de sua mãe adotiva. Seu coração
porém, saltou em seu peito ao ouvir a voz do loiro ao seu lado, parado em
frente de uma estante repleta de livros e velhas fotografias.
- Essa – ele apontou para uma grande foto exatamente no meio da prateleira
central, envolta por uma moldura dourada e cheia de arabescos, onde uma
menininha de cabelos pretos e sorriso brilhante brincava num balanço – Essa é
Ágatha, não é? A filha dos seus pais adotivos?
- É sim – Karina olhou para o porta-retratos que costumava assombra-la desde
o dia que chegara naquela casa – Como você sabe sobre ela? São poucas as
pessoas nessa cidade que sabem dessa história. Foi há muito tempo atrás.
Esma e Rick ainda não moravam aqui. A maioria das pessoas acredita que é
uma foto antiga minha.
- Louis me contou – fora sua única resposta, os olhos ainda grudados na
fotografia – E vocês são muito parecidas, mas não poderia ser você. Os olhos,
são os mesmos olhos da mãe dela– ele apontou para uma outra foto, onde
Esma sorria – Ela tinha essas covinhas, você não tem. Os cabelos dela
formavam cachos nas pontas. Os seus são lisos. E é claro, Ágatha devia ter
uns quatro, cinco anos nessa foto. Você foi adotada com oito. Como ela
morreu, mesmo?
- Ninguém sabe – Karina deu de ombros, o assunto ainda incomodava. Fora
adotada para substituir Ágatha. Mas aqueles que sabiam da verdade, como
Esma e Tia Magnolia, essas esperavam que ela fosse uma cópia fiel da
menininha, não só na aparência parecida, mas no comportamento. Ágatha era
um fantasma em sua vida, e até mesmo Harry usara a imagem dela para ter a
garota em suas mãos. “Sou eu que estou substituindo uma perda?”, dissera ele.
Era esse um dos segredos com os quais ele a havia intimidado no passado.
Mas aquilo não a atormentava mais há algum tempo. – Eles não falam sobre
isso. Com ninguém. Podemos ir agora?
- Podemos. Mas... – Patrick segurou seu braço no momento em que ela tentara
passar por ele em direção a porta, firme o suficiente para prendê-la ali, mas
sem a força capaz de machuca-la- Karina. Antes de irmos... Eu quero te dizer
uma coisa. Eu preciso, na verdade.
- Estou ouvindo – sua voz tremia, a um ponto de gaguejar, os olhos perdidos
nos dele, o perfume cítrico a envolvendo.
- Vai chegar uma hora, - ele começou, a mão livre desenhando o contorno do
rosto da garota, a expressão um tanto maravilhada no rosto – e vai ser logo,
isso eu posso garantir, que as coisas vão ficar difíceis, Karina. Difíceis de
verdade. Eu só preciso que você se lembre do que eu estou te dizendo agora.
Eu tenho segredos, sim. Fatos sobre mim que eu não posso te contar agora.
Mas tudo que eu fiz foi pelo seu bem – Patrick fechou os olhos, encostando o
nariz dele no dela – Foi porque eu me preocupo com você, porque quero que
você seja feliz. E livre. Por favor, não me odeie quando você descobrir. Não
me odeie. Por favor.
E então ele a beijou. Simples, tão simples quanto o virar de uma página de um
livro. Patrick colou os lábios nos dela, as mãos em sua cintura puxando-a cada
vez mais para si. E Karina deixou. Deixou porque era bom, era seguro e a voz
do homem fora tão doce e verdadeira, que ela não podia fazer nada além
daquilo. Abrir a boca devagarinho, dando passagem para a língua macia, um
beijo tão tranquilo que o tempo quase parou. Fora diferente das outras vezes.
Do avassalador encontro na boate escura até o breve susto das arquibancadas.
Como se fosse à primeira vez. As línguas dançavam, os corpos se espremiam
um contra o outro, e o gosto era de hortelã e café. Até que ela lembrou
de Harry.
Harry e seus olhos verdes, sua boca exigente, seu toque que fazia
enlouquecer. Harry que não merecia fidelidade nenhuma, mas mesmo assim
ela se sentia culpada. Uma culpa que por si só lhe trazia um misto de vergonha
e raiva. Não deveria sentir culpa, deveria? Mas também não deveria amar o
filho do pastor.
Deixou que Patrick continuasse lhe beijando, até que oxigênio faltasse a
ambos, e que um último selinho rápido fosse depositado contra sua boca.
Testas encostadas, ela não queria abrir os olhos. Sabia o que encontraria. Um
sorriso bonito demais. Um sorriso de vitória, quando tudo que havia era perda.
Não havia esperanças para Patrick. Não havia esperanças para Harry. Não
havia o mínimo de esperanças para Karina.
O caminho até a casa dos Kallister fora silencioso, mas não o tipo de silêncio
pós-beijo intimidador. Era só silêncio, puro e simples, e ao mesmo tempo
complicado e confuso. Andavam lado a lado, nada de mãos dadas ou corpos
que se encostavam. Somente caminhavam, até que a casa amarela coberta por
musgo entrasse em seu campo de visão e Louis acenasse da porta, um sorriso
tímido em seus lábios. Abraçou-a rapidamente, pedindo que entrasse na sala,
mas dispensando maiores atenções. Muito pelo contrário. Era com Patrick que
ele cochichava, as mãos nervosas gesticulando sem parar, as sobrancelhas
dançando em cima de seus olhos. Mas Damian logo chegou, oferecendo o
braço para ela, conduzindo-os até o pequeno jardim de inverno que era o
orgulho de Linda Kallister, onde três pessoas já estavam esperando, discutindo
baixinho entre si.
Se descobrir que Louis, Damian e Patrick eram amigos fora um choque, saber
tão repentinamente que Kitty, John e o homem que ela acreditava se chamar
Flanagan faziam parte do grupo era terrivelmente assustador.
Kitty estava sentada no antigo banco de madeira no centro do lugar, os
cabelos negros presos em um coque firme, os lábios sem cor alguma, e usava
um vestido preto de mangas três quartos, extremamente simples e discreto
demais para uma mulher que usava lingerie de oncinha para trabalhar.
Flanagan, ela tinha quase certeza que esse era seu nome, mantinha a cabeça
baixa, as mão cruzadas sobre a calça bege, e uma tensão nos ombros largos
sob a regata branca, como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer.
Mas John parecia relaxado em suas roupas negras, encostado em uma das
paredes de vidro, brincando com um isqueiro de prata em suas mãos. Damian
pediu que se sentasse numa cadeira de balanço do século passado, antes de
voltar para o lado do noivo, que agora parava atrás de Kitty. As seis pessoas
olhavam para ela, uns com pena, outros com medo, e outros somente com cara
de nada.
- Karina – Kitty sussurrou para ela, aquela voz doce e maternal que havia
presenciado uma vez parecia ter voltado com força – É bom vê-la de novo,
querida.
- Podemos ir direto ao assunto, sem lenga-lengas? – John resmungava, o pé
balançando num ritmo frenético contra a parede – Vocês sabem que eu preciso
voltar logo, antes que Sebastian desconfie de alguma coisa.
- Concordo – a garota suspirou, balançando sua cadeira algumas vezes –
Querem falar mal de Harry? Comecem logo. É o mesmo papo de sempre. “Ele
não presta. Não é bom para você. É perigoso”. Algum argumento novo dessa
vez?
- Alguns – Patrick deu de ombros, e ela notou que ele agora já havia voltado a
postura debochada de sempre – Mas você nunca nos escuta. Você só finge.
Talvez agora, ouvindo nossos novos amiguinhos, consigamos colocar um
pouco de juízo nessa sua cabeça dura.
- Estamos investigando Harry há um bom tempo, Karina, você sabe disso –
Damian interferiu, um sorriso de compaixão no rosto – E nos últimos tempos,
bom, nós conseguimos que Kristina, Ferris e Johnathan dessem um
testemunho para você. Harry está metido em muita confusão, e algo nos diz
que logo as coisas vão ficar complicadas. Só queremos que você esteja longe
quando tudo isso acontecer.
- Por favor – Kitty suspirou, as mãos na testa – Não me chame de Kristina.
Minha mãe me chamava de Kristina, e era insuportável. Todos os problemas
da minha vida começaram por causa desse maldito nome.
- Podemos não perder o foco? – A voz de Flanagan era grave, autoritária, mas
parecia cheia de culpa e mágoa – Só quero que tudo isso acabe. Você nos
prometeu, Patrick, a mim e a Kitty, que poderíamos sumir depois que eu
contasse o que sei a garota – ele gesticulou na direção de Karina – Eu não
confio em Harry. Não desde que Aphrodite morreu naquele estúpido plano
dele. Aquilo foi um acidente, mas agora ele está trabalhando com gente
perigosa de verdade. – seus olhos pareciam um tanto marejados, a voz
falhando quando abaixou a cabeça novamente – Eu só amei duas pessoas
nessa vida. Uma eu perdi por culpa daquele maldito garoto e essa presepada
na qual eu fui me enfiar. Eu não vou perder a outra.
Kitty o abraçou desajeitadamente, tentando fazer com que ele deitasse a
cabeça em seu ombro. Deslizava a mão por seus cabelos claros, e
então Karina sabia o porquê de toda a simplicidade e discrição dela. Havia se
apaixonado. Amava Flanagan e estava disposta a largar a vida de prostituta
por ele.
- Aphrodite – Kitty começou, a voz não mais do que um sussurro – era minha
melhor amiga. Nós moramos juntas por um tempo, antes que ela e Ferris se
casassem. Os dois eram felizes, iam construir uma família juntos. Ferris já
trabalhava para Harry. O negócio deles é bem simples se pararmos para
analisar – ela olhou para John, procurando por uma ajuda que não veio – Eles
tem um tipo de gangue, um grupo que realiza serviços, empréstimos,
cobranças. Tecnicamente, se você precisar de dinheiro, ou se precisar dar um
susto em alguém, é só procurar por eles. O escritório fica no subterrâneo da
Sonic. Sebastian cuida da contabilidade. Ferris e Gustav são encarregados de
realizarem o serviço, seja fazer a entrega do dinheiro prometido, seja dar uma
surra em alguém, e de cobrar depois. E John, bom, John faz um pouco de
tudo. É mais garoto de recados do que qualquer outra coisa – Ele parecia
ofendido, mas Kitty não se abalou – Mas o chefe é Harry. Ele dá as ordens.
Ele aceita os serviços, negocia. O caso de Aphrodite foi há três anos, um dos
primeiros ‘arquivos’, o termo que eles usam pra cada serviço. Ela não sabia o
que o marido fazia. Na noite em que descobriu, bem, deu tudo errado. Gustav
e Ferris deviam colocar fogo em uma velha casa de madeira, onde um
empresário guardava sua fortuna. Uma vingança da ex-mulher. Não havia
ninguém no lugar, só o dinheiro. Mas Aphrodite tinha seguido o grupo, e bom,
ela não sabia que eles iriam incendiar aquilo tudo. Achou que só fossem pegar
o dinheiro – Flanagan chorava baixinho, preso no abraço forte da mulher – Ela
estava lá dentro quando as chamas começaram. Tinha achado que era um bom
esconderijo. Harry gritou, avisou que havia algo errado. Mas era tarde demais.
Ninguém conseguiu salva-la. Aphrodite morreu, e Ferris foi retirado em
estado de choque de lá. A polícia nunca descobriu o que houve. – A dor estava
estampada no rosto de Kitty – Ela não teve nem ao menos um velório, um
enterro digno. Não sabemos o que aconteceu depois. Mas dói. Dói até hoje.
Faz algum tempo que estamos juntos – ela gesticulou para o homem em seu
colo – não havia nada antes. Nada. Nós só queremos seguir em frente. Só
queremos uma chance de uma vida normal.
Foi feito silêncio por um minuto, o suficiente para que as informações
pudessem ser absorvidas e as lágrimas cessadas. Mas aquele não era o
objetivo de tudo aquilo.
- Me desculpem. Não que eu não ache a história comovente, ou queira ser
indelicada – Karina brincava com a barra do vestido azul, sem coragem de
olhar para o casal na sua frente – Mas o que tudo isso tem a ver comigo?
- Você é meio cega, não é? – John riu seco, os braços cruzados sobre o peito –
O que tudo isso tem a ver com você? Não está meio na cara, não? Você é um
arquivo, Karina. Arquivo 737. Arquivo Saxon. Harry não está com você
porque gosta, porque te acha gostosa ou porque você transa com ele de graça
– ele deu de ombros – Ele está com você porque alguém pagou para ele fazer
isso. Fora o fato de despistar a família dele. Mas isso é tudo, Ká. Você não
passa de um negócio.
- O quê?
A voz dela saíra quase como uma risada anasalada, um mecanismo de defesa
produzido por seu nervosismo. Não, não, não. Harry não faria isso com
ela. Harry não ousaria fazer isso com ela.
- O nome dele é Lorenzo Greenfield. O cara que pagou para Harry ficar com
você – Flanagan soltou, levantando a cabeça mais uma vez - Procurado pela
polícia, mas eu não sei que crimes ele cometeu.
- Esse nome te diz alguma coisa, Karina? – Louis perguntou, cuidadoso, a
pena resplandecendo em sua voz. A garota somente balançou a cabeça em
negação, a raiva e a dor impedindo-a de continuar a falar.
- Não foi só para ficar com você – John continuou, voltando a brincar com o
isqueiro – Tem uma segunda parte no plano. Mas nós não sabemos o que
é. Harry não confia o suficiente em nós dois. O que ele faz com toda razão,
não acha? – um sorriso de deboche apareceu em seu rosto – Mas agora você já
sabe, amor. Ele vai continuar com você, até que precise. Quando finalmente
conseguir o que quer, vai te chutar. Ou fazer pior, acredite. Se eu fosse você,
pulava do barco, antes que ele afunde – John caminhou até a porta, sem
maiores explicações – Manson, - apontou para Patrick, a voz ríspida – cumpri
a minha parte no acordo. Vou voltar para o lado do Styles, fingir que continuo
sendo seu cachorrinho. Mas na hora certa, espero que você também cumpra a
sua.
Ele saiu, mas Karina não registrou. Não registrou nada. Ela sabia, sabia que
haviam segundas intenções, mas nunca pensou em nada como aquilo.
Fora usada. Totalmente usada, traída, enganada. Doía, é claro. A mágoa
tomava conta de cada pedacinho de seu corpo, a tristeza de saber que uma das
poucas pessoas que amara era o pior traidor que já havia pisado na Terra. Mas
o ódio também se instaurava, silencioso. Queria chorar, mas também queria
espancar Harry. Queria lhe perguntar por que aceitara, mas ao mesmo tempo
queria quebrar seu nariz. A confusão de sentimentos a cegava, e ela respirava
com dificuldade. Louis agora estava ao seu lado, mas ela não queria ouvir
nada. Não queria saber. Empurrou-o para o lado, e fez o mesmo com Damian
quando ele tentou impedi-la. Cambaleava, trocando passos até que chegasse à
rua.
E então as lágrimas vieram, numa esquina qualquer, já longe da casa do
melhor amigo. Sentou-se na calçada suja, tirando os sapatos de salto,
arrancando o prendedor que deixava seu cabelo no lugar. E chorou. Lágrimas
de amor, lágrimas de ódio. Tristeza, frustração, raiva. Muita raiva. Passava a
mão pelos cabelos soltos, bagunçando-os, arranhando suas bochechas sem
querer, borrando o rímel de seus olhos. Queria morrer por ser tão boba, tão
vulnerável e imatura, mas queria matar Harry. Matá-lo por enganá-la, por usá-
la daquele modo. Matá-lo por tê-la feito se apaixonar por ele.
Passou um tempo naquele lugar, o suficiente para que algumas senhoras
curiosas receberem uma descarga de palavrões ao tentarem se aproximar.
Depois saiu, pés descalços no concreto duro, voltando para casa no piloto
automático. Rick e Esma não haviam chegado, e ela demorou alguns minutos
até acertar a chave da porta. Os soluços se tornaram mais intensos ao chegar
em seu quarto, ao ver a mudança que toda aquela história de amor e mentiras
haviam trazido para aquele cômodo. Mas ela não queria ver. Arrancou a renda
que cobria as paredes, quebrou porta-retratos e rasgou a colcha azul que dias
antes ele havia usado para cobrí-la. Jogou pela janela vestidos de grife, frascos
de Chanel Nº 5 e fivelas coloridas. Tudo lembrava, tudo gritava e piscava,
tudo indicava o quão falsa sempre fora sua vida. Nunca havia verdade. Nunca.
Nada mais valia a pena.
Então chegou ao banheiro, admirou as manchas de rímel no rosto, a expressão
maníaca e os cabelos bagunçados. Mas o que mais a revoltou fora a corrente
que rodeava seu pescoço. O pequeno crucifixo dourado que ali pendia.
Arrancou-o, não se importando com a marca vermelha e a ardência que a
corrente havia deixado ao ser tirada tão bruscamente. Gritou com o espelho,
chorou mais um pouco, só para sentir pena de si mesma. Pena do robô que
havia se tornado. Lembrou-se da menininha que havia prometido que nunca
mais choraria. Ali estava ela agora, chorando por um maldito garoto. Um
maldito garoto que não a merecia. Então a tristeza fora guardada no fundo do
peito, as manchas negras no rosto foram limpas, o delicado vestido azul
jogado dentro do vaso sanitário. A determinação correndo pelo seu sangue,
borbulhando, o desejo de vingança escorrendo pela ponta de sua língua.
Era hora de ressuscitar o batom vermelho. Era hora de Harry aprender quem
era a santa tola ali.
Harry não sabia exatamente o que era, mas havia algo de diferente em Karina
naquela noite, algo que o assustava. Como diabos ela descobrira sobre o
escritório? O tom de voz que ela usara, a expressão em seu rosto, tudo com
tanto nojo e revolta, e um prazer agressivo em humilhá-lo. Aquela não era a
sua Karina. A mulher que passeava entre os sofás de couro marrom,
observando as prateleiras repletas de cadernos, parecia rancorosa e
determinada. Sentando em cima da mesa de trabalho agora vazia, ela cruzava
as longas pernas cobertas somente por aquela estúpida meia e aquelas
estúpidas cintas-ligas, parecendo estupidamente sexy e despertando um desejo
estúpido demais para que fosse saciado. Jogando todo o poder de seus olhos
castanhos e de seus longos cílios negros em cima de Harry, Karina sorriu, um
tanto maldosa, um tanto vitoriosa, mas com toda a certeza do mundo,
perigosa.
- Então, senhor Harry Styles – agora ela roubava um cigarro de uma carteira
abandonada por ali, brincando com ele entre as mãos, prendendo-o atrás da
orelha direita – Arquivo Saxon. Eu sempre odiei o meu sobrenome
verdadeiro. Por que não Arquivo Dawson? E claro, me deixe agradecer,
porque agora eu finalmente tenho algo para tatuar nas costas. “737”, bem
grande. Você poderia pagar a tatuagem, não é? Ouvi dizer que embolsou uma
bela quantidade de dinheiro.
- Ok, sem joguinhos, Ká. Vamos falar sério. – Harry tinha as mãos na cintura
quando parou frente a frente com ela, depois de fechar a porta de alumínio
com uma batida estrondosa – Quem te contou?
- E isso interessa agora? – Havia raiva em sua voz, de um jeito que ele nunca
havia presenciado antes, mas também havia uma mágoa compreensível,
mágoa esta que ele poderia aproveitar para contornar a situação. – Eu acho
que não. Nenhuma tentativa de explicação, nenhuma mentira? Mas que
progresso. Estamos finalmente conversando como adultos então.
- Adiantaria se eu explicasse? – Uma risada seca escapou de seus lábios, quase
inconformada, um riso de desistência, de deboche – Você não veio aqui para
me ouvir, veio? Aliás, muito bem calculada, essa sua vingança, meus
parabéns. Me desmoralizar na frente da cidade inteira, me desmoralizar na
frente de gente que me respeita, tentar causar ciúmes e me arrastar até aqui só
para rir da minha cara. – Harry bateu palmas, fingindo comoção –
Realmente Karina, eu não poderia estar mais orgulhoso de você. Me
surpreendeu, e falo isso com toda a sinceridade do mundo, já que, no
momento em que eu colocar os pés em casa, Angel vai me matar.
- Acredito que tenha surpreendido mesmo. Por que, no mínimo, você devia
acreditar que eu ficaria quietinha, chorando as minhas mágoas em casa, mas
me curvando aos seus pés e te perdoando assim que você me chamasse de
volta, como a boa e velha tola que eu sempre fui.
- Eu não preciso do seu perdão, Karina.
- Imaginei que não precisasse – Levantou-se num pulo, esbarrando
propositalmente nele numa tentativa de passagem um tanto mal sucedida –
Você nunca precisou de nada. Nada além de mim.
- Nesse ponto eu preciso concordar com você – Harry segurou-a firme pelo
braço, puxando-a de volta para si, colando corpos e encarando-a com aqueles
olhos verdes dominadores, mas agora um tanto suplicantes – Não preciso do
seu perdão, é perda de tempo. Nunca o terei, não é mesmo? Mas preciso de
você, mais do que nunca. Preciso de você perto de mim, sob os meus olhos, o
tempo todo.
- Faz parte do plano? – Karina soltou, irônica, tentando sair de seus braços,
erguendo o nariz no ar o mais alto possível. – Te deram um extra pra isso?
- Não – ele sussurrou, encarando descaradamente os lábios cheios e vermelhos
dela, rindo sozinho da própria desgraça – É pura necessidade minha, mesmo.
Cobriu os lábios dela com os seus delicadamente, mas rápido o suficiente para
que ela não pudesse fugir, tentando apagar a lembrança de ter visto aquela
boca que tinha sido feita somente para beijá-lo, e a ninguém mais, grudada na
de outro. O sangue fervia, o ódio voltava, mas nada disso podia ser
transmitido a ela. Arrependeu-se, no momento em que Karina mordeu seu
lábio inferior com força, a ponto de rasgá-lo, deixando o sangue escorrer em
sua língua. Afastou-se de imediato, choque e decepção em seus olhos
enquanto ele tentava limpar o líquido vermelho, sem sucesso algum. Karina
respirava fundo, o peito subindo e descendo sem parar, os olhos em chamas.
Até que veio o primeiro tapa. Ele merecia. O segundo também. A marca
vermelha dos dedos de Karina em seu rosto, marcando sua pele, mostrando
tudo que havia perdido. Tinha a garota nas mãos, tinha seu coração e seu
amor, e agora via tudo isso escorrendo por entre suas mãos como água
gelada.
- Ká...
Um brilho transpassou os olhos castanhos, rapidamente, como se uma ideia
brilhante tivesse lhe ocorrido. Aproximou-se, e, se pretendia ser sensual ou
não, Harry não fazia ideia, mas ela era. Demais para a sanidade do filho do
pastor. Puxando-o pelo colarinho branco, ela o provocava, seus lábios mal
tocando o rosto do garoto, seu perfume atiçando-o, a temperatura de seu corpo
enlouquecendo-o totalmente.
- Me responda Harry, e seja o mais sincero que essa sua alma podre permita
que você seja- A garota soprava, desenhando o contorno da boca dele com o
dedo indicador – Você me quer? Você me deseja, aqui e agora, uma última
vez?
Um sussurro inaudível escapou do garoto.
- Mais alto.
- Cacete! Mais do que eu quero permanecer vivo. Porra, Karina...
- Implore.
- O que?
- Você me ouviu. Fique de joelhos e implore. – seu sorriso nunca fora maior, e
que inferno, nunca fora tão atraente, Harry se castigava.
- Pra que? – Riu sem humor algum, ainda que aproveitasse o toque suave onde
antes havia a dor – Pra você dizer um “não” e me deixar aqui sozinho, louco
por você? Me humilhar te faz bem, não é? Eu sei que mereço, não vou negar.
Mas eu não vou facilitar as coisas pra você.
- Não confia em mim?
- Deveria?
- Bom, eu nunca desonrei minha palavra, não é?
Harry avaliou a situação, pesando os prós e os contras, e chegando a
conclusão que não tinha muito a perder. Não agora que ela o odiava.
Respirando fundo, ajoelhando-se lentamente, os olhos batendo na barra da
calcinha negra que ela usava, a vontade de passar os lábios por ali crescendo
forte em seu peito. Mas ele não teria coragem de olhar nos olhos dela. Mas
sabia que a garota o obrigaria, que queria sua humilhação total, no momento
em que seu joelho acertou levemente o queixo dele, forçando-o a olhar para
cima e soltar as palavras que ela queria tanto ouvir. O que o amor não fazia.
Te colocava nas situações mais esdrúxulas e improváveis, e mesmo assim
você fazia loucuras, mesmo que não houvesse certeza alguma de recompensa.
Ele o fez, só pela esperança de ser permitido toca-la mais uma vez, adorar
aquele corpo que ele tinha certeza ter sido moldado no dele, tentar uma última
vez convencê-la a não mandá-lo embora de sua vida. Com esse pensamento
em mente, Harry proferiu:
- Por favor, Karina. Eu te imploro. Seja minha, só mais uma vez. Por favor.
Wish I may,
(Gostaria de poder)
Wish I might find my one true love tonight
(Gostaria de ter encontrado meu amor verdadeiro essa noite)
Do you think that he could be you?
(Você acha que ele poderia ser você?)
O sorriso de vitória que surgiu no rosto de Karina, assim como sua risada alta
e musical, foram igualmente maldosos e adoráveis. Havia descaso e desejo em
seus olhos, e foi assim que ela posicionou as duas mãos ao redor do rosto
de Harry, puxando-o para cima até que ele ficasse em pé novamente e ela
pudesse sugar seu lábio inferior, limpando o sangue que ainda restava ali com
a ponta da língua, permitindo que ele colocasse as mãos em sua cintura, para
então olhá-lo diretamente nos grandes olhos verdes, provocá-lo um pouquinho
com seus quadris, antes de beijá-lo, primeiro calmamente, deslizando sua
língua macia contra a língua quente do filho do pastor, só desfrutando por um
momento da conhecida sensação, misturada agora ao gosto metálico do
sangue, para então exigir tudo que pudesse dele, tudo que tinha direito, tudo
que ele lhe negara. Foi então que, mesmo extasiado, Harry compreendeu que
só a teria se ela desse as ordens naquela noite, se ela permitisse que fossem
executadas as ações que ele pretendia. Nada parecia mais justo ou agradável.
Já Karina tinha o triunfo ao seu lado, mas mesmo assim não podia negar o
quanto amava aquele misto de sensações, por mais erradas que fossem.
Se toda a vez que ela o provocasse ele tivesse aquela reação, Karina se
arrependeria de não tê-lo feito mais vezes. Harry tirou a calça jeans, chutando
as meias e os sapatos para um canto qualquer, somente para se abaixar mais
uma vez, e fazer algo que ela realmente não esperava. Com uma técnica de
mestre e uma vontade avassaladora, Harry arrancou com a boca uma por uma
as cintas-ligas que prendiam as meias de Karina a calcinha, para então
calmamente beijar cada pedacinho da extensão da barriga lisa da garota,
descendo até as coxa, enviando arrepios múltiplos a cada beijo vagaroso na
parte interna de suas pernas. Era fantástico, e mesmo assim intenso como
só Harry sabia ser. Não havia a delicadeza anterior, mas também não era nada
forçado, nada que machucaria. Mordendo pouco a pouco o caminho que fizera
até a parte inferior do tecido negro, aquela caricia seria uma tentativa a mais
de rende-la. Depositando os lábios cheios no tecido já úmido da calcinha de
renda, o filho do pastor sorriu antes de beija-lo, sem pedido algum. Um golpe
estupidamente baixo, em todos os sentidos possíveis.
- Você disse que queria sexo com ódio, não disse? – ele riu baixinho,
pressionando o membro ereto contra o corpo nu da garota, deslizando os
dedos pelas meias translúcidas, as únicas peças que ainda permaneciam
intactas, inebriado e maravilhado – Não é assim que essa modalidade
funciona. Digamos que isso foi só um agrado que eu, muito generoso, resolvi
lhe oferecer.
- Ah, é? Bom, presumo que esta seja a minha hora de assumir, então.
- Como desejar, mademoiselle.
Sneak up on you, really quiet,
(Desloco-me sobre você, bem quieta)
Whisper “am I what your heart desires?”
(Sussurro “Sou eu que seu coração deseja?”)
I could be your ingenue.
(Eu poderia ser sua ingenuinamente)
Keep you safe, and inspired,
(Te manter seguro e inspirado)
Baby, let your fantasies unwind
(Baby, deixe suas fantasias se desenrolarem)
We can do what you want to do, ooh, ooh.
(Nós podemos fazer o que você quiser fazer)
Karina riu, empurrando o corpo do garoto para trás com força, até que ele
caísse sentado na poltrona de couro atrás da mesa de madeira, lugar de onde
ela tinha certeza que Harry dava ordens a seus subordinados. Observou-o, as
mãos na cintura fina, e constatou que só uma louca em crises terminais não o
desejaria ardentemente. Harry era um pecado capital, pecado esse que ela
havia transformado em sua própria religião, seguindo-a e adorando-a por um
longo período de tempo. Ele se afogava em expectativa, os piores
pensamentos lhe surgindo, o medo de ser abandonado ali, naquele estado,
tomando conta de seu psicológico. Mas logoKarina agiu, retirando com
cuidado as boxers brancas, descobrindo a ereção do garoto e sentando-se
sobre seus joelhos. Os dois jogavam um jogo de olhares, verdes e castanhos, o
calor do momento ardendo em antecipação. As unhas de Karina então se
arrastavam pelos músculos definidos da barriga de Harry, marcando-os,
traçando um caminho certeiro pelas pernas até onde ela queria chegar. Então
uma de suas mãos envolveu o membro pronunciado, acariciando-o,
masturbando-o com uma delicadeza impar enquanto voltava a beijar o filho do
pastor com volúpia. Ele arfava, e aquilo agora já era uma batalha, a boca da
garota descendo até seus ombros, descendo os dentes com força ali,
machucando-o e satisfazendo-o em proporções iguais. Houveram outros tapas
em alguns momentos, cabeçadas violentas, manchas de suor e de sangue, e
então beijos tórridos e intermináveis, até que ele não pudesse aguentar.
Precisava dela. Ali, agora, para sempre. E ela sabia disso, quando suas mãos
pararam de se mover contra a pele quente de Harry, e se ocuparam em
procurar preservativos nas gavetas escondidas da mesa de trabalho.
*Living On A Prayer é uma música FODA do Bon Jovi que eu queria usar
desde o início da fanfic: Vivendo em uma oração
*...”All your life, you were only waiting for this moment to be free. Blackbird,
fly, fly...” é um trecho de Blackbird, dos Beatles: Toda sua vida, você só
estava esperando esse momento para ser livre. Pássaro negro, voe, voe...
* Quentin Tarantino (Pulp Fiction), Tim Burton (tantos maravilhosos que Ká
não consegue escolher um só), Peter Jackson (Lord Of The Rings), Woody
Allen (Midnight in Paris) são cineastas fodas que eu admito muito, muito
mesmo.
* Uma informação bem inútil, mas que eu gosto de compartilhar: Lennon foi o
nome do meu primeiro cachorro. Eu amo esse nome, e achei justo fazer a
“homenagem”. Mas o meu Lennon não era um labrador francês.
Capítulo 21 – The Blower’s Daughter
Capítulo 22 – Lithium
Tum. Tum. Tum.
Então todos os olhares estavam voltados para aquelas duas figuras que se
encaravam, tão opostas uma da outra. Greenfield com sua expressão louca,
suas mãos que tremiam junto com o lábio superior, os cabelos castanhos
limpos e penteados. Patrick e a frieza nos olhos verdes, a precisão e a coragem
nas mãos, seus cachos loiros bagunçados. Dois revolveres apontados um
contra o outro, prestes a disparar. Se fosse possível parar de respirar, então
todas as inalações e expirações seriam cortadas naquele cômodo. Era como
ouvir o cortante barulho do silêncio: doloroso e sem fim aparente. Até que a
voz de Lorenzo quebrou o padrão, um tom debochado que era tão típico dele.
- Mentir é feio, criança – estreitou os olhos, como se procurasse enxergá-lo
com mais nitidez – Mas confesso que estou surpreso. É um blefe muito bem
pensado. Meus parabéns... Me desculpe, acho que estamos em desvantagem.
Você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.
- Seria muito melhor mesmo se fosse um blefe, Greenfield – Patrick
resmungou, convicção estampada em seu rosto. – Principalmente para você.
Infelizmente, não passa da mais pura verdade.
- Nome – o homem apontou a arma com mais força, a voz elevada, quase
enlouquecida – Eu perguntei pelo nome.
- Manson. Oficial Manson.
- Então, oficial Manson – Lorenzo caminhava tranquilamente na direção
de Karina, acariciando seus cabelos, o que despertou um gemido de agonia do
fundo da garganta de Esma. Ele parecia não se importar com o revólver de
Patrick apontado em sua direção. – Pode me dizer como chegou a esta
adorável reunião?
-Eu estava lá. Na boate. Você não foi exatamente discreto.
- Acredito que você esteja de olho nos meus passos há algum tempo, estou
errado?
- Não só nos seus, mas nos daquele ali também – apontou Harry, que parecia
um tanto chocado, com a cabeça – Vocês realmente acharam que poderiam
fazer todas as merdas que fizeram sem despertar a atenção da polícia? Quanta
ingenuidade para um homem como você.
- Muita, realmente – Greenfield parecia considerar, o revólver apontando para
o próprio queixo – Mas quem aqui é mais ingênuo, oficial? Eu, ou um
policialzinho solitário como você? Patrick deu de ombros, um pequeno sorriso
se formando em seus lábios, como se tramasse alguma coisa por debaixo dos
panos. Seus olhos verdes agora se fixavam em Karina, perdida em tamanha
confusão. Preocupava-se tanto com ela... Vê-la sofrendo o fazia sofrer
também. Assim era o amor. Um canal, uma via de mão dupla. A dor de Karina
era sua dor. Infelizmente, o mesmo não acontecia com o seu amor.
- Você está tentando ganhar tempo – Lorenzo sussurrava, mais para si do que
para os outros – Tem reforços a caminho, não tem?
- Não só reforços – o sorriso agora crescia, como se aquela fosse sua carta na
manga – metade da cidade está vindo para cá. Você não pode sequestrar o
filho do pastor Styles e a filha dos Dawson e esperar que não haja uma reação
furiosa. Em poucos minutos esse lugar vai estar lotado de pessoas curiosas.
Quer um espetáculo, Lorenzo? Bom, você o terá. Só não espere sair ileso
dessa vez.
- Presumo então que é hora de agilizarmos nossos negócios – agarrou os
cabelos de Karina com força, apontando o revólver diretamente para sua
cabeça, arrancando gritos de Esma e Richard. Harry parecia concentrado
demais... – Presley, Miller, lá pra fora. Deem um jeito de atrasar as estradas.
Esses dois – apontou os Dawson com a cabeça – não vão nos causar
problemas agora. Vão, vão.
E então tudo começou a passar mais devagar quando os dois homens deixaram
o lugar. Karina sentia dor em sua cabeça, mas tudo parecia meio conturbado
em sua mente. Patrick continuava com a arma apontada para Greenfield, e a
ideia dele ser um policial de verdade beirava o surrealismo. Seus pais estavam
ao seu lado, falando palavras que ela não compreendia, como se implorassem
por alguma coisa que não poderia ser mudada. Será que pediam por sua vida?
Não deveriam fazer isso. Já estava conformada. Seria tão mais simples, tão
melhor para todo mundo se ela deixasse aquele mundo. Por que eles se
colocavam em risco por algo que não valia a pena? Vão embora, ela gostaria
de dizer. Mas suas cordas vocais pareciam tê-la abandonado, recusando-se a
funcionar. Então ela olhou para Harry. Seus olhos verdes pareciam vidrados,
sem vida, os lábios apertados como se toda energia estivesse sendo sugada
para fora de seu corpo. Estaria o filho do pastor tentando lutar também? A
garota não queria que ele o fizesse. Suor escorria de seu rosto, o cheiro de
sangue seco a incomodava. Quando aqueles olhos verdes que um dia a
hipnotizaram encontraram os azuis agora quase opacos, o choro quase
escorregou de sua garganta. Seus lábios formaram quatro palavras, sem emitir
som algum.
Primeiro três. Eu. Te. Amo.
A quarta seguiu, alguns longos segundos depois. Era uma palavra
simples. Harry.
Agora poderia morrer em paz.
Harry viu. Balançou a cabeça, piscando longamente os olhos em sinal de
entendimento. Queria dizer algumas coisas, queria tranquilizá-la, mas não
havia tempo. O que estava fazendo era mais urgente, mais importante. Restava
somente um nó, um nó simples, mas que parecia milhões de vezes mais
complicado de desfazer após aquela cena que havia derretido seu cérebro. Ela
estava desistindo. Fazendo daquelas quatro suas últimas palavras.
Ele não permitiria.
Ignorava a conversa boba e sem sentido que Greenfield mantinha com os
outros restantes na sala. Focava-se somente nela, nela e no pequeno nó em seu
pulso. Puxou de um lado, de outro, ignorando a dor que sentia. Os anos que
fora obrigado a ser escoteiro serviram para alguma coisa, afinal. Com um
último puxão forte, sentiu a corda ceder em seus pulsos. Estava livre.
E o pandemônio havia começado.
Sirenes ecoavam na escuridão, o burburinho de carros e pessoas se
aproximando cada vez mais do antigo posto de gasolina abandonado. Harry
ouviu com clareza a voz de sua mãe chamando aos gritos por seu nome, e
então haviam muitas outras se juntando a dela, clamando por todos que
estavam lá dentro.
- Vocês viram? Viram o que fizeram? – Greenfield gritava, ensandecido, um
dos braços ao redor do pescoço fino de Karina, que não esboçava reação
alguma – Agora a menininha vai morrer, pobrezinha. O quão triste vai ser ver
esse lindo rostinho todo marcado por balas? – ele desenhava o contorno do
rosto dela com o revólver, os olhos sempre grudados nos Dawson – Me diga,
Esma. Meu amor. Perder outra filha, o quanto você vai sofrer? Eu DUVIDO
do que mais do que eu sofri quando perdi TUDO que eu tinha. – Seu maxilar
tremia, lágrimas escorrendo por suas bochechas, olhos denegrido pela raiva –
Por que, meu amor? Por que você me deixou? Por que parou de me amar? Eu
não era digno? Eu não te amei o bastante?
- Lorenzo... Por favor... Minha Karina, minha menina não... Pela Ágatha...
- NÃO OUSE TOCAR NO NOME DELA, ESMA. NÃO OUSE. Quando foi
você que a deixou morrer. Pra salvar a vida dessa bastarda. Você matou nossa
filha, Esma... Matou a única coisa que eu ainda tinha...
Harry sentiu a textura do papel em suas mãos. Finalmente havia conseguido
alcançar o pequeno pacote embaixo da cama, aproveitando a distração criada
pelo drama que ocorria ali. Uma ideia havia surgido em sua mente um tanto
perturbada, uma ideia que tanto poderia dar muito certo ou muito errado. Ele
torcia pela primeira opção.
Com o metal frio do revólver prateado em mãos, Harry Styles rolou pelo chão
sujo, colocando-se em pé sem maiores dificuldades.
Dois contra um.
- Mas que merda...?
- Regra número um do sequestro, Greenfield – sua voz soava estranha, meio
abafada, meio enrolada. Mas era alta e clara – Nunca amarre um escoteiro.
Regra número dois: Certifique-se de ter pleno controle sobre o seu cativeiro.
Agora, com calma, solte Karina – seu revólver mantinha a mesma direção da
de Patrick, que o observava com certa confusão no olhar – Agora.
- Se eu atirar, vocês atiram – Sua sobrancelha se ergueu, em falsa surpresa.
Beijando a testa da garota em seus braços, ele soltou – Parece que vamos
morrer juntos, meu bem.
O choro de Esma era o único som do lugar, e pareceu apenas aumentar no
passo seguinte.
- Não, Lorenzo. Se você atirar – Harry virava-se lentamente para a mulher ao
seu lado, encostando o cano do revólver em seus cabelos ruivos – Eu atiro
também.
- Esse é seu joguinho, então?- Ele ria, mas havia nervosismo demais em sua
voz, quase como se a própria ameaçasse sumir a qualquer momento – A mãe e
a filha? Bem pensado, criança, bem pensado. Mas você não teria coragem. É
só um garotinho assustado. Um garotinho perdido e com medo de perder a
primeira paixão.
- Pague pra ver.
Os minutos arrastavam-se, a tensão no ar. Esma já não chorava, Rick
mantinha-se em silêncio. Lorenzo Greenfield parecia pesar as alternativas,
resolver o que fazer a seguir.
Até que um movimento mudou tudo.
Pela primeira vez, Patrick parecia concordar com a estratégia de Harry. -
Abaixem essas armas – Era difícil identificar se aquilo era um pedido ou uma
ordem direta. Todo o corpo dele parecia tremer, como se o medo finalmente
tomasse conta de seus movimentos – Vocês não ousariam. Não teriam essa
coragem.
- Deixe Karina ir, e Esma não sofrerá. Pelo seu amor por ela, pelo amor que
tinha por Ágatha. Deixe Karina ir, Greenfield – Patrick tentava negociar, mas
a atitude de Harry era mais intensa. Apertar mais o revólver contra o crânio da
mulher, se mostrar mais agressivo. Sem um pingo de hesitação.
- Não...
- Agora.
- Não ousem...
- AGORA.
O homem abaixou a arma, no exato instante em que uma única lágrima,
grande e pesada, escorreu pelo rosto pálido da mulher, manchando suas
bochechas. Greenfield ainda a amava. Depois de todos esses anos, ele ainda
amava a mulher que o deixara, o trocara por seu melhor amigo.
Depois de ver o melhor e o pior de uma pessoa, é difícil deixá-la ir. O amor
era assim. Capaz de todo tipo de milagre.
- Isso... Isso. Desamarre-a. – o filho do pastor não precisou dizer duas vezes.
Não foram necessários mais de três minutos para que Karina estivesse livre,
os braços pendendo ao lado do corpo, os olhos azuis quase fechando-se num
misto de dor, cansaço e fraqueza. Rick ofereceu-lhe a mão, puxando a filha
para os braços assim que a mesma conseguiu dar dois passos firmes, mas um
tanto perdidos. O homem que parecia tão centrado agora chorava baixinho,
pedindo perdão a menina que tanto amava.
Quando Harry e Patrick voltaram sua atenção novamente para aquele em sua
frente, Esma foi ao seu encontro, colocando-a em seu colo, prometendo que
tudo ficaria bem. Greenfield assistia aquela cena aos prantos, de joelhos ao
lado da cadeira de ferro. Rick levantou-se, parando ao lado daqueles que
tentavam os defender.
- Nós te perdoamos, Lorenzo. Por tudo. Nós te perdoamos.
Foram as palavras erradas a se dizer.
Foi um milésimo de segundo, talvez menos.
Quando Greenfield disparou, acertando Rick de raspão no braço direito, uma
outra arma disparou também.
Diretamente no coração.
Morto. Lorenzo Greenfield estava morto.
E fora Harry Styles aquele que o matara.
Meia hora, talvez uma. Ele não sabia ao certo quanto tempo havia se passado
desde que apertara o gatilho. Pessoas iam e viam, levando a família Dawson
para fora do posto de gasolina, cercando o local, recolhendo o corpo que agora
jazia largado em um canto. Harry permanecia ali. Esperando o seu destino,
sabendo que não sairia impune. Talvez não pela morte do homem responsável
por aquilo tudo. Mas por todos seus outros crimes. Crimes que pareciam
coisas tão inofensivas, coisas simples e bobas. Que o levariam para a cadeia.
Patrick dissera. O maldito Patrick Manson lhe garantira uma cela especial na
delegacia.
Talvez o pior fosse não saber como ela estava. Sua Karina. Aqueles
momentos quando ela achava que morreria continuavam grudados na sua
mente. Eu te amo, Harry.
Continuaria amando depois do susto passado, da vida recuperada? Não sabia
dizer. Só queria que aquela noite terminasse logo, que pudesse pular para a
próxima parte, como nos filmes. Mas a vida não funciona assim. Você precisa
estar presente em cada momento, ouvir cada palavra, e então receber sua
pena.
Harry sabia que teria mais de uma.
A da justiça. A de seus pais. A da sociedade. A de Karina.
Qual delas seria pior, porém, não estava em seu conhecimento.
Não houve tempo para uma resposta. Patrick o guiou mais para frente, abrindo
caminho entre a multidão embasbacada. Mas então Harry a viu. Sentada
quietinha em uma toalha de piquenique, no colo de Louis Kallister, uma
xícara de café em suas mãos. Seu rosto agora estava limpo, mas as olheiras
sob seus olhos denunciavam tudo aquilo pelo que ela havia passado. Era agora
ou nunca. Caminhando em sua direção, ele não se importava com os gritos de
Patrick, ou os outros policiais que se juntaram a ele. Tudo que importava era
ela. Sua Karina.
Jogou-se a sua frente, os joelhos doendo pela queda, os olhos azuis na linha
reta dos dele. Pode sentir a movimentação ao seu redor. Damian, Esma, até
mesmo Louis. Que fossem todos para o inferno. Ele só precisava de um
segundo. Um segundo.
- Karina – sussurrou, de modo que só os dois pudessem ouvir. Queria tanto
tocar seu rosto, tê-la em seus braços... Concentrou-se nas palavras que
precisava dizer – Nada importa, me ouviu bem? Nada disso. Eu só preciso que
você não esqueça de uma coisa. Por favor, se lembre disso mais tarde, lembre-
se de mim. Não me esqueça, Karina. E principalmente, não esqueça que
eu amo você. Eu te amo, Karina Dawson. Eu amovocê.
Então foi arrancado dali por braços fortes, talvez os de algum policial, com
Esma gritando insanidades em seu ouvido. Não ouviu nenhuma delas. Só
prestava atenção no rosto de sua garota, em seus olhos castanhos e confusos.
Carregado até uma viatura, aquela era sua última lembrança do posto de
gasolina.
Os olhos cheios de lágrimas de Karina Dawson.
O lugar era gelado, mesmo que não houvesse brisa nenhuma, janela alguma
aberta. O cheiro parecia uma interminável mistura de fumaça e produtos de
limpeza, ainda que o chão estivesse aparentemente sujo. As paredes de um
gasto concreto cinza eram duras e rabiscadas, nomes e datas que há muito já
haviam passado. Por entre barras e mais barras de ferro negro, toda a vista
revelada não passava de um quadro de camurça verde e um pedaço do
escritório amarrotado de mesas e luminárias, agitado na corrida dos últimos
acontecimentos. Havia uma cafeteira em um ponto leste, o que fazia as bocas
dos detentos salivarem descaradamente, sedentos por algo que não fosse a
água quente e estranha que lhes serviram mais cedo. Observando toda a
situação, afinal qual era o pior castigo para um passarinho? Ter suas asas
cortadas sem dó ou piedade na infância, para que ele não pudesse voar para
longe, ou estar trancafiado em uma gaiola por ter se distanciado
demais? Harry era a prova viva de que era possível sobreviver a ambos.
Estava ali, afogado em pensamentos e dúvidas, os cotovelos doloridos pelo
atrito com as barras que formavam sua cela, os braços cruzados do lado de
fora, como se observar um único pedaço de seu corpo do outro lado daquele
lugar o fizesse chegar mais perto da liberdade. Uma ideia ridícula, mas que o
poupava de outras ideias macabras e desnecessárias. As horas se passavam,
uma a uma, enlouquecendo-o um pouco mais a cada passagem sorrateira do
tempo. Duas, três, ele não saberia dizer. Lembrava-se de sua chegada
tumultuada, vários policiais e civis o acompanhando na entrada da pequena
delegacia, curiosos, talvez até mesmo divertidos pela situação. Quem diria,
não é? Harry Styles preso. O assunto seria comentado por toda a semana,
talvez até pelo resto do mês. Qual fofoca mais quente, mais emocionante do
que aquela? O garoto ria, sem humor algum. Virara entretenimento barato de
banca de revista para os idiotas daquela cidade. Depois vieram todas as
acusações perante o delegado, todos os crimes que diziam que ele havia
cometido, uma pequena lista digna de orgulhar criminosos profissionais. Não
proferiu uma palavra sequer, não pode medo de encrencar-se ainda mais, mas
por saber que cada uma daquelas que ouviu não passava da mais pura verdade.
Então fora trancafiado ali, naquela cela suja e gasta, uma pequena cama sem
travesseiros ou lençóis no lado direito, junto a parede, e o resto era puro
espaço. Vestindo o uniforme do local, uma camiseta branca e simples, assim
como os tênis limpos e calças de moletom negro compridas. Seus cabelos
eram uma pura confusão de fios, olheiras profundas sob seus olhos verdes e a
boca seca, mesmo após os goles de água que se sentira obrigado a beber.
Não era o único ali naquela noite. Sabia que na cela ao lado haviam alguns de
seus companheiros fiéis, que caíram no exato momento em que ele caiu. John,
Gustav e Sebastian conversavam num tom baixo, fazendo especulações ou
simplesmente gastando saliva para acabar com o tédio. Megara dormia num
canto, depois de ter ouvido coisas que não queria do próprio Styles. Atrevida
demais por tentar fazer piada com a vida deHarry, acabou magoada,
exatamente como sempre terminava. Viúva antes mesmo de subir ao altar,
fadada as grades eternamente. O que seriam todos eles? Culpados de deixar o
mundo um ou dois tons mais escuros, ou vítimas de uma sociedade que não os
deu outras escolhas? Talvez um pouco de cada, talvez nada daquilo. Eram
prisioneiros a espera de seu julgamento, de um ponto final naquela história
que os havia destruído até a alma.
Mas de todas as questões, todos os medos e as desconfianças, de todos os
perigos e as dores que viriam a seguir, a única que lhe preocupava realmente
era uma garota.
Não qualquer garota.
Karina.
Sua Karina.
(Desmontando os quebra-cabeças)
A cozinha da mansão dos Styles era grande, bem iluminada por luzes
fluorescentes. O branco predominava, dos azulejos nas paredes e no chão até
os muitos balcões e aéreos, o tom prateado dos eletrodomésticos dando a
impressão de um abrigo glacial em plena cidade. Uma chaleira fervia água no
fogão industrial, e a movimentação em volta do grande balcão central de
mármore era tranquila, considerando o quão insana fora poucas horas antes.
Angelina estava sentada em um dos altos bancos de madeira, os braços
apoiados no material frio. Estava cansada, preocupada com Harry, olheiras
fundas sob seus olhos, mas se recusava a dormir. Queria esperar a volta de
seus pais e suas notícias, o coração inquieto na caixa torácica. Rodrigo
cochilava tranquilamente no sofá da sala, e era estranho vê-lo em sua casa.
Guardaram o namoro por tanto tempo, um segredo tão grande que parecia tão
inferior perto de tudo que havia sido descoberto naquela noite. Quando ele
apareceu após a notícia estourar na cidade, seus pais não entenderam
realmente o que o homem fazia ali. Mas só um cego não enxergaria. Não
conseguiram esboçar nenhuma reação, e nem poderiam. Tantas bombas
jogadas em sua cabeça repentinamente. A homossexualidade de Damian, os
crimes de Harry. O namoro da caçula era só mais um detalhe na grande
confusão que aquela família enfrentava.
Damian estava de pé ao lado do fogão, enchendo duas xícaras altas com café
forte, o olhar meio perdido no horizonte. Havia sido uma noite longa demais.
A correria e a loucura após a ligação de Patrick esgotou todas as suas forças.
Não sabia qual revelação fora mais difícil, contar para os Dawson
sobre Karina e Harry, ou precisar explicar para os Styles porque estava de
mãos dadas com Louis. Em meio à confusão do sequestro, as reações de
Angel e Philip foram meio vagas, como se eles não tivessem entendido
realmente no que consistia a relação dos dois. O garoto não se importava. Não
precisou da aprovação de ambos antes, não precisaria agora. Misturando o
líquido mais uma vez, voltou ao centro para sentar-se com a irmã, depositando
uma das xícaras a sua frente. O pastor havia pedido que ele tomasse conta de
Angelina, mas mesmo que não tivesse, Damian não a abandonaria agora,
quando estava tão transtornada e infeliz. Não a única pessoa que fez a sua
estadia naquela casa um pouco mais suportável. Louis assistia TV quietinho,
embora não prestasse realmente atenção no programa. Estava apenas tentando
deixar a mente livre, descansada, o que não era exatamente uma tarefa fácil.
- Obrigada – a garota sussurrou, tomando um longo gole do café ainda quente
demais. O silêncio estendeu-se por alguns segundos, antes que ela
perguntasse, uma ruga entre suas sobrancelhas – Você acha que ele está bem?
- Você sabe o que eu penso sobre isso, Angs. – massageou as têmporas,
tentando não soar rude – Não é questão de estar bem ou não. Ele merece tudo
isso. Está pagando pelo que fez.
- Eu sei, só que... A prisão é um lugar horrível, não é?
- Acredite em mim quando digo que Harry já esteve em lugares piores.
- Dam, eu amo você, mas também o amo. Me mata ver que até hoje vocês dois
não conseguiram resolver as desavenças – ela choramingou, os olhos grandes
molhados por lágrimas – Mas que merda, vocês são irmãos!
- Meio-irmãos...
-E daí? Nós também somos, e você nunca pareceu se importar com isso! –
esbravejou, realmente irritada com a situação – Chegou a hora de parar com
essa picuinha infantil.
- Harry fez da minha vida um inferno, Angelina. Não só quando eu morava
aqui, mas depois também – Damian finalmente desabafou, lembrando-se de
tudo que havia ouvido, sentido e sofrido por culpa do garoto – Foram noites e
mais noites de ofensas, de mandar os capangas atrás de mim só pra ver a
minha humilhação completa. Imagine se soubesse de Louis? O que ele não
faria contra nós dois? Monstro, Angs. Ele é um monstro.
- Você precisa entender, Damian. Harry é uma criança perdida. Ele parece ser
um homem que sabe de tudo, um homem totalmente sem sentimentos. Mas ele
sente. Ele se apaixonou perdidamente, ele perdeu a cabeça, toda noite. A alma
dele, ela não é negra. A alma dele é só uma confusão de cores. - Angelina
ponderava, a cabeça apoiada em um dos punhos, todo o cansaço do dia
presente em seus olhos cinzas - Harry é uma criança, uma criança num corpo
de homem. Uma criança que a vida maltratou, uma criança que tudo que
possuía eram regras, e que não viu outra saída a não ser aquela que escolheu
erroneamente. Harry é uma criança cujo o único desejo na vida é ser
compreendido.
- Então parece que descobrimos quem precisa crescer, não é? – o garoto
resmungou baixinho, escondendo-se entre seus braços, cansado de pensar –
Eu só queria que tudo isso passasse, mas ainda tem tanto por vir... Philip disse
que quer me assumir, oficialmente. Tenho Styles no sobrenome desde que
nasci, mas agora ele quer que a cidade toda saiba. Que sou filho dele. Isso não
vai ser bom. As coisas estão desmoronando, e tudo vai recair sobre ele. Eu
também queria tanto poupar Louis das dificuldades, das piadas e da
repreensão, mas toda vez que eu tento parece que eu só falho, mais e mais. Por
que as pessoas pressionam tanto a família dele? A... nossa família? Por que
somos tão diferentes dos outros?
- Mas é quem somos, não é? É a nossa sina. Nunca seremos Harry, Damian e
Angelina. Seremos ‘os filhos do pastor’. Ninguém nos vê como indivíduos,
somos um conjunto. Somos a imagem de nosso pai. Mas é injusto, não é? Não
ter a chance de mostrar que há muito mais do que o sobrenome que
carregamos ou o sangue que corre em nossas veias. Coisas que nossos pais
fizeram nos definiram para a eternidade. É enlouquecedor, desesperador. É a
vida inteira em uma prisão psicológica. É ver o mundo e não poder fazer parte
dele, só por termos nascido. – ela riu, sem qualquer traço de humor presente
em sua voz – Isso me faz compreender o nosso irmão. Não aceitar tudo que
ele fez. Harry errou demais, fez muita merda. Mas ele continua a ser nosso
irmão. Nós somos uma família, apesar de tudo. Uma família fodida, mas uma
família.
Damian tentou formular alguma resposta, algum argumento contra aquele que
a irmã apresentara, mas a chegada de Louis na cozinha o impediu de concluir
os pensamentos. Estava esgotado. Tudo que queria era ir para sua verdadeira
casa, tomar um banho e dormir ao lado do namorado, pela noite toda, tentando
esquecer qualquer tipo de medo que o assolava. Como se adivinhasse, Louis
postou-se atrás dele, massageando seus ombros com força, fazendo com que
as pálpebras do garoto despencassem sem sua autorização. Ficaram assim, os
três em silêncio, observando o nada e bebendo café. Angelina suspirou
pesadamente antes de sorrir, olhando para o casal a sua frente.
- O casamento vai acontecer no sábado, de qualquer jeito?
- É claro que sim – Damian riu, entrelaçando as mãos com as do noivo quando
ele lhe abraçou pelo pescoço – Não importa o que eles digam, o que ninguém
diga.
- Damian não vai conseguir fugir de mim tão fácil, Angs – beijou os cabelos
negros do outro, apertando-o com mais força contra si – Você vai estar no
cartório, não vai? Pode não ser um casamento tradicional, mas ainda
precisamos de uma dama de honra.
- Podem contar com a minha presença – foi a primeira vez que seu rosto
realmente se iluminou, voltando a ter um pouco de vida – Minha e do
Rodrigo.
- Você acha que seus pais vão lidar bem com isso? – seu cunhado perguntou,
um tanto incerto. - Vão precisar aceitar, se não quiserem uma revolta tão
grande quanto a que estão enfrentando agora. Além disso, Rodrigo não é mais
meu professor. Pediu demissão na semana passada. Vai trabalhar no colégio
particular que fica alguns quilômetros daqui.
- Ainda assim, não vai ser fácil...
- Eu sei. Só não quero analisar isso agora.
O barulho de uma porta se abrindo e saltos altos batendo no chão os despertou
para a realidade que agora precisavam enfrentar. Ouviram Philip e Angel
conversarem rapidamente com Rodrigo, lhe pedindo para lhes deixar
sozinhos, ao menos naquela noite. Conversariam num outro dia, tentariam
esclarecer as coisas. Pelo segundo barulho de portas batendo, chegaram à
conclusão de que o homem havia aceitado, o que fez Angelina soltar um
muxoxo de desgosto. Lentamente, os três se dirigiram a sala, enxergando
somente a barra do sobretudo roxo da matriarca balançando enquanto ela
subia as escadas as pressas, provavelmente chorando. O pastor foi o único a
permanecer ali, e nunca antes parecera tão devastado. Tentou sorrir para eles,
mas em vão. Foi somente um esgar de lábios sem graça, frio e totalmente
vazio.
- Como ele está? – foi Angelina a primeira a falar, ansiosa por notícias do
irmão mais velho.
- Inteiro. Não quero falar sobre isso agora, querida. Podemos conversar
amanhã pela manhã? – não esperou a resposta, virando-se para Damian – Meu
filho, gostaria que passasse a noite conosco. Precisamos manter a família
unida, é o mais importante no momento. Seu quarto continua o mesmo,
exatamente do modo que você deixou. Se nos der licença, Louis, esses são
assuntos particulares. De família – fez menção de se juntar a esposa no
segundo andar, mas foi impedido pela voz do filho do meio.
- Philip... Pai. – ele chamou, segurando com força a mão do noivo – Não sei
se você compreendeu totalmente o que eu e Louis temos, o que nós somos.
Mas no sábado ele vai ser meu marido. Nós já dividimos um quarto, uma casa,
uma vida. Louis é a minha família também, e eu preciso que vocês
compreendam isso. Não peço que aceitem, que se forcem a conviver conosco.
Só que entendam e não tentem mudar o que temos. É impossível.
O pastor Philip nada disse, talvez porque lhe faltassem palavras ou
argumentos. Somente concordou com a cabeça, voltando a subir as escadas,
deixando-os para trás.
- Damian, você não precisava... –Louis começou, tentando se soltar com
delicadeza.
- Precisava. Ele precisa entender, de uma vez por todas, meu amor. Quanto
antes, melhor.
- Vou pegar lençóis e travesseiros limpos pra vocês – Angelina sussurrou,
antes de sair em direção ao grande armário que eles mantinham no andar
debaixo.
Sozinhos, Damian deixou que o outro lhe abraçasse com força, somente para
esconder o rosto na curva perfumada do pescoço do noivo. Ali, ele se sentia
seguro. Ali, nada o destruiria, nada os alcançaria. Fechando os olhos com
força, desejou que pudesse permanecer nos braços do amado para sempre. Seu
pequeno paraíso em meio a destruição.
A brisa era agradável, quase um alívio para o calor que irradiava da pele. As
estrelas no céu nunca pareceram tão brilhantes, mas a lua havia sumido, sem
qualquer tipo de rastro aparente. Era madrugada, mas ninguém parecia se
importar com a hora tardia ou com a manhã seguinte. Havia movimentação na
grande casa amarela dos Dawson, um entrar e sair de familiares e policias,
sedentos por informações exclusivas, por novas perspectivas do crime e por
um pouquinho de atenção desnecessária. Algumas pessoas estavam
simplesmente alheias a tudo aquilo. No jardim frontal de grama verde e bem
aparada, havia um antigo banco de balançar de dois lugares, feito totalmente
de madeira e correntes de ferro. Ali, Karina descansava, a cabeça deitada no
ombro do homem sentado ao seu lado, abraçando seus joelhos com força,
vestindo um pijama comprido de flanela cor de creme. Patrick tinha um de
seus braços ao redor do corpo frio da garota, deixando que os dedos
passeassem com calma pela lateral de seu tronco. Exausta, tanto física quanto
emocionalmente, deliciava-se com os carinhos dele em seus longos
cabelos pretos, o que lhe permitia relaxar, ao menos que superficialmente.
Sentindo o perfume cítrico do amigo em sua jaqueta de policial, era uma
sensação boa. Ficar ali, quietinha em seu conforto. Gostaria que aquilo
pudesse continuar para sempre, mas não podia. Tinham coisas a esclarecer,
assuntos que precisavam ser resolvidos. Doía ter que ser a primeira a quebrar
o silêncio.
- Por que você não me contou antes, Pat?
- Eu... não podia. Eu quis, todas às vezes que nos encontramos. Mas era um
caso sigiloso, eu precisava manter a minha identidade em segredo, se não tudo
iria por água abaixo.
- Seu nome é mesmo Patrick? – ela perguntou um tanto manhosa, arrancando
uma risada sonora dele.
- É. Patrick August Manson. Não ria – a cutucou nas costelas, puxando-a para
mais perto – Tudo é a mesma coisa, tudo continua igual, Ká. Só que agora
você sabe como eu ganho a vida.
A garota assentiu, voltando a posição original, os dedos brincando
distraidamente com um pedaço de tecido mais próximo a ela. Havia ainda
mais uma pergunta, aquela que a incomodava desde o dia anterior na boate.
- Por que... como você se apaixonou por mim?
- Wow – Patrick endireitou-se no banco, como se aquele assunto fosse sério o
suficiente para deixar a postura relaxada de lado – Bom, eu não sei
exatamente como, ou quando. A primeira vez que te vi foi aquela noite na
Sonic. Aquela em que a gente se beijou, você lembra? Eu não sabia quem
você era, nem toda essa merda do Greenfield. Só estava investigando Harry,
tentando levá-lo pra cadeia pelos crimes que já tinha cometido. Mas ele
parecia interessado demais em você e bom, depois que você me beijou, eu
meio que entendi. Fiquei obcecado com aquilo, louco pra te ver de novo. Cada
soco que levei naquela noite valeu a pena – riu, mesmo que não fosse
engraçado – Já tinha feito amizade com Damian aquela altura do campeonato,
e ele me contou quem você era, e como o irmão dele te perseguia por todos os
lados. Resolvi ir atrás, investigar um pouquinho a sua família. Vi os antigos
registros e foi ai que me convenci de que só podia ser aquilo. Algo
relacionado ao seu passado. Passei a seguir vocês dois, de longe. E você...
você era tão incrível. Tão doce com os outros, tão cuidadosa. Mas era forte, ao
mesmo tempo. Sua personalidade reinava. Confesso que Louis e Damian
ajudaram nesse processo. Eles falavam muito, e muito bem sobre você. Sabia
que alguma coisa estava acontecendo comigo. Desenvolvi um instinto de
proteção forte demais com tudo que te envolvia. Me doía saber que você
poderia terminar machucada – tocou levemente o curativo no alto da cabeça
da garota, a lembrança da noite anterior – Nos encontramos de novo, nas
arquibancadas da sua escola. Outro beijo. Outra sensação que eu nunca soube,
e talvez nunca vá saber descrever. A partir daí, tudo tomou proporções
imensuráveis. Precisava cuidar de você, precisava te proteger. Sabia que
estava totalmente apaixonado. Ainda estou.
Karina ouviu tudo, seu pequeno coração aos pulos, disparado em alta
velocidade. Procurou os olhos cor de mel, tão claros e limpos, tantas verdades
escritas ali. Sua mente sabia o que deveria fazer, e pela primeira vez seus
sentimentos e emoções concordavam. Ela inclinou-se, puxando o rosto do
homem para mais perto do seu, sentindo a pele macia sob seus dedos, até
mesmo nos lugares onde uma barba rala começava a nascer, imperceptível aos
olhos. Encostou o nariz no dele, observando os olhos de Patrick fecharem-se
lentamente. Deixou que seus lábios se tocassem sem pressa, somente
pressionados uns nos outros. Quase se esquecera de como era boa aquela
sensação, tão simples e sem segundas intenções mascaradas. Quando ele a
beijou de fato, pedindo passagem entre os lábios rosados, Karina quase sorriu.
Os braços do homem estavam ao redor de sua cintura, puxando-a para seu
colo, com firmeza, mas ao mesmo tempo lhe dando a escolha de ir embora a
qualquer momento. Não iria. Gostava de ficar ali, sentindo-se segura, o beijo
doce e lento aquecendo cada pedacinho de seu corpo. Exploravam as bocas
um do outro como se não houvesse amanhã, e agora as mãos de Karina
passeavam pelos cachos de cabelo loiro e macio, trazendo-o cada vez mais
perto. Parecia tão bom, tão certo, e ao mesmo tempo tão errado. Como se
faltasse uma peça no quebra-cabeças. Mesmo que sua mente concordasse que
beijar Patrick daquele modo faria bem para ambas as almas, seu coração ainda
resmungava, lembrando-se de palavras que havia ouvido mais cedo, palavras
que poderiam ser somente mais mentiras. Tratou de afastar tudo aquilo,
focando-se no homem que agora lhe beijava cada pedacinho do rosto, a testa,
as bochechas, o queixo, a ponta do nariz. Somente para sorrir, um sorriso
lindo e iluminado, e beijá-la nos lábios mais uma vez. Deixou que tudo
recomeçasse, suas línguas numa brincadeira calma, as mãos dele plantadas na
base de suas costas. Tudo no lugar certo. Tudo no lugar errado. Quando ele
depositou um último beijo em seus lábios, ela abriu os olhos, observando-o
com certo carinho.
- Posso perguntar qual o motivo disso? – a voz de Patrick soava rouca, porém
satisfeita, baixinha.
- É o meu jeito de dizer “muito obrigada” – ela acariciava o lado do rosto dele
com a ponta dos dedos, gostando da expressão que ele fazia aos mínimos
toques – Por cuidar de mim todo esse tempo, mesmo a distância. Por se
preocupar, por me proteger. Por me amar. Eu não posso te prometer nada no
momento...
- Eu não quero que...
- Shh – silenciou-o, o dedo indicador sob seus lábios inchados – Me deixe
falar. Não posso prometer nada. Foram dias longos, intermináveis e
totalmente catastróficos. Eu te juro que estou fazendo o possível e o
impossível para não enlouquecer e desmoronar cada vez mais. Eu não aguento
mais chorar, Patrick. Minha cabeça é puro caos. Preciso de tempo, pra
organizar tudo, deixar as coisas no lugar. Você sabe que, apesar de tudo, eu
tenho um coração teimoso que infelizmente escolheu a pessoa errada. Ainda
não parei pra pensar em tudo que aconteceu. Hoje eu sinto muita raiva, muito
ódio e muito nojo dele. Mas e amanhã? O que via acontecer amanhã? – sua
garganta pareceu travar, as lágrimas ameaçando voltar – Se você puder me dar
esse tempo, se puder continuar comigo enquanto isso. Vou entender se não
quiser. Se precisar seguir adiante. Mas se quiser ficar, podemos descobrir
algumas coisas juntos.
- Não estou indo a lugar algum, Ká.
Ela pôde sorrir verdadeiramente pela primeira vez quando Patrick a abraçou
com força, escondendo o rosto entre seus cabelos. Pela primeira vez na vida,
queria que alguma coisa funcionasse. Ainda precisava enfrentar conversas
longas, encontros perigosos, mas por enquanto, estava tudo bem. Ficaria tudo
bem.
- Karina? – Rick chamou, parado na soleira da porta. Havia um curativo onde
a bala havia pego de raspão, e o homem parecia fraco e absurdamente
cansado.
- Estou aqui – respondeu, demorando-se ao levantar, puxando Patrick consigo
– Já estou entrando.
- Ah, Oficial Manson. Não sabia que estava aqui – o homem o cumprimentou,
oferecendo uma das mãos.
- Agente Especial Manson – Karina corrigiu, cutucando-o com graça enquanto
ele apertava a mão de seu pai. Seu pai. A ideia ainda lhe dava arrepios.
- Eu ainda não aceitei a proposta, Ká – ele riu, explicando-se – Uma divisão
do FBI me fez um convite e, bom, é um cargo decente. O cargo que meu pai
costumava ocupar antes de morrer.
- Então o cumprimento da lei está no seu sangue?
- Acredito que sim – Sorriu, beijando a testa da garota rapidamente – Vocês
têm muito o que conversar. Vou deixá-los a sós. Boa noite. Qualquer coisa
que precisar, me ligue.
Ela assentiu, observando-o se afastar. Porém, antes que o homem chegasse ao
portão, Rick lhe chamou, fazendo com que virasse rapidamente.
- Não posso expressar com palavras o quanto estamos agradecidos por tudo
que fez conosco. Eu e minha esposa adoraríamos tê-lo como convidado de
honra em um jantar em nossa casa durante a semana.
- O prazer seria todo meu, senhor Dawson.
- Combinado então. Pedirei que lhe avisem o dia e a hora. Tenha uma boa
noite! – Virando-se para Karina, um tanto receoso, ele convidou – Vamos
entrar, querida?
Ela assentiu, mesmo que consternada. Ainda não havia superado o fato de que
a verdade sobre sua vida havia lhe sido escondida por tanto tempo, de modo
tão mesquinho e cruel. Rick e Esma eram seus pais, e sabiam disso por anos e
anos a fio, e ainda assim nunca lhe contaram. Entrou na casa na qual nunca se
sentiu inteiramente confortável, mas que afinal sempre fora sua. Esma estava
sentada em um dos grandes sofás, chorosa em seu pijama azul. Assim que a
viu, seus olhos verdes faiscaram, e cada vez mais lágrimas pareciam deslizar
sobre suas bochechas rosadas. A garota queria as explicações, e queria o mais
rápido possível. Ambos sabiam disso. Levando-a até a poltrona macia que lhe
pertencia, Rick pediu que se sentasse, ele mesmo sentando-se na mesa de
centro do local, bem a sua frente.
- Sabemos que temos muito a explicar, e que você quer saber de tudo, agora. –
começou, a voz tremendo levemente – Só lhe pedimos que não faça
julgamentos antecipados, que ouça de mente e coração abertos, meu bem. Não
existem pessoas no mundo que te amem mais do que a gente. E tudo que
fizemos até hoje foi para lhe proteger.
- A história que Greenfield te contou – Esma começou, aos soluços – Ela é
verdade. Sim, nós fomos casados. Ágatha era filha dele, e ele a matou. Você é
nossa filha, e foi sequestrada quando bebê. Nós sabíamos que era você o
tempo todo, desde o início. Mas ele distorceu várias partes, contou do jeito
que lhe fosse conveniente. Essa é a nossa versão, a verdadeira, e se você
escolher acreditar nela, nada no universo me faria mais feliz ou sossegaria
mais o meu coração. Mas cabe tudo a você. É tudo sobre você – limpando o
rosto, ela continuou – Meu casamento com Lorenzo foi uma confusão de altos
e baixos. Éramos felizes no começo, apaixonados como um casal jovem que
acabou de descobrir o mundo.Mas aos poucos, ele começou a mudar. Tornou-
se excessivamente ciumento e violento, proibindo-me de atos simples como
conversar, ou até mesmo olhar para outros homens. Ele sempre foi gentil, mas
estava começando a me sufocar. As coisas só pioraram quando engravidei de
Ágatha. Os primeiros sinais de distúrbios emocionais começaram a aparecer.
Era como se Lorenzo tivesse me trancado em uma redoma de vidro, como seu
troféu mais precioso. Nunca foi a vida que eu quis pra mim. Ele se tornava
cruel quando contrariado. Não vou mentir, ele me bateu algumas vezes,
mesmo grávida. Quando Ágatha nasceu, achei que fossemos conseguir nos
acertar, que tudo seria mais fácil. Que engano bobo – riu, nenhum humor na
voz. Lágrimas e mais lágrimas lhe escapavam – Nós nunca mais vimos a luz
do sol. Precisávamos viver para ele, em função dele. Era um inferno. Até Rick
aparecer – segurou a mão do marido com força, apoiando-se nele – Foi a
primeira visita em meses. Ele era tão gentil, tão doce e amável e tão solidário
com a nossa situação. Ágatha o adorava, e como eu não me apaixonaria
instantaneamente por esse homem? Era recíproco. Cada vez Richard me
visitava, mais e mais, e Lorenzo estava tão inerte em loucura que não se dava
conta. Foi aos poucos que saímos daquela casa, tentando alertar meu ex-
marido sobre nosso relacionamento. Ele fingia não ouvir, não perceber. Eu
ainda era sua propriedade, eu e nosso bebê. Mas ele viu quando eu finalmente
o deixei. Enlouqueceu por completo. Nos ameaçou de morte, nos perseguiu,
encurralou o máximo que pôde. Foi necessária uma ação judicial e a
intervenção de sua família para que ele nos deixasse em paz. O resto você já
sabe.
- Então voltamos para quase oito anos atrás. Havíamos acabado de nos mudar
para cá – Rick recomeçou, compreendendo que sua esposa não tinha mais
forças – Tentávamos reconstruir nossa vida, mesmo que nunca tivéssemos
parado as buscas por você. Era uma manhã de quinta-feira quando recebemos
as fotos e as indicações do Lar Redenção. Quando eu vi... Eu não conseguia
acreditar. Você era parecida com Ágatha, mas se parecia mais ainda comigo.
Os mesmos olhos. Exatamente iguais. O mesmo sorriso. Sabíamos que era
você. Corremos até lá, e foi tudo confirmado. Você não era nada além de
perfeita. A nossa menininha. Um exame de DNA mais tarde confirmou tudo
isso. Mas você era arisca, nada receptiva a nossas tentativas de nos
aproximarmos. Lembra-se da psicóloga que precisou frequentar? Foi ela que
nos sugeriu não contar. Esperar que você crescesse, que se adaptasse a nós
dois. Que nos amasse, um pouquinho que fosse. Então, quando você estivesse
pronta, poderíamos contar. Te abraçar de verdade, te chamar com todas as
letras de nossa filha. O medo de que você não nos compreendesse era muito
grande, ainda é. E se você não nos aceitasse, se a mágoa reinasse? Mas
precisávamos arriscar. Porque te perder de novo era muito mais dolorido do
que viver com uma mentira. – Nunca vira Rick chorar, mas naquele momento
ele o fazia – Você acabou descobrindo por outros meios, e isso não foi
correto. Nada foi correto. Mas nós só queríamos o seu bem. Perdemos tanto da
sua vida. Seus primeiros passos, suas primeiras palavras, toda a sua infância.
Ao menos uma vez, queríamos ser aqueles que te protegiam, um pouquinho
só. Ele silenciaram-se, olhando para ela, esperando uma reação. Mas Karina
não sabia como agir. Eram informações demais, muita coisa com a qual se
lidar. Acreditaria neles? Seria capaz de lhes perdoar? Ainda não sabia.
Precisava dormir, pesar com cuidado tudo que haviam lhe dito, se decidir com
cuidado. Limpou uma das lágrimas que lhe escaparam, colocando-se de pé
num pulo.
- Obrigada por me contarem – abraçou-se, olhando para o nada – Eu
precisava. Não consigo ter algo pra lhes dizer agora. Uma briga por não terem
me contado simplesmente me devastaria, mais e mais. Não tenho forças para
isso. Eu aprecio a preocupação, mas vocês continuam errados. Todos nós
estamos errados, de algum modo. Eu acho que só o tempo pode nos dar todas
as respostas que precisamos – subiu os primeiros degraus da escada, virando-
se lentamente – Por favor, me entendam, e me deem espaço. Tudo que eu
preciso é tempo e espaço. E uma boa noite de sono. – respirando fundo, soltou
as palavras com calma. – Pai. Mãe. Tenham uma boa noite.
E subiu, desligando as preocupações de sua mente. Seriam dias difíceis,
complicados e nebulosos. Decisivos. O que viria a seguir definiria o resto de
sua vida. Naquela madrugada, tudo que precisava era um pouquinho de paz,
um pouquinho de paciência. E um mundo dos sonhos, onde a ficção se
sobrepunha a realidade criando um universo onde era possível ser feliz, sem
que doesse. Felicidade era só uma parte do caminho, dificuldades não
existiam. O mundo dos sonhos era seu destino, afinal.
“Eu fiquei tão assustado, achei que ninguém poderia me salvar. Você veio e
me carregou como um bebê. De vez em quando as estrelas se alinham, garoto
e garoto* se conhecem pelo que foi destinado . Será possível que você e eu
somos os sortudos? Todo mundo me dizia que o amor era cego, então eu vi
seu rosto e você explodiu minha mente. Finalmente, eu e você somos os
sortudos dessa vez”
Naquele momento, Karina podia jurar que estava mais nervosa que os noivos.
Quando Patrick atingiu o último degrau, dois passos de distância, seu coração
estava aos pulos caóticos, irrefreáveis. Quando aquela distância foi vencida e
ela podia sentir seu perfume cítrico inebriá-la lentamente, só pôde rir. Céus,
como o cumprimentaria? Era tão estranho estar perto dele e não saber como
agir diante de outras pessoas. Mas ele sabia. Beijou-lhe a bochecha
rapidamente, sussurrando um “oi” com aqueles brilhantes olhos cor de mel. O
que mais poderia fazer, se não retribuir?
- Você está maravilhosa. Acho que poderia passar o dia inteiro te olhando, e
nunca me cansaria.
- Não seja bobo – sentiu-se corar, algo que fazia muito ultimamente – Você
precisa acender, não esqueça – apontou distraidamente para a pequena caixa
de vidro que trazia nas mãos, uma redonda vela branca em seu interior.
- Ah, claro! – Patrick parecia procurar algo nos bolsos internos de seu blazer,
logo encontrando o pequeno isqueiro de prata – Ainda não entendi o esquema
das velas.
- É para iluminar o caminho dos dois, segundo Angelina. Uma metáfora. –
controlou o riso, observando a chama tremeluzir no pavio alvo – Ela disse que
seria mais original e bonito do que todas nós carregando flores. Você
simplesmente não discute com Angelina.
- Eu sei. Ela é assustadora.
A música agora havia mudado, quase como se tivesse crescido, o som
tomando conta de todo o lugar. Patrick respirou fundo, oferecendo um braço
para Karina, e o sorriso em seu rosto era capaz de iluminar cada pedacinho
escuro e nefasto da vida da garota.
- Pronta, madame Dawson?
- Pronta, agente Manson. – aceitou-o, apertando-o delicadamente antes que
ambos se endireitassem, prontos para dar o primeiro passo em direção ao
altar.
A inquietação de Damian apenas cresceu após presenciar Patrick e Karina
sumirem pelas gigantescas portas de madeira. Agora era sua vez, e ser o
último a entrar em seu próprio casamento lhe dava nos nervos. Maldita hora
que fora escolher “par”. Esfregava as palmas das mãos uma na outra,
tentando encontrar um pouco de calma no ato. Tudo ficaria bem, tudo daria
certo. Esse era o seu mantra. Antes que pudesse chamar Angelina, sentiu uma
mão leve e delicada em um de seus ombros. Tinha medo de virar-se para
encarar quem quer que fosse. Aquilo não podia ser um bom sinal. Não àquela
altura do campeonato. Girando os calcanhares lentamente, o choque e a
surpresa tomaram conta de seu rosto.
Angel Styles o observava com todo o poder de seus maquiados olhos cinzas.
Usava um longo vestido azul escuro, pérolas brilhantes em seu pescoço e o
pequeno arranjo de flores de cerejeira preso nos curtos cabelos negros. Não
sorria, mas parecia calma e mergulhada em determinação. Uma das velas que
deveriam ser acesas estava em suas mãos, junto a alguma coisa que possuía
um brilho dourado reconhecível. Damian não conseguiu formar qualquer tipo
de frase coerente diante daquela situação tão esdrúxula.
- Antes que você possa fazer qualquer tipo de comentário, Damian, deixe-me
explicar os motivos da minha presença aqui está noite – o tom de sua voz era
surpreendentemente gentil, comparado à hostilidade que havia enfrentado a
vida toda – Não concordo com este casamento. Acho um absurdo, um pecado
sem proporções. Mas – ergueu um dedo, antes que ele rebatesse – Não estou
aqui para tentar impedir alguma coisa, ou para fazê-lo mudar de opinião.
Acredito que precisarei aprender a viver com você e essa... Bom, vou poupá-
lo de minhas crenças. Estou aqui como uma oferta de paz dentro de nossa
família. As coisas já estão difíceis o suficiente para que haja mais um
rompimento de risco. Estou aqui pelo meu marido e pelo filho que ele tanto
considera.
- E o que a leva a crer que eu aceitaria essa oferta, considerando todos esses
anos?
- Também estou aqui por isso – levantou uma das mãos na altura do rosto, e
agora era possível identificar o objeto. Era uma fina corrente dourada, um
crucifixo muito simples preso a ela.
- Mas... Mas...
- Sim. Era de Ellis, sua mãe. Eu estive no hospital, pouco antes de sua morte.
Ela me pediu que fosse até lá, e me pediu que estivesse aqui hoje e lhe
entregasse isso. – seu olhar parecia longe, perdido em lembranças – No dia do
seu casamento, Ellis queria que você presenteasse sua esposa com o colar que
um dia fora dela. Confesso que foi uma surpresa para mim, mas como poderia
eu negar esse pedido? Ela sempre quis que as coisas fossem diferentes para
você. Que se casasse, que tivesse uma família de verdade. Me pergunto o que
ela diria se o visse hoje.
- Provavelmente teria orgulho – as lágrimas escapavam, e ele não podia evitar
– Amaria Louis, porque ele me faz feliz.
- Provavelmente – respondeu, um pouco a contragosto – Peço então que me
deixe levá-lo até o altar. Por ela.
Damian só pôde concordar com um aceno de cabeça, enquanto sentia a textura
gelada do colar em suas mãos. Lembrava-se dele, de como a mãe nunca o
tirava do pescoço. Procurou-o em todos os lugares após sua morte, mas
imaginou que tivesse sido perdido durante o acidente. Todos esses anos
pensara que Angel lhe aceitava e tentava ser justa com ele apenas porque era
filho de seu marido. Naquele momento, descobrira que havia muito mais. Não
era necessária nenhuma outra palavra, nada para tentar convencê-lo. Chamou
Angelina, pedindo desculpas e dizendo que entrasse com Rodrigo. A garota
não pareceu ofendida, sussurrando que sempre soube que seria uma dama de
honra fantástica e sorrindo para a mãe, antes de sumir para dentro da igreja.
Acendendo a vela de Angel com um isqueiro que Patrick havia colocado em
seu bolso, ele lhe ofereceu um braço, e juntos subiram os longos degraus de
pedra até as imensas portas de madeira.
O lugar não estava nada menos do que fantástico. Um tapete cor de creme
cobria o corredor central, e somente a luz de centenas de velas redondas e
brancas espalhadas aleatoriamente pelos bancos de madeira iluminava o
caminho. Havia galhos repletos de flores de cerejeira espalhados por todos os
cantos, e imensos vasos de vidro cheios das mesmas flores. Somente os dois
primeiros bancos estavam ocupados, alguns amigos de Damian e primos
de Louis, os Dawson e os Kallister, e Angelina e Rodrigo. Havia uma bonita
mesa preparada no fundo, mas não era possível ver o que exatamente a
preenchia. O pastor Philip estava no altar, seu sempre presente terno negro
bem abotoado e um sorriso terno no rosto. Do lado esquerdo, Karina e Patrick
de braços dados, sorrindo como loucos e completamente emocionados.
Mas para Louis e Damian, não existia nada além um do outro. Louis esperava,
certa confusão no rosto ao ver Angel ali, mas o restante era pura glória.
Faltavam poucos passos, um ou dois, mas suas mãos já pareciam se procurar,
automaticamente. Quando se entrelaçaram, assim que a matriarca dos Styles
beijou a bochecha do enteado e se retirou para junto da filha, o mundo já
poderia explodir. Apertando a mão do noivo como se ele fosse o tesouro mais
precioso do universo, Damian sussurrou um ‘oi’ divertido para o garoto, que
respondeu do mesmo modo. Olhos nos olhos, estariam mentindo se dissessem
que prestaram atenção total as palavras do pastor, que eram bonitas, falando
sobre amor e sua várias formas, sobre o que os levara ali naquela noite, o que
os aguardaria a partir de agora. Prestavam mais atenção nos detalhes dos
rostos, na felicidade estampada nas pupilas, nos lábios erguidos em belos
sorrisos. Era isso que importava. Nada mais.
A hora dos votos chegara, e Damian anunciou, em sua voz tremulamente
animada:
- Nós decidimos pular essa parte, para o bem de todos e felicidade geral da
nação. – deu de ombros – Nenhum dos dois é bom com palavras sem cair no
choro, e preferimos manter nossa dignidade intacta até o final do casamento.
Muito obrigada.
- Decidiram isso no par ou ímpar, também? – Patrick perguntou, arrancando
ainda mais risos dos convidados.
- Me lembre de nunca mais convidar Patrick para nada, sim? – Louis
resmungou, mas a vontade de rir denunciava a falta de seriedade da situação.
- Bom, já que é assim, só nos resta passar para o próximo passo – o pastor
pigarreou, retomando a atenção – Louis Kallister, você aceita Damian O’Hare,
como seu legítimo esposo?
- Aceito.
- Damian O’Hare, você aceita Louis Kallister como seu legítimo esposo?
- Sem dúvidas – ao reparar na ruga que se formara entre as sobrancelhas do
noivo, emendou – Aceito, é claro.
Patrick apressou-se para a frente, procurando a caixinha com as alianças nos
bolsos internos do blazer, o que fez Louis bufar em descrença. Que tipo de
padrinho haviam arrumado? Mas logo os dois anéis dourados estavam à vista,
sendo encaixados delicadamente nos dedos certos de cada um.
- Então, pelo poder investido em mim, abençoo está união. Que Deus ilumine
seus caminhos, proteja sua casa e sua família, e que o amor que aqui hoje se
celebra, perdure para toda a eternidade. Não há maior dádiva do que essa,
maior oportunidade de mudar e de lembrar o verdadeiro propósito da vida.
Diante das dificuldades, dos percalços e das tentações que terão que enfrentar,
não se esqueçam de como se sentiram hoje, de quem aqui esteve com vocês, e
de porque estão nessa estrada. Não há nada mais belo e sagrado que o amor.
Não há nada mais puro que a confiança. Hoje, eu coloco a minha fé,
inabalável, em vocês – gesticulando rapidamente, acrescentou – Bom, vocês
podem se beijar.
E então bocas se chocaram, um beijo doce e tão apaixonado que arrancou
palmas da pequena plateia. Sussurravam juras de amor entre os lábios,
afundando-se um no outro até que alguém, provavelmente Patrick, lhes gritou
que arrumassem um quarto. Só fizeram rir, milhares de outros pequenos beijos
singelos, até que fosse necessária sua atenção junto ao juiz de paz. Assinaram
os documentos, junto a seus padrinhos, e então uma onda de abraços e
cumprimentos começou.
Não havia luxo ou uma grande festa, era possível contar os convidados nos
dedos, e Rick Dawson os fotografava, discretamente. Mas ainda assim, era o
dia mais incrível que poderiam imaginar. Contanto que tivessem um ao outro
e seus amigos, nada mais era necessário. A felicidade estava em coisas
simples, como flores de cerejeira e velas brancas, sorrisos nos lábios e apertos
de mãos.
As pessoas agora se espalhavam pelos bancos, mordendo docinhos adoráveis
vindos da mesa no fundo da igreja, e conversando baixinho. Damian tinha um
braço em volta da cintura do marido, enquanto ria de alguma discussão boba
entre Patrick e Angelina, Karina entretida por histórias do professor Rodrigo.
Mas os olhos de Louis estavam ao longe, um brilho que ele já conhecia
refletido atrás das portas de madeira. Não fazia mais de cinco minutos desde
que notara, e de início realmente achou que fosse uma ilusão, um truque
barato de sua mente estuporada de alegria. Mas não era. Sussurrou uma
desculpa qualquer para o pequeno grupo, tranquilizando o marido, para então
poder checar se suas suspeitas se confirmariam. Torcia de todas as maneiras
possíveis para que estivesse errado, ao menos daquela vez. Mas Louis não era
o tipo de pessoa que se enganava facilmente. Esgueirando-se para trás de uma
das portas, onde alguns bancos extras ficavam estocados. Como temia, ele
estava bem ali.
Harry Styles o observava com os opacos olhos verdes, sentando
desajeitadamente em uma cadeira simples de madeira. Os cabelos antes
sempre milimetricamente penteados agora eram desgrenhados e sem vida.
Usava jeans simples e uma camiseta branca lisa, tênis de corrida negros em
seus pés. Nunca parecera tão abatido e pálido, como se toda a vida antes
presente estivesse sendo roubada dele. Puxando uma cadeira, Louis sentou-se
ao seu lado, tentando não olhar para seu rosto.
- Mais alguém sabe que você está aqui?
- Não. Eu esperava que você também não soubesse – havia cansaço em sua
voz, mas a antiga arrogância continuava presente.
- Faz muito tempo? – Ignorou o comentário, tentando não se irritar.
- Desde um pouco antes de começarem a decorar a igreja.
O silêncio predominou, enquanto os dois assistiam as pessoas se
movimentarem na nave central, Patrick se agachando ao lado de Karina e
segurando suas mãos. Eles conversavam baixinho, rindo ocasionalmente e
parecendo adoráveis aos olhos dos outros. Pela expressão no rosto de Harry,
aquilo não o agradava nem um pouco.
- Aquilo – gesticulou para os dois – significa alguma coisa?
- Mesmo que eu soubesse, e eu não sei, não seria eu que te contaria –
suspirou, brincando com a nova aliança em sua mão – Está aqui por causa
dela, não é?
- Por você e seu marido é que não seria, Kallister – resmungou, e havia
negatividade no jeito que pronunciou a palavra – Ah, me perdoe. É O’Hare
agora, não? Pronto para viver embaixo da ponte?
- Escute-me bem, Styles. Só vim até aqui para me certificar de que você não
chegue perto de Damian. Ele não precisa de um peso morto como você
atrapalhando nosso casamento. - Já disse que não dou a mínima para vocês
dois. Boa sorte na nova vidinha patética. Aliás, não posso esquecer-me de
comentar que admito, fui muito burro ao não notar antes que vocês dois eram
menininhas. Estava na cara – a onda de raiva que percorreuLouis foi
inacreditável – Só estou aqui porque sabia que ela estaria. Essa merda –
cutucou a tornozeleira negra na perna esquerda com a ponta dos tênis – Não
me permite sair do quarteirão. Só queria vê-la, tentar falar com ela mais
tarde... Karina está linda. – sussurrou, mais para si do que para o outro.
- Está doente se ainda acredita que ela vai lhe perdoar depois de tudo. –
levantou-se, precisando sair dali antes que a tentação de acertar a cabeça do
garoto com uma cadeira fosse grande demais.
- É o que dizem. Oxigênio, água e esperança não se negam a ninguém. Nem
aos loucos, nem aos doentes, nem aos criminosos.
- Você se encaixa perfeitamente nas três categorias. Mas pode ir
embora, Styles. Se depender de mim, Karina nem vai saber que esteve aqui. –
afastou-se, sem ouvir a última frase do filho do pastor.
- Se você diz...
Damian não fez perguntas ao seu retorno. Somente o abraçou com força, antes
de colocar um delicado colar com um pendente crucifixo em seu pescoço.
Disse que era de sua mãe, e que ela gostaria que ele usasse. Não poderia se
sentir mais honrado. Deixou que seu marido o envolvesse, o contato com sua
pele quente e macia e seu perfume delicioso acalmando cada célula nervosa de
seu corpo. Beijaram-se, uma, duas, três vezes, antes que Patrick e Karina os
abraçassem para uma foto. Uma foto de sua pequena nova família, todos
felizes e sorridentes enquanto Rick disparava o flash. Uma memória perfeita
de um dia quase perfeito.
Não fossem as palmas vindas do final do corredor.
Harry aplaudiu a cena, seu melhor sorriso irônico no rosto, antes de deixar a
igreja com passos firmes, levando consigo o sorriso e a tranquilidade
de Karina Dawson.
* Lucky Ones é uma música maravilhosa da diva suprema, Lana Del Rey. O
trecho que abre esse capítulo também faz parte da canção. A frase original
seria “boy and girl meet by the great design”, mas devido as circunstâncias do
capítulo, resolvi mudar um pouquinho
- Você volta porque me ama, e porque sabe que eu amo você – continuou,
como se todo o seu monólogo não valesse nada, não mudasse tudo que ele
havia planejado – Porque sempre fomos imperfeitamente perfeitos um pro
outro, e sempre vamos ser. Você voltou porque sabe disso, e porque assim
como eu desaprendeu a viver longe – E então virou-se, finalmente lhe
encarando, os olhos verdes faiscando. Ela sempre fora bela. Agora, em seu
roupão de seda cor de creme, tão atípico, se fantasiava de um tipo de anjo.
Que pensamento horrível para se ter, algo vindo de um estúpido apaixonado. –
Você veio pra tentar de novo.
- Não. – balançou a cabeça, os braços cruzados na linha do peito, encarando-o
com força – Vim porque Angelina me implorou para que eu te ouvisse. Eu
não sei o que disse a ela, , mas foi mais uma de suas belas mentiras. Ela
parecia realmente convencida de que você não é um filho da puta desgraçado.
Vim para por um ponto final nessa história. Tenho certeza que perdi meu
tempo, meu sono e a companhia valiosa que estava comigo.
- Já colocou Manson na sua cama? – riu sem humor algum, e agora era ele
mergulhado em ódio – É claro que colocou. Toda aquela ceninha de
casalzinho no maldito casamento esta tarde, foi isso, não foi? Ele finalmente
conseguiu te levar pra cama. Meus parabéns, Dawson, parece que alguma
coisa você aprendeu comigo. Te conheci uma virgem reprimida e agora você
se transformou numa vadia de primeira. Eu chamo isso de progresso.
- O que faço ou deixo de fazer não é da sua conta. E não esqueça de que você
fez pior, Harry. Você dormiu comigo por um negócio. Me tratou como uma
prostituta – Karina se magoava fácil, e agora ele podia ver o brilho das
lágrimas se formando nos cantos de seus grandes olhos. Estava errando, por
ciúmes bobos e sem fundamentos, ciúmes de alguém que nunca poderia ser
para ela o que era o próprio Harry.
- Você sabe que não foi assim. Por favor, não use essa jogada- tentando
contornar a situação, emendou rapidamente – E sim, o que você faz ou deixa
de fazer, é da minha conta. Tudo relacionado a você me diz respeito, tem a ver
comigo, é do meu interesse.
- Por que, exatamente?
- Porque eu quero te beijar até que a lembrança dele saia da sua pele, por
completo, porque não consigo aguentar a ideia de que ele a tocou desse jeito.
– aproximou-se, segurando uma de suas mãos frias e macias, colando a testa
na dela de modo que aquela conexão de olhares tão deles, tão inquebrável, se
formasse, mais uma vez - Quero te colocar nos meus braços, e nunca mais
deixar você sair. Quero te olhar por horas e horas e horas, do amanhecer ao
entardecer. Quero poder te amar e não ser punido por isso. Quero meu nome
nos teus lábios e no teu coração. Quero você, Karina, e quero pra sempre.
O silêncio dela doía, a antecipação de uma resposta que poderia ser o início ou
o fim, um conjunto de palavras que mudaria ambas as vidas, para
sempre. Harry podia sentir sua respiração descompassada, seu perfume
característico, a confusão em seu rosto. Os lábios entreabertos lhe
convidavam, doces e plenos, mas o garoto sabia que não poderia beijá-los, ao
menos não naquele momento. Quando ela respondeu, porém, ele desejou que
o tivesse feito.
- Querer não é poder, Harry. Você já devia saber disso há muito, muito
tempo.
- Por que, se você quer a mesma coisa?
- Porque eu não consigo perdoar você! – as palavras saíram altas, e
explodiram aqueles últimos sentimentos restantes, toda a dor e toda a mágoa
que ela estava guardando. As lágrimas começaram a correr por seu rosto,
livres e pesadas, manchando a pele clara demais – Eu mal consigo olhar pra
você sem me lembrar de tudo que você me fez, o modo como me machucou.
Você não consegue entender isso? A minha vida está aos pedaços espalhados
por todos os cantos, e você sabia disso! – a irritação dela era verdadeira, o
modo como seu lábio superior tremia a cada nova descarga de energia, a cada
acusação totalmente bem fundada – Harry, não é o caso de uma pequena
mentira, de uma traição boba qualquer. É a minha vida inteira. Tudo não
passou de uma mentira, e você me tirou o direito de saber disso. Não consegue
entender a gravidade disso? O como eu me sinto sem saber pra onde ir?
- Então me deixe te ajudar a encontrar um caminho. Vamos fazer isso juntos,
porra. Qual é a dificuldade?
- Você ainda tem coragem de me fazer essa pergunta? Qual a
dificuldade? Como eu posso construir um castelo sobre areia
movediça, Harry? Como eu posso confiar numa pessoa que tudo que fez foi
mentir pra mim? – afastou-se, arfando – Nunca parou pra pensar que eu
poderia ter morrido? Greenfield ia me matar, de um jeito ou de outro. Você
estava ajudando um assassino. O meu assassino.
- Mas as coisas mudaram, Karina. Eu fiz o que pude pra te salvar. Eu me
apaixonei por você. De verdade. Mas que merda, você não entende a
proporção disso – o garoto gesticulava, doente por fazê-la compreender suas
palavras – Karina, eu nunca amei ninguém na vida. Não até encontrar você.
- Amor não é suficiente, Harry – ela suspirou, tentando sem sucesso limpar
suas muitas lágrimas – E como pode saber que o que sente é isso mesmo?
- Sabendo. Nunca estive tão certo de algo na vida. Eu não sei exatamente
como descrever isso. – deu de ombros, passando as mãos pelos cabelos - Se
for o Inferno, então que haja fogo. Que as chamas me devorem. Mas se for o
Paraíso, me afogo nele de bom grado. Você é meu Paraíso.
Ela riu, sem qualquer vestígio de humor em seu rosto, abraçando-se para
afastar o frio que o vento proporcionava. Jogando para cima dele aqueles
grandes e pesados olhos azuis, as palavras seguintes esmagaram o coração
de Harry, lentamente.
- Talvez você precise de um tempo no Purgatório.
- Não. Só preciso de você. É tudo que eu preciso. – aproximou-se lentamente,
sem tentar um novo contato físico, pela primeira vez o medo de ser rechaçado
tomando conta de Harry – Não precisamos achar uma solução agora, meu
bem. Nós precisamos dar tempo ao tempo. Dizem que o tempo cura tudo.
- Você vai, mas não é o final. Nós vamos nos encontrar de novo, e vamos
começar de novo, e terminar juntos. Não me interessa o que aconteça nesse
meio tempo. Esse beijo é um até logo, uma despedida breve – beijou-a
novamente, reforçando seu ponto – Você me entendeu bem? Eu amo
você, Karina. Até o final dos tempos, talvez depois disso – repetiu as palavras
dela na noite anterior – Mas para eu te deixar ir, eu preciso que você me jure
uma coisa. Somente uma. – ela acenou com a cabeça, dando a entender que
estava lhe escutando – Por favor, não se envolva com Manson. Não fique com
ele, por favor. Espere por mim. Por favor, espere por mim. É meu último
pedido.
Aquilo complicava tudo, toda sua situação com Patrick, tudo que enfrentaria
dali para a frente. Mas por que parecia tão certo aos seus ouvidos?
Porque por mais errado que fosse, era exatamente o que queria.
A nenhum outro. Somente a ele, no futuro.
Quando ele lhe beijou uma última vez, havia lágrimas em ambos os rostos.
- Agora vá, e não olhe para trás. Antes que eu mude de ideia – sussurrou, as
mãos firmes em seu rosto, limpando uma última lágrima teimosa que
escorria.
E ela o fez. Afastou-se dele, caminhando agora com facilidade entre a
multidão perplexa. Sem nunca olhar para trás.
Nove horas e quarenta e sete minutos. Era isso que o relógio de pulso
indicava, piscando em vermelho no seu braço direito. Muitas horas desde a
sua partida, muito tempo para a dor que ele carregava. Prometera a si
mesmo na noite anterior que uma vez na vida faria as coisas do jeito dela, que
jogaria o jogo pelas regras reais. Mas aquilo era absurdamente mais difícil
do que imaginava.
Harry estava sentando na varanda de sua casa, observando a grande
construção de pedras que era a igreja ao seu lado. Aquilo lhe dava nojo e
raiva, aquele prédio que significava tantas coisas erradas e partidas,
quebradas pelo tempo e destruídas pela alma. O ódio que havia desenvolvido
por aquela construção específica havia se tornado doentio.
Assim como a doentia necessidade e saudade que já sofria de sua Karina.
Porque ele sempre seria o equivocado Harry , com suas ações impensadas e
seus erros caros demais.
Ela precisaria entender porque ele não conseguiria manter sua promessa.
Quando a insanidade tomava conta de seu ser, não havia o que conseguisse
refrear.
Foi essa mesma insanidade que o fez levantar dali e ir até a garagem que seu
pai mantinha em casa, procurando em uma das prateleiras por um galão de
gasolina cheio que sabia que deveria estar por lá. Foi essa insanidade que o
fez pular a grade que separava casa de igreja, e que ao mesmo tempo não
separava exatamente nada. Foi essa insanidade que o fez molhar cada
centímetro de pedra possível com o líquido que continha naquele recipiente.
Depois de feito, acendeu um cigarro, levando aos lábios uma, duas, três
vezes.
Antes de deixá-lo cair, nada acidentalmente.
Em seguida, só haviam as chamas que lambiam o local, a fumaça que se
desprendia e se espalhava pelas árvores, um império que começava a ruir aos
poucos.
Mas não havia mais nenhum Harry para observar a cena.
A Harley Davidson vermelha continuava em seu esconderijo entre as árvores,
e lá ele se reuniu a sua pequena paixão material.
Juntos, eles desbravaram a cidade, mesmo que sua tornozeleira apitasse
enlouquecidamente. Juntos, eles foram atrás do que era dele.
Porque Harry simplesmente não estava pronto para dizer adeus.
E Harry simplesmente precisava daquilo que queria.
Harry seria sempre Harry .
Fim.
Epílogo
*Começamos com Lady Gaga, terminamos assim. É dela a canção título, Bad
Romance, um Romance Ruim
*E a misteriosa música que é PERFEITA para Holy Fool, é Pra Ser Sincero,
dos Engenheiros do Hawaii