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Rezar. Orar. Pedir, implorar.

Qual era o sentido de tudo aquilo, se no fim você


vai se ferrar de qualquer jeito? Levantar as mãos pro céus e pedir pela
salvação. Bem, se era assim, ela estava perdida. Hey AC/DC, onde fica a
Estrada para o Inferno mesmo? Por que entre pecados e virtudes, ela cometia
o maior de todos: amar profundamente um traidor. Traidor de tudo, de
todos. Um maldito traidor que no fim, conseguiria ir para o Paraíso.
Levantem seus copos, coloquem os óculos escuros, por que aqui começa o
Juízo Final. Entre vinganças e rock’n’roll, ela ficaria a beira da glória no
momento em que finalmente conseguisse aproveitar um único momento de
verdade. Ele havia destroçado seu coração em nome de um bem maior, e isso
teria um troco. Um preço alto a se pagar, mas o preço justo para a dor que
ela sofrera. O que vai acontecer depois, somente quem viver verá.

Capítulo Um – Cherrybomb
Os cabelos longos e os shorts curtos com meia-calça arrastão e All Stars
detonados passavam uma clara mensagem: encrenqueira. Caminhando pelos
corredores com seus fones de ouvidos e pose de rainha, Karina não era nada
do que as pessoas costumavam rotular. Encrenqueira, prostituta, vaca, mal-
amada. Karina era somente o reflexo de anos difíceis escondidos sobre quilos
de máscara para cílios preta.
Sua história, na verdade, era muito simples, muito clichê. A garota que
perdeu os pais aos 5 anos, foi adotada aos 8 e era incompreendida aos 17.
Uma história que você consegue encontrar em qualquer lugar. Mas, naquela
pequena, gelada e conservadora cidade, ela era uma rebelde. Uma rebelde
sem drogas, com boatos sobre sexo e muito rock’n’roll.
E quando estava em seu quarto pulando ao som do Led Zeppelin, ela só
conseguia rir. Como eram idiotas! Se a maior ambição de sua vida não fosse
ser escritora, ela provavelmente seria uma excelente atriz. Por que Ká era
uma sonhadora. Uma ótima aluna, uma virgem de carteirinha, quase uma
santa. Não fosse o fato de não acreditar em Deus.
Quando ela deixou de crer, de rezar todas as noites, ela não sabia ao certo.
Talvez quando se deu conta de que estava sozinha no mundo, de que não
tinha nada para se apoiar. Ela precisava de coisas concretas, estáveis, e algo
que ela não podia tocar, que devia ‘sentir com o coração’ como as freiras do
Lar Redenção geralmente diziam, não era de grande ajuda. A garota sempre
pensara que tentar achar o sentido de tudo, ou a culpa de tudo, em algo que
nem sequer era provado que existia, só a tornava mais fraca e infantil. E tudo
que ela precisava naquela nova vida era força e uma cabeça no lugar.
Karina estudava em uma grande escola pública que ficava alguns quarteirões
longe da casa de seus pais adotivos, a qual ela nunca chamava de ‘minha
casa’. Era sempre ‘casa deles’. Dentre todas aquelas pessoas que passavam
diariamente pelas salas de aula, em somente duas ela confiava: Louis
e Carine, um casal de gêmeos que freqüentaram o mesmo orfanato que ela e
agora viviam com os Kallister, vizinhos dos guardiões da garota. Somente os
dois conheciam a verdadeira personalidade de Karina por trás da
personagem que assombrava os clubes de mães conservadores daquele
lugar.
E num dia qualquer de outono, ela os procurava pelos corredores, enquanto
intimidava primeiranistas com seu olhar cruel de dona do mundo. Os fones
de ouvido berravam músicas de Joan Jett, os passos rápidos indicavam que
ela só queria sair dali, o mais rápido possível. Louis, com seus
cachos castanhos escondidos por um gorro negro, estava jogado em frente a
um pobre salgueiro pichado nos jardins da escola, lendo um mangá qualquer.
O garoto tinha grandes olhos azuis e hipnotizantes e o sorriso mais bonito
que Karina já havia visto, o que certamente compensava a magreza
escondida por roupas de segunda mão. Sua irmã estava sentada ao seu lado,
olhando para o céu a procura de OVNIs, sua obsessão, balançando os longos
cabelos recém pintados de vermelho, contrastando com a mistura de xadrez
e flores que havia em suas roupas naquele dia. Isolados do resto do mundo
por andarem com Karina, ou por serem malucos o suficiente para que só ela
os agüentasse.
- Hey, folks – a garota sorriu – o que estão aprontando?
- A 21ª Guerra Mundial explodiu em Cristamolic no número 7 de As Ruínas
Perdidas de Fitting. O cara que escreve isso aqui é genial!
- Acho que uma nave Plasmatoniana está tentando se comunicar comigo,
mas é muito tímida para sair de trás daquela nuvem. Eu li isso no Novo Guia
do Dr.Floyd. E você?
- Tentando fugir de Esma e Rick – Karina bufou – Eles estão aqui para uma
‘reunião de pais’.
- Você devia pegar mais leve com os caras, Ká. Afinal, eles te sustentam.
– Louis cantarolou.
- Nunca pedi que o fizessem, você melhor do que ninguém sabe disso. Eu só
queria que eles parassem de encher meu saco. Tentar me mudar. Tentar ser
meus pais.
- Esse é o propósito da adoção.
- Preferia não ter sido adotada. Hey,McGivens! – ela gritou para um
primeiranista de grandes óculos de aro de tartaruga, que se aproximou
vagarosamente.
- S-sim?
- A patricinha loira, de vestido cor-de-rosa, quem é?
- Alicia Loren – ele sussurrou.
- Ótimo. Dispensado, continue com o bom trabalho – ela piscou,sorrindo.
- Outra vitima, pistoleira? – Louis riu.
- Ela disse que dormi com o irmão dela. Quero saber quem é o irmão. Saber
se vale a pena armar uma briga ou intensificar o boato.
-Você é terrível, Ká – Carine sorriu – vamos pra sala do coral? Tenho certeza
que existem Voluptilianos por lá. Eles são classificados numa escala 8.3 de
amabilidade. E as aulas do Ernandez são divertidas, também.
- Só espero que ele não me venha com músicas de igreja, de novo. Perdemos
uma semana com todo aquele papo de espiritualidade e amor no coração.
- É bem provável que esse tema se estenda por longas semanas, minha cara.
Perto da fonte, você já viu quem é nosso novo colega?
Sem discrição alguma, Karina levantou o pescoço para olhar. Sentado sob a
mureta, estava um garoto de cabelos castanhos e olhos verdes,que lia
alguma coisa serenamente : Harry Styles, filho do pastor da cidade.

XX

Fazia calor na apertada sala do coral. O ar-condicionado havia quebrado há


meses, e o diretor não havia se movido sequer um centímetro de sua
confortável cadeira de veludo para consertar. Mas apesar disso, Karina não
pode deixar de reparar que Styles usava um blazer cinza por cima da camisa
social azul clara. O garoto não negava as origens, ela pensou.
Jogada em uma cadeira no canto mais afastado do ‘cubículo’, a garota
gostava de observar seus estranhos colegas de classe. Louis e Carine , sempre
juntos, com aquela estranha ligação de gêmeos da qual todos falavam,
gostavam de sentar no meio da sala, aparecer, pegar solos. As patricinhas de
Beverly Hills, como ela gostava de chamar algumas meninas que ela mal
sabia o nome, sentavam-se ao fundo, sempre fofocando e rindo
histericamente. Gretchen e Cassandra, as hippies, sentavam-se no chão,
amantes da natureza o suficiente para acharem que as cadeiras iriam acabar
com as florestas da Amazônia. Emos e cowboys sentavam juntos perto da
porta, num clube ligado por laços de sangue. Uma história estranha sobre
pais fazendeiros que viviam felizes com seus dois filinhos caipiras até nascer
a ovelha negra, o menino que se vestia de preto e gostava de rock que falava
de corações partidos.Juntou um pequeno grupo de simpatizantes,mas ainda
era obrigado a conviver com os irmãos.Damian era o seu nome. E na primeira
fila, com seus sapatos bem engraxados e cabelos alinhados, Harry fazia
anotações. Alguma reza nova, ela pensava.
Ernandez, que apesar do sobrenome não tinha nada de espanhol, chegou de
repente, com sua pasta surrada e os cabelos loiros despenteados pingando
água. Atrasado, de novo.
-Bom dia, crianças – ele sorriu, e Karina bufou: como se ele fosse muito mais
velho – Tudo belezinha?
Resmungos de concordância aqui e ali, seguidos de mais fofocas entre
grupinhos. Aquilo tudo era ridículo. Se não fosse pela música, a garota
provavelmente não estaria ali. Música era sua válvula de escape, era um
lugar seguro, era algo em que confiar. E a chegada de Harry para acabar com
tudo aquilo com suas exaltações a um Pai maior a deixava completamente
irritada e com vontade de pular no pescoço do garoto. Com uma faca, ou
algo do tipo.
-O Sr. Styles se juntou ao nosso coral esta manhã, mas acho que não preciso
apresentá-lo, certo? Seja bem-vindo Harry. Acredito que seu talento vai
contribuir muito nas seletivas deste ano.
-Obrigado, Sr. Ernandez. É uma honra me juntar a sua classe.
Ele tinha o tipo de voz sexy e rouca que Karina só tinha ouvido em seus CDs
de rock, mas elas nunca eram tão educadas como a voz de Harry.
Geralmente gritavam palavrões, o que fazia a garota se arrepiar totalmente.
Mas ela não podia negar que aquela voz tinha um efeito parecido. Pena, ele
iria estragar tudo quando começasse a entoar ‘One of Us’*.
-Vamos ao tema dessa semana? – Ernandez cantarolou – Cada um escolherá
uma canção especial : aquela canção que te anima quando você está pra
baixo, que te faz pular no seu quarto e rir sozinho por algum tempo. Vocês
tem até sexta-feira para nos apresentar essa canção. Como tradição do nosso
coral, Harry tem direito a um mentor na sua primeira semana. Louis, por
favor, o chapéu.
No chapéu estavam os nomes de todos os membros do coral, para quando
era necessário um sorteio ou ordem de apresentações. O mentor de Harry o
ajudaria durante aquela semana, explicando as regras básicas e como achar a
música perfeita para determinada tarefa. Totalmente desnecessário, na
opinião de Karina, mas Ernandez achava que era um bom jeito de aproximar
os alunos. Babaca.
- Quem será o sortudo? – o mestre brincou, girando o chapéu algumas vezes,
estendendo-o para o garoto depois. – Harry, por favor.
O papelzinho que ele retirou já estava gasto e um tanto amarelado do tempo
que estava naquele chapéu. Com um movimento rápido, Harry o abriu, leu o
nome algumas vezes, e então olhou para Ernandez, um tanto chocado.
- E então, quem é?
- Karina.
Se existia alguma força superior, esta provavelmente a odiava. Num
movimento rápido,olhos verdes e azuis se encontraram,trocando faíscas
invisíveis numa intensidade palpável. Karina lhe mostrou a língua, fazendo
com que seus colegas rissem modestamente. Ernandez esboçou um sorriso
preocupado, como se temesse pelo aluno recém-chegado. Bom, Karina não
ia morde-lo. Nem matá-lo. A menos que ele pedisse. Ela simplesmente iria se
divertir um pouquinho, se visse o lado positivo da situação.
Louis a espiou,levantando as duas sobrancelhas, um gesto tão característico
dele, uma língua de sinais entre os dois. Era como uma pergunta, um ‘E
ai?’ silencioso. Ela deu de ombros, uma resposta clara: ‘Não me importo’. O
garoto sorriu debochadamente, voltando a prestar atenção na explicação de
Ernandez sobre tons graves e agudos. Recolocando os fones de
ouvido, Karina esperou até o último sinal tocar pra livrar-la da prisão
chamada ensino médio.
E assim que o alarme espalhou-se pelos corredores, ela pegou sua mochila,
piscando rapidamente para Louis, e pôs se para fora daquela sala que havia
se tornado tão chata. Passou pelo corredor como um tornado, ansiosa para
chegar em casa e poder se desligar daquele mundo. Só não espera que Styles
a seguisse. Não esperava que ele segurasse seu braço de uma forma tão
firme, mas não rude, que a obrigou a parar e olhar para trás, a obrigou a
encarar novamente aqueles olhos verdes.
- Hey, que pressa – ele sorriu – Então, vamos começar logo com isso? Estou
meio empolgado com a minha primeira apresentação. Passo na sua casa as
16h pra você me, ahn...orientar.
- É, é tanto faz – ela enrugou a testa,confusa – Não se atrase. Não quero
perder muito tempo da minha vida com louvores ao Senhor.
- Estarei lá na hora marcada. Tenha uma boa tarde, mademoiselle.
Karina observou o garoto se afastando, passos ligeiros, o cabelo castanho
não saia do lugar. Se ele continuasse com o cavalheirismo e os termos
franceses, aquilo, definitivamente, não daria certo.

Capítulo 2 – Losing my Religion

As paredes do grande banheiro eram recobertas por ladrinhos azuis anil,


contrastando com a banheira e o vaso sanitário, ambos brancos como neve.
A grande bancada que sustentava a pia era feita de um mármore caro, e
lotada por perfumes de celebridades e maquiagens de marca, todos
escolhidos caprichosamente por Esma. Mas era para o grande espelho
brilhante que Karina olhava. Observava a si mesma naquela peça tão cara, as
bordas douradas que ostentavam a riqueza dos Dawson. Ela não combinava
com aquilo.
A garota refletida ali, com os longos cabelos quase até a cintura, vestido uma
regata preta que deixava parte do sutiã rendado aparecer e com shorts
curtos completos com uma meia-calça arrastão rasgada e coturnos não era a
filha dos sonhos de Esma e Rick. Não era a substituta ideal para a garotinha
que eles haviam perdido num acidente de carro.
Ela não gostava de lembrar dessa história. Odiava pensar que não passava de
uma intrusa naquela casa. Uma intrusa naquela vida, naquele mundo
medíocre. Amaldiçoava a cadela que a havia dado a luz e depois a jogado na
sarjeta. A imbecil deveria ter fechado as pernas e evitado todo o sofrimento
desnecessário.
Enquanto apertava o lápis de olho negro sobre sua frágil linha d’água,
pensou nas tantas vezes que desejara morrer, mas não tivera a coragem
suficiente para ir as vias de fato. Além de tudo, era uma covarde. Uma falsa
vadia covarde. Riu sozinha: Será que iria para o inferno? Essa era uma
pergunta que deveria fazer ao Styles quando ele chegasse.
Era por causa dele que estava ali, fazendo toda aquela avaliação da sua vida
imprestável. Queria parecer o mais assustadora possível, queria por medo
naqueles olhos verdes, queria ouvir aquela voz tão sexy gaguejar. Aqueles
dois itens tão desejáveis, tão sensuais, no corpo errado: o corpo de um
coroinha de missas dominicais. Riu mais ainda ao imaginar como seria o
corpo nu do garoto, por baixo das roupas tão sérias. Provavelmente algo que
ela não gostaria de ver. Mas estava pronta para guerra ao deslizar um batom
vermelho-sangue sobre os lábios carnudos.
Seu quarto era uma confusão proposital: a cama de casal de ferro negro com
lençóis cor de creme que combinavam perfeitamente com as cortinas, mas
não com o criado-mudo pintado de preto e com estrelas que brilham no
escuro coladas descoordenadamente por sua extensão. Havia um grande
sofá de couro próximo a única e gigantesca janela do quarto, e um tapete
rústico estava corrompido por manchas de café e roupas espalhadas por
todos os lados. As paredes eram de um azul claro desbotado pela fita adesiva
de milhares de posters que cobriam todas as paredes e portas, desde o
armário embutido até a de entrada principal.
A garota se jogou em sua cama, ouvindo Joy Division no último volume em
seus fones de ouvido. Voltou a pensar em Harry, um tanto intrigada. Ele seria
o tipo de cara pelo qual ela se sentiria atraída se não fosse por toda a história
de sua vida. O fato do garoto ser filho do pastor da cidade, que por acaso
também era a pessoa para a qual Esma chorava as mágoas todo o sábado de
manhã,a broxavam totalmente. Aquele era o tipo de caso onde ela primeira
julgava, e depois conhecia.
O som estridente da campainha a fez pular da cama, saindo de seu transe
temporário. Desligou o IPod, a fim de escutar a curta conversa entre Esma
e Harry. Ela foi extremamente simpática, falando sobre o tempo, a escola, a
admiração que ela tinha por seu pai. Ele, como esperado, foi o mais educado
possível. Um gentleman nojento.
Seus passos firmes faziam a escada de madeira rangir, a respiração longa era
identificável pela paredes finas. Em um minuto, ele estava encostado a
soleira da porta pintada de branco, os olhos verdes percorrendo o quarto e
voltando-se para a dona dele, sentada de pernas cruzadas na beirada da
cama. Sorriu-lhe gentilmente, como se pedisse permissão pra entrar. Ela
revirou os olhos, jogando a cabeça para trás, balançando os cabelos pretos.
- Você já esta ai, não esta? Entre de uma vez.
- Você se importa se eu fechar a porta? – ele perguntou, erguendo somente
uma das suas sobrancelhas.
- Pretende me estuprar na minha própria casa? Ah, é claro que não, esqueci
que isso é pecado. Você deve se manter casto até o casamento. – ela riu,
divertida.
Fechando a porta num gesto rápido, ele acompanhou a garota, rindo
discretamente. Deu longos passos até sentar-se, sem cerimônia alguma no
sofá próximo a cama dela. Os olhos verdes faiscavam observando Karina
bater a ponta dos coturnos no braço do sofá mais perto dele. Ela sorriu em
desafio, ele ignorou.
- Então, Karina, o que vai me ensinar hoje?
- Não sei, depende – ela piscou – já escolheu sua música? Não, espere, me
deixe adivinhar: é Say a Little Prayer for you*!
- É essa música que você atribui a mim, minha mentora? – ele riu – Você não
deveria fazer, não sei, uma analise psicológica, um questionário ou alguma
coisa do tipo antes?
- Você quer uma analise psicológica de você mesmo? Vá a um psicólogo. Mas
o resumo é: você é um fanático religioso que provavelmente pede permissão
para o pai até para respirar. Sua vida é feita de idas ao culto e palestras
motivacionais. Você nunca viu uma garota nua, nunca teve uma namorada e
acha que a Playboy e todos os rockeiros do mundo vieram diretamente do
inferno. Você é um maricas.
Harry riu mais alto do que nunca,deixando cada centímetro do corpo
de Karina arrepiado. Levantou-se num pulo e sentou-se juntamente a ela na
cama, deixando o blazer cinza sobre o sofá. Deitou-se de um modo
atravessado, abrindo quatro botões de sua camisa de mangas longas. Sorriu
para Karina,como se a convidasse para o fazer o mesmo.
- Você já brincou de verdade ou conseqüência,Karina?
- Você já?
- Vou interpretar isso como uma rodada. Eu escolho verdade – sussurrou,
tirando um maço de cigarros do bolso – Meu nome é Harry Styles. Minha
irmã mais nova me chama de Hazza. Eu tenho 17 anos, perdi minha
virgindade aos 15 e tenho uma coleção de Playboys embaixo do meu colchão
– ele continuou, acendendo um cigarro e levando-o a boca – Sou viciado
nessa merda de nicotina, sou apreciador de um copo de whisky de vez em
quando e venero todos os caras que estão nas suas paredes – Harry soltou a
fumaça lentamente pela boca, divertindo-se com a reação de Karina. Ela
estava petrificada – Eu fujo de casa a noite pra dar uma volta na moto que eu
comprei com desvio de dinheiro dos livros que eu deveria ter comprado para
estudar, e para beber em um pub qualquer da cidade vizinha. Eu odeio
música gospel. Eu quero colocar fogo na igreja e fugir dessa cidade. E eu
estou louco pra arrancar seu sutiã com os dentes. A não ser é claro, que você
queira ser boazinha e tire sozinha.
Karina piscou, uma, duas, três vezes, tentando absorver todas aquelas
afirmações. Harry aproveitava o resto de seu cigarro. A cabeça da garota
estava a mil. Ele era realmente daquele jeito, ou estava só tirando uma com a
cara dela? Se era tudo aquilo que ele dizia, por que o disfarce de bom moço?
A visão do peitoral definido do garoto também não ajudava em nada sua
concentração. Ela morria de vontade de tocar, de colocar seu corpo por cima
dele e não sair dali nunca mais. Mas precisava afastar aquele tipo de
pensamento da cabeça.
-Verdade ou conseqüência, Karina? – ele sorriu, piscando para ela enquanto
jogava o toco do cigarro na lixeira ao lado do sofá.
- Por que tudo isso, então ? A pose de bom moço, o bom comportamento,
todo o papo religioso?
- Por que preciso manter as aparências para ter o que quero. Se eu fosse
como realmente sou na frente de todos, eu não teria metade do que tenho.
Não teria o dinheiro, a posição social, todo o conforto e a proteção que o
nome do meu pai me oferecem. A vida é um baile de mascaras Karina, quem
consegue esconder o que é até o final da noite, ganha o prêmio maior.
- E por que me contar tudo isso agora?
- Somos iguais, não somos? Somos duas faces de uma mesma moeda. Mas
você não precisa se esconder. E eu preciso de alguém pra compartilhar da
minha vida de irresponsável sem futuro. Sozinho não tem graça. Antes uma
parceira de crime com um belo par de pernas do que nada.
- Ainda não faz sentido.
- E algo na vida faz, Karina? Mas você gosta de ficar sozinha,
incompreendida?
- Eu tenho Louis e Carine.
- Eles não são como você, eles não te entendem.
- O que te garante que eu não estou fingindo também?
- O tempo dirá. Estou te propondo uma amizade decente a curto prazo, Ká, e
uma transa boa no futuro. Não seja tão desconfiada.
- Você sabe que não me convenceu – ela sorriu, finalmente se deitando
também, jogando os cabelos pra trás.
-É claro que sei – ele sorriu, fechando os olhos – Mas eu vou conseguir. Eu
consigo tudo o que quero.
- Posso saber como pretende fazer isso?
-Te espero às 23h na frente da igreja. Vamos nos divertir um pouco. E daí
depois podemos escolher decentemente a minha música.
- Então tudo se trata da sua música?
- Não. É tudo sobre sexo, drogas e rock’n’roll, meu amor.
Ela revirou os olhos, indignada. Não confiava nele, não sabia onde aquilo
tudo os levaria. Era tudo tão confuso. Mas ela gostava de jogos. E jogar com
ele poderia ser muito mais divertido do que ela imaginava. Era nisso que
pensava quando o empurrou de sua cama, mordendo o lábio inferior
delicadamente. Arrancou um sorriso um tanto misterioso dele, um sorriso de
contrariedade. Ela observou-o recolocar seu blazer e abotoar novamente os
botões de sua camisa. Com uma piscadela rápida, ele deixou um último
recado no ar:
-Leve um casaco. A noite é fria, e nossos corações mais ainda.

Capitulo 3 – Have a Drink on Me

As ruas eram assustadoramente escuras. Não havia sequer uma alma se


arriscando a andar por ali, somente gatos de rua e corujas com seus grandes
olhos dourados observavam Karina caminhar desajeitadamente pela Storage
Street. Os saltos da bota preta de cano alto faziam barulho ao bater em
pedras soltas pelo caminho. As mangas da blusa branca estampada com
caveiras balançavam levemente por causa do vento noturno. O filho-da-
puta Styles tinha razão quanto ao frio, o que não a fez mudar de idéia e levar
um casaco.
A igreja era uma construção em estilo medieval. À noite, as paredes feitas de
pedra e a alta torre pareciam o cenário ideal para um filme de terror. A
pequena cerca de ferro ao seu redor também não ajudava a melhorar o
ambiente. Parada na calçada, a garota conseguia enxergar a casa grande,
branca e iluminada dos Styles. Parecia que o meio religioso não sofria tanto
de falta de verbas como parecia.
Karina já estava ficando nervosa, batendo o pé nervosamente no pedaço de
grade a sua frente. O frio parecia invadir sua alma, e ela estava louca para
sair dali de vez. Lugares como aquele a lembravam de sua infância como
órfã, abandonada pelas ruas e temendo o mundo inteiro. Algo muito
divertido de se lembrar num momento tão perturbador como aquele. O
medo voltava para ela como um amigo conhecido, pedindo abrigo em suas
entranhas. Ela devia lembrar-se de bater a porta na cara dele. Uma mão
gelada em sua cintura, cheiro forte de cigarro impregnando o ar. Era agora,
ela estava morta; não fosse pelo riso baixo em seu ouvido, o toque que
começava a apertá-la, reconfortante, e um segundo cheiro no ar: um maldito
perfume amadeirado que havia ficado grudado em seus lençóis na tarde
daquele mesmo dia.
- Buuu – Styles sussurrou em seu ouvido, jogando uma grande jaqueta de
couro sobre os ombros tensos da garota – eu lhe disse para trazer o casaco,
não disse?
- E você sabia que eu não o faria por que...?
- Pressentimento. Nunca falha – ele sorriu irônico, a puxando pelo cinto
preto que prendia sua skinny exageradamente colada – Vamos. Temos uma
longa noite pela frente.
- Posso saber aonde você vai me levar? – ela se deixou levar, emburrada,
porém ardendo de curiosidade.
- Vamos tomar uma cerveja no Incantatem – Harry assobiou, a largando em
frente a um banco branco de praça, a alguns metros da igreja, antes de sumir
em meio a um pequeno grupo de árvores.
-Você sabe que isso fica há uns 15 quilômetros daqui,não sabe? Como
pretende chegar lá, caminhando?
- Achei que havia comentado com você que tinha uma moto – ele voltou,
trazendo consigo uma Harley-Davidson vermelha e um tanto gasta.
- Que tipo de livros você ia comprar com o dinheiro que usou pra comprar a
moto? Eles eram feitos de ouro, ou eram Bíblias do século XV escritas em
aramaico, ou algo do tipo?
-Eu falei só em livros? Acho que esqueci de falar do dizimo.De qualquer jeito,
ela não era totalmente nova quando comprei. Mas é linda, não?
- Divina. – ela bufou.
- Vamos logo, garota. A noite está chamando por nós, você não pode ouvir? –
ele riu, jogando um capacete preto pra ela.
- Estou ouvindo o chamado da morte desde que te conheci, isso sim. Você
realmente acha que vou subir nesse troço com você pilotando? – Karina
esquivou-se,dando dois passos para trás.
Harry massageou as têmporas por um instante, olhando para a garota em
seguida. Desencostou-se da moto, e deu alguns passos para a frente, as mãos
nos bolsos da calça jeans surrada. Pela primeira vez na noite Karina reparou
que ele não vestia as roupas ‘religiosas’ a que ela estava acostumada. Ele
usava uma jaqueta preta semelhante a que dera a garota por cima de uma
camiseta branca e justa que destacava o abdômen definido que ele escondia
com suas camisas de manga comprida. Nos pés um par de All Stars preto, e
no rosto um sorriso sacana que deixava Karina arrepiada. Não foi preciso
mais do que três passos para que ficassem frente a frente, nariz com nariz,
respirações misturadas.
- Diga que não quer uma cerveja gelada, música decente e pessoas
agradáveis. Diga que não quer ver o mundo fora dessa cidade de merda. Diga
que não quer sentir o vento no rosto, sentir a liberdade, a adrenalina. Diga
que não quer seu corpo junto do meu.
Ela mordeu o lábio inferior, abaixando a cabeça para não encarar aqueles
malditos olhos verdes que conseguiriam fazê-la pular de um precipício.
Odiava o modo como ele a fazia sentir-se. Rejeitava o desejo que começava a
crescer em seu intimo. As palavras dele a atingiam como lâminas afiadas, por
que eram verdades audaciosas prontas para deixá-la em dúvida. Ele riu
baixinho, puxando-a energicamente pela mão. Arrumou-lhe o capacete sobre
os cabelos pretos,predendo-os dentro da jaqueta. Em silêncio, acomodou-se
sobre a moto, esperando que a garota fizesse o mesmo.
E ela fez, abraçando-o levemente pela cintura. Harry virou o pescoço
rapidamente para olhá-la, e, com uma piscadela rápida, deu partida,
deixando o coração de Karina naquele ponto da estrada. O vento batia no
rosto de Karina,a velocidade a fazia ter borboletas no estomago. Ela estava
grudada ao corpo de Harry de um jeito que seria considerado pornográfico
por qualquer senhora recatada de idade, mas ela não ligava. Aquilo era
maravilhosamente excitante. Era uma experiência nova, e o maldito tinha
razão: ela queria muito aquilo. Quebrar regras de verdade uma vez na vida.
A viagem de quinze minutos foi como um relâmpago, um salto de bungee
jump. Quando Karina se deu conta, estavam parados na frente do pub
Incantatem,ela rindo como uma boba, estática. Harry tirou as mãos da garota
de sua cintura, e num movimento rápido de troca de pernas, ficou sentado
de frente para ela, com um sorriso debochado diante dos olhos brilhantes
de Karina. Pousou as mãos geladas no pescoço da garota, fazendo com que
ela quase pulasse de susto. Rindo, abriu o fecho do capacete, ajudando-a a
livrar-se dele.
- Vou te contar um segredo – ele fez um sinal para que ela se aproximasse –
nós morremos. Prepare-se para entrar no Inferno, meu amor.
- Preciso usar esse casaco, lá? – ela rebateu.
- Você não precisa usar nada lá.
- Pena que você não vai junto, não é? Você deve ter uma vaga comprada no
Paraíso.
- Eu posso passar um tempinho aqui embaixo com você – ele piscou – posso
comprar isso também.
- Não tem graça se você estiver usando roupas.
- Podemos dar um jeito nisso também. Agora, se você preferir. Aqui.
- Como todo mundo vendo? – ela sorriu, maliciosa.
- Você não acha excitante? – Harry se aproximou, passando o longo dedo
indicador pelo rosto de Karina, descendo lentamente por seu pescoço.
- Eu acho – ela soprou no rosto dele, vagarosamente – que você tem que me
pagar uma cerveja.
E levantou, rindo, rebolando em direção as piscantes luzes do Incantatem.

O Incantatem era um pequeno pub onde bandas de rock gostavam de se


apresentar. Era intimista, com suas paredes de concreto iluminadas por
candelabros que jogavam luzes amarelas por todos os lados. Sofás vermelhos
nos reservados e mesas de madeira polida davam um ar aconchegante ao
lugar. O bar era longo, o balcão de vidro negro, os bancos altos de madeira e
milhares de copos e bebidas variadas ao fundo. O lugar cheirava a tabaco,
whisky e perfume barato. Karina sorriu. Era um bom lugar, afinal.
Styles surgiu atrás dela, um cigarro pendurado na boca, a carteira aberta nas
mãos. Algumas notas foram puxadas rapidamente de lá, sem que ela
conseguisse ver o seu valor. Ele a puxou novamente, ela começou a se irritar.
Estava se sentindo um saco de batatas. Tentou dar o tapa mais forte que
conseguia em seu ombro quando ele os parou em frente ao bar.
- Hey, violência gratuita?
- Pare de me carregar por ai, não sou uma criança.
- Tem certeza? – Harry perguntou, fingindo preocupação.
- Cale a boca.
- Duas doses de tequila, por favor – ele gesticulou para um garçom que
passara ali rapidamente – e, se você não é uma criança, posso te deixar um
momento sozinha aqui enquanto converso com alguns amigos – ele acendeu
o cigarro –não suma, e não beba minha tequila.
Karina obervou-o costurar um caminho entre a pequena multidão ali dentro,
e para num pequeno grupo nada simpático. Se ela tinha alguma dúvida de
que aquele garoto realmente não prestava, agora ela tinha certeza. O que
tinha que decidir agora era o que iria vencer: o medo de fazer papel de idiota
na frente dele, o medo dele ou a maldita atração que ela definitivamente
estava sentindo.
Sem pensar muito, virou o pequeno copo de tequila garganta a baixo,
arrependendo-se imediatamente. Aquilo queimou sua garganta, a fazendo
tossir descompassadamente, enchendo seus olhos de água. Um garçom
parou, olhando para ela espantadamente, mas logo seguindo seu caminho.
Recuperada do acesso de tosse, a garota sentou-se num dos bancos de
madeira, encostando a cabeça no vidro frio. O que diabos estava fazendo? A
quem estava tentando enganar? A resposta era clara: ao cara sexy de
olhos verdes pecadores que até pouco tempo atrás ela achava que era um
idiota.
- Karina?
A voz não era de Harry. Era mais doce, suave. Era como uma cantiga de ninar
no meio da confusão. Ela levantou a cabeça, tirando os cabelos bagunçados
da frente do rosto. A voz era do garçom que voltara e a observava mais
atentamente. Trazia um pequeno copo consigo. Mas ela não conseguia
reconhecê-lo. Parecia tão familiar. A resposta parecia na ponta da língua.
Mas faltava o clique final.
- Desculpe, eu te conheço?
Ele era bonito. Tinha um sorriso bonito. Uma risada gostosa de ouvir. Os
cabelos loiros bagunçados elegantemente para trás faziam uma estranha
combinação com os olhos castanhos. Haviam músculos definidos por baixo
da camiseta preta padrão, músculos não como os tentadores de Harry, mas
suficientes para se notar. Ele definitivamente era um bom quadro para ficar
admirando.
- Achei que tantas manhãs dividindo uma sala de coral abafada te fizessem
pelo menos olhar para as pessoas. Acho que me enganei.
Foi então que veio o clique.
- Damian?
- Na mosca.
Cabelos limpos e penteados, falta do lápis preto que borrava-lhe os olhos e
roupas decentes : bingo! É claro que ela não o havia reconhecido de
primeira.
- O que faz aqui?
- Trabalho aqui. E você?
Ela mordeu o lábio inferior, apontando discretamente com a cabeça para o
lugar onde Styles ria alto com os amigos. Damian soltou um ‘ih’ baixinho, um
tanto desgostoso.
- Veio com o falso-padre Styles, é? Boa sorte.
- Por quê?
- Ele tem fama de encrenqueiro. Adora aprontar. – ele deu de ombros.
- Isso soa familiar pra mim.
- Bom, mas nós dois sabemos que você não é assim.
Ela piscou uma, duas, três vezes, estática. A surpresa pegou-lhe como um
bom soco no rosto.
- Como assim?
- Digamos que, não somos tão diferentes assim – ele sorriu, entregando-lhe o
copo – tome,vai ajudar a passar a ardência. Eu tenho que ir. Foi bom ver
você, Karina.
Damian partiu rapidamente, bloco na mão para atender uma mesa. Ela olhou
atentamente para o pequeno copo, cheio de um liquido branco. Levando-o
rapidamente ao nariz, balançou a cabeça, divertida : quem em sã consciência
lhe daria leite num pub? Mas fechou o rosto novamente. Damian era uma
nova incógnita em sua vida. Talvez fosse ser um mistério tão grande
quanto Harry. Garotos idiotas, no fim, eles conseguiriam tirar seu sono de
qualquer maneira.
Bebericava seu leite distraidamente quando Harry voltou, puxando-a pela
cintura para mais perto dele. Ela revirou os olhos: precisaria bater nele de
novo? O primeiro tapa não tinha surtido muito efeito. Deveria pedir
paraLouis lhe ensinar como socar alguém. Louis... Ele com certeza ficaria
ensandecido com toda aquela história. Ela passaria na casa dele antes de ir
para a escola na manhã seguinte.
- O que você está bebendo? – Harry inquietou-se, tirando o copo da mão da
garota – Isso é leite?
- É. Algum problema?
-Eu te trago num pub em outra cidade... E você toma leite?
Francamente Karina. É broxante.
- Depende do modo como você interpreta – ela riu alto – e não podemos nos
embebedar. Temos aula amanhã, e eu definitivamente não quero ficar de
ressaca.
- Você é muito negativa, garota, você tem que se soltar – ele provocou,
massageando os ombros dela.
A garota fechou os olhos por um minuto, aproveitando o toque. Mas não
podia se deixar levar... Não naquela noite.
- Chega, Styles – ela brigou – Está na hora de irmos embora.
- Mas acabamos de chegar! E nem tomamos uma cerveja ainda! – ele
reclamou, indignado.
- Sexta-feira – ela sussurrou – voltamos na sexta-feira. Passamos a
madrugada toda aqui, se você quiser. Mas agora perdi o clima. Vamos
embora.
- A madrugada toda? Bom, eu tenho planos melhores do que passar toda a
madrugada aqui.
- Se você está tentando me conquistar, não está funcionando. Você esta indo
muito, muito mal, se quer saber.
- Não estou tentando te conquistar. Estou te acostumando à idéia de que
uma hora você vai acabar transando comigo.
- Grosso – ela ralhou, começando a caminhar em direção a saída do pub.
- Não me cobre romance, Karina. Eu nunca te prometi isso. Aliás, nunca te
prometi nada.
- Nem eu. Mas educação é uma coisa que eu gosto.
- Sinceramente, não parece.
- Vamos embora logo, por favor? – ela quase gritou, já do lado de fora, em
frente a moto.
- Vamos. Aposto que com quinze minutos sentada muito próxima ao meu
quadril você amolece. Vamos, você vai na frente.
- Eu não sei dirigir esse troço.
- Eu falei em dirigir? Só mandei você sentar na frente.
Contrariada, resmungando a maioria dos palavrões que conhecia,ela sentou,
esperando pelo choque do corpo dele novamente. Harry a abraçou
fortemente pela cintura, apoiando seu rosto na curva do pescoço dela.
Passou os lábios rapidamente pela extensão de pele em sua frente, antes de
grudar a boca ao ouvido da garota.
- Você deveria confiar mais em mim.
- Você não me deu motivos para isso ainda – ela respondeu, totalmente
arrepiada.
- Motivos são desnecessários. As ações que eles trazem é que são
importantes.
E mordendo o lóbulo da orelha da garota, ele deu partida novamente,
adentrando a noite como se pertencesse a ela.

*One of Us,Um de Nós, em tradução literal, famosa música gospel de Joan


Osborne
*I Say a Little Prayer For You,Eu faço uma pequena prece para você,em
tradução literal,é uma música conhecida pelo filme O Casamento do Meu
Melhor Amigo,que é o meu filme favorito e ok,calei.
* Cherrybomb, é a famosa bomba de cereja, eternizada nos vocais do The
Runaways
*Losing my religion,ou seja, Perdendo Minha Religião, é uma música incrível
do R.E.M
*Have a Drink On Me é o que todo bêbado falido gostaria de ouvir : Bebidas
Por Minha Conta, da banda já citada na introdução, AC/DC

Capítulo 4 – Ripped her heart out right before her eyes

As luzes de natal presas ao teto piscavam, coloridas, alucinantes. Eram três e


meia da madrugada. As luzes lá fora estavam apagadas, fazia frio até mesmo
com a janela fechada. Ou talvez fosse outra coisa. Como a falta do calor do
corpo dele. O silêncio reinava absoluto. A não ser pela respiração
descompassada dela. Pesadelos são como pimentas escondidas naquele
doce maravilhoso que você esperou eras para experimentar. São
inesperados, confusos e apavorantes. Pesadelos são como Harry Styles.
Ou Harry Styles era como um pesadelo. Um mistério que entra pela porta do
seu quarto e o impregna com cheiro de cigarro e o maldito perfume
amadeirado.
A garota batucava os dedos na cabeceira da cama, esperando ouvir um som
que a reconfortasse. O Ipod estava longe demais e ela não queria levantar
dali. Sair debaixo das cobertas macias e seguras poderia enlouquecê-la. Em
toda sua conturbada vida, nunca precisou de tratamento psicológico. Estava
pensando seriamente em pedir uma consulta para Esma.
Algumas horas atrás e ele a deixava na esquina de sua casa. Os olhos verdes
brilhavam de satisfação ao ver o rosto emburrado da garota. Como se aquilo
o divertisse. Como se ela fosse seu palhacinho particular, seu bobo da corte.
E talvez realmente fosse. Por que no momento em que Harry segurou sua
mão e depositou um beijo leve como uma nuvem sobre seus dedos, um par
de olhos azuis brilhou de surpresa e uma risada alta saiu dos lábios
terrivelmente atraentes dele. Ele havia desenvolvido um apreço por
confundi-la, irritá-la. Um apreço maligno por deixá-la arrepiada. Tudo isso na
velocidade da luz.
Por que Harry era rápido. Era uma bala de revolver, um relâmpago, um piscar
de olhos. Karina não ficaria surpresa se ele lhe dissesse que era viciado em
cafeína ou energético. Pelo contrário,ela deveria aprender a não se
surpreender com nada que viesse dele. Nem mesmo com aquele sorriso
malicioso e os olhos queimando ao sussurrar para ela :
- Amanhã é sua vez. Você sabe onde eu moro. Chegue cedo e terá satisfação
garantida. Chegue tarde e eu vou te amarrar no pé da minha cama por toda a
madrugada – e deu partida novamente na moto, a deixando ali abraçada na
jaqueta que ele não quis de volta.Jaqueta aquela que ela continuava usando
quando dormiu. O cheiro dele nunca esteve tão forte em suas narinas. O que
a trazia de volta para seu pesadelo.
Naquele mundo distinto de sonhos, ela usava um longo vestido branco,
cabelos ao vento, um crucifixo pendurado em uma linda corrente dourada
balançava alegremente em seu pescoço.Estava parada olhando para o alto
no ponto mais extremo de um precipício cuja queda era diretamente no mar.
Era uma dia nublado, cinza, carregado. Era um dia como ela. Karina era um
dia de chuva, instável, inquieto, pronto para desabar. Mas naquele momento
ela parecia um dia de sol. Calma, tranqüila, radiante. Os poucos pássaros que
se atreviam a cortar os céus atraiam sua atenção, assim como a grama muito
verde e um imenso salgueiro muito próximo dela. E então ele chegou.
Estonteante mesmo em seus trajes de filho prodígio do pastor, mas ainda
assim carregando um cigarro aceso preso aos lábios. Lábios que sorriam para
ela a cada novo passo largo em sua direção, as mãos nos bolsos da calça
caqui, o cabelo bagunçado como naquela noite.
E ela deixou envolver-se. Quando ele estava próximo o suficiente, deixou que
passasse os braços pela sua cintura, que colocasse aqueles malditos
olhos verdes em contato com os azuis que pareciam tão delicados, tão
infantis naquele momento. Deixou que acariciasse seu rosto enquanto dava
uma tragada em seu cigarro. Era tudo tão natural para ela. Os pássaros
negros que antes dançavam silenciosamente por aquele céu tão sem cor
agora os observavam, empoleirados no salgueiro. Jogando o toco do cigarro
fora, Harry passou os dedos pelas pálpebras da garota, num pedido
silencioso para que ela as fechasse. Naquele pesadelo ela confiava nele, que
ironia, até mesmo de olhos fechados. E assim ela o fez. Sentiu a palma da
mão dele sob seu coração. Sorriu. E então veio a dor.
Como num show de ilusionismo ou um efeito especial de Hollywood, a mão
de Harry atravessou o peito de Karina. Ela sentia o aperto firme dela
fechando-se em volta do seu pequeno coração. Abriu os olhos, desesperada.
Ele sorria tranquilamente para ela, na mesma proporção que puxava seu
coração para fora. Lentamente, até que ele fosse visível para os dois. O
vestido alvo era agora tingido pelo vermelho do sangue que escorria do
buraco aberto em sua pele. E ela chorava lágrimas silenciosas. E ele
continuava parado, sorrindo, analisando o tesouro que possuía em suas
mãos.
Numa mudança do vento, os poucos pássaros que estavam no salgueiro
haviam se multiplicado, e agora os rodeavam. Um circulo negro em volta
de Karina e Harry, um circulo que se movia rapidamente, como um tornado.
E a garota se percebeu indo para trás, caindo no infinito sem fim em direção
ao mar. E ele continuava lá, parado, magnífico, com o coração dela em uma
das mãos. Mas não por muito tempo. Logo ele também caia, na mesma
altura que ela, os dois deitados sobre o ar. Os pássaros negros ainda os
cercavam, batendo suas asas. Então ele lhe estendeu a mão livre, suja de
sangue, um toque de piedade em seus olhos. Mesmo sem seu coração, ela a
aceitou. Assim os dois fecharam os olhos, esperando a morte certa, o fim,
juntos.
Antes de cair no mar, ela despertou. O coração ainda batia em seu lugar,
disparado. As mãos suavam, a respiração era falha. Agora, analisando
novamente todo o seu sonho, ela compreendeu. Só havia uma explicação
plausível. Harry destroçaria seu coração. Continuar perto dele era a
destruição certa, o fim previsto. Harry seria seu pecado e sua perdição. Assim
como ela seria o pecado e a perdição dele. Um levava ao outro, nenhum
poderia escapar. Olhando mais uma vez no despertador no criado-mudo, ela
suspirou. Ainda teria tempo o suficiente para pensar em como se livrar
daquele destino cruel antes que o sol voltasse a iluminar aquele lugar.

*Ripped her heart out right before her eyes, é um trecho de A little piece of
heaven,do Avenged Sevenfold : Arrancou seu coração bem em frente de seus
olhos,no sentido da música.

Capítulo 5 – You know I’m no good

Era uma casa engraçada, com musgo cobrindo toda a fachada. As janelas
eram grandes e desproporcionais, assim como a enorme porta de madeira
com maçanetas de ferro. Havia um grande ipê de flores douradas que fazia
sombra ao pequeno jardim cheio de flores e estatuas de animais em
miniaturas. Um caminho de tijolos amarelos levava a entrada. Karina gostava
daquela casa, era simples, mas aconchegante como um abraço.
Os Kallister não eram nem de longe tão ricos quanto os Dawson. Caleb, o pai,
era professor de matemática na mesma escola que Karina e os gêmeos
freqüentavam e Linda, a mãe, braço direito de um importante empresário da
região. O que na teoria, era um cargo um pouco mais alto do que secretária.
Mas apesar disso tudo, os gêmeos sempre foram invejados pela garota: eles
não substituíam ninguém. Eram amados por serem eles mesmos. E como
eram amados.
Louis abriu a porta antes mesmo que ela batesse. Usava jeans e um moletom
cinza com capuz, e sorrindo maroto, confessou:
-Vi você chegando pela janela. Meu pai vai nos levar pra escola daqui a
pouco, se você quiser um carona.
- Não seria nada mau.
A sala era pintada com um tom caramelo- escuro, mas haviam sofás brancos
como a neve e um tapete vermelho felpudo embaixo de uma pequena mesa
de centro de madeira. Havia fotos da família por todos os lados, e um
pequeno lustre dourado no teto, uma herança de família, segundo Carine.
Uma grande estante repleta de livros, exceto pelo espaço que uma TV
simples ocupava, completava o lugar.
Karina poderia passar horas ali, ouvindo as histórias de Caleb e tomando o
chocolate quente de Linda. Quando criança chorava em seu quarto,
desejando ter sido adotada por eles também. Agora conformara-se com os
Dawson. Não eram tão ruins, afinal.
Largou a mochila em qualquer lugar do chão, acomodando-se no sofá maior
para que Louis pudesse se deitar em seu colo. Os olhos verdes do garoto a
observavam distraidamente enquanto ela passava as mãos por seus
cachos castanhos. Às vezes ele ainda parecia o menininho que ofereceu um
urso de pelúcia a ela em seu primeiro dia no orfanato. Ela chorava tanto por
ter que ir parar naquele lugar. Por mais terrível que fosse o relacionamento
com os pais biológicos, viciados em cocaína e álcool que batiam na garota
quando estavam chapados demais, pelo menos antes ela tinha um lar.
Quando chegou ao orfanato, viu seu mundo desabar mais ainda. E ele fora
gentil com ela. Um menininho de cinco anos lhe dera mais carinho do que os
pais lhe deram a vida toda. Karina sempre o amou mais, apesar do carinho
gigante por Carine. Louis era seu porto seguro, seu irmão, seu ursinho de
pelúcia.
- Então, pequena – ele começou enquanto fechava os olhos para aproveitar o
carinho – como foi com o Styles ontem?
- Não durma – ela sussurrou – você vai querer ouvir essa história.
E então contou-lhe. Sobre a outra face de Harry, sobre o bar, sobre as
cantadas disfarçadas, sobre Damian e o pesadelo. Desabafou, expôs todos
seus pensamentos conflituosos, suas dúvidas dolorosas. Sentia-se leve como
uma pluma. Louis somente ouvia, os olhos fixos em algum lugar na estante,
os lábios contraídos. Ao fim do longo discurso de Karina, ele sentou-se, mãos
juntas,cabeça baixa. Virou-se lentamente para a garota, olhando-a nos olhos,
afastando uma mecha de seu cabelo castanho para longe.
- Ká, eu não quero que você encontre esse cara de novo. Eu troco com você,
faço o aconselhamento. Mas eu não quero mais vê-la com ele.
- Por quê?
- Por que – ele suspirou – Eu me preocupo com você. Você não acha que já
machucou seu coração muitas vezes para destroçá-lo mais uma vez?
- Isso não vai acontecer. Não vou me apaixonar com ele. Também não
pretendo dormir com ele. Eu só quero entende-lo. Saber por que ele me
escolheu.
- Você nunca se olhou no espelho, Ká? Ele te escolheu por que você é
excepcionalmente bonita. Ele se revelou pra você por que quer te levar pra
cama.
- Não é só isso. Tem mais nisso tudo, Louis, eu tenho certeza que tem. Eu só
quero saber o que é.
- É a curiosidade que ainda vai destruir o ser humano. Quanto mais você cava
um buraco, mais presa nele fica.
-Isso não vai acontecer. Eu sei me cuidar.
Ele poderia ter dado uma boa resposta, se nesse momento Caleb e Carine
não tivessem chegado, sorrisos no rosto, braços dados. Caleb se passaria
tranquilamente por pai dos dois se ela não soubesse que eram adotados. Ele
tinha o mesmo tom de cabelos de Louis, e o mesmo ar sonhador de Carine,
por trás dos grandes óculos de aro negro. Era o típico professor de ensino
médio, com seu suéter caramelo e calças caqui, um sorriso que mostrava
todos os dentes e uma expressão paternal. Um abraço apertado concedido
em Karina quando a avistou reforçavam a sensação de que ela pertencia a
aquele lugar. Pertencia a aquelas pessoas.
Alguns minutos a mais e estavam rindo a bordo do pequeno Gol da
família. Louis a frente junto com o pai, procurando estações de rádio, Carine
e Karina atrás, a primeira trançando o cabelo muito liso de Karina como uma
mãe atenciosa. Ali era um lugar onde ela podia rir e ser ela mesmo mais do
que qualquer outro no mundo. Pelo menos por alguns preciosos minutos.

Karina não havia visto Harry pela manhã inteira. Onde diabos aquele garoto
se enfiava durante o intervalo ? Provavelmente estava trancado no banheiro,
comendo alguma vadia, foi seu primeiro pensamento. Até que se lembrou do
papo de manter as aparências. Ah, ele não era o bad boy fodão durante o
dia, que pena! Mas ela tinha certeza que o encontraria naquele último
período. Afinal, era mais uma aula do coral. Mais quarenta e cinco minutos
sobre rimas e do,ré,mi,fá. Que agora afinal, não seria tão chata. Tripudiar é
amor, provocar é sexo. Essas eram suas palavras de ordem.
Carine e Louis já estavam em seus lugares de sempre, discutindo sobre a
divisão de ‘Valerie’. E na fileira da frente, lá estava ele : paletó preto, camisa
azul marinho, calça social e caderno em mãos. Harry Styles versão padre. Ela
sorriu quando ele nem ao menos levantou a cabeça para olhá-la : ah,aquilo
seria divertido. Ela trocou o lugar de sempre no canto mais afastado da sala
pela cadeira ao lado de Louis, e exatamente atrás deHarry. Cutucou com a
ponta do All Star, e sorriu, fingindo inocência quando ele olhou para trás:
-Me desculpe, Harry. Foi sem querer. Espero que Deus me perdoe por isso.
- Deus sempre perdoa quem se arrepende verdadeiramente – ele respondeu,
a boca tremendo, os olhos desconfiados.
- Bom, então com certeza eu não vou pro Inferno – ela sussurrou,
ironicamente.
Harry deu de ombros, voltando a seu caderno. Louis observava a cena,
braços cruzados, lábios imóveis numa linha fina.
-Ká,Ká, o que você está fazendo?
- Nada! Não está um dia lindo? – a garota sorriu, piscando.
Ele revirou os olhos, voltando a discutir com a irmã. Karina fingia que
escutava um breve discurso de Ernandez, enquanto estava com a mente
longe, bolando um jeito de realmente provocá-lo. Por que se tudo aquilo era
um jogo, estava na vez dela andar algumas casas. A idéia veio como um fogo
de artifício quando seus olhos pousaram em Damian, a pose de emo
novamente, entrando na sala, atrasado.
- Sr.Ernandez, será que eu poderia sugerir um tema para a semana que vem?
– ela ergueu a mão, piscando os longos cílios varias vezes.
- Ahn, é claro Karina! – o mestre respondeu, visivelmente chocado.
- E se cada um escolhesse uma música que retratasse sua verdadeira
personalidade? Muitos de nós se escondem atrás de mascaras e
estereótipos, não é? Nos poderíamos mostrar quem somos de verdade, na
frente de todo mundo. Mostrar que temos orgulho disso! Harry poderia
cantar Like a Prayer*! Aposto que seria o sonho da vida dele realizado.
Styles não se moveu um centímetro de sua cadeira, apesar de Karina
conseguir notar a tensão em seus ombros. Ernandez sorria constrangido para
a garota, e Louis reprimia um risinho baixo. Para completar, ela novamente
cutucou Harry com a ponta do All Star. Xeque mate!
- Acho que seria incrível, Karina. Realmente, uma boa sugestão. Faremos
isso.
Mas o assunto não se estendeu. Ela recolocou seus fones de ouvido e passou
o resto do período observando Styles escrever furiosamente no caderninho.
Ela tinha pena do pobre objeto. Com aquela intensidade, ele ia acabar
rasgando-o em dois. Sem duplos sentidos, ela pediu a sua mente suja.
Quando o sinal tocou novamente, ela mandou um beijo para os gêmeos e
voou da sala, sabendo que ele a seguiria. Ele com certeza a seguiria.
E ele o fez. Ela já estava fora dos limites da escola, caminhando por uma
calçada mal-tratada, quando ele pôs-se a caminhar ao seu lado. Ombro com
ombro. Foram precisos alguns metros pra ela tomar a coragem necessária
para olhar para ele, e mais alguns para que ele abrisse a boca.
- O que exatamente foi aquilo, Ká?
- Ah, um pouquinho de diversão matutina, não foi engraçado?
- Não aos meus olhos. O que você planejava?
- Só você pode ser grosso e mal-educado comigo? Isso não é justo.
- Eu nunca disse que nossa amizade seria justa, Karina. E você adora que eu
seja grosso com você. Te deixa arrepiada – ele riu, malicioso.
- Não, eu acho nojento, se você quiser saber. E por que todo esse
ressentimento? Eu te pus em risco? Eu te expus?
- Você sabe que sim, Karina. Mostrar a verdadeira personalidade. Lindo.
Tocante. Uma bala disparada com o intuito de me atingir. Amigos não fazem
isso com amigos.
- Eu não disse que era sua amiga.
- É uma questão de tempo. E sabe o que vem depois de amigos? – ele os
parou em frente a uma casa que parecia saída diretamente de um filme de
terror, e sussurrou – Amigos com benefícios.
- Aham. Nos seus sonhos pervertidos, talvez.
- Com certeza nos seus também. – ele sorriu, uma carga imensa de segundas
intenções em seus olhos – eu te perdôo pela ofensa no coral hoje, Ká, se
você chegar cedo. Vou abrir uma garrafa de vodka em sua homenagem.
E tão repentino como chegou, ele se foi, a deixando plantada naquele
cenário nada agradável.

Era um tanto cômico o modo como ela se olhava no espelho. Como passava
mais rímel nos longos cílios e o batom vermelho que era sua marca
registrada nos lábios cheios. O decote era considerável, o comprimento não
muito longo. Esma provavelmente se surpreenderia ao vê-la vestida daquele
jeito. Um vestido negro com bolinhas vermelhas que nunca havia usado.
Meia-calça escura e o insubstituível All Star preto o acompanhavam.Karina
sabia por que estava vestida daquele jeito : para provocá-lo, impressioná-lo.
Era tudo por causa daquele idiota.
Mas ela não podia esconder o medo. As mãos que tentavam parar de tremer.
A cada vez que lembrava de seu pesadelo, suas pernas balançavam, seu
estômago revirava. Aquele certamente era um jogo perigoso. Mas ela havia
se proposto a jogar. Só deveria tomar cuidado para não apostar o próprio
coração. Somente se ele desse o mesmo em troca. Era estranha aquela
situação, tudo acontecera tão rápido. Rápido demais para ser considerado
seguro. Ela descia as escadas de madeira passo a passo, tentando evitar os
gemidos desgostosos daquela parte tão antiga da casa. Mas era o mesmo
que tentar fazer um bebê não chorar com uma canção de ninar das freiras do
Lar Redenção : impossível ainda era uma palavra muito otimista. E essa era
uma situação que ela já havia visto milhares de vezes. As irmãs conseguiam
ser mais assustadoras do que o bicho-papão.
Rick estava sentado na grande poltrona vermelha que ficava logo ao lado do
fim da escada, os óculos finos presos na ponta do nariz anguloso, os cabelos
negros estrategicamente penteados, a gravata frouxa em cima do colete
cinza escuro. Analisava as palavras-cruzadas do jornal matinal com um
interesse excessivo, como se ali pudesse achar a cura do câncer ou algo do
tipo. Mas sem muito sucesso, metade dos quadrados perfeitamente
alinhados continuava em branco. Rick era brilhante como advogado, mas um
fracasso em palavras-cruzadas. Ele sempre acabava se estressando com a
dica e passando para a seguinte.
- Ali, a palavra é ‘trouxa’ – Karina indicou um conjunto de seis quadrados no
canto superior da página já amassada – Uma pessoa não dotada de magia é
‘trouxa’. HP é Harry Potter.
- Eu achei que eles programassem esse maldito jogo para a terceira idade.
Vou ligar pro jornal e pedir pra que eles não sejam tão joviais nas questões.
- Como se você fosse muito velho – ela o beliscou, sentando-se no apoio de
braço da poltrona.
- Vou ter que arrumar suspensórios e uma bengala daqui a pouco, meu bem
– ele riu, aquela risada baixa e tímida que só Rick sabia rir. Karina tinha que
admitir que gostava dele; Rick fazia o máximo possível para ser um bom pai,
para compreende-la. Ele não se grudava ao passado. Diferentemente de
Esma
- Hey, você está bonita. Acho que nunca te vi usando um vestido na vida – ele
observou, intrigado.
- Claro que viu. No casamento de Tia Celeste, aquele troço azul que Esma me
obrigou a usar.
- Ah claro, como fui esquecer? Você manchou o vestido com um batom
vermelho que ela adorava – disse, fingindo descontentamento – qual é a
ocasião agora? Algum casamento que eu não fui convidado?
- Ocasião nenhuma. Eu só achei-o no meu armário. É bonitinho. Resolvi usar.
Tenho que sair mesmo.
- Aonde vai?
- Na casa do pastor Styles – ela bufou – pode me dar uma carona?
- Esma comentou que você é a conselheira de Harry. Devo me preocupar?
Tenho que usar a máscara de pai ciúmento?
- Sinceramente, Rick, ele é o filho do pastor – por fora, ela revirava os olhos.
Por dentro, concordava : ‘ Sim, Rick. Você precisa. Você devia me proibir de
ver esse garoto, ou algo do tipo’.
- Algo me dizia mesmo que ele não fazia o seu tipo – ele olhou para a filha,
um carinho absurdo transparecendo nos olhos cor de avelã – Vamos lá
garota. Esse pode ser carta fora do baralho, mas existem outros gaviões pela
rua.
Ele levantou-se, oferecendo o braço direito para Karina, como num filme dos
anos 20 ou um gentleman qualquer do século vinte e um. Revirando os
olhos, ela aceitou, grata por não ter que andar vestida daquele jeito pela
cidade. Em seu intimo sentia uma certa timidez que nunca antes havia se
revelado. Escondendo novamente a criança assustada que era dentro do
bolso, eles caminharam até o Audi da família, tão vermelho quanto as
bochechas da garota ao pensar no que Styles pensaria quando a visse
daquele jeito.
A porta era cinza como o asfalto sob a luz do luar. Era entalhada com
desenhos de lírios e rosas, era pesada e provavelmente cara. Assim como o
tapete vermelho sob a porta e o pequeno lustre que depositava pontos de
luz nas paredes imaculadamente brancas. Karina observava tudo aquilo um
tanto indignada : Harry desviava dinheiro do dizimo para comprar uma
motocicleta, e parece que isso vinha de berço. Acenou uma ultima vez em
despedida para Rick, que agora voltava para a rua principal a deixando ali a
mercê de momentos incertos. Suspirou, antes de tocar a campainha de uma
vez por todas.
Uma loira que parecia ter saído direto de um dos filmes da Disney atendeu a
porta. Ela devia ser uns 3,4 anos mais nova que Karina. Tinha grandes olhos
cinzas como um dia de tempestade, muito diferente dos verdes perigosos
de Harry. Os cabelos acabavam em cachos perfeitos assim como a
maquiagem leve que usava. Os traços do rosto eram um tanto comuns, mas
também sofisticados e elegantes. Vestia um conjunto de moletom cor-de-
rosa e em seu colo se encontrava um enorme e felpudo gato branco com
cara de poucos amigos. A garota analisou Karina de cima a baixo, antes de
sorrir com todos os dentes perfeitamente brancos e alinhados. O dizimo
devia realmente ser bem gordo para que ela tivesse um tratamento dentário
tão bom.
- Você deve ser Karina. Hazza disse que você viria. Eu sou Angelina, a irmã
dele.
- Como Angelina Jolie?
- Na verdade é uma variação do nome da nossa mãe, mas é, em partes como
Angelina Jolie. Todos me acham parecida com ela – ela riu histérica, os olhos
brilhando como duas pedras preciosas.
- Ahn, claro, claro – Karina concordou, desgostosa – E seu irmão?
- Ele pediu para que você subisse. Hazza está no quarto dele.
- Seus pais não vão se importar? Sabe, eu sou uma garota, e eu vou pro
quarto do seu irmão e vocês são evangélicos e ...
- Não se preocupe, eles não estão em casa. Vocês podem fazer quanto
barulho quiserem – ela piscou, acariciando o gato que parecia querer dar o
bote diretamente no pescoço de Karina, ou algo assim. Angelina puxouKarina
pela mão para dentro da grande casa dos Styles. Essa mania era de família,
pelo visto.
A sala de estar era enorme e fria. A decoração em tons de gelo e pérola não
ajudavam em nada a melhorar a sensação térmica. Haviam três lustres de
cristal, um ao lado do outro, acima de três sofás cor de creme e pufes
brancos. Não se via uma TV em lugar algum. Ao invés disso, quadros
impressionistas e uma grande imagem da Santa Ceia recobriam as paredes. O
carpete macio era cinza e no canto direito erguia-se a magnífica escada
prateada. Hey, os religiosos não deviam abdicar do luxo e da riqueza? Porra,
se aquilo era abdicar, o que era ostentar,hein?
- É só subir – ela indicou – é a primeira porta a esquerda.
Karina balançou a cabeça, num agradecimento silencioso. Subiu as escadas
como um pássaro ansioso pela liberdade. Angelina era sinistra. Toda aquela
casa era sinistra. O corredor do andar de cima era cheio de portas cor de
caramelo, num contraste interessante com as paredes cinzas. Parou em
frente à porta que imaginava ser a de Styles, hesitante. Deveria bater, ou
simplesmente entrar? Bom, se o propósito era provocá-lo, a resposta era um
tanto óbvia.
A maçaneta girou facilmente, silenciosa e macia. A primeira visão que teve
ao entrar no quarto bem arrumado de Harry a deixou um tanto extasiada. A
figura sem camisa exibia os ombros largos e costas musculosas. O corpo
semi-encostado nas portas de vidro de uma pequena sacada respirava
tranquilamente enquanto tragava outro cigarro. Ele era realmente viciado
naquela porcaria. E realmente estava distraído demais para notar a garota
que mordia o lábio inferior numa mania nervosa antes de se aproximar
silenciosamente.
- Você vai acabar morrendo de câncer no pulmão, sabia? – ela sussurrou ao
pé do ouvido de Harry, perigosamente perto para sua segurança.
- Pessoas educadas batem na porta antes de entrar – ele respondeu, sem se
virar para ela.
- Eu nunca disse que era educada.
Aquela frase tão típica de Karina arrancou um riso seco dos lábios tão
sensuais do garoto. Virando-se lentamente, ele apoiou a cabeça na soleira da
vidraça, os olhos verdes atingindo os azuis como flechas, para depois fazer
uma breve inspeção no corpo bem modelado de Karina. Ela não poderia
imaginar que tipo de pensamentos sujos se passavam pela cabeça dele
naquele momento.
- Como adivinhou que eu precisava de um tapete novo para o meu quarto? –
ele provocou-a, puxando a barra do vestido preto levemente. Karina não
respondeu, ignorou-o por um momento enquanto passeava pelo quarto
amplo e claro. Como o dela, também era pintado de azul, mas era
extremamente mais limpo e bem organizado. As paredes eram nuas, a cama
estava arrumada com um cobertor vermelho-sangue e havia um criado mudo
marrom-escuro onde um abajur de mesma cor estava depositado. O armário
embutido tinha portas brancas e longas. Uma escrivaninha cheia de papéis
etiquetados em ordem alfabética e um notebook prata completavam a
mobília. O resto sofria de um vazio, assim como a alma dele,talvez. Havia
uma porta caramelo que provavelmente daria no banheiro e luz por toda a
parte. O sol reinava naquele ambiente.
- Você tem realmente uma coleção de Playboys embaixo do colchão?
- Na verdade, elas não estão debaixo do meu colchão. Disse aquilo para
parecer mais...dramático,talvez. Eu tenho um compartimento secreto no
meu armário. – Harry deu de ombros.
- Seus pais nunca acharam?
- Eles nunca procuraram. Não tem por que desconfiarem de mim.
- Como você sai toda noite sem que eles notem? – Karina continuou
indagando, enquanto sentava-se sobre a cama dele sem constrangimento
nenhum. - Meus pais passam mais tempo na paróquia do que aqui. Eles não
tem muito tempo para notar essas coisas.
- E Angelina, sabe?
- Ela é minha pequena cúmplice. Contanto que eu não conte os podres dela,
ela não conta os meus – aproximava-se vagarosamente, sentando junto a ela
na cama – e se você continuar assim, tão sexy, logo, logo teremos alguns
probleminhas por aqui.
- É bom segurar seu amiguinho dentro das calças, Harry.
- Não tenho pressa, Ká. Nós temos bastante tempo livre. Mas você tem que
parar com isso.
- Parar com o que, exatamente?
- Parar de morder esse seu pobre lábio inferior. Isso dá água na boca, sabia?
– Harry passou o indicador pelos lábios cheios dela, a fazendo paralisar de
tensão num momento – parar de inclinar o colo para frente para ressaltar o
quão presos e tristes seus seios parecem. Você devia deixá-los livres. Eu não
me importaria – o dedo descia para a barra do decote, deslizando numa
caricia atrevida,enquanto ela tentava não suspirar longamente – e por
último, devia descruzar as pernas. Suas coxas já são bem visíveis e tentadoras
sem que você puxe o vestido mais para cima – ele finalizou, passando agora a
mão toda por toda a extensão da perna direita da garota.
- Pare. – ela sibilou, entredentes – pare de jogar esse seu charme barato de
banca de revista pra cima de mim. Você sabe por que estou aqui.
- Por que somos amigos desfrutando uma tarde agradável juntos? – ele jogou
as mãos para o alto, tão inocente quanto um político que jura que não
roubou enquanto coloca mais uns dólares na cueca. Incrível.
- Temos trabalho a fazer. Você já escolheu sua música? – disse ela, se
afastando o máximo possível dele.
- Achei que você tinha que me ajudar a fazer isso.
- Já te dei sugestões.
- Nenhuma que me faça morrer de emoção e gritar em voz alta o refrão.
- Deve ser triste viver numa mentira, Harry – ela cutucou, a agressividade
explicita na voz.
- Você deve saber disso melhor do que eu – ele devolveu, o olhar firme, as
palavras afiadas com uma faca.
- Por que?
- Vou provar que sou seu amigo Karina. Vou ser sincero com você – aquilo
soou mais como uma ameaça do que qualquer outra coisa – Em termos de
mascaras,será que sou eu que uso a maior? Sou eu que tenho fama de
encrenqueiro, mas passo as noites lendo livros em casa? Sou eu que sou
chamado de vadio, puto e adjetivos lindos como esse, mas provavelmente
ainda sou virgem? Sou eu que estou substituindo uma perda?
- Como... Você não tinha o direito – a voz dela falhara.
- Você mentiu pra mim, Ká – ele sorriu irônico – Não foi difícil descobrir. Nem
um pouco. Sua mãe gosta de desabafar com meu pai. Seus amigos falam alto
demais. Meus conhecidos problemáticos nem sequer sabiam o seu nome. Eu
sei juntar 1 + 1, Ká. Acho que sou eu que deveria estar chateado.
- Seu filho-da-puta, idiota! Você não tinha o direito de revirar a minha vida –
ela falava alto demais. Demais – Pra que? Era isso, você pretendia me levar
pra cama e me humilhar depois? Se você descobriu que não sou nada do que
você imaginava, por que ainda estamos nisso?
- Por que você me intriga – os olhos dele ardiam para ela. Sua expressão era
séria como ela nunca havia visto – por que você é extremamente gostosa.
Por que te entender passou a ser meu jogo favorito. É divertido.
- Então é bom arrumar outro jogo – ela levantou-se, tomando o rumo da
porta – É bom me deixar em paz. Pare de investigar minha vida. Não abra a
merda da boca pra ninguém.
- Tarde demais, já elegi você – ele se levantou, a seguindo a cada vez que ela
dava um passo para trás – nossa relação continua a ser igual. Mas agora eu
também tenho um segredinho seu. Isso não vai ser mais divertido? – era
possível tocar a ironia em suas palavras.
- Vá pro Inferno.
- Já estou nele – mais uns passos à frente – vá para casa. Desconte sua raiva.
Daqui dois dias nos vemos de novo. Vamos conversar com calma, meu amor.
Você vai sentir minha falta.
Aquilo já era demais. Ela saiu batendo a porta, voando escada a baixo
novamente. Tudo, tudo dera errado. Ela queria matá-lo, cortar seu pescoço
fora. Ela queria arrancar a sensação do toque dele de sua pele. Ela queria
simplesmente odiar Harry Styles, e não se sentir pervertidamente mais
atraída por ele.

. *You know I’m no good é a minha pequena homenagem a Amy Winehouse,


já que esse capitulo foi escrito no fim de semana da morte dela. E acredito
que combina com esse capítulo: Você sabe que eu não sou boa.
*Like a prayer é uma das clássicas da Madonna : Como uma oração.

Capítulo 6 – A little less conversation

Ela simplesmente não podia acreditar que estava sendo obrigada a ouvir
aquilo. Um balde, por favor? O chão não era digno de seu vômito. Era o
ataque das patricinhas zumbis. A sala do coral nunca esteve tão insuportável
como naquele dia. Alicia Loren e suas duas comparsas, todas com cabelos
perfeitamente loiros e ondulados e grandes olhos verdes e perigosos,
sentadas num banquinho, disfarçadas de viúvas negras em seus vestidos
pretos e rendados, com seus lencinhos imaculadamente brancos e lágrimas
falsas cantando Turning Tables*. E Ernandez realmente parecia prestes a
desabar de emoção também. Ok, duas opções para isso: ou uma pessoa
muito sensata havia chutado o professor, ou ele estava louco pra sair do
armário de vez, já que motivos para achar que ele gostava de jogar no outro
time não faltavam. Visto as sobrancelhas descoloridas e os conhecimentos
exagerados sobre as capas da Vogue. Só assim para uma pessoa ter a
capacidade de agüentar aquele circo de horrores.
Karina ia enlouquecer. Algum Joker* do ensino médio estava tentando
roubar a sua sanidade, sem deixar pistas e com muito sucesso. Na verdade,
ele deixara pistas. Uma pista alta, forte e que tinha um perfume viciante.
Sem falar na personalidade terrivelmente absurda. A sanidade
de Harry Styles já havia sido roubada há muito tempo, e parecia que ele não
fazia questão de recuperá-la. Talvez fosse esse afinal, o motivo pelo qual ele
adorava mexer com a imaginação da garota.
Há dois dias ela evitava qualquer contato físico, mental e sobrenatural com o
garoto. Vamos entender sobrenatural por sonhos pornôs e pesadelos com
pássaros negros. Apesar de que, sendo totalmente honesta, ela não
conseguira evitar o primeiro item. E isso era totalmente desprezível, em sua
humilde opinião. Não era o tipo de sonho agradável para ser ter com o cara
que você supostamente deveria detestar.
Não que o falso religioso não estivesse a sua espreita, pronto para atacá-la
sem dó nem piedade a qualquer momento. Ah, ele estava mais que pronto
para isso. Mas Louis estava lidando muito bem com seu papel de guarda-
costas pessoal nos últimos dois dias. Ou papel de ‘camisinha’, como ela
gostava de se referir a ele, para desgosto do garoto. Ele somente balançava a
cabeça e ria brevemente, como se a garota não tivesse salvação. Sua função
básica era não deixar que nada relacionado à Styles vazasse até chegar a ela.
Papel este que Louis aceitou de muito bom grado após uma sessão de
descarrego de ódio de Karina ao telefone. Parece que Harry havia achado seu
primeiro inimigo. Qual mocinho não tinha seu antagonista? Mas nesse caso
ele não era o cara legal. Ele era o vilão safado, filho-da-puta e gostoso o
qual Karina adoraria nocautear. Infelizmente, até nos sentidos sexuais.
Tratou logo de afastar a idéia da cabeça, correndo os olhos pela
apresentação vexaminosa das colegas para distrair-se. Não funcionou.
O que realmente a preocupava era a promessa dos dois dias. Ele havia
pegado leve até o momento. Mas admitir que ela ansiava pela hora que ele
realmente a obrigasse a falar com ele era difícil. Ela sabia que no final, ele
conseguiria de qualquer jeito. Por que a garota chegara a um novo estado
em sua relação fictícia com Harry. Ela chegara ao patamar da obsessão cega e
mortal.
O que explicava por que ela queria explodir aquela sala de aula. Ou matar
Alicia e seus longos cílios que piscavam insistentemente para Harry. Sintoma
número 2: ciúme. Isso não era nada bom. Mas o que a reconfortava era que
o tipo falsa santa não afetaria a libido do garoto. A não ser que ele estivesse
muito desesperado por sexo e suas mãos não estivessem mais dando conta
do recado. No fim, ela sabia que o tipo vaca descontrolada o divertia e o
instigava mais. E bom, ela era a vaca descontrolada ali.
A dor intestinal a qual elas chamavam de canção terminou, arrancando
aplausos educados de Harry e desesperados de Ernandez. Patético. Pelo
menos Karina não parecia à única enjoada ali. Damian estava verde.
Literalmente. O clima não parecia muito legal entre ele e seu irmão caipira
cujo nome Karina não fazia idéia, mas que cheirava a estrume de vaca e
barro úmido, o que reforçava a distância que ela mantinha do clã fazendeiro
da escola.Parece que ela e Styles não eram os únicos com segredinhos ali a
julgar pelos sussurros baixos e rápidos que os dois emitiam.
O alarme tocando era como música para seus pobres ouvidos ainda
machucados pela voz estridente de Alicia. Ultimamente andava pensando
por que resolvera se inscrever no coral em todas as aulas vagas de ultimo
período. Deveria ter entrado no clube de xadrez. Xadrez era menos estresse
e mais nerds por metro quadrado. Devia ser divertido... E broxante. De
braços dados com Louis, escapuliu pelo corredor, temendo olhar para trás e
encontrar os malditos olhinhos verdes piscando ironicamente pra ela. Ele
adorava fazer isso. Chegar a sua casa a salvo não fora uma coisa difícil. Fora
relativamente simples, na verdade. Louis a deixara sã e salva em frente a
porta de madeira cor de chocolate, depositando um beijo rápido em sua
testa antes de dizer um adeus. Ela sorrira e realmente se sentira segura por
um instante. Até lembrar-se que nenhum lugar era seguro. Ela
provavelmente se esconderia embaixo da cama pelo resto do dia. Ela era
uma Cinderella da pá virada, que só se sentiria livre a meia-noite. Na última
badalada do sino que ficava na igreja dele. Passou correndo por um Rick
distraído nas escadas carregando montes de papéis e livros jurídicos, que
gritou um ‘oi’ desajeitado, antes que a garota batesse a porta de seu quarto.
Com os fones de ouvido no máximo, recusou educadamente o almoço que
Esma veio lhe oferecer: um ‘eu não estou pra NINGUÉM. Deixem-me mofar
em paz‘. Realmente, uma lady.
Uma hora.Uma e meia. Duas horas da tarde. Será que ele realmente
resolvera deixá-la em paz? O maldito havia desistido dela? Seu cérebro
estava entrando em pânico, um conflito interno a preenchia de uma maneira
assustadora: querê-lo ou mandá-lo a merda? O que era certo e errado
naquela história toda? Karina tamborilava os dedos na cabeceira da cama
nervosamente. Sua mente sempre tão decidida e relaxada, agora trabalhava
a mil por hora, num turbilhão de novas inquietações por minuto. Tantas
dúvidas que a rondavam naquele instante, como se fosse uma criança que
acabara de descobrir o mundo e queria saber o ‘porque’ e o ‘como’ de todos
os fenômenos que ocorriam a sua volta, e queria sanar todas as questões
que lhe rondavam. Matá-lo e acabar com todo aquele sofrimento era uma
opção plausível. Se fosse uma assassina. Bom, todo dia é dia para aprender
uma coisa nova, era o que a falecida tia-avó de Rick costumava dizer.
Duas e meia da tarde. Passos pesados na escada e Esma tagarelando
alegremente, como sempre fazia quando algo a deixava realmente
empolgada. Duas e meia? Rick já estava no trabalho àquela hora. Oh-oh.
Parece que temos visitas. Adivinha quem vem para o jantar? * Era óbvio.
Parece que ao menos uma qualidade verdadeira o filho do pastor possuía:
era um homem de palavra. Uma, duas, três batidas firmes na porta. Será que
se fazer de morta adiantaria? Talvez ele arrombasse a porta, ela pensava. Ia
ser no mínimo divertido ver que explicação o bom moço Styles daria para os
Dawson quando questionado sobre por que havia danificado uma
propriedade privada.
- Eu sei que você está ai – a maldita voz de rock pornô a alertou calmamente,
como se falasse do tempo lá fora ou alguma coisa tão banal quanto essa –
Vamos, antes que eu chame Esma pra abrir a porta.
- Voltamos à pré-escola. Você deveria chamar a sua mãe, não a minha. – ela
bufou, um tanto divertida em sua cama, sabendo que estava protegida pela
grossa porta de madeira.
- Se você fizer questão. Posso chamar a cidade inteira se você não abrir a
porcaria da porta agora, Ká.
O tom que ele usava agora era ameaçador, como se fosse um psicopata
pronto para atacá-la. Mas a garota ainda era teimosa o suficiente para fingir
que não se importava. Ela restaurou o silêncio, voltando ao velho jogo de
provocação. Karina era uma provocadora nata.
- Eu não estou brincando. Abra por bem, ou eu posso forjar uma história
muito boa sobre como tive que arrombar a porta por que você estava
ameaçando se matar. Sou um ótimo ator. – era quase como um sussurro,
como uma confissão intima que disfarçava a impaciência dele.
Ela se arrastou da cama, se postando atrás da porta de maneira lenta.
Conseguia ouvir a respiração tranqüila dele. O cafajeste não estava
brincando. Ele era frio como uma pedra de gelo quando se tratava de
conseguir o que queria. Além do fato de que a garota conhecia o poder de
interpretação de Harry. Afinal, ele convencera a cidade inteira de que era um
bom menino, um religioso respeitável e um filho de ouro. Ah sim, aquele
maldito merecia o Oscar. Destrancou a porta, girando a maçaneta
lentamente.
Realmente não esperava o que acontecera a seguir.
Num minuto ela estava prensada pelo corpo dele sobre a porta já fechada
novamente. Harry a segurava firmemente pelos cabelos com uma das mãos,
os olhos verdes em chamas. Karina sentia seu hálito fresco acariciar-lhe a
pele, enquanto engolia em seco todos os sentimentos que lhe afligiam
naquele momento. Medo, surpresa, humilhação e uma tensão sexual que ela
odiava admitir que adorava. Se perguntassem, ela não saberia dizer qual
corpo era de quem naquela confusão. Confusão esta que ela achava
realmente interessante. Para não dizer extremamente excitante e deliciosa.
A outra mão do garoto apertava sua cintura por baixo da regata preta que
ela usava. Num roçar de narizes feito para parecer inocente, mas que só
conseguia enviar cargas elétricas para os corpos de ambos, ele soprou :
- Não aja mais como uma menina má, Karina. Eu tenho sido tão bom com
você, tão atencioso, tão paciente. Retribua a minha generosidade, por favor.
– havia alguma coisa na voz dele que a fazia querer ceder naquele exato
momento. Como se sua voz prometesse que nada no mundo seria tão bom
como experimentar aqueles lábios que a soltavam lenta e deliciosamente.
Mas o orgulho insano de Karina a obrigava a lutar um pouquinho mais. Só um
pouquinho mais.
- Acho que você precisa de um dicionário – ela conseguiu resmungar, um
tanto embriagada, mas sem conseguir passar o falso nojo que gostaria de
demonstrar naquele momento – Generosidade pelo que eu sabia era outra
coisa.
- Você não consegue calar a boca por um minuto – ele respondeu,
direcionando a boca contra a pele do pescoço macio da garota, como se
soubesse que aquele era um golpe realmente baixo – e aproveitar o
momento?
- Que momento? – a lucidez já a havia abandonado. ’Bingo!’, ela pensou, e
mandou o cérebro contrariado para o inferno, enquanto entrelaçava as
pernas desnudas pelo short em volta da cintura dele. Há momentos na vida
em que se deve simplesmente libertar as vontades presas na parte mais
profunda de nossas almas. Para Karina, era agora ou nunca.
- Eu realmente adoro quando você se faz de desentendida.
Harry puxou seus cabelos com um pouco mais de força, obrigando-a a olhá-lo
nos olhos, apertando-a mais contra a porta dura e fria. Era como se seus
olhos se devorassem mentalmente, refletindo as chamas da alma de cada
um. Seus dedos desenhavam círculos sobre a pele lisa da barriga dela,
despertando pensamentos em Karina que nem ela mesma sabia que era
capaz de pensar. O modo como ela mordia o lábio inferior, como se para
mostrar-lhe que era a coisa mais macia do mundo, o atiçava ainda mais,
mas Harry também era um apreciador de provocações. Num riso baixo,
beijou-lhe o pescoço avidamente, deixando marcas na pele branca deKarina.
Ela resmungou alguma coisa sobre ele ser um idiota, mas fechou os olhos
para aproveitar melhor a situação. Cada novo arrepio em sua espinha era
como um novo fogo de artifício explodindo no céu. Como se o falso recatado
soubesse seus gostos secretos e seus pontos sensíveis mesmo sem nunca tê-
la tocado daquele jeito antes. Ou ele tinha uma intuição muito boa, ou
experiências suficientes com garotas tolas como ela para saber o que as
agradaria. Apesar de acreditar mais na segunda opção, ela a ignorava,
deixando sua mente viajar pelo turbilhão de sensações que ele lhe causava.
Foi à deixa perfeita para que ele finalmente chocasse os lábios nos dela com
uma violência que ainda a deixaria louca.
Foi à vez de Karina agarrar os cabelos do garoto de um jeito selvagem,
enquanto dava passagem para que ele deslizasse a língua gelada dele por sua
boca morna, num conflito de temperaturas que só deixava tudo ainda mais
interessante. O beijo soava mais como uma luta pra ver quem conseguiria
tirar o ar do outro primeiro, quem ficaria com os lábios mais vermelhos,
quem se renderia de vez a tudo aquilo. Era pior do que tudo que ela havia
imaginado na vida: era uma passagem sem volta para um vicio eterno. Era o
próprio pecado ali, levantando sua blusa delicadamente enquanto quase a
matava com os lábios macios. Karina tinha consciência de tudo, e de nada. A
cada vez que ele puxava mais os longos cabelos pretos dela, era como se
quisesse engoli-la. Como se fosse o primeiro passo para fundir seus corpos
num só, prendê-la junto a ele até que o dia do Juízo Final chegasse e eles
fossem punidos por todas os prazeres proibidos que ele planejava para os
dois dali para a frente.
Chegava a ser doloroso o momento em que eles precisavam se separar para
buscar ar. Ela escondera o rosto no pescoço dele, passando com delicadeza
seus dentes sobre o pescoço do garoto, que massageava energicamente a
coxa direita da garota com uma maestria que qualquer um invejaria.
Inspirando o perfume amadeirado no qual ela já havia viciado no colarinho
dele uma última vez, ela voltou a procurar os olhos verdes que ela tanto
apreciava. Olhos verdes que carregavam uma carga de malícia, mas ao
mesmo tempo um certo deslumbramento que seria imperceptível se
naqueles poucos dias ela já não tivesse decorado cada variação daquelas
pupilas. Harry passava os lábios nos dela como se quisesse gravar o gosto
exato que eles tinham, sem pressa nenhuma. A mão que prendia seus
cabelos agora afrouxava o puxão, transformando-o numa carícia quase gentil
e arrebatadora, enquanto a outra mão trilhava o caminho da coxa da garota
até a barra de sua regata preta, levantando-a quase imperceptivelmente,
grudando seus olhares novamente como se a desafiasse a impedi-lo de
continuar. Ela não o faria. Não enquanto podia sugar-lhe o lábio inferior e
depositar um selinho demorado em seus lábios, só para finalizar a carícia
com a língua molhada os desenhando para finalmente mordê-los como fazia
com os próprios numa mania imutável. Aquela altura do campeonato os
dedos dele já tentavam se infiltrar por dentro do sutiã vermelho que ela
usava. Foi o momento ideal para que ela o beijasse novamente.
Era alucinante, quase assustador o modo como um queria o outro.
Desesperadamente, urgentemente. O mundo poderia explodir, eles não
ligavam, se estivessem ali, juntos sem que houvesse amanhã. Num beijo tão
intenso e devastador como o primeiro, ela lutava para desabotoar os
primeiros botões da camisa azul clara que ele usava, para finalmente poder
espalmar as mãos pelo peitoral definido que, se anjos realmente existissem
como ele pregava, só poderia ter sido esculpido por querubins. Aproveitou
para passar as longas unhas pintadas de preto por ali, deixando marcas
vermelhas que seriam um problema se ele não usasse camisas tão fechadas.
Como um castigo para a garota, ele quebrou o beijo por um momento, e,
num sorriso maligno que poderia significar qualquer coisa, abaixou
juntamente a alça da regata e do sutiã que cobriam a parte direita de seu
ombro, para poder depositar beijos terrivelmente sensacionais por toda a
extensão de pele nua de Karina, próximo demais de seu seio ainda coberto.
Um suspiro longo escapou dos lábios da garota, quase como uma súplica.
Súplica esta que ele teria atendido, não fossem três calmas batidas na porta.

*A little less conversation é uma música incrível e viciante do rei do rock, Elvis
Presley, e o retrato desse capítulo: Um pouco menos de conversa
*Turning Tables é uma canção linda da Adele
*Joker é um dos maiores inimigos do Batman,o bom e velho Coringa
*Adivinha quem vem para o jantar? é um filme estadunidense cômico-
dramático de 1967 dirigido por Stanley Kramer e vencedor do Oscar de
melhor roteiro original

Capítulo 7 – Between the burning light and the dusty shade

- Está tudo bem ai, queridos? – a voz de Esma atravessava a fina porta de
madeira, doce, suave e irritantemente prestativa – Precisam de alguma coisa,
uma água, alguns biscoitos?
Harry precisou beliscar a barriga exposta de Karina para que ela saísse do
estado de choque em que se encontrava. Ela realmente não sabia com o que
estava mais surpresa: com Esma os interrompendo ou com o fato de que sim,
ela e Harry estavam praticamente se devorando ali naquela porta. No quarto
dela. Karina estava se amassando com o filho do pastor no quarto dela. Céus,
aquilo parecia errado, ou pervertido, em todos os sentidos. Uma cena
tragicômica de um filme sem graça alguma.
- Tudo certo, Esma. Estamos, ahn... – ela olhou feio para o garoto, que
recomeçara os carinhos em sua cintura, o sorriso largo e malicioso lhe
estampava os lábios quando ele deu a entender que queria se livrar das
peças de pano que cobriam os seios da garota. Ela o repreendeu num
resmungo baixo – estamos estudando algumas partituras. Não precisamos de
nada.
- Se precisarem de alguma coisa, qualquer coisa, me chamem! –uma última
tentativa de ser a mamãe prestativa que ela nunca era antes que os saltos
altos voltassem a castigar o chão de madeira, levando Esma para longe.
- Tudo bem, tudo bem – ela suspirou alto. Os olhos verdes ainda pareciam
querer engoli-la quando os azuis os encaravam. Os lábios dele voltaram a
roçar lentamente nos vermelhos e inchados dela, numa tentativa baixa de
restaurar o torpor anterior. A mão esquerda voltou a acariciar o pescoço da
garota, descendo lentamente até a barra da alça abaixada de sua regata. Foi
nesse instante que uma pequena lâmpada se acendeu no cérebro da garota,
a fazendo fincar os pés na realidade. A mão direita levantou no ar num ato
reflexo bem planejado, acertando a face de Harry com um tapa certeiro e
dolorido. Ao menos o barulho do encostar da palma da mão da garota na
face perfeita do filho do pastor fez tudo aquilo parecer mais dramático
ainda.
- Mas que vadia...! - Harry exclamou, a largando sem qualquer dó ou piedade
no chão gelado de madeira, massageando a bochecha dolorida enquanto se
afastava. Karina permaneceu ali, decidida a canalizar apenas o ódio e não
o calor, enquanto ele andava pelo quarto, nervoso, tentando talvez se
acalmar. A garota massageava as têmporas lentamente, mas o desejo se
recusava a sair de seu corpo tão facilmente. Queria pular em cima do garoto
novamente, sentir os lábios tão macios e decididos que se encaixavam
perfeitamente nos seus mais uma vez. Mas não iria se repetir. Erros são
feitos para serem cometidos apenas uma vez. Depois você precisa aprender a
lição e tentar não se foder completamente. Mas que disse que ela conseguia
dar essa ordem ao seu maldito cérebro? Ela somente conseguia observar o
objeto de desejo de seu corpo admirando a marca vermelha no espelho do
pequeno banheiro da garota. Uma pontinha de arrependimento surgiu na
boca de seu estômago.
- Você ainda está ai, é? Desista, depois desse tapa você está de castigo. Nós
não vamos transar hoje – Harry saiu do banheiro, abotoando a camisa azul
clara sobre o abdômen musculoso, parecendo mais arrogante do que nunca.
O arrependimento passou instantaneamente. Karina tinha que se lembrar
constantemente que Harry não valia o chão que pisava. Ela não precisava se
importar com ele, pelo simples fato de que ele não se importava com
ninguém. Harry era o centro de seu próprio mundo.
- Nem nunca, se depender de mim – ela respondeu, arisca, se levantando
para arrumar a regata preta bagunçada em seu corpo minutos atrás por
certas mãos que deixaram rastros de fogo em seu corpo. Se iria bater de
frente com o Senhor Oi-eu-sou-irresistível, queria pelo menos estar digna
para o campo de batalha.
- Não era o que parecia há cinco minutos atrás. – Harry se encostara na
imensa janela do quarto, puxando um cigarro do bolso e fingindo que a
garota era uma criança de cinco anos de idade. Como se ele tivesse uma
mente muito mais adulta.
- Aquilo foi um deslize. Um maldito deslize que nunca mais vai acontecer
– Karina rosnou, o sangue fervendo nas veias, um ódio misturado com resto
de tesão que ainda permanecia impregnado em todo o seu ser. Harry riu
seco, aquela risada irônica tão dele quanto o olhar provocante e o corpo
sedutor. Não foram necessários mais do que três passos largos para que ele a
puxasse sem cerimônias, e a encurralasse contra o vidro frio da janela. Os
olhos verdes nunca pareceram tão perigosos, a mão direita voltara a brincar
com o cabelo de Karina. Ele soltou a fumaça lentamente, direto contra os
lábios entreabertos da garota, um gesto silencioso, uma mensagem sublime.
Ele conseguia inebriá-la como a nicotina fazia naquele momento. E ela
somente engolia em seco, o medo tomando conta de cada célula de seu
corpo. Demonstrar isso seria bobagem, mas era meio que impossível não o
fazer com o garoto tão perto assim.
- Acho que você ainda não entendeu, Amy. – ele sussurrou, intimidador,
dando uma última tragada no cigarro antes de jogá-lo pela janela – Eu não
dou a mínima pro que você acha, pro que você quer, ou pro que você sente.
Eu sou egocêntrico demais pra isso. - uma risada baixa e maníaca escapava
dos seus lábios enquanto ele passava o dedo indicador pelo rosto da garota-
Nós vamos transar quando eu quiser. Não me importa se você está pronta
pra perder sua preciosa virgindade ou não. Não me importa se for no seu
quarto, no meu ou no pátio da escola. Quando eu quiser você de verdade, eu
vou ter. E você vai adorar, por que no fim, você é só uma masoquista filha-
da-puta, Amy. E eu adoro isso em você.
Puxando seus lábios para um último beijo rápido e possessivo, que,apesar do
gosto do cigarro misturado ao agora já conhecido sabor de chiclete de
hortelã, só conseguia fazer aumentar a vontade de Karina de ter Harry junto
a si novamente, ele sorriu uma última vez ao quebrar o contanto dos corpos,
indo em direção a porta do quarto.
- Por que não agora? Por que não aqui? – ela o provocou, afinal, querendo
bater a cabeça na parede a cada vez que se dava conta do quão facilmente
ela se rendia aos encantos do filho do pastor – Você não é homem o
suficiente para isso? Aposto que esse seu discurso é feito de promessas
vazias que nunca vão se cumprir.
- Por que, Karina, eu não preciso de você agora. Não estou morrendo por
uma transa. Eu tenho dinheiro, posso pagar uma prostituta qualquer da
cidade vizinha. Por que você não está pronta do jeito que eu quero. Por que
você foi uma menina muito, muito má e eu não vou te dar esse prazer de
transar comigo tão facilmente. E por último – ele piscou, marotamente,
antes de passar os olhos pelo quarto pintado de azul – por que este lugar
cheira a talco, fraldas e ursos de pelúcia.
E a porta se fechou no instante exato em que Karina jogou um tênis contra
ela, esperando acertar o maldito sedutor de olhos verdes.

A sexta-feira começara com um típico friozinho outonal, as folhas caindo


sobre calçadas, fazendo barulho quando pisadas. O dia favorito da semana
de estudantes entediados não seria tão bom assim para Karina. Não depois
que ela acordara com a lembrança da promessa que fizera a Harry: “Sexta-
feira ,voltamos na sexta-feira.” Se alguma vez se arrependera de alguma
coisa em sua patética vida, fora daquelas poucas palavras. Principalmente
depois do dia anterior e o jeito como ele falara com ela. Como se fosse seu
dono, e ela seu brinquedinho sexual favorito. E o beijo. O maldito beijo no
qual ela havia pensado a noite toda. E que lhe causava arrepios pelo corpo
todo.
Ela colocava seu casaco de moletom vermelho-sangue quando Esma abriu a
porta do quarto, sorridente. Esma era uma mulher pequena, de olhos
grandes brilhantes e muito verdes. O cabelo ruivo caia em cachos fofos ao
redor das bochechas salientes. Os lábios pintados de coral mostravam um
sorriso que seria considerado maternal por muitos, mas não para Karina.
Para ela era só um sorriso vazio. A mulher usava um vestido azul marinho
que combinava com um casaco curto da mesma cor, e saltos altos e negros
nos pés. A rainha do lar, pronta para oferecer uma torta de amoras aos
primeiros vizinhos que chegassem, e sorrir ao mostrar sua casa
impecavelmente limpa, com certeza.
- Karina, querida – sua voz baixa e gutural a chamou – Louis está esperando
por você lá embaixo.
- Diga a ele que já vou – a garota respondeu seca, desviando o olhar para a
calça skinny que usava. As coisas com a mãe adotiva sempre foram
complicadas, desde que a garota chegara ali. A relação das duas era muito
diferente do que Esma esperava ter com sua nova menininha. Se por
Rick Karina tinha uma afeição gigantesca que a fazia não ser um projeto de
vadia toda vez que ele lhe dirigia a palavra, com a sua digníssima esposa as
coisas não funcionavam assim. Ela nunca hesitaria antes de ser grossa com a
matriarca. O sorriso de Esma fraquejou quando ela concordou levemente
com a cabeça, antes de deixar a passagem livre para Karina.
Louis esperava junto a porta de entrada da casa, um casaco xadrez azul de
gola alta escondia parte de seu corpo. Era exatamente o tipo de roupa que
gostava de usar. Mostrou a língua para a garota quando esta o beliscou,
antes de abraçá-lo fortemente. Louis conseguia levá-la para um mundo onde
as coisas eram mais fáceis, onde nada a machucaria e onde não existissem
igrejas ou pastores com filhos demoníacos.
- E Carine? – ela fungou, quando se deu conta da falta da ruiva que sempre o
acompanhava.
- Ficou em casa. Disse que pegou uma gripe saturniana, ou algo do tipo.
- Se vocês não fossem gêmeos, ninguém diria que são irmãos.
- Todo mundo me diz isso – ele suspirou, dando de ombros por um momento
– É lindo,não? Às vezes acho que precisamos dar um choque de realidade na
minha querida irmã. Mas, mudando de assunto por um momento, e Styles,
voltou a te incomodar?
- Não – a mentira escapou-lhe pelos lábios mascarados com batom vermelho,
querendo desviar o assunto que a atormentava nas últimas horas – Vamos?
Quantos antes chegarmos ao colégio, antes saímos.

Ernandez parecia mil vezes mais agitado do que o normal enquanto ajustava
os suspensórios vermelhos por cima da camisa azul clara de mangas curtas
que usava. Jogava os cabelos loiros demais para trás enquanto esperava seus
alunos lentos como lesmas se acomodarem nas cadeiras frias e duras da
pequena sala do coral. Karina havia voltado ao seu lugar de origem, o mais
longe possível de Harry. Um leve tremor de irritação ainda agitava seus
músculos a cada vez que se lembrava dos últimos acontecimentos
extasiantes e vergonhosos em seu quarto na casa dos Dawson. Seu cérebro
trabalhava rápido em maneiras de dar o troco, de fazê-lo tremer e se sentir
tão irritado quanto ela. Queria apagar de sua carne as lembranças que Harry
deixara, e se focar somente no fato de que o garoto em questão não
prestava. Nem merecia que ela gastasse tanto tempo pensando nele. Sextas.
Dias de apresentação voluntária. Ela poderia fazer algo. Dar um pequeno
recado ao filho do pastor, algo para que ele se lembrasse de que ela não era
tão fácil assim de se intimidar. Para mostrar-lhe que não era somente um
objeto que ele poderia manipular da maneira que quisesse, deliciar-se com
seu uso e depois encostá-lo na parede para voltar a utilizar quando bem
entendesse. Karina poderia ter um coração congelado pelos anos difíceis,
mas não era nenhuma tola. Também tinha armas a serem utilizadas naquele
jogo. Perdera o primeiro round: Harry rompera suas defesas com a facilidade
de quem rasga uma folha de papel em duas partes iguais. Mas era sua vez de
atacá-lo. Com um dardo que ela já havia arremessado antes, mas não com
força suficiente. Era hora de tentar outra vez.
No momento em que todos os estranhos membros do coral já estavam em
sua presença, o professor Ernandez dedilhou lentamente um piano negro e
antigo que raramente era usado, afim de tentar prender a atenção daqueles
adolescentes de hormônios em polvorosa e cabeças distantes. Abriu um
sorriso sem cor nenhuma, a pele muitos graus mais branca do que o
normal, Karina pode reparar. Suas mãos se esfregavam rapidamente, como
se tentassem se aquecer em pleno calor agradável que marcava num
termômetro em um canto distante da sala. Quando todos os pares de olhos o
fitavam curiosamente, ele apenas tossiu duas vezes, sem querer, antes de
começar a falar.
- Me desculpem. Algumas crianças do primário estavam gripadas, e elas
gostam de abraçar seus professores. Não estou me sentindo muito bem. Mas
não se preocupem, não pretendo passar nada pra vocês – ele riu, sem humor
– Tenho uma consulta daqui a 20 minutos, então, serão liberados mais cedo.
Mas, já que estamos aqui, temos tempo pra ouvirmos uma dupla de meias
canções. Exatamente meia canção para cada um, um trecho e um refrão. E
para difícil tarefa de nos entreter por alguns minutos, eu pensei em Karina
e Harry. Vamos ver se Harry está sendo bem orientado. Quem pretende
começar?
- As damas primeiro – Harry dirigiu os olhos verdes faiscantes para ela, um
meio sorriso misterioso no rosto – Karina e sua voz encantadora, no caso.
- Oh, ele é sempre tão gentil , não? – ela rolou os olhos – Idiota - Sussurrou
para ele, ao esbarrar propositalmente em sua cadeira. Caminhou lentamente
até ficar ao lado de Ernandez, observando os colegas por um momento antes
de ter uma pequena idéia surgindo em sua mente.
- Minha meia canção é Secret, do The Pierces – ela riu baixo de uma piada
interna qualquer – E eu a escolhi por que, bom, todos nós temos nossos
segredinhos, não é? Segredos sujos que contaminam nossos corações tão
puros – Karina piscou inocentemente para Harry, que fingia não perceber.
- Quando quiser – Ernandez apertou levemente seu ombro antes de sentar-
se em um banquinho de madeira ao lado do já esquecido piano. Um pigarro
escapou dos lábios vermelhos da garota antes de iniciar a canção.
- Got a secret, can you keep it? Swear this one you'll save. (Tenho um
segredo, você pode guardá-lo? Jure que esse você vai guardar) – Karina
entoava em sua voz sedutoramente angelical, passando os grandes
olhos azuis por todos os presentes ali, fixando-os junto com seu sorriso de
deboche nos olhos verdes de Harry. Ele permanecia sério, quase entediado,
como se o único motivo para que estivesse ali fosse o respeito pela
companheira de coral. Mas isso não abalou a garota, extremamente teimosa
- Better lock it, in your pocket, take this one to the grave. If I show you then I
know you won't tell what I said (Melhor trancá-lo em seu bolso. Leve-o para o
túmulo. Se eu te mostrar então eu sei que você não vai contar o que eu
disse) – Pela visão periférica ela conseguia ver um sorriso divertido se
formando nos lábios finos de Louis e direcionado com uma certa maldade
para Harry. O garoto conseguira entender melhor do que ninguém o que
estava acontecendo ali. Damian também se mostrava atento a canção
de Karina, mas a expressão era indecifrável. Os olhos pareciam escuros e
mergulhados numa tristeza absurda. A garota resolveu ignorar e voltar a
última parte de seu refrão - Cause two can keep a secret if one of them is
dead. (Porque duas pessoas podem guardar um segredo se uma delas estiver
morta)- A batida da banda de apoio a fez mecher as mãos de um lado para o
outro, acompanhando a melodia, colocando em cada palavra cantada tudo
aquilo que queria cravar na mente de Harry. Eles estavam nas mãos um do
outro, isso não podia ser negado. As pernas tremiam levemente toda vez que
se lembrava que ele também teria o direito de se expressar por meio de
notas e sinfonias, que poderia se vingar dela de todos os modos possiveis.
Mas ela não se importava. Tudo na vida de Karina havia se baseado nos
riscos. Certezas eram raras e perigosas, e ela aprendera a lidar com aquilo
- Why do you smile like you've been told a secret? Now you're telling lies,
because you just want to keep it . But no one keeps a secret. No one keeps a
secret. (Por que você sorri como se tivesse contado um segredo? Agora você
está contando mentiras, porque você só quer guardá-los. Mas ninguém
guarda um segredo. Ninguém guarda um segredo) – Apertando os olhos,
apenas sentindo a música envolvendo-a e a transportando-a para um lugar
qualquer. Era por isso que estava no coral. Por que Karina precisava de
música em sua vida tanto quanto de oxigênio - They burn in our brains,
become a living hell. Because everybody tells. (Eles queimam em nossos
cérebros,transformando-se em um inferno.Porque todos contam ) – Karina
gostava de finais. Do modo como as palavras dançavam em sua boca, sendo
estendidas até onde se era possível. Num suspiro longo seguido de um abrir
repentino de olhos, ela saboreou os últimos acordes - Everybody tells (Todos
contam).
Talvez os aplausos fossem a melhor parte de acabar uma canção. Sentir o
reconhecimento, os sorrisos estampados em rostos sinceros e olhos
brilhantes de entusiasmo. Exceto os olhos verdes que tanto a intimidavam,
que num brilho fosco, pareciam tramar algo. Karina tinha certeza que as
engrenagens do cérebro de Styles trabalhavam arduamente para achar um
modo de pisar em toda a dignidade que restara no corpo esbelto da garota.
Uma vingança doce talvez, uma música sobre uma boa moça disfarçada de
vagabunda. Ela tinha certeza de que deveria existir algo assim em algum
lugar. Mas precisava sentar-se novamente em seu banco junto à parede,
enquanto Harry se dirigia a frente do piano e sussurrava alguma coisa para
um guitarrista que passava ali ajustando as cordas de sua guitarra. Karina
segurava as mãos firmemente em seu colo, somente esperando os versos
iniciais. Com as mãos nos bolsos da calça social azul escuro que usava, Harry
direcionava a todos os presentes um tipo de sorriso recatado e doce que a
garota tinha certeza que era falso. Mas a carga de um simples olhar em sua
direção a fez se arrepiar totalmente.
- And I'd give up forever to touch you,'cause I know that you feel me
somehow (E eu desistiria da eternidade para te tocar,pois eu sei que você me
sente de alguma maneira)- Harry tinha o tipo de voz deliciosa demais para
que qualquer outro som fosse emitido no ambiente. Todos pareciam meio
hipnotizados, seduzidos pelo modo como ele dava vida àquilo que cantava,
como colocava corpo e alma em cada nova frase formada. A voz de rock
pornô que tanto arrepiava a garota quando sussurrada em seu ouvido
conseguia ser mais venenosa e encantadora quando usada daquela maneira.
E Karina arfou sem querer quando se deu conta da canção que saia daqueles
lábios que ela havia provado no dia anterior. E o fato de que ele não a
encarava agora, somente distribuía seu olhar vazio a aqueles que lhe pediam
desesperadamente pelo pouco de luz que ele conseguia emanar, só fazia
com que o estômago da garota se rebelasse e seu coração ficasse totalmente
comprimido na caixa torácica - You're the closest to heaven that I'll ever be
and I don't want to go home right now (Você é o mais próximo do paraíso
que sempre estarei e eu não quero ir para casa agora) – Karina já tinha
perdido completamente o coração ao ouvir aqueles simples versos, por que,
no instante em que eram proferidos, um sorriso de canto surgia nos lábios
daquele que domava as palavras, e os olhos verdes pareciam lhe indagar se
aquilo lhe parecia familiar. Todas as vezes que ela lhe afirmara que ele era o
Inferno, somente para ele acabar com todas as suas armas a chamando de
Paraíso. Tudo parecia tão azul e confuso, como se girasse num momento. Era
a cartada de mestre de Harry. Como se tirasse o coelho mais branco e peludo
da cartola -And all I can taste is this moment, and all I can breathe is your life,
and sooner or later it's over. I just don't want to miss you tonight (E tudo que
posso sentir é este momento,e tudo que posso respirar é a sua vida,e mais
cedo ou mais tarde se acaba.Eu só não quero ficar sem você essa noite) – E
por mais impossível que fosse, ela tentava se concentrar em qualquer coisa
que não fosse a canção mais romântica de todos os tempos sendo
interpretada de um modo a mostrar todas as segundas intenções e os
segredos escondidos de Harry. Por que enquanto Karina era boba e impulsiva
a ponto de insinuar que ele tinha segredos, o garoto era inteligente o
suficiente para colocá-los a vista para que todos pudessem compreende-los,
mas ninguém entendesse que aquela era a verdade nua e crua sobre o filho
do pastor diante dos seus olhos. Ninguém além dela -And I don't want the
world to see me 'cause I don't think that they'd understand. When
everything's made to be broken I just want you to know who I am (E eu não
quero que o mundo me veja porque eu não acho que eles
entenderiam.Quando tudo é feito para não durar eu só quero que você saiba
quem sou eu)- Todo o turbilhão de pensamentos que a puxavam para que ela
se afogasse eternamente em dúvidas forçavam seus canais lacrimais. Mas ela
prometera que nunca choraria por um homem. Ainda mais por um homem
por quem ela não sentia nada. Karina não sentia nada por Harry. Nada que
fosse positivo. Nada além de ódio, nojo e irritação. Era disso que ela tentava
se convencer. De que tudo aquilo não era um modo de o filho do pastor
mostrar que ainda tinha um pouco de humanidade no monstro que ele havia
se tornado. De mostrar que ainda possuía sentimentos que não lhe
beneficiavam. Que ainda se importava com alguém. Aquilo não passava de
outra artimanha para que Karina ficasse confusa e se rendesse de vez a ele.
Era aquilo que ela devia se agarrar. Não aos olhos fortemente fechados e as
mãos que gesticulavam enquanto a boca perfeita finalizava a canção. Ela
deveria continuar focada no jogo - I just want you to know...who I am (Eu só
quero que você saiba...quem eu sou)
. Os aplausos enchiam a pequena sala, fazendo com que alguns se
levantassem com lágrimas nos olhos e corações partidos. O Sr.Ernandez
parecia tremendamente abalado e encantado ao mesmo tempo. Karina se
ordenava a manter o rosto sério, sem transparecer tudo aquilo que sua
mente engenhosa se perguntava. Ela não queria saber. Não queria respostas.
Aquilo era um pesadelo e assim que Harry se cansasse, iria acabar. Mas ela
deveria deixar de lado essas doces ilusões.
- Cidade dos Anjos é realmente um filme lindo...e Iris, nossa, acho que você
não poderia ter feito escolha melhor Harry – o professor apertava
firmemente a mão do garoto, que somente agradecia em silêncio, um sorriso
discreto formado nos lábios – Muito profunda e perfeita para o seu tom de
voz. Parece que Karina está fazendo um trabalho excelente. Semana que vem
teremos a resposta definitiva – ele piscou para a garota, como se a
incentivasse – Por hoje é só, crianças. Até segunda.
O único trabalho excelente que estava sendo feito ali era o de Harry contra
os pobres neurônios da garota. E o placar somente aumentava, dando a
liderança da partida para o falso recatado. Ao menos por enquanto.

*Between the burning light and the dusty shade é um trecho da linda I was
broken, do Marcus Foster: Entre a luz queimante e a sombra poeirenta. Uma
bala pra quem adivinhar que é a luz e quem é a sombra nesse capítulo.
*Secret, música cantada pela protagonista, é a abertura do seriado Pretty
Little Liars e é cantada pelas lindas do The Pierces. Já o filho do pastor
canta Iris, música perfeita do Goo Goo Dolls e trilha sonora do filmeCidade
dos Anjos.

Capítulo 8 – I can’t get no satisfaction

A temperatura parecia baixar um grau a cada barulho alto que os saltos


gigantescos de suas botas negras faziam ao tocar o chão sem compaixão
alguma. A noite sem estrelas parecia preparada para algum acontecimento
grandioso, passos perigosos de criaturas que a ela pertenciam, rock’n’roll nas
alturas e pecados em cada esquina. Adrenalina passava por suas veias como
um veneno letal alterando os planos originais de seu cérebro confuso. Os
jeans escuros nunca foram tão apertados, e a jaqueta de couro já tão
conhecida ganhava outra conotação quando usada fechada por cima de
somente um sutiã da mais pura seda azul-marinha. Nem as lâmpadas
fantasmagóricas da Storage Street conseguiriam deixá-la intimidada naquela
fatídica sexta-feira.
Porque Karina havia passado as últimas cinco horas mergulhada nas águas
mais profundas as quais se era possível alcançar em sua mente. Cada palavra,
cada cena, ato e emoção passavam diante de seus olhos, como um filme em
preto e branco que só conseguia fazer uma raiva eminente crescer em seu
peito. As cicatrizes espalhadas por sua alma haviam deixado sua paciência
reduzida a zero e a sua teimosia elevada aos mais altos níveis. O
enigma Harry Styles começara a passar de intrigante para irritantemente
desprezível. O modo como ele conseguia moldá-la a suas próprias vontades,
enlouquecê-la com seus jogos mentais e debochar de suas atitudes, tudo isso
na velocidade da luz já eram motivos suficientes para que Karina se sentisse
ultrajada. E naquela noite, enquanto o esperava em frente ao velho banco de
praça, a única coisa que passava por sua mente era que ela tinha o direito de
exercer vingança.
O ronco do motor de uma antiga Harley Davidson vermelha ressoava
majestoso na rua silenciosa. O farol único de luz amarela a cegou por um
instante, o suficiente para que ela crispasse os lábios pintados de vermelho e
respirasse fundo uma última vez. A imagem imponente do filho do pastor e
seu sorriso sarcástico de canto de lábios fora o combustível final para que
sua determinação não fosse pelo ralo. A noite lhe pertencia, assim como seu
livre-arbítrio. Três passos longos foram o suficiente para que ela pudesse
sentar-se silenciosamente atrás dele, as mãos presas as laterais da
motocicleta. A falta notável dos capacetes que ele sempre trazia consigo não
a deixaram assustada, no entanto. Eles costumavam ativar suas pequenas
crises de claustrofobia. Observar as costas másculas de Harry subindo e
descendo calmamente no ritmo de sua respiração começava a deixar a
garota um tanto distraída. A falta de palavras mutua nos primeiros dez
minutos mantinham sua cabeça no jogo.
- Bonitinha, comportadinha e quietinha – a voz quente a surpreendeu, um
riso disfarçado entre as palavras, uma breve pausa para que ela as
assimilasse, confusa, antes que ele completasse a sentença maliciosamente
como sempre fazia – Parece que alguém descobriu o significado
de ‘respeito’ e quem o detém aqui.
Mesmo com o sangue fervendo por todo seu corpo, sua boca bem
desenhada continuou calada, os olhos perdidos em algum ponto da estrada.
Respondê-lo com uma frase que sairia às pressas de sua língua, tropeçando
nas palavras e se enrolando com as sílabas, não era uma idéia muito
inteligente. Esperar o momento certo para cravar um punhal em suas costas
definidas com certeza era muito mais digno de aplausos. As luzes da cidade
vizinha iam se acendendo aos poucos, a rua do Incantatem se aproximando
com seus risos altos e carros lotando cada vaga disponível. Mas o lugar
favorito de Harry continuava ali, vazio, como se reservado para o garoto.
Soltou-se da garupa o mais rapidamente que pode, preparando-se para
andar até o Incantatem sem olhar para trás nem ao menos uma vez. Mas
subestimar a rapidez e teimosia de Harry com certeza era o ponto fraco de
todo seu plano diabólico que não existia nem na teoria, nem na
prática. Karina somente seguia seus instintos mais rebeldes e insanos,
esquecendo-se de que o filho do pastor era mil vezes melhor nessa arte tão
perigosa.Harry agarrou-lhe o pulso firmemente, os olhos verdes procurando
pelos dela, brilhavam como num incêndio. Bastou somente um puxão para
que ela estivesse presa em seus braços, intoxicando-se com seu perfume
amadeirado que parecia estar por todos os lugares nos últimos tempos.
Aquele sorriso que lhe despertava ódio e desejo continuava lá, intacto, como
se Harry soubesse de coisas que a garota ainda não sabia. As respirações
misturavam-se, a dele lenta como uma brisa marítima, a dela descontrolada
como um furacão no meio do oceano. E a tempestade que ocorria naquela
troca de olhares poderia acabar com toda a energia elétrica daquela
pequena cidade. Abrindo a boca levemente, ele soltou as palavras, uma por
uma, como se as saboreasse com deleite.
- Nenhuma reclamação? Nenhuma ofensa ou um palavrão sequer? – Karina
mantinha os lábios apertados numa linha fina, o olhar sustentado pelos
globos verdes de Harry. Em toda sua vida seu cérebro nunca havia sido
obrigado a trabalhar tão rapidamente como naquele momento, analisando
possibilidades, formando frases e as riscando em seguida, montando o
rebate perfeito para a arrogância impregnada em cada músculo atraente do
corpo do garoto. – Quem é você e o que fez com a minha querida Ká?
- Meu nome – ela passou o indicador pelos lábios cheios e entreabertos do
garoto, sussurrando, tentando não se intimidar por suas palavras ardilosas ao
mesmo tempo que observava os olhos verdes se fecharem e os lábios se
esticarem num sorriso convencido. A garota não sabia o que o deixava mais
animado, suas palavras felinas ou suas caricias delicadamente ousadas. Os
dois pareciam extasiá-lo de um modo que faziam os cabelos da nuca
de Karina se arrepiarem permanentemente, os olhos azuis num misto de
desejo carnal e vingativo que pareciam ter sido feitos para andarem juntos –
é Karina. E caso você não tenha entendido, meu bem, eu não pertenço a
ninguém. A noite é minha aliada, não minha inimiga – Karina ria baixinho ao
notar os lábios bem desenhados de Harry se fecharem numa linha quase
imperceptível, um par de olhos viciantemente verdes a analisando de novo,
esperando seu próximo passo com curiosidade – E, se você pretende passar
toda a noite aqui, no sereno, eu não dou a mínima. Eu quero uma dose de
vodka.
- Karina – Harry frisou o nome da garota, as mãos no bolso do jeans depois
que ela se soltou de repente, dois passos a frente com seu rebolado habitual,
como se fosse a dona do mundo ou algo tão importante quanto. Os cabelos
longos e pretos balançaram suavemente quando ela o encarou uma última
vez, os olhos em fendas, os dele brilhantes como diamantes, principalmente
ao vê-la rolar os seus e entrar no cheio Incantatem após sua cartada final. –
Vai ser um prazer dividir o Inferno com você.
O lugar estava lotado como Karina nunca havia visto antes, cada pequeno
espaço do piso de madeira ocupado por uma pessoa animada com um copo
colorido em mãos, distraídos ao som de uma banda cover qualquer que
tocava sob um palco improvisado ao lado do bar. Misturando-se a multidão
empolgada, ela desviava-se de choques dispensáveis com estranhos bêbados
demais, encaminhando-se a um lugar tranqüilo onde poderia conseguir uma
bebida. Sentia a mão firme de Harry em sua cintura, mas pela primeira vez
em dias ele não a guiava, somente a deixava levá-lo, uma prova de que havia
entrado no jogo, ainda que fosse cheio de segundas intenções. Karina
encostou-se na bancada de madeira escura do pequeno pub, os olhos
atentos a procura de um rosto conhecido, mas os olhos verdes de Damian
não pareciam estar em lugar algum. Ao invés do colega de escola, um garçom
de dreadlocks coloridos e piercing no nariz sorriu para ela, os braços
cruzados sobre o peito e um olhar intenso que faria qualquer garota que não
fosse estranha como Karina se abanar com um guardanapo. O garoto
aproximou-se sorrateiramente pro trás do balcão, perigosamente perto do
rosto um tanto surpreso da garota. A voz do garçom desconhecido era grave,
intimista e tinha uma certa carga sexual que a garota poucas vezes havia
ouvido antes. O caso mais notável certamente era o de Harry. Ao lembrar-se
do filho do pastor, uma de suas sobrancelhas subiu ao notar que o garoto
havia sumido sem explicações aparentes, deixando-a sozinha e a mercê de
qualquer lobo prestes a dar o bote na ovelhinha nada ingênua que era a
garota.
- Olá – seus lábios eram finos e os dentes extremamente brilhantes, o que
tornava seu sorriso algo realmente hipnotizante. Fosse pelo fato de Karina
estar um tanto irritada com Styles, ou simplesmente por aquele garoto ser
atraente por natureza, algo lhe dizia que algum tempo num canto escuro
daquele pequeno pub seria uma experiência interessante e revigorante. –
Posso lhe ajudar em algo?
- Pode – Karina curvou seus lábios pintados de vermelho-sangue numa
tentativa de sorriso sensual que ela não sabia se funcionaria muito bem,
enquanto seus pensamentos tomavam rumos nada inocentes estimulados
por aquele jogo de palavras cheio de duplos sentidos evidentes. – Você pode
começar me trazendo um drink. Algo gelado e exótico.
- Como você. Antes, posso saber seu nome? – uma pergunta tão simples que
o barulho no ambiente e o flerte nada disfarçado conseguiram transformar
em algo sexy, que fez um arrepio eriçar todos os pelos de seu corpo. Os olhos
negros a encaravam, esperando, indagando, tentando entrar em sua mente.
- Me traga a bebida primeiro, cavalheiro, e depois podemos conversar
melhor. – um riso escapou travesso ao notar sua própria escolha de palavras
e a piscadela discreta do barman. Sentando-se sobre um alto banco de
madeira, sua cabeça balançava lentamente enquanto sua boca reproduzia a
canção que tocava naquele momento. Uma música do Red Hot Chili Peppers
que vivia tocando em seu Ipod dava um toque diferente aquele lugar. Como
se aquelas pessoas fossem como ela, como se ela própria pertencesse ao
Incantatem. Mas era só uma ilusão de ótica criada pelo vocalista de camisa
xadrez. Harry havia aberto um novo tipo de mundo para ela, um mundo ao
qual ela estava começando a se acostumar, na mesma proporção a que se
acostumava à presença do filho do pastor em sua vida.
O garoto dos dreadlocks voltara com uma taça alta e transparente, camadas
de gelo e um líquido laranja a preenchendo totalmente, um guarda-chuva
mínimo e verde preso a sua borda. Ele lhe sorriu novamente quando
empurrou lentamente o copo pelo balcão, até que ele encostasse nas mãos
pálidas e finas da garota.O choque térmico era desconfortável, mas ao
mesmo tempo era algo de que ela gostara. Brincando com o canudinho
translúcido, Karina esperava que ele lhe dissesse primeiramente qual era o
conteúdo daquilo, mas o garçom somente ergueu uma sobrancelha, como se
esperasse que antes sua pergunta fosse respondida.
- Meu nome é Karina. – ela soltou num suspiro, simples como uma rajada de
vento. – E você é...
- Pode me chamar de Schmidt. Acho que nem eu mais me lembro do meu
próprio nome. – a risada dele era baixa, charmosa. As mãos nos bolsos do
avental negro como a camiseta que todos os garçons usavam e os olhos
ainda perdidos no rosto confuso de Karina. Mas agora ela quem queria uma
resposta. Apontou discretamente para o copo, mordendo o lábio inferior
lentamente – Ah, claro. A especialidade da casa. Na verdade, eu tive que
subornar um dos meus colegas pra preparar, mas shhh, é segredo. Um Sex
On The Beach com gelo extra para a mocinha dos olhos azuis.
- E um whisky duplo para o acompanhante dela. – Harry apareceu de
repente, puxando um outro banco de madeira para sentar-se ao lado
de Karina, a mão firme voltando para o lugar onde parecia se encaixar
perfeitamente na cintura da garota. O sorriso de canto de lábios sempre
presente, e os olhos verdes queimando de um modo diferente do habitual,
um aceno de cabeça, quase como um cumprimento, para o garçom que
agora os observava atônito. – Schmidt.
- Harry. Hm, claro, já trago seu pedido. E desculpe-me, não sabia que Karina
era sua... Acompanhante. – a voz tinha uma certa insegurança, um respeito
notável em cada palavra. Com que tipo de autoridade a garota andava?
Porque somente o titulo de filho do líder religioso da cidade vizinha não
traria todo aquele prestigio mascarado ao garoto.
- Não se preocupe. Enganos acontecem. Meu whisky, sim? – o tom
autoritário estava de volta à voz de Harry, como se fosse superior a todos ali
e todos os presentes devessem se ajoelhar diante dele. Ela não se
surpreenderia se algum dia ele realmente pedisse algo como aquilo. Seria tão
típico do garoto. Bufando ao tomar um gole longo de sua bebida, ela desviou
os olhos.
- Acompanhante. Ótimo. Ele deve estar pensando que sou uma prostituta.
- Achei que fosse essa a imagem que você gosta de passar. – Harry
sussurrava em seu ouvido, tentando recuperar a posse cega e o domínio de
seus pensamentos. Ela devia admitir que na maior parte do tempo
funcionava, principalmente quando ele estava tão próximo. Mas aquele era o
dia de resistir às tentações, de mandar Harry a merda e se divertir sozinha,
ao menos um pouco. – E além do mais, você não precisar se importar com o
que ele pensa. Com o que qualquer um aqui além de mim pensa. – Karina
terminou o drink num gole longo demais, os dedos batucando a bancada de
madeira enquanto ouvia as provocações do garoto. Acenando para o
primeiro garçom que viu, pediu outra bebida qualquer do cardápio, somente
para não precisar encarar os olhos verdes. Extremamente mais rápido do que
Schmidt, que ainda não havia trazido o whisky de Harry, ela já degustava
uma taça alta de Blue Lagoon. – Acho que vou ter que levar alguém
carregada para casa hoje. Tsc tsc. Criei um monstro.
- Eu sempre fui um monstro, Harry. A vida me criou assim – um pequeno
sorriso surgiu em seus lábios, porque no fundo ela sabia que o comentário
havia sido um tanto cômico. Enquanto seu cérebro se mantinha firme a
decisão de não se deixar levar por Harry, seu corpo a traia, respondendo a
cada sinal que ele enviava, como se todo o magnetismo dele a impedisse de
se afastar. Era irritantemente encantador. Schmidt empurrou um copo baixo
e redondo para o garoto, o rosto antes tão sorridente agora fechado e
formal. O filho do pastor comentou algo sobre colocar os drinks na conta
dele, o que incentivou a garota a pedir uma pina colada. O fato de estar
irritada com o garoto não a impedia de mexer com o bolso dele. Já que ela
sabia que Esma pagava o dizimo freqüentemente, nada mais justo do que
usufruir dele por uma boa causa.
- Você sabe que eu não me responsabilizo por você, não é? – Ele erguia uma
sobrancelha, os olhos verdes divertidos ao observá-la virar quase que num
gole só o terceiro copo da noite. Karina não sabia que tipo de energia louca
havia baixado em seu corpo naquele dia, mas uma vozinha em seu cérebro
parecia lhe sussurrar que as coisas seriam mais fáceis com álcool correndo
por suas veias. A culpa seria maior, a diversão maior. Era uma equação boa,
se ela parasse pra analisar.
- Você poderia calar a merda da boca só por um momento, não é? – A má
educação já era uma conseqüência dos seus drinks. Karina descobriu um
minuto depois, ao segurar o cardápio com uma das mãos trêmulas, que era
fraca para bebidas. Ah sim, aquilo só melhorava. Principalmente quando ela
começava a sentir nitidamente o perfume de Harry próximo a ela.
- Não, Bloody Mary não – ele sussurrou em seu ouvido, a mão direita
acariciando a barriga nua por baixo da jaqueta negra que pertencia a ele. O
garoto começara a se aproveitar dela, mas ela não conseguia ligar. A única
coisa que queria fazer era beber mais um drink – Tem suco de tomate, você
não vai gostar. Um daiquiri de morango faz mais jus a sua delicadeza, Ká – ele
ria baixo, certamente caçoando da garota. Karina somente deu de ombros,
chamando o garçom mais próximo com o dedo indicador e um sorriso
maroto. Infelizmente não era Damian ou Schmidt, nem alguém tão
interessante quanto os dois, o que não a impediu de flertar descaradamente
com o dono de um par de olhos cinza escuro. O garçom parecia dividido
entre olhar assustado para Harry e sorrir galante para a garota, como se
tivesse que decidir a quem obedecer. Resolveu somente retirar-se, indo
buscar para Karina uma taça pequena decorada com uma cereja, que
rapidamente já não existia. Ela riu quando recebeu um pequeno beliscão
de Harry em sua pele lisa e quente, e um puxão possessivo para que ficasse
mais próxima ao corpo forte dele. – Comporte-se.
- Prefiro me jogar embaixo de um caminhão em movimento do que obedecer
a você. – A banda tocava uma música pop conhecida, pertencente à Beyoncé,
ou talvez Rihanna, ela não saberia dizer. Mas tudo que ela queria fazer era se
afastar do filho do pastor e dançar até que seus pés não agüentassem mais o
peso de seu corpo, até que o mundo acabasse ou simplesmente até que ela
achasse algo mais interessante para fazer. E suas vontades tornaram-se atos
no minuto seguinte, quando ela seguiu para o meio da multidão, deixando
um Harry estagnado em frente ao bar, e se pôs a dançar com desconhecidos
adoráveis, que cheiravam a açúcar, cigarro e suor, mas que lhe sorriam a
cada novo rodopio pelo espaço apertado. Seus longos cabelos pretos
balançavam no ritmo da música, seus pés deixavam o chão e voltavam tão
rápido quanto haviam ido, e o ritmo nunca parava. A batida nunca parava e
não havia ninguém ali que poderia impedir isso depois que a empolgação
explodira por seus poros e que finalmente, pela primeira vez, ela estava se
divertindo genuinamente.
Mas quando a carga de adrenalina passara num sopro do gelado ventilador,
ela se deu conta de que sentia falta de algo que já havia se impregnado em
sua pele com tatuagens, e permanecia adormecido até que, numa erupção
violenta, viesse a tona para colocá-la em maus lençóis. Karina sentia falta do
calor dos olhos verdes, da pele quente grudada na dela e das mãos forte
presas a sua cintura. Por mais bobo, infantil e idiota que fosse tudo aquilo,
ela somente conseguia rir e chamá-lo para perto de si com uma piscada
marota, aproveitar a noite que ela dizia que seria a última em que o filho do
pastor a levaria na conversa. Mas ela sabia que não seria. Porque no
momento em que ele segurou sua mão para que eles pudessem dançar
juntos ao som de um pop que geralmente ignoraria, ela sabia que era uma
tola que havia caído na rede. Uma tola que em tão pouco tempo
desenvolvera um vicio obsessivo por Harry, uma doença sem cura. Mas se ela
era tola, ele também. Se ela afundasse, ele iria junto.
- Desista – ele sussurrou ao seu ouvido, os corpos se movendo na mesma
sintonia enquanto a batida só se tornava mais rápida, mais intensa e
vibrante, e as luzes se tornavam borrões coloridos no teto. Os braços da
garota jogados sobre os ombros largos de Harry, olhares trocados e narizes
grudados. Aquilo não terminaria bem, e isso não era segredo para ninguém.
- Só quando você desistir – eles dançavam juntos em direções opostas,
dançavam juntos até o canto mais escuro, dançavam juntos se afastando da
multidão. A música ricocheteava nas paredes, mas eles ouviam um ao outro
com nitidez. Ambos conheciam o assunto, ambos sabiam do que estavam
falando, mas nunca desistiam do jogo. O jogo estava sempre lá – Porque
você sabe Harry, tão bem quanto eu, que nós dois estamos fodidos. Você
pode dizer o que quiser, mentir o quanto quiser, debochar de mim o quanto
quiser. – as mãos dela agora percorriam os cabeloscastanhos do garoto, a
boca grudada ao seu ouvido e os corpos como um só.Karina sentia a
respiração gelada e calma dele em seu pescoço, os arrepios descendo por
sua espinha, suas mãos quentes na base de suas costas. – Eu não sei quais
são os seus malditos motivos obscuros e o quanto eles vão detonar com a
minha vida, mas porra, eu não estou a fim de saber também. A única coisa da
qual eu tenho certeza é isto. O aqui, o agora – seus lábios agora passeavam
pelo pescoço do garoto, sem pressa nenhuma. Ela já não sabia mais qual
canção estava tocando, nem quem estava ao seu redor. – A única certeza
que eu tenho é que você é um filho da puta. O que não significa que eu não
seja tão pior que você por aceitar estar aqui.
- O álcool entra, a verdade sai – ele ria baixinho em seu ouvido, como se a
única coisa que esperasse daquela noite fossem aquelas palavras saindo dos
lábios cheios de batom vermelho dela – Bem vinda de volta, Ká. Senti sua
falta.
- Você pode calar a boca de uma vez? – ela procurava pela boca dele com
vontade, quase que com necessidade, mas a cada nova investida ele parecia
fugir, o sorriso irônico estampado nos lábios e os olhos queimando –
Porra, Harry – O garoto mordeu o lábio inferior de Karina, o sorriso
crescendo enquanto a pegava no colo com destreza e invadia um reservado
qualquer. Karina não se importava se agora estava sentada em cima de uma
mesa de madeira de um pub lotado, quando um par de olhos verdes a
devorava daquele jeito tão delicioso. O dedo indicador de Harry desenhava
calmamente cada curva do rosto da garota enquanto se aproximava
lentamente, o hálito numa mistura de tabaco e canela batendo em seus
lábios com delicadeza, as mãos agora puxando seu rosto mais pra perto
enquanto se encaixa entre as pernas cobertas por uma calça jeans
extremamente apertada. Os lábios se tocavam tão minimamente, mas
mesmo assim tão sensualmente, que era impossível não querer pertencer a
ele. Harry havia ganhado-a com um beijo, e nem mesmo ela queria saber o
que aconteceria nos próximos capítulos. Mas quando ele finalmente
começou a beijá-la, com sua língua gelada pedindo permissão para adentrar
os lábios já um pouco entreabertos, foi como se todo o peso do mundo
houvesse sumido dali. Nada existia, nem um som, nem uma luz. Inferno e
Paraíso eram só dois lados de uma moeda brilhante que ela carregava em
seu bolso. A cada novo movimento ousado de línguas que pareciam ser
velhas conhecidas era como se Karina pedisse para morrer mais um pouco,
só para chegar ao dito paraíso mais rápido. Ou ao inferno, nem mesmo ela já
saberia dizer. Ela só queria que ele chegasse mais perto, queria embrenhar
suas mãos em seus cabelos macios, engoli-lo, possuí-lo do mesmo modo que
ele fazia.
O beijo tão quente já não bastava mais. Harry precisava sentir a textura da
pele dela por baixa da jaqueta de couro, os lábios desenhando cada curva de
seu pescoço, as mãos ocupadas com os botões de metal tão irritantes, os
olhos de Karina apertados, enquanto ela somente sentia, as unhas se
prendendo a qualquer pedaço da pele dele ao seu alcance. E quando os
lábios foram tomados novamente enquanto sua jaqueta era jogada em cima
de uma cadeira, a única reação possível era morder o lábio inferior do garoto
ao constatar o quão perigosamente próximas as mãos dele estavam de seu
sutiã azul. Karina não sabia se era o calor do lugar ou do corpo dele, mas ela
nunca precisara tanto de oxigênio em toda sua vida, e ao mesmo tempo
nunca recusara tanto dar-se ao luxo de procurar por aquilo. Karina só queria
arrancar-lhe a camiseta branca e arranhar-lhe o peitoral musculoso,
deixando marcas que demorariam a desaparecer, só pela vontade
egocêntrica de passar mais tempo na mente de Harry. As pernas desajeitadas
envolviam a cintura do garoto a deixando próxima de uma parte de sua
anatomia que já queria começar a dar sinais de vida. Quando as duas mãos
grandes e fortes de Harry se posicionaram sobre seus seios fartos cobertos
pelo fino tecido que era a seda azul, pressionando-os sem cerimônia e
pressa, desenhando-os como podia, o beijo tornou-se ainda mais urgente, as
bocas mais apertadas, um suspiro de prazer preso em sua garganta. As
caricias naquela área tão sensível do corpo da garota agora já eram mais
selvagens, mais concentradas, e ela sentia que o pano tão caro que
sustentava seu busto logo se colocaria em pedaços nas mãos de Harry,
deixando-a parcialmente nua para que ele pudesse se aproveitar ainda mais
daquilo. Karina não se importava. Seu mundo girava em torno do corpo
de Harry e de todos os sinais que ele lhe enviava, de tudo que ele lhe
proporcionava e de cada situação que ainda proporcionaria. Como dois
sedentos perdidos no deserto, o corpo um do outro servia como um Oasis
real disposto a atender as necessidades que levariam a sua sobrevivência. O
volume na calça jeans de Harry começava a aparecer à medida que os dedos
longos e finos da garota tentavam se infiltrar em seu interior, brincando com
o fecho tão simples de ser aberto e provocando a agressividade deliciosa de
seu corpo. Ele mordia seus lábios com possessão, puxava os longos
cabelos pretos e tentava fundi-los num só, como se só assim fosse possível
uma salvação para ambos. A boca dele parecia não conseguir se decidir por
onde permanecer, traçando caminhos diferentes, chupando, mordendo,
deixando marcas que iam desde seus ombros delicados até o lóbulo de sua
orelha. As alças de seu sutiã não estavam mais em seu lugar de origem, e a
boca quente, vermelha e inchada de Harry parecia se encaixar perfeitamente
em sua clavícula, enquanto as mãos ágeis de Karina tentavam a todo custo
livrar-se da camiseta do garoto, arranhando e apertando seus músculos,
trazendo-o mais para perto, moldando-se a ele. Um fino filete de suor
escorria pelo lado de sua cabeça quando ele lhe mordia o queixo,
procurando o rumo novamente até os lábios inchados demais de Karina.
Alguém poderia assinar o atestado de óbito da garota, ela não dava à
mínima. Morrer nos braços de Harry era um jeito glorioso de morrer, afinal.
Karina nunca havia realmente parado para pensar como gostaria que fosse
sua primeira vez, como queria quebrar o tabu do tão famigerado sexo, onde
seria, com quem seria, se velas decorariam o lugar ou não. Sua mente não
viajava muito por esses lugares comuns. Mas agora ela constatara o óbvio, o
que cada pedaço dormente de seu corpo gritava desesperadamente. Harry.
Ali. Agora. A garota o queria com tanta vontade, queria pertencer a ele
somente por aquela vez. A timidez de subir a boca até seu ouvido e, antes de
perguntar-lhe, beijar o lóbulo de sua orelha, fazendo cada pelo do corpo
de Harry se arrepiar, não existia mais. O filho do pastor provavelmente
carregava camisinhas consigo, e aquela era a hora de usá-las. Não se
preocuparia em fazer uma voz sexy, ou um gênero qualquer. Não tinha
condições psicológicas para isso. Somente deixaria seu corpo e seus instintos
mais primitivos guiarem suas ações, pela primeira vez claras como o dia, e
não mascaradas por outros sentimentos obscuros.
Mas Karina deveria estar acostumadas a situações como aquela. Situações
onde seus planos eram levados por água abaixo e suas expectativas eram
frustradas, obrigando-a a levar sua vida para novos caminhos. O momento
em que os dois puderam ouvir um pigarro alto e claro vindo de algum lugar
atrás das costas de Harry, quebrou a bolha de insanidades em que os dois
estavam presos, a bolha na qual ela poderia permanecer para sempre se lhe
fosse permitido. Mas a vida sempre fora uma sacana com Karina, e não seria
agora que isso mudaria. Harry afastou-se, o fogo nos olhos que antes
indicava desejo passava gradualmente para a raiva a medida que ia virando-
se para encarar aquele que havia arruinado seus planos pecadores.
Mas Karina pode vê-lo antes, e o arrepio gelado que se passou por sua
espinha não poderia indicar nada além de um desfecho nada bom para
aquela história. Damian encarava Harry com os olhos verdes extremamente
serenos, como se aquela fosse uma cena comum. Talvez realmente
fosse, Karina pensava, mas já isso também não importava. Tudo terminaria
depois daquela noite. A postura de Harry endireitou-se, os ombros tensos e
os lábios crispados, como se houvesse ali algo muito pior do que um simples
estraga-prazeres de postura relaxada e cabelos loiros e bagunçados, que
segurava um bloco de pedidos alvo como a neve em mãos. Em nenhum
momento seus olhos se dignaram a encarar o rosto de Karina. Eles
mantinham-se fixos em Harry, o resto do rosto sem expressão, sem sequer
uma pista do que se passava no interior de sua mente.
- Senhor Styles – a voz macia de Damian começou, o sobrenome sendo
frisado com algo que Karina não sabia dizer ao certo se era desdém ou falta
de interesse, tão diferente do respeito que todos os outros presentes
pareciam depositar no garoto – Acho que conhece nossas regras. Se
pretende dormir com suas acompanhantes, há um motel na saída da cidade.
Mas o senhor deve conhecê-lo muito bem.
- As estúpidas regras. Certo, O’Hare. Obrigado por nos relembrá-las – O
sobrenome de Damian na voz de Harry também possuía uma carga diferente
do normal. Um nojo e um desprezo que ela nunca o vira usar antes com
qualquer um, por maior que fosse seu sentimento de superioridade. Havia
entre os dois algum assunto mal-resolvido, alguma pendência passada ou
simplesmente uma briga imatura. Mas algo existia, Karina podia notar, tão
evidente quanto o cheiro de cerveja derramada no chão. – Mas não se
preocupe. Não macularemos seu precioso pub. Já estamos de saída. – Os
olhos verdes se viraram para a garota, um tanto mais calmos. Capturou seus
lábios por um instante, sussurrando as palavras logo em seguida – Vou pagar
a conta. Fique aqui. E coloque a jaqueta, sim. Não quero ter que furar os
olhos de nenhum desavisado.
Observou-o caminhar desconfortavelmente até o caixa, a animação de
alguns minutos atrás parecia não ter deixado o corpo másculo de Harry. Um
pequeno sorriso ameaçou brotar em seus lábios, mas foi por um instante
muito breve. Um instante suficiente para que ela encontrasse os olhos
verdes de Damian encarando os seus azuis, como se a julgasse por algum
crime que ela não sabia que havia cometido. Recolocando a jaqueta de couro
preguiçosamente, ela esperava receber o veredicto, a sentença final. A
condenação a prisão perpétua parecia certa.
- Os boatos não são tão falsos afinal...A pequena Karina Dawson é realmente
uma vagabunda que passa as noites se esfregando em cafajestes que lhe
paguem bebidas. – as palavras duras lhe atingiram como adagas afiadas.
Apesar de ser exatamente aquela imagem que Karina havia levado tanto
tempo para construir, ouvi-las saindo da boca pálida de Damian havia sido a
pior coisa que já lhe acontecera. Porque aquele garçom que se disfarçava de
emo deprimido para sobreviver ao ensino médio era alguém que a garota
considerava ser diferente. Alguém um pouco como ela. Alguém que, talvez
um dia, ela pudesse gostar de verdade. Aquilo era a parte que mais doía.
- Você não sabe nada sobre mim, Damian. Nada além do meu nome e do que
as más línguas dizem por ai. Assim como eu não sei nada sobre você. Já ouvi
muitas histórias, mas não te julgo pelas merdas que os outros inventam de
você. – as palavras saíram voando de sua boca, sem filtro algum. Não
precisavam passar por uma seleção mental quando eram nada além da
verdade. Levantando-se da mesa num pulo para ficar frente a frente com o
garoto alguns palmos mais altos que ela, ela finalizou – Agora me de licença.
Há alguém esperando por mim.
- Karina – seu pulso fino foi agarrado com força pela mão áspera e gelada de
Damian, que com um pequeno puxão trouxe-a para frente dele novamente.
Os olhos verdes pareciam imersos em confusão, e seu lábio inferior estava
preso pelos dentes brancos. Ele suspirou longamente uma última vez –
Desculpe-me. Desculpe-me. Não deveria ter sido tão rude com você. Mas é
que, vê-lo com ele – Damian apontou a cabeça na direção deHarry, que
conversava animadamente com um punk qualquer de cabelos espetados e
roxos, e tatuagens de estrelas por todo o rosto – Eu fico preocupado, de
verdade. Por favor, tome cuidado. Não quero vê-la machucada.
- Por quê? – seus olhos procuravam respostas na expressão realmente
perturbada do garoto, o coração acelerado com a possibilidade da revelação
que ele lhe faria a seguir. Mas Damian somente balançou a cabeça em
negação, voltando a olhar para o lugar onde Harry estava parado.
- Aqui não. Procure-me no intervalo, embaixo das arquibancadas da antiga
quadra de basquete. Ele está vindo. Por favor, tome cuidado.
Karina podia sentir a proximidade de Harry, e Damian se afastando a suas
costas. Sua cabeça estava cheia, de perguntas, de desejos, de devaneios que
o álcool ainda lhe provocava. Mesmo com todos os avisos de Damian, ela não
pode deixar de grudar seus lábios nos de Harry quando ele se aproximou, e
rir tranquilamente depois disso. Como se tudo fosse uma grande despedida,
ensaiada nos mínimos detalhes, mas mesmo assim sem um script definido. O
sorriso irônico presente novamente lhe deixaria com saudades. Mas era
melhor para sua sanidade que se afastasse para sempre.
- Pra onde, agora? – Ela perguntou quando Styles puxou-lhe pela cintura,
encaminhando-os para fora do pub ainda lotado. Karina pode notar que
estavam a poucas horas do amanhecer, pelo tom claro de azul que o céu
noturno adquirira. A brisa era agradável após as ondas de calor extremo que
ela presenciara, e, aninhada ao corpo de Harry, tudo parecia fazer sentido. -
Casa. Você já aprontou demais por hoje.
- Ah! Não é justo! – Karina ria sozinha, como uma boba qualquer que se
esquecera de tomar seus remédios controlados ou que tivesse fugido do
manicômio mais próximo- Como se você não tivesse aprontado.
- Mas quem dita as regras aqui sou eu, mocinha. Vamos, suba na moto – um
riso disfarçado de autoridade passou por sua voz, cada pequena cena da
garota o divertindo profundamente. Ao contrário da ida conturbada, agora
ela abraçava fortemente sua cintura, o nariz passeando por seu pescoço
como se tentasse gravar cada nota de seu perfume.
- Vamos logo, coroinha. Eu preciso de um pouco de adrenalina nas veias.
Jogando seus braços para o alto na partida, ela gritou com toda a força de
seus pulmões para o resto de noite que os abandonava, o vento acariciando-
lhe o rosto. Depositando um selinho na nuca do garoto, ela sorriu uma última
vez, deixando-se levar pelos embalos do motor e pela esperança vazia de que
aquela seria a última vez que sucumbiria a Harry Styles. As estrelas os
guardavam, a lua lhes dando resguardo por todo o caminho, como se fosse
somente mais uma espectadora fiel, ansiosa por saber como o destino afinal
daria conta daquela estranha conexão entre o filho do pastor que escondia
tantos segredos quanto a não tão pequena órfã rebelde. Mas em meio a
tantas máscaras, talvez nem o destino mais soubesse o que fazer.

. * I can’t get no satisfaction é um trecho da clássica Satisfaction, dos Rolling


Stones: Eu não consigo ficar satisfeito

Capítulo 9 – Jesus of Suburbia

A cortina de algodão cor de creme tinha um toque tão macio quando


percorrida pela mão morna e pálida de uma garota de longos cabelos pretos
e olhos intimidadores. Ela fazia seu caminho pelo quarto bagunçado, os
coturnos negros como a noite maltratando o assoalho e tropeçando pelas
bordas do tapete cheio de manchas de café. Um par de azuis olhos brilhantes
observava seu trajeto solitário, um sorriso discreto em seus lábios e o corpo
estirado no pequeno sofá de couro negro. O silêncio era quebrado
momentaneamente por bufos descontrolados e suspiros entrecortados
vindos da nervosa órfã que não conseguia parar de mover suas mãos por
seus cabelos, e risadas baixas e claras de seu melhor amigo, visivelmente
divertindo-se com toda a situação.
- Cale a boca.
- Eu não disse nada! – Louis defendia-se, os olhos ainda presos a ela, que
ainda não conseguia controlar o nervosismo e a angústia evidentes. Karina
tentava colocar a saia azul marinho no lugar, a blusa de botões branca já
amassada de tantas vezes que ela se abraçava em busca de conforto. Mas
nada parecia trazer um pouco de paz naquela manhã cinzenta de sábado. -
Mas você pensou.
- Ok, venha cá – Não foi necessário mais do que um pulo do pequeno sofá e
um ou dois passos para que Louis se colocasse atrás de Karina, umas das
mãos grandes e finas abraçando a cintura da garota, a outra entrelaçada a
pequena mão macia e totalmente fria. Com o queixo apoiado no ombro dela,
ele conseguia sentir o perfume de morango que emanava de seus cabelos
bem cuidados. Chegava a ser cômico, a garota escondida atrás de sua pose
de durona, mas que tinha paixão por cada fio de cabelo comprido.
- Só me leve embora daqui. Eu estou tão cansada, Louis. Você nem imagina o
quanto – Karina brincava com a barra da manga do casaco xadrez do garoto,
sua cabeça pesada por idéias errôneas e vontades avassaladoras que
tomavam conta de cada célula de seu corpo. A janela do segundo andar
nunca lhe parecera tão brilhante e convidativa quanto naquele momento –E
ela...essa maldita mulher só piora toda a situação. Por que ela não consegue
me deixar em paz?
- Esma só quer o seu bem. Na cabeça dela, essa vida e as decisões que ela
toma são o melhor pra você, Ká.
- Não. Essas decisões de merda eram o melhor para aquela maldita. Eu não
sou ela, Louis. Que inferno, eu não sou ela. – Sua voz não passava de um
sussurro quando o amigo a puxou para mais perto, apertando seu corpo
contra o dele, confortando-a como podia – Sabe, às vezes eu penso... Se não
seria melhor se eu também estivesse naquele carro. Aquele carro que levou
os dois desgraçados que me colocaram nesse mundo de merda para debaixo
da terra.
- Chega. Chega de drama. Cale a boca, Karina. Eu não estou brincando – Ele a
repreendia, a voz um tanto rude e os olhos azuis estreitos como fendas –
Vamos lá, toda essa chateação só porque Esma está te obrigando a ir à igreja
com eles?
- Não fale assim comigo, porra. Você sabe que não é só por isso. São tantos
anos engolindo em seco cada vez que ela tenta me mudar, que tenta me
colocar num pedestal. Cada critica escondida e cada tentativa mascarada de
me fazer ser uma pessoa diferente. – ela riu seca, sentindo a textura da mão
do melhor amigo, tentando absorver um pouco de seu calor – A minha vida
toda é uma grande piada, não é Louis? Uma piada totalmente sem graça.
- Sua vida só está começando, Ká. Nossas vidas ainda precisam inventar
muitas peças para nos abalar. Você não pode desistir agora.
- Eu não sei se ainda tenho forças. E ainda há o desgraçado do Styles para
piorar a minha vida...
- Shh, já tivemos essa conversa – Louis sussurrava calmamente em seu
ouvido, como se fosse somente outra canção de ninar de seus tempos de
orfanato – A noite de ontem foi um deslize, Karina. Nós vamos mantê-lo
longe de você. Chega de mistérios. Mistérios só trazem mais dor, dor e
infelicidade, e você não precisa disso agora. Você precisa de um pouco de sol
nos seus dias nublados, meu bem. Você é forte. Você pode mandá-lo embora
a hora que quiser.
- Quando eu era pequenininha – ela girou seus calcanhares, ficando frente a
frente com o garoto, a cabeça repousada em seu peito enquanto ele a
abraçava o mais fortemente que conseguia, o cheiro de loção pós-barba
entrando sem permissão pelas narinas da garota, sua voz nada mais do que
um sussurro – Eu prometi a mim mesma que nada me faria chorar
novamente. Que ninguém era digno das minhas lágrimas. Eles me
desarmaram,Louis. Roubaram minha armadura, me deixaram nua, insegura e
indefesa frente ao inimigo. Mas é hora de voltar a lutar, não? Hora de voltar
ao campo de batalha.
- Exatamente. E eu vou estar aqui, amor. Vou estar aqui a cada minuto que
você precisar de mim – um leve beijo foi depositado na testa fria da garota
que tentava se prender cada vez mais a segurança de Louis. Eram naqueles
momentos em que ela podia ser quem ela realmente era que tudo parecia
tão fácil. Tão certo. Ali, a vida não parecia uma vadia sem coração disposta a
foder cada minuto em que seu coração bombeava sangue. Ali, só parecia que
a garota havia feito todos os caminhos errados, as escolhas erradas, e agora
era a oportunidade perfeita de corrigi-las - Eu vou te colocar de pé,
empurrar-te para frente e te consolar até a minha última respiração
entrecortada, Ká. Eu me prometi isso no dia em que te conheci. E essa
promessa eu vou levar até o fim.
O silêncio cúmplice demonstrava que cada um compreendia todas as coisas
implícitas ali, cada uma delas, separadas e unidas intimamente. E palavras
não eram necessárias, eram tolas e dispensáveis como copos plásticos no
final de um festival. Ela não ser permitiria chorar, nem que fosse aos braços
de Louis e por uma única vez. Não. Aquela era a única parte dela que ainda
não fora corrompida por forças externas. Ela poderia ter somente se
aninhado em seu colo e deixado que o garoto cantasse para que ela
dormisse, exatamente como era no antigo orfanato ao qual pertenciam, não
fosse a estridente voz de Esma no corredor, e logo após sua silhueta
desenhada num tailleur creme de botões azuis petróleo, os fios de cabelo
ruivos presos num coque elegante e os lábios pintados de carmim. Seu
sorriso tremeu ligeiramente ao ver a filha adotiva abraçada ao protegido dos
Kallister, como se aquele órfão desajeitado não fosse suficiente para tomar
conta de sua preciosidade. Mas sua voz era doce e seus olhos brilhavam
novamente as primeiras palavras gentis soltas rapidamente.
- Karina, querida, está na hora. Você pode se juntar a nós se quiser, Louis.
Seria ótimo.
- Agradeço o convite, senhora Dawson, mas, como a senhora sabe, minha
família é judia, e meus pais devem estar me esperando para visitarmos meus
avós nesse exato momento – a voz de Louis era calma enquanto ele se
soltava de sua melhor amiga, uma mão ainda entrelaçada na dela mesmo a
distância. Sorrindo como se para encorajá-la, ele voltou-se a matriarca dos
Dawson mais uma vez – Espero que tenham um bom dia, senhora. Nos
vemos depois, Ká. – um beijo leve nas costas da mão da garota e um sorriso
leve ao passar por sua mãe adotiva marcaram a despedida de Louis. Agora
ela se sentia um tanto deprimida, um tanto sozinha. Mas a tentativa de
simpatia desmedida de Esma a fez colocar sua máscara de rebelde
novamente. Passando pela mulher sem dizer nada, a garota desceu os
degraus um por um, se sentindo somente um pouco melhor pelo sorriso que
Rick lhe abrira de sua poltrona vermelha.
- Estou me sentindo culpado.
- Não sinta. Eu sei que não é sua culpa – ela sentou-se no apoio de braço da
poltrona, os olhos pousados no tapete marrom que cobria o delicado
assoalho, a mente perdida pela análise das diferenças entre Esma e
Rick.Karina nunca havia parado para pensar em como os dois se conheceram,
porque se casaram e se eram felizes juntos. Pelo conjunto da obra que
presenciava todos os dias, tinha quase certeza de que aquele era um caso
explicito de ‘os opostos se atraem’. Talvez algum dia ela perguntasse para o
patriarca, mas aquele não era o momento.
- Louis comentou que você não estava muito bem. Quer conversar sobre
isso? – os olhos cor de avelã de Rick expressavam uma preocupação tão
genuína e palpável que fora impossível para Karina não abrir um pequeno
sorriso.
- Louis precisa aprender a calar a boca se quiser sobreviver. Eu vou ficar bem.
Só quero que isso termine logo.
Foi somente um pequeno instante depois que Esma pisou no último degrau,
os olhos atentos as duas pessoas na sala. Com seu melhor sorriso doce
ensaiado esperou o marido levantar-se num pulo sem dizer uma palavra
sequer. Agarrou-lhe o braço esquerdo com força, como se pedisse alguma
ajuda. Rick somente beijou-lhe a mão, oferecendo o outro braço para a
pequena falsa rebelde, como se pedisse, somente por aquela manhã, uma
trégua. Uma bandeira branca no meio da guerra.
O silêncio reinou por boa parte do caminho no Audi vermelho. A voz de John
Mayer saia alta pelas caixas de som do radio do carro. Rick balançava a
cabeça, como se acompanhasse a balada romântica tão imprópria para a
ocasião. Pousou os olhos cor de avelã em Karina pelo retrovisor, a culpa
ainda os embaçando. A garota mordia o lábio inferior, o pensamento voando
longe, o olhar fixo num ponto qualquer da poltrona de Esma.
- Ká, meu bem, você tem certeza que vai se sentir confortável?- a voz de
Ricky soou alta e confiante acima da música, como se não passasse de um
comentário qualquer sobre o tempo ou as noticias do dia- Sabemos de suas
convicções. Ainda dá tempo de voltar e te deixar em casa.
- Não – a voz de Esma foi alta e clara em meio ao silêncio momentâneo que
se instaurou – Somos uma família. Precisamos agir como uma família. É o
que somos, não? Uma família. – o nervosismo em cada nota aguda que
passava por suas cordas vocais era claro como água. Suas mãos
estrangulando a pequena bolsa vermelha que carregava em seu colo só
contribuíam para aquela imagem.
- Mas não podemos obrigar Karina a participar de algo no qual ela não
acredita, Esma. Nós tivemos essa conversa anos atrás. Não é justo. Não é
correto. – as mãos longas dele apertavam o volante com intensidade, a
reprovação pelas atitudes da mulher estampada em seu rosto.
- Nem tudo na vida é, Rick. Todos têm que ceder em alguma coisa. Karina
não vai morrer com um pouco de luz e desejos de amor e paz. Vai ser bom
pra ela. Bom para a família.
- Mas...
- Sem mais. Veja, chegamos. Um sorriso, por favor.
Karina piscou os olhos azuis para Rick, um pequeno sorriso amarelo surgindo
em seu rosto, pedindo para que ele não se preocupasse. Era somente mais
uma prova de fogo, uma das muitas a que ela já havia tido durante sua curta
vida. Demorou-se um pouco ao sair do carro, batendo a porta com força
suficiente para descarregar cada frustração que se passava por seu cérebro
tão complicado naquele momento.
A luz do dia, a igreja já não era tão arrepiante quanto a noite. O portão
enferrujado estava aberto, convidando cada cidadão a se aventurar pela
grama verde e macia do pátio, e o sol batia alegremente nas paredes de
pedra rústica. Metade da cidade comparecera ao culto, com seus cabelos
arrumados, grandes chapéus coloridos e roupas elegantes. A garota se
perguntava se aquele era algum tipo de desfile de moda, uma demonstração
de poder, uma ostentação de riquezas. Ou talvez fosse só um show de
horrores. Caminhando atrás dos pais adotivos, sentiu um arrepio passar
rapidamente por sua espinha quando adentrou a fria construção. Os bancos
compridos e marrons ocupavam a maior parte do lugar. A frente um homem
alto, de cabelos grisalhos curtos e olhos profundos e extremamente verdes.
As rugas em torno dos olhos o faziam parecer mais velho do que realmente
era. As mãos estavam juntas sob o paletó grafite que provavelmente era de
alguma grife famosa, a camisa azul destacando-se no conjunto final. O olhar
tinha um que de bondade programada e uma intensidade assustadora, e o
sorriso tranqüilo transmitia sinceridade. O pastor Styles era ao mesmo tempo
tão igual e tão diferente de seu filho.
Esma e Rick caminhavam rapidamente pelo corredor um tanto estreito da
igreja, os braços dados e os passos elegantes sob o tapete longo e vermelho.
A única coisa que Karina temia naquele momento era a exposição pública e
desnecessária que ela sofreria se os planos de seus pais adotivos fossem
seguir em frente e cumprimentar o pastor. Mas o alívio de vê-los entrando
discretamente na segunda fileira de bancos durou somente o tempo do
choque da cena seguinte se desdobrar diante de seus olhos azuis. Uma
mulher alta, de cabelos negros como a noite curtos e repicados e lábios
voluptuosos e vermelhos, assim como as maçãs do rosto salientes , levantou-
se para abraçar Esma com carinho. Do alto de seu vestido azul petróleo os
olhos cinzas carregavam um olhar felino, os lábios curvados num sorriso
encantadoramente misterioso. Duas características que a garota conhecia
muito bem, apesar de nunca ter visto a mulher graciosamente perigosa
antes.
Mas quando Rick beijou sua mão longa e pálida e Karina deixou os olhos
deslizarem pelo resto da fileira silenciosa as coisas se tornaram muito mais
claras. Os cachos loiros de Angelina balançavam alegremente enquanto ela
conversava com alguma patricinha da fila da frente, os olhos cinzas brilhando
de excitação com uma fofoca qualquer. E ao seu lado, imponente em seu
blazer negro, Harry e seus olhos verdes provocadores lhe sorriam
convidativos. Aquilo seria muito pior do que ela jamais imaginara. Pior do
que os olhos inquisidores da sra. Styles presos nos dela quando Esma e Rick
se acomodaram, deixando o caminho livre para Karina e a ponta de
insegurança que se plantara com força em seu coração. Mas a esposa do
pastor lhe sorriu ternamente, puxando-a para um abraço firme e delicado, a
voz doce e marcante soltando as palavras com a calma de um dia de verão.
- A pequena Karina Dawson. É tão gratificante finalmente conhecê-la,
querida. Só tenho ouvido bons comentários sobre você.
- Ahn... – Se não fosse o fato de a mulher ter dito seu nome ela com certeza
diria que ela havia se enganado redondamente de pessoa. Bons comentários
a respeito dela? A última coisa que Karina possuía era uma boa imagem ou
admiração dos moradores daquela pequena cidade. Mas havia aquela
sensação, a mesma que ela sentia quando junto a Harry, de que aquela
mulher tão imponente sabia muito mais do que transparecia. E um alerta
vermelho brilhante em seu cérebro parecia gritar: ‘perigo’. – É um prazer
conhecê-la, senhora Styles.
- Você pode me chamar de Angel, meu bem. Há um lugar para você ao lado
de Harry – ela apontou distraidamente o filho mais velho – O culto já vai
começar.
Mordendo o lábio inferior nervosamente, a garota espremeu-se no pequeno
corredor até o lugar que Angel havia lhe indicado, os pensamentos a mil.
Encarar Harry tão próximo quando havia jurado que não cairia mais em suas
tentações era como o seu teste final, o primeiro passo para uma nova
realidade. Mas o garoto parecia não notar sua proximidade, ou melhor, fingia
perfeitamente que não notava, os olhos presos em uma página qualquer de
sua Bíblia já gasta. Talvez aquilo não fosse tão difícil afinal, Karina iludia-se.
Distraidamente, ela observava Esma conversar com Angel e Angelina,
enquanto Rick tentava achar algo em seu livro de canções. A igreja ia
enchendo aos poucos, o pastor Styles sorridente cumprimentava seus fiéis.
Era notável todo o respeito e admiração que os cidadãos tinham por ele,
como se aquele homem realmente fosse divino.
Seus olhos começavam a ficar pesados com a falta de entretenimento
notável daquele lugar. Toda a paz que Esma desejava que ela absorvesse
estava ali, afinal, transformando-se em uma carga de sono excepcional.
Talvez Karina realmente tivesse cochilado discretamente no frio banco de
madeira, não fosse o toque quente de uma mão forte deslizando por sua
coxa firme descoberta. Um arrepio atravessou sua espinha, fazendo-a engolir
em seco e manter seus olhos pretos em alerta. Seu coração vibrava, mas seu
cérebro a obrigava a tomar algum tipo de atitude. Harry pressionava sua
pele, desenhando pequenos círculos e se aproximando cada vez mais da
garota, que permanecia estática, como se aquilo fosse desmotivá-lo ou algo
do tipo. Mas no fundo, no fundo ela sabia que não iria.
- Bom dia – o pastor Styles anunciou em sua voz grave, passional – Que as
graças do Senhor estejam conosco nessa manhã abençoada. Levantem-se,
por favor.
Karina suspirou aliviada no momento em que Harry separou-se dela,
colocando-se em pé para que algum tipo de louvor aos céus fosse feito. Ela
não queria ouvir nenhuma palavra do que o pai de Harry tinha a dizer. Não
havia Deus nenhum olhando por ela. Não havia ninguém olhando por ela.
O barulho dos fiéis voltando aos seus bancos encheu a pequena igreja, cada
um prestando o máximo de atenção nos pequenos momentos de reflexão
que o pastor Styles lhes propiciava. A garota já havia se acostumado com o
silêncio incomum vindo de Styles e com seus toques insolentemente
provocadores, por isso o pequeno gesto carinhoso vindo do garoto nos
momentos seguintes lhe deixou realmente surpresa e intrigada. O modo com
ele havia deslizado uma de suas mãos diretamente para segurar uma das
dela com uma delicadeza admirável, o polegar desenhando círculos sobre
sua palma macia. Foi um tanto quanto impossível não olhar na imensidão
que eram seus olhos verdes naquele instante, um sorriso de canto se
formando nos lábios pecadores.
- Isso não é algo que você vai ouvir de mim com freqüência – ele sussurrou,
prendendo a atenção da garota por mais um tempo – Mas eu estou
genuinamente feliz pela sua presença aqui hoje.
- Por quê? – E lá ia ela de novo, deixar-se envolver por seus mistérios e seus
jogos de palavras.
- Você imagina o quanto é difícil ter que estar aqui todos os dias e fingir que
você está interessado? Como é uma merda ouvir toda essa gente
perguntando quando meu pai vai se aposentar e quando vou assumir o lugar
dele? Ter que repetir coros de aleluia e rezas enquanto eu queria estar
fazendo qualquer outra coisa no mundo?
- Achei que não se importasse – ela observava suas mãos juntas meio
impressionada com a perfeição com a qual se encaixavam. O contraste de
temperaturas tão agradável. Aquela era mais uma maldita peça que seus
olhos gostavam de lhe pregar, motivados por uma parte oculta de seu
cérebro que apreciava cada fração de seu estranho convívio com Harry.
- Não me importo. Só estou de saco cheio. Estou com medo de um dia
explodir uma bomba aqui no meio num momento de fúria – ele riu, sem
humor, os olhos fixos em seu pai enquanto soltava as palavras levemente –
Mas de algum modo você me acalma. Eu não tenho tantas tendências
homicidas com você por perto. É um motivo para agüentar até o final.
- Merda, Harry – ela resmungou, seu cérebro havia levado um nó de
escoteiro, impossível de ser aberto – Eu não consigo te entender. E isso me
deixa louca.
- É essa a intenção – o sorriso irônico estava de volta ao lugar que pertencia,
uma sombra do Harry que ela conhecia passando por seu rosto – Você não
precisa entender nada.
- Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor,
seria como o metal que soa ou como o sino que tine – a voz do pastor Styles
se sobressaia naquele momento, e algo a obrigou a ouvir aquele pequeno
trecho. Harry bufou ao ouvir aquelas palavras, mas silenciou por um instante
- E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e
toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, eu nada seria. Ainda que
distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse amor, nada disso
me aproveitaria. O amor é paciente, é benigno; o amor não é invejoso, não
trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não
busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a
injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera e tudo
suporta. O amor nunca falha. Havendo profecias, serão aniquiladas; havendo
línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte
conhecemos, e em parte profetizamos; mas quando vier o que é perfeito,
então o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como
menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei
a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por
espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em
parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois,
permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o
amor. – ele continuara sorrindo. Era algo bonito na teoria, Karina pensara.
Mas ela tinha chegado até ali sem o amor verdadeiro, não? E ela com certeza
era alguma coisa. Uma fagulha, uma centelha. Ela iria até o fim, iria sozinha,
contra todas as teorias possíveis. Mas a conversa com Harry ainda a
assombrava.
- Corintios 13* – Styles resmungou – ele gosta desse. Sempre dedica para
minha mãe.
- Eu não conheço – respondeu vagamente – Não acredito em Deus, Harry.
Não é algo que faça sentido pra mim.
- Mesmo? – ele pareceu surpreso- Isso só torna tudo mais interessante. Meu
Deus, tudo se torna melhor a cada instante – ele apertou sua mão – Estou
feliz que está aqui por que você é minha distração favorita, Ká. É meu
pequeno escape para a perdição que eu tanto aprecio no meio de toda essa
pureza e amor. É divertido, excitante e perigoso, você não acha?
- Não. Não acho. Isso tudo precisa acabar, Styles. Agora.
- O que, o culto? – ele se fazia de desentendido, ela podia notar – Já está
quase no fim, atéia. Espere um pouquinho mais.
- Você sabe do que estou falando. Disso – ela levantou um pouco as mãos
juntas, os olhos presos nelas – Essa coisa estranha que eu não faço a minima
ideia do que é, mas que está me deixando louca. Acabou, Styles.
Ela pode ouvir uma risada genuina vindo da direção dele, como se ela
acabasse de contar uma piada realmente engraçada. Mas a resposta ficaria
para depois que o pastor finalizasse seus pedidos de glória. Finalizando com
um ‘muito obrigado’ e um desejo de paz a cada um presente ali, ele sorriu,
atendendo alguns fiéis que pediam bençãos especificas. Karina só queria ir
embora o mais rápido possível.
- Karina, Harry, Angelina, meus queridos, por que não vão indo lá pra fora
enquanto esperamos o pastor aqui? – Esma parecia radiante –
Encontraremos vocês daqui a pouco. Harry concordou, oferecendo o braço
paraKarina num gesto de cavalheirismo que arrancou suspiros de Angel e
Esma. Ela sabia que aquilo era proposital, para deixa-lá mais irritada do que o
normal. Mas aceitar não deixava de ser uma provocação, afinal. Angelina
passou a frente dos dois, indo encontrar-se com alguns amigos que já
estavam parados na porta.
- Você sabe que não vai ter fim, Karina – ele sussurrou discretamente ao seu
ouvido.
- Quando um não quer, dois não brigam.
- Exatamente. Esse é o problema. Você sabe que nós dois sabemos o que
queremos.
- Eu quero que isso termine.
- Não. Você finge que quer isso. Pra parecer forte, pra não parecer submissa,
para não deixar-se envolver, porque você não suporta a ideia de ser mais
fraca. Admita, Karina. Você está tão viciada em mim que faria qualquer coisa
para ficar mais perto. É hora de parar de fazer doce.
O sol os acertou em cheio quando sairam do lugar. Caminhavam pelo
gramado com aquela conversa tão estranha, não dando muita importancia
para quem estava ao redor, presos a bolha de tensão que todas aquelas
evidências lhes traziam.
- Você está errado.
- Prove.
Os olhos verdes pareciam queima-la com a iluminação intensa do sol naquela
parte do pátio da igreja, os dois frente a frente, desafiando-se. As palavras
haviam sumido de sua boca, escorrido de volta por sua garganta e sumindo
em algum lugar de seu corpo. O modo como ele lhe envolvia com palavras,
como moldava seu cérebro a suas vontades era a coisa mais doentia que ela
já havia presenciado.
- Você é simplesmente o ser humano mais prepotente, egocêntrico e
mimado que eu já tive o desprazer de conhecer, Styles – foi tudo que ela
conseguiu soltar, bufando pela ineficiencia de cada palavra.
- E você está sendo infantil porque sabe que estou certo. Bingo.
- Vá para o inferno, Harry – suas mãos estavam fechadas em punhos, a
irritação tomando cada pequeno pedaço de seu corpo jovem. Uma faca teria
sido de extrema utilidade naquela hora.
Styles riu novamente, dessa vez alto e claro para que qualquer um pudesse
escutar. Mas em sua falsa bipolaridade, em um minuto já estava sério
novamente, maquinando algum plano diabólico em seu cérebro
perversamente genial.
- Você quer ter o poder de escolher não, é? Um ‘livre arbitrio’, já que você
alega que eu estou lhe privando disso – ele sorria malicioso, os olhos em
chamas – Então você o terá, Karina. Estarei te esperando, a meia-noite. Você
sabe onde me encontrar. Vamos sair comemorar meu aniversário. Você será
meu presente perfeito, novo, brilhante, e extremamente delicioso. Eu
esperarei, e entenderei caso você não apareça. Mas – ele olhou para o céu,
fingindo estar pensativo – os ventos me dizem que você vai aparecer.
- Você está fazendo besteira. Está assinando sua sentença de morte. Vai se
arrepender de sua insolência.
- Uh, mas eu não tenho medo. Diferentemente de você, Ká, eu gosto de
pagar pra ver.
Harry beijou-lhe a bochecha delicadamente, rindo baixo em seu ouvido antes
de afastar-se em direção a um grupo de beatas. Com o cérebro cheio de
informações confusas novamente, Karina o observava a distância, tentando
pela primeira vez, agir como seu tão odiado colega. Um plano diabólico de
dominação estava prestes a ser formado.

*Jesus of Suburbia é uma canção ÉPICA do Green Day, uma das minhas
favoritas deles, sobre um certo Jesus do subúrbio
*Coríntios 13 : Coríntios é como é conhecida a primeira epístola de S. Paulo à
igreja em Corinto. É nesta carta que é encontrada a famosa passagem sobre
a importância do amor genuíno, no capítulo 13. Por isso, Coríntios é
considerada uma das epístolas mais poéticas do "Apostolo dos Gentios"
como Paulo de Tarso chegou a ser chamado.

Capítulo 10 – Who gets the last laugh now?

O bater do coração aflito casava perfeitamente com cada nota que o


baterista de uma antiga banda de rock produzia. Havia um vazio que
apertava sua garganta, um nervosismo que corroia cada célula de seu corpo.
O vento frio que entrava pela única fresta da única janela não parecia capaz
de varrer aquela preocupação iminente que pairava como uma nuvem negra
sob sua cabeça. Mas ela não deveria estar ali. No seu rosto jovem
predominava uma ensaiada confiança excessiva, como se cada letra daquela
canção poderosa que ouvia houvesse penetrado em sua pele e lhe dado
força para erguer seu nariz no ar e agir como a vadia que gostava de fingir
que era. Escolhas eram complicadas como equações químicas, com a
diferença de que não havia resposta certa ou errada. Havia só a chance de
transformar uma decisão errada em algo menos pior do que parecia.
Escolhas eram como a Hidra* enfrentada por Hércules: a cada uma que era
resolvida, duas novas surgiam em seu lugar. Karina sabia muito bem daquilo.
Havia escolhido seguir adiante com a insanidade que era conviver
com Harry Styles. Havia escolhido dar-se a chance de ver como aquela
história terminaria. Não havia certo ou errado. Só havia muitas chances de
ela quebrar a cara e infinitos modos de matar o filho do pastor passando por
sua cabeça.
Os sapatos de salto eram extremamente altos. O vestido tomara-que-caia era
azul como a noite, e curto demais para os padrões de qualquer uma das
senhoras que havia estado no culto naquela manhã. Os lábios estavam
pintados de vermelho-sangue, como sempre. Aquilo era uma mania que ela
nunca perderia. Os olhos destacados por lápis preto e milhares de camadas
de mascara para cílios. Os cabelos caiam lisos quase até sua cintura. A
imagem refletida no espelho do quarto psicodélico de Carine era exatamente
o que ela queria naquela noite: algo que deixasse Harry enlouquecido ao
ponto de fazer qualquer coisa por ela. A intenção era boa, mas no fundo ela
sabia que estava sendo inocente. O garoto era estúpido demais para
demonstrar emoções desse tipo.
O quarto de Carine era o espaço mais bizarro em que Karina já havia pisado.
As paredes eram de um colorido frenético, como se tintas de várias cores
tivessem sido simplesmente jogadas a esmo na base branca. Havia milhares
de luzinhas piscantes de Natal por todos os lados, e a bagunça de livros
sobrenaturais em cima de um tapete azul felpudo era imensa. A cama de
dossel branca havia sido decorada com frases em línguas as quais a garota
nem sabia que existiam. Havia um armário antigo a um canto, com uma
manta de crochê da mãe de Linda sob o móvel. A porta do banheiro era a
única parte do quarto que não havia sido personalizada, assim como o
espelho de corpo inteiro no qual Karina se admirava agora. A amiga estava
jogada na cama, fazendo um tipo de meditação marciana qualquer que só
deixava Karina ainda mais nervosa.
Dormir na casa dos gêmeos havia sido uma estratégia para passar a noite
fora mais confortavelmente. Não que ela não conseguisse fazer isso em sua
própria casa: era até mais fácil do que parecia. Mas ela sabia queCarine tinha
lábia suficiente para convencer a todos que as duas passaram a noite
assistindo comédias românticas e tinha o guarda-roupa certo para que ela
pudesse tomar emprestado um visual que fosse satisfatoriamente sexy e
inocente ao mesmo tempo. E ela se sentiria mais tranqüila sabendo que teria
alguém esperando por ela na manhã seguinte. Com a caixinha-de-surpresas-
Styles, era sempre bom ficar com um pé atrás.O que havia ali era uma
atração carnal, uma obsessão cega misturada a um poço de curiosidade e
desafio de ambas as partes. Havia fogo entre Karina e Harry. Se um dia
chegaria a amor, ela não saberia dizer. Mas ela possuía o tipo de coração que
adorava pregar-lhe peças. ‘Nunca’ não era uma palavra que sairia de sua
boca.
O relógio apontava os vinte minutos que restavam para a meia-noite. Era
hora de esperá-lo na frente da igreja. Sempre o mesmo ponto de encontro.
Sempre a mesma jaqueta preta e larga que pertencia a Harry sobre os
ombros da garota. Era uma peça de roupa pela qual ela havia adquirido certo
apego. Provavelmente o garoto nunca a teria de volta. Olhando-se mais uma
vez no espelho, ela piscou para uma Carine sorridente em posição de lótus e
mãos juntas sobre o coração. Sua própria maneira de dizer ‘Boa sorte, meu
bem’. Sorte não poderia ser uma variante qualquer. Ela deveria ser o x da
questão.
Ao lado da janela do quarto de Carine havia uma antiga escada de incêndio,
entulhada por um telescópio gigante e milhares de projetos de mapas
estelares e miniaturas de extraterrestres em biscuit. A escada parecia estar
em bom estado, mas o problema eram os saltos que ela usava. Um passo em
falso e poderia acabar com o pescoço quebrado. Não era uma maneira muito
boa de começar a noite. Tirar os sapatos seria uma boa opção, não fosse à
quantidade exorbitante de poeira que havia nos degraus. Respirando fundo
mais uma vez, se aventurou, firmando os pés degrau por degrau, tentando
não pensar em como uma queda do segundo andar seria dolorosa e como
ela explicaria o que estava fazendo aquela hora e com aqueles sapatos
naquele maldito lugar. Arrumando o vestido rapidamente quando saltou do
degrau mais baixo, deu uma última olhada na casa dos Kallister. Em outros
tempos seria só mais uma noite de diversão segura com os gêmeos. Agora,
ela não tinha mais controle sobre o próprio destino.
Caminhar pelas ruas frias e escuras não era algo que estava no topo da lista
da garota de ‘Coisas divertidas para se fazer num sábado à noite’. Noites
traziam a ela sensações estranhas, como se estivesse sendo perseguida a
cada minuto, como se cada policial nas esquinas na verdade fosse um
marginal, um assassino pronto para levar embora sua juventude e dignidade.
Sua garganta parecia se apertar cada vez mais, suas pernas tremiam
ligeiramente a cada novo passo. Se o mundo era um lugar perigoso, as
pessoas que nele habitavam conseguiam ser mais terríveis ainda. Elas não
tinham piedade alguma, não se importavam com nada além delas
mesmas.Karina procurava andar o mais rápido possível, cabeça baixa e lábios
comprimidos numa linha fina. Deveria ter pedido para Harry ir buscá-la
diretamente na casa dos Kallister, mas além de não cogitar a possibilidade de
se humilhar diante dele daquele modo, não possuía nem ao menos o número
de telefone do garoto. Era uma situação irônica. Não podia ficar cinco
minutos no mesmo cômodo que Styles sem que uma vontade louca de jogar-
se em cima dele surgisse em seu intimo, mas sabia pouquíssimo sobre ele.
Enquanto ele parecia saber mais sobre ela do que ela gostaria que qualquer
pessoa em todo o universo soubesse.
Pela primeira vez Harry já estava a sua espera quando ela subiu da rua para a
dura calçada de pedra que fazia seus sapatos tilintarem
irritantemente. Karina procurou estampar em seu rosto seu melhor sorriso
zombeteiro, juntamente com o nariz empinado e as mãos geladas nos bolsos
da jaqueta. Ele estava encostado despreocupadamente em um poste
iluminado, pernas cruzadas, um cigarro quase no fim preso aos lábios, o
olhar vago, despreocupado. Usava uma camisa xadrez azul por cima de uma
camiseta branca justa e uma jaqueta de couro que Karina ainda não
conhecia. Os jeans eram claros e surrados e ela conseguia ver marcas de
cigarros por sua extensão. Tragando o cigarro uma última vez antes de jogá-
lo na rua, ele analisou-a de cima a baixo, uma fagulha de desejo estampada
nos olhos verdes. Estendeu-lhe a mão direita, uma atitude muito estranha
vinda do garoto que gostava de puxá-la sem aviso prévio para todos os
lugares. Ela hesitou por um segundo antes de entrelaçar os dedos gelados
nos dele, tão quentes. Pela primeira vez ele deixou-a aproximar-se
lentamente, não forçando nada, não impondo nada. Havia uma certa
confusão nos olhos azuis da garota quando ela finalmente deixou seu corpo
grudar-se no dele, num encaixe perfeito. Ele passou a mão pelos fios macios
do cabelo dela, deslizando-a até que a mesma chegasse a sua cintura.
Encaixando o rosto no espaço livre do pescoço dela, depositou leves beijos
sobre a pele perfumada até deixar a boca próxima de seu ouvido.
- Strike . Bingo. Gol. – Harry mordeu o lóbulo de sua orelha, fazendo com que
arrepios se espalhassem por todo o corpo frio da garota – Você decide. Mas
não pode negar que eu estou ganhando, disparado. – ele riu- Se eu tivesse
apostado alguma coisa, aposto que teria ganhado. Bom vê-la aqui, Ká.
Karina resmungou, cravando as unhas compridas no pescoço descoberto do
garoto, uma forma que ela encontrou de repreendê-lo pela arrogância
sempre presente e de manter-se quieta. Ela iria deixar que ele se
vangloriasse, ver até onde Harry chegaria. Mas o efeito não foi o desejado.
Em vez de soltá-la e massagear o pescoço pela dor, ele só fizera prendê-la
mais fortemente junto a ele, os lábios passeando por todo pedaço de pele
que ele conseguia alcançar, antes de chegar ao seu maxilar empinado e
alcançar os lábios cheios e macios da garota, sugando-os com uma vontade
extraordinária. As pernas de Karina tremiam, e ela se apoiava na ponta dos
saltos finos para tentar manter a maior proximidade possível entre os dois.
Partindo os lábios rapidamente, ela esperava a língua quente e macia
de Harry invadir sua boca, mas isso não aconteceu. Num riso baixo, ele
mordeu o lábio inferior da garota e os separou sem dó nem piedade,
puxando-a pela mão até a Harley-Davidson vermelha parada ao lado do
meio-fio alguns passos atrás dos dois. Karina bufou, desgostosa. Esse era o
tipo de coisa que ele gostava de fazer. Provocá-la o máximo para depois tirar
o corpo fora. Idiota. Cruzou os braços enquanto ele ria ironicamente ao
colocar um capacete preto na garota, segurando-o para olhar diretamente
em seus grandes olhos azuis.
- Apressada. Sempre apressada. Temos muito tempo pra nos divertimos
juntos, meu bem. – Harry soprava em seu rosto – A paciência é uma virtude
que eu venho exercendo há muito tempo com você, não é? Sua vez de fazer
o mesmo.
Karina deu de ombros quando ele a soltou, como se não fizesse diferença.
Mas fazia. Secretamente, ela queria pertencer a ele, deixar que ele a
possuísse, que juntasse seus corpos e nunca os separasse. Afastou o
pensamento. Tudo que ela precisava era um pouco de foco, ou acabaria se
arrependendo depois. Montou na garupa da motocicleta vermelha, passando
seus braços em volta do tronco de Harry, esperando a já conhecida sensação
de borboletas no estômago quando ele desse partida. Numa velocidade
impressionante, os dois já estavam na estrada, aproveitando toda a
adrenalina que o veículo de duas rodas podia proporcioná-los.
Era uma rua estranha, cheia de pessoas estranhas de cima a baixo. Havia
poucas luzes iluminando-a, e música num volume caótico e desorientador. Só
podia haver algum engano: aquela definitivamente não era a rua calma e
amigável do Incantatem. Havia cheiro de cigarro e álcool por todos os lados,
além de perfume barato e outras coisas que Karina nem gostaria de
imaginar. Harry parecia familiarizado com o local, sorrindo de lado para
algumas pessoas que lhe cumprimentavam discretamente. Levou-os até um
pequeno estacionamento a céu aberto, deixando a Harley com um segurança
muito calvo e gordo que o chamou de ‘Senhor Styles’. Com certeza ele era
um freqüentador dali. E isso com certeza não a tranqüilizava.
Assim que saíram pelo portão enferrujado e sujo do estacionamento, Harry
tomou-lhe a mão direita possessivamente, entrelaçando os dedos de ambos.
Seu cérebro preocupado gritava ‘perigo’ em letras garrafais, vermelhas e
piscantes a cada novo passo na escuridão. Havia um vento ainda mais frio ali,
como se o mundo tivesse se esquecido de fornecer um pouco de calor a
aquela parte da cidade. Pessoas fumavam e riam em pequenos grupos, casais
de todos os tipos se amassavam encostados nos muros pichados e havia
restos de bebidas que a garota não reconhecia no chão. Toda vez que ela
fazia menção de virar a cabeça para que seus olhos confirmassem alguma
situação absurda que violava todas as regras de higiene, saúde e ética, além
de todas as leis que existiam, Harry pressionava seus dedos delicadamente,
puxando-a mais para perto dele, forçando-a a somente olhar para frente.
- Ou o Incantatem mudou de endereço, ou algo muito estranho esta
acontecendo – ela sussurrou, os olhos grudados a frente, onde tinha certeza
de que havia visto o brilho prateado de uma lâmina ser apontado contra o
rosto de um homem miúdo e frenético
. - Não vamos ao Incantatem, não esta noite. Vamos mudar de ares um
pouquinho – um sorriso enigmático surgiu nos lábios sensuais de Harry –
Aposto que você vai adorar.
Ela rolou os olhos para disfarçar o temor que a tomava, protegendo o corpo
com a jaqueta ao passarem pelo assassino em potencial da lâmina prateada.
O toque da mão quente de Harry na sua a fazia se sentir protegida, mas não
a ponto de fazê-la esquecer os nós que ser formavam em sua garganta.
Pararam em frente a uma grande construção de tijolos a vista e milhares de
palmeiras no jardim. Luzes vermelhas e douradas saiam de grandes holofotes
estrategicamente posicionados, dando um ar de filme de terror ao lugar.
Havia uma pequena fila em frente a duas portas gigantescas de madeira,
rodeadas por dois seguranças que deveriam ter PhD em substâncias ilícitas
usadas no ganho de massa muscular. Com caras de poucos amigos, eles
ignoravam a maior parte das pessoas já alteradas por alguma coisa que
tentavam entrar no lugar a gritos, tapas e pontapés. Harry fez sinal para que
ela caminhasse a sua frente, guiando-a com a mão direita plantada
firmemente na base de suas costas. Um tanto nervosa,Karina quase tropeçou
uma ou duas vezes no caminho de concreto irregular povoado de garrafas
verdes de cerveja vazias. Alguns poucos perdidos lhe direcionavam olhares
vermelhos e rudes, outros somente acenavam a cabeça para Harry, como se
o respeitassem ou algo assim. Quando chegaram ao inicio da fila, um dos
seguranças de dois metros de altura e cabelos rastafári empinou o nariz para
a garota, e numa voz que mais parecia com giz arranhando um quadro-negro,
perguntou-lhe num tom mediano:
- Identidade,por favor?
Karina congelou por um minuto. Além de não trazer nada consigo, nenhum
tipo de documento, nem um celular ou uma cartela de chicletes que fosse,
não tinha idade para estar ali. Pelo meio minuto em que o segurança
abominável a encarou, seu coração disparou a mil por hora, bombeando
sangue loucamente por seu corpo. Estava incrivelmente fodida. Não
duvidava nada de que o homem chamaria a policia. Aquilo não seria nada
fácil de explicar para Esma e Rick, apesar de que ela pensava se no fundo eles
não dormiam toda noite esperando receber uma ligação daquele tipo. Era
bem provável.
- Boa noite, Zumiô – Harry pigarreou, passando um dos braços pela cintura
da garota e sorrindo autoritariamente –Acho que você ainda não teve o
prazer de conhecer a senhorita Dawson.
Zumiô piscou atônito algumas vezes, talvez do mesmo modo que Karina ao
ouvi-lo pronunciando o sobrenome de seus pais adotivos. Ninguém nunca a
chamara daquele jeito – senhorita Dawson – era sempre Karina, ouKá. Ela era
alérgica a sobrenomes, talvez. Não queria de modo algum que seu
sobrenome verdadeiro fosse pronunciado, apesar de somente ela própria e
os Dawson conhecerem. Mas nas circunstâncias atuais, talvez até isso Harry
soubesse. Mas não era extremamente agradável aos ouvidos ser chamada de
Dawson. Nem desagradável. Era somente estranho demais para que ela
pudesse se habituar tão rapidamente. Não parecia certo, como um tipo de
heresia qualquer.
-Senhor Styles – Zumiô corrigiu sua postura, como se sentisse intimidado
pelo garoto – Desculpe-me, não percebi prontamente que era o senhor.
Espero que me perdoe – uma tentativa frustrada de sorriso surgiu em seu
rosto desfigurado – E é um prazer conhecê-la, senhorita Dawson – ele tentou
sorrir novamente para Karina – Entrem,entrem.
Harry comprimiu os lábios, acenando positivamente e guiando a garota
novamente, dessa vez para dentro daquele lugar tão estranho. O primeiro
corredor era imenso e todo decorado com espelhos partidos que refletiam
luzes verdes para todos os lados, fazendo-a se sentir meio tonta. Espelhos no
teto. Ela torcia para que aquilo não fosse um tipo de motel musical, ou coisa
pior. Num letreiro de neon colorido acima de uma cortina de veludo
extremamente negra, era possível ler duas palavras que ela acreditava que
nomeavam o lugar: Sonic Underground. Nada bom. Definitivamente,nada
bom.
Ela afastou a cortina negra com a uma das mãos, apertando os olhos quando
luzes fortes acertaram em cheio o seu rosto. Mas foi só por um instante.
Logo foram substituídas por luzes violeta aconchegantes e intimistas e ela
pode observar o lugar com atenção. Cheirava a noz moscada, álcool, suor,
nicotina, uma quantidade exorbitante de perfumes importados e mais
algumas coisas que ela não reconhecia. Músicas sensuais demais, quase
pornográficas, explodiam em imensas caixas de sons, intercaladas com
alguns clássicos que ela reconhecia. Uma boate. Um salão gigante com
quadros de motos e mulheres seminuas nas paredes cuja cor ela não
conseguia identificar pela iluminação roxa do local. Uma multidão de
encrenqueiros vestidos de preto se divertia, sendo servidos por garçonetes
em lingeries coloridas. Havia um tipo de palco no meio do lugar, onde alguns
bêbados fingiam que eram estrelas do rock. O bar era gigante e cheio de
variedades de bebidas que ela nunca tinha visto. Perto daquilo, o Incantatem
poderia ser considerado um lugar para senhoras de meia-idade que
gostavam de chá com biscoitos. Se havia uma porta para o inferno na terra,
ela deveria estar na Sonic Underground.
Um pequeno grupo animado demais levantou as taças de champagne e
copos de whisky ao ver Harry e seu sorriso sacana favorito se aproximando
lentamente, puxando Karina pelo braço como um troféu de um jogo
qualquer que ele havia acabado de conquistar. Não tão fácil, meu bem, ela
pensava irritada, enquanto era largada sem consideração a dois passos
daquelas pessoas para que o filho do pastor fosse absorvido em meio de
gritos histéricos de loiras aguadas e tapas nas costas de homens já bêbados
demais. Com o mesmo sorriso no rosto, ele agradecia os cumprimentos pelo
aniversário, oferecendo mais uma rodada de bebidas quando uma garçonete
morena e voluptuosa passou por ali para grudar os lábios cor-de-rosa em sua
bochecha. Ela não se sentia enciumada: irada e provavelmente a beira de
matar alguém era um adjetivo mais adequado. Odiava ser deixada de lado
daquela maneira. Aprendera a trazer todos os olhares para si própria como
autodefesa, e agora ali, naquele lugar tão estranho no qual ela não sabia o
que lhe esperava, só conseguia se sentir boba, pequena e patética. E com
vontade de pedir a lâmina do pseudo-psicopata que vira do lado de fora, e
cravá-la nos pontos sensíveis de Harry. Alguém ficaria sem bolas.
Um par de olhos cor de mel a observava, curiosamente. Pertenciam a um
loiro de lábios cheios e dentes perfeitos, que lhe sorria maliciosamente
enquanto jogava os cabelos bagunçados para trás. Se alguma vez na
vidaKarina teve certeza de que não valia nada, aquele era o momento,
quando abriu o sorriso mais sedutor que os lábios vermelhos poderiam
formar, e piscou os longos cílios negros para o desconhecido. O garoto
deveria ser uns dois anos mais velho que ela, e vestia preto de cima abaixo, a
forma alta escondida por tecido demais. Ela gostaria de ver o que havia por
baixo de tudo aquilo. Seria interessante. Mas foi no momento em que ele
alargou o sorriso e levantou uma taça de Martini, cumprimentando-a, que o
real objetivo por trás de toda aquela paquera desmedida fora realizado: os
olhos verdes elétricos de Harry fizeram o trajeto da taça ainda parada no ar
para o sorriso irônico que ela adorava sorrir para ele estampado no rosto
de Karina. Num riso seco e baixo, deu dois passos para trás para puxar a
garota para perto de si, a mão forte apertando sua cintura, a boca colada em
seu ouvido:
- Ká, meu bem, o que está aprontando agora? – a voz sexy tinha um toque de
humor ácido, um sarcasmo disfarçado e uma cobrança implícita que ela
deveria levar a sério.
- Socializando, oras – Karina provocou-o, limpando com um beijo molhado a
marca de batom que a garçonete havia deixado na bochecha direita do
garoto – Afinal, não é pra isso que freqüentamos esse tipo de lugar? Para
fazer novas amizades?
- Quase isso – ela sentiu os lábios quentes dele repetindo o movimento que
ela acabara de fazer, dessa vez na pele ainda gelada pelo frio da garota – A
única diferença – a voz tornou-se mais baixa, como uma confissão – É que
aqui sou eu que escolho com quem você deve se relacionar.
- Desde quando você virou meu dono, Harry? – ela sussurrava no mesmo
tom, passando a mão levemente pelos cabelos curtos e negros dele.
- Desde o momento que você quis se tornar minha – o último sussurro a
matou por dentro, como se fizesse todos os seus pensamentos derreterem
num mar de lava – Pode me chamar de ‘chefe’, se quiser. Mais sexy
impossível - Os olhos verdes e o sorriso zombeteiro de Harry agora estavam
virados para o loiro, que observava os dois com uma certa curiosidade
reprimida no olhar – Perdeu alguma coisa aqui, Patrick?
- O nome e o telefone da honorável dama ao seu lado. Talvez a honra de uma
dança, quem sabe? – ui, ele era tão irônico e sádico quanto Harry. Parece
que um novo peão havia sido inserido no jogo. Quem daria o xeque-mate?
- Também quer um gostinho do meu punho no seu olho esquerdo? O direito
não acabou de se recuperar da nossa última conversa? – o sorriso de Harry
se mantinha intacto. Ela conseguira despertar a atenção de um pseudo-
desafeto do garoto. Isso era muito, muito interessante. Por que Patrick
parecia o tipo de cara que se divertia em bater de frente com o que parecia
ser o manda-chuva do grupo. Delicioso.
- Há dores que vem para o prazer. Minha finada avó sempre dizia isso. Talvez
não nesses termos, mas o sentido é o mesmo – agora o grupo todo os
observava, em polvorosa, provavelmente apostando quem seria o primeiro a
puxar uma arma. Por que Karina não era ingênua o suficiente para acreditar
que as brigas de Harry acabassem em simples socos. O que só fazia o nó em
sua garganta aumentar consideravelmente. Não sabia pelo que estava mais
nervosa: pelo lugar, pela tensão, pela sua integridade física ou pelo medo
pela integridade de Harry. Por que apesar de tudo, ela deveria admitir que se
importava com ele. Agora que o garoto havia entrado em sua vida e virado
seu mundo de cabeça pra baixo, ela não o queria mais longe. Difícil de
admitir, vergonhoso, humilhante. Mas era a verdade nua e crua.
- Sério, Patrick? Você realmente vai querer levar outra surra de Harry? Já
estou desconfiando de você. Isso tudo é tesão pelo Styles? – um homem alto
e um tanto magrelo cutucou o amigo. Tinha olhos roxos que com certeza
deveriam ser provenientes de lentes de contato, e cabelos castanhos claros
cheios de gel, o sorriso de dentes brancos irregulares parecia esticado de
mais em seu rosto comprido – Tudo bem que eu concordo que a garota é
uma delicia, pelo menos pelo que vi até agora, mas, porra, já seria a quarta
vez em dois meses, se contarmos as duas em que Zumiô teve que te tirar
daqui a pontapés.
- Gosto de viver perigosamente, John – ele resmungou, levando o Martini ao
lábios.
- Gosta de ser um capacho, isso sim – uma morena com mechas vermelhas
no cabelo negro riu, agarrando a cintura do que se chamava John.
Decididamente, aquilo era uma gangue. Uma gangue de estranhos
delinqüentes liderados por Harry.
- As garotinhas vão ficar brigando por mim na minha frente? – Harry deu um
longo gole num copo de whisky que Karina não havia notado, enquanto
descia a mão lentamente até o quadril da garota, batendo os dedos
levemente por aquela área, fazendo-a morder o lábio inferior numa mania
que ela sabia que ele adorava – Essa é Karina Dawson, minha nova...melhor
amiga – sua mão escorregou pela coxa da garota, apertando-a –Ká, meu
bem, tenho o desprazer de apresentá-la aos maiores delinqüentes, juvenis
ou não, da região.
- E você deve ser o líder da quadrilha – ela ergueu a sobrancelha direita,
fingindo surpresa quando os vários rostos lhe sorriram e balançaram a
cabeça, antes de voltarem os olhares para um Harry um tanto distraído com
a barra do vestido da garota – Não me surpreende, na verdade.
- Quando eu me tornei tão previsível? – um olhar de advertência passou
pelos olhos verdes do garoto, direcionado aos amigos de preto, como se
perguntasse por que eles continuavam ali os observando. O efeito foi
terrivelmente rápido: em menos de um minuto eles já haviam se espalhado
pela boate.
- Você sempre foi previsível – ela soprou, afastando-se dele para se sentar
num banco de vinil azul junto ao extenso balcão do bar, pernas cruzadas para
que Harry pudesse visualizar melhor suas coxas desnudas. Karina sabia que
ele viria atrás, como um cachorrinho quando ofertado uma recompensa por
uma boa ação. Harry funcionava do mesmo modo – Além de ser um
tremendo idiota. Por que dispensou meus novos amigos? Principalmente
Patrick... é esse o nome dele,não? Gostei desse garoto – ela piscava
inocentemente enquanto sentia os braços fortes do garoto envolverem sua
cintura. Era um indício, um sinal de posse. Como se avisasse a todos os
outros cachorros do local que aquele era o seu território.
- Achei que você quisesse passar um tempo a sós comigo – a voz irresistível
sussurrava em seu ouvido – Me desejar feliz aniversário...
- Você não merece – ela riu,empurrando-o levemente – Você tem sido um
menino muito, muito mau, Harry. Você tem sido um filho da puta que não
merece respirar.
- E você está louca pra me colocar de castigo, não é, mamãe? – deu um
último gole no seu whisky, antes de preparar-se para atacar a garota do
modo que mais apreciava. Mas, ao ouvir um grito alto do outro lado do salão
que chamava por seu sobrenome, pareceu momentaneamente contrariado e
irritado, antes de sorrir aquele seu sorriso tão maligno e irônico, aquele
sorriso tão Harry – Vai ter que ficar pra depois. Comporte-se – roubou-lhe
um selinho rápido antes de ir atrás da pessoa que o havia chamado.
Sem a presença de Harry ali para entorpecê-la, o receio começava a
consumir seu pequeno coração, mandando nós que não podiam ser
engolidos para sua garganta, fazendo seu coração pular lentamente em sua
caixa torácica. Nunca em sua vida imaginou que fosse parar num lugar como
aquele, com gente como aquela. Um lugar onde casais faziam sexo pelos
cantos escuros sem pudor, onde viciados cheiravam carreiras e riam
alucinadamente, onde prostitutas se ofereciam a seus clientes como numa
feira livre e todos bebiam demais e riam demais. Para a falsa rebelde que na
verdade era uma puritana, aquilo tudo era assustador demais. E ao mesmo
tempo ela odiava parecer assustada. De jeito algum queria parecer uma boba
diante de todos aqueles olhares de superioridade. Ela não queria ser
uma Bella Swan* no meio de um grupo de vampiros de True Blood*. Com o
nariz empinado e o olhar longe, ela só queria que Harry voltasse logo para
que ela pudesse se aconchegar em seus malditos braços.
Mas não era o filho do pastor que vinha na direção da garota. Era a mesma
morena de lingerie que o havia cumprimentado antes. A mulher de curvas
voluptuosas e seios fartos conseguia ser ainda mais branca do que a
pálida Karina. Com certeza era alguns muitos anos mais velha que ela. Tinha
grandes olhos azuis e lábios cheios e vermelhos que sorriam de um modo
maligno. Sua lingerie era composta por um corselete preto e uma calcinha
com estampa de leopardo. Os cabelos negros eram presos em cachos a lá
Marilyn Monroe. Ela era terrivelmente mais bonita do que a garota, que
praticamente se abraçava enquanto ela chegava perto. Na mão comprida de
unhas vermelhas ainda mais compridas, trazia uma taça com um conteúdo
que Karina reconhecia,e ficava vermelha por isso. Recados de Harry,oh sim.
Ela parou a três passos contados da garota, se equilibrando em saltos que
deveriam ter no mínimo 15 centímetros. Karina engoliu em seco. A mulher
parecia uma águia pronta para dar o bote.
- Uma pina colada para a protegida de Harry – ela proferiu em sua voz
arrastada e baixa – Ele me pediu para vir lhe fazer companhia.
- Você quer dizer que ele pediu para que você ficasse de olho em mim
– Karina aceitou a taça, tentando parecer confiante e fingindo um riso
sarcástico baixo, mas escondendo o temor que tinha daquela estranha no
bolso da jaqueta – Sei com quem estou lidando...desculpe, como você disse
que se chamava mesmo?
- Não disse. Você pode me chamar de Kitty. É como todos por aqui me
chamam – ela riu sozinha de alguma piada interna, sentando-se ao lado da
garota num dos altos bancos de vinil azul e puxando um cigarro de um maço
preso em sua cinta-liga – E, não quero acabar com suas esperanças meu
bem, mas acho que, quando se trata do SenhorStyles, ninguém sabe com o
que está lidando – ela tragava seu cigarro lentamente, como se lembrasse de
algo enquanto seus olhos percorriam o teto sem um foco aparente, um
sorriso fino se formando em seus lábios – Se Deus colocou um verdadeiro
enigma sobre a Terra, este enigma é Harry. Há duplo sentido em cada palavra
que saem daqueles lábios, em cada ação que ele pratica. Há intenções por
trás de intenções – puxou um pequeno cinzeiro de vidro de cima do balcão,
deixando as cinzas de seu cigarro caírem como flocos de neve sobre o
material transparente – Ele é perigoso, e você parece uma menina boa
demais. Deveria tomar cuidado.
- Você parece conhecê-lo há bastante tempo – Karina fingiu ignorar o
conselho pelo qual não havia pedido e engolir a pontada de ciúmes que se
instalou rapidamente por seu corpo junto com a pina colada. Por que todas
suas experiências com romances baratos de revista e livros fracassados lhe
deixavam interpretar aquilo de uma única maneira singular e talvez até um
pouco obsessiva: a idéia de que Kitty só lhe dizia aquilo para plantar
incertezas em seu cérebro já tão confuso. Ela não iria ouvir. Não seria a
garota tola que se deixava levar por fofocas ridículas – Se são tão amigos
quanto parece, por que diz que ele é perigoso?
- Nos conhecemos há algum tempo sim – ela parecia ainda mais entretida
por alguma lembrança qualquer, pelo tamanho do sorriso que ostentava - E é
por esse tempo que eu volto a afirmar que ele não presta. Há muita sujeira
escondida debaixo do colarinho branco de Harry. Engana-se quem pensa que
os únicos segredos que ele possui se relacionam a sua verdadeira identidade.
Ele participa de um sistema podre. Não que eu seja a pessoa mais limpa do
mundo, longe disso – ela riu desgostosa – O meio em que vivo não tem um
pingo de dignidade. Mas ele consegue se envolver com gente ainda pior. Não
vale a pena se associar a esse tipo de coisa por nada. Nem por amor, nem
por dinheiro, nem por sexo. E você deve saber melhor do que eu que transar
com Harry é o paraíso. Te faz cometer insanidades estratosféricas, como se
por de joelhos em frente a ele e pedir por mais – Kitty deu de ombros – Essa
é uma parte do meu currículo da qual eu não me orgulho nem um pouco.
- Hm – Karina se obrigou a engolir dois longos goles de sua pina colada antes
que desse uma resposta que ao invés de boba a faria parecer mal-comida e
ciumenta. Apenas tentou abrir seu melhor sorriso de concordância para a
mulher que a observava cautelosamente, e numa voz doce e falsa, soprou –
Nada do que você me disse é novidade, Kitty. Posso não conhecer Harry há
tanto tempo quanto você, mas sei o suficiente para não ser só mais uma
transa, uma noite qualquer. Não sou o tipo que gosta de ser dominada. Sou o
tipo que domina – Ela levantou-se, tomando o resto da bebida de uma vez só
antes de bater a taça com uma violência mascarada no balcão de madeira.
Preparava-se para seu gran finale, sua saída nada triunfal e até mesmo um
tanto infantil, quando a mão quente e firme de Kitty segurou seu pulso.
- Karina – ela havia assumido uma seriedade que a garota não julgava
possível caber a aquela mulher. Os olhos azuis como diamantes faiscavam
sinceros em sua direção – Não fui irônica em momento algum. Nem
queroHarry para mim. Só estou tentando ajudar. Pelo menos pense no que
eu te disse - como se aquela conversa nunca tivesse acontecido, a meretriz
largou o pulso fino de Karina, voltando-se para o garçom de cabelos cor de
fogo que empilhava copos largos e azuis sob uma bancada de vidro fumê.
Ela sabia que pensaria até demais naquelas palavras antes de entrar em seu
mundo particular de sonhos naquela mesma noite, nos minutos que
antecediam seu precioso sono. Mas seu cérebro acostumado a ser negativo,
lhe lembrava docemente de uma coisa: depois daquela conversa tão
estranha e aquele lugar tão bizarro, provavelmente seu subconsciente lhe
daria pesadelos de presente. Pesadelos coloridos demais e com ervas
alucinógenas queimando por todos os lados. Caminhando entre aquela
multidão que dançava sem parar ao som de algum rock remixado, Karina
chegou à sublime conclusão de que havia cansado. Alguém já poderia
chamar o ônibus do jardim de infância, por que certa menininha usaria todos
os choros e manhas possíveis para que o filho do pastor a tirasse dali
imediatamente.
Esbarrando em corpos suados aqui e ali, ela avistou os olhos
brilhantemente verdes de Styles faiscando enquanto ria de algo que parecia
o divertir demais junto a um pequeno grupo de homens de terno e gravatas
coloridas frouxas nos pescoços longos e cigarros nos lábios finos. Karina
sentiu uma má vibração, um frio cortante passou por seu pescoço
aparentemente protegido. Por um momento, a única coisa que quis fazer foi
dar meia volta. Talvez preferisse continuar o papo cheio de duplos sentidos e
cacos de vidros afiados que estava tendo com Kitty do que ter que
puxar Harry do meio daquelas pessoas. Respirando fundo e lembrando que
deveria continuar com a máscara de vadia corajosa que costumava usar,
endireitou sua postura sob os saltos altos e caminhou em linha reta até o
maldito que a havia colocado naquela situação. Fazendo um pequeno desvio
de caminho para se situar exatamente atrás do garoto, ela passou as unhas
compridas por seu pescoço para chamar-lhe a atenção.
- Styles – sussurrou ao ouvido do aniversariante, deslizando a mão pequena
até o braço musculoso dele que estava preso ao lado do corpo, apertando-o
levemente para que ele lhe desse atenção.
- Ká, meu bem – ele abriu um meio sorriso – achei que tinha pedido pra você
me esperar no bar.
- Cansei. Não quero mais ficar aqui. Me leve de volta pra casa, por favor – o
beicinho que surgiu em seus lábios juntamente com os olhos azuis que
piscavam como asas de borboletas eram suas armas para que ele caísse em
seu jogo e a levasse dali. Até um ‘por favor’, uma palavra mágica disfarçada
ela incluíra na sentença. Mas seu momento de inocência fora grande demais
e passou no momento em que ela viu a ruga que se formara entre as
sobrancelhas agora quase unidas de Harry. Game over, bitch*.
- Você não pode estar falando sério – ele soltou-se da mão apertada da
garota, puxando-a agora pela cintura para uma parte menos movimentada e
mais longe de seus amigos no Sonic Underground. Os olhos estavamverdes
escuros a meia luz, como se indicassem perigo. Como se a desafiassem a
continuar com a brincadeira. Como um lago aparentemente calmo que grita
‘vamos lá, pule do precipício. Mais do que morrer você não vai’. A garota
mordeu o lábio inferior, toda a segurança descendo pelo ralo imaginário que
sua mente projetara.
- Eu estou. Odiei este lugar. Quero voltar pra casa – as palavras saíram num
misto de sussurro com um resto de dignidade que lhe restara. Não eram
altas nem baixas demais. Eram somente claras e verdadeiras.
- Você já se deu conta de como é uma estraga-prazeres, Karina? Como adora
sair à francesa dos lugares, rápida como um tiro de raspão? – Harry segurou-
lhe o nariz rapidamente, como quem brinca com uma criança levada. Talvez
na opinião dele fosse exatamente isso que ela representava. Droga, droga,
droga. Aquilo não iria terminar nada bem – Não vamos embora agora. Vamos
ficar até o sol raiar. Talvez mais. Talvez nunca iremos embora, que tal? Você
não adoraria? – ele sorria mostrando todos os dentes, a ameaça implícita e
clara ao mesmo tempo naquele sorriso encantador: ‘me provoque, mas não
me desafie’.
- Hm – Karina crispou os lábios, olhando para um ponto qualquer do outro
lado da boate por um momento. Os braços cruzados sobre os seios
apertados no vestido azul petróleo, ela lembrou-se por que agia como uma
desgraçada: não gostava de ser pisada. Muito menos humilhada como
aquele maldito filho do pastor tinha um prazer iminente em humilhar. Seu
pavio era mais curto do que o de uma dinamite prestes a explodir. Uma carga
de dignidade nova fora injetada em suas veias, como se algum daqueles
drogados que ali estavam a tivesse picado sem querer com uma de suas
agulhas. Usaria uma carta que ela nem sabia que tinha na manga até puxá-la
com maestria – Ótimo. Não quer me levar? Realmente ótimo, Hazza – soltou
o apelido do garoto pelos lábios vermelhos com um certo escárnio – pois eu
conseguirei algum idiota pra me pagar outra pina colada e me levar para casa
numa moto de marca.
- Não brinque com fogo Karina...
- Eu nunca disse que não gosto de estar em chamas.
Deu as costas para Harry num rompante, se infiltrando novamente entre
prostitutas e riquinhos do tipo rebelde sem causa, sem olhar para trás uma
única vez para certificar-se de que ele a seguia. Ela sabia que ele o faria.
Adoraria ver o próximo passo da garota. Ainda mais se este fosse direto ao
chão. Ainda mais pelo fato de que Karina não tinha plano nenhum: as
palavras lhe traíram quando escaparam correndo de sua boca. Ela andava
sem rumo, tentando achar uma boa saída. Quando viu um já conhecido par
de olhos cor de mel a analisando.Patrick estava com o corpo encostado num
dos pilares de sustentação do salão, um copo de whisky na mão e um sorriso
perigoso nos lábios. Harry achava que era insubstituível? Bom, era hora de
provar que sua teoria era errônea e mal-calculada. Num giro de calcanhares
milimetricamente perfeito, ela acariciou o chão lentamente com seus saltos
altos, os lábios numa posição premeditadamente sexy e os olhos ensaiados
para parecerem como depósitos profundos de malícia. O sorriso de Patrick
aumentou consideravelmente ao vê-la se aproximar tão cheia de más
intenções. Como se conseguisse tocar todos os pensamentos pervertidos que
se passavam pela cabeça do loiro em questão. A distância que ela manteve
dele era relativamente pouca e escandalosamente mínima para todos os
pares de olhos que prestavam atenção dobrada a cena.
- Acho que não tivemos a oportunidade de sermos decentemente
apresentados – Karina não reconheceu a própria voz que saia sedutora e
baixa e batia descaradamente nos lábios entreabertos de Patrick – o que,
sinceramente, acho uma pena - sua mão macia brincava quase
distraidamente com um pedaço do casaco de moletom preto que o garoto
usava, fazendo-o dividir a atenção entre esta e os cílios longos da garota que
lhe piscavam demoradamente.
- Concordo plenamente, señorita. – outro homem que gostava de apelidos
em línguas calientes. Se Harry era o galanteador francês, Patrick era o Don
Juan espanhol. Era bom alguém arrumar um ventilador, por que o calor no
corpo de Karina começava a subir gradualmente – Tudo culpa de nosso
querido amigo Styles. Ele é do tipo egoísta. Mas olhando mais de perto
agora, quando se trata de você, acho que eu também seria. – os olhos cor de
mel passearam pelas pernas descobertas da garota, passando por seus seios
comprimidos pelo vestido até chegarem aos lábios cheios e bem
desenhados. Num movimento arriscado, Patrick praticamente encostou seus
corpos um tanto elétricos, para sussurrar no ouvido da garota palavras que
fizeram todos os músculos de seu corpo tremerem – Ele fodeu alguma coisa ,
foi um idiota com você e você está louca pra causar ciúmes nele, não
é, cariño? Sinceramente, não me importo de ser usado nesses jogos tão
baixos – ela sentiu suas mãos firmes e fortes segurarem sua cintura fina, um
roçar de lábios inesperados na curva de seu pescoço e um aroma cítrico tão
envolvente adentrou suas narinas despreparadas. – se eu for bem
recompensado, é claro. Então, por que não deixamos o papinho de lado e
partimos logo pra ação?
Dizer que ela não esperava os lábios rígidos e exigentes de Patrick se
chocarem nos seus seria uma mentira boba e absurda. Karina sabia que
aquilo iria acontecer tanto quanto sabia que dois mais dois eram quatro. Ela
havia conseguido achar alguém mais rápido e sacana do que Harry, mas isso
não a agradava, exatamente. Aquilo definitivamente não estava nos seus
planos da noite, pelo simples fato da certeza concreta de que tudo
terminaria mal. Mas o modo com Patrick apertava sua cintura e invadia sua
boca com sua língua quente era no mínimo arrebatador. O gosto de whisky e
limão que ela sentia enviava arrepios por toda sua medula espinhal enquanto
ele num movimento arriscado a prendia contra um dos pilares de
sustentação da boate. Suas mãos se ocuparam em descer e subir sem
restrições pelo corpo agora quente da garota, do mesmo modo que ela lhe
agarrava os cabelos loiros. Karina conseguia sentir cada músculo definido
escondido pelas roupas negras em atrito contra seu corpo, eriçando cada
pelo de sua nuca. O ar lhes faltou por um momento ínfimo, no qual Patrick
mordeu seu lábio inferior antes de se separar lentamente. Uma agonia
interior que disfarçava uma culpa que não deveria existir se apossou do
corpo da garota nos poucos instantes que eles estavam separados. Por que
era extremamente estranho estar beijando os lábios de outro enquanto
sentia um certo perfume amadeirado cada vez mais forte impregnando o ar.
Nem cinco segundos depois mãos delicadas, mas obstinadas, a arrancaram
dos braços de Patrick, levando-a para alguns metros longe da dita cena do
crime. Foi o tempo de a garota abrir os olhos para vez o filho do pastor
levantar o falso amigo pela gola do casaco, os olhos verdes quase negros e
uma veia lhe saltando no pescoço. Percebeu logo depois que era Kitty que a
segurava, uma certa preocupação nos olhos quando sussurrou poucas
palavras em seu ouvido:
- Se você não saísse dali, teria se machucado junto. Que tipo de idéia você
tinha nessa cabeça de vento, garota? As coisas aqui vão piorar – Karina sabia
que a meretriz estava certa quando já não mais enxergava Harry e Patrick no
meio da multidão que parara para assistir a briga. Só ouvia gritos de êxtase e
cabeças por todos os lados – Saia daqui. Ele irá atrás de você. Ele vai querer
tirar satisfações. Não o provoque mais, por favor. Prometa-me que vai tentar
fazer tudo ficar bem. Agora, Karina – a voz dela era autoritária e exigente,
como a de uma mãe que pede para que o filho não coma um pedaço de bolo
antes da festa de aniversário. As pernas da garota estavam bambas o
suficiente para saber que ela tinha razão.
- Prometo.
- Vá – Kitty a empurrou para o lado contrário da confusão, mas Karina ainda
não sabia para onde correr. Eram pessoas demais que tentavam chegar cada
vez mais perto dos dois arruaceiros no centro do boate. Para todo o lugar
que ela olhava, faces acusadoras e divertidas a encaravam de volta.
Apontavam sua culpa implicitamente. A única coisa que ela queria era
que Harry ficasse bem. E que ela mesma continuasse viva no fim da noite.
Perdida em pensamentos desagradáveis, não reparou quando esbarrou em
algo que ela teria considerado um poste não fosse o tecido macio do terno.
- Senhorita Dawson? Precisa de ajuda?
- Zumiô – ela sussurrou, um tanto aliviada – Me ajude a sair daqui.

* Who gets the last laugh now? é um trecho de Lies, dos meus meninos
do McFLY, e que se encaixa muito bem nesse capítulo: Quem vai rir por
último agora?
*A Hidra era um animal fantástico da mitologia grega que tinha corpo de
dragão e sete cabeças de serpente cujo hálito era venenoso e que podiam se
regenerar.
* Bella Swan é a protagonista insossa da saga Crepúsculo (as opiniões
contidas aqui são minhas, sem ofensas) e True Blood é uma série incrível que
mostra vampiros de verdade.
* Game over, bitch: Fim de jogo, vadia.

Capítulo 11 – Master of Puppets

Era um corredor escuro, apertado por suas paredes altas e lisas. Cheirava a
mofo e cinzas de cigarro há muito abandonadas pelos degraus de pedra bruta.
Havia marcas d’água em cada parede suja enegrecida pelo tempo que passava
rapidamente naquele lugar. Aranhas passeavam pela única lâmpada
incandescente presa ao teto, gasta e quase sem energia, que pulsava uma luz
fantasmagórica, transformando os rostos que por ali passavam em nada mais
do que caveiras sem traços definidos e sem um pingo de vida escorrendo por
suas veias.
Harry caminhava apressado, o coração aos pulos e o cérebro trabalhando
rapidamente. Cada degrau ultrapassado encarado como um obstáculo a menos
até seu objetivo final. Ele não se importava se John o seguia a passos largos,
atento a cada movimento daquele que considerava seu mestre. O garoto tinha
outros assuntos mais importantes para lidar do que a preocupação exagerada
de um de seus pupilos. A porta revestida de alumínio a sua frente tremeu ao
ser empurrada para trás violentamente, dando passagem para os dois rapazes.
A sala mediana de paredes vermelhas e sofás grandes e marrons era habitada
por um homem alguns anos mais velho, o cabelo ruivo brilhando sob a forte
luz incandescente e contrastando com seu terno creme italiano extremamente
bem cortado . Havia prateleiras de madeira repletas de cadernos negros em
toda a extensão do lugar. Cadernos como aquele que o homem observava
aberto sobre uma grande mesa de mogno repleta de canetas coloridas e
documentos importantes. Um anel de prata incrustado de rubis girava em seu
dedo anelar. Aquele homem parecia um magnata, um poderoso chefão de um
esquema criminoso qualquer, o líder dos políticos corruptos. Inspiraria medo
nos bêbados que se arrastavam pelo Sonic Underground. Mas ali, preso em
sua sala, ele era só um subordinado. E seu chefe havia acabado de chegar.
- Senhor Styles – ele levantou-se rapidamente, uma meia reverência exagerada
diante do garoto enfurecido.
- Cale-se, Sebastian – seus olhos verdes o fuzilaram – Onde está Gustav?
John, feche a droga da porta de uma vez.
- Gustav foi acertar um de nossos negócios pendentes. Se me perdoa senhor,
acho que um de seus olhos está roxo...
- Ah, não diga, Sebastian. É maquiagem. Vou fazer uma audição para o
próximo filme do Arnold Schwarzenegger. Eu sou o saco de pancadas, óbvio.
– Harry se jogou na poltrona, a cabeça entre as pernas, uma das veias de seu
pescoço pulsando.
- Briga de bar? – Sebastian sussurrou para John discretamente, enquanto este
fingia analisar algumas pastas vermelhas de uma prateleira ao leste.
- Patrick.
- Ah – o homem suspirou, observando o chefe fazer anotações furiosamente
em um caderno de capa azul escura – O que ele aprontou dessa vez?
- Arquivo 737. Arquivo Saxon.
- A garota. O que houve? – a voz de Sebastian agora exibia um pingo de
nervosismo, como se soubesse os grandes problemas que estavam por vir.
- Ela é gostosa e Patrick não vale o chão que pisa – John deu de ombros, como
se fosse um tanto óbvio – Eles se agarraram, o chefe ficou puto e tentou
quebrar a cara dele. Simples assim.
Harry mantinha as mãos cruzadas abaixo do queixo, as pontas dos dedos
batendo uma sobre as outras, como se houvessem muitas idéias martelando
sua cabeça. E havia. Seu cérebro epassava cenas e mais cenas, frases ditas,
beijos roubados. Tudo parecia estar dando tão certo, como se seu pequeno
plano estivesse sendo seguido as riscas, como um roteiro de teatro. Até aquele
momento. Porque o filho do pastor esquecera de somar algumas coisas as suas
equações. Uma delas era a teimosia extrema de Karina. Porque ali, em sua
cabeça e em suas divagações, ele tinha certeza de que ela seria mais suscetível
ainda. De que faria qualquer coisa por ele, e que hesitaria antes de dizer uma
palavra rude ou um ato impensado. Mas no final, a órfã só havia o
surpreendido mais e mais a cada grito, tapa ou ato de rebeldia. Algumas coisas
precisavam mudar. Suas investidas deveriam ser repensadas. Mas ainda havia
aquela segunda coisa, aquele aperto no fundo de sua garganta toda vez que
Damian, o maldito Damian, ou mesmo Patrick se aproximavam furtivamente.
Algo como um pequeno sentimento de posse, desenvolvido rápido demais. Ele
precisava se reafirmar. Colocar os dados na mesa novamente, focar nos
objetivos.
Gustav talvez fosse, dos quatro, o que mais se parecia com um marginal
verdadeiro, com seus cabelos raspados e tatuagens por todo o corpo, e o que
menos tinha tendência a isso, no final. Dera duas batidas na porta antes de
entrar, a camiseta vermelha ensopada de suor, os jeans sujos de grama e uma
mala preta na mão esquerda, que foi depositada calmamente em cima da mesa
de madeira. Ele sorriu para seus companheiros ao notar seus olhares curiosos,
deu de ombros e somente sussurrou ‘O 424 resolveu fazer o pagamento no
Stadium Park, mas os cachorros não acharam uma boa ideia’. Mas Harry não
tinha tempo de ouvir aquela história. Precisava achar Karina o mais rápido
possível.
- Gustav – os olhos verdes se voltaram para ele, impossíveis de se ler – O que
eu te disse depois que aceitamos o 737?
- Que era a melhor coisa que tinha acontecido em séculos. Dois coelhos com
um só tiro – Gustav o encarava, um tanto curioso – Que resolvia parte de seus
problemas pessoais, e que somava uma quantia extremamente interessante a
nossa conta bancária, que afinal, é o que me interessa. Por quê?
- Sebastian – ele ignorou a pergunta final – depois que pagou sua divida, por
que continuou aqui?
- Bom, o senhor paga melhor do que qualquer emprego regular na cidade,
não? E, além disso – ele pensou, antes de finalizar – Teoricamente, não
fazemos nada ilegal.
- Teoricamente - Styles avaliou a resposta. Passou seu olhar para John – E
você John, porque aceitou meu convite?
- Porque queria passar mais tempo com você, delicia – John riu, esparramado
em um dos sofás – Grana, é óbvio.
- Três anos atrás, isso aqui começou como uma grande brincadeira. O arquivo
número um era só um favor a um amigo. Mas a noticia se espalhou. Os
arquivos cinco e seis pagaram a compra dessa sala – ele relembrava um tanto
nostálgico – Um empresário aos 15 anos. Eu tinha acabado de conhecer o
mundo de verdade, fora daquela maldita igreja. E eu queria tanto o dinheiro, a
sensação de poder. E agora estamos aqui, uma pequena gangue, e as coisas
estão quase do jeito que eu quero. Falta tão pouco. Isso precisa dar certo. Eu
preciso manter a cabeça no jogo. Eu preciso da Karina.
Num rompante, Harry levantou-se, passando rapidamente pelos três homens
que pareciam compreender só metade de suas palavras. Ele não se importava.
Há muito tempo havia aprendido a viver mergulhado em seus próprios
segredos. Nunca tivera vontade de partilhá-los. Ao chegar a porta, virou-se,
como se houvesse lembrado de algo muito divertido.
- Você disse que os cachorros do Stadium Park não gostam de companhia
noturna, não é, Gustav? Peça pra Flanagan levar Patrick para dar uma
passeada por lá.
Voltando a andar pelo corredor escuro nos subterrâneos da Sonic
Underground, seu coração voltara a disparar, e suas idéias tentaram se
organizar uma última vez. Alguma estratégia, alguma forma de trazê-la mais
perto. Quando se quer muito algo, é normal aceitar dar alguma coisa em troca,
desistir de alguma preciosidade. Talvez naquela noite, para colocar os
acontecimentos nos trilhos corretos novamente, Harry Styles devesse desistir
de algumas de suas máscaras para que outras fossem usadas em cena.
Capítulo 12 – Under Pressure
Trilha sonora do capítulo

O barulho dos saltos na estrada de concreto ecoava em seus ouvidos, um som


que fazia com que cada pelo de seu corpo se eriçasse, colocando todos os seus
sentidos em alerta máximo a cada mínima lufada de ar diferente da anterior.
Era um tipo de pânico nunca experimentado antes, algo cru e intenso, que a
fazia querer sufocar de uma vez só para aplacar a dor de seguir em frente. A
pouca luz emitida pelos altos postes de madeira não auxiliava em nada na sua
busca por um pouco de conforto. Aquilo mais parecia um filme de terror um
tanto trash, onde os efeitos especiais foram mal calculados e a protagonista
parecia ainda mais patética a cada tomada.
Mas afinal, aquele era só mais um dia comum na vida de Karina, não? Um dia
em que ela se ferrava graciosamente após cair nos galanteios de algum
marginal qualquer. Dias como aquele haviam se tornado recorrentes em sua
vida desde que Harry aparecera nela. Mas era uma questão de foco. Foco que
ela havia perdido há muito tempo atrás. Andar por aquela rua era tão diferente
das noites em que se aventurara na Storage Street em busca do filho do pastor.
Talvez porque ela conhecia cada pedra que formava aquela rua, cada árvore
estrategicamente posicionada e cada poste de luz distribuído pelas
calçadas. Karina não fazia idéia de onde estava agora, e o pouco que ela
enxergava eram casas grudadas demais, jardins mal cuidados e olhos amarelos
de gatos que pareciam invisíveis em meio a toda aquela escuridão.
Zumiô havia sido de grande ajuda dentro da Sonic Underground, mas agora
ela se perguntava se realmente tinha sido uma boa idéia pedir ajuda ao
segurança. Ele havia a escondido do resto da multidão com seus dois metros
de altura, orientando-a até uma pequena porta de madeira na parte sul da
boate. A última visão que teve daquela festa infernal fora o companheiro de
Zumiô, igualmente alto e musculoso, tentando apartar a briga que já não
passava de um borrão de pessoas agitadas, gritos de excitação e olhos em
polvorosa. E então foi empurrada para fora, nada delicadamente por um par de
mãos que mais pareciam duas pás, resultando num belo tombo em frente a
uma lata de lixo. O joelho esfolado a incomodaria por horas a fio até que ela
arrumasse outras coisas com as quais se incomodar. Mas a única atitude que
tomara fora sair em disparada pelo pequeno caminho de pedras sujas que
levava a única abertura no muro de tijolos gastos. E então, subitamente, ela
fora parar ali, naquela rua tão diferente de todas em que já estivera antes.
Karina já estava longe de seu ponto de partida, mesmo não sabendo
exatamente para onde ir ou há quanto tempo estava caminhando. Parecia uma
eternidade. Os sapatos de salto lhe machucavam os pés, mas ela não se
arriscaria a tirá-los para acabar pisando em algum caco de vidro esquecido ou
um prego enferrujado perdido no meio da rua. Tudo que ela não precisava no
momento era uma doença ou um machucado mais sério. A única coisa que
queria era algum tipo de luz no final do túnel escuro que era sua vida naquele
momento. E um ponto de ônibus. Havia uma única nota apertada em sua mão,
cujo valor ela não conseguia enxergar direito, mas esperava que fosse o
suficiente para uma viagem para casa. Zumiô havia empurrado-a para a sua
mão discretamente, uma tentativa de sorriso no rosto desconfigurado. O
brutamontes tinha um coração afinal, e havia se apiedado dela.
Sua cabeça começava a ficar pesada, quase como se seu pescoço já não tivesse
mais forças para mantê-la erguida. Era irônico afinal, não? Já que sua
dignidade havia escorrido por entre seus dedos como água gelada, era hora de
sua cabeça deixar-se levar, grudar os olhos azuis no chão e não levantá-los
mais novamente. Mas eles eram mais teimosos e rebeldes do que sua dona
jamais fora capaz de ser, e, quando um fragmento de luz surgiu no horizonte,
quase como uma fagulha perdida de um fogo de artifício de 4 de julho*, sua
atenção foi toda roubada para aquela paisagem. E a medida que aquela luz
crescia e começava a machucar seus olhos, o ímpeto de fechá-los como seria
natural foi totalmente ignorado. Tudo pelo simples fato de que há algum
tempo aquela única luz branca e intensa como as batidas de seu coração se
tornara tão conhecida que a única atitude possível a ser tomada naquele
momento fora crispar os lábios e manter os pés firmes no chão, mesmo que
seus saltos parecessem prestes a desabar.
Quase como se ambos se preparassem para uma batalha, a motocicleta
vermelha a sua frente parou a uma distância considerável, o farol ainda ligado,
o piloto ainda invisível, mesmo que Karina não precisasse de uma visão
privilegiada para identificá-lo.
Os minutos se passavam, longos e intermináveis, mas nenhum dos dois se
atrevia a fazer um primeiro movimento. Como se assimilassem a presença do
outro e medissem cuidadosamente a próxima atitude a ser tomada. O silvo
baixo de uma coruja no alto de uma árvore os tirou do transe em que se
encontravam, trazendo-os de volta a uma realidade sombria. Um relógio
invisível parecia ter dado sua badalada final. A hora do confronto chegara.
Ninguém nunca saberia qual movimento ocorrera primeiro, os poucos passos
de Karina ou o desligamento do farol da Harley-Davidson vermelha. Mas
agora era possível enxergar o motoqueiro, mesmo sob a combinação fraca das
luzes da calçada com o brilho prateado de uma lua tímida. Na viseira do
capacete negro ela conseguia identificar os gloriosos olhos verdes, queimando
como loucos, medindo cada pedaço da garota a sua frente.Harry parecia um
animal, um leão prestes a atacar sua presa indefesa. Os nós dos dedos estavam
brancos e machucados, mas ainda assim ele não os relaxava sob o guidão de
metal. Mas por mais que a situação exalasse um perigo iminente, Karina não
sentia medo. Era mais um certo tipo de energia que se espalhava por cada
tecido de seu corpo, uma adrenalina sem limites e pronta para ser expelida em
forma de atos não tão educados.
Três passos, talvez quatro, eram tudo que os separavam. O ar parecia pesar
uma tonelada, passando dificilmente pelos pulmões dos dois, sufocando-os
sem pressa, quase que gentilmente. A boca de Karina se abriu por um instante,
como se fosse ela a começar aquela conversa. Mas durou pouco. Logo os
olhos azuis se tornaram duros, os lábios se tornaram uma linha branca e fina.
Não. Ela queria ouvir. Desculpas, xingamentos, justificativas, ameaças. Ela
precisava ouvir as palavras enunciadas por aquela voz que tantas vezes a
deixara sem chão. Talvez isso acalmasse as batidas de seu coração,
negativamente ou positivamente. Mas o filho do pastor permaneceu absorto
em seu silêncio sepulcral. Retirou o capacete, segurando-o no colo
despreocupadamente, antes de levantar os olhos frios e brilhantes em sua
direção. Karina pode notar a sombra roxa que emoldurava seu olho esquerdo,
assim como o pequeno corte vermelho vivo perto de seu lábio inferior. Uma
vontade passageira de tocar-lhe e aplacar sua dor se instaurou em seu corpo,
mas foi passageira. Durou até o exato momento que o sorriso, aquele sorriso
tão Harry Styles, atravessou fantasmagoricamente o rosto do garoto. Não
havia nada ali para se sentir pena. Só repulsa.
Uma palavra. Uma palavra dura, imperativa e pronunciada vagarosamente.
Uma palavra que definiu o resto daquela noite. Talvez, se formos ambiciosos
o suficiente, poderíamos dizer que aquela palavra definiu o resto de suas
vidas.
-Suba.
Dias e dias de sentimentos presos em seu interior explodiram ali, como fogo
em gasolina. Um tipo de rosnar arranhou sua garganta, os olhos brilhando em
raiva incondicional. Os três passos seguintes foram totalmente irracionais,
mas o tapa no lado direito da face de Harry não. Toda a força que lhe restava
fora empregada ali, numa tentativa de marcar na pele do outro tudo que seu
cérebro conturbado gritava em sua cabeça. Ele não esboçou reação, quase
como se esperasse aquilo. Então era a vez dela. De uma única palavra sair,
alta e clara, de seus lábios que tremiam levemente.
-Chega.
O peito de Karina subia e descia rapidamente, irrefreável. Ela tentou inspirar
fundo uma última vez, para estabilizar-se. Uma queda agora não seria algo
agradável. Mas seus pés lhe obedeceram, seu corpo se firmou e ela não voltou
a olhar para o rosto dele. Não poderia. Ergueu a cabeça o mais alto que era
possível, contornando a moto como se ela não tivesse a mínima importância.
Não tinha mais, afinal. Karina seguiu o caminho do asfalto, sempre olhando
em frente, com dois meios de terminar a noite passando como filmes em preto
e branco em frente a seus olhos. Nos seus melhores sonhos, ela sairia dali, iria
até o final da rua, pegaria um ônibus e voltaria pra casa. Nunca mais os
olhos verdes a atormentariam novamente. Mas ela seria uma tola de marca
maior se acreditasse nisso, não seria? Por isso seus piores pesadelos se faziam
presentes, aqueles no qual ele a atropelava até a morte repetidamente, até que
seu último suspiro ecoasse pelos quatro cantos da rua escura.
No caso de Harry, Karina sempre deveria contar com uma terceira opção
escondida na manga de sua jaqueta de couro negro. Ela ouviu o baque
repentino do capacete atingindo o chão sem cuidado algum, como se jogado a
esmo no concreto frio, mas em momento algum se virou para checar se sua
teoria ou seus ouvidos estavam corretos. Só continuou seu caminho
apressadamente, guardando seu dinheiro no bolso, ignorando todos os sinais
sonoros de passos firmes as suas costas. Harry podia segui-la até o inferno, ela
não dava à mínima. A menos que ele não lhe tocasse do modo que tocou
alguns segundos depois.
De todas as abordagens de Harry, aquela foi a que chegou mais próxima de
parar seu coração. Ela já estava acostumada aos puxões, a marcas vermelhas
de dedos em seus braços finos e brancos, a arranhões em sua cintura delicada
e a choques de quadris que balançavam todas as suas estruturas corporais.
Mas aquele toque, a delicadeza com que ele escorregou sua mão grande e
gelada até a pequena e mais gelada ainda dela, entrelaçando os dedos dos dois,
desenhando círculos em sua palma. Pela primeira vez ele não a grudou em seu
corpo forte e irritantemente sedutor, mas sim se moldou ao dela, a testa
encostada no topo da cabeça repleta de longos cabelos pretos da garota, a
respiração tão curta e quente batendo na nuca desprotegida de Karina. Ela
congelou, coração a mil, garganta fechada, olhos perdidos no infinito. A boca
de Harry agora era encostada a um de seus ouvidos, e a mão livre acariciava
seu pescoço tão lentamente que, fosse qualquer pessoa menos sensível ao filho
do pastor do que Karina, mal teria notado. Mas ela notara. E ele sussurrou, de
uma vez só, e sem receio algum, como era tão comum ao garoto.
- Por favor.
- Não – ela devolveu, com a força de uma pena caindo sobre sua cabeça. Era
um pedido tão simples, mas tão complicado ao mesmo tempo, que parecia
derreter como lava por seu corpo, esquentando-o, protegendo-o do frio e do
perigo daquela noite tão estranha. Era a primeira vez que ela se lembrava de
ouvi-lo dizer aquelas duas palavras de modo tão sincero, palavras tão comuns,
mas tão cheias de significados para aqueles dois.
- Karina – ele insistia, apertando sua mão junto à dele, a voz um décimo mais
alta do que antes – Por favor.
- Merda, Harry. Merda. Por que você continua falando? Por que você não vai
embora e me deixa em paz? – Era a hora de encará-lo, finalmente, então. De
girar em seus saltos, soltar a mão que lhe prendia e mergulhar nos grandes
olhos verdes que a fitavam. O perfume amadeirado penetrou fortemente por
suas narinas, mas ela ignorou, empinando o nariz, sustentando seu olhar
profundo – Porque eu estou cansada de você. De tudo a que me expõe e de
tudo que faz comigo. Cansada da sua maldita insolência e do seu nariz
erguido. Eu simplesmente não agüento mais.
- Não era eu quem deveria estar chateado aqui? Pegar minha garota agarrada
num dos meus amigos no dia do meu aniversário não é algo extremamente
emocionante – Harry riu baixinho, voltando a mascara de seriedade alguns
instantes depois, aproximando-se mais e mais da garota, encurralando-a em
sua própria bolha – Mas nós precisamos conversar sobre isso, não
precisamos? Como adultos. Pessoas civilizadas. Estou tão cansado da
brincadeira de gato e rato tanto quanto você. Quero fazer isso dar certo.
- “Isso” não existe. Não há nada aqui além da porra da sua obsessão por mim.
Estou cansada de você, Harry.
- Não está, não. – suas mãos voaram até seu rosto pequeno e pálido, trazendo-
o o mais perto possível, tocando-o tão suavemente, como se fosse algum
tesouro, alguma relíquia perdida de um grande império que precisava ser bem
tratada – Isso significaria estar cansado de algo que te arrepia, que faz seu
coração surtar e eleva a temperatura do seu corpo. Significaria estar cansada
do jeito como eu toco você, de como nossos corpos ficam bem juntos e como
cada beijo que demos foi como tocar o paraíso. Você se lembra do nosso
primeiro beijo, não lembra? – ele sorriu, um tipo inocente de sorriso que ela
nunca havia notado naquele rosto antes – Eu lembro de como me senti. Como
não queria te deixar escapar dos meus braços. Como queria sentir seu calor só
mais uma vez... Você não pode estar cansada disso. Por que eu não vejo meios
possíveis em todo o universo para evitar a eletricidade que há entre nós
dois, Karina.
Ela não tinha resposta, e nem adiantaria ter uma. Seus lábios foram cobertos
pelos dele, tão calmos, precisos e deliciosos. Ele acariciava suas bochechas, e
movia-se tão lentamente que o mundo poderia estar parando de girar naquele
momento. E então Karina entendeu o que ele quis dizer, entendeu porque, por
mais raiva, nojo ou repulsa que sentisse, sempre voltava para os braços do
filho do pastor. Porque momentos como aquele superavam todos os outros,
eram tão mágicos e lhe roubavam a respiração de um jeito que era impossível
não pedir por mais. A relação doentia de Harry e Karina fora construída num
terreno perigoso, escorregadio, com todas as chances do mundo de afundar.
Ela agia como uma tola, entregando-se, deixando-se levar, largando todas as
armas que possuía no chão no momento em que a pele dela ia de encontro à
dele, pelo simples fato de que a paz que lhe invadia, mesmo quando os
movimentos eram selvagens e agressivos, era um tipo de paz que ela nunca
havia experimentado antes. O tipo de paz que calava todos os seus monstros
interiores. Os momentos em que seus lábios se tocavam e os corpos se
juntavam eram os únicos onde cada um podia ser o que realmente era, e se
entregar do jeito que mais agradável fosse. E então ela só queria que aquilo
durasse pra sempre. Que ela pudesse pertencer a ele para sempre.
Mas eles nunca duraram o suficiente. Como aquele. Harry não lhe deu tempo
nem para que ela abrisse os lábios, deixasse-lhe tomar a boca e a carregasse
até o pedaço mais próximo do céu. Ele separou-os, abriu os olhos lentamente
e mergulhou nos dela, testa a testa, respiração misturada com respiração. E o
sussurro seguinte fora milimetricamente calculado para destruir todas as
defesas que ela havia construído anteriormente.
- Por favor, Karina. Venha comigo. Nós precisamos conversar. Se não nos
entendermos, eu te levo pra casa, esqueço de você, nunca mais te procuro. Só
me de a chance de tentar te convencer.
Harry parecia tão sincero, tão verdadeiramente honesto pela primeira vez, mas
então por que algo no fundo de seu cérebro continuava a gritar ‘perigo’? Ela
nunca saberia se não descobrisse por si própria. Já havia caído por tantas
vezes, e levantado depois somente para cair novamente, que uma vez a mais já
não faria diferença em suas contas finais. Talvez mais tarde um sentimento de
culpa lhe atingiria em cheio, talvez ficasse com raiva de si mesma por ser tão
idiota. Mas agora já não importava mais. Acenou a cabeça positivamente,
recebendo um selinho rápido em resposta, deixando-se levar até a Harley-
Davidson vermelha que tão bem conhecia.Harry colocou-lhe o capacete sobre
os cabelos pretos, e ela esperou que ele se sentasse antes de aconchegar-se na
carona. Passou os braços em torno da cintura de Harry, perguntando-se,
confusamente, qual era o destino e como afinal terminaria toda a história que
os dois haviam construído tão rápida e intensamente.

As viagens na Harley-Davidson sempre foram assustadoramente silenciosas e


perigosas, mas aqueles 10 minutos por estradas frias e desconhecidas foram
piores do que todas as outras que ela já havia enfrentado. E daquela vez tão
singular, o medo do desconhecido que a aguardava não era a pior sensação
que rondava a mente de Karina. O pior daquela noite era que a sua volta para
casa não era uma imagem que ela conseguia visualizar tão facilmente. Como
se simplesmente não fosse acontecer, como todas aquelas vezes no orfanato
em que a esperança lhe dera as costas e a única coisa que a esperava no fim de
um corredor era a escuridão devastadora. Aqueles minutos não eram muito
diferentes daquilo. E, tão repentinas como algumas conclusões anteriores, a
noção de que Harry despertava duas realidades diferentes e trazia memórias
tão confusas a antigira. Abandono e aceitação, adoração. Dor e cura. Morte e
vida.
Karina permanecia mergulhada nesse tipo de pensamento existencial, quase
como retrospectivas de uma vida patética, quando a motocicleta foi
estacionada no terreno mais escuro existente em todo o planeta. A única
palavra que ecoava em seu cérebro, alta e dominadora, era morte. Morte,
morte, morte. “Estou perdida. Estou fodida. O idiota vai me matar”. Por que,
se não essa, qual seria outra razão plausível para a presença dos dois ali?
Conversar no escuro não era uma prática muito utilizada por duas pessoas
que, na teoria, estavam tentando ‘se entender’, não? Mas o que ela poderia
esperar do filho do pastor, se não aquilo? Capuccino e muffins numa filial
iluminada de um Starbucks de beira de estrada com famílias sorridentes e
palavras doces de conforto não faziam o estilo do filho do pastor. E se ela
parasse para ser sincera consigo mesma ao menos uma vez, veria que aquilo
também não fazia seu estilo. O perfume amadeirado não fora a única coisa que
a viciara, afinal. O perigo e a velocidade disputavam a primeira posição do
mesmo ranking.
Mas todos os seus sentidos se aguçaram a mínima movimentação de Harry. O
garoto levantou-se num impulso, deixando-a sozinha em meio à escuridão,
sem mencionar uma palavra que fosse. A única coisa que ela continuava a
ouvir eram as corujas solitárias da madrugada. Corujas eram o símbolo da
sabedoria, mas também poderiam significar que tempos sombrios estavam
chegando. A neurose consumia seu cérebro, bolando mil e uma teorias de
como ele pretendia desfazer-se da vida que habitava seu corpo totalmente
gelado. Tudo que Karina esperava era que Harry tivesse o mínimo de
consideração pelo tempo que os dois passaram juntos e não a fizesse sofrer.
Rápido e limpo. Sem derramamento de sangue. Sem a dor excruciante que ela
já começava a sentir em seu âmago.
E então aconteceu. Rápido, instantâneo, indolor. Um clarão branco a cegou e a
envolveu. Os religiosos acreditariam que os anjos tinham descido dos céus
para lhe buscar. Karina só esperava que não fosse ela que tivesse que pagar
aquela conta de luz.
Contudo, as imagens se tornaram mais claras, ganharam formas definidas, se
ajustaram para não machucar mais ainda suas pupilas já doloridas. Os
contornos de pinheiros de mais de dois metros de altura, com agulhas
proeminentes e de um verde-esmeralda quase bonito, se não fosse tão
assustador naquele cenário. Mas a construção antiga a sua frente era o que
mais lhe chamava atenção.
Era um posto de gasolina. Abandonado, aparentemente. Colunas de concreto
se erguiam majestosas até a cobertura quadrada de ferro branco que servia de
telhado. O prédio era pequeno, com janelas e portas de vido tão cobertas de
sujeira que já não era mais possível enxergar seu interior, as paredes deveriam
ser de um tom entre o branco e o creme antigamente, mas a pintura estava tão
descascada que já não era mais possível saber. O chão era coberto de folhas
murchas, formando um tapete espesso sobre os lugares onde antes os carros
eram provavelmente estacionados. A Harley-Davidson, por sua vez, fora
parada entre duas bombas de gasolina verdes e desativadas, tão próximas uma
da outra que, se Karina estendesse os braços, tocaria as duas ao mesmo tempo.
Mas não era a nenhum desses detalhes que os olhos azuis da garota se
apegavam. Eles estavam presos na figura vestida de negro parada no meio
daquela cena um tanto lamentável.
Harry mantinha as mãos dentro dos bolsos da calça jeans de lavagem clara e
desbotada, a jaqueta fechada até o último botão metálico próximo ao seu
pescoço e os olhos impassíveis. Ou Karina continuava viva, ou o idiota
resolvera segui-la até mesmo após a morte. A primeira opção era mais
plausível. Era chegada a hora, então. Bang bang. Ela se sentia num filme de
faroeste dos anos 60. Virando-se de modo a ficar frente a frente com o garoto,
ela cruzou as pernas, um sorriso falsamente doce no canto dos lábios, a
sobrancelha direito erguendo-se levemente, um ‘e ai?’ ironicamente
estampado no rosto. Fora o suficiente para que ele se aproximasse, o rosto
indefinível, como se tantas reações fossem sido misturadas ao mesmo tempo
que, ao final, nenhuma delas fora o suficiente para descrever seu estado de
espírito. E essa não era realmente uma boa noticia.
- Então, Karina – sua voz não continha um traço de emoção visível, era fria,
dura como o concreto sob seus pés – por onde você quer começar
nossa ‘conversinha’, meu bem?
- Uh, senhor precavido, você não formulou um script? – Nada bom. Nada,
nada bom. Aquela conversa seria pior do que abrir a caixa de Pandora* de
algum deus grego desprevenido. A diferença é que no final nem a esperança*
teria coragem de permanecer dentro dela – Que tal começarmos pelo motivo
principal de toda essa merda? Por que diabos, Harry, entre todas as outras
idiotas da escola, sou eu que estou sentada numa moto no meio do nada, perto
de onde Lúcifer perdeu as botas?
- Você já parou pra pensar que pode ser a mais idiota de todas elas? – Harry
riu quando os lábios rosados da garota formaram um pequeno ‘oh’ de
indignação, mas o bom humor foi extremamente repentino. Sua boca logo se
fechou numa linha fina, seus olhos queimaram nos dela – Motivos, motivos.
Eu me pergunto todos os dias porque as pessoas se importam tanto
com ‘motivos’. Estão sempre procurando raízes, razões para cada pequena
porcaria que acontece no Universo, e assim acabam destruindo a mágica que
aquilo exercia anteriormente, não é? Mas as pessoas costumam ser tão
hipócritas às vezes, Karina, que quando o motivo verdadeiro não as agrada,
elas inventam um mais agradável aos ouvidos só para ter um pouco de
felicidade novamente. Isso me irrita. E você vem e me pede motivos. Você
sempre pergunta pelos motivos. Mas você, mais do que ninguém, Ká, deveria
saber – ele estava perto agora, e era impossível ignorar a presença de seus
olhos verdes ou de suas palavras perturbadoras – Nós nascemos, crescemos,
vivemos anos e anos, e no final morremos, não é? Você sabe me dizer o
motivo disso? Não, não sabe. E mesmo assim, você continua aqui, não? Eu
ainda consigo sentir sua respiração falha. Eu ainda consigo sentir seu coração
disparado. Por minha causa.
- Ah, claro, Harry, nós vamos nos entender muito facilmente assim. Mas na
realidade, isso foi só uma desculpada esfarrapada para me trazer aqui, não foi?
E pela primeira vez você tem razão, eu realmente sou a maior idiota de todas –
ela cuspiu as palavras, o ódio já espumando por sua boca –Você é o pior ser
humano que eu já tive o desprazer de conhecer. E o pior é que eu me deixei
relacionar por você. Deixei-me levar, me deixei envolver. Te deixei me tocar
e sinto nojo disso. Mesquinho, arrogante, tão seguro de si. Jaquetas de couro,
motocicletas vermelhas e dinheiro roubado. Senhor ‘eu-não-gosto-de-
motivos’. Senhor filho do pastorrevoltado. Eu sou tão maduro, eu posso ter a
vadia que eu quiser. Mas eu quero aquela, a órfã que já deve ter sofrido tanto
na vida que não vai se importar se eu pisar em cima dela um pouco mais.
MAS ELA SE IMPORTA SIM – Suas palavras saiam gritadas, suas mãos
fechadas em punhos acertavam o peito de Harry sem dano algum, mas ela
continuava batendo pelo alivio de descontar sua raiva – Eu te odeio tanto
agora, que você não pode nem imaginar. Mas no fundo eu odeio mais a mim
mesma. Porque por um momento, só por um momento, lá atrás, eu pensei que
poderia ser verdade. Que eu poderia parar de sentir nojo de você. Parar de
sentir nojo desse envolvimento de merda. Mas foi só outro truque. E eu cai.
Eu volto a falar dos motivos sim. Você queria o que, que eu me envolvesse
com você pra depois você me humilhar publicamente? EU NÃO DOU A
MINIMA. Vá em frente, faça a merda que você quiser, mas me deixe em paz
depois, PORQUE EU NÃO TENHO MAIS FORÇAS PRA CONTINUAR –
ela estava fora de si, as palavras saiam sem controle, como se o filtro tivesse
sido jogado fora. Mas Karina não se importava. Ela só queria que Harry
parasse de dirigir aquele olhar de deboche a ela.
You need cooling, baby, I'm not fooling

(Você precisa se acalmar,baby, eu não estou brincando)

- Respire fundo, Karina. Isso não faz bem pro coração, sabe, surtar assim
desse jeito. – Harry agia como se não houvesse ouvido uma única palavra do
discurso raivoso da garota – Você precisa parar de ser tão neurótica e
desconfiada, meu bem. Eu tenho um nome perfeito pra isso: Paranóia. – ele
falou pausadamente, como se a garota fosse alguma débil mental que não
conseguiria entender a linguagem humana – Eu vi você no intervalo. Te achei
gostosa pra cacete. Como qualquer cara normal e interessado, eu fui pesquisar
sua vida um pouquinho. O acaso nos colocou no mesmo barco, querida, e eu
usei as cartas que tinha na manga. Simples assim. Por que isso não entra na
sua cabeça?
- PORQUE VOCÊ NÃO É NORMAL, PORRA. Você é insano. É doentio, é
tão falso quanto os peitos da sua amiguinha Kitty. Eu não consigo
acreditar, Harry. Eu estou aqui, olhando nos seus olhos, e eu simplesmente
não consigo acreditar em você.
- Por que você não quer – ele bufou, realmente parecendo sincero ou algo do
tipo. Seu lábio superior tremia ligeiramente enquanto ele falava – E só você
não vê isso. Você acha que sou cheio de lados obscuros e vidas secretas, e que
me aproximei de você porque quero dominar o mundo um dia de cada vez,
mas você não vê o quão estúpido isso é porque não quer, Karina. Você não
quer acreditar em mim, você escolheu isso. Eu posso não valer o ar que
respiro, mas não me enquadre como um vilão, porque, se eu te trato como
uma criança, é porque você pede e merece isso. E quer saber – seus olhos
pareceram aumentar, brilhantes e desejosos, e aquele sorriso maldito se
formara no canto dos seus lábios – Palavras aqui não adiantam. Nós
simplesmente não nascemos pra isso, então, pro inferno. Eu cansei.

I'm gonna send you back to schooling

(Eu vou mandá-la de volta à escola)

As mãos fortes e um tanto ásperas voaram diretamente para o rosto da garota,


mas não carinhosas e delicadas como antes, mas sim cheias de energia e
urgência como geralmente eram. Mas dessa vez havia também um certo
cuidado, como se ele se preocupasse, ou fingisse se preocupar, com a
integridade física da garota. Seus lábios se chocaram com os dela, e embora o
plano original da garota fosse não deixa-lo aprofundar o beijo, uma outra ideia
se apossou de sua mente no momento seguinte. Abrindo a boca de vagarinho,
deixou que a língua morna de Harry deslizasse ao encontro da sua, aquele
gosto viciante de whisky, cigarro e chiclete de hortelã se espalhando por cada
canto sem sua permissão consciente. Um protesto baixinho tomou conta de
seus músculos quando ela executou sua vingança premeditada. Os dentes
desceram, brancos e certeiros, até a carne macia da língua do garoto, se
fixando ali sem qualquer dó ou piedade, empregando o resto da força que
ainda lhe restava naquela tentativa frustrante de afasta-lo de si.
E funcionou, pelo minuto seguinte, no qual Harry resmungou alto e a deixou
livre somente pelo tempo suficiente para que uma quantidade significativa de
ar entrasse em seus pulmões. O garoto riu baixo, engolindo o sangue que a
ferida deixara, colando sua testa a da garota, uma diversão nervosa passava
por seu olhar. Ele sussurrou, concentrado na confusão presente no rosto
de Karina.
- Você acha que eu desisto tão fácil das coisas que quero, Ká? – Ele beijava
sua bochecha, seu queixo, a ponta de seu nariz – Nem morto. Dor pode ser
afrodisiaco, não pode? Excitante. Menina má. Eu gosto disso. Só não deixe
seu masoquismo atrapalhar nossa diversão.

Way down inside honey, you need it


,
I'm gonna give you my love

(Bem lá no fundo querida, você precisa disso)

(Eu vou te dar o meu amor)

Num giro rápido de quadris, Harry sentou-se junto a ela na Harley-Davidson,


de modo a deixá-la sem saída entre seu corpo e o guidão de metal. Ela arfou
quando o garoto puxou-a diretamente para seu colo, as mãos apertando sua
cintura delicada por cima da jaqueta de couro. Ele não se demorou a atacar
seu pescoço com os lábios nervosos, beijando-o de um modo que deixaria
enormes marcas vermelhas no local. A garota só conseguira morder seu lábio
inferior em resposta, suas atividades cerebrais sendo anuladas. Ela não queria
retribuir. Não podia retribuir. Mas Harry sabia exatamente o que estava
fazendo, enquanto escorregava a jaqueta para fora do tronco da garota,
liberando seus ombros nus expostos pelo vestido tomara-que-caia azul, área
que ele logo atacou com aquela boca que era capaz de enlouquecer qualquer
uma em questão de segundos. Uma mordida leve havia sido depositada perto
de sua clavícula quando um último pedido por clemência fora feito.
- Harry, não, Harry – Ela sussurrou, apoiando sua cabeça no ombro do garoto
quando este começou a beijar o lóbulo de sua orelha – Não faça isso comigo.
Por favor. Deixe-me ir.
- Porque, se você não quer ir embora? – O joguinho de sussurros era
desnecessário, já que os dois deveriam ser os únicos num raio de 50
quilômetros, mas tudo aquilo tornava o ar mais quente, quase rarefeito, a fazia
derreter por dentro e perder todo e qualquer sentido que possuía –
Chega, Ká. Pow, pow. – ele imitou um revólver com os dedos, mirando-o na
direção da testa de Karina, simulando um disparo - Você foi atingida em
cheio. Nós dois fomos. Não existe volta. Só rendição. – Harry grudava a boca
a seu ouvido, frisando a última palavra de modo que ficasse grudada no
cérebro da garota – Rendição.

Wanna whole lotta love

(Quero um bocado de amor)

Karina não deveria esperar por um direito de resposta. Ela sabia que não o
teria. Por isso não ficou surpresa quando Harry lhe beijou novamente, quente,
rápido, molhado. A merda com os escrúpulos. Para o inferno com cada motivo
negativo que seu inconsciente parecia lhe sussurrar para que ela desistisse
daquilo. Mesmo que quisesse, não teria como fugir, teria? Mas pra ser sincera,
teria sim. Conseguiria fugir, se fosse aquilo que ela realmente desejasse. Mas
que se fodessem as aparências, afinal. Mentindo para si mesma, ela tentava se
convencer de que tudo aquele desejo insano que nutria por Harry era pura
curiosidade desmedida e mortífera. Experimente da fruta proibida uma vez, e
depois a abandone-a. Nunca mais volte a prová-la. Ninguém nunca
mencionava que o que era proibido era geralmente viciante. Karina era boa o
suficiente em ignorar esse tipo de informação.
Então ela somente aceitou, jogou seus braços em volta do pescoço do garoto,
endireitou a coluna, beijou-o com mais afinco. Suas mãos fizeram o caminho
conhecido até seus cabelos, embrenhando-se entre eles, bagunçando-os,
arrancando fios distraidamente. O sentimento de precisar mais e mais
de Harry a consumia por inteiro, como fogo em gasolina, derradeiro e
impossivel de fingir ser inexistente. Harry sugava seu lábio inferior, e agora
ela dividia sua atenção entre a sensação que isso lhe causava e o desafio que
era arrancar os botões da jaqueta do garoto, um a um, antes que todos
rolassem pelo chão e ela finalmente conseguisse livrá-lo da quantiedade de
couro negro que lhe cobria, que juntamente com a camisa xadrez azul fora
pelos ares. O que foi suficiente para despertar o lado mais selvagem de Styles,
levando-a a tirar a camiseta branca que ainda restava em seu corpo e
apertando as coxas da garota de modo a levantá-la, deixá-la alguns
centímentros mais alta que ele. Harry passava os lábios pelo seu decote, a
cada movimento que Karina fazia, fosse passando as unhas compridas pelo
peitoral forte e nú dele, fosse pelo mexer involuntário de seus quadris em seu
colo. Tudo parecia atiçá-lo, instigá-lo, deixá-lo com mais sede. Sede
de Karina e seu corpo bem delineado, seus gemidos baixos em seu ouvido,
suas mãos numa temperatura entre o quente e o frio deixando rastros de calor
em seu corpo e sede de sua personalidade bipolar e inconstante.

You've been learning, baby, I been learning

(Você tem aprendido, baby, eu fui aprendendo)

E então todo aquele contato já não era o suficiente para ambos. Mais. Essa era
a palavra que vagava por eles, como se estampada em suas pálpebras e na
ponta de suas línguas. Mais e mais. Harry plantou as mãos nas costas da
garota, segurando-a firme para que pudesse deitá-la sobre a motocicleta, sua
cabeça repousando sobre a proeminência do farol, sua coluna se ajustando ao
desenho curvilíneo, seus olhos brilhando de ansiedade. E os de Harry
grudados nos dela, como se nada pudesse ser mais interessante do que aquilo.
Mas ele logo se deu conta de que podia. Seus dedos desenharam a costura
lateral do vestido azul, quando um sorriso cheio de segundas intenções
iluminou seu rosto. Ele abaixou-se, ficando na altura do rosto de Karina,
sugando seus lábios por um segundo antes de sussurrar:
- Eu espero que você não goste muito desse vestido.
- Por quê? – sua voz saiu mais divertida do que ela esperava. Oh, inferno, ela
realmente estava gostando de tudo aquilo, observando seus próximos
movimentos, deixando que ele a dominasse e a fizesse uma parte de seu
próprio corpo.
Harry riu baixinho antes de posicionar as mãos exatamente ao meio de seu
decote, deslizando alguns dedos para dentro dele, deixando a pele da garota
em chamas. E então, calmo e sereno como a noite, Harry começou a rasgar o
vestido, com uma precisão que assustaria uma desavisada. Ele assistia
maravilhado ao tecido cedendo, a pele alva aparecendo centímetro por
centímetro, até que fosse partido completamente. Karina aproveitou para se
desfazer dos sapatos de salto, deixando-os cair ao lado da motocicleta. Harry
não pode deixar de sorrir ao jogar o resto de pano agora inútil sobre uma das
bombas de gasolina e notar os seios fartos e redondos de Karina, com bicos
rosados que imploravam para serem tocados. Descendo os olhos mais alguns
centímetros era possível visualizar o único pedaço de tecido que ainda cobria
o corpo da garota, uma calcinha de renda preta e pequenos laços nas laterais.
- O vestido não era meu – ela sussurrou, visivelmente corada por estar
recebendo tanta atenção enquanto usando quase nenhuma peça de roupa. Mas
os olhos de Harry pareciam aquecer cada pedaço descoberto de seu corpo.
- Ops – Ele não parecia arrependido. Sua boca se encaixou na curva do
pescoço da garota, e ele sussurrou contra a sua pele – Tenho vontade de fazer
isso desde aquele primeiro dia no seu quarto, aquele seu maldito sutiã de
renda. Parece que valeu a pena esperar.

All that good times, baby, baby, I've been yearning,

Way, way down inside honey, you need it,

I'm gonna give you my love

(Todos aqueles bons tempos, baby, baby, eu tenho tido saudades)

(Bem, bem lá no fundo querida, você precisa disso)

(Eu vou te dar o meu amor)

Ele cobriu os lábios dela com os seus uma última vez, num beijo calmo,
quente e sem pretensão de terminar, enquanto suas mãos escorregavam em
direção aos seus mamilos, friccionando-os, apertando-os, estimulando-os.
Mesmo sob o tecido grosso da calça jeans dele, Karina conseguia sentir um
volume crescente sendo pressionado contra seu quadril, e aquela mistura de
sensações a fazia arfar entre os beijos, os olhos apertadamente fechados,
somente sentido cada novo prazer que Harry parecia ensinar a seu corpo que
agora já deveria ter atingido uma temperatura febril. Suas mãos passeavam
por cada músculo definido nas costas do garoto, e cada pedacinho de si
parecia pedir que seus corpos se fundissem num só. A boca de Harry agora
trilhava beijos por seu pescoço, quase como se tentasse desviar a atenção das
intenções de uma de suas mãos atrevidas descendo pela lateral do corpo da
garota até chegar a um dos laços negros de cetim que prendiam sua calcinha.
Ele o desfez rapidamente, pressionando os dedos naquela região, desenhando
o caminho com o dedo indicador até o outro laço, livrando-se dele tão
magistralmente quanto do primeiro. Não foi difícil puxar o fino tecido,
depositá-lo junto aos restos do vestido e então provocá-la com seus
olhos verdes enlouquecedores. Era a primeira vez que se encontrava nua em
frente a um homem, e Karina tinha noção de cada parte de seu corpo vibrando,
e cada parte do dele em contato com o dela. Fechando os olhos novamente, ela
esperou, e riu baixinho, quase como de nervoso, ao ouvir as palavras dele.
- Ah, Ká...Ah, meu bem...
Seus lábios foram pressionados contra um de seus seios, para depois envolvê-
lo com a boca, deslizando a língua com avidez por todo a extensão de pele
macia e eriçada, mordiscando o bico já endurecido, repetindo os movimentos
de novo, de novo e de novo. A palma de sua mão direita passeava pela
intimidade extremamente umedecida da garota, enviado diferentes tipos de
arrepios para cada músculo paralisado de surpresa daquele corpo tão
feminino, tão delicado. Harry concentrava-se em estimular, massagear seu
clitóris com uma calma que parecia quase dolorosa se comparada a rapidez
com que agora ele sugava seu outro seio. Karina havia perdido cada pingo de
sanidade que lhe restava a cada mexer mínimo de dedos de Harry em si, mas
não se importava exatamente com isso. A única coisa que importava no
momento era acabar com aquela agonia, tê-lo dentro de si, aplacar a
necessidade que ela tinha de Harry. No mesmo instante talvez, Harry
compreendera que já era insuportável permanecer naquele estado.

You've been cooling, baby, I've been drooling

All the good times, baby, I've been misusing

(Você tem se acalmado, baby, eu tenho babado)

(Todos os bons tempos, baby, eu tenho abusado)

Harry levantou-se rapidamente, deixando-a sozinha para tentar absorver a


maior quantidade de ar que pudesse. Mas ela estava mais preocupada em
assistí-lo despir os jeans, depois de retirar uma embalagem de preservativo do
bolso de trás. Maldito. Karina não saberia dizer se tudo aquilo fora
premeditado ou se simplesmente Harry era um homem prevenido, mas o fato
era que logo ele já havia chutado os tênis de lona negra para algum lugar no
concreto, juntamente com as meias brancas, e voltado a sua posição inicial em
cima da garota. Agora, sendo separado apenas pelo tecido fino da boxer preta
que ele usava, o volume que pressionava a intimidade agora descoberta da
garota a fazia morder o lábio inferior para suprimir um gemido baixo que
insistia em escapar por sua garganta. O encaixe deles naquele momento era
tão perfeito, e o modo como o peitoral largo e definido dele pressionava os
seios tão delicados era como uma explosão no cérebro. Ainda havia um resto
de voz fraca tentando lembrá-la de que aquilo era terminantemente errado, de
que ela poderia muito bem se arrepender depois. Mas também havia aquela
voz, alta, clara, impossível de ignorar, que gritava como aquilo era
excepcional. Maravilhoso. A lembrava de como ela não se importaria de
morrer nos braços dele, só para nunca deixar de sentir aquele tipo de coisa.
Cometeram tantos pecados juntos, e aquele era tão maior, tão mais
profundamente perigoso e delicioso que simplesmente apagava todo o resto. O
resto não importava. Só importava a voz dele, sua respiração contra sua boca
entreaberta, os olhos verdes profundos nos quais ela sempre mergulhava sem
volta aparente.
- E ai – Harry sussurrava, seus corpos se movendo um contra o outro
lentamente, inconscientemente – você está pronta pra isso?
- Hm – Karina resmungou. Não era uma pergunta que precisasse ser feita. Não
era a questão de estar pronta ou não. Era a questão de precisar daquilo. Dele.
Por todo lugar.
- Vou interpretar isso como um sim – ele riu daquele jeito tão dele, roubando
um selinho rápido antes posicionar as mãos da garota na barra de sua boxer –
Só relaxe, sim? Relaxe e deixe tudo por minha conta.

Way, way down inside I'm gonna give you my love

I'm gonna give you every inch of my love, gonna give you my love

(Bem, bem lá no fundo eu vou te dar o meu amor)

(Eu vou te dar cada centímetro do meu amor, vou te dar o meu amor)

Harry não precisava comandar seus movimentos, ou dizer a ela exatamente o


que fazer. Suas próximas ações foram automáticas, quase necessitadas. Karina
descia calmamente o tecido negro, suas unhas arranhando a pele à medida que
esta ia ficando exposta. Ela bufou alto quando o pano recusou-se a descer
mais alguns centímetros, ficando preso entre os joelhos do garoto. Mas ele já
parecia preparado para aquilo também, levantando-se um pouco rapidamente e
retirando a última peça de roupas restante naquela cena. Karina dedilhou seu
membro ereto, quase que inocentemente, arrancando dele um suspiro pesado e
um sorriso malicioso.Harry rasgou a embalagem do preservativo com a boca,
não se demorando em colocá-lo em seu devido lugar. Arrumando-se sobre o
corpo de Karina, ela conseguia senti-lo se acomodando entre as suas pernas,
roçando lentamente a sua entrada, enquanto suas mãos acariciavam sua
cintura. A garota não hesitaria em dizer que poderia desmaiar a qualquer
minuto. Mas, pela primeira vez, Harry sorriu-lhe com um mínimo de ternura,
antes de piscar um olho e começar, lentamente, a penetrá-la, os olhos
grudados em seu rosto.
- Shh – o garoto sussurrou-lhe, os lábios distribuindo beijos por toda a
extensão de seu colo ao ver Karina franzir o rosto e apertar os lábios. A garota
sentia um certo desconforto, uma sensação de aperto, um estranhamento. O
membro de Harry lhe preenchia totalmente, e ela precisou de alguns minutos
para se acostumar a isso, até que a combinação dos beijos molhados e das
palavras do garoto em seu ouvido lhe relaxaram plenamente – Se acalme. Eu
nunca a machuquei, não é? Definitivamente não é agora que eu pretendo
começar.

Way down inside, woman, you need love.

Shake for me, girl, I wanna be your backdoor man


Keep it cooling baby

(Bem lá no fundo, mulher, você precisa de amor)

(Balance pra mim garota, eu quero ser seu amante)

(Fique calma, baby)

E então as dores, o desconforto, tornaram-se secundários no momento em


que Harry começou a mover-se, primeiro lento, calmo, mas a cada segundo
aumentando a força, o vigor, o desejo. Ele se apoiava nas bombas de gasolina,
o esforço ressaltando cada músculo bem definido de seu corpo, toda sua
beleza masculina tão aparente naquele momento, mas tão escondida no dia-a-
dia. Karina mal acreditava que um dia chegou a pensar que o garoto não fosse
atraente, porque aquele corpo ali, a sua frente, provava o contrário. Ela quase
se afogava em excitação só de olhá-lo, um filete de suor escorrendo pela
lateral de sua testa. Mas as investidas, o modo como Harry saia de seu corpo e
logo voltava num deslize ágil deixavam suas pernas moles, libertavam
gemidos altos e palavras desconexas do fundo de sua garganta. Ela precisava
se apoiar em algo, mesmo sabendo que Harry não iria deixá-la cair, ela
precisava se manter acordada para não perder um momento sequer daquilo
tudo. Que apoio melhor do que o pescoço perfumado do filho do pastor, seu
corpo quente, suas mãos fortes?
Karina jogou seus braços ao redor dos ombros de Harry, as unhas fincadas na
carne rígida, a satisfação de ouvir um pequeno gemido vindo dos lábios que
ela tanto gostava de beijar. Foi a vez dela de beijar languidamente seu
pescoço, mordiscá-lo, deixar sua marca ali. Karina já não conseguia lidar com
a intensidade dos movimentos de Harry sem deixar que seu quadril se
movesse minimamente, ajudasse-o, puxasse-o de volta. A contração dos
músculos internos de Karina sobre o membro de Harry o enlouqueciam, e ele
já não via saída se não deixar os instintos mais profundos se libertarem, seus
prazeres os dominarem totalmente, os dois tocarem o paraíso. Ele sussurrava
ao seu ouvido, incitando-a a chegar ao seu ápice, provocando-a, querendo
aquilo mais do que nunca.

Keep it cooling baby

(Fique calma, baby)

E então ela já não agüentou, a mistura da voz de rock pornô de Harry em seu
ouvido lhe pedindo tão suplicadamente para se deixar levar pelo prazer e os
movimentos dos corpos em atrito a fizeram soltar um gemido mais alto que
todos os outros, a pronúncia exata do nome do garoto. E ondas irrefreáveis de
prazer se espalharam por seu corpo, trazidas por explosões de energia em cada
músculo, anestesiando-a, fazendo-a imaginar algo tão abstrato como nuvens
douradas ou um paraíso que só existia em sua cabeça. Em toda a sua vida ela
nunca havia se sentido assim, tão próxima ou ligada a alguém, tão feliz ou
relaxada. Era a melhor sensação de todo o Universo, e ela não conseguia parar
de se deleitar com ela. Harry a seguiu pouco depois, desabando
cuidadosamente sobre ela, arfando em seu ouvido. Ainda que de seu modo
torto e recheado de mentiras, ele sentia-se bem. Demais. Deveria ser proibido
sentir-se daquele jeito junto aquela garota, como se ela fosse única e nenhuma
outra transa com nenhuma outra garota fosse ser tão boa como aquela. Os dois
estavam afundados até o último fio de cabelo um no outro, as respirações
descompassadas se misturando, os olhos numa conexão inquebrável, os
corpos suados já acostumados com a presença alheia. Cansada como nunca
antes, agora ela lutava para manter os olhos abertos, para manter aquele
momento dos dois, aquele momento verdadeiro e inédito. Mas, ele, talvez tão
exausto quanto ela, reparou, separando-se da garota, deixando seu corpo
quente, causando uma sensação de vazio a ambos. Karina não podia dormir.
Ela precisava se manter inteira. Deixou seus olhos vagarem até ele, livrando-
se do preservativo, vestindo a boxer e os jeans surrados novamente. Isso a
preocupou por um instante, quando lembrou que o vestido que Carine havia
lhe emprestado havia sido completamente destruído pela selvageria de Harry.
Mas ele havia pensado nisso também, voltando para perto dela, vestindo-a
com sua calcinha de renda e a jaqueta de couro, mesmo que ela não houvesse
pedido ou emitido alguma palavra. O cansaço era quase impossível de se
agüentar agora, mais ainda quando ele pegou-a nos braços num impulso, o
pescoço dolorido pelo atrito com o metal da motocicleta. Karina não sabia
para onde estavam indo, mas ao menos no final daquela noite, ela confiava
em Harry. Rindo baixinho uma última vez, ela sussurrou contra a pele de seu
pescoço, antes de dormir profundamente:
- Feliz aniversário, Hazza.
Harry curvou os lábios num sorriso discreto. Com Karina ali, indefesa em seus
braços, toda a noite valera à pena. Seu grande trunfo afinal, fora a capacidade
de esconder mentiras, mascará-las como verdades simples e bobas. Se para a
garota tudo aquilo havia levado a um empate no jogo, para ele, era um passo a
mais para a vitória.

*Master of Puppets é o título de um clássico do Metallica : Mestre de


Marionetes.
* Under Pressure é o título da parceria entre David Bowie e o Queen: Sob
Pressão.
* 4 de Julho: Independência dos Estados Unidos, famoso por seus fogos de
artifício.
*Caixa de Pandora: A Caixa de Pandora é um artefato da mitologia grega,
tirada do mito da criação de Pandora, que foi a primeira mulher criada por
Zeus. A "caixa" era na verdade um grande jarro dado a Pandora, que continha
todos os males do mundo. Quando Pandora abriu o frasco, todo o seu
conteúdo, exceto um item, foi liberado para o mundo. O item remanescente
foi a esperança.
* A música do capítulo é Whole Lotta Love, uma música sensacional do Led
Zeppelin

Capítulo 13 – Dark Paradise

Eram feixes de luz. Raios de sol perdidos que conseguiam atravessar as


grossas camadas de poeira e sujeira que recobriam as grandes janelas de vidro.
Eram poucos, mas iluminavam o lugar, pintavam as paredes brancas com um
amarelo luminoso. Mas ela enxergava azul. Azul claro. Azul hospital. A
imensidão azul era macia. Confortável. Poderia ser uma nuvem. Mas nuvens
não costumavam ser verdes, costumavam? E nuvens não possuíam cheiro de
café. Ao menos aquilo nunca fora dito nas aulas de ciência. Nuvens de café.
Seus olhos não queriam se abrir decentemente para confirmar ou não as
teorias mal formuladas. Quase como uma recém-despertada de um coma, ela
não queria enfrentar a realidade. Principalmente por não saber qual era
exatamente aquela realidade que estava prestes a encontrar.
Mas a curiosidade sempre fora o ponto fraco de Karina. Grogue de sono, ela
tentava abrir os grandes olhos azuis, uma voz interior lhe sussurrando que
aquela não era a sua casa. Onde diabos a garota estava? Mas, na mesma
velocidade em que seus cílios se separaram de vez, e o ambiente foi
focalizado, as memórias lhe inundaram o pensamento. A única coisa que ela
conseguiu fazer foi arfar, alta e longamente.
A cama em que estava deitada era de casal, extremamente simples, a cabeceira
de madeira branca servindo de apoio para sua cabeça confusa. A imensidão
azul que antes enxergava com os olhos semi-abertos era na verdade um
conjunto de travesseiros fofos e lençóis comuns. Na parede sul, balcões e
aéreos de madeira escura formando uma pequena cozinha, um fogão e a
geladeira branca em linha reta com os outros móveis. E ao leste, ao lado de
uma porta pintada de marrom, um espaçoso sofá estampado, lençol e
travesseiro brancos e amassados sobre ele. A garota não sabia exatamente
onde estava, mas alguém podia claramente morar ali. Ela notou que
continuava usando a jaqueta de couro com que Harry havia lhe coberto na
noite anterior. Noite que renderia inúmeras outras noites em claro em que
cada acontecimento seria analisado, e possivelmente, mascarado de
arrependimento.
Levantou-se vagarosamente, tropeçando em seus próprios pés. Não confiava
totalmente em seus olhos, muito menos em seus movimentos, apesar da
mínima quantidade de álcool ingerida na véspera. Era uma coisa um tanto
psicológica, não confiar em si mesma. Tivera provas suficientes de que seu
corpo não lhe obedecia do modo como ela gostaria. Ele se jogava, se rendia,
achava maneiras de bloquear os pensamentos sábios, abafa-los entre
sensações. Muito divertido. Teria que ficar de olho em si mesma. Apoiou-se
em um dos balcões de madeira, procurando por um pouco de equilíbrio. E
então aquele formigamento estranho atrás das orelhas, aquele arrepio que
atravessava sua nuca e a conhecida impressão de estar sendo observada
tomaram conta de si. Karina não precisava levantar os grandes olhos azuis
para descobrir quem era o seu admirador, mas o fez mesmo assim, só para
honrar a fama de grande tola que havia adquirido com o passar do tempo.
Harry estava encostado no batente da porta que parecia levar até um pequeno
banheiro, calças de linho que combinavam perfeitamente com sapatos negros
extremamente bem polidos e uma camisa azul clara meio aberta mostravam
que ele tinha voltado aos seus trajes de filho pródigo. Mas o sorriso sedutor no
canto dos lábios não conseguia esconder o tipo de alma que animava aquele
corpo que a envolvera somente algumas horas atrás. A situação só piorara
quando Karina notou os cabelos molhados, pingos d’água escorregando
lentamente por entre os fios muito castanhos, provocando um tipo diferente de
coceira em suas mãos, uma vontade de tocá-los, de sentir sua textura mais
uma vez. Mas ela se conteve. Não sabia como agir. Muito menos o que
deveria fazer. Já não lembrava em qual casa do jogo estava parada, e nem qual
fora o último número que os dados indicaram.
- Bom dia – ele soprou, olhando a garota da cabeça os pés, como se alguma
memória conveniente o agradasse profundamente. E ela poderia apostar todas
as suas fichas de que sabia exatamente qual lembrança ele havia escolhido.
Corar já não era uma opção, era uma certeza irrevogável – Dormiu bem?
- Acho que sim. Não sei exatamente, considerando o fato de que eu
teoricamente desmaiei. – ela tentava ser razoavelmente agradável. Mesmo que
se afogasse num constrangimento profundo – Onde estamos?
- No mesmo lugar onde estávamos, aonde mais? – Harry riu, indo até o balcão
mais longe da garota, servindo-se de uma xícara de café diretamente de uma
cafeteira repleta de botões.
- Você quer dizer o posto de gasolina?
-Acho que isso aqui não é mais um posto de gasolina há mais ou menos uns
dez anos, mas, se você gosta de pensar assim, quem sou eu para contrariar?
- Isso aqui...é seu? – ela não conseguiu mascarar um certo choque no rosto
quando ele confirmou com a cabeça, tomando um longo gole de sua xícara –
Como?
- Sistema de trocas. Um amigo precisava de dinheiro, eu emprestei, ele não
tinha como me devolver, então passou o posto de gasolina abandonado da
família pro meu nome – Harry deu de ombros, como se não fosse grande coisa
– É bem útil depois de uma noite de trabalho duro – ele riu, achando graça da
própria piada mal feita – Sabe, não acredito que dona Angel acharia divertido
se eu chegasse em casa suado, cheirando a cigarro e álcool, e usando jaquetas
de couro. Quer sobreviver nesse mundo? Desenvolva seus próprios truques. –
ele jogou os grandes olhos verdes em direção a garota, o divertimento
estampado no rosto – Mas eu não preciso dizer isso pra você, não é, senhorita
‘borrifo cerveja nas minhas roupas antes de chegar em casa’? Esma deve
enlouquecer com isso.
- Como você sabe ?
- Já vi você fazendo do lado de fora da sua casa, à noite. Aliás – Harry secava
o cabelo com uma toalha vermelha, despreocupadamente, como se fosse
normal observa-la em momentos como aquele - O seu talento para voltar pro
seu quarto pela árvore ao lado da janela é impressionante.
- Cada um se vira como pode. Cada um esconde o que precisa esconder, não
é?- Aquela revelação tão simples fizera a mente de Karina dar um giro de 360
graus. Quantas vezes ele a teria observado sem que a mesma reparasse?
Quantas noites ele estivera por perto sem que ela desconfiasse?
Provavelmente como parte da ‘pesquisa’ que fizera sobre a vida da garota,
mas ela não tinha certeza se ficava mais tranquila com aquilo. Resolveu
mudar de assunto – É engraçado, não é? Você tentando esconder que não
presta, eu tentando esconder que sou uma pessoa decente afinal. E às vezes
nós fazemos isso tão mal, mas ninguém repara...
- Porque ninguém quer reparar, Ká. As pessoas não gostam de sair de sua zona
de conforto. O novo assusta, desencoraja, machuca – Harry remexia em um
armário alto que ela não havia notado antes, concentrado em procurar alguma
coisa em meio ao que pareciam mais lençóis e toalhas – É mais fácil para eles
acreditarem que eu sou um honorável religioso e que você é uma prostituta
drogada. – a última frase doera um pouco em seu estomago. Prostituta
drogada. Não era muito elogioso. Era assim que ele a via? Como uma
prostituta? Harry não falara nada sobre a noite anterior. Embora ela não
esperasse abraços e beijos de bom dia, aquela frieza era um tanto estranha –
Mas no final, todos saem ganhando, não é mesmo? Aqui – ele lhe entregou
uma toalha branca e macia, juntamente com uma camisa de botões de um azul
muito escuro – Tem água quente no chuveiro hoje, sinta-se sortuda. E você
pode vestir isso – apontando para a camisa – enquanto o socorro não chega.
- Hm – Karina murmurou, perguntando-se o que ele queria dizer com
‘socorro’. Direcionando-se lentamente ao banheiro, ela deixou seus olhos
pousarem novamente sobre o sofá desarrumado no caminho, a boca abrindo-
se ligeiramente para deixar escapar uma pergunta que deveria ter sido
guardada para si mesma – Por que você dormiu no sofá?
- Você não esperava que dormíssemos abraçadinhos, sua cabeça no meu
ombro, de mãozinhas entrelaçadas, esperava? – Harry riu alto, como se aquilo
fosse o maior absurdo que já houvesse saído de sua boca, ignorando-a
novamente, toda a sua atenção voltada para um pequeno celular prateado na
palma de sua mão direita.
- Não. Claro que não – Karina engoliu em seco, fechando a porta de madeira
atrás de si. Era difícil de admitir que, por algum motivo obscuro, aquilo havia
doido. Como um soco, acertando diretamente seu peito, fazendo sua garganta
ficar apertada. Mas não haviam motivos para isso, não é? Harry nunca havia
lhe prometido nada. Aliás, ela nem ao menos gostava do garoto! Com exceção
do lado sexual. Ela nunca deixaria de se sentir completa e furiosamente
atraída pelo filho do pastor.
Era um banheiro pequeno, azulejos de um tom de cinza esbranquiçado
cobrindo-o do chão ao teto. Um vaso sanitário de mármore branco combinava
perfeitamente com uma pia do mesmo material, sobre a qual pairava um
espelho ovalado, revelando o quão acabada a garota estava. Cabelo
extremamente bagunçado, olhos borrados por rímel preto, expressão de
decepção iminente. Despiu-se rapidamente, adentrando o mínimo box de
vidro, deixando que a água quente escorresse pelos seus cabelos, relaxasse
seus ombros, clareasse sua mente. Era melhor assim, não? Eles haviam
transado, Harry conseguira o que queria, a deixaria em paz dali por diante.
Viveriam suas vidas separadas. Exatamente o que ela desejava. Karina riu sem
humor algum, encostando a testa no vidro gelado. Mas que grande mentira ela
estava tentando impor a si mesma.
Mas enfrentaria aquilo de cabeça erguida, o que aprendera a fazer durante
toda a sua vida. Terminou seu banho rapidamente, o nariz erguido no ar, sua
melhor expressão de força impressa no rosto tão jovem. Deixou o cabelo
molhado, vestindo a camisa que pertencia ao filho do pastor. O decote
formado pelos inúmeros botões que ela não se preocupara em fechar era tão
acentuado quanto o do vestido destruído, mas aquela peça não lhe marcava as
curvas como a anterior, muito pelo contrário. Somente deixava uma parte de
suas coxas descobertas, mas, avaliando-se no espelho uma última vez, Karina
gostou do que viu. Havia um apelo diferente em vestir uma roupa que
pertencia a Harry, uma sensualidade escondida na dobra das mangas, traços
do perfume amadeirado que ele usava memorizados no tecido. Calçando seus
bons e velhos sapatos de salto negros, um último suspiro prolongado antes de
reabrir a porta.
Harry servia-se de outra xícara de café, ainda entretido pelo mesmo celular
que a garota vira antes em suas mãos. Ela não esperava que ele a olhasse
instantaneamente, e ele não o fez, confirmando todas as suas
expectativas. Karina forçou um riso baixo, encostando-se no batente da porta,
da mesma maneira que ele fizera alguns minutos antes.
- Então, é agora que você me manda embora da sua vida? – Sua voz saíra
baixa, doce, sensual, de uma maneira que ela realmente não esperava. Com os
braços cruzados sobre os seios, a garota esperava o filho do pastor esboçar
uma reação, o coração sem sossego em seu peito.
Mas a única coisa que Harry fez foi sorrir. Abrir aquele sorriso de canto de
lábios extremamente atraente, antes de tomar mais um gole de café, largando a
xícara e o celular em cima da pia sem muito cuidado. Os olhosverdes a
encaravam de uma maneira que tirava qualquer vestígio de oxigênio de seu
corpo, a cada pequeno passo que ele dava em sua direção. Foram milésimos
de segundo que separaram as duas ações seguintes, quando ele chegou perto
demais da garota, escorregando suas mãos por suas costas, até que chegassem
as suas nádegas, onde ele as posicionou estrategicamente para puxar o corpo
de Karina para cima. A dor localizada no alto de sua cabeça quando ele a
prensou sem cerimônias contra a parede logo foi esquecida. Suas pernas se
posicionaram, quase que automaticamente, ao redor da cintura do filho do
pastor, como se pertencessem aquele lugar. Testas coladas e olhos que não
conseguiam desgrudar-se, uma mistura dos verdes e dos azuis, e a boca tão
macia de Harry deslizando sobre a dela, sem pressa, mas despertando nela
aquele sentimento tão conhecido e ao mesmo tempo tão estranho. Aquela
vontade de mandar o mundo pro inferno. Como se o mero contato físico entre
os dois fosse seu remédio para aplacar todas as dores que lhe afligiam. Como
morfina. E a dose diária necessária pra sua sobrevivência se tornava cada vez
maior.
Quando Harry finalmente a beijou, o resto ficou em segundo plano. Todos os
medos, todas as preocupações. O modo como as bocas se moviam uma contra
a outra nunca fora tão urgente. Tão essencial. Igual, mas de certo modo
diferente. O gosto de café da boca dele destruía cada traço de duvida,
extinguia dela o que Karina chamava de sanidade. A mão dele voando pelo
seu corpo despertava lembranças que a deixariam vermelha se ela não
estivesse tão concentrada em Harry. Ele sugava seu lábio inferior lentamente,
e aquela resposta era suficiente. Não. Ele não a tiraria de sua vida. Ao menos
não naquele momento.
A garota não queria deixa-lo ir quando ele fez menção de afastar-se. Jogou os
braços em volta de seu pescoço, puxou-o mais perto. E pela primeira
vez Harry deixou que ela o comandasse, que recomeçasse mais um beijo,
seguido de inúmeros outros, até que não passassem de toques de lábios
repetidos, a tensão sexual presente somente nos olhares profundos e cheios de
significados que os dois trocavam. Mas ambos sabiam que por mais que
quisessem externar todos os desejos ocultos de suas mentes pecadoras e jogar
cada peça de roupa no outro lado do cômodo, não podiam. A realidade os
chamava baixinho a cada tique-taque do relógio. Depois do último beijo
trocado, o mais longo deles, Harry sorriu. Um sorriso diferente dos outros. O
tipo de sorriso que faria Karina sorrir junto.
- As vezes você é tão tola, meu bem – ele soprou em seu ouvido, antes de
depositar os lábios suavemente sobre seu pescoço – Mas eu gosto. É sexy.
- Não me provoque – Karina devolveu, deslizando as unhas compridas sobre a
camisa clara que ele vestia, quase como uma punição – Você não sabe o quão
irritada eu estou depois que descobri que não precisava ter detonado meu
pescoço naquela maldita moto lá fora, quando aqui dentro havia uma cama
extremamente confortável.
- Isso. Minta pra mim. Diga que não gostou. Diga que não vai ficar na sua
memória pela eternidade – Ele a soltou de repente, voltando para sua xícara
abandonada. Karina bufou ao notar que o maldito sorriso de escárnio habitava
seu rosto novamente. Outra grande piada. Ela era uma grande piada para ele.
- Você é impossível – ela resmungou – Me faz ir de 0 a 100 num minuto, e
depois voltar ao 0 drasticamente. Odeio você.
- Igualmente, meu bem, igualmente – Mas ele já não estava prestando atenção
em Karina. Um ronco de motor do lado de fora do posto de gasolina o havia
atraído. Ótimo. Mais bandidos. Todos os que ela havia conhecido na noite
anterior não foram suficientes? Seguindo Harry até as grandes portas de vidro,
ela espiou por cima de seus ombros largos. Estacionada ao lado de uma das
grandes colunas brancas, havia uma moto muito menos impressionante do que
a Harley Davidson que Harry possuía. Era simples, de um azul elétrico
chamativo demais, com labaredas de fogo gravadas nas laterais. Montados
nela, um casal excessivamente excêntrico para ser verdade. A garota de
longos cabelos muito loiros e cacheados usava sapatos de saltos roxos que
faziam o par perfeito com o vestido lilás estampado com gatos brancos, o qual
balançava em suas tentativas de levantar-se. Como haviam convencido-a a
colocar o capacete negro, Karina não fazia ideia. O garoto que estava na
direção era alto e magrelo demais, olhos assustadoramente roxos e um sorriso
quase desconfigurado de tão esticado, se vestia como o Harry da noite, jaqueta
de couro sobre camisa xadrez e calça jeans gasta demais. E para seu desgosto,
a garota conhecia as duas figuras que agora brigavam ao tirar os capacetes.
Angelina e John. A irmã e um dos amigos de boate de Harry.
- Hazza! – A voz estridente de Angelina ecoava pelo posto abandonado, uma
agitação nervosa em cada passo que ela dava na direção do irmão – Esse
crápula nojento dos infernos tentou me assediar de casa até aqui. Por que você
não pediu para o Flanagan ir me buscar? Ele ao menos é um cavalheiro.
- Shh, não tenho tempo pra isso agora – A seriedade havia voltado ao rosto do
garoto, as mãos no bolsos da calça enquanto ia na direção de John –
Leve Karina lá pra dentro. Você sabe o que fazer. Tenho assuntos mais
importantes que suas histerias para resolver.
- Grosso. Por que eu te faço favores mesmo? – Angelina já empurrava Karina
de volta ao apartamento improvisado, resmungando baixarias pelo caminho.
- Porque eu te pago muito bem pra isso – Foi a última coisa que a garota ouviu
antes que a porta fosse fechada com força. Angelina girou os calcanhares
quase em câmera lenta, jogando a intensidade dos grandes olhos cinzas em
cima de Karina. Eram os mesmos olhos da matriarca dos Styles,
intimidadores, como se conseguissem ler cada linha fora de ordem dos
pensamentos da garota. Naquela situação, eles a analisavam de cima abaixo,
como se medindo cada centímetro bagunçado que era Karina naquele
momento.
- Eu realmente não sei se quero saber o que vocês dois aprontaram ontem –
ela empinou o nariz, dirigindo-se a uma grande bolsa cor de rosa que a garota
não havia notado inicialmente – Mas eu vi os restos do vestido lá fora. Que
pena. Parecia bonito.
- Ahn – ela realmente não sabia a resposta apropriada praquilo. – Por que você
está aqui, mesmo?
- Porque você não vai querer chegar em casa desse jeito – Angelina
organizava ordenadamente objetos sobre os lençóis bagunçados da cama de
casal do lugar – E você por acaso reparou no olho do meu querido irmão? –
Ela parou subitamente, encarando Karina por um segundo – Espera, não foi
você que fez aquilo, foi?
- Não! Foi Patrick...
- Ah. O bonitinho. – Angelina deu de ombros – Ao menos ele não é um
nojento como John. Argh. Bom, venha cá. E não reclame, não é nada fácil
achar um modelo decente às pressas. Num domingo de manhã. No fim do
mundo.
Ela segurava um vestido cor de creme, com alças de um verde envelhecido e
pequenas flores roxas por toda a sua extensão. Aquele, definitivamente, não
era o tipo de roupa que a falsa rebelde usaria de jeito algum. Ela só precisava
achar um jeito de dizer aquilo para a senhorita olhos de gato.
- Hm...
- Karina, meu bem – Angelina usava a mesma maldita expressão eternizada
pelos lábios pecadores de seu irmão. Nada bom. – Hazza me disse que você
seria...resistente. Mas não é uma opção. E hoje não é um dia qualquer. Vista a
droga do vestido, sim? Você vai entender tudo mais tarde. – A peça de roupa
fora jogada de qualquer jeito na direção da garota, enquanto a patricinha da
família Styles procurava alguma coisa entre as milhares de inutilidades que
havia posto em cima da cama. Bufando, vestiu-o, voltando para o banheiro
para poder admirar-se no espelho oval. A garota precisava admitir que o
vestido lhe caia bem, marcando sua cintura e destacando seu colo. Mas
continuava a ser um vestido de menininha. Karina chegou à conclusão de que
estava no sangue dos irmãos Styles serem desprezíveis e controladores.
- Viu? Ficou lindo em você. Eu sou genial – ela batia palminhas nervosas,
como um poodle adestrado ao realizar um truque corretamente - Agora vamos.
Antes que aquele babaca lá fora chegue e atrapalhe minha obra de arte –
Angelina puxou-a pela mão, levando a garota até o sofá estampado
onde Harry havia dormido. Sentando-se desconfortavelmente, deixou que a
mais nova arrumasse seu cabelo e maquiasse seu rosto limpo. Ela se sentia
como uma Barbie. Muda, suscetível, controlável e com uma expressão
plastificada. Karina nunca gostara das bonecas. Elas sempre foram a
idealização de tudo que a garota abominava. Bonecas infláveis provavelmente
recebiam mais simpatia dela do que as populares melhores amigas de
menininhas podres de ricas.
Alguns minutos depois Harry adentrou o imóvel, as sobrancelhas unidas por
uma ruga de preocupação em sua testa. Caminhava de um lado para o outro,
resmungando coisas ininteligíveis, mandando mensagens em seu celular.
Angelina bufava, atribuindo ao irmão mais velho apelidos nada elogiáveis.
Contando até mil, Karina esforçava-se para não gritar. O filho do pastor devia
algumas explicações fundamentais para ela.
- Pronto, pronto! – A loira exclamava, observando a outra novamente,
ajudando-a a calçar seus sapatos negros– Você até parece uma garota normal
agora. Quando precisar, é só me ligar. Faço um preço especial pra heroína que
consegue dormir com meu irmão sem mata-lo sufocado – Virando-se
para Harry, ela sorriu – Sua vez, maninho.
Ele levantou uma sobrancelha para ela, o que era um sinal irrefutável de
perigo. O garoto não estava em seu melhor humor, e isso transparecia em seu
rosto. Deixando que a irmã lhe aplicasse corretivo nos machucados coloridos,
ele observava Karina pelo canto dos olhos, os lábios rígidos em uma linha
fina. A garota não sabia como agir. O silêncio no ar parecia errado e pesado,
como se alguém houvesse morrido naquela sala e um luto involuntário tivesse
sido instaurado ali. Mentes perturbadas viajavam por caminhos sinuosos,
bolando estratégias, planos triunfais e próximos passos. Próximas jogadas.
O olho antes machucado de Styles agora parecia perfeitamente normal.
Angelina tinha um dom com pincéis e bases, isso era impossível negar. Ela
encarava o irmão com seu melhor olhar triunfal, e o garoto só pode fazer rir e
abraçar a caçula. Aquilo era algo interessante. O afeto que Harry só
demonstrava pela irmã, o cuidado com que a segurava e o modo como sorria
pra ela. Era um lado do filho do pastor que Karina não conhecia, e duvidava
que um dia fosse. Para ela não havia carinho. Só provocações ao pé do
ouvido, implicância mascarada e postos de gasolina abandonados. Não que ela
se importasse. Ela não o fazia. Não. Com certeza não. Definitivamente não.
Não.
Passado o momento ‘Ursinhos Carinhosos’*, as atenções foram voltadas a
parte não integrante da família Styles naquela sala. Pares de olhos cinzas
e verdes a encaravam, a mediam, a analisavam. Uma sensação de ter que
provar algo para aqueles dois, provar que era boa o suficiente, que podia
agrada-los, tomava conta da pequena órfã. Ela tentava esconder isso no buraco
mais profundo de sua alma, fingindo que os ignorava, que não valiam nada
para ela. Harry foi o primeiro a quebrar o silêncio, proferindo palavras sobre a
garota, mas que não eram dirigidas para ela.
- Eu me curvo a você, Angelina. Realmente, um trabalho excelente. Era
exatamente o que eu precisava – os imensos olhos verdes não haviam
desgrudado um minuto sequer de Karina, e ela não sabia por que despertava
tanta atenção dele agora. Não tivera a oportunidade de olhar-se no espelho,
mas não sabia o que de tão importante poderia ter em sua aparência.
- Ela parece um anjo, não parece? – A mais nova soprava, sonhadora – Eu
disse que você podia confiar em mim, bebê. Eu sou sensacional. Ainda não
entendi exatamente o porquê de tudo isso, mas...
- Você não precisa. – ele cortou-a, um tom duro na voz. – Ao menos não
agora – Voltando-se para Karina, ele sorriu – É um dia muito importante, Ká.
Um daqueles que ficam marcados na história. Você só precisa se comportar. –
Ele aproximou-se, tomando o rosto dela entre as mãos – Promete que vai fazer
exatamente o que eu disser?
- Você sabe que não, não sabe? Ao menos não até eu souber o que está
acontecendo. – ela soprou, tentando não se deixar hipnotizar pelos
olhos verdes.
- Vou te fazer mudar de ideia. Você sabe que vou. – Sem tirar os olhos da
garota, dirigiu-se a irmã – John está te esperando lá fora. Você sabe o que
fazer agora, Angs.
A menina resmungou, batendo a porta de vidro com uma força que Karina não
imaginava que ela possuísse ao sair. Roubando um beijo breve da garota a sua
frente, Harry abriu seu conhecido sorriso, oferecendo o braço direito para ela
com um floreio.
- Hora de ir.
- Você não vai me dizer onde, certo?
- Qual a graça de um aniversário sem uma boa surpresa?
Abrindo a porta de vidro, Karina vislumbrou um carro de pintura prata
extremamente polido.

Capítulo 13, Parte 2 (capítulo bônus) – Hell or Heaven?

Algum horário entre 5h e 6h da manhã, interior do posto de gasolina


abandonado

A escuridão ainda reinava entre espaços vazios de um pequeno apartamento


improvisado no interior da antiga construção, quase aos pedaços. As lâmpadas
incandescentes que um dia iluminaram a parte exterior do estabelecimento
vazavam reflexos de luz pelas janelas imundas. O frio típico da noite agora
começava a aplacar-se com a proximidade do nascer do sol. As corujas já
haviam voado de volta para seus ninhos no alto de pinheiros, preparando-se
para o momento em que poderiam finalmente adormecer. Nenhum barulho era
notável ali, só o silêncio se manifestava entre as quatro paredes pintadas de
branco. A não ser pelo som baixo e quase doce de uma respiração feminina
adormecida.
Harry a observava, de longe, o velho sofá estampado que pertencera ao seu
avô servindo-lhe de repouso naquela noite. Os cubos de gelo do sempre
presente copo de whisky tilintavam cada vez que ele o levava a boca, o
líquido forte queimando sua garganta. Ele tentava esquecer de que era o corpo
de Karina que preenchia a cama que lhe pertencia, imaginando em seu lugar
uma vagabunda qualquer, mas a tarefa era quase impossível. Em parte porque
nenhuma mulher antes houvera habitado aqueles lençóis. Ela era a primeira a
entrar no que Harry gostava de chamar de seu purgatório reverso, o lugar onde
ele esperava por outra manhã infernal de sua vida tão falsa. Não sabia ao certo
porque resolvera trazê-la justo ali, o único lugar que ainda permanecia puro de
mentiras e armações. Talvez porque ela fosse igualmente pura. O outro
motivo que lhe atormentava veementemente era que, mesmo daquela
distância, ele conseguia sentir o cheiro do perfume que era tão característico
dela. Era um floral marcante, mas não enjoativo, que combinava
perfeitamente com a órfã. Delicado, mas forte. Styles, em suas associações
costumeiras, juntava aquele odor com a cor vermelha. Karina tinha cheiro de
vermelho. Vermelho tinha o tom do pecado. O tom da perdição.
E a tentação de estar lá, deitado junto a ela, abraçando seu corpo delicado
contra o dele, sentindo aquele perfume de perto novamente, era seu teste
supremo. Uma prova de resistência, um jogo mental onde o único adversário
de Harry era o próprio Harry. Ele não podia se deixar cair. Mas era difícil. Era
difícil não se pegar vagando em pensamentos, imaginando em colorido como
seria acordar com Karina em seus braços. Nesse momento, ele tomava outro
gole de whisky. Repreendia-se. Acendia outro cigarro. Lembrava porque
estava ali. Porque havia transado com a garota. E o motivo era maior. Maior
do que a simples atração física desesperada que ele se repreendia por sentir.
Esquecer-se significava perder o rumo.
Harry levantou-se. Deu voltas ao redor do sofá duas ou três vezes. Ensaiou-se.
Um passo para frente, dois para trás. E então chegou mais perto. Uma olhada
bastaria. Ao aproximar-se da cama, um pequeno detalhe o paralisou. Karina
sorria durante o sono. Enfurecendo-se, saiu porta afora, o resto de brisa
tocando-lhe o rosto tão jovem. O copo de whisky continuava em sua mão, e os
olhos perdidos no horizonte. Sem pestanejar, jogou o vidro delicado contra
uma das grandes colunas brancas. Era chegada a hora de diminuir o contato
físico e lidar com aquilo friamente. Caminhando em direção à rodovia, Harry
assistiu ao primeiros raios de sol anunciando que um novo dia havia chegado.

Algum horário entre 8:30h e 9:30h da manhã, exterior do posto de gasolina


abandonado

Fraco. Era assim que ele se sentia depois de ter cedido novamente aos desejos
carnais. Beijar Karina daquele modo, e deixar-se ser beijado por ela com
certeza não fazia parte de seus planos. Mudanças deveriam acontecer mais
uma vez. Algum modo de incluir aqueles deslizes sem que eles afetassem o
resultado final. Seria outra madrugada em claro planejando, ajustando,
reorganizando suas ideias anteriores. Mas ele trabalharia nisso. E passaria por
cima, como fizera de todas as outras vezes.
Angelina havia acabado de trancar-se com a garota no interior do posto de
gasolina, uma expressão mal humorada no rosto que ele havia aprendido a
ignorar com o passar dos anos. A sua frente agora só restava John, as sombras
de problemas estampadas embaixo dos olhos. Esse seria outro daqueles dias
em que Harry precisaria se transformar em 20 pessoas diferentes para não
enlouquecer de uma vez por todas. Aproximando-se do pupilo, deixou que ele
descarregasse as últimas bombas em cima dele.
- Patrick fugiu. Flanagan não faz ideia de onde ele pode ter se enfiado – O
garoto começou o relatório matinal, o lábio inferior tremendo como toda a vez
que o nervosismo tomava conta de si. Mas aquilo era pouco. Harry já esperava
que depois de tantas vezes, o dito amigo já teria aprendido a se esconder
melhor. Outra noite, em outra noite ele se vingaria – E, Greenfield ligou de
novo. Ele parecia um pouco ansioso. Dissemos que você estava fora lidando
com o caso, mas ele não acreditou. Quer que agilizemos o processo.
- Greenfield que se foda. Ele aceitou os termos do contrato – A voz de Harry
sairá uma oitava mais alto, a veia em seu pescoço saltando diante de seu
nervosismo – E esta tudo saindo conforme o plano. Hoje é o dia de um grande
passo. Você sabe disso.
- Eu sei... – John não encarava o chefe. Preferia olhar para o alto de um
pinheiro ou para qualquer uma das nuvens do céu, menos para os assustadores
olhos verdes de Harry – Não que isso seja da minha conta, Styles, mas não
seria melhor se a garota soubesse o que vai acontecer? Ela poderia ajudar.
- Não. Conheço Karina. A chave aqui é o elemento surpresa. Se dissermos
qualquer palavra que seja antes, ela vai ficar furiosa e enlouquecida. Eu sei o
que estou fazendo, Mackenzie.
- Claro que sabe. Eu só me pergunto...E se ela ficar enlouquecida depois e
resolver armar um escândalo? Não seria nada bom pra você.
- O choque vai ser suficiente pra acalma-la. Karina é influenciável e pensa
demais. E se deixa levar por sentimentos muito facilmente – Ele parou,
pensativo – Essa é a minha vontade. Karina é sentimento puro, mesmo que
não admita isso. Como eu já disse, eu a conheço.
- Eu bem que gostaria de ter o mesmo tipo de conhecimento que você tem
dela, Styles – John esboçou um sorriso malicioso, apagado de seu rosto
drasticamente a ver a expressão de Harry.
- Lave sua boca. Cuide a sua escolha de palavras, Mackenzie. Não quer acabar
como Patrick, quer? - John negou com a cabeça, colocando as mãos nos
bolsos e evitando encarar o filho do pastor novamente. Mas sua língua coçava,
e ele deixou a pergunta escapar, quase inocentemente:
- Você disse que Karina é influenciável e que se deixa levar facilmente. Mas
você não tem medo, Styles? Não teme se apegar demais a ela, se importar
demais, querê-la demais?
- Não seja ridículo – Harry quase cuspiu as palavras – São só negócios. Agora
vá buscar o carro. Ainda temos muito o que fazer.

*Dark Paradise é uma música da sensacional Lana Del Rey: Paraíso Negro
*Os Ursinhos Carinhosos faziam parte de uma série de 1985. No Brasil, foi
exibida até 2003. O desenho conta a hist,brória de uma família de ursos
carinhosos que ajudam as pessoas a trocarem bons sentimentos.
* Hell or Heaven? é uma música da banda Lynyrd Skynyrd: Inferno ou
Paraíso?

Capítulo 14 – Because It Has To Be So Lonely To Be The Only One


Who's Holy O ar-condicionado ligado no máximo não melhorava a situação.
Não tornava os bancos de couro da BMW prateada mais confortáveis ou a
pressão interior mais fácil de suportar. Os vidros gelados repletos de insulfilm
negro demais refletiam nada além do silêncio que se instaurara nos quinze
minutos de viagem. Nada parecido com os quinze minutos de vento nos
cabelos, adrenalina nas veias e quadris extremamente próximos. Nada de
calor. O interior do carro de luxo era frio como uma alma penada. Mas a
sensação não era causada pelo vento gelado saído das laterais de metal.
Karina deslizava os dedos pela janela, desenhando formas irregulares e
palavras sem sentido com a ponta das unhas pintadas de vermelho. Seus olhos
muito azuis vagavam por qualquer sombra pronunciada nas calçadas
demasiadamente limpas daquela pequena cidade. A distração entediante era
somente uma desculpa para se obrigar a não olhar para o homem ao seu lado,
cujo perfume amadeirado impregnava cada centímetro do automóvel.
Nenhuma palavra fora dita. Ela não perguntara, ele nunca diria. Um acordo
silencioso que nunca fora efetivado, mas que era respeitado por ambos.
Ela começava a reconhecer as pequenas casas da vizinhança, com suas cores
claras e jardins bem cuidados, flores cor-de-rosa e laranja nascendo aqui e ali.
Os olhos verdes de Harry não se afastavam nem por um segundo sequer da
estrada, as mãos fortes apertando delicadamente o volante em cada curva,
como se para dar estabilidade a si mesmo. Mas não por um nervosismo
qualquer. Ele parecia mais relaxado do que nunca, o sorriso de canto de lábios
escondido pelas sombras que o sol projetava em seu rosto. Questões básicas
não paravam de passar pela mente problemática de Karina. Até que a principal
foi respondida.
Harry era um excelente motorista, isso ela não poderia negar. Se a Harley
Davidson representava a loucura e perigo do Harry da noite, a BMW prateada
era o reflexo de tudo aquilo que ele queria representar para o mundo diurno:
tranquilidade, polidez, gentileza. Tão verdade era isso que a garota mal
reparou no momento em que ele estacionou, próximo a uma fileira de carros
coloridos na rua mais arborizada de toda a cidade. Virando a cabeça quase em
câmera lenta, Karina se deparou com a construção que mais desprezava desde
que se mudara para o lugar. O prédio da igreja erguia-se majestoso, quase
brilhante sob os exagerados raios de sol matutinos. Ela só pôde suspirar. Todo
aquele alvoroço para mais uma missa maçante e olhares de superioridade da
mãe de Harry. Um certo filho do pastor estaria em sérios problemas mais
tarde.
Sem muita delicadeza, uma irritadiça órfã empurrou a porta direita da BMW,
os saltos fazendo barulho em contato com o asfalto, os cabelos balançando
com a leve brisa vinda diretamente do lago escondido entre uma imensidão de
arbustos e pinheiros do outro lado da rua. Harry a esperava na calçada, os
olhos presos em alguma coisa, ou alguém, perto do portão oeste. Mas ela não
conseguia ver o que atraíra a atenção antes tão dispersa do falso recatado. Sua
última alternativa era juntar-se a ele, fazendo mais barulho do que nunca ao
caminhar. Com um floreio de seu vestido, Karina juntou-se ao garoto,
esperando a próxima ação. Sem uma palavra que fosse, Harry lhe ofereceu o
braço, uma sobrancelha erguida marotamente no momento em que ela
mordera o lábio inferior em apreensão. Mas havia outra coisa a se fazer, se
não aceitar o cavalheirismo excessivamente falso? Provavelmente havia. O
cérebro de Karina só não era mais capaz de encontrar escotilhas de fuga.
E, que surpresa não foi ao se ver guiada – arrastada talvez fosse uma palavra
que melhor descrevesse – não para a igreja gótica e soberana que ocupava
quase uma quadra inteira, mas sim para a não menos estonteante residência
que a fazia companhia em meio a tanto verde. Nada bom. As suas
experiências anteriores na casa dos Styles não haviam terminado exatamente
bem. Respirando fundo uma última vez, empinou o nariz no ar ao passar pelos
muros de pedra nua que a separavam de uma manhã definitivamente exótica e
assustadora.
‘ Surpreendente’ deveria ser acrescentada aquela lista, quando pela segunda
vez Karina fora desviada do caminho que havia projetado em sua cabeça. Os
dois mentirosos não foram até a grande porta decorada e cara que escondia a
família sagrada do resto do mundo. Um portão de ferro negro que ela nunca
havia reparado no lado leste os levou a um corredor de mármore polido e
paredes de arbustos e orquídeas. E foi então que ela começou a se sentir num
filme de época.
Um jardim imenso surgiu diante de seus olhos, tão exuberante que poderia ter
sido confundido facilmente com o de algum palácio vitoriano perdido no
tempo. Macieiras de flores muito brancas se misturavam a grandes cerejeiras
de tom rosado, a grama bem aparada lembrava um tapete de veludo verde.
Pequenas mesas de chá de ferro envelhecido pontilhavam lugares estratégicos,
toalhas de renda creme as cobrindo e travessas, provavelmente de prata,
repletas de aperitivos sofisticados e xícaras de porcelana. Mas o mais
impressionante de tudo era a piscina imensa no canto mais afastado da
propriedade, as bordas de granito cinza escuro e os azulejos esverdeados a
transformavam num Oasis de luz a cada vez que o sol iluminava as águas
cristalinas. E no centro, reinando absoluta, uma fonte com pequenas estátuas
de anjos completava o cenário. Em seus curtos anos de vida, por todos os
lugares que passara e avistara, Karina não se lembrava de ter visto nada tão
bonito quanto aquilo. O luxo era quase palpável.
A garota se viu cercada então por mulheres em vestidos de verão discretos,
chapéus elegantes de abas largas protegendo-as de um bronzeado indesejado,
seus movimentos tão delicados quanto de princesas inglesas. Os homens em
seus blazers sóbrios e cabelos repletos de gel, milimetricamente escovados
para trás estavam reunidos em pequenas rodas, discutindo sobre política
mundial e o preço da gasolina em torno de xícaras de café e taças de licor.
Todos parecendo felizes como em um comercial de margarina diet. A festa de
noivado de Lemon Breeland e George Tucker* bem diante dos seus olhos,
como saída diretamente da televisão. E Wade Kinsella* não parecia estar ali
para deixar tudo aquilo menos patético.
Harry a guiava com uma delicadeza absurda, sorrindo para os presentes,
agradecendo cada desejo de feliz aniversário animado de cada senhora de
idade que aparecia pelo caminho com uma sombrinha colorida a tiracolo.
Fingindo um meio sorriso, Karina se perguntava quantos prêmios ele era
capaz de ganhar por sua atuação medíocre de bom moço. Quanto tempo mais
ela própria aguentaria era uma boa pergunta no momento. Porque, no final da
linha, após todos os cumprimentos desnecessários de pessoas desnecessárias,
duas mulheres os aguardavam, ambas com os maridos a postos como cães de
guarda.
Esma bebericava seu chá calmamente, o vestido de alças amarelo-limão
contrastando com o chapéu off-white e seus cabelos muito ruivos. Logo ao
seu lado, a sobriedade de Angel em um vestido azul-marinho combinando
perfeitamente com o chapéu discreto assustavam tanto quanto seus olhos
cinzas como uma tempestade. Rick sorriu para Karina ao vê-los se
aproximando, um suéter vermelho sob seu blazer marrom, as mãos nos bolsos
da calça jeans de lavagem escura. E em sua pose tradicionalmente reservada, o
pastor Philip virou-se, os olhos verdes faiscando na direção dos dois. A
semelhança com o filho mais velho era visível, desde os olhos, passando pelo
nariz empinado e o leve ar de arrogância, até o modo de vestir-se. O conjunto
de blazer e calça preta combinada com camisa azul exatamente igual ao
de Harry exemplificava isso.
- Ah, ai estão vocês! – a voz de Esma estava particularmente animada e
radiante naquela manhã, como se alguma coisa realmente extraordinária
tivesse ocorrido – Nós estávamos morrendo de ansiedade, aguardando
novidades!
- Essas duas já estavam planejando mandar um espião atrás de vocês, só para
saberem a resposta antes. – O pastor Philip lhes sorria, do seu jeito controlado
e recatado, o mesmo tom que usava durante suas pregações. O que diabos
estava acontecendo ali? Era a pergunta que mais rodava o cérebro de Karina.
Todos pareciam saber de algum fato que a garota desconhecia, mas que
evidentemente lhe envolvia – Mas acho que todos nós já adivinhamos quais
foram as sábias palavras de Karina.
- Desculpe...? – Ela quase engasgou. Do que ele estava falando? Que
resposta? O chão parecia rodar, e a única coisa que lhe dava estabilidade para
não cair era Harry, ainda preso a seu braço. Harry este que sorria abertamente,
quase que orgulhoso de si mesmo diante de cada palavra que, para a garota,
parecia ser dita em alguma língua desconhecida.
- Karina, meu bem – Angel agora segurava suas mãos geladas, um sorriso
misterioso no canto dos lábios e uma expressão que imitava alivio nos olhos –
Você não faz ideia de como ficamos satisfeitos com a sua junção a nossa
família. Quando Harry nos disse que pretendia lhe propor um relacionamento
sério, eu e Philip fomos às nuvens, realmente. Nosso Harry nunca havia se
interessado por alguém antes, mas então você entrou na vida dele e Deus
colocou tudo em ordem – Esma parecia prestes a chorar com o discurso de
Angel. Karina estava petrificada. Relacionamento sério? O que eles sabiam
sobre o relacionamento dos dois? Ela estava tonta – E quem melhor do que a
linda e amável Karina, filha de pessoas tão encantadoras quanto Esma e
Richard? Uma verdadeira lutadora, uma sobrevivente. Vocês dois cresceram
tanto juntos e agora vão crescer mais ainda. – A matriarca dos Styles sorriu
para ela, de um modo ao mesmo tempo gentil e intimidador – É claro que
vamos esperar até que você complete dezoito anos para oficializar um
noivado, mas são só alguns meses, não é? E seu anel de compromisso é tão
bonito quanto seu sorriso, querida. – Casamento. Eles estavam falando de
casamento. Se Harry não houvesse passado o braço pela cintura da garota
discretamente, ela provavelmente estaria estarrecida no chão naquele
momento. O ar já começava a lhe faltar nos pulmões.
- Mas nos contem! – Esma estava com certeza tendo um surto infantil de
felicidade – Como foi o pedido? Detalhes, detalhes. – A boca de Karina se
abriu num ‘o’ discreto, pega totalmente de surpresa pela questão. Infernos, ela
nem sabia do que eles estavam falando exatamente. Harry estava morto.
Totalmente morto.
- Bom, como todos já sabem, esta manhã eu fui até a casa dos Kallister
convidar Karina para um pequeno passeio. – Harry fingia um olhar sonhador
ao olhar para a menina ao seu lado, como se tudo aquilo fosse incrível demais
para ser verdade. Precisariam inventar um prêmio maior do que o Oscar para
agraciar a representação do filho da puta – E, quando eu a vi na porta, sabia
que estava fazendo a coisa certa. Karina nunca esteve tão bonita quanto agora.
Então nós começamos a caminhar, sem pressa, até a margem norte do Lago
Winston, sob o salgueiro centenário. E foi ali que eu declarei os meus
sentimentos por essa garota tão maravilhosa que eu tenho a honra de ter ao
meu lado agora. –A pausa dramática foi suficiente para fazer Angel e Esma
suspirarem – Para meu alívio, ela correspondia a tudo aquilo. Nosso primeiro
beijo, certamente nunca serei capaz de esquecer. Então eu perguntei se ela
aceitaria ser minha namorada, e ela disse sim. Poderia haver melhor presente
de aniversário?
- Acredito que não – O olhar de Rick era um misto de preocupação e
tranquilidade, mas o sorriso continuava estampado em seu rosto –
Quando Harry veio até nossa casa ontem à noite pedir uma permissão formal
para então lhe propor, nós ficamos surpresos. Não são muitos garotos que
ainda se prendem as tradições.
- Nosso Harry foi criado segundo os ensinamentos do Senhor, e é o orgulho de
nossa família – Angel ergueu seu nariz no ar, um leve gesto de superioridade
diante dos outros – Ele se mantém puro até o casamento, o que acreditamos
que Karina também faça.
- É claro que sim! – a voz de Esma soou uma oitava mais alta – Karina pode
ter passado por alguns caminhos turbulentos e ter tido uma pequena fase de
rebeldia, mas conhecer Harry a salvou. – Claro. Os dois erampuros como
água. O que eles estavam fazendo na noite anterior num posto de gasolina não
era nada além de um estudo detalhado da anatomia humana. A garota estava
prestes a vomitar.
- Karina, meu bem, agora que você é praticamente da família, eu adoraria que
pudéssemos passar algum tempo juntas – Era impossível não prestar atenção
em Angel. A mulher possuía um magnetismo assustador – Amanhã à tarde,
venha para o chá comigo e Angelina. Será excelente. – O choque de toda a
situação ainda não havia abandonado o seu corpo, então a única ação que ela
conseguira desenvolver fora um concordar com a cabeça, os olhos vidrados
em algum ponto entre o ombro do pastor e a fonte no meio da piscina – Mas
agora vamos deixar que vocês dois aproveitem um pouco do brunch. Afinal,
não é todo dia que se faz 18 anos, não é meu amor?
- Claro, mãe – ‘Mãe’, chamava agora o homem que pelas costas a tratava
como uma megera. Karina procurava com os olhos o objeto cortante mais
próximo. A única dúvida era qual parte do corpo merecia levar a primeira
facada.
O pequeno grupo se dissipou rapidamente. Eram somente os dois, como
sempre. Karina e Harry. O filho do pastor e a falsa rebelde. A respiração dela
estava descompassada, as mãos fechadas em punhos, os olhos estreitos. Ele
era a tranquilidade em pessoa. Começaram a movimentar-se entre a multidão,
mesmo sem trocar uma palavra. Ela sabia que um escândalo não seria
proveitoso ali. Ele sabia que ela estava prestes a explodir. Pressionando sua
cintura com a palma da mão, Harry sussurrou no ouvido da garota.
- 5 minutos. Continue caminhando.
O que exatamente ele queria dizer, Karina não fazia ideia. Mas a raiva presa
em sua garganta a orientava a seguir as orientações do maldito garoto. O
cheiro de chá de canela penetrava em seu nariz, tornando a situação ainda
mais insuportável. Era tudo muito sofisticado, muito falso. Tudo ali se parecia
com Harry. Os dois se distanciavam do jardim, indo em direção a imponente
casa branca. Pelo canto dos olhos, a garota conseguia ver casais dividindo
cupcakes, senhoras fofocando e crianças brincando na grama. Foi pelo canto
dos olhos também que ela viu juntas as duas pessoas mais improváveis do
planeta.
Damian estava ali. Encostado em uma árvore, seu rosto e cabelos pareciam
limpos, assim como a camisa negra de botões que usava. E ao seu lado, no
mesmo vestido lilás que havia usado mais cedo, Angelina apoiava-se em um
de seus ombros, os cabelos loiros ocultando parte de seu rosto. Os dois
mantinham uma conversa baixa, intima, e não se importavam com os curiosos
de plantão. Aquilo não podia ser verdade. Angel nunca aceitaria Damian, o
garoto da fazenda com distúrbio de personalidade. No último segundo, os
olhos verdes do garoto fitaram o mais novo casal real subindo o primeiro
degrau que levaria a uma porta de vidro. Outro mistério para atormentar as
noites perturbadoras de Karina.
A cozinha e a sala de estar passaram como um borrão colorido pelos dois.
Fora das vistas do público, Harry já não era mais gentil e zeloso. Era só o
mesmo desgraçado de sempre. Puxando-a pelo braço, ele os trancou dentro de
um pequeno banheiro debaixo das escadas do primeiro andar. Era um lugar
apertado, papel de parede roxo nas paredes e um lustre dourado no teto. A
bancada de mármore e madeira se juntava a um espelho retangular que
ocupava uma boa parte do espaço, e um pequeno sanitário branco ao seu lado.
Provavelmente um banheiro para visitas indesejáveis. Se Karina conseguisse
dar dois passos dentro daquele lugar, já seria um avanço gigantesco. O que
não a impediu de partir pra cima de Harry assim que teve uma chance.
- O que DIABOS você está pensando, Harry? Que merda é essa acontecendo
aqui? ME RESPONDA! – Ela tentava acertar seu rosto com os punhos
fechados, mas a força dele era superior. O que não evitou os chutes que ela
tentava dar, o nervosismo tão à flor da pele a ponto de errar todos os
alvos. Harry havia coberto sua boca com uma das mãos, impedindo que ela
voltasse a gritar. Havia alguma coisa selvagem nos olhos de Karina que o
divertiu profundamente.
- Você é tão previsível, meu bem – ele riu baixinho na tentativa frustrada da
garota de se livrar de suas mãos – E eu sou genial, não sou? Você devia me
agradecer, em vez de ficar se comportando como uma menininha mal criada.
Eu resolvi nossos problemas. Arrumei um álibi pra nós dois.
Minha ‘mamãe’ não é tão ingênua quanto parece. Ela estava ficando
desconfiada de alguns dos meus hábitos noturnos, se é que podemos chamá-
los assim. Existe desculpa melhor do que se estar apaixonado para olheiras e
mudanças de comportamento? Eu acho que não. Ainda por cima, aliviei a
pressão da sua querida Esma pra cima de você. Já pode começar a me
agradecer.
No momento em que ela relaxou os ombros, ele a soltou. O que não
significava que Karina estava menos irritada ou desconfiada. Respirando
fundo uma última vez, ela soltou as palavras, uma a uma.
- Então por que você não me disse, porra? Por que não me avisou do seu plano
brilhante?
- Um: você é teimosa pra cacete. Dois: você sempre funciona melhor sob
pressão. E a melhor parte: eu levaria séculos pra te convencer, e eu não
dispunha de tanto tempo assim. Resolvi pegar um atalho – ele deu de ombros,
observando o próprio reflexo no espelho – Droga. Eu realmente queria um
cigarro agora.
- Harry, eu odeio você. Você é o maior filho da puta que já pôs os pés neste
planeta.
- Cuidado, você está alimentando meu ego. – o sorriso de canto já estava de
volta ao seus lábios – E, antes que eu me esqueça – ele virou-se para ela, os
olhos verdes queimando-a da cabeça aos pés, a julgando por todos os seus
pecados – Isso é o que se chama de namoro de aparências. Não espere que eu
seja carinhoso com você quando não estivermos sendo observados, porque eu
não serei. Eu não sou seu namorado, Karina, e eu não sinto
absolutamente nada por você, consegue me compreender? A nossa relação é a
mesma de sempre. Amigos com benefícios. A única diferença é que agora
descobriremos o quão boa atriz você é. Estamos entendidos?
- É claro que sim. Ser sua namorada é o primeiro item da minha lista de ’10
coisas que são piores que a morte’ – Mas, inconscientemente, seu coração
ficou apertado, como se Harry o tivesse segurado com muita força com uma
de suas mãos. Não fazia qualquer sentido, mas doía do mesmo jeito.
- Ótimo. E já que chegamos a um acordo, é hora de voltarmos. Afinal, você
precisa receber o anel que é ‘tão bonito quanto seu sorriso’. Relutante, ela
aceitou o braço que ele lhe oferecia, e foi novamente arrastada pela casa. Não
acreditava totalmente em Harry. Era um passo grande demais por um motivo
aparentemente bobo. Era hora de ficar de olhos bem abertos. Bastou
colocarem os pés na grama para que pessoas cujo os nomesKarina não fazia
ideia viessem os cumprimentar, elogiando o bom gosto evidente de Harry.
Aquilo era o inferno. Mas ainda podia ficar um pouquinho pior.
Angel havia aparecido como mágica atrás dos dois, um sorriso no rosto
enquanto os empurrava elegantemente até a beira da piscina. Karina pode ver
o exato momento em que ela passou uma pequena caixa de veludo vermelho
para as mãos do filho mais velho, para em seguida atrair a atenção de todos
com algumas palavras suaves. Com um domínio de público que só ele
possuía, Harry agradeceu a cada presente a honra de terem disponibilizado um
pouco de seu precioso tempo em comemoração ao seu aniversário.
- Então, como retribuição, é minha vez de compartilhar com vocês uma das
minhas maiores felicidades – a pequena caixinha de veludo fora aberta com
um clique rápido – Com este anel, torno oficial meu relacionamento com a
encantadora Karina Dawson, em frente a minha família e amigos mais
próximos. Obrigado por ter aparecido em minha vida, Ká.
Era possível ouvir os suspiros e a aprovação de cada convidado no momento
em que Harry ajoelhou-se e finalmente colocou o precioso anel em sua mão
direita. Era extremamente delicado, uma estrutura dourada dava suporte a uma
pequena pérola branca. Provavelmente verdadeiro e extremamente caro. E
absurdamente bonito. Nunca antes em sua vida a garota havia parado para
admirar uma joia. Até aquele momento. Começava a se familiarizar com a
peça, acostumar-se com ela ali. Como se ela sempre houvesse pertencido
a Karina. Harry já estava em pé, e sorriu para ela ao selar-lhes os lábios por
tempo suficiente para arrancar uma salva de palmas de uma plateia atônita. E
para fazer o coração de Karina disparar, sem freio aparente.

* Because It Has To Be So Lonely To Be The Only One Who's Holy é um


trecho de Playing God, do Paramore: Porque deve ser tão solitário ser o
único que é santo
*Lemon Breeland, George Tucker e Wade Kinsella são personagens da série
Hart of Dixie

Capítulo 15 – I’m Glad You Came

Tique-taque, tique-taque. O espelho era limpo demais, brilhante demais.


Refletia, perfeitamente, cada detalhe que, ao menos por enquanto, deveria
ficar escondido. Tudo naquele quarto era impecável, digno de perfeição. Das
paredes pintadas de pérola até o assoalho polido, passando pelas cortinas
verdes pesadas e caras, os móveis de mogno e a cama king size com seus
lençóis de mil fios. Mas parecia tão frio, mesmo com as janelas fechadas. Tão
solitário, mesmo com o lustre de lâmpadas amarelas dando uma ideia de
conforto e carinho. Embora existam algumas coisas passiveis de mudança, um
fato é inegável: seu lar é onde seu coração está. E é simplesmente impossível
dar uma simples ordem ao órgão maldito que teima em acelerar sem aviso
prévio e se deixa levar por gestos tão mínimos que passariam despercebidos
por outros mais competentes.
O calendário não lhe deixaria mentir. Duas semanas. Catorze dias desde que
um pequeno anel havia sido posto em sua mão direita. Parecia pesar uma
tonelada, e a sensação só aumentava com o tempo. Karina se recusava a olhar
para ele agora, mas tampouco queria encarar o espelho. Sabia a imagem que
encontraria. Os longos cabelos azuis presos em um coque elegante, os cílios
carregados de rímel negro, mas os olhos limpos. O batom vermelho esquecido
no fundo de uma gaveta. Sapatilhas de lacinhos combinavam perfeitamente
com o vestido vermelho-joaninha sem mangas que usava. Ela não sabia quem
era a garota lhe encarando no reflexo. Talvez uma reencarnação de Rachel
Berry*. Poderia ser qualquer menina no mundo. Menos Karina Dawson.
Porque a própria garota já não sabia mais quem era.
Sua vida era um misto de inferno e paraíso no momento, e ela simplesmente
não sabia o que fazer. Seu cérebro havia entrado em curto-circuito no
momento em que Harry havia proclamado o dito namoro de aparências dos
dois. E a única coisa que ela pôde fazer foi se deixar ser carregada pelo
destino, dia após dia, sem pensar muito em tudo aquilo. Porque era muito mais
do que fingir ser namorada do filho do pastor. Aquilo envolvia deixar Angel
mexer em seu guarda-roupa e em seu cabelo, em passar cada tarde na
companhia de sua ‘sogra’ e de Angelina, fazendo o que a matriarca dos Jones
mandasse e sendo uma boa menina, como Esma gostava de ressaltar. E Karina
não conseguia dizer não, porque aquela mulher lhe assustava profundamente.
Quando a Sra.Jones a observava com seus olhos inquisidoramente cinzas, a
temperatura caia alguns graus. Por mais queHarry fosse totalmente
desprezível, pela primeira vez ela o entendia. Compreendia os segredos, a
rebeldia escondida dentro de blazers escuros e a obediência diante de Angel.
Assim como o Harry da noite, ninguém sabia o que aquela mulher era capaz
de fazer. E ninguém parecia proposto a descobrir.
Harry. O maldito Harry Jones. Esse era outro dos motivos que a estavam
enlouquecendo ultimamente. Mas por mais estranho que parecesse, era de um
jeito bom. Desde a noite do posto de gasolina os dois não haviam mais saído,
não de um modo onde ambos pudessem ser quem eles realmente eram. As
aparições públicas, como o casal santo e civilizado que eram, essas sim eram
muitas. Eram muitas mãos entrelaçadas, carinhos na cintura e sorrisos
falsamente apaixonados da parte dele. Porque por mais repugnante que
parecesse, quando os lábios dela encontravam os dele para fazer alguma beata
suspirar num chá de domingo, não havia nada a não ser um coração acelerado
e uma espécie de calor, não naquele sentido pecaminoso que Harry a havia
ensinado a sentir, mas um calor confortável, familiar, apaixonado. Se
antes Karina era só mais uma tola, agora era uma espécie ligeiramente pior.
Uma santa tola apaixonada, com todas as letras possíveis e plausíveis, por um
falso santo com um pézinho no inferno.
Mas você não escolhe o amor, eles lhe disseram tantas vezes. O amor escolhe
você. O quarto de Esma e Rick agora parecia pequeno demais, como se a
sufocasse. Karina já não lembrava porque estava ali, o que tinha ido procurar.
Provavelmente um colar que combinasse com os padrões de Angel, algo
delicado e angelical. Algo que escondesse o pequeno crucifixo dourado que
agora ela carregava no pescoço. Um presente do próprio pastor Philip no
primeiro jantar ‘familiar’ cuja Karina participara. A primeira vez em duas
semanas que tudo que a garota queria era dizer não, recusar veementemente.
Mas os olhares de Esma e Harry a fizeram engolir em seco. Segurar a raiva, e
as lágrimas que nunca vieram. A falta de crença da órfã era um tabu, um
assunto que nunca fora trazido a tona. Uma dor que ninguém respeitara. Mais
uma mágoa a ser guardada para depois. Quando o pastor Philip fechou a
corrente dourada, o peso do mundo parou em seus ombros. E a mão de Harry
agarrou a sua com a mesma intensidade.
Karina levantou-se da cama macia, abandonando o quarto sem olhar para trás.
Rick lhe daria uma carona até a escola naquele dia, já que Harry e sua BMW
prata estariam ocupados demais em algum compromisso pastoral de seu pai.
Ao mesmo tempo em que sentiria sua falta, um tipo de alivio lhe percorria.
Um dia de paz e tranquilidade era tudo que ela precisava. Desceu as escadas
de madeira tentando não fazer barulho, torcendo para que Esma ainda
estivesse ocupada no escritório de seu pai adotivo. A ruiva andava
insuportavelmente amorosa e preocupada, o que dava náuseas a garota. Ela
preferia mil vezes a Esma que lhe dava algum espaço por puro medo de um
surto qualquer. Agora que estava sob controle, a matriarca dos Dawson
decidiu quer era uma boa hora para se reaproximar.
Uma bolsa de couro branco macio a esperava sobre a poltrona vermelha da
sala de estar, o tipo de acessório que ela abominava algumas semanas antes.
Só mais um lembrete de como seu mundo estava totalmente de cabeça para
baixo. Pendurando-a em um dos ombros, deixou a casa, sem se preocupar em
despedir-se de sua mãe adotiva. Não era necessário. Rick a esperava dentro de
seu carro vermelho, e pela primeira vez desde que Karina havia se tornado
parte daquela família, o rádio estava ligado numa das poucas estações de rock
clássico que a faziam sorrir. Fechando a porta do passageiro quase que
imperceptivelmente, a garota encarou o rosto do pai adotivo por alguns
minutos, o silêncio a incomodando mais do que deveria.
- Isso é estranho, não é, Ká? – Rick riu baixinho, os olhos ainda presos na
estrada – É como se não nos conhecêssemos mais. Como se precisássemos ser
apresentados formalmente. – Ele procurou pelos olhos azuis, que tentavam
desviar dos seus cor de avelã – Sou Richard Dawson. Sou advogado. Tenho
uma esposa um tanto neurótica, mas maravilhosa. E costumava ter uma filha –
‘Filha’. Nada de ‘adotiva’. Apenas ‘filha’- que gostava de batom vermelho,
Rolling Stones e ria das patricinhas e seus poodles cor-de-rosa. Prazer em
conhecê-la.
- Meu nome é Karina Saxon-Dawson. – ela respondeu entre dentes, entrando
na brincadeira amargurada de Rick, mas tremendo ao lembrar o sobrenome
que tanto abominava. Saxon. Mas ela sabia que a menção daquilo amenizaria
a culpa que estava sentindo – Último ano do ensino médio. Meus pais
morreram num maldito acidente de carro. Minha mãe adotiva é louca, meu pai
adotivo, a única pessoa em que eu posso confiar – Ela parou por um momento
– Sou ateia, mas namoro o filho do pastor da cidade. Meus sogros me
reprimem. Ninguém sabe o quanto tudo isso dói em mim. Ninguém se
importa. Meu melhor amigo me odeia. Por mais que eu tente, eu não consigo
tirar o maldito cheiro de Chanel Nº 5 de mim. E eu odeio a mim mesma ainda
mais, porque estou soando exatamente como a rainha do drama que eu sempre
abominei.
O carro parou subitamente em frente a uma casa qualquer, sem maiores
explicações.
- Eu sabia – Rick suspirou derrotado – Eu sabia. Ah, Karina, por que você não
me disse? Eu sempre soube o quão terrível essa ideia era. Foi Esma, não foi?
Esma armou toda essa situação e de algum jeito obrigou você a tudo isso e...
- Não, não. Esma tem sido irritante e de verdade, tem horas que eu gostaria de
joga-la pela janela – Ela ainda tentava evitar o olhar de compaixão de seu pai
– Por mais incrível que pareça, ela não tem nada a ver com isso. Dessa vez.
- Então por que, meu amor? Por que continuar se submetendo a tudo isso?
Karina não respondeu. Só deixou que seus olhos encontrassem os de Rick,
grandes, doces e cheios de preocupação. Os lábios formavam uma linha fina, e
a vontade de chorar estava ali, como um fantasma. Mas prometera a si mesma
tantos anos atrás, e essa promessa ela não quebraria. Não choraria, nunca
mais. Então algo passou pelo rosto de Rick, como uma brisa de entendimento
ou uma luz no final do túnel.
- Você gosta dele, não gosta?
Apesar de já ter conhecimento da verdade, proferi-la em voz alta ainda era um
passo que ela não conseguia alcançar. Contentou-se em acenar com a cabeça
lentamente, um ‘sim’ um tanto envergonhado e humilhante.
- Mas não é certo, Ká. Você não devia mudar sua vida toda por um garoto.
Você não devia deixar de ser quem você é.
- Eu não estou...Eu...Eu só estou tentando fazer as coisas darem certo, Rick.
Só dessa vez.
- Vou ter uma conversa com Harry quando ele voltar – Rick religava o carro,
olhando em seu relógio de pulso pela primeira vez – Ele precisa tomar alguma
atitude. Ele é um bom garoto, afinal, vai entender tudo isso...
- Não, Rick, não – sua voz era quase suplicante, quase- Hazza sabe. – Hazza.
Era assim que precisava se referir a Harry na frente de outras pessoas.
Porque Hazza era intimo e passional o suficiente para que todos suspirassem –
Nós já conversamos sobre isso. Ele odeia a situação tanto quanto eu e você,
mas ele está tentando...Eu confio nele – Que grande mentira. Que mentira
absurda. Porque o filho do pastor não dava a mínima. Por que deveria, afinal?
Já que Karina não significava nada para ele. Nada além de uma capa de
invisibilidade humana.
- Fico contente em ouvir isso. De verdade, Karina. – ele procurou pela mão da
filha, apertando-a firmemente na sua – É bom saber que Harry se importa com
você, querida. Que você tem alguém com quem contar – A garota sorriu
amarelo, mordendo o lábio inferior em nervosismo –Sinto muito em relação
a Louis...
- Podemos não falar dele, por favor?
- Claro, claro. Eu entendo. Tudo que eu quero é que você seja feliz, Ká.
- Eu também, Rick. Eu também.

Os corredores eram tão frios quanto sempre foram, lotados como nunca por
adolescentes barulhentos e cheios de vida. Líderes de torcida escandalosas
flertando incansavelmente com atletas de algum esporte qualquer, enquanto
patricinhas riam em seus grupinhos numerosos, liderados por Alicia Loren e
seus olhos de gato. Os cowboys em seu canto, sempre quietos, como se
observassem a passagem do tempo por outra perspectiva quebravam qualquer
tipo de hegemonia que poderia haver por ali. Só mais um dia comum em uma
escola comum.
Para cada vez que sua sapatilha tocava o chão, algum desavisado lhe lançava
um olhar curioso. Karina havia visto muitos daquele tipo desde que pisara
pela primeira vez naquele mesmo corredor de mãos dadas comHarry. Ela
sabia que haviam sussurros, fofocas e conspirações, mas não importava.
Porque parecia seguro ao lado do filho do pastor. Mas era a primeira vez em
catorze dias que ela caminhava sozinha por entre os alunos, o olhar vago e a
mente distante. Mas atenta o suficiente para captar alguns olhares. Se antes
eles eram de medo e admiração, agora o que os dominava era respeito e uma
inveja comedida. A maior parte da ala feminina, ávida por arrumar um
possível futuro marido rico e de boa família. E havia alguém ali que
preenchesse a vaga melhor do que Harry? Provavelmente não. Mas o que
todos queriam saber era ‘ por que diabos ele está namorado logo a ex-
rockeira vinda diretamente do inferno? . A resposta, obviamente, ninguém
nunca saberia. Ninguém além de Karina e seu nariz empinado no ar, tentando
chegar sem maiores problemas a sua aula de matemática.
A sala cheirava a giz e perfume barato, proveniente provavelmente do terno
empoeirado do dinossauro que era o mestre daquela classe, o careca
Sr.Moffatt. As paredes pintadas de verde-musgo e carregadas de cartazes e
pinturas tornavam aquela a sala mais bizarra de todo o prédio. As mesas
duplas eram pequenas demais para que fosse possível ignorar o colega ao
lado, o que no caso de Karina era terrivelmente perturbador, já que seu
parceiro era ninguém mais ninguém menos do que Louis e seus olhos azuis e
acusadores. O mesmo Louis que antes era seu irmão, seu melhor amigo, e
agora se recusava veementemente a lhe dirigir a palavra. Afundado em seu
moletom cinza, fazia anotações desnecessárias em seu velho caderno dos
Vingadores, o sorriso iluminado que antes sempre preenchia seu rosto agora
não passava de uma linha fina quase imperceptível.
- Bom dia, Louis – Karina tentou, a voz o mais doce possível, sentando-se ao
lado do melhor amigo.
- Oh – ele dramatizou, os olhos arregalados e o sorriso sarcástico – Bom dia,
Srta. Jones, há alguma coisa que eu possa fazer por vossa santidade?
- Louis...
- Cale a boca, Karina – ele finalizou, escondendo-se no capuz folgado e
jogando os olhos azuis em qualquer direção, menos na da garota ao seu lado.
- Você sabe que eu não mereço isso – sua voz não passava de um sussurro
agora.
- Claro que não – uma risada anasalada escapou dele, quase que como um
deboche – Você merece ser transformada numa beata sem um pingo de
personalidade, submissa a um namorado que você sabe que não vale o chão
que pisa. Mas quem sou eu pra dizer alguma coisa? Sou só um pobre órfão
que não é digno de nem ao menos dirigir o olhar a toda a sua pureza e
superioridade.
Aquilo doía. A indiferença de uma das pessoas que mais amava em sua vida
era como a mais afiada das facas plantada diretamente em seu coração, sem dó
ou piedade. Karina sentia falta de Louis todos os minutos do dia, de sua risada
enérgica e suas histórias em quadrinhos de super-heróis. Sentia falta de deitar
em seu colo e ouvir sua voz suave cantando a mesma canção de ninar
repetidamente. Sentia falta de seu porto-seguro. Porque tudo que tinha ao seu
lado agora era uma pedra de gelo que a odiava. Era como perder seus pais,
tudo de novo. Órfã ao quadrado.
- Posso ao menos perguntar como está Carine? – A ruiva estava internada
havia uma semana no hospital. Debilitada como nunca antes. Karina se
preocupava profundamente com a garota, porque ninguém queria revelar o
mal que ela sofria. Era um segredo compartilhado por Carine e seus pais
adotivos, o que deixava Louis ainda mais frustrado e irritado. Mas pelo
menos Carine a compreendia. Carine não a odiava, ao contrário de seu gêmeo.
Isso só fazia a preocupação da garota aumentar.
- Na mesma – Louis gemeu em desgosto, as mãos se fechando em punhos –
Eu nunca a vi tão fraca em toda a minha vida. E eles não querem me contar.
Não querem...Eu estou com medo, Karina. Como nunca estive antes.
- Vai ficar tudo bem, Louis – ela procurou pela mão do amigo, segurando-a
firmemente antes que ele se esquivasse.
O silêncio voltara, mas cruel do que antes, como um vento gelado soprando
entre os dois. Karina somente deixou que seus olhos escorregassem até a
porta, como se esperasse alguém entrar. Sabia que Harry não viria, mas ainda
assim ela parecia esperar. Mas a única pessoa que entrou na sala apertada for
Damian, todo coberto de roupas pretas, os cabelos cheios de gel jogados para
trás. Ela se lembrava da última vez que os dois haviam conversado, mesmo
que ela estivesse bêbada demais. “Me procure no intervalo, embaixo das
arquibancadas da antiga quadra de basquete”. Mas esse encontro nunca
havia acontecido. Como se ele pudesse ler sua mente, seus lábios formaram
um sorriso amigável, antes de jogar uma pequena bolinha de papel amassado
em sua direção. Um dos olhos verdes como esmeralda de Damian lhe piscou,
como se um contrato estivesse sendo fechado. Abrindo o papel rapidamente,
ela encontrou rabiscadas em uma caligrafia apressada as seguintes palavras:

“ O guarda-costas finalmente deu uma trégua, huh? A curiosidade ainda não


lhe matou, Ká? Junte-se ao pequeno grupinho feliz embaixo das
arquibancadas. Eu prometo que você não vai se arrepender”

Karina procurou por Damian entre os rostos atrás de si, mas ele não lhe olhava
de volta. Estava absorto na tela iluminada de seu celular, como se algo muito
importante estivesse prendendo sua atenção. Suspirando alto ao notar
que Louis ainda lhe ignorava completamente, Karina escondeu o pequeno
bilhete no decote de seu vestido. Algumas manias ela nunca perderia.

O tempo se fechava, tornando o céu cinza e carregado, a brisa um pouco fria


demais. A velha quadra de basquete tinha um aspecto fantasmagórico coberta
por musgo. Desde a construção do ginásio de esportes, aquele lugar a céu
aberto nunca mais fora utilizado. A não ser para rituais satânicos das ditas
bruxas libertas do segundo ano. Era possível identificar as marcas de velas e
as penas brancas espalhadas por todo o lugar. Se aquilo não tinha vindo
diretamente de um travesseiro rasgado, Karina era Cinderella. Respirando
fundo e tentando ignorar o cheiro de dejetos de roedores, ela ergueu a cabeça,
indo em direção a enferrujada arquibancada onde três figuras a esperavam.
Verdes. Mais azuis ainda. E um par de olhos cor de mel.
Dizer que estava chocada pela junção daqueles três garotos que a encaravam
agora, cada um com uma expressão diferente no rosto, era o mínimo
que Karina podia fazer. Damian estava encostado na detonada rede de
proteção, nos bancos mais altos, sorrindo para ela com certa compaixão
inexplicável. Louis estava sentado ao seu lado, em cima de um casaco que a
garota tinha certeza pertencer ao garçom do Incantatem, a indiferença ainda
em seus olhos. E alguns bancos abaixo, Patrick sorria sedutor para ela, as
mãos escondidas nos bolsos da jaqueta de couro, os cabelos loiros brilhando
mesmo com o sol escondido entre nuvens. E aquele, com certeza absoluta, era
o grupo mais estranho que seus olhos já haviam visto. E acredite, ela já havia
visto muitos grupos estranhos em sua vida.
- Hey, sexy – Patrick quase gritou, acenando para ela – Bem-vinda ao clube de
‘Ódio não-gratuito a Harry Jones’.
- O que?
- Não dê ouvidos a ele – Damian revirou os olhos, sentando-se ao lado
de Louis no casaco – Estamos felizes porque veio. Estamos preocupados com
você – Karina pode notar que seus ombros tocavam os do garoto ao seu lado,
e que os olhos verdes de Louis o observavam distraidamente enquanto ele
fazia isso – Pode chegar mais perto. Eu sei que parece nojento, mas aposto
que Patrick não vai se importar em lhe emprestar a jaqueta para que você
possa sentar.
- Prefiro ficar em pé – ela sussurrou, assustada pelo modo como Damian
falava com ela. Quase...carinhoso. – Como...De onde vocês se conhecem?
- Longa história – Louis deu de ombros – Não é por isso que estamos aqui.
- Por que vocês se preocupam comigo? – as sobrancelhas dela se uniram em
confusão, analisando toda aquela cena como um todo. Ela se sentia como
Alice na primeira vez em que tomou chá junto ao Chapeleiro Maluco e a
Lebre de Março. Totalmente perdida – Louis eu entendo, ou pelo menos acho
que entenderia até algum tempo atrás. Mas você e Patrick...
- Gosto de ajudar uma dama em perigo – Patrick aproximava-se, os olhos cor
de mel sempre presos aos dela – Já Damian...Acho que já está na hora de
começarmos nossa intervenção.
- Certo – o garoto sorriu para Louis, procurando por um incentivo em seus
olhos – Tenho uma pequena história para lhe contar, Ká.
- Estou ouvindo.
- Dezoito anos atrás, Angel Jones estava grávida. E Ellis O’Hare também – ele
agora olhava para o nada, os lábios fechados em uma linha fina.
Provavelmente a menção de sua mãe era uma ferida ainda aberta para Damian
– A diferença era de alguns meses e alguns milhares de dólares. Além de que,
claro, Angel tinha seu imaculado marido ao seu lado, enquanto Ellie teria que
criar seu bebê sozinha. Mas ambas tinham algo em comum – seu sorriso agora
era amargurado – O pai de suas crianças era o mesmo homem. Era uma noite
fria e o pastor Philip havia brigado com sua esposa. Alguma coisa sobre ele
não estar dando espaço para que ela levasse sua gravidez santificada do jeito
que ela queria. Então o maior nome de nossa comunidade dirigiu alguns
minutos até um bar fora da cidade, e tomou alguns drinks a mais. Ellie era
garçonete, e bom, alguma coisa nos olhos verdes e no jeito de bonzinho a
conquistaram. Acho que eu não preciso explicar o que aconteceu depois.
- Então você...e Harry...vocês...- Seu cérebro parecia entrar em curto-circuito
novamente. Informações demais a serem processadas. Sua respiração se
tornara ligeira demais, as mãos tremiam.
- Respire fundo, Karina. Com calma – Louis ordenou, interrompendo um novo
surto de palavras – Eu disse que ela ficaria assim. Calma.
- A história não acabou ainda. – Damian recomeçou, as mãos inquietas. – O
pastor nunca negligenciou a existência de seu outro filho. Ele sempre ajudou
com as despesas, e o levava para passear algumas vezes. Angel sabia,
também. Ela o perdoou, ‘em nome da familia’, mas desprezava o filho
bastardo, e idolatrava seu bebê. Sete anos se passaram. Ellie morreu em um
acidente de carro – Karina tinha certeza que Damian segurava as lágrimas – E
então o pastor Philip levou o menino para morar em sua casa. Disse a
comunidade que havia encontrado a criança perdida no meio da estrada. Sua
mulher tentava trata-lo decentemente, enquanto seu filho legitimo o odiava. A
única pessoa que gostava dele era a caçula da família. Angelina. Era o
seu ‘irmãzinho’. – Agora a cena que Karina vira na festa de aniversário
de Harry fazia sentido. Porque Damian e Angelina estavam tão próximos –
Era uma tarde de verão, extremamente quente, e os três filhos do pastor Jones
estavam a beira da piscina. O filho ilegítimo não sabia nadar, mas mesmo
assim Harry o desafiara a ir cada vez mais fundo. Até que ele começou a se
afogar. – Damian olhava agora diretamente nos olhos azuis de Karina, sua voz
cheia de dor – Se há uma cena em toda a minha vida que eu nunca vou
esquecer é aquela. Harry em pé na beira da piscina, assistindo enquanto eu
quase morria. Se Angelina não tivesse gritado por socorro e Angel não tivesse
me tirado de lá, eu não estaria sentado aqui com vocês. Alguns anos depois eu
não aguentei. Pedi pra sair daquela casa. E foi desse jeito que acabei indo
morar com os meus tios.
- Você está me dizendo que eu não devo ficar perto de Harry baseado numa
experiência ruim que teve com seu próprio irmão quando vocês dois eram
crianças? Foi puro ciúme, Damian! Você sabe Louis, você lembra como as
crianças no orfanato faziam isso o tempo todo.
- Eu avisei – Louis riu desgostoso, se voltando para Patrick que permanecera
quieto durante toda a história – Acho que agora é sua vez.
- Ok, vamos a parte legal da história. – ele bateu palmas, retirando um
envelope branco de dentro da jaqueta – Desculpe, Dam, eu estou super
emocionado com a sua história com o nosso querido amigo Harry, mas vamos
a parte que vai plantar uma dúvida na cabeça dessa coisinha linda aqui na
nossa frente.
Karina estava tonta. Sua cabeça doía, e ela ainda tentava digerir tudo o que
Damian havia lhe dito. Eles eram irmãos. Olhando agora para o seu rosto, ela
pode achar as semelhanças. A curva do nariz, o modo como as sobrancelhas
se levantavam involuntariamente e a testa quadricular. Os olhos verdes
deveriam ter sido herdados de sua mãe. Mas ele era um Jones,
definitivamente.
- Vamos lá Karina. Você reconhece essa pessoa? – ele puxou de dentro do
envelope uma foto do tamanho de uma folha de oficio.
- É claro. Esse é John.
- Ótimo! Nosso querido amigo John Mackenzie. Muitas multas por velocidade
e por perturbação do sossego público. Nada muito grave. E esse?
Era um homem de cabelo raspado e tatuagens no pescoço, olhos verdes
extremamente claros e um sorriso de canto de lábios. Karina nunca havia o
havia visto antes.
- Gustav Petrovik. Crimes do colarinho branco. Quatro anos na prisão.
A próxima foto mostrava um ruivo de olhos cansados e expressão rabugenta.
- Sebastian Duhamell. Ex-deputado indiciado por corrupção. Perdeu tudo que
tinha.
A última retratava um homem bonito, barba e cabelos aparados e azuis claro,
algo como uma tristeza oculta no olhar.
- E por fim, mas não menos importante, Ferris Flanagan. Brigas de bar,
desacato a autoridade e o artista dessa bela obra de arte – Karina não sabia se
estava mais desconcertada pelo abdômen definido de Patrick ou pelas marcas
roxas que se espalhavam pela lateral de seu corpo quando ele levantou a
camiseta branca que vestia. – O que todos eles têm em comum? Todos são
capangas do nosso amigão, Harry Jones.
- Capangas?
- Realizam os servicinhos sujos que ele não quer fazer. Cobranças.
Intimidações. Bater num cara só porque ele beijou uma menina bonita. Coisas
desse tipo – Patrick deu de ombros – Eles formam uma pequena gangue que
realizam serviços pra terceiros. Os magnatas pagam, e eles executam.
- Por que eu devia acreditar em você?
- Eu e Damian estamos investigando a um bom tempo. Imaginei que não fosse
acreditar só na minha palavra, mas são dois aqui provando isso.
-Eu...- ela começou, tentando não tropeçar em seus pés ao começar a se
movimentar para os lados, tentando afastar a tensão – O que vocês esperam
que eu faça? Termine com ele?
- Sim – Louis respondeu sinceramente, toda a força de seus olhos azuis
jogados em cima dela. – Mas sabemos que você não vai fazer. Não por
enquanto. Só queremos que tome cuidado. Não vá com ele naquela boate. Não
confie nele, Karina. Ele é perigoso. Não vale a pena.
- Preciso de um tempo – ela relaxou os ombros, os olhos cansados e o sorriso
desolado – Preciso de um tempo pra pensar em tudo isso e decidir o que fazer.
Eu...Posso encontrar com vocês aqui daqui algum tempo?
- É claro que sim, Ká – Damian sorriu calorosamente – Sempre vamos estar
aqui quando você precisar. É só chamar.
- Além disso, vai ser ótimo ter mais alguém por perto – Patrick riu – Eu estou
ficando cansado de toda essa tensão sexual acumulada, se é que você me
entende.
- Não...
Os olhos de Patrick se arregalaram em surpresa, a boca soltando uma
gargalhada divertida. Damian e Louis pareciam prestes a matar o garoto, cuja
reação fora exagerada demais para Karina.
- Você não sabe. Você não sabe mesmo. Todo esse tempo bem debaixo do seu
nariz e você nem reparou...
- Do que você está falando, exatamente?
- Nada – Louis cortou a resposta que ele daria a seguir – Patrick está sendo
idiota, como sempre. Você precisa ir agora. Precisamos discutir algumas
coisas. Em particular.
Karina concordou, querendo só ficar sozinha. Sozinha de verdade, em seu
quarto escuro, como há tempos não conseguia fazer. Antes que pudesse dar
meia volta e ir embora, Patrick a puxou pela mão, grudando seus corpos e
selando seus lábios num beijo rápido e quente. Quase cuidadoso. Quase com
significado. Quase.
- Só pra que você não esqueça que tem sempre outra opção, Ká.
Mas ela só conseguiu correr, fios de cabelo escapando do seu coque elegante,
mente confusa por todas as suas revelações e os lábios em fogo com a
lembrança do beijo de Patrick.

*I’m Glad You Came é um trecho de Glad You Came, da banda britânica The
Wanted: Estou feliz que você veio, numa tradução literal. (Eu recomendo que
vocês vejam essa versão. Estrelando o muso máximo de Holy Fool,
senhor Grant Gustin
*Rachel Berry é a protagonista do seriado Glee. A autora que vos fala sofre de
síndrome de Rachel Berry. É.

Capítulo 16 – Tears In Heaven


Três dias e sete minutos. Irmãos. Gangue. Tudo girava no quarto escuro. Não
haviam mais pôsteres nas paredes. Nada que lembrasse uma vida desregrada.
Todo o espaço cheirava a rosas e Chanel Nº5, e renda branca cobria os
espaços antes pintados de azul. Mas não havia mais luz. A única coisa que
predominava era um bater acelerado de um coração confuso.
Karina sentia falta de Harry , falta das suas mãos nas dele, de seus lábios a
beijando calmamente e do seu sorriso nada angelical. Mas ao mesmo tempo
tinha perguntas demais. Sentia raiva pelos segredos que ele escondera, já que
o mesmo parecia saber cada linha de sua vida. Não sabia o que fazer. Nunca
soubera, afinal. Desde o começo, estivera de olhos vendados naquela relação.
Era hoje de começar a enxergar os pequenos detalhes. Harry era o médico,
mas também era o monstro. E ela parecia amar ambos. Amar. Amor. Uma
palavra que deixava sua língua seca e enrolada, seu cérebro em paranoia e seu
coração ainda mais acelerado. Mas era a palavra certa, afinal. Não que ele
precisasse saber disso.
Patrick também a deixava confusa. Ele era misterioso, cheio de segredos,
talvez até mais do que Harry . Parecia jogar em vários times diferentes,
recolhendo informações úteis e as oferecendo por outras mais úteis ainda. Mas
o modo como ele a beijava conseguia lhe deixar de pernas bambas e lábios em
chamas. Era como se ele realmente gostasse dela. Como se escondesse
alguma coisa por baixo da máscara de playboy descolado que tanto apreciava
ostentar. Talvez realmente escondesse. Depois daquele tempo todo envolvida
com o filho do pastor, Karina aprendera que havia muito mais atrás de portas
fechadas do que ela pudesse imaginar.
Karina bufou, levantando-se de sua cama e tentando desamassar o vestido de
renda azulada. Não se preocupou em tentar arrumar o cabelo, não era
necessário. Ao menos não naquele dia. Era só mais uma quarta-feira qualquer,
mas ao menos não precisaria enfrentar a companhia de Angel e seus olhos
inquisidores. A matriarca dos Styles estava em alguma missão humanitária na
cidade vizinha. O fato de não tê-la arrastado consigo era surpreendente para os
padrões daquela mulher tão imprevisível e assustadora. Os seus planos para a
tarde consistiam então de um longo descanso no sofá, seguido de alguns dos
livros que ela não conseguira ler e uma boa xícara de chá. Descendo as
escadas com cuidado, a sua cabeça estava tão longe que ela não reparou Esma
e Rick parados no hall de entrada, mãos dadas e olhares preocupados.
- Ká , querida – Rick chamou, tão suave que ela quase não reparou. Mas logo
que prestou atenção em seus pais adotivos, ela pode ver as lágrimas se
acumulando nos olhos de Esma. Alguma coisa estava horrivelmente errada.
- Karina , meu amor – Esma a abraçou delicadamente, a voz abafada por
pequenos soluços – Eu sinto tanto querida, mas tanto.
- O que...?
- Você precisa ser forte, meu bem – Rick segurou uma de suas mãos, os olhos
cheios de tristeza – Carine ...
Então as palavras seguintes que ela ouviu foram devastadoras. Complicações.
Câncer no pâncreas. Morte. E o mundo ficou escuro novamente.

Era totalmente gelado, mas era quente ao mesmo tempo. A sala de estar dos
Kallister nunca esteve tão cheia, mas parecia extremamente vazia. Linda
estava inconsolável nos braços de sua mãe, o marido ao lado não menos
devastado. Vários conhecidos estavam ali, além de colegas de escola e
vizinhos. Esma e Rick conversavam com os pais de Alicia Loren. Karina
podia ver Damian encostado em uma das prateleiras repletas de livros, os
olhos verdes absolutamente grudados em Louis . Havia uma peça faltando ali,
mas ela não conseguia encaixar corretamente. No momento, a única coisa que
conseguia fazer era segurar mais forte o melhor amigo em seus braços, deixar
que suas lágrimas manchassem seu vestido negro. No momento em que ela
chegara, Louis somente rira, os olhos vermelhos e paranoicos, e começara a
balbuciar ‘Eles estão mentindo pra mim, Ká . Eles disseram...Eles são loucos
não são? Isso é um pesadelo, não é?’. Mas então ele desmoronara em
lágrimas, agarrando-se a garota como podia. Era a cena mais triste que ela já
havia visto, e naquele momento, Karina teve vontade de deixar que as
lágrimas rolassem também. Mas ela precisava ser forte. Por Louis . Ela devia
isso a ele, e devia isso a Carine . Sua pequena amiga de cabelos ruivos,
obcecada por alienígenas e defensora dos fracos e oprimidos. Sua
pobre Carine . Seu coração já não mais existia naquele momento.
- Pessoal, o pastor Philip acabou de ligar – A voz de Caleb estava tão
embargada que Karina não sabia como ele conseguia continuar falando. Ou
até mesmo em pé – Eles...Eles estão nos esperando no cemitério. Para o
enterro.
Karina pode sentir todo o corpo de Louis estremecer em seu abraço. Ela
somente beijou-lhe os cabelos, ajudando-o a se levantar vagarosamente. O
cemitério ficava apenas algumas quadras dali, então todos iriam a pé, como
um último desfile em homenagem a Carine . O caixão estaria os esperando no
portão, segundo Caleb. Louis não conseguia manter-se em pé, e Karina
sozinha não conseguiria carregá-lo. Silencioso como um fantasma, Damian
surgiu ao seu lado, passando o braço pela cintura do garoto e carregando a
maior parte de seu peso. Karina somente o abraçou pelo outro lado, e juntos
eles começaram a caminhar.
- Dam...- Louis sussurrou, a voz quase sumindo.
- Shh – ela pode ouvir Damian sussurrando em resposta – Eu prometo que vai
ficar tudo bem, Louis . Vai ficar tudo bem.
Ele acenou com a cabeça, voltando os olhos azuis para a rua em sua frente. Os
filmes retratavam dias de enterro como dias chuvosos, onde todos usavam
guarda-chuvas negros e pesados casacos. Mas naquele dia o sol brilhava em
um céu azul demais. Era um dia lindo, daqueles em que Carine gostaria de
estender uma manta sobre a grama verde e passar horas e horas contando
histórias, apontando para nuvens engraçadas e identificando extraterrestres
nos mínimos movimentos de insetos nos arbustos. Abraçando-se mais forte ao
seu melhor amigo, Karina deixou que a dor a corroesse internamente.
O portão enferrujado do cemitério da cidade estava lotado de pessoas
lamentando a perda de uma das estudantes mais queridas da grande escola
pública dali. O caixão que os aguardava era branco, mas estava coberto pelo
milhares de lenços coloridos que Carine colecionava. Karina sabia que ela
teria preferido aquilo aos caixões de madeira tradicionais. Era chegada a hora.
Alguns dos parentes dos Kallister carregavam o ataúde deCarine , enquanto
Linda e Caleb tentavam caminhar logo atrás deles. Na fileira seguinte vinham
Damian, Louis e Karina , o resto da cidade as suas costas. Deram alguns
passos em silêncio, antes que Damian começasse a cantar, em sua voz
surpreendentemente bela, uma das canções favoritas de Carine .

When she was just a girl


(Quando ela era apenas uma garota)
She expected the world
(Ela tinha expectativas com o mundo)
But it flew away from her reach
(Mas isso voou além de seu alcance)
So she ran away in her sleep
(Então ela fugiu em seu sono)

Então Karina se lembrou se uma conversa que haviam tido anos atrás, num dia
qualquer no quintal dos Kallister, os três amigos rindo ao redor de uma garrafa
de chá gelado e seus planos para o futuro. E então o assunto surgira do nada,
como um clarão inesperado, e ela lembrava das palavras de Carine . Cada uma
delas. ‘No dia em que eu morrer, eu não quero que as pessoas chorem. Eu
quero que elas cantem, e se lembrem de como a vida é importante e breve.
Não quero que ninguém esqueça de ser feliz. E claro, se alguns Luminatix
quiserem aparecer, seria ótimo’. Karina não sabia o que eram os ditos
Luminatix, mas sabia que aquela era a melhor homenagem que poderiam fazer
a ela. Com o coração na garganta, ela seguiu a multidão que havia se juntado
ao coro de Damian. Até mesmo Louis parecia fazer algum esforço para
acompanhar.

And dreamed of para-para-paradise


(E sonhou com o para-para-paraíso)
Para-para-paradise
(Para-para-paraíso)
Every time she closed her eyes
(Toda vez que ela fechava os olhos)

When she was just a girl


(Quando ela era apenas uma garota)
She expected the world
(Ela tinha expectativas com o mundo)
But it flew away from her reach
(Mas isso voou além de seu alcance)
And bullets catch in her teeth
(E balas foram pegas com seus dentes)

Uma mão fria e macia segurou a sua, e Karina não precisava olhar para o lado
para saber quem era. Reconheceria a textura da pele de Harry mesmo entre
milhares de outras, o perfume amadeirado a envolvendo mais uma vez.
Pegou-se o observando, procurando alguma força para que conseguisse chegar
até o final daquilo. Ele vestia uma camisa preta de botões e havia uma rosa
branca em sua mão livre. Quando o filho do pastor retribuiu seu olhar, ela
soube. Karina viu naqueles olhos verdes que Harry não estava ali para manter
as aparências, para prestar o papel de namorado preocupado diante daqueles
que os cercavam. Pela primeira vez, ele estava ali porque sabia que era
importante pra ela. Porque sabia que ela estava sofrendo. Quando Karina se
agarrou a sua mão mais fortemente, pode ver pela visão periférica que ele
cantava junto.

Life goes on, it gets so heavy


(A vida continua, fica tão pesada)
The wheel breaks the butterfly
(A roda corrompe a borboleta)
Every tear, a waterfall
(Cada lágrima, uma cachoeira)
In the night, the stormy night, she closed her eyes
(Na noite, na noite de tempestade, ela fechou os olhos)
In the night, the stormy night, away she flied
(Na noite, na noite de tempestade, ela voou para longe)
And dreamed of para-para-paradise
(E sonhou com o para-para-paraíso)
Para-para-paradise
(Para-para-paraíso)

Ver o caixão descendo fora sem dúvidas a cena mais dolorosa de todas. Louis
estava agora ajoelhado na grama verde como esmeralda, as lágrimas
escorrendo incansavelmente por seu rosto, Linda e Caleb abraçados a ele
protetoramente. Karina sabia que só continuava de pé por causa do abraço
de Harry , apertado ao redor de seu corpo. Damian estava ao seu lado, e por
um estranho instinto, ela não pode deixar de pôr uma de suas mãos nos
ombros do garoto, apertando-o levemente. A maneira que os olhos dele se
fecharam longamente e depois encontraram os dela era um agradecimento
claro. Então ali, cercada pelos irmãos Styles , Karina viu as primeiras pás de
terra cairem sobre o caixão, até que a cova fosse toda preenchida, um tapete
de grama a cobrindo.

Still lying underneath the stormy skies


(Ainda deitada debaixo do céu tempestuoso)
She said oh-oh-oh-oh-oh-oh
(Ela disse oh-oh-oh-oh-oh-oh)
I know the sun's set to rise
(Eu sei que o sol está pronto para nascer)
This could be para-para-paradise
(Isso poderia ser o para-para-paraíso)
Para-para-paradise
(Para-para-paraíso)

O pastor Philip depositou um retângulo de pedra cinza sobre a grama fofa,


repleta de inscrições sobre Carine . Filha, irmã, amiga. E outras palavras que
deixavam os olhos de Karina nublados. As palavras que o pastor agora
recitava não entravam em seus ouvidos. A única coisa em que conseguia
prestar atenção era a lápide. Porque no momento em que ela fora colocada ali,
aquilo se tornara real. Carine se foi. Carine se foi e nunca mais voltaria. Não
haveriam mais duetos improvisados, nem noites do pijama repletas de
segredos, nem o sorriso brilhante que ela gostava de ver estampado em seu
rosto. O mundo escurecia e voltava à tona, e Karina sabia que não estava bem.
Que cairia a qualquer momento. Mas tudo o que ela queria era que aquilo
fosse um pesadelo. Uma grande brincadeira de mau gosto produzida por seu
subconsciente. A qualquer momento ela acordaria em sua cama, o sol batendo
em seu rosto e Carine e Louis lhe buscando para mais um dia de aula. Mas ela
precisava parar de se iludir. A realidade era assustadora, mas precisava ser
encarada de frente.
Sentiu-se grata quando o pastor terminou seu discurso, mas e agora? O que
faria agora? Harry beijou-lhe os cabelos, antes de colocar a rosa branca que
trazia consigo na mão fria e macia da garota. Sabia que ele estava logo atrás
dela quando a garota dera alguns passos para frente, beijando as pétalas da flor
antes de depositá-la gentilmente ao lado da lápide. Alguns outros fizeram o
mesmo, flores de todos os tipos e cores, deixando o lugar colorido e
perfumado. Era melancolicamente belo. Devastadoramente único.
Aos poucos as pessoas foram se afastando, voltando para seu luto em suas
próprias casas. A família Kallister permanecia ali, do mesmo modo, e
ninguém ousava tira-los de sua bolha naquele momento. Karina não se
lembrava do caminho até sua casa. Lembrava-se de Rick e Harry carregando-a
para fora do cemitério, Esma logo atrás junto à família Styles . Damian
parecia ter sumido entre a multidão, mas ela não o culpava. Não esperava que
ele fosse ficar muito tempo ali, não com Harry por perto. E os minutos depois
eram borrões nada coloridos em sua memória.
Dirigiu-se diretamente ao seu quarto quando as duas famílias chegaram à casa
dos Dawson. Ninguém a questionara. Caminhou sem rumo até chegar ao seu
banheiro iluminado, sabendo que não seria incomodada ali.Karina não
conseguia registrar bem os acontecimentos, não sabendo exatamente o que
estava fazendo. Tudo que ouvia era o bater calmo de seu coração. Como havia
parado embaixo de seu chuveiro ligado, o vestido preto ainda grudado em seu
corpo, ela não fazia ideia. Mas era quente e confortável, como deveria ser um
abraço de alguém que se ama. Por mais que a vontade de chorar fosse grande,
as lágrimas não vinham. A garota permanecia ali, sentada no chão gelado do
banheiro, estática, a água caindo sobre seus cabelos.
A passagem do tempo era um fato secundário. Poderiam ser minutos,
poderiam ser horas. Karina não estava interessada em saber. Não se importava
com os dedos enrugados e os cílios pesados. Naqueles instantes ela não era
nada além de uma concha vazia. Nada além de um corpo sem alma. Ouviu os
passos do lado de fora, mas não se importou. Não se importava com nada.
Continuou ignorando, mesmo no momento em que a porta de madeira branca
foi aberta e Harry deslizou para dentro do banheiro.
O filho do pastor a encarou por alguns segundos, nos olhos verdes algo que
ela não conseguia entender naquele momento. Poderia ser qualquer coisa. Mas
logo passou, e ele voltara a caminhar. Em direção a ela. Harry não se
importara com o chuveiro derramando água sobre ambos quando a levantou,
somente para abraçá-la firmemente em seguida. Ali, nos braços de Harry , a
cabeça escondida na curva de seu pescoço, ela finalmente chorou. Anos e anos
de lágrimas guardadas para si escaparam, soluços atingindo em cheio sua
garganta. Ele somente a apertara mais contra si, sussurrando palavras em seu
ouvido, deslizando as mãos por seus cabelos.
Poderia ter sido pela eternidade, só os dois ali, presos num pequeno box
extremamente frio, Harry tentando consolá-la. Quando as últimas lágrimas
finalmente caíram, o garoto pegou-a no colo, tirando-a daquele lugar. Os dois
pingavam quando ele a depositou gentilmente sobre a cama macia, um gemido
sofrido escapando da garganta de Karina quando ele se afastou. Mas não foi
por muito tempo. Logo uma de suas toalhas azuis cobria o corpo encharcado
da garota, e não houve oposição quando Harry começou a seca-la
cuidadosamente. Em um dia normal Karina teria achado a situação
absurdamente estranha. Mas naquele dia, ela só ficou grata. Grata por não ter
que pensar, grata por não ter que tomar conta de si mesma. Também não
houve constrangimento quando ele começou a despi-la das roupas molhadas,
muito menos segundas intenções mascaradas. A única ação do filho do pastor
fora deslizar uma camisola seca sobre o corpo da garota, depois de retirar o
excesso de água de seus cabelos. De nada adiantaria secá-los agora. Fazendo-a
deitar, ele a cobriu com um cobertor fino que se encontrava na beirada da
cama. Usando da mesma toalha de Karina para secar-se, Harry retirou a
camisa e a calça, permanecendo em suas boxers negras. Ocupando o lado
oposto da cama, ele infiltrou-se debaixo do cobertor, puxando o corpo
de Karina para junto do seu.
Não houveram palavras. Somente os olhos verdes mergulhados nos pretos, e
vice-versa. Um entendimento silencioso entre ambas as partes. Mas o corpo
da garota implorava por descanso, e suas pálpebras já não a obedeciam. Harry
trouxe-a para mais perto, deitando a cabeça dela em seu ombro, acariciando
seus cabelos sem pressa. Ela queria tanto dormir, mas sua cabeça estava cheia
demais. As lágrimas ameaçavam constantemente voltar, e ela temia
sufocar Harry em seu abraço, mesmo sabendo que isso era impossível.
Mas então uma canção conhecida fora sussurrada em seu ouvido, e ela sabia
que estava segura, que nada a alcançaria ali, que mesmo a dor algum dia lhe
deixaria. Fechando os olhos suavemente, ela desligou-se do mundo ao ouvir a
estrofe que fazia seu coração parecer inteiro novamente:

And I'd give up forever to touch you


(E eu desistiria da eternidade para tocá-la)
Cause I know that you feel me somehow
( Pois sei que você me sente de alguma forma)
You're the closest to heaven that I'll ever be
(Você é o mais próximo do paraíso que chegarei)
And I don't want to go home right now
(E eu não quero ir para casa agora)

*Tears In Heaven é uma das músicas mais lindas da história, escrita e gravada
por Eric Clapton em homenagem ao seu filho Conor, que morreu aos quatro
anos após cair de uma janela de um apartamento no 53º andar:Lágrimas No
Paraíso
*A canção do capítulo é Paradise, da banda britânica Coldplay (também
conhecida como uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos)
* E, reaparecendo nesse capítulo, temos um pequeno trecho de Iris, do Goo
Goo Dolls. Todo mundo lembra dela do capítulo 7? Espero que sim.

Capítulo 17 - It's Always Darkest Before The Dawn (Looking For Heaven,
Found The Devil In Me)

A noite é traiçoeira, a noite é perigosa. Toda vez que o manto noturno cobre
cada pedaço do planeta, anjos e demônios tomam conta do lugar. Porque é na
calada das madrugadas que a mente se torna um lugar fácil de navegar, onde
decisões parecem simples e medos mais intensos. Onde a consciência torna-se
nada mais do que uma balança, cada minuto do dia anterior pesando de um
modo diferente na conta final. O arrependimento é agridoce, é uma nuvem de
confusão em meio a um céu claro de certezas. E sob o testemunho da lua e das
corujas pardas da meia-noite, não há argumento que pareça suficiente. Há
somente um coração morno e uma cabeça destruída por anos e anos de
crenças que começam lentamente a ser questionadas.
As luzes fluorescentes do posto de gasolina permaneciam acesas em meio a
escuridão, mesmo que não houvesse ninguém em seu interior. O seu tão
jovem proprietário preferia um lugar mais calmo e gelado, mais macabro e
desafiador. Como o meio da rodovia. Harry permanecia deitado no meio da
estrada, exatamente em cima das linhas amarelas que a dividiam, os braços
abertos como em redenção. Sua situação o lembrava de alguma cena de The
Vampire Diaries que ele havia pegado Angelina assistindo alguns dias atrás.
O que sua querida mãe diria se soubesse que seus dois filhos não seguiam suas
regras estritamente severas? Harry riu, alto e seco. Pro inferno com sua mãe!
Pro inferno com sua merda de vida. As chances de um simples caminhão
resolver aparecer por ali naquele momento eram remotas, mas o garoto
mantinha alguma esperança. Diferentemente deDamon Salvatore, ele não era
um maldito vampiro. O fato de sua vida não ser nada além de uma chama de
vela prestes a ser apagada era agradavelmente reconfortante.
Ele se lembrava de cada uma das horas anteriores, embora preferisse apagá-las
de sua mente com algum tipo de Jack Harrys* preparado com algumas gotas
do Rio Lete*. Lembrava-se da conferência de sacerdotes extremamente
entediante da qual fora obrigado a participar, porque por algum motivo bizarro
o pastor Philip parecia acreditar piamente que seu filho pródigo seguiria seus
passos pelo caminho abençoado. Mas antes mesmo que seu pai pudesse
mencionar as palavras certas, o garoto já não estaria mais ali. Sumiria no
mundo. Faltava só mais um pouco, só essa última tarefa...Tarefa essa que
começava a parecer pesada demais, complicada demais. Como no momento
em que o celular do pastor tocara no meio de uma das palestras.
Todas as cores passaram pelo rosto de Philip. Todas as emoções, a tristeza, a
pena e a dor. E então a noticia. Carine Kallister havia falecido em decorrência
de um câncer no pâncreas. Mas Harry mal ouviu as explicações de seu pai,
algo sobre o porquê de uma família judia pedir a um pastor evangélico para
realizar o enterro. Algumas palavras sobre um rabino ausente e a preocupação
de Linda em não submeter a filha aos antigos costumes judaicos, o que só
teria prolongado o sofrimento de todos, além de os gêmeos terem sido
batizados no antigo orfanato onde residiram previamente. Harry não registrou
nada disso. Seus pensamentos estacionaram emKarina. Karina e seus grandes
olhos azuis, olhos que ele sabia que doeria ver cheios de tristeza. Karina que
havia perdido aquela que considerava sua irmã. Karina sozinha em sua dor.
E então seu cérebro se tornou nada além de poeira espacial, quando pela
primeira vez em anos Harry não planejou cada ação seguinte, cada pequeno
momento do dia. O mundo acelerava sob seus pés, ou talvez fosse somente o
garoto correndo mais rápido na direção dela. Seu pai não havia exatamente
ajudado com as suas palavras. “Karina desmoronou, Hazza. Você sabe que
precisa estar lá por ela, não sabe?” Ele lembrava de ter concordado
vagamente, ignorando todo o resto de tentativa de conversa que Philip se
empenhava em impor. O tempo em que o pastor fora seu herói havia passado,
quase como séculos atrás. O homem ao seu lado agora não lhe inspirava nada
além de repulsa.
Comprou uma rosa branca qualquer na floricultura junto ao local onde
deveriam buscar a lápide de Carine. Filha, irmã, amiga. Um arrepio
escorregou por sua espinha quando ele se deu conta de que era a irmã
de Louis Kallister que estava sendo enterrada, mas podia ser a sua. Angelina
era irritante como o inferno, mas era uma pessoa que o compreendia. Angelina
lhe apoiava. A morte era engraçada, quando não se fazia parte dela. Quando o
coração de alguém já não mais bate, isso te faz pensar. Sua vida não passa do
clichê de um filme diante dos seus olhos. E por algumas horas, você dá valor
aqueles que te rodeiam. Até que o mundo real te chama para brincar
novamente, e você se lembra porque seu coração é rodeado por trevas.
Havia uma multidão no cemitério, mas mesmo assim seus olhos verdes a
encontraram. Os longos cabelos pretos brilhavam no sol da tarde, e Karina
parecia mais velha em seu vestido de renda negra. Louis e Damian O’Hare
caminhavam ao seu lado, e Paradise era entoada por todas as vozes presentes.
Mas não importava. Quando ele segurou a mão dela, ele sabia que se
arrependeria. Quando os olhos azuis encararam os verdes,Harry sabia que o
arrependimento poderia ser adiado por mais algumas horas.
As horas passadas na sala de estar dos Dawson foram talvez as piores que ele
já houvesse encarado em sua curta vida. Enquanto Esma e Angel fantasiavam
cerimônias de casamento e vestidos de noiva, Karina estava trancada em
algum lugar no andar de cima, alheia aos preparativos adiantados demais que
as duas mulheres faziam. Philip e Rick pareciam disputar a quinquagésima
rodada de xadrez daquele dia, enquanto Angelina cochilava no tapete felpudo
que cobria a maior parte do assoalho. O relógio tiquetaqueava lento demais.
Outra xícara de café, pratos de bolo distribuídos a uma certa altura, e a
vontade avassaladora do filho do pastor de dar um murro na parede cor de
creme. Até que as palavras certas saíram da boca de sua mãe. ‘Harry, meu
bem, acho que você deveria passar a noite aqui, se Esma e Rick concordarem,
é claro. Caso alguma coisa aconteça a Karina durante a madrugada, você
estaria perto para confortá-la’. A matriarca dos Dawson aceitou energicamente
a ideia, não levando nada mais do que dois minutos para arrastar Angel a fim
de arrumar o quarto de hóspedes. A confiança daquelas famílias de que ambos
eram obedientes o suficiente para permanecerem em seus respectivos
dormitórios beirava o ridículo. Porque quando os Styles se despediram e as
luzes da casa se apagaram, o filho do pastor esgueirou-se até o cômodo azul
que ele tão bem conhecia.
Agora, deitado naquela rodovia e encarando o céu negro como um reflexo de
sua alma conturbada, tudo parecia distante, uma mera lembrança, embora suas
roupas permanecessem úmidas, não só pela água insistente do chuveiro, mas
pelas lágrimas sofridas de Karina. Harry sorria amargurado, a mão direita
apontada para a própria testa como um revólver.
- Pow – ele fingia disparar, falando sozinho como um lunático qualquer –
Morra, grande idiota. Ela é só uma maldita garota. Outra qualquer. Nada além
de um obstáculo no caminho da vitória.
Mas havia uma vozinha no interior de sua cabeça, um sussurro que ele tentava
combater há dias, e que ganhava força a cada minuto de viagem dentro de sua
mente insana, que lhe dizia coisas perigosas. Coisas como Mas ela é Karina.
- Karina – Harry bufou, como se pronunciar o nome dela machucasse –
Espero que você apodreça no inferno.
Um celular tocou, uma, duas, três vezes, quebrando o silêncio quase espectral
que o envolvia. O garoto tentou ignorar, fingir que não ouvia. Tudo que ele
não precisava no momento eram mais problemas. Descobre-se que o mundo é
um lugar injusto quando já não é mais possível nem martirizar-se em paz.
Praguejando em voz alta o suficiente para espantar algumas corujas
curiosas, Harry atendeu, a voz arrastada e nervosa de Sebastian sussurrando
do outro lado da linha:
- Inferno, onde você se enfiou? Greenfield está aqui. Quer falar com você.
Agora.
- Puta merda, mais essa agora? – Harry resmungou, uma das mãos
massageando as temporãs com força – Me dê cinco minutos.
Era chegada a hora, afinal. A realidade lhe abraçava, convidando-o a brincar
com seus tentáculos frios, abrindo seus olhos para coisas que ele não queria
ver. Levantando-se vagarosamente, o filho do pastor deixou seus olhos verdes
fitarem o caminho a sua frente. Lembrou-se de uma canção que Karina havia
cantado durante um de seus devaneios momentâneos, onde ela desligava-se do
mundo por alguns minutos. “A estrada é longa, e nós continuaremos, tente se
divertir nesse meio tempo”*. Quanta ironia. Alguém lá em cima deveria estar
se divertindo muito com a piada que era sua vida. E com esse pensamento
feliz, Harry deu as costas a paisagem, preparando-se para a dor de cabeça que
teria a seguir.

A Sonic Underground estava estranhamente calma naquela noite, as pistas


vazias e os holofotes apagados. Não havia música nos alto falantes, e a meia
luz atrapalhava a visão mais do que o normal. Prostitutas e strippers limpavam
mesas de madeira e carregavam copos sujos de cerveja até a cozinha, usando
seus saltos estratosféricos e lingeries de renda. Mais um fim de noite qualquer,
com tocos de cigarro por todos os lados e manchas de sangue e outros fluídos
corporais em certos cantos estratégicos. Aquele lugar sempre cheirava a noz
moscada, álcool, suor, nicotina e outras coisas ilegais, ou não. Atrás da imensa
bancada que formava o bar, Kitty ajudava um garçom de cabelos vermelhos a
organizar centenas de garrafas coloridas. E sentada em um dos altos bancos de
vinil, uma loira de olhos verdes sorria luxuriosa.
Megara tinha cabelos curtos e repicados, cada fio cor de ouro cuidadosamente
penteado, iluminando seus olhos verdes como esmeraldas. O rosto era
delicado, lábios cheios e rosados em contraste com o nariz fino. Usava calças
de couro e longas botas negras de salto, os seios comprimidos num corpete de
seda preta com alças finas. Batendo palmas infantilmente, sua voz aguda e
empolgada gritou alto suficiente para que todo salão ouvisse:
- Hazza! Meu bebê!
Harry sorriu cauteloso para mulher em sua frente, as mãos nos bolsos da calça
de alfaiataria. Lembraria de Megara pelo resto da eternidade. Fora sua
primeira mulher, tanto tempo atrás, embora naquela época tivesse cabelos
longos e muito menos classe em seus trajes de prostituta. Encantara-se
instantaneamente pelas pernas longas e a risada sensual. Foram muitas as
noites compartilhadas no escritório subterrâneo, quentes e ofegantes, mas
aquele tempo havia passado. Greenfield havia aparecido na vida dos dois, e
por mais bizarra que a ideia parecesse, o homem desenvolvera uma obsessão
por ela. Jóias, roupas caras, apartamento no centro da cidade. Nada era muito
para sua preciosa. Megara era agora a primeira dama do mal, balançando aqui
e ali seus quadris desenhados e o nariz empinado. A mulher pulou em seu
pescoço sem cerimônia, Harry carregando-a pela cintura. Megara beijava cada
pedacinho do rosto do garoto, rindo histericamente no intervalo, as mãos
agarrando os cabelos castanhos.
- Senti tanto sua falta, bebê! Você está tão crescido, tão sexy! Aposto que nem
lembra mais dessa idosa aqui.
- Não diga besteiras, Meg – ele beijava o pescoço alvo e comprido dela,
apertando o corpo macio contra o seu próprio – Te esquecer é impossível, e
você está melhor do que nunca. Parece que Greenfield sabe como tratar uma
dama.
- O momô te contou? Nós vamos nos casar! – ela balançou a mão direita na
frente dos olhos verdes, onde um anel delicado abrigava um gigantesco
diamante – Vou ser oficialmente a Sra.Greenfield.
- O que sexo de graça todas as noites não faz, não é? Greenfield casando.
– Harry parou, pensativo – Isso é realmente algo que eu nunca poderia
imaginar. E você vai virar dona de casa! Trágico. Mais trágico ainda o fato de
que eu não vou mais poder fazer isso.
Bocas urgentes se chocaram, saudosas e ansiosas. Megara não hesitou em
partir os lábios, dando passagem para a língua quente de Harry. Em outros
tempos, ele teria ficado extasiado, enlouquecido pela experiência de anos da
garota de programa e seus beijos quentes e sedutores. Mas cada vez que ela
exigia mais dele, que as línguas dançavam em total falta de sincronia, algo
parecia errado. Era um beijo seco, truncado, sem gosto. Era um beijo sem
alma. Mesmo quando a mulher mordeu seu lábio inferior, desabotoando a
camisa negra lentamente, tudo aquilo pareceu estranho. Suas unhas vermelhas
arranhavam o pescoço do filho do pastor, palavras desconexas sussurradas ao
seu ouvido. Mas ele só queria que aquilo acabasse logo. Que Megara
desistisse de tentar arrancar suas costas a todo custo.
- Eu preciso ir – ele tentou quebrar tudo aquilo com um selinho demorado,
mas a loira não parecia desistir tão fácil – Greenfield está esperando por mim,
e não acho que nosso amigo vai gostar de ver a noiva agarrada a um
subordinado.
- Você sabe que o momô não se importa. Vamos, tenho uma amiga que pode
nos emprestar um quarto – ela tentava recapturar os lábios do garoto a todo
custo – Pelos velhos tempos, Hazza! Minha despedida de solteira antecipada.
- Vai ficar para a próxima – largou-a rapidamente, reabotoando a camisa sobre
o peito – Mas foi bom te ver de novo, Megs.
- É a menininha, não é? – Megara riu alto, penteando os cabelos loiros com as
mãos – A menininha que o momô quer que você traga pro nosso lado. Ela está
te deixando cansadinho? Ela parece tão sem graça, Hazza, como você
consegue beijar aquela garota?
- Não fale de Karina, Megara. Não ouse – A voz dele subiu uma oitava, a
postura endireitou-se rapidamente. – E não interfira nos negócios de seu
noivo. Ele não vai gostar de saber que você está metendo o narizinho onde
não é chamada. Agora, se você me der licença.
Deu as costas para a mulher, passos longos em direção ao escritório. O
que diabos havia acontecido? Harry não fazia ideia. Aquilo não era normal,
era doentio. Ele estava ficando doente, enlouquecendo aos poucos. Quando,
em toda sua vida, pode imaginar que um dia diria não para Megara? Megara,
a mesma mulher pela qual deixou de realizar negócios importantes, só por um
pouquinho da atenção dela. Surreal era a melhor palavra. Enquanto
atravessava o corredor repleto de teias de aranha, repreendia-se, pela milésima
vez naquela noite. Mas estava acabando. Estava tão perto do fim...
A porta de alumínio abriu-se com um estrondo. Jogado em um dos sofás de
couro marrom, havia um homem de cabelos muito castanhos e encaracolados
penteados para trás, um sorriso maníaco nos lábios e um brilho enlouquecido
nos olhos muito verdes. Greenfield folheava o arquivo 737, ignorando
veementemente cada palavra que saia dos lábios de um ainda mais pálido
Sebastian. Gustav observava a cena afastado, descascando a tinta vermelha
das paredes com uma pequena faca de cabo dourado. Pigarreando, Harry abriu
seu melhor sorriso sarcástico para os presentes.
- Ora, ora, ora. A Bela Adormecida finalmente resolveu acordar e juntar-se a
nós nesta noite tão agradável. Dormiu bem, Harry? – Greenfield indagou,
erguendo as sobrancelhas em deboche.
- Diga-me você, meu caro amigo. Não é fácil relaxar com uma garota chorosa
deitada no seu ombro – Arrancou Sebastian da grande poltrona de couro que a
ele pertencia por um puxão no casaco, sentando-se em seu lugar em seguida.
- Sei, sei. Seu assistente com tendências depressivas me contou que a melhor
amiga de Karina morreu – o homem gesticulou, apontando para o ruivo que
agora sentava-se no sofá oposto, olhos sempre no chão – Isso atrapalha nosso
plano de alguma maneira?
- De modo algum – Harry deu de ombros, girando uma caneta entre os dedos
longos – Pra ser bem sincero, acho que até deixou as coisas mais fáceis. Não
que eu esteja feliz pela morte de Carine. Ela era uma garota legal.
- Uhm, claro – ele fechou o arquivo em seu colo, as mãos finas e brancas
cruzadas sobre seu colo – Sebastian, por que você não se faz útil e me traz um
copo de whisky? Com gelo, por favor – Ódio e desprezo se misturavam no
rosto do homem ao ouvir as palavras de Greenfield. Sebastian odiava ser
menosprezado daquela maneira. Em silêncio, deixou a sala, não sem antes
jogar um olhar pedindo auxilio a seu chefe- Então, meu caro Harry...Quanto
tempo mais você vai ficar brincando de casinha com a nossa amada Karina? O
tempo não para e paciência não é uma virtude que me foi atribuída.
- Você a queria fragilizada, não queria? Submissa a alguém que poderia lhe
dizer as palavras que fossem convenientes a você. Me atrevo a dizer que sou
essa pessoa – Harry sorriu. – O que me faz ter cumprido a primeira parte do
serviço. Você pode acertar a conta com Gustav depois – gesticulou na direção
do amigo, os olhos sempre fixos em Greenfield – Posso trazê-la a você a hora
que desejar...Contanto que me conte o que pretende fazer. Sei da sua vingança
e do que fez no passado, essa história já me foi contada um milhão de vezes.
Só preciso saber para que exatamente você precisa de Karina.
- Por que, Harry? – Greenfield riu, a expressão maníaca voltando a seu rosto.
Bipolaridade devia ser apenas um dos distúrbios que aquele homem sofria –
Se apegou a menina? Tem medo de que ela se machuque? De quesofra? Se
você sabe a historia, deve concordar comigo. Vou fazer um grande favor
a Karina. Ela não os perdoaria de qualquer jeito...
- Eu só acho... – o garoto engoliu em seco, incerto de suas palavras – Já se
passaram 20 anos, Greenfield. A morte de Àgatha já não foi suficiente para
você?
- Ela era só uma criança... – Foi a primeira vez que Gustav falou, atraindo a
atenção dos dois homens – Uma criança que não tinha nada a ver com sua
história...
- Agora me escutem bem, pirralhos – Greenfield levantou-se num pulo,
afrouxando a gravata azul-escura que usava sobre o terno italiano cinza.
Apoiou as mãos na mesa de Harry, o canto dos lábios tremendo em puro
estado de loucura – Não pago a fortuna que pago pela opinião de vocês. Pago
por resultados. Então calem a merda da boca e trabalhem. Ágatha morreu,
sim. E aquilo foi pouco perto de tudo que eu passei. A única maneira de
vingar a morte de uma alma é trazendo a morte de um corpo. Marque um dia
dessa semana para começarmos a intervenção, Harry. Aguardo seu recado.
Greenfield deixou a sala, batendo a porta de alumínio com uma força
desnecessária. O silêncio instaurou-se, constrangedor, ambos digerindo as
informações e ordens impostas a eles. Harry voltara a massagear suas
temporãs, uma dor de cabeça começando a se instalar rapidamente. Gustav
deu um tapinha solidário em suas costas, sentando-se no sofá pesadamente.
- Onde nós fomos nos meter, Styles? Isso é problema, e dos grandes.
Afundamos tanto que estamos nos associando a criminosos procurados. Se a
policia descobre, estamos fodidos. – O homem passava as mãos pela cabeça
raspada, uma ruga de preocupação entre as sobrancelhas – Você já cumpriu a
primeira parte, não é hora de cair fora?
- Se cairmos fora agora, saímos daqui direto para a cova. – o filho do pastor
riu, amargo – A vontade, mas eu ainda tenho muito pra viver. O mundo pra
conhecer. Além disso, ainda me resta um pouco de consciência.Karina não
significa nada para mim, mas não é por isso que a quero ver machucada. Ou
morta. – um arrepio passou por toda sua coluna com a simples ideia da garota
em seus braços, sem vida, sem brilho nos grandes olhos castanhos – A policia
não vai ser envolvida. Vai dar tudo certo.
- Rezo todos os dias para que você esteja certo.
- Só faça isso longe de mim. Eu preciso ir. – ele fez pequenas anotações numa
folha qualquer, penteando os cabelos com as mãos em seguida – Ainda tenho
uma garota em crise para consolar.
- Boa sorte.
- Sorte é o mínimo que vou precisar.
Deixando Gustav sozinho no escritório de paredes escarlates, Harry sabia que
precisaria enfrentar a noite outra vez. A diferença agora é que não sabia que
tipos de desafios encontraria assim que colocasse os pés pra fora da Sonic
Underground.

A porta permanecia exatamente do mesmo jeito que Harry a deixara:


destrancada. Andava devagar e discretamente, como uma raposa prestes a
atacar sua presa mais indefesa. Até mesmo a antiga escada de madeira que
rangia impiedosamente durante o dia, silenciou-se sob as solas do sapato do
filho do pastor. O corredor num breu infinito, tão calmo que era possível ouvir
as respirações tranquilas de Esma e Rick no quarto mais ao sul. Mas só uma
porta lhe interessava.
Karina estava encolhida sob o cobertor azul claro, os cabelos ainda molhados
e a expressão serena. Harry chutou os sapatos e as meias, desabotoando a
calça no caminho. Livrou-se dela e de sua camisa ao chegar no lado oposto ao
da garota, infiltrando-se pela segunda vez em poucas horas na cama macia
daquela que parecia dormir profundamente. Mas só parecia. No momento em
que o filho do pastor abraçou-a pela cintura, puxando-a para si, Karina abriu
os imensos olhos azuis, totalmente inchados e sonolentos, dúvidas incontáveis
atravessando cada músculo de seu rosto tão jovem. Um sorriso quase
imperceptível passou pelo rosto do garoto, que lhe acariciava os cabelos com
a mão livre.
- Oi – Harry sussurrou, baixo o suficiente para que não passasse de um sopro
direto nos lábios de Karina.
- Oi.
- Como você está?
- Ugh – ela gemeu baixinho, escondendo-se na curva do pescoço perfumado
de Harry – Não foi somente um pesadelo, foi? Tudo
aconteceu. Carine...Carine se foi.
- Receio que sim, meu bem. – abraçou-a mais firme, deslizando a mão pelos
longos cabelos pretos – Sinto muito.
- Sente?
- Claro que sim – sua voz soou até um pouco ofendida – Posso ser um
canalha, um cafajeste, o que você quiser. Mas eu não sou totalmente sem
coração, Ká.
- Amar dói, Harry – a garota levantou a cabeça o suficiente para poder encarar
os olhos verdes tão brilhantes – Amei os desgraçados que foram meus pais
biológicos, e eles se mataram na primeira oportunidade. Rick e Esma, eles
amaram a filhinha deles, e ela foi morta quando era tão criança...Amei Carine
como uma irmã e ela se foi. Amo você, e você nem mesmo está aqui.
Ele não lembrava de quando fora a última vez que ficara sem palavras, em
toda sua vida. Mas nada se compararia aqueles poucos segundos naquele
quarto, a luz do luar iluminando as paredes fracamente, o cheiro de perfume
floral por todos os lados e aquele mar de olhos encarando os verdes, dor e
fragilidade por todo os lados. Mas Harry precisaria de outra noite, sozinho em
seu refúgio improvisado, para assimilar aquelas palavras. Naquele momento,
ele precisava arrumar sua postura, engolir em seco, e escolher as palavras
certas para aquela ocasião.
- O amor é para os fracos e tolos. Está na hora de crescer, meu bem – ele
acariciava o rosto tão pálido, observando as pálpebras de Karina cederem
durante o carinho.
- Quando a gente cresce, dói menos?
- Não – ele sussurrou, pressionando os lábios gentilmente nos dela, para
refletir contra eles – Mas fica mais fácil de ignorar.
Karina concordou lentamente com a cabeça, deixando que Harry a beijasse
ternamente, como nunca antes, suave, doce e com tantos significados que
deixava ambos tontos. O filho do pastor então pegou-se comparando aquele
beijo com o que havia recebido há um pouco mais de uma hora atrás, da
envolvente Megara. Beijos tão diferentes, na forma, no conteúdo. O de
Megara tão breve, frio e sem gosto. O de Karina, macio, confortável, infinito.
Quase apaixonante. Quase como se o tempo e a vida fossem meras fagulhas
no universo. Mas o que é bom sempre acaba cedo demais.
- Você deveria voltar a dormir, Ká. Precisa descansar.
- É agora que você some? – ela riu sem humor algum, apertando o corpo do
garoto mais próximo ao seu.
- Não. Você vai me encontrar aqui pela manhã. Te trazendo uma xícara de
café e suco de maracujá. – Harry sorriu para ela, voltando a acariciar seu rosto
– Durma, Karina.
Durma, que nos sonhos o mundo não é tão cruel, e a realidade não passa de
algo distante. Durma, que quando o sol nascer as coisas voltam ao seu antigo
habitat, e o que antes parecia belo, brilhante e promissor, mostra-se partido e
cheio de trevas. Durma, enquanto você pode, nos braços de quem você ama.

* It's Always Darkest Before The Dawn (Looking For Heaven, Found The
Devil In Me) são dois trechos da canção Shake It Out, de Florence + The
Machine: É sempre mais escuro antes do amanhecer (Procurando pelo
paraíso, encontrei o demônio em mim)
*Jack Daniels é uma famosa marca de whisky
*Na mitologia grega, o Rio Lete era um rio do Hades. Aqueles que bebessem
ou tocassem suas águas seriam experimentariam um completo esquecimento
* ”A estrada é longa, e nós continuaremos, tente se divertir nesse meio
tempo”, no original ”The road’s long, we carry on, try to have fun in the
meantime”, é um trecho de Born To Die, da musa de HF,Lana Del Rey

Capítulo 18 – The A Team

O início daquela tarde de sábado trazia o sol majestoso de volta a pequena


cidade, depois de intermináveis tempestades, com suas nuvens carregadas e
vendavais arrasadores. Os dias eram sombrios, tão sombrios quanto o
coração de cada um que participava daquela trama tão enrolada, tão
perigosa e afiada quanto à lâmina de um assassino treinado. Havia confusão
no medo, solidão na companhia, e acima de tudo, havia melancolia no amor.
Mas não era assim o amor, afinal? Possuidor de inumeráveis facetas, lados
maravilhosos e assustadores, trevas e luz. Assim também era a saudade. Doía
no começo, cegava, arrancava lágrimas dos olhos daqueles que a mantinham
em seus corações. Mas o tempo cura, os outro diziam. O tempo sempre cura
tudo. Então a dor aplacava, embora nunca sumisse por completo. As lágrimas
cessavam, e os olhos voltavam a ver a vida com um pouco de cor.
Louis passava agora por esse estágio, reaprendendo a viver sem a irmã ao
seu lado todos os dias. Mas com gêmeos era tudo mais difícil. Porque cada
olhar era compreendido, e palavras não eram precisas, somente sorrisos de
canto de lábios, piscadelas intercaladas e aquela risada escandalosa que só a
garota conseguia transformar na coisa mais doce do mundo. Louis sentiria
falta dos abraços apertados, das noites viradas conversando sobre o mundo,
de cada conselho incrivelmente sábio e totalmente necessário. Porque Carine
sabia de tudo, e sabia desde o começo. Carine o amava, e Carine
entendia. Carine era o universo. E sem ela ali, Louis era só mais uma estrela
apagada.
Sentado no sofá branco como a neve da sala dos Kallister, a luz do sol que
vazava pelas cortinas era um tanto confortável, braços cruzados sobre a
camisa branca, as pernas largadas de qualquer jeito sob um jeans de lavagem
escura. Dias e dias já haviam se passado, quantos exatamente, ele não sabia.
O tempo não era mais importante, as datas no calendário não faziam mais
sentido. Mas ele se mantinha forte. Não só por ela, que havia ido embora,
mas por aqueles que haviam ficado.
- Pensando nela de novo, meu amor?
- Também. – Louis sorriu tranquilo, erguendo os olhos azuis brilhantes para
a figura em sua frente – Pensando mais na vida sem ela, na verdade.
- Você sabe que eu nunca vou te dizer pra esquecê-la, não sabe? – Damian
desencostou-se do batente da porta lentamente, os cabelos recém-pintados de
preto fazendo os olhos verde-esmeralda brilharem cada vez mais. Agachou-se
em frente ao sofá a fim de olhar Louis exatamente nos olhos, tomando as
mãos do namorado nas suas, sussurrando cada palavra – Mas me dói te ver
triste assim. Eu sei que é devastador, que a perda leva metade de você. Mas
nunca esqueça que, na falta do seu coração, eu te dou o meu sem pensar duas
vezes. Na verdade – o garoto sorriu, aproximando-se até ser possível encostar
seu nariz no dele – Você já tem o meu há muito tempo.
- Devo ter feito alguma coisa muito boa na vida pra merecer você.
Damian riu baixinho, antes de selarem os lábios em um beijo doce. Mas não
passava da mais pura verdade, Louis relembrava. Damian havia surgido
como uma luz em seu caminho, quando os tempos não passavam de borrões
contínuos de escuridão. Karina estava começando a se envolver
com Harry Styles, Carine dava os primeiros sinais de que algo não ia bem, e
ele permanecia numa solidão interminável. Seria hipocrisia dizer que tinha
acabado de descobrir sua sexualidade. Não tinha. Louis sabia, talvez desde
sempre, de que não sentia o mesmo que outros meninos em relação às
meninas. De volta nos dias de orfanato, com oito ou nove anos, uma conversa
com uma das irmãs de caridade havia marcado sua vida para a eternidade.
Ela havia acabado de ler um aglomerado de contos de fada para ele, que iam
de Pinóquio até a Pequena Sereia. Mas foi passando por Cinderella que a
pergunta escapou de seus lábios tão inocentes. “Irmã, há sempre um final
feliz nos contos de fada?”. “Geralmente, Louis.”, ela respondeu, carinhosa.
Ele considerou a resposta por alguns segundos, antes de partir para a dúvida
final: “Mas o príncipe sempre tem que ficar com a princesa? Ele não pode
querer outra coisa?”. A freira, um tanto intrigada com a pergunta, franziu a
testa. “Como o que, por exemplo?”. “O príncipe não pode ficar com outro
príncipe?”. O que veio a seguir foram penitências e mais penitências, 50 Ave
Marias, como um garotinho podia sequer pensar naquilo?
Mas no final, Louis havia achado seu príncipe. Numa noite fria e desoladora,
a única vez que ele havia escapado de sua casa no meio da madrugada. Como
o garoto conseguiu chegar no Incantatem, era um mistério que ninguém
nunca resolveria. Mas Damian estava lá. Damian fora o único a enxergar os
fantasmas que o assombravam, o único a ouvi-lo, a fazê-lo rir. O encontro
inesperado se tornou uma amizade, a amizade fez borboletas surgirem no
estômago de Louis. Eram mensagens de texto, conversas informais nos
corredores, xícaras de café e lições de casa no meio da tarde. Foi num desses
passeios tão comuns que as coisas ficaram claras como água. Damian ria
nervosamente, as mãos percorrendo os cabelos ainda claros (o próprio Louis
sugerira o tom escuro tempos depois, mas o garoto só cedeu após a morte de
sua irmã gêmea. Certamente uma forma de deixá-lo feliz, nem que fosse só
um pouquinho). Os olhos verde-esmeralda reluziam, e as palavras se
atropelavam. “Louis, eu gosto muito, muito de você. Porra, você é um amigo
e tanto. Mas, tem uma coisa sobre mim...algo que você precisa ficar sabendo.
Eu vou entender se você quiser se afastar, de verdade. Mas é que...Ok. Lá
vai. Louis. Eu gosto de garotos. É isso ai. Eu sou homossexual.”. A expressão
de ‘vou levar um soco a qualquer minuto’ que estampava seu rosto não era
nada menos do que adorável. E com um sorriso tímido, sua única resposta
fora “É mais uma coisa que temos em comum, então”.
Agora eles estavam ali, juntos. Noivos. Noivos. Era uma coisa estranha, uma
ideia engraçada. Ser pedido em casamento tão jovem. Quase insanidade. Mas
quando Damian havia feito a pergunta mágica, no mesmo dia em que haviam
assumido o relacionamento para os Kallister, não havia outra resposta. Sim.
Sim. Sim. Dividindo a velha cama de casal em seu quarto, era o começo de
uma vida nova. Carine teria ficado feliz, radiante. Era a única pessoa que
sabia dos dois, nem mesmo Karina poderia imaginar. A garota havia ficado
chateada no inicio, por ter sido uma das últimas a saber, mas o mau humor
havia passado, e um brilho de felicidade surgira em seus olhos azuis com a
noticia do casamento. Havia esperança para ele afinal. Havia um pouco de
vida fora do poço de tristeza.
- Se não é o meu casal favorito! – Patrick ria, encostado agora no mesmo
batente onde Damian se encontrava minutos antes, os cabelos loiros
bagunçados e olheiras profundas sob seus olhos – Interrompo algum
momento extremamente quente?
- Você está sempre interrompendo alguma coisa, Pat – Louis rolou os olhos,
deixando-se abraçar pelo noivo, descansando a cabeça em seus ombros
largos – Não perde a oportunidade de ser inconveniente.
- Damian, seu namorado me odeia. Por que seu namorado me odeia? Eu não
sou uma ameaça. Eu não jogo no time de vocês!
- Por favor, de novo não – o garoto suspirava, divertido, antes de uma
expressão preocupada tomar seu rosto – Você não devia buscar Karina?
- Vou, daqui a pouco. O resto de nossos “convidados” – ele desenhou as
aspas no ar – teve um pequeno problema no caminho. Mas logo estarão aqui.
Isso vai ser legal! Nós somos como a Liga da Justiça! – O loiro imitava agora
um super-herói, mãos na cintura e olhar distante – Eu posso ser o Super-
Homem, se Karina for minha Mulher Maravilha.
- Cale a boca, Patrick. Nós somos, definitivamente, Os Vingadores – Damian
reclamou, as mãos brincando com os cabelos agora não tão encaracolados
de Louis – E dito isso, eu quero ser o Homem de Ferro.
- Merda. Então o Louis é o Capitão América pra manter o casal unido. E eu?
- Bom, nos considerando como um grupo ainda temos os traidores, não
temos? A prostituta e o capanga nº 1 são a Viúva Negra e o Arqueiro. O
nosso amigo galã de cinema, provavelmente vai querer ser oThor. Sobra pra
você o Hulk...Olha! Acho que combina.
- Esqueça. Prefiro ser o Homem-Aranha. Será que a Karina prefere ser
a Mary Jane ou a Gwen Stacy? – Patrick agora caminhava pela sala de estar,
tirando livros do lugar, mexendo em antigos porta-retratos.
- Vocês dois estão me dando nos nervos – Louis pulou do sofá, resmungando,
quase cuspindo as palavras – Estou preocupado com Karina. Tudo bem, ela
sabe que o Styles não presta, mas depois do que descobrimos nas últimas
semanas...Eu estou com nojo dele. Imagine a Ká, que claramente está de
quatro pelo individuo? Não sei. Tenho medo que ela cometa algum tipo de
loucura...
- Vai dar tudo certo, meu amor – Damian tinha as mãos nos bolsos da jaqueta
azul, a voz tentando parecer tranquilizadora, mas o efeito não era exatamente
o esperado – Ela vai ficar arrasada, é claro, quem não ficaria? Mas vai passar.
Quer saber? Aposto até que meu irmãozinho pode levar uma surra da nossa
menina.
- Veremos. Eu preciso de uma aspirina. – A sentença não passou de um
suspiro, quase abafado por seus passos indo até a cozinha. Patrick e Damian
se entreolharam, apreensivos.
- Seu namorado realmente não gosta de mim – Riu alto, jogando-se no sofá ao
lado do amigo.
- Bobagem. Ele só está passando por uma fase delicada. Você sabe que vai ser
padrinho do nosso casamento, não sabe?
- Vou?
- É claro que vai, idiota. – Damian deu de ombros, as pontas brancas do
Converse brincando com o tapete vermelho felpudo. – Nós dois estamos de
acordo com isso. Você e Karina, obviamente. Não diga que te contei isso – ele
agora sussurrava, quase como numa conspiração – Mas Louis realmente acha
que você é a melhor opção pra Karina. Ela pode não saber quem você é de
verdade ainda, ou quanto gosta dela, mas nós todos sabemos que você a faria
feliz. Estamos com você, cara.
- Porra. Obrigado. Por tudo. Pelo convite, a amizade, a confiança – ele parecia
realmente comovido – Eu nunca tive amigos como vocês antes. É engraçado
não é, podemos encontrar amizade nas situações mais esdrúxulas. – Patrick
parou, refletindo por um momento – É muito estranho os meus melhores
amigos serem gays?
- Foda-se. De boa. – mas Damian ria, dando um falso soco no braço do loiro –
Vá buscar Karina de uma vez.
- O trabalho pesado sempre sobrando pra mim. Vamos nessa, então.

O chá estava morno na xícara de uma delicada porcelana chinesa, que poderia
facilmente ter pertencido a Maria Antonieta* de Kirsten Dunst. Camomila ou
erva-doce, o gosto era tão insosso que poderia ser qualquer um dos dois.
Poderia ser até algum maracujá, preparado especialmente para colocar a mais
forte das mentes num coma profundo e silencioso. A janela permanecia
aberta, o sol iluminava todo o cômodo, trazendo até um brilho as paredes
limpas demais. Os longos cabelos pretos de Karina estavam presos em um
firme rabo de cavalo, um pequeno topete que lhe dava um ar de personagem
de filme de época. O vestido hoje era azul claro, um cinto branco com um
pequeno laço dourado em sua cintura, sapatos altos cor de creme em seus pés.
Ela esperava, pacientemente, até que Patrick viesse buscá-la. Era essa a
mensagem que havia recebido de Louis pela manhã, e o tema da conversa que
teriam era um tanto previsível. Harry. A conversa era sempre sobre Harry.
O que estava começando a deixá-la irritada. Tudo bem, ele não era exatamente
o namorado perfeito. Nem ao menos um namorado minimamente decente.
Mas o filho do pastor estava menos pior nas últimas semanas. Eles saíram
algumas vezes como antigamente, algumas cervejas no Incantatem e uns
poucos beijos trocados no final da noite. Mas ainda era melhor do que
nada. Harry fora realmente compreensivo após a morte deCarine. Mesmo com
o comportamento estranho, o nervosismo e os cochichos no telefone, não era
tão ruim assim. E ela havia dito. Aquelas palavras. Era errado ter um
pouquinho de esperança de que algum dia ele seria capaz de retribuir aquele
sentimento?
Para seus amigos, era. Louis e Damian mantinham a mesma posição: “Você
vai se machucar. Ele não presta.” E Patrick estava sempre por perto, os olhos
cor de mel a observando, a cabeça concordando com cada palavra. Ele estava
mais suave nas últimas semanas, menos invasivo. Mas ainda era Patrick.
Karina já conhecia os argumentos que eles usariam. As táticas e as chantagens
emocionais. Ela não tinha certeza se queria ouvir. Mas o faria, pelo seu
melhor amigo. Os dias que ficaram afastados haviam sido os piores de sua
curta vida, os mais amargos e escuros. E agora Louis estava tão feliz,
aprendendo a seguir em frente, prestes a se casar com alguém que amava. A
garota lembrava-se do dia em que ele mostrara o anel de noivado, um circulo
simples e masculino de prata, tão discreto que ninguém diria do que se tratava.
Observando o próprio anel de compromisso ao lado do de Louis, a nostalgia a
tomou. Parecia ontem que eram duas crianças solitárias em um orfanato
qualquer. Agora seus corações pertenciam a outras pessoas. Talvez o mais
irônico era que haviam se apaixonado por irmãos tão diferentes. “Quem
diria, Louis? De algum jeito bizarro, estaremos na mesma família em pouco
tempo. É esquisito”. “É”, ele respondeu, observando suas mãos, “Só que eu
vou me casar por amor, com o irmão decente. E você, Ká? Vai continuar com
essa farsa com o irmão do mal pra sempre?”. Quem disse que a verdade dói,
estava completamente certo.
A campainha soou animada, uma, duas vezes. Sozinha em casa não lhe restou
outra opção se não atender a porta, já sabendo quem estaria do outro lado.
Seus pais adotivos haviam saído para visitar a centenária Tia Magnolia, uma
senhora desprezível que fora casada com um dos tios já falecidos de Rick, mas
que adorava implicar com Karina e tudo relacionado a ela. O único motivo
pelo qual ainda davam algum crédito a mulher era a insaciável mania de Esma
de aparentar ser uma dama caridosa da sociedade. E a herança. Alguns
milhares de dólares escondidos no porão da antiga casa de dois andares. Não
que Rick ligasse para dinheiro. Ele não o fazia. Mas Karina sabia que Esma
adoraria aumentar a coleção de terninhos Chanel em seu closet.
Patrick tinha o olhar perdido ao longe, as mãos nos bolsos do moletom
marrom de capuz, os jeans surrados de sempre e tênis de corrida
impecavelmente brancos. Os cabelos loiros cacheados brilhavam no sol do
inicio da tarde, e havia uma pequena ruga de preocupação entre suas
sobrancelhas. Era lindo e melancólico sem a máscara de bad boy brincalhão, e
pela primeira vez desde que o conhecera, a garota se perguntou qual seria a
idade real dele. Vinte e três, vinte e cinco? Era definitivamente mais velho,
mas parecia sempre tão jovem. Naquela primeira noite na Sonic Underground
ela imaginou que ele tivesse dezenove, vinte. Completamente errada,
observando o homem agora. Patrick havia perdido muito da sedução barata e
termos espanhóis do começo, mas sua essência continuava lá. Não demorou
para que os olhos cor de mel encontrassem os pretos , e um sorriso se
formasse em sua boca macia.
- Ká. Oi.- ele sussurrava, mesmo que não houvesse necessidade – Podemos
ir?
- Hãn, sim, claro. Eu só...preciso deixar um bilhete para Esma e Rick.
Hm...entre.
Os bilhetes eram outra das mudanças que Harry causara em sua vida. “Não dê
a impressão de ter sumido”, ele a orientara uma vez, “ao menos invente um
lugar quando for sair durante o dia. Você não quer levantar suspeitas”. Karina
podia sentir Patrick caminhando atrás dela, um perfume cítrico e marcante o
acompanha. O quão puritana soaria se dissesse que achava estranho estar
sozinha com um homem em casa, quando já ficara em situações bem mais
pecaminosas com Harry? Só que Patrick não era Harry. Ele a deixava
nervosa, irritadiça, até um tanto confusa. Patrick era como uma raposa que
rondava sua presa, sem pressa, estudando-a, envolvendo-a.
Parou em frente a uma velha mesa de canto, anotando palavras rápidas e
diretas num papel de seda que era o preferido de sua mãe adotiva. Seu coração
porém, saltou em seu peito ao ouvir a voz do loiro ao seu lado, parado em
frente de uma estante repleta de livros e velhas fotografias.
- Essa – ele apontou para uma grande foto exatamente no meio da prateleira
central, envolta por uma moldura dourada e cheia de arabescos, onde uma
menininha de cabelos pretos e sorriso brilhante brincava num balanço – Essa é
Ágatha, não é? A filha dos seus pais adotivos?
- É sim – Karina olhou para o porta-retratos que costumava assombra-la desde
o dia que chegara naquela casa – Como você sabe sobre ela? São poucas as
pessoas nessa cidade que sabem dessa história. Foi há muito tempo atrás.
Esma e Rick ainda não moravam aqui. A maioria das pessoas acredita que é
uma foto antiga minha.
- Louis me contou – fora sua única resposta, os olhos ainda grudados na
fotografia – E vocês são muito parecidas, mas não poderia ser você. Os olhos,
são os mesmos olhos da mãe dela– ele apontou para uma outra foto, onde
Esma sorria – Ela tinha essas covinhas, você não tem. Os cabelos dela
formavam cachos nas pontas. Os seus são lisos. E é claro, Ágatha devia ter
uns quatro, cinco anos nessa foto. Você foi adotada com oito. Como ela
morreu, mesmo?
- Ninguém sabe – Karina deu de ombros, o assunto ainda incomodava. Fora
adotada para substituir Ágatha. Mas aqueles que sabiam da verdade, como
Esma e Tia Magnolia, essas esperavam que ela fosse uma cópia fiel da
menininha, não só na aparência parecida, mas no comportamento. Ágatha era
um fantasma em sua vida, e até mesmo Harry usara a imagem dela para ter a
garota em suas mãos. “Sou eu que estou substituindo uma perda?”, dissera ele.
Era esse um dos segredos com os quais ele a havia intimidado no passado.
Mas aquilo não a atormentava mais há algum tempo. – Eles não falam sobre
isso. Com ninguém. Podemos ir agora?
- Podemos. Mas... – Patrick segurou seu braço no momento em que ela tentara
passar por ele em direção a porta, firme o suficiente para prendê-la ali, mas
sem a força capaz de machuca-la- Karina. Antes de irmos... Eu quero te dizer
uma coisa. Eu preciso, na verdade.
- Estou ouvindo – sua voz tremia, a um ponto de gaguejar, os olhos perdidos
nos dele, o perfume cítrico a envolvendo.
- Vai chegar uma hora, - ele começou, a mão livre desenhando o contorno do
rosto da garota, a expressão um tanto maravilhada no rosto – e vai ser logo,
isso eu posso garantir, que as coisas vão ficar difíceis, Karina. Difíceis de
verdade. Eu só preciso que você se lembre do que eu estou te dizendo agora.
Eu tenho segredos, sim. Fatos sobre mim que eu não posso te contar agora.
Mas tudo que eu fiz foi pelo seu bem – Patrick fechou os olhos, encostando o
nariz dele no dela – Foi porque eu me preocupo com você, porque quero que
você seja feliz. E livre. Por favor, não me odeie quando você descobrir. Não
me odeie. Por favor.
E então ele a beijou. Simples, tão simples quanto o virar de uma página de um
livro. Patrick colou os lábios nos dela, as mãos em sua cintura puxando-a cada
vez mais para si. E Karina deixou. Deixou porque era bom, era seguro e a voz
do homem fora tão doce e verdadeira, que ela não podia fazer nada além
daquilo. Abrir a boca devagarinho, dando passagem para a língua macia, um
beijo tão tranquilo que o tempo quase parou. Fora diferente das outras vezes.
Do avassalador encontro na boate escura até o breve susto das arquibancadas.
Como se fosse à primeira vez. As línguas dançavam, os corpos se espremiam
um contra o outro, e o gosto era de hortelã e café. Até que ela lembrou
de Harry.
Harry e seus olhos verdes, sua boca exigente, seu toque que fazia
enlouquecer. Harry que não merecia fidelidade nenhuma, mas mesmo assim
ela se sentia culpada. Uma culpa que por si só lhe trazia um misto de vergonha
e raiva. Não deveria sentir culpa, deveria? Mas também não deveria amar o
filho do pastor.
Deixou que Patrick continuasse lhe beijando, até que oxigênio faltasse a
ambos, e que um último selinho rápido fosse depositado contra sua boca.
Testas encostadas, ela não queria abrir os olhos. Sabia o que encontraria. Um
sorriso bonito demais. Um sorriso de vitória, quando tudo que havia era perda.
Não havia esperanças para Patrick. Não havia esperanças para Harry. Não
havia o mínimo de esperanças para Karina.

O caminho até a casa dos Kallister fora silencioso, mas não o tipo de silêncio
pós-beijo intimidador. Era só silêncio, puro e simples, e ao mesmo tempo
complicado e confuso. Andavam lado a lado, nada de mãos dadas ou corpos
que se encostavam. Somente caminhavam, até que a casa amarela coberta por
musgo entrasse em seu campo de visão e Louis acenasse da porta, um sorriso
tímido em seus lábios. Abraçou-a rapidamente, pedindo que entrasse na sala,
mas dispensando maiores atenções. Muito pelo contrário. Era com Patrick que
ele cochichava, as mãos nervosas gesticulando sem parar, as sobrancelhas
dançando em cima de seus olhos. Mas Damian logo chegou, oferecendo o
braço para ela, conduzindo-os até o pequeno jardim de inverno que era o
orgulho de Linda Kallister, onde três pessoas já estavam esperando, discutindo
baixinho entre si.
Se descobrir que Louis, Damian e Patrick eram amigos fora um choque, saber
tão repentinamente que Kitty, John e o homem que ela acreditava se chamar
Flanagan faziam parte do grupo era terrivelmente assustador.
Kitty estava sentada no antigo banco de madeira no centro do lugar, os
cabelos negros presos em um coque firme, os lábios sem cor alguma, e usava
um vestido preto de mangas três quartos, extremamente simples e discreto
demais para uma mulher que usava lingerie de oncinha para trabalhar.
Flanagan, ela tinha quase certeza que esse era seu nome, mantinha a cabeça
baixa, as mão cruzadas sobre a calça bege, e uma tensão nos ombros largos
sob a regata branca, como se algo muito grave estivesse prestes a acontecer.
Mas John parecia relaxado em suas roupas negras, encostado em uma das
paredes de vidro, brincando com um isqueiro de prata em suas mãos. Damian
pediu que se sentasse numa cadeira de balanço do século passado, antes de
voltar para o lado do noivo, que agora parava atrás de Kitty. As seis pessoas
olhavam para ela, uns com pena, outros com medo, e outros somente com cara
de nada.
- Karina – Kitty sussurrou para ela, aquela voz doce e maternal que havia
presenciado uma vez parecia ter voltado com força – É bom vê-la de novo,
querida.
- Podemos ir direto ao assunto, sem lenga-lengas? – John resmungava, o pé
balançando num ritmo frenético contra a parede – Vocês sabem que eu preciso
voltar logo, antes que Sebastian desconfie de alguma coisa.
- Concordo – a garota suspirou, balançando sua cadeira algumas vezes –
Querem falar mal de Harry? Comecem logo. É o mesmo papo de sempre. “Ele
não presta. Não é bom para você. É perigoso”. Algum argumento novo dessa
vez?
- Alguns – Patrick deu de ombros, e ela notou que ele agora já havia voltado a
postura debochada de sempre – Mas você nunca nos escuta. Você só finge.
Talvez agora, ouvindo nossos novos amiguinhos, consigamos colocar um
pouco de juízo nessa sua cabeça dura.
- Estamos investigando Harry há um bom tempo, Karina, você sabe disso –
Damian interferiu, um sorriso de compaixão no rosto – E nos últimos tempos,
bom, nós conseguimos que Kristina, Ferris e Johnathan dessem um
testemunho para você. Harry está metido em muita confusão, e algo nos diz
que logo as coisas vão ficar complicadas. Só queremos que você esteja longe
quando tudo isso acontecer.
- Por favor – Kitty suspirou, as mãos na testa – Não me chame de Kristina.
Minha mãe me chamava de Kristina, e era insuportável. Todos os problemas
da minha vida começaram por causa desse maldito nome.
- Podemos não perder o foco? – A voz de Flanagan era grave, autoritária, mas
parecia cheia de culpa e mágoa – Só quero que tudo isso acabe. Você nos
prometeu, Patrick, a mim e a Kitty, que poderíamos sumir depois que eu
contasse o que sei a garota – ele gesticulou na direção de Karina – Eu não
confio em Harry. Não desde que Aphrodite morreu naquele estúpido plano
dele. Aquilo foi um acidente, mas agora ele está trabalhando com gente
perigosa de verdade. – seus olhos pareciam um tanto marejados, a voz
falhando quando abaixou a cabeça novamente – Eu só amei duas pessoas
nessa vida. Uma eu perdi por culpa daquele maldito garoto e essa presepada
na qual eu fui me enfiar. Eu não vou perder a outra.
Kitty o abraçou desajeitadamente, tentando fazer com que ele deitasse a
cabeça em seu ombro. Deslizava a mão por seus cabelos claros, e
então Karina sabia o porquê de toda a simplicidade e discrição dela. Havia se
apaixonado. Amava Flanagan e estava disposta a largar a vida de prostituta
por ele.
- Aphrodite – Kitty começou, a voz não mais do que um sussurro – era minha
melhor amiga. Nós moramos juntas por um tempo, antes que ela e Ferris se
casassem. Os dois eram felizes, iam construir uma família juntos. Ferris já
trabalhava para Harry. O negócio deles é bem simples se pararmos para
analisar – ela olhou para John, procurando por uma ajuda que não veio – Eles
tem um tipo de gangue, um grupo que realiza serviços, empréstimos,
cobranças. Tecnicamente, se você precisar de dinheiro, ou se precisar dar um
susto em alguém, é só procurar por eles. O escritório fica no subterrâneo da
Sonic. Sebastian cuida da contabilidade. Ferris e Gustav são encarregados de
realizarem o serviço, seja fazer a entrega do dinheiro prometido, seja dar uma
surra em alguém, e de cobrar depois. E John, bom, John faz um pouco de
tudo. É mais garoto de recados do que qualquer outra coisa – Ele parecia
ofendido, mas Kitty não se abalou – Mas o chefe é Harry. Ele dá as ordens.
Ele aceita os serviços, negocia. O caso de Aphrodite foi há três anos, um dos
primeiros ‘arquivos’, o termo que eles usam pra cada serviço. Ela não sabia o
que o marido fazia. Na noite em que descobriu, bem, deu tudo errado. Gustav
e Ferris deviam colocar fogo em uma velha casa de madeira, onde um
empresário guardava sua fortuna. Uma vingança da ex-mulher. Não havia
ninguém no lugar, só o dinheiro. Mas Aphrodite tinha seguido o grupo, e bom,
ela não sabia que eles iriam incendiar aquilo tudo. Achou que só fossem pegar
o dinheiro – Flanagan chorava baixinho, preso no abraço forte da mulher – Ela
estava lá dentro quando as chamas começaram. Tinha achado que era um bom
esconderijo. Harry gritou, avisou que havia algo errado. Mas era tarde demais.
Ninguém conseguiu salva-la. Aphrodite morreu, e Ferris foi retirado em
estado de choque de lá. A polícia nunca descobriu o que houve. – A dor estava
estampada no rosto de Kitty – Ela não teve nem ao menos um velório, um
enterro digno. Não sabemos o que aconteceu depois. Mas dói. Dói até hoje.
Faz algum tempo que estamos juntos – ela gesticulou para o homem em seu
colo – não havia nada antes. Nada. Nós só queremos seguir em frente. Só
queremos uma chance de uma vida normal.
Foi feito silêncio por um minuto, o suficiente para que as informações
pudessem ser absorvidas e as lágrimas cessadas. Mas aquele não era o
objetivo de tudo aquilo.
- Me desculpem. Não que eu não ache a história comovente, ou queira ser
indelicada – Karina brincava com a barra do vestido azul, sem coragem de
olhar para o casal na sua frente – Mas o que tudo isso tem a ver comigo?
- Você é meio cega, não é? – John riu seco, os braços cruzados sobre o peito –
O que tudo isso tem a ver com você? Não está meio na cara, não? Você é um
arquivo, Karina. Arquivo 737. Arquivo Saxon. Harry não está com você
porque gosta, porque te acha gostosa ou porque você transa com ele de graça
– ele deu de ombros – Ele está com você porque alguém pagou para ele fazer
isso. Fora o fato de despistar a família dele. Mas isso é tudo, Ká. Você não
passa de um negócio.
- O quê?
A voz dela saíra quase como uma risada anasalada, um mecanismo de defesa
produzido por seu nervosismo. Não, não, não. Harry não faria isso com
ela. Harry não ousaria fazer isso com ela.
- O nome dele é Lorenzo Greenfield. O cara que pagou para Harry ficar com
você – Flanagan soltou, levantando a cabeça mais uma vez - Procurado pela
polícia, mas eu não sei que crimes ele cometeu.
- Esse nome te diz alguma coisa, Karina? – Louis perguntou, cuidadoso, a
pena resplandecendo em sua voz. A garota somente balançou a cabeça em
negação, a raiva e a dor impedindo-a de continuar a falar.
- Não foi só para ficar com você – John continuou, voltando a brincar com o
isqueiro – Tem uma segunda parte no plano. Mas nós não sabemos o que
é. Harry não confia o suficiente em nós dois. O que ele faz com toda razão,
não acha? – um sorriso de deboche apareceu em seu rosto – Mas agora você já
sabe, amor. Ele vai continuar com você, até que precise. Quando finalmente
conseguir o que quer, vai te chutar. Ou fazer pior, acredite. Se eu fosse você,
pulava do barco, antes que ele afunde – John caminhou até a porta, sem
maiores explicações – Manson, - apontou para Patrick, a voz ríspida – cumpri
a minha parte no acordo. Vou voltar para o lado do Styles, fingir que continuo
sendo seu cachorrinho. Mas na hora certa, espero que você também cumpra a
sua.
Ele saiu, mas Karina não registrou. Não registrou nada. Ela sabia, sabia que
haviam segundas intenções, mas nunca pensou em nada como aquilo.
Fora usada. Totalmente usada, traída, enganada. Doía, é claro. A mágoa
tomava conta de cada pedacinho de seu corpo, a tristeza de saber que uma das
poucas pessoas que amara era o pior traidor que já havia pisado na Terra. Mas
o ódio também se instaurava, silencioso. Queria chorar, mas também queria
espancar Harry. Queria lhe perguntar por que aceitara, mas ao mesmo tempo
queria quebrar seu nariz. A confusão de sentimentos a cegava, e ela respirava
com dificuldade. Louis agora estava ao seu lado, mas ela não queria ouvir
nada. Não queria saber. Empurrou-o para o lado, e fez o mesmo com Damian
quando ele tentou impedi-la. Cambaleava, trocando passos até que chegasse à
rua.
E então as lágrimas vieram, numa esquina qualquer, já longe da casa do
melhor amigo. Sentou-se na calçada suja, tirando os sapatos de salto,
arrancando o prendedor que deixava seu cabelo no lugar. E chorou. Lágrimas
de amor, lágrimas de ódio. Tristeza, frustração, raiva. Muita raiva. Passava a
mão pelos cabelos soltos, bagunçando-os, arranhando suas bochechas sem
querer, borrando o rímel de seus olhos. Queria morrer por ser tão boba, tão
vulnerável e imatura, mas queria matar Harry. Matá-lo por enganá-la, por usá-
la daquele modo. Matá-lo por tê-la feito se apaixonar por ele.
Passou um tempo naquele lugar, o suficiente para que algumas senhoras
curiosas receberem uma descarga de palavrões ao tentarem se aproximar.
Depois saiu, pés descalços no concreto duro, voltando para casa no piloto
automático. Rick e Esma não haviam chegado, e ela demorou alguns minutos
até acertar a chave da porta. Os soluços se tornaram mais intensos ao chegar
em seu quarto, ao ver a mudança que toda aquela história de amor e mentiras
haviam trazido para aquele cômodo. Mas ela não queria ver. Arrancou a renda
que cobria as paredes, quebrou porta-retratos e rasgou a colcha azul que dias
antes ele havia usado para cobrí-la. Jogou pela janela vestidos de grife, frascos
de Chanel Nº 5 e fivelas coloridas. Tudo lembrava, tudo gritava e piscava,
tudo indicava o quão falsa sempre fora sua vida. Nunca havia verdade. Nunca.
Nada mais valia a pena.
Então chegou ao banheiro, admirou as manchas de rímel no rosto, a expressão
maníaca e os cabelos bagunçados. Mas o que mais a revoltou fora a corrente
que rodeava seu pescoço. O pequeno crucifixo dourado que ali pendia.
Arrancou-o, não se importando com a marca vermelha e a ardência que a
corrente havia deixado ao ser tirada tão bruscamente. Gritou com o espelho,
chorou mais um pouco, só para sentir pena de si mesma. Pena do robô que
havia se tornado. Lembrou-se da menininha que havia prometido que nunca
mais choraria. Ali estava ela agora, chorando por um maldito garoto. Um
maldito garoto que não a merecia. Então a tristeza fora guardada no fundo do
peito, as manchas negras no rosto foram limpas, o delicado vestido azul
jogado dentro do vaso sanitário. A determinação correndo pelo seu sangue,
borbulhando, o desejo de vingança escorrendo pela ponta de sua língua.
Era hora de ressuscitar o batom vermelho. Era hora de Harry aprender quem
era a santa tola ali.

Harry estava sentado em sua cama de madeira no antigo posto de gasolina. O


torso nu, as calças jeans sujas de terra. A cabeça em Karina. Havia um celular
cinza em suas mãos, mas ele ignorava a ligação. Era Greenfield novamente,
Greenfield pela milésima vez. A milésima vez que ele não atenderia. Era
perigoso, o filho do pastor sabia perfeitamente. Mas ele não deixaria
acontecer.
Fazia exatamente uma semana que descobrira o propósito de Greenfield. Fazia
exatamente uma semana que não dormia. Ela não vai aguentar, era tudo que
pensava. Isso vai destruí-la, era o pensamento seguinte. Então o seu novo
plano era simples. Karina não precisava saber. Poderia inventar uma desculpa
qualquer, leva-la para longe, começar uma nova vida com o dinheiro que já
tinha.
Se antes Karina não era nada, agora ela era tudo.
Porque só se descobre a importância de alguém quando se está prestes a
perdê-la.
Harry não a perderia. Não agora que sabia que a amava.

*The A Team é uma música do britânico Ed Sheeran, e mesmo que na música


tenha outro significado, aqui ele é empregado como O Time Principal
* Maria Antonieta foi uma rainha francesa, mas aqui faço referência ao
filme Maria Antonieta, de 2006, estrelado por Kirsten Dunst

Capítulo 19 – Smooth Criminal


(Coloque essa música pra carregar, e dê o play quando a letra aparecer!)

A vida às vezes é feita de clichês, de frases feitas repetidas até a exaustão


completa, de sentimentos prontos e cenas vazias. Toda criança cresce com
noções de tudo que é natural e aceitável, assim como toda uma bagagem de
ditos populares e sabedoria da terceira idade. Então, quando se dizia que
confiança era como um espelho, o certo era acreditar. Porque por mais
desvalorizados que sejam os ditos clichês infernais, ninguém no mundo ainda
conseguiu provar sua total ineficiência. Assim como nem um único ser
humano fora capaz de juntar pedacinho por pedacinho de vidro quebrado e
transformar num refletor perfeito outra vez. Havia sempre rachaduras aqui e
ali, pequenas imperfeições que, em um descuido qualquer, fariam sangrar os
corações dos mais desavisados. Então era tão mais simples largar todos os
cacos no chão, sair correndo para lugar nenhum e começar tudo novamente.
Doía muito menos e parecia especialmente mais eficiente em tempos onde há
desconfiança até da própria sombra e dos pensamentos proibidos e perigosos
que nos rondam em noites de pesadelo. Mas as noites nem sempre eram
assustadoras. As noites acolhiam seus filhos perdidos, aqueles corajosos o
suficiente para se aventurar em seus domínios, desbravando campos antes
nunca explorados e sensações esquecidas desde o tempo dos antigos deuses
gregos. A noite era uma mãe bondosa, prestes a acolher sua criança mais
perdida novamente, abraçando-a protetoramente, mas advertindo que tempos
difíceis e obscuros estavam chegando. O segredo era aproveitar a escuridão, e
talvez até mesmo a ignorância, enquanto ainda houvesse chance.
O barulho de saltos vermelhos na estrada de concreto era abafado por risadas
altas e conversa fiada de desconhecidos espalhados pelas calçadas sujas,
bebendo cervejas baratas e consumindo todo e qualquer tipo de droga que
houvessem encontrado pelo caminho. As vielas escuras cheiravam a fumaça e
podridão, prostitutas de baixíssimo escalão mascando chicletes
estridentemente encostadas em muros pichados, discutindo com seus cafetões
momentâneos. A lua não ousara aparecer, e até mesmo o ar parecia cada vez
mais pesado e difícil de respirar. Mas Karina ignorava tudo a seu redor. A
cabeça permanecia erguida, os longos cabelos castanhos volumosos e
bagunçados, os olhos brilhantes apagados por camadas infinitas de rímel e
delineador negros que refletiam o estado de sua alma naquela noite. As meias
7/8 que usava eram pretas, quase translucidas, presas a uma calcinha de renda
de mesma cor por cintas-ligas de laços de cetim, o mesmo cetim rendado do
sutiã meia-taça. Sutiã este que tinha uma história agora trágica e odiosa. A
mesma lingerie que usava no primeiro dia, há muito tempo atrás, num
encontro lascivo onde certo ser humano cujo nome ela evitava repetir
mostrara quem era de verdade. A ele pertencia também a jaqueta de couro
indefectível, que afinal era a única peça de roupa propriamente dita que cobria
seu corpo. Nos lábios, pintados de um vermelho ainda mais intenso do que o
dos sapatos, vinha pendurado um cigarro aceso, herança perdida de uma época
onde aquela era exatamente a imagem que ela queria representar. Uma
encrenqueira de marca maior, uma prostituta roqueira de luxo que
atormentava os pesadelos de mães e namoradas preocupadas com seus garotos
puritanos. Naquele corpo agora habitava uma rebelde nada falsa, sedenta por
um acerto de contas onde ela sairia vencedora.
Cantadas escrachadas e absurdamente nojentas eram entoadas por vozes
bêbadas e enroladas a cada novo passo e gingado de quadris de Karina. O
medo que outrora consumia cada célula de seu corpo nervoso agora já não
passava de uma brisa distante, uma lembrança amarga que corroia seu
cérebro. Não havia um só ser que ousaria mexer com ela naquele estado de
fúria fatal no qual se encontrava. E essa verdade era refletida em seus grandes
olhos castanhos, cruéis e avassaladores. Caminhando pela calçada de concreto
irregular em meio a um mar de palmeiras verdes, os holofotes a atingiram em
cheio, pintando seu corpo de dourado e vermelho. Pessoas saiam de seu
caminho, como se sentissem o aroma dos pensamentos nocivos que se
passavam por sua mente perturbada. Como uma coluna grega de mármore
negro, um antigo conhecido seu guardava as imensas portas de madeira que
escondiam a estrada para o inferno. Zumiô abriu seu sorriso desfigurado para
a garota, rosnando para algum vagabundo qualquer que tentava empurrá-la
para trás.
- Senhorita Dawson – A voz grave tentava emitir alguma simpatia, embora
fosse praticamente impossível para o segurança demonstrar certas emoções –
O senhor Styles não está a acompanhando esta noite?
- Não, por enquanto – seus lábios se estreitaram num sorriso maligno, antes
que ela tragasse o cigarro lentamente – Mas algo me diz que logo Harry estará
juntando-se a nós.
Rumores em cidades pequenas se alastravam como fogo em gasolina, rápidos
e destruidores. Quanto tempo levaria para que chegasse aos ouvidos do filho
do pastor que sua imaculada namorada desfilara pelas ruas da cidade semi-
nua, entoando palavrões como se fossem poesia para aqueles que tentavam
pará-la, antes de tomar um táxi clandestino até a cidade vizinha? Não
duvidava nada de que Harry já corria desesperado agora, o sangue fervendo
sob as veias, direto para a boate. Tão típico dele, tão útil a ela. Como uma
aranha tramando uma teia envolta de sua presa, Karina adentrava o já
conhecido corredor de espelhos, as letras em neon atraindo sua atenção
novamente. Afastando a cortina negra com uma das mãos, constatou que o
lugar continuava exatamente como lembrava: os cheiros distintos, o sexo por
todos os lados, as drogas escondidas embaixo de mesas e as prostituas
desfilando em suas lingeries coloridas. O rock soava alto nas caixas de som, e
ela deixou-se levar pelos acordes de guitarra até a pista de madeira, dançando
conforme a música permitia, jogando os cabelos aqui e ali, o cigarro acabando
em sua boca molhada. O calor espalhava-se, a dominando lentamente, o
murmurinho das pessoas chegando ao seus ouvidos e fazendo-a rir
histericamente. Mãos fingiam esbarrar em seu corpo despreocupadamente,
quando ela sabia que a intenção real era aproveitar-se daquilo discretamente.
Fora tão usada, o que custava ser usada um pouquinho mais? Era endeusada
por homens vestidos de negro, que sussurravam ao seu ouvido e então a viam
fugir para o outro lado, um sorriso sacana se formando na profusão de
vermelho. Até que uma mão macia agarrou seu ombro, as compridas unhas
pintadas de rosa machucando sua pele. Kitty a encarava, preocupação
estampada em seus grandes olhos verdes. Ela já não usava roupas intimas,
somente um vestido roxo de um ombro só, sapatilhas douradas nos pés e o
cabelo negro caindo em cachos ao redor do rosto pálido. Totalmente mudada.
- Karina, querida. O que faz aqui? – ela sussurrava, olhando freneticamente
para os lados, como se esperasse que algum tipo de maníaco pulasse em cima
das duas – Ainda trabalho no bar, então vi quando você chegou. Está tudo
bem?
- Tudo maravilhoso! Não poderia estar melhor! – respondeu histérica,
desvencilhando-se da mulher e tentando voltar sua atenção para qualquer um
que estivesse balançando ao seu redor, somente para não ter que passar por
aquela situação estranha e sufocadora demais para que ela mesma conseguisse
aguentar.
- Não, não está – Kitty tentava pará-la em vão, a voz chorosa num misto de
puro medo e pena pela garota que se encontrava a sua frente, totalmente
perdida e destruída– Karina, eu sei que você está magoada por tudo o que
aconteceu, mas você não pode se colocar em risco assim! É insano! Você tem
noção do que poderia ter acontecido lá fora? Você tem noção do que pode
acontecer aqui dentro? Esse lugar não é pra você. Saia daqui. Por favor. Eu te
imploro.
- Kristina – o veneno espalhou-se por sua língua, seus longos cílios piscando
lentamente em puro desprezo, o rosto pela primeira vez exibia um domínio e
um poder que assustariam facilmente criancinhas prontas para um sono
tranquilo. Metade do seu coração agora era negro e pesado, corrompido por
mentiras continuas e falta de amor – Vá se foder. Por favor. Eu não pedi sua
opinião, não preciso de seus conselhos. Não interfira na minha merda de vida.
Eu sei muito bem o que diabos eu estou fazendo.
- Karina... – as lágrimas manchavam agora sua pele branca como a neve, as
mãos tremendo sob o ventre, cruzadas sobre ele como se tentasse proteger
algo mais importante do que sua própria vida, até que uma figura masculina
apareceu atrás dela, protetora, puxando-a delicadamente para o lado e
oferecendo um lenço de papel tirado de um bolso em conforto.
- Obrigada por me ligar, Kitty. Vá descansar um pouco, de preferência em
casa. Eu assumo daqui. – Patrick sorria para ela tranquilo, afagando seu braço
com cuidado – Flanagan não vai ficar nada contente comigo se eu deixar algo
de ruim acontecer a sua esposa e ao seu bebê. Vá.
Bebê. Grávida. Kitty estava grávida. A culpa por tê-la tratado daquela
maneira tão hostil desceu por sua garganta rapidamente, como um gole de
whisky amargo demais. Mas não durou muito. Logo os olhos cor de mel de
Patrick estavam encarando os seus e havia algo em seu rosto que doía. Uma
pontada mínima no coração. E aquilo era decepção. Patrick estava com as
mãos nos bolsos do casaco de moletom azul marinho, jeans desbotados
acompanhando coturnos bem polidos, o semblante fechado, quase como se
esperasse alguma coisa. E então Karina sorriu, aproximando-se devagarzinho,
plantando as mãos nos ombros largos e se permitindo inalar altas doses do
perfume cítrico que era sua marca pessoal. Seus olhos castanhos piscavam
demoradamente, um tipo de sedução barata que se aprendia em filmes de
sessão da tarde, mas ali não parecia surtir muito efeito. Homens xingavam
baixinho, reclamando alto da falta de ações de Patrick, enumerando o que
fariam se tivessem uma garota como aquela pendurada em seus pescoços. Ele
não respondia. Continuava mantendo o olhar firme, os lábios numa linha
quase invisível antes de soltar as palavras num sussurro que só Karina poderia
ouvir.
- O que você está fazendo aqui, Ká?
- Me divertindo! – a garota riu nervosa, afastando-se momentaneamente para
voltar a dançar provocante, jogando beijos para estranhos que assobiavam em
mesas escondidas – Não é para isso que viemos a lugares como esse?
- Não minta pra mim – E então ele segurou seu braço fino de modo apertado,
sem que machucasse, mas o suficiente para que ela parasse e escutasse – Por
favor, não faça isso comigo Karina. Me diga que você não está aqui por um
plano de vingança bobo que inventou de última hora. Não vale a pena. Nós
temos as coisas sob controle. Não se machuque por nada.
- Por que você está sendo tão malvado comigo, Pat? – seus lábios se juntaram
num biquinho manhoso, as mãos na cintura numa falsa indignação, antes de
começar a caminhar sem direção, o homem a seguindo cauteloso –
Eu não estou com Harry. Não estou me fingindo de santa. Não estou deixando
que ninguém me controle. Qual o problema?
- O problema é que você se enfiou no pior lugar do universo para estar
sozinha. E vestida... assim. – olhando para trás por um minuto, Karina notou
que o lábio inferior de Patrick tremia, seus olhos procuravam por pontos
incertos, longe das cintas-ligas ou da renda do sutiã, tentando focalizar
quadros nas paredes e holofotes presos ao teto. Mordendo o próprio lábio
inferior, ela se aproximou novamente, brincando inocentemente com o zíper
que fechava o casaco dele, encostando a cabeça em um de seus ombros.
- Você não gosta? Achei que estivesse gostando. Que pena. – Sua boca agora
passeava sem rumo pelo pescoço exposto do loiro, as mãos brincando com
seus cachos bagunçados, a voz baixa o suficiente para que só os dois
soubessem o que se passava por ali.
- Karina, não.
- Por que? – ela agora beijava seu maxilar, passando pelo queixo e subindo até
as bochechas, grudando os corpos e posicionando as mãos dele sobre seus
quadris, a temperatura corporal subindo um ou dois graus, quase os deixando
num estado febril. Os olhos cor de mel pareciam mais escuros, mas ainda
havia alguma coisa em seu rosto, uma contradição, como se ele travasse a
mais intensa e sangrenta batalha mental que já se houvesse tido notícia –
Achei que você me quisesse.
- Você entendeu errado. – ele soltou o ar pesadamente, afastando-a um tanto
relutante, uma expressão séria voltando a tomar conta de seu rosto. Aquelas
três palavras fizeram os ombros de Karina despencarem, certa decepção
tomando conta de seu corpo jovem. Mais mentiras? Ela não aguentaria mais
mentiras. – Você entendeu tudo errado. Eu amo você, Karina. E amo de
verdade, como nunca amei antes. Você é linda e sensacional, e só Deus sabe o
quanto eu te quero, o quanto eu te desejo. – E agora ela tremia um tanto,
abalada pelo que ouvia, um pequeno furo surgindo em sua armadura
imaginária que deveria ser de titânio. Parecia mais de açúcar – Mas não desse
jeito. Eu te quero inteira, não aos pedaços. Não quero os restos envenenados
que Harry deixou. Quero que você seja minha, mas quero que você saiba que
eu também sou seu. Eu vou te proteger enquanto eu posso, mas não assim, Ká.
Desista disso. Venha comigo. Eu nunca vou te pressionar, eu sei que você
precisa de tempo para se recuperar. Se reconstruir. Só me deixe ficar ao seu
lado nesse período. Até que um dia talvez você esteja pronta pra me amar
também. Me deixe cuidar de você. Por favor. – seus olhos cor de mel
brilhavam, e ela já não sabia se aquilo era dor ou emoção. Mas ela podia ver o
amor estampado neles, um amor que parecia ter surgido tão rapidamente num
terreno de areia movediça, sem raízes para se sustentar, mas intenso e
verdadeiro como o mar em um dia de verão. Bonito, mas triste. Um amor que
ela não saberia apreciar. Um amor que veio na hora errada. Endireitando a
postura e levantando o nariz no ar, Karina imitou o melhor sorriso irônico que
pôde aprender com certo filho do pastor, e mesmo que doesse agora, aquilo
era o melhor a ser feito.
- Bom, se você não quer, eu vou arrumar alguém que queira. Passar bem,
Patrick.
Empurrando pessoas aleatórias sem quaisquer pedidos de desculpa, a tentativa
de fuga dos chamados do loiro era um tanto complicada, não só pela multidão
enlouquecida em seu caminho, mas pela sua consciência ainda pesada devido
aos poucos resquícios dos dias em que vivera num sem fim de emoções a flor
da pele. A rebelde assumira seu lugar novamente, mas ainda havia um fundo
da garota imaculada que tentara ser, um pedacinho daquela alma que ela
guardara para aqueles que merecessem conhecê-la e apreciá-la de verdade.
Definitivamente não para Harry, mas talvez um dia para Patrick. Talvez em
mil anos ou um pouco menos, quando seu coração voltasse a bater numa
frequência minimamente normal. Mas ainda era extremamente cedo. As
feridas deixadas ainda sangravam, sem parar. Enfiou-se num banheiro escuro,
de azulejos que um dia deveriam ter sido brancos, mas agora não passavam de
um amarelado encardido. As lâmpadas fluorescentes piscavam
incansavelmente, e como num antigo banheiro de escola, nomes estavam
escritos nas paredes. Encostando-se numa das pias solitárias, Karina
observava-se no espelho manchado, colocando os pensamentos em ordem e
tentando fazer com que sua respiração voltasse ao normal. Despenteou os
cabelos com as mãos rapidamente, e, encarando o reflexo de seus olhos
castanhos mais uma vez, a certeza a dominou total e completamente. Nada era
em vão.
Patrick não parecia estar em lugar nenhum, o que lhe deixava num estado de
alívio um tanto infundado. Não devia nada a ele, nem uma explicação, nem
um pedido de desculpas. A culpa não era dela. Se apaixonou? Bom, meu
amigo, agora aguente as consequências. O amor era uma droga, e das piores.
A sensação no começo é fantástica, e então em seguida vem o vicio, as noites
em claro, a dependência incontrolável, e então o puro caos. Com o amor, tudo
sempre acabava em caos. Marcas eternas e dores que eram quase impossíveis
de serem apagadas. Como pôde ser tão tola por ter caído num truque tão
infantil quanto o amor? Talvez por nunca tê-lo recebido de verdade. Boba
como era, prendeu-se a uma ilusão de que um dia poderia ter um pouquinho
dele, uma amostra grátis qualquer. Mas o problema desse sentimento era
simplesmente o fato de ser inteiramente especifico. O dito amor de Patrick
não adiantava. O que ela até então desejava, nunca seria dela. O amor
de Harry não pertencia a ninguém, se não a ele mesmo. Aprendera isso da pior
maneira, um pouco tarde demais.
Procurava por alguém, um homem qualquer no qual pudesse descontar e
aliviar as tensões de seu mal fadado relacionamento, mas seu radar não
parecia estar exatamente funcionando naquela noite. Todos pareciam ter
algum defeito. Alto demais, baixo demais, barba em excesso, totalmente
chapado, expressões de pura e total periculosidade. Nenhum parecia ser bom o
suficiente, ou talvez suficientemente adequado para o que queria. Algumas
prostitutas a olhavam torto, como se estivesse ali numa tentativa de roubar
seus preciosos clientes. Talvez estivesse mesmo, mas só precisava de um.
Quem sabe um que já tivesse visto antes em uma das noitadas não tão bem
aproveitadas por ela, um que fosse agradável, jovem e bonito, um com o qual
valeria a pena perder alguns minutos e compartilhar algumas experiências
corporais interessantes. E então num piscar aflito de olhos, uma varredura
imprecisa do local, ela ouviu as risadas. Risadas novas, divertidas, de um
grupo que deveria ter mais ou menos a sua idade, talvez um pouquinho mais
velhos, sentados ao redor de uma pequena mesa, bebendo alguns drinks e
conversando animadamente. Foi necessário só um olhar para identificá-lo, e
poucos segundos para lembrar-se. Os olhos negros continuavam intensos, os
lábios finos se esticavam num sorriso tão bonito quanto sensual, as luzes roxas
do local fazendo o pequeno piercing em seu nariz brilhar, e escondendo as
cores dos seus vários dreadlocks presos na parte de trás de sua cabeça.
Schmidt não mudara, nada, exceto as roupas, antes o uniforme totalmente
preto do Incatatem, agora uma regata branca de gola cavada coberta por um
cardigã verde-escuro, os jeans rasgados na altura do joelho e All Stars cinzas e
limpos. Bonito como sempre, intimidador como nunca. Boom. Era ele mesmo
que Karina queria.
Não foi preciso muito esforço, no entanto, para que ele a notasse. Parada em
frente a um dos pilares de sustentação do lugar, Karina sorria
deliberadamente, os olhos quase como fendas estreitas, os lábios entreabertos
e as mãos nos bolsos da jaqueta de couro. Os amigos do garoto foram os
primeiros a repararem, assobiando sem discrição, elogiando-a
incansavelmente. Até que ele levantou o rosto ligeiramente, sorrindo mais
ainda ao perceber quem se tratava, mas olhando pros lados como se
procurasse alguém. Rá. É claro que ele procuraria. Não tendo encontrado
nada, ou mais precisamente, ninguém com quem se preocupar, Schmidt
caminhou até ela, sendo quase ovacionado por seus companheiros quando
chegou próximo o suficiente para que ela sentisse o aroma de loção pós-barba
barata, cigarros e chicletes de canela, numa mistura ambiciosa e levemente
exótica, quase inebriante.
- Karina – a voz grave a atingiu em cheio, os olhos negros a prendendo num
poço de escuridão e sexualidade, quase como se refletissem o quão
desesperadamente ele gostaria de lhe devorar. Porque era isso que Schmidt
era: um predador natural – Sem cão de guarda dessa vez?
- O cão de guarda dançou. Estava mais para um gatinho manhoso – suas mãos
delicadas agora agarravam sem delicadeza nenhuma a gola macia do cardigã
do garoto, puxando-o para mais perto, deslizando um de seus dedos
compridos pelo rosto anguloso – E tudo que eu precisava era um leão.
- Você é uma garota de sorte, então – ele riu brevemente da comparação da
garota, antes de agarrar sua cintura com força, uma das mãos escorregando
por seu pescoço longo, subindo pela nunca até encontrar os cabelos castanhos,
fixando-se exatamente ali, antes de umedecer os lábios lentamente – Acabou
de encontrar o que precisava.
Sem um aviso ou pedido qualquer, Schmidt a beijou, a língua adentrando a
boca da garota rapidamente enquanto puxava seus cabelos sem cuidado
algum, encurralando-a contra o pilar de sustentação atrás deles, seus quadris
pressionando os dela contra o tijolo frio. O beijo era exigente demais, intenso
demais, a ponto de machucar. Não tinha a delicadeza de Patrick, nem mesmo
aquele cuidado mínimo que Harry sempre demonstrava. Schmidt mordia o
lábio da garota, suas mãos descendo pelo corpo semi-nu, apertando as coxas
de modo que ela sabia que ficariam hematomas depois. Os beijos dele se
concentravam agora em seu pescoço, duros, truncados, e Karina fechava os
olhos e tentava ignorar o fato de que uma das mãos dele adentrara seu sutiã
ainda fechado, prendendo o bico de seu seio entre os dedos, quase esmagando-
os, mas ela não sentia prazer nenhum nisso. Nem no modo como ele
esfregava-se nela, voltando a capturar seus lábios. Porque mesmo que Schmidt
fosse atraente, não havia desejo nenhum da parte dela. Não havia o fogo que
somente algumas vezes ela havia presenciado, nem mesmo uma necessidade
de que ele continuasse. A mais pura verdade era que Karina se arrependera tão
cedo, desejando que ele parasse, que não deslizasse os dedos para dentro de
sua calcinha como agora ele tentava fazer, encontrando uma resistência
grande da garota, o que talvez o tenha deixado mais aflito, sedento, até mesmo
um tanto violento nas caricias. Como dizer não naquele momento, como
afasta-lo, quando ele beijava a parte descoberta de seus seios e a prendia cada
vez mais naquele aperto sufocante? Karina poderia ter acertado uma joelhada
exata em suas partes intimas, mas não foi necessário.
Antes fosse.
- Com licença – uma voz confiante soou pelas costas de Schmidt, e uma mão
forte e conhecida agarrou um de seus ombros com força, fazendo com que ele
largasse a garota e o encarasse – Não que eu queira atrapalhar alguma coisa,
longe de mim, mas eu realmente não estou satisfeito em apreciar essa cena tão
deplorável, principalmente quando está claro de que a dama em questão não
está apreciando. Ah sim, devo lhe lembrar que a dama em questão
é minha namorada, e que tenho grandes problemas de possessão? E de
temperamento, obviamente. Mas isso você deve saber muito, muito bem. Ah
não ser que você precise de um lembrete. – os olhosverdes brilhavam em
fúria, as mãos fechadas em punhos e o lábio inferior tremendo em puro
nervosismo. Uma bomba prestes a explodir, um perigo iminente sem chances
de ser contido.
- Harry! Mas, ela...ela disse... – Schmidt gaguejava, sem saber exatamente
para qual dos dois, Karina com seu sorriso inocente e braços cruzados,
ou Harry que mais parecia um ser selvagem, um lobo despertado numa lua
incorreta. Engolindo em seco, ele preferiu encarar o filho do pastor.
- Gabriel – o verdadeiro nome do garoto foi pronunciado com um ódio tão
genuíno, um ódio que ela poucas vezes notara na voz de Harry, que Karina
levantou uma das sobrancelhas em surpresa, ansiosa demais para ver o final
daquela presepada – Suma da minha frente. Suma e nunca mais apareça. E me
escute bem – ele agora se aproximava, e Schmidt parecia se encolher, puro
medo tomando conta de cada pedaço de seu corpo, os olhos implorando por
um perdão qualquer – Se você encostar um dedo sequer em Karina
novamente, eu mato você, entendeu? Então não ouse, nunca mais, mexer com
ela, se você tem algum apreço pela sua merda de vida.
Schmidt sumiu de imediato, correndo a passos largos e levando os amigos
consigo. Foi então que ela reparou que a boate toda parara para assistir a cena,
e que agora Harry a encarava, algo a mais nos olhos do que ódio, algo quase
dolorido. Os lábios cerrados numa linha fina quando ele se aproximou, ela
pôde finalmente reparar que o filho do pastor usava suas roupas diurnas,
calças de linho negro e camisa de botões branca, os sapatos esmeradamente
lustrados, os cabelos penteados para trás de modo perfeito. Os olhos verdes
pareciam fazer uma análise de seu corpo descoberto, como se procurassem por
algum machucado que Schmidt pudesse ter deixado, alguma mancha de
sangue ou corte profundo na pele extremamente pálida da garota. Mal ele
sabia que o maior ferimento ele mesmo havia produzido. Seu coração aos
pedaços, sem possibilidade de ser remendado, deixado ao léu para agonizar
sozinho.
- E você – a voz de rock pornô que ela tanto apreciava entoou, uma autoridade
comedida refletida em cada nota – Venha comigo.
- Me obrigue – Karina sussurrou atrevida, um sorriso divertido surgindo em
seus lábios, enquanto internamente ela tentava apagar a dor e todo o
desconforto humilhante que Schmidt a fizera sofrer. Tinha que lidar com algo
muito maior agora.
- Não brinque comigo, Ká. – Harry franziu o cenho, a expressão mal
humorada e cansada tomando conta de seu rosto – Acho que temos alguns
assuntos a discutir em particular.
- Ah, com certeza, assuntos muito divertidos – a garota aproximou-se o
máximo possível, o mais perto que pudesse suportar, evitando inspirar
profundamente para não ser traída pela hipnose causada pelo perfume
amadeirado que ele sempre usava, para poder dizer as palavras certas no
ouvido de Harry – Talvez devêssemos discutir no seu escritório subterrâneo.
Você pode me mostrar alguns dos seus preciosos arquivos!
- Eu não sei do que você está falando – sua voz enfraqueceu, o corpo todo
tensionado como resposta as palavras tão simples, mas tão poderosas, que
acabara de ouvir.
- Não se faça de sonso, Harry. Esse papel nunca caiu bem em você. Não
queremos mais um escândalo, não é? Me leve lá. Agora.

Harry não sabia exatamente o que era, mas havia algo de diferente em Karina
naquela noite, algo que o assustava. Como diabos ela descobrira sobre o
escritório? O tom de voz que ela usara, a expressão em seu rosto, tudo com
tanto nojo e revolta, e um prazer agressivo em humilhá-lo. Aquela não era a
sua Karina. A mulher que passeava entre os sofás de couro marrom,
observando as prateleiras repletas de cadernos, parecia rancorosa e
determinada. Sentando em cima da mesa de trabalho agora vazia, ela cruzava
as longas pernas cobertas somente por aquela estúpida meia e aquelas
estúpidas cintas-ligas, parecendo estupidamente sexy e despertando um desejo
estúpido demais para que fosse saciado. Jogando todo o poder de seus olhos
castanhos e de seus longos cílios negros em cima de Harry, Karina sorriu, um
tanto maldosa, um tanto vitoriosa, mas com toda a certeza do mundo,
perigosa.
- Então, senhor Harry Styles – agora ela roubava um cigarro de uma carteira
abandonada por ali, brincando com ele entre as mãos, prendendo-o atrás da
orelha direita – Arquivo Saxon. Eu sempre odiei o meu sobrenome
verdadeiro. Por que não Arquivo Dawson? E claro, me deixe agradecer,
porque agora eu finalmente tenho algo para tatuar nas costas. “737”, bem
grande. Você poderia pagar a tatuagem, não é? Ouvi dizer que embolsou uma
bela quantidade de dinheiro.
- Ok, sem joguinhos, Ká. Vamos falar sério. – Harry tinha as mãos na cintura
quando parou frente a frente com ela, depois de fechar a porta de alumínio
com uma batida estrondosa – Quem te contou?
- E isso interessa agora? – Havia raiva em sua voz, de um jeito que ele nunca
havia presenciado antes, mas também havia uma mágoa compreensível,
mágoa esta que ele poderia aproveitar para contornar a situação. – Eu acho
que não. Nenhuma tentativa de explicação, nenhuma mentira? Mas que
progresso. Estamos finalmente conversando como adultos então.
- Adiantaria se eu explicasse? – Uma risada seca escapou de seus lábios, quase
inconformada, um riso de desistência, de deboche – Você não veio aqui para
me ouvir, veio? Aliás, muito bem calculada, essa sua vingança, meus
parabéns. Me desmoralizar na frente da cidade inteira, me desmoralizar na
frente de gente que me respeita, tentar causar ciúmes e me arrastar até aqui só
para rir da minha cara. – Harry bateu palmas, fingindo comoção –
Realmente Karina, eu não poderia estar mais orgulhoso de você. Me
surpreendeu, e falo isso com toda a sinceridade do mundo, já que, no
momento em que eu colocar os pés em casa, Angel vai me matar.
- Acredito que tenha surpreendido mesmo. Por que, no mínimo, você devia
acreditar que eu ficaria quietinha, chorando as minhas mágoas em casa, mas
me curvando aos seus pés e te perdoando assim que você me chamasse de
volta, como a boa e velha tola que eu sempre fui.
- Eu não preciso do seu perdão, Karina.
- Imaginei que não precisasse – Levantou-se num pulo, esbarrando
propositalmente nele numa tentativa de passagem um tanto mal sucedida –
Você nunca precisou de nada. Nada além de mim.
- Nesse ponto eu preciso concordar com você – Harry segurou-a firme pelo
braço, puxando-a de volta para si, colando corpos e encarando-a com aqueles
olhos verdes dominadores, mas agora um tanto suplicantes – Não preciso do
seu perdão, é perda de tempo. Nunca o terei, não é mesmo? Mas preciso de
você, mais do que nunca. Preciso de você perto de mim, sob os meus olhos, o
tempo todo.
- Faz parte do plano? – Karina soltou, irônica, tentando sair de seus braços,
erguendo o nariz no ar o mais alto possível. – Te deram um extra pra isso?
- Não – ele sussurrou, encarando descaradamente os lábios cheios e vermelhos
dela, rindo sozinho da própria desgraça – É pura necessidade minha, mesmo.
Cobriu os lábios dela com os seus delicadamente, mas rápido o suficiente para
que ela não pudesse fugir, tentando apagar a lembrança de ter visto aquela
boca que tinha sido feita somente para beijá-lo, e a ninguém mais, grudada na
de outro. O sangue fervia, o ódio voltava, mas nada disso podia ser
transmitido a ela. Arrependeu-se, no momento em que Karina mordeu seu
lábio inferior com força, a ponto de rasgá-lo, deixando o sangue escorrer em
sua língua. Afastou-se de imediato, choque e decepção em seus olhos
enquanto ele tentava limpar o líquido vermelho, sem sucesso algum. Karina
respirava fundo, o peito subindo e descendo sem parar, os olhos em chamas.
Até que veio o primeiro tapa. Ele merecia. O segundo também. A marca
vermelha dos dedos de Karina em seu rosto, marcando sua pele, mostrando
tudo que havia perdido. Tinha a garota nas mãos, tinha seu coração e seu
amor, e agora via tudo isso escorrendo por entre suas mãos como água
gelada.
- Ká...
Um brilho transpassou os olhos castanhos, rapidamente, como se uma ideia
brilhante tivesse lhe ocorrido. Aproximou-se, e, se pretendia ser sensual ou
não, Harry não fazia ideia, mas ela era. Demais para a sanidade do filho do
pastor. Puxando-o pelo colarinho branco, ela o provocava, seus lábios mal
tocando o rosto do garoto, seu perfume atiçando-o, a temperatura de seu corpo
enlouquecendo-o totalmente.
- Me responda Harry, e seja o mais sincero que essa sua alma podre permita
que você seja- A garota soprava, desenhando o contorno da boca dele com o
dedo indicador – Você me quer? Você me deseja, aqui e agora, uma última
vez?
Um sussurro inaudível escapou do garoto.
- Mais alto.
- Cacete! Mais do que eu quero permanecer vivo. Porra, Karina...
- Implore.
- O que?
- Você me ouviu. Fique de joelhos e implore. – seu sorriso nunca fora maior, e
que inferno, nunca fora tão atraente, Harry se castigava.
- Pra que? – Riu sem humor algum, ainda que aproveitasse o toque suave onde
antes havia a dor – Pra você dizer um “não” e me deixar aqui sozinho, louco
por você? Me humilhar te faz bem, não é? Eu sei que mereço, não vou negar.
Mas eu não vou facilitar as coisas pra você.
- Não confia em mim?
- Deveria?
- Bom, eu nunca desonrei minha palavra, não é?
Harry avaliou a situação, pesando os prós e os contras, e chegando a
conclusão que não tinha muito a perder. Não agora que ela o odiava.
Respirando fundo, ajoelhando-se lentamente, os olhos batendo na barra da
calcinha negra que ela usava, a vontade de passar os lábios por ali crescendo
forte em seu peito. Mas ele não teria coragem de olhar nos olhos dela. Mas
sabia que a garota o obrigaria, que queria sua humilhação total, no momento
em que seu joelho acertou levemente o queixo dele, forçando-o a olhar para
cima e soltar as palavras que ela queria tanto ouvir. O que o amor não fazia.
Te colocava nas situações mais esdrúxulas e improváveis, e mesmo assim
você fazia loucuras, mesmo que não houvesse certeza alguma de recompensa.
Ele o fez, só pela esperança de ser permitido toca-la mais uma vez, adorar
aquele corpo que ele tinha certeza ter sido moldado no dele, tentar uma última
vez convencê-la a não mandá-lo embora de sua vida. Com esse pensamento
em mente, Harry proferiu:
- Por favor, Karina. Eu te imploro. Seja minha, só mais uma vez. Por favor.

Wish I may,
(Gostaria de poder)
Wish I might find my one true love tonight
(Gostaria de ter encontrado meu amor verdadeiro essa noite)
Do you think that he could be you?
(Você acha que ele poderia ser você?)

O sorriso de vitória que surgiu no rosto de Karina, assim como sua risada alta
e musical, foram igualmente maldosos e adoráveis. Havia descaso e desejo em
seus olhos, e foi assim que ela posicionou as duas mãos ao redor do rosto
de Harry, puxando-o para cima até que ele ficasse em pé novamente e ela
pudesse sugar seu lábio inferior, limpando o sangue que ainda restava ali com
a ponta da língua, permitindo que ele colocasse as mãos em sua cintura, para
então olhá-lo diretamente nos grandes olhos verdes, provocá-lo um pouquinho
com seus quadris, antes de beijá-lo, primeiro calmamente, deslizando sua
língua macia contra a língua quente do filho do pastor, só desfrutando por um
momento da conhecida sensação, misturada agora ao gosto metálico do
sangue, para então exigir tudo que pudesse dele, tudo que tinha direito, tudo
que ele lhe negara. Foi então que, mesmo extasiado, Harry compreendeu que
só a teria se ela desse as ordens naquela noite, se ela permitisse que fossem
executadas as ações que ele pretendia. Nada parecia mais justo ou agradável.
Já Karina tinha o triunfo ao seu lado, mas mesmo assim não podia negar o
quanto amava aquele misto de sensações, por mais erradas que fossem.

If I pray really tight,


(Se eu rezar com vontade)
Get into a fake bar fight,
(Me envolver numa falsa briga de bar)
While I’m walking down the avenue.
( Enquanto estou caminhando pela avenida)
If I lay really quiet
( Se eu deitar bem quieta)
I know that what I do isn’t right
(Eu sei que o que faço não é certo)
I can’t stop what I love to do.
(Eu não consigo parar o que eu amo fazer)

Harry a beijava com uma vontade surpreendente, como se de fato fosse a


última coisa que faria na vida, agarrando-se a cada segundo junto dela. Karina
o empurrava contra as paredes, batendo sua cabeça em prateleiras e
derrubando cadernos e mais cadernos, mas ele não se importava com a dor
proposital que ela tentava lhe infligir, admitia para si que aquilo só lhe atiçava
mais, deixava-o com mais vontade dela e de tudo que ela podia lhe oferecer. O
prazer, a satisfação sem fim, o amor irrefreável. Ele sabia, que em algum
ponto por trás de toda aquela vingança calculada, ainda havia o amor já
confessado, o amor que Harry podia sentir em suas veias, em sua respiração
descompassada. Então somente a beijava com mais força, as mãos descendo
sem pudor nenhum até as nádegas da garota, apertando a região com força por
baixo das cintas-ligas, sentindo o corpo que estava agora em seus braços
tremer em excitação. Logo ela já arrancava a própria jaqueta de couro, para
em seguida despi-lo da camisa branca, passando as unhas compridas pelo
abdômen definido. Um deleite eterno, principalmente quando o filho do pastor
pôs se a beijar os ombros agora nus da garota, puxando as alças do sutiã negro
para baixo, desenhando suas clavículas com a língua. Karina não pode evitar o
gemido que escapou de seus lábios, ou os arranhões desenhados nas costas
de Harry, as unhas enfiadas com vontade na carne nua de suas costas. As
marcas vermelhas eram um lembrete para ele, uma dor que permaneceria por
dias, mas que era pouca se comparada a sua. Mas o garoto não parecia
entender o recado, já que aquele simples ato parecia ter despertado algo. Algo
que o fez abrir o fecho do sutiã rapidamente, jogando-o em qualquer lugar,
deslizando os dedos delicadamente pelos mamilos enrijecidos, somente para
viajar com a boca até um dos ouvidos da garota, sussurrando com um tanto de
raiva que ela não havia percebido antes:
- Você é minha. Minha. Só minha, de mais ninguém. – ele apertava quadris
contra quadris, virando o jogo, encostando-a contra a parede, a ereção já
pronunciada entre os jeans – Nunca na minha vida eu tive vontade verdadeira
de matar alguém, não até esta noite, quando te vi com aquele
idiota. Ninguém tem direito de te tocar desse jeito, você foi feita pra mim, e só
pra mim. Minha
. - Lamento informar – ela riu, mesmo que precisasse fechar os olhos no
momento em que a boca quente, precisa e deliciosa de Harry atacou sem
piedade qualquer um de seus seios, umedecendo-o, desenhando-o com sua
língua, chupando-o com vontade, antes de repetir o processo no outro
enquanto ela falava – Que qualquer direito que você tinha sobre mim foi
comprado pelo tal Greenfield. Tecnicamente, eu pertenço a ele, não?

So I murder love in the night,


(Então eu assassinei o amor na noite)
Watching them fall one by one they fight,
(Assistindo-os cair um a um, eles lutaram)
Do you think you’ll love me too, ooh, ooh?
(Você acha que vai me amar também?)
Harry rosnou, prensando seu corpo mais ainda ao dela, segurando-a pelo
pescoço, os dois movimentados os quadris um contra o outro em busca de
prazer imediato. Ela sorria, maliciosa e ironicamente, a mão descendo até o
fecho da calça jeans quando o garoto colou as testas uma na outra.
- Não ouse repetir isso, você ouviu bem? Ninguém nunca vai te querer do jeito
que eu te quero, te satisfazer do jeito que eu satisfaço. Somos perfeitos e
imperfeitos um para o outro, não somos?
- Não – soprou diretamente em seus lábios, vendo os olhos verdes ficando
cada vez mais escuros a medida que ela abria sua calça jeans, deslizando os
dedos pelo membro ereto dele, ouvindo o grunhido que raspava sua garganta.
- É sexo com ódio que você quer, Karina? Se for isso, eu sou completamente
capaz de te dar.
- Tem certeza?
- Não me provoque.

<i< baby,="" i’m="" a="" sociopath,=""


(Baby, eu sou uma sociopata)
Sweet serial killer.
(Doce serial killer)
On the warpath,
(Em um caminho de guerra
) ‘Cause I love you just a little too much
(Porque eu te amo um pouco de mais)
I love you just a little too much (much, much)
(Eu te amo um pouco de mais, mais, mais)
You can see me drinking cherry cola,
(Você pode me ver bebendo cherry cola)
Sweet serial killer,
(Doce serial killer)
I left a love note
(Eu deixei um bilhete de amor)
Said you know I love the thrill of the rush.
(Dizia “Você sabe que eu amo a emoção da corrida”)
You know I love the thrill of the rush (rush, rush)
(“Você sabe que eu amo a emoção da corrida”)
(You send me right to heaven)
(Você me mandou direto pro paraíso)</i<>

Se toda a vez que ela o provocasse ele tivesse aquela reação, Karina se
arrependeria de não tê-lo feito mais vezes. Harry tirou a calça jeans, chutando
as meias e os sapatos para um canto qualquer, somente para se abaixar mais
uma vez, e fazer algo que ela realmente não esperava. Com uma técnica de
mestre e uma vontade avassaladora, Harry arrancou com a boca uma por uma
as cintas-ligas que prendiam as meias de Karina a calcinha, para então
calmamente beijar cada pedacinho da extensão da barriga lisa da garota,
descendo até as coxa, enviando arrepios múltiplos a cada beijo vagaroso na
parte interna de suas pernas. Era fantástico, e mesmo assim intenso como
só Harry sabia ser. Não havia a delicadeza anterior, mas também não era nada
forçado, nada que machucaria. Mordendo pouco a pouco o caminho que fizera
até a parte inferior do tecido negro, aquela caricia seria uma tentativa a mais
de rende-la. Depositando os lábios cheios no tecido já úmido da calcinha de
renda, o filho do pastor sorriu antes de beija-lo, sem pedido algum. Um golpe
estupidamente baixo, em todos os sentidos possíveis.

Sweet serial killer (I guess I’ll see him over).


(Doce serial killer, eu acho que o verei de mais)
Do it for the thrill of the rush
(Faça isso pela sensação da agitação)
Love you just a little too much, much.
(Te amo só um pouco de mais, mais)
(You send me right to heaven),
(Você me mandou direto para o paraíso)
Sweet serial killer (I guess I’ll see him over).
(Doce serial killer, eu acho que o verei de mais)
I love you just a little too much,
(Eu te amo um só pouco de mais)
Love you just a little too much, much.
(Te amo só um pouco de mais, mais)

Os dentes do filho do pastor esbarravam na pele macia da garota no momento


em que ele os utilizava para retirar a calcinha de renda negra, a respiração
tocando-a ruidosamente, fazendo com que o coração já acelerado de Karina
disparasse ainda mais, só pela sensação de saber o que viria a seguir, e isso
bastava para que ela enlouquecesse só um pouquinho mais, e apagasse a
sensação de culpa que ainda insistia em lhe envolver. Aquilo era certo, da
maneira mais inconveniente possível. Ainda restava um último truque
guardado, pronto para ser usado na hora certa, e então ali ela juntava duas
coisas pelas quais desenvolvera certa obsessão repentina: estar nos braços
de Harry e aproveitar sua pequena vingança pessoal. Sabia que de alguma
maneira ele pagaria pelo que havia feito de outras maneiras, mas aquela era
satisfatoriamente interessante para a garota. Assim, quando os dedos ágeis e
certeiros de Harry deslizaram sob sua intimidade agora totalmente descoberta,
massageando lentamente seu clitóris umedecido, ela permitiu-se gemer
baixinho, e apreciar o sorriso que se formara nos lábios machucados do
garoto, antes que estes fossem utilizados para algo mais importante. Um
vislumbre do paraíso, essa era a sensação que parecia lhe ocorrer, no momento
em que dedos foram substituídos por uma boca macia e despreocupada,
ocupada somente com a tarefa de proporcionar tudo que ela precisasse, a
língua circulando o ponto de prazer de modo firme e constante, desenhando os
grandes lábios e cobrindo toda a extensão molhada, deliciando-se com cada
pequeno barulho e cada reação do corpo de Karina. Então Harry beijava
exatamente onde fosse necessário, naqueles pontos exatos onde ela parecia
entrar em combustão cada vez que sua boca os alcançasse, mexendo os
quadris levemente, agarrando os cabelos negros de Harry e o guiando pelos
caminhos certos. Parecia prestes a explodir toda vez que ele sugava seu
clitóris com delicadeza, prendendo-o entre os dentes, refazendo todo o
percurso até chegar naquele mesmo lugar, de novo, de novo e de novo. Seus
ombros tremiam, sua cabeça já não conseguia ficar encostada na parede, assim
como os olhos se fechavam num aperto significativo e constelações distintas
apareciam, totalmente adequadas ao momento. Mas quando Karina achou que
finalmente chegaria lá, que toda aquela tensão que carregava finalmente se
dissiparia, Harry parou, subitamente, subindo em beijos por sua barriga e entre
os seios, passando pelo pescoço longo e pelas bochechas coradas, até parar
próximo ao ouvido da garota.

My black fire’s burning bright,


(Meu fogo negro está ardendo, brilhante)
Maybe I’ll go out tonight.
(Talvez eu saia esta noite)
We can paint the town in blue.
(Nós podemos pintar a cidade de azul)
I’m so hot, I ignite,
(Eu sou tão quente, eu incendeio)
Dancing in the dark and I shine.
(Dançando no escuro e eu brilho)
Like a light I’m luring you.
(Como uma luz eu estou lhe seduzindo)

- Você disse que queria sexo com ódio, não disse? – ele riu baixinho,
pressionando o membro ereto contra o corpo nu da garota, deslizando os
dedos pelas meias translúcidas, as únicas peças que ainda permaneciam
intactas, inebriado e maravilhado – Não é assim que essa modalidade
funciona. Digamos que isso foi só um agrado que eu, muito generoso, resolvi
lhe oferecer.
- Ah, é? Bom, presumo que esta seja a minha hora de assumir, então.
- Como desejar, mademoiselle.
Sneak up on you, really quiet,
(Desloco-me sobre você, bem quieta)
Whisper “am I what your heart desires?”
(Sussurro “Sou eu que seu coração deseja?”)
I could be your ingenue.
(Eu poderia ser sua ingenuinamente)
Keep you safe, and inspired,
(Te manter seguro e inspirado)
Baby, let your fantasies unwind
(Baby, deixe suas fantasias se desenrolarem)
We can do what you want to do, ooh, ooh.
(Nós podemos fazer o que você quiser fazer)

Karina riu, empurrando o corpo do garoto para trás com força, até que ele
caísse sentado na poltrona de couro atrás da mesa de madeira, lugar de onde
ela tinha certeza que Harry dava ordens a seus subordinados. Observou-o, as
mãos na cintura fina, e constatou que só uma louca em crises terminais não o
desejaria ardentemente. Harry era um pecado capital, pecado esse que ela
havia transformado em sua própria religião, seguindo-a e adorando-a por um
longo período de tempo. Ele se afogava em expectativa, os piores
pensamentos lhe surgindo, o medo de ser abandonado ali, naquele estado,
tomando conta de seu psicológico. Mas logoKarina agiu, retirando com
cuidado as boxers brancas, descobrindo a ereção do garoto e sentando-se
sobre seus joelhos. Os dois jogavam um jogo de olhares, verdes e castanhos, o
calor do momento ardendo em antecipação. As unhas de Karina então se
arrastavam pelos músculos definidos da barriga de Harry, marcando-os,
traçando um caminho certeiro pelas pernas até onde ela queria chegar. Então
uma de suas mãos envolveu o membro pronunciado, acariciando-o,
masturbando-o com uma delicadeza impar enquanto voltava a beijar o filho do
pastor com volúpia. Ele arfava, e aquilo agora já era uma batalha, a boca da
garota descendo até seus ombros, descendo os dentes com força ali,
machucando-o e satisfazendo-o em proporções iguais. Houveram outros tapas
em alguns momentos, cabeçadas violentas, manchas de suor e de sangue, e
então beijos tórridos e intermináveis, até que ele não pudesse aguentar.
Precisava dela. Ali, agora, para sempre. E ela sabia disso, quando suas mãos
pararam de se mover contra a pele quente de Harry, e se ocuparam em
procurar preservativos nas gavetas escondidas da mesa de trabalho.

Baby, I’m a sociopath,


(Baby, eu sou uma sociopata)
Sweet serial killer.
(Doce serial killer)
On the warpath,
(Em um caminho de guerra)
‘Cause I love you just a little too much
(Porque eu te amo só um pouco de mais)
I love you just a little too much (much, much)
(Eu te amo um só pouco de mais, mais, mais)
You can see me drinking cherry cola,
(Você pode me ver bebendo cherry cola)
Sweet serial killer,
(Doce serial killer)
I left a love note
(Eu deixei um bilhete de amor)
Said you know I love the thrill of the rush.
(Dizia “Você sabe que eu amo a sensação do agitação” )
You know I love the thrill of the rush (rush, rush)
(“Você sabe que eu amo a sensação da agitação”)
(You send me right to heaven)
(Você me mandou direto pro paraíso)

Foi na última gaveta que encontrou o que procurava, rasgando a embalagem


com pressa, deixando que ele mesmo colocasse o preservativo da maneira
correta. As mãos de Harry cobriam seus quadris com uma possessão
inigualável, os olhos queimando em desejo puro e substancial. Não havia
ninguém como Karina no mundo, ninguém que o fizesse sentir daquela
maneira, ninguém que ele quisesse tanto, ninguém que ele amasse tanto.
Aquilo não podia ser perdido. Porque ambos nunca encontrariam um ser
humano sequer que os completasse mais do que Karina a Harry, Harry
a Karina. Aquele amor era o que se chamava de único, eterno, interminável.
Se ao menos tivesse a chance de dizer a ela, de mostrar um pouco de luz...
Agora não parecia ser o momento certo. Não quando ela sabia de quase tudo,
quando não acreditaria em uma palavra sequer que saísse de sua boca. Karina
precisava acreditar, porque Harry precisava que ela acreditasse. Então quando
ela se posicionou em cima dele, encaixando-se lentamente, deixando que o
garoto a preenchesse totalmente, os dois suspiraram pesadamente, juntos. Não
existiria nada mais perfeito que aquilo. Quando a garota começou a se mover
com vontade, deslizando para cima e para baixo de maneira totalmente
provocante, rebolando os quadris sob as mãos fortes que os cobriam, os dois
estavam a poucos passos do paraíso, a poucos passos de experimentar aquilo
que sabiam que só teriam um com o outro. Harry então a beijou, deitando-a
sobre seu peito, acariciando os cabelos castanhos de um modo carinhoso até
demais. Era tão calmo no meio de tanta selvageria, tão certo no meio da
tempestade. Um “eu te amo, acredite em mim”, traduzido por línguas que
dançavam a mesma melodia, mãos que acariciavam os rostos um do outro,
corações que batiam na mesma velocidade.
Just have fun,
(Só divirta-se)
Wanna play you like a game boy
(Quero te jogar como um game boy)
Don’t want one,
( Não quero somente um)
What’s the thrill of the same toy?
(Qual a emoção do mesmo brinquedo?)
La la, la la la, la la, la la lie down, down
(La la la la la la la, la la deite-se, deite-se)

Mas as investidas nunca paravam, somente cresciam, o deslize delicioso do


corpo dela sobre o dele, os pontos que ela conseguia alcançar, o prazer no qual
mergulhavam, sem fim. Harry estava perto demais, perto demais, ele quase
sentia o gosto em sua boca, a realização desenrolando-se por seus músculos.
Mais um pouquinho naquele ritmo, só mais um pouquinho. Mas então Karina
desacelerou, quase a ponto de parar, um sorriso de pura maldade estampado
em seus lábios quando ela colou a testa na dele. Arfando, as palavras saíram
naturalmente, como se tivessem sido planejadas há tanto tempo que já faziam
parte dela, inteiramente:
- Implore, Hazza.
- Karina – não adiantava tentar jogar o jogo, fazer-se de difícil, reclamar em
alto e bom som. Sabia que ela não desistiria tão fácil. Reuniu então, toda a
força que pode, e jogando toda a carga emocional que podia em seus
olhos verdes, respondeu prontamente – Por favor, Karina. Por favor.
Rindo como uma criança que acaba de ganhar o melhor brinquedo de uma
imensa loja colorida, Karina selou os lábios dos dois, mantendo-os grudados
enquanto voltava a se mover com entusiasmo. A cadeira balança, o suor
escorria pelas costas de ambos, os olhos num contato inquebrável. Pouco
bastou para que a garota se rendesse ao orgasmo, explosões em todo o seu
corpo, alivio para seus ombros tensionados, as portas do paraíso se abrindo
diante de seus olhos cansados. Inferno. Sentiria mais falta daquilo do que
poderia admitir. Harry havia sido seu primeiro e único, mas ela sabia que não
haveriam outros como ele. Sabia que daquele modo, só ele a faria se sentir.
Mas sexo não era tudo, e todas as outras coisas que ele havia feito ainda
martelavam em sua cabeça, as preocupações a preenchendo novamente. Mas
então o filho do pastor também chegou ao seu ápice, sussurrando o nome dela.
Deslizando para longe dele, o vazio a incomodou por um momento, e a ele
também. Levantou rapidamente para que o preservativo fosse retirado e
jogado na lata de lixo embaixo da mesa. Iria sair dali, se Harry não a tivesse
puxado para um abraço apertado. Seriam só poucos segundos, ela prometeu a
si mesma. Deixou que Harry escondesse a cabeça entre seus cabelos
compridos, os lábios contra a pele de seus ombros, os braços a apertando
fortemente contra seu peito. E então as palavras, palavras que ela pensou que
nunca poderia ouvir.
- Não desista de mim – Harry sussurrou, as energias esgotadas – Não me
deixe. Fuja comigo. Vamos começar tudo de novo, longe daqui. Não me
abandone agora.

You can see me drinking cherry cola,


(Você pode me ver bebendo cherry cola)
Sweet serial killer,
(Doce serial killer)
I left a love note
(Eu deixei um bilhete de amor)
Said you know I love the thrill of the rush.
(Dizia “Você sabe que eu amo a sensação do agitação”)
You know I love the thrill of the rush (rush, rush)
(“Você sabe que eu amo a sensação da agitação”)
(You send me right to heaven)
(Você me mandou direto pro paraíso)

O cigarro ainda permanecia atrás de sua orelha, e então Karina endireitou-se,


voltando a ficar sentada sobre ele, olhos nos olhos. Havia um isqueiro na
mesma gaveta dos preservativos, e, acendendo o cigarro rapidamente, a garota
levou-o aos lábios, antes de tragar longamente e soprar a fumaça diretamente
na boca de Harry, que fechou os olhos e esperou a sentença, apreensivo e sem
esperança alguma.
- Tarde demais, não é? Deveria ter pensado nisso antes, meu bem. É tarde
demais pra qualquer coisa. Principalmente pra nós dois.
- Não precisa ser.
- Precisa. Mas não se preocupe, não vou te deixar sem nenhuma lembrança
minha. Se é que você precise realmente de alguma, mas, é sempre bom nas
noites de desespero, não é?
Karina pressionou o cigarro aceso na pele de Harry, logo abaixo das
clavículas, deixando que queimasse por um momento antes de beijar o local,
demoradamente. O filho do pastor não sabia ao certo o que predominava, a
dor ou a excitação do momento, mas também sabia que aquela marca seria um
lembrete cruel de tudo que havia perdido. Mas precisava restar algum tipo de
tempo, algum tipo de chance para ele. Pensaria nisso por horas longas e
eternas, deitado em sua cama no posto de gasolina, bolando planos e mais
planos para tê-la de volta. A garota levantou-se, procurando as peças de roupa
perdidas, vestindo-as a medida que as encontrava e finalizando o cigarro, sem
emoção alguma. Harry tratou de fazer o mesmo, rapidamente, pegando as
boxers e a camisa branca que se encontravam em cima de um dos sofás.
- Isso é um adeus, Harry.
- Prefiro acreditar que é um “até logo”.
- Não é. Eu espero, do fundo do meu coração, que você apodreça no inferno.
Doeu mais do que qualquer tapa que ela houvesse lhe dado naquela noite.
Doeu mais do que tudo que já sofrera antes. Porque o desprezo contido ali,
esse era verdadeiro. O modo como ela andara até a porta, abrindo-a com
repulsa e saindo com o tilintar de seus saltos altos, tudo isso o atingiu. Poderia
sentar ali, revirar suas mágoas, se afogar em suas lembranças. Mas Harry não
o faria. Não porque era forte e podia passar por tudo aquilo intacto, mas sim
pela voz que ouvira vindo do corredor, alta, clara e direta.

O corredor continuava escuro e mal cheiroso, do mesmo modo que algumas


horas atrás. Karina tentava não cair, não tropeçar em qualquer bicho
asqueroso que ali habitasse. Mas não deu mais de três passos. Porque ali,
parado imponente, uma lanterna em mãos e um sorriso convencido, havia um
homem de olhar insano e cabelos encaracolados.
- Ora ora ora – ele proferiu, extremamente animado – Se não é a
jovem Karina! Exatamente quem eu estava procurando. – as sobrancelhas se
ergueram ligeiras, e sua boca fina formou um ‘oh’ repentino, como se
lembrasse de algo – Que má criação a minha, não me apresentar. Me chamo
Lorenzo. Lorenzo Greenfield.
- Você. Você! O que diabos quer comigo?
- Tudo, e nada. Primeiro, uma boa conversa. Se não se importa de vir
comigo...Presumo que Harry esteja em seu escritório.
- Certeiro como sempre – Harry surgiu atrás da garota, toda a pose e confiança
que sempre o acompanhavam parecia ter sido extraída de seu corpo jovem.
- Ótimo. Adoro casais felizes. Agora me sigam, sim? Por vontade própria, é
claro. Eu odiaria ter que usar de forças maiores para tê-los em minha
companhia.
Dando as costas para os dois, Greenfield pôs-se a caminhar pelo corredor
escuro, em direção a saída, cantarolando uma ópera qualquer em italiano.
Com um olhar assustado, Karina sussurrou na direção de Harry:
- Você sabia disso, não sabia? Foi tudo uma armadilha, não foi?
- Não, Karina – ele empurrou-a para que ela começasse a caminhar, para então
segui-la a passos largos – No momento, eu estou tão ferrado quanto você.

*Smooth Criminal é uma música sensacional de Michael Jackson: Criminoso


Ardiloso
*A música do capítulo é Serial Killer da musa de HF, Lana Del Rey

Capítulo 20 – Living On A Prayer

A tranquilidade de espírito é um patamar difícil de atingir. Quando você pode


finalmente colocar a cabeça no travesseiro e não ter preocupações, angústias
ou qualquer tipo de culpa que te persiga, talvez esse seja o verdadeiro paraíso.
Mas quem realmente pode se dizer completamente livre de temores e
pensamentos vertiginosos, amores não vividos e mágoas acumuladas? Talvez
no mundo dos sonhos seja possível. A realidade assusta, desencoraja, cria
monstros impossíveis de serem derrotados e armadilhas de onde não se pode
fugir. A cada minuto em que os olhos permanecem abertos e o coração
bombeia mais um litro de sangue, a vida se torna mais complicada. A
negatividade então se espalha, e a morte não parece uma opção tão pior assim.
Às vezes dói levantar da cama sabendo o que te espera, sabendo que não
existem meios de contornar aquilo que o dia guarda. Vale a pena viver uma
vida de sofrimento só pelo ato de viver? Sobreviver. Dormir eternamente
parecia tão mais fácil, onde tudo era tangível, todas as vontades alcançadas,
todos os amores vividos a beira da exaustão. Dizem que a simples ideia da
morte é uma afronta àqueles que lutam todos os dias para permanecerem
vivos, mas quem tem o verdadeiro direito de interferir nas decisões alheias?
Tantas dúvidas, tantos questionamentos. Ser ou não ser? Viver ou morrer? Eis
a questão. O que seria menos doloroso no final? Deixar-se levar pelos braços
do destino, talvez. Mesmo que estes fossem os braços que o sufocassem a
cada amanhecer.
O vento litorâneo batia forte em seus cabelos, os raios de sol atingindo em
cheio a pele que antes sempre fora clara, mas agora tinha um tom de dourado
que lhe caia excepcionalmente bem. A areia sob seus pés descalços era branca
e muito macia, as ondas mornas e salgadas molhando-o vez ou outra. E Harry
nunca se sentira tão bem antes. Era fim de tarde, e tudo parecia alaranjado, um
belo dia de verão, como ele nunca havia visto. A praia estava vazia, as
montanhas completando ao fundo uma paisagem nada menos do que
espetacular. O garoto caminhava lentamente, o tempo sendo deixado de lado,
de tão secundário que era. Tudo que valiam agora eram as sensações e os
momentos de uma nova vida a ser aproveitada. Vestia uma bermuda de tecido
azul, o tronco nu, exibindo com orgulho a tatuagem, desejo de anos e anos,
brilhante nas costas. Pássaros negros voando, dezenas deles, como numa
antiga canção dos Beatles que ele tanto amava...”All your life, you were only
waiting for this moment to be free. Blackbird, fly, fly...”. Um rito de
passagem, uma marca de um recomeço. Os dias em que era chamado não por
seu nome, mas por “filho do pastor” haviam passado, e agora ele não era
ninguém além de Harry. Harry começando a vida em uma cidade
grande, Harry que conhecera o mundo, Harry que havia acabado de ser aceito
na faculdade de Cinema. Sua paixão pela tela grande começara meio
escondida, já que sua mãe não lhe permitia assistir a filmes que não fossem de
conteúdo religioso ou educacional. Mas agora tinha a chance de estar no
mundo que sempre quis, e talvez chegar um pouquinho perto de seus
ídolos. Quentin Tarantino, Tim Burton, Peter Jackson, Woody Allen. Um dia
seria um dos grandes, dava-se ao luxo até mesmo de almejar um Globo de
Ouro, ou quem sabe mesmo um Oscar em sua prateleira. Tinha um
apartamento confortável próximo à universidade, um cachorro labrador de
nome Lennon e ela. A garota de longos cabelos pretos parada a alguns passos
dele.
Era a primeira vez que Karina via o mar, fato que ela lhe havia confessado
quando não passavam de um casal problemático numa cidade pequena. Sua
mãe adotiva detestava a maresia, os grãos de areia presos às roupas, a água
salgada demais do oceano. Esma sempre preferiu os lugares gelados, cobertos
de neve e luxuosos. Nada parecido com sua filha. Seus cabelos voavam ao
redor de seu rosto, assim como o vestido floral, quase transparente, que usava
por cima de um biquíni vermelho. Os grandes olhos azuis observavam
admirados o quebrar das ondas tranquilas, e um sorriso leve brincava em seus
lábios limpos. Para Harry, a garota nunca estivera tão bonita quanto naquele
momento. Era Karina de verdade, a inocência de criança misturada ao seu
corpo de mulher, apagando todos os fantasmas que um dia lhe perseguiram.
Viajaram o mundo juntos, conheceram os lugares favoritos de cada um, e
agora terminavam o passeio ali, o último desejo de sua menina realizado.
Felicidade transbordava de ambos, principalmente dela, cujos únicos
momentos de alegria que tivera anteriormente não passaram de armações ou
emboscadas. Seus ombros relaxavam, os pés descalços irrequietos sobre a
areia, embora a respiração fosse calma, o peito subindo e descendo
lentamente. Dali dois dias iriam para casa, o apartamento deles, para morarem
juntos. Karina fora aceita em uma famosa universidade, onde poderia
finalmente conseguir seu diploma em Escrita Criativa. Teria o tempo que
nunca teve para trabalhar em algum romance, um roteiro que um dia poderia
virar um blockbuster nas mãos de Harry. O que poderia ser melhor do que
poder amar livremente, como nunca antes, sem precisar dar explicações a
ninguém? Nada. Nada superaria aquele sentimento.
Aproximou-se, abraçando-a pela cintura e sentindo-a se aninhar contra seu
peito nu, as mãos delicadas entrelaçadas nas mãos fortes do garoto. Harry
repousou o queixo em um dos ombros dela, depositando beijos aqui e ali em
certos intervalos de tempo, rindo baixinho dos arrepios que pareciam passar
pela espinha de Karina. Somente aproveitavam a vista, aproveitavam o tempo
que parecia passar mais devagar, quase infinito, abraçados, corpos como se
fossem um só. Talvez fossem, como um antigo mito grego que contava que
casais formavam um só ser, até que separados fossem, obrigados eternamente
a procurar pela metade faltante. Quão irônico era o fato de que logo os dois,
cujo destino não havia sido nada caridoso, terem tido a sorte de encontrar o
pedaço perdido em meio a tantas dificuldades e contratempos? Mas diziam
que o amor de verdade era exatamente assim. Certo, mesmo quando
aparentemente errado, verdadeiro, mesmo em um mar de desenganos,
corajoso, mesmo perante desafios inalcançáveis, esperançoso, mesmo diante
da falta de fé. Era assim, e talvez seria até o final dos tempos. O amor não
desvirtuava, ele transformava, liberava a melhor parte de cada um. Bastava
que fosse inteiramente sentido, vivido e recíproco. O amor salvava.
Salvou Karina, salvou Harry.
- Meu bem – Harry sussurrava, afastando mechas dos cabelos pretos para
longe do ouvido da garota, beijando seu pescoço calmamente - Está ficando
tarde. Vamos?
- Mas já? – fingiu um choramingo, arrancando risadas baixas do namorado –
Não podemos ficar só mais um pouquinho?
- Eu tinha planos mais interessantes pra nós dois...- acariciava-a lentamente,
dos ombros relaxados, passando depois pelo contorno dos seios cobertos,
descendo para a cintura fina, até deslizar as mãos para dentro do vestido
transparente, chegando nos quadris e afundando ali os dedos longos com
possessão – Podemos voltar amanhã pela manhã, bem cedo. Mas agora estava
pensando em um banho quente... Um pouco de vinho pra você, whisky pra
mim – a voz era maliciosa, provocante, e ela tremia sob seus carinhos – Nossa
cama confortável nos esperando...
- Pervertido. Você não pensa em outra coisa? – mas ela ria, virando-se em um
rodopiar gracioso, encarando os olhos verdes com um brilho maroto nos azuis,
cobrindo os lábios do garoto com os seus por um segundo.
- Penso. Em muitas coisas. – os narizes se tocavam, beijos leves e demorados,
um atrás do outro – Mas a maioria delas acaba ficando em segundo plano
quando você se veste desse jeito.
- Sempre direto ao ponto. Ah, meu bom e velho Harry. – deixou que ele lhe
tomasse a mão, caminhando lado a lado de volta ao chalé que haviam alugado
pela semana, o sol se pondo ao fundo e pintando toda a praia de um azul claro
manchado aqui e ali de coral. Seria uma noite linda, pelas estrelas que já
começavam a despontar no horizonte – Eu gosto disso...
- Do que, meu amor?
- Nós dois, assim, juntos. Sem segredo nenhum. Essa viagem fantástica, o
nosso futuro juntos... Você – ela sorriu, apertando a mão do garoto,
encostando a cabeça em seu braço forte – Eu gosto de você.
- É claro que você gosta de mim, Ká – ria divertido, beijando o topo da cabeça
dela, uma pequena nuvem atravessando os olhos muito verdes. Sem segredo
nenhum... – Não tem como não gostar de mim. Eu sou fantástico. Mas eu
também gosto... Sempre achei essa coisa de casalzinho extremamente melosa
e ridícula. Com você eu gosto. É bom...
- Talvez porque eu seja simplesmente fabulosa. – ela deu de ombros,
deliciando-se com a risada alta dele, tão similar a sua.
- E você ainda se acha no direito de falar do meu ego? Assim você me magoa,
meu bem.
- Aprendi com o melhor, oras – piscava inocente, o chalé de madeira polida
entrando em seu campo de visão, somente alguns metros distante. – Mas
dizem por ai que o aluno sempre supera seu professor.
Foi uma troca de olhares, rápida e eficaz, até que ambos caíssem no riso, um
som malicioso e debochado, ritmado e quase ensaiado. Karina desvencilhou-
se com maestria do garoto, um rodopio elegante, o vestido balançando
levemente. Harry tinha as mãos na cintura, um brilho desconfiado brincando
nos olhos verdes, um sorriso sacana rasgando seus lábios. Era como se a
desafiasse, um “e agora, Ká?”. Ela então soprou-lhe um beijo, colocando-se a
correr em disparada em seguida, os cabelos balançando ao vento. O garoto a
seguiu, sem dificuldades, encontrando-se os dois em frente ao chalé, puxando
pela cintura e erguendo-a levemente. A clássica cena de um filme da sessão da
tarde visto mil vezes, mas por mais clichê que fosse, era real. Foi real quando
ele a beijou com vontade, com paixão. Foi real quando ela sussurrou ‘eu te
amo’ contra o ouvido dele. Colocando-a nas costas, ele caminhou os poucos
passos que restavam até as escadas que levavam ao que era o lar, doce lar dos
dois naquela semana.
As paredes eram escuras, madeira pura e escovada. Lâmpadas incandescentes
no teto, móveis rústicos e sofisticados, feitos do mesmo material da casa, em
contraste com aparelhos modernos e exalando tecnologia. O tapete branco que
cobria a maior parte da sala talvez fosse tão macio quanto a areia lá fora, o
sofá de almofadas estampadas com folhas de outono confortável como um
abraço. A cozinha era separada apenas por duas grandes colunas, no lado
oposto da porta que levava a única suíte do lugar. Tinha cheiro de cravo, de
pimenta e de tempo. Por mais atual que o lugar parecesse, era antigo. Quantas
histórias aquela pequena casa já tinha presenciado, quantos amores e amantes,
quantos inícios e fins? Aquele era mais um. Harry largou Karina sobre um dos
sofás, sorrindo abertamente para ela.
- Uma banheira seria maravilhosa no momento, mas só nos resta um chuveiro
– deu de ombros, erguendo uma das sobrancelhas sugestivamente – É o que
temos por agora. Eu estou morrendo por um cigarro, então você pode ir
ligando-o, tirando esse vestido bobo... Não vou demorar. Tudo bem?
Karina assentiu, jogando-se contra as almofadas, fechando os olhos
delicadamente. A imagem era tranquila, bela, hipnotizadora. Tudo que Harry
sabia fazer era sorrir. Andava sorrindo muito ultimamente, as bochechas
acabariam ficando doloridas. Bons motivos, bons motivos. Caminhou sem
pressa até a varanda, debruçando-se no cercado que a rodeava, um cigarro
recém retirado de um maço em um dos bolsos da bermuda agora pendurado
nos lábios. Agora a noite já havia se instalado, majestosa. Sempre ela, sempre
a noite. Em certos períodos de tempo ela era sua companheira, sua melhor
amiga. Encobria-o em suas fugas, salvava-o de enrascadas gigantescas. Mas
em outras ocasiões, ela o destruía. Machucava, abria rasgos em sua armadura
bem feita. Naquele momento, no entanto, ela se mostrava indecisa. Colocava
peso nos ombros do garoto, uma certa dor em sua garganta. Segredos. Uma
única palavrinha, tão inofensiva, havia preocupado cada centímetro do corpo
dele. Os olhos verdes encaravam Lennon brincando com sua bolinha favorita.
Tinha adoração pelo cachorro, encontrado numa pequena loja nas ruas da
França. Karina provavelmente o havia soltado, pela porta dos fundos
escondida na cozinha, onde ficava sua casinha confortável. Lennon era
realmente feliz. O pequeno labrador não tinha preocupação nenhuma no
mundo. Ao contrário de seu dono.
Soltando a fumaça lentamente pelos lábios, ele refletia. Era justo
manter Karina ingênua em relação ao seu próprio passado? Mesmo que fosse
para protegê-la? Algo lhe dizia que não. Mas estavam tão felizes... Pela
primeira vez, estavam em paz. O preço da verdade era caro demais, às vezes
não valia a pena pagá-lo. No futuro, então, o garoto prometeu-se. No futuro,
quando estivessem estabelecidos, quando a confiança um no outro fosse de
titânio, e não do fino cristal que agora se constituía. Tragou mais uma vez,
batendo os dedos levemente na madeira fria. Nem tudo havia mudado.
De Harry permaneciam a malicia, o ego inflado, a motocicleta. As verdades
escondidas. De Karina, a cegueira irremediável, a doce ignorância.
Lábios quentes tocaram suas costas, braços finos e macios abraçando sua
cintura, um perfume floral se instaurando. Sua garota estava de volta, beijando
cada passarinho negro tatuado em sua pele com um cuidado e dedicação
infinitos. Como se Harry fosse precioso demais, como se pudesse sumir em
um piscar de olhos. Sua Karina. A ideia brincava em seus ouvidos, fazia seu
coração bater mais forte e seu ego crescer um pouquinho mais. Quando em
sua vida imaginaria ter alguém pra chamar de sua? Alguém que lhe quisesse
de volta, que também o possuísse.
Alguém que o amasse. Ninguém nunca havia lhe amado daquela maneira
antes.
- Hey, você está bem? – a voz suave dela sussurrava contra sua pele, nunca
deixando as caricias, apertando-o mais forte contra si.
- Estou. Só pensando na vida. – terminou o cigarro, inspirando profundamente
– E você?
- Um pouquinho cansada. Banho?
- Banho.
Puxou-lhe pela mão até o banheiro, e só então Harry pode notar que ela havia
se livrado do vestido, o biquíni vermelho destacando-se em sua pele alva. Não
queria imaginar o quanto Karina resmungaria mais tarde sobre a areia na
cama, mas ele sabia que a garota faria sorrindo. Além disso, não era novidade
o fato de não terem chegado ao seu destino, ao menos não como planejado.
Aquilo acontecera inúmeras vezes, e continuaria acontecendo, sempre e
sempre. Ao chegar à porta do quarto, o garoto capturou com os seus os lábios
rosados que tanto gostava de beijar, puxando-a para si pelas nádegas
semicobertas, os dedos afundando na pele do local, deixando marcas quando
ela jogou as pernas em volta de sua cintura. Tão automático, quase como uma
coreografia ensaiada, os corpos em chamas e os corações seguindo o mesmo
ritmo. Uma batalha improvisada de línguas quentes acariciando-se,
explorando tudo que havia para ser explorado, implorando por mais e mais.
As mãos dela nos ombros dele, quase uma massagem com as pontas dos dedos
e o leve formigar de unhas compridas sendo arrastadas por ali, todos os tipos
de sensações passando por seu corpo. O toque de pele na pele, molhada,
quente pelo sol e pelo desejo, era simplesmente fantástico. Mais impactante
quando Harry abriu a porta com um empurrão violento, carregando-a consigo
para dentro do quarto aconchegante, a boca ocupada com um pescoço longo e
delicioso, clavículas que pediam para serem desenhadas com sua língua,
quadris inquietos sob a palma de suas mãos.
A parte de cima do dito biquíni vermelho era tão simples, tão fácil de ser
retirada. Dois nós o afastavam dos seios redondos da garota, somente dois nós
que logo não existiam mais sob os cuidados dos dedos habilidosos de Harry,
que rapidamente se ocuparam com os mamilos enrijecidos com seu toque, um
após o outro, puxando-os, circulando-os, prendendo-os entre sua mão num
circulo eterno, maravilhoso. O beijo recomeçara, perigoso, exigente, as mão
de Karina agora tateando os músculos da barriga dele, desenhando formas
com as unhas, escorregando até a barra da bermuda. Parados perto da beirada,
ele deixou que a namorada o encaminhasse em direção a grande cama de casal
de ferro negro que ali havia, dois criados-mudos de madeira e abajures
amarelos a rodeando. Ela o empurrou, caindo em seu colo, e havia um brilho
negro nos olhos azuis, uma luxúria disfarçada os engolindo, derretendo o
bloco de gelo que era chamado de sanidade. Não era necessário agir
racionalmente.
- Menino mau – ela ria, os seios apertados contra o peitoral dele, umedecendo
os lábios com a língua por segundos que pareciam longos demais, quadris se
esfregando conscientemente, a ereção dele já destacando-se entre suas pernas
– Menino muito, muito mau.
- Eu? – Harry fingia inocência, mesmo que ali estivesse ela, sua malicia
sempre presente, escondida no canto dos lábios inchados. Tentava
atacar Karina de todas as formas possíveis, as mãos ligeiras, a boca nervosa,
mas ela se esquivava, travando um jogo de gato e rato que o enlouquecia
lentamente, a vontade rugindo em seu peito como um leão disfarçado. Era
sempre sensacional, cada vez que os dois recomeçavam a dita dança. Nunca
perdia a graça, a sensação de novidade nunca se extinguia, mesmo que agora
conhecessem o corpo um do outro como a palma da própria mão.
- Existe algum outro cara aqui nesse quarto? - Não sei. Me deixe olhar dentro
do armário. – fez menção de levantar-se, somente pra roçar nada
inocentemente o membro ereto no tecido da parte de baixo do biquíni
vermelho, fazendo Karina arquear o quadril e prender a respiração, olhando
feio para ele. Golpe baixo. Golpe muito, muito baixo.
- Você está cortando todo o clima, Styles. - Mentira – agarrou um de seus
seios com força, o polegar pressionando o bico rígido, para cima e para baixo,
observando a expressão no rosto da garota suavizar, os dentes brancos
agarrando o próprio lábio inferior – Uma garota tão bonita mentindo desse
jeito... Tsc tsc. – o beijo começou um pouco abaixo do pescoço, subindo
lentamente, até que os dentes de Harry mordessem o maxilar inferior dela com
carinho, os dedos escapando de seu busto e escorregando pela barriga lisa.
Fogo, fogo por todos os lados. Era exatamente assim que Karina interpretava
tudo aquilo.
- Filho da puta.
- Repete – embrenhou uma das mãos entre os longos cabelos pretos dela,
puxando-os com uma força calculada perto da raiz, proporcionando-o a visão
clara e aberta do corpo semi-nu da garota em toda a sua glória, a risada baixa
e sensual soando como música em seus ouvidos. E Karina pertencia
totalmente a ele, cada centímetro de seu corpo e de seu coração.
- Filho – sorria, cerrando os olhos com força ao sentir a boca quente de Harry
em volta de um de seus seios, as mãos se fechando ao redor da barra de sua
bermuda – da – ele prendia o bico com seus dentes, sugando-o com vontade,
para então repetir o processo no outro seio, do mesmo jeito – puta – foi quase
um gemido, um sussurro comprido e prolongado quando olhos verdes
mergulharam nos azuis.
- É o que eu sou. Você sempre gostou de mim assim. Ok... Agora abra a boca.
– uma ruga de desentendimento surgiu entre os olhos de Karina, os lábios se
fechando num biquinho manhoso – Vamos lá! Não confia mais em mim? –
Deslizou um dedo atrevido até o fundo do biquíni vermelho, friccionando o
tecido molhado e arrancando um gemido da garota – Seja boazinha. Você vai
gostar.
Ela ainda o olhava desconfiada quando partiu os lábios agora vermelhos,
esperando pacientemente o que viria a seguir, a excitação a deixando
louca. Harry adorava torturá-la daquele jeito, prolongando as caricias e as
provocações, até que não fosse possível aguentar. Mas não era algo a se
reclamar. O resultado final daquilo era um pedacinho do paraíso. Quando dois
dos dedos longos de Harry adentraram sua boca, ela sabia o que fazer. Sua
língua os rodeava, sugando-os devagarzinho sob os olhares atentos do
namorado. A garota não sabia o que aconteceria depois, mas sabia que seria
bom. Fascinante, delicioso, insano, como tudo que vinha deHarry.
- Isso, isso. Assim está ótimo, meu bem – ele ria, deliciado com a imagem ao
retirá-los da boca macia, roubando um selinho rápido dela – Agora respire
fundo...
O aviso fora necessário e extremamente útil quando o garoto deslizou os
mesmos dois dedos para dentro de seu biquíni vermelho, percorrendo com
eles os grandes lábios dela, sombreando lentamente seu clitóris até serem
introduzidos dentro de seu corpo, sem nenhum aviso prévio. Karina afundou
as unhas longas nos ombros largos dele, tentando conter, sem sucesso
aparente, os sons que insistiam em escapar-lhe quando Harry começou a
movimentar seus dedos, entrando e saindo rapidamente, o polegar
pressionando seu ponto de prazer. Ela conseguia sentir o orgasmo se
formando, poderoso, seus músculos se contraindo a medida que a intensidade
aumentava. O garoto a assistia, fascinado com as expressões que passavam
pelo rosto delicado, o prazer puro e incondicional e o perfume floral que ela
exalava só aumentavam sua própria excitação. Tão linda, tão desejável, tão
sua.
O nome dele escapou de seus lábios, alto, claro e necessitado, quando Karina
atingiu seu ponto máximo. Seu corpo todo tremia sob as mãos de Harry, e ele
a segurava com força pela cintura, contendo-a até que os espasmos de seu
corpo passassem. A garota sabia que era só o começo, mas ainda assim sentia-
se completa, feliz, no céu. O céu não era o limite para aqueles dois. O céu era
só o começo. E agora era a hora de retribuir.
Karina grudou os lábios no pescoço perfumado de Harry, deslizando-os de
cima a baixo, sugando a pele macia. Empurrou-o contra a cama de modo que
ficasse deitado, passando a língua em seu peitoral, desenhando cada
pedacinho de seu abdômen bem definido, arranhando o local com os dentes,
até chegar a barra da bermuda azul. Ele a espiava, meio divertido, meio
ansioso, totalmente entregue. Se ela realmente fizesse o que o garoto
imaginaria que faria... Karina começou a despi-lo, os dedos finos tocando a
pele, contando com um pouco de ajuda ao terminar de retirar a peça. Qual sua
surpresa ao descobrir que aquela era a única coisa que ele vestia, o membro
ereto, firme, rígido agora totalmente aparente e próximo de seu rosto. Voltou
ao seu jogo de provocações, a boca agora ocupada com a virilha dele,
passando para o interior das coxas, mas sem nunca tocar onde Harry
realmente queria. O garoto bufava em nervosismo, em pura vontade que ela o
tocasse. Voltou a embrenhar as mãos nos cabelos compridos e brilhantes de
sua Karina, arrancando um pequeno sorriso dos lábios que, finalmente,
envolveram seu membro com destreza, a língua percorrendo sua extensão, de
cima a baixo. Os olhos de Harry estavam fechados, a boca entreaberta, o
puxão nos cabelos de Karina se intensificando a medida que a velocidade das
caricias dela aumentavam. Ela o sugava, arranhando-o de leve com os dentes,
beijando-o com vontade. O garoto a guiava, indicando seus próximos
movimentos, incentivando-a a continuar. Seu estado era febril, alucinado, e
ele praticamente se afogava em prazer, a respiração pesada sendo liberada
com dificuldade.
- Puta merda, Karina. Puta. Merda. – Harry rugiu, puxando-a para cima com
força, colocando-se sobre ela – Preciso de você. Preciso de você agora.
Karina assentiu, deixando que ele lhe tirasse a calcinha do biquíni vermelho
que continuava em seu corpo, ouvindo atentamente enquanto Harry procurava
uma camisinha no criado-mudo a esquerda dos dois. Era tão quente, tão
quente, que ambos sentiam-se próximos da combustão completa. Não que se
importassem com aquilo. Não o faziam, ao menos que estivessem juntos. O
segredo de tudo era estarem juntos. Harry vestiu a camisinha com rapidez,
atacando o pescoço da garota com seus lábios, prendendo seus braços acima
de sua cabeça. Provocava-a, seu membro pressionando sua entrada molhada, o
peito apertando com força os seios rígidos, olhos mergulhados nos azuis.
Colando testa com testa, deslizou devagar para dentro dela, aproveitando o
gemido alto que ela emitia.
- Gosto tanto de você assim – sussurrava em seu ouvido, mordendo o lóbulo
de sua orelha com delicadeza, movimentando-se para dentro e para fora dela
com vontade – Toda molhada, desejosa. Você fica tão bonita...
- Hmm... – era a única coisa que ela conseguia responder, movimentando o
quadril no ritmo de Harry, arqueando-o para que ele fosse mais fundo, para
que possuísse-a por completo.
- Fala comigo, Ká – diminuía a velocidade, só para ouvi-la resmungar e tentar
capturar seu lábios, sem sucesso – E ai meu, bem? Me diz o quanto você está
gostando...
- Cale a boca, Harry – a voz saíra tão falhada, que ele só conseguiu rir,
voltando a velocidade normal, retesando os músculos a medida que sentia que
estava quase lá – Porra... Eu amo você... E isso é delicioso pra cacete... Mas
porra!
Os dois movimentavam-se, um choque de corpos, ambos a beira de uma
explosão certeira. Harry escondeu o rosto entre os cabelos de Karina,
investindo com força até ouvir seu nome novamente, sabendo que a parceira
havia chegado ao orgasmo. Seu corpo relaxara completamente, juntamente
com sua respiração, e ele sentia beijos leves em um de seus ombros. Não
demorou muito até que ele chegasse lá, maravilhado, o prazer tomando conta
de si. Karina era seu paraíso pessoal, seu parque de diversões, o amor de sua
vida. Desabando sobre ela com cuidado, liberou suas mãos para então poder
puxá-la para seu lado, abraçando-a com cuidado. Aproveitavam-se, somente a
companhia um do outro, o silêncio confortável e a cabeça da garota recostada
em seu peito forte.
- Isso foi bom – Harry sussurrou, beijando os cabelos pretos– Muito, muito
bom.
- Foi. Demais – sua risada era gostosa, musical – Mas tem areia na cama toda.
- Eu troco os lençóis depois. Prometo – ele estendeu para ela o dedo
mindinho, como numa brincadeira infantil, para receber um tapa leve no
ombro.
- Bobo – Karina beijou-o com delicadeza, aninhando-se completamente contra
ele.
- Eu sou. Bobo. Idiota. O que você quiser que eu seja.
- Harry! – Agora ela gritava, mesmo que seu rosto não exibisse isto. Seu rosto
permanecia em paz. – Harry!
- O que foi? – havia confusão em seus olhos, confusão em sua mente. O que
diabos estava acontecendo.
- Harry! Merda, Harry! – os gritos ficavam mais altos, mas desesperados, e
tudo parecia desaparecer diante de seus olhos.

E então, Harry acordou.


Era escuro, mas ele reconhecia o lugar. As paredes brancas, os vidros sujos, o
sofá estampado. Suas mãos estavam presas por uma corda firme, e sua cabeça
latejava, a dor espalhando-se por todo o crânio. Por que não conseguia se
lembrar o que havia acontecido, como havia chegado ali? Tudo girava, um
tanto embaçado. Mas talvez o que mais doesse fosse o fato de descobrir que
não passava de um sonho. Um sonho bobo e que parecia tão real, mas nunca
aconteceria. Encostou a cabeça na madeira branca e fria da lateral da cama, o
chão onde estava sentado era gelado o suficiente para lhe irritar. Um refém em
seu próprio imóvel. Seu posto de gasolina, antes um lugar de paz, agora era
seu cativeiro. O quão irônico aquilo era? Levantando os olhos verdes por um
momento, ele a viu. E seu estômago afundou.
Karina estava amarrada a uma das cadeiras de ferro negro, os olhos azuis
raivosos e assustados, o corpo coberto por uma das camisas azuis que a ele
pertenciam. Havia sangue na lateral de sua cabeça, um corte profundo na testa
e os cabelos bagunçados e sujos. Sua garota parecia sofrer, e isso o matava.
Merda. Inferno. Tudo culpa dele. Como ela o iria perdoar agora? Os lábios
dela tremiam, e tudo que Harry gostaria de fazer era colocá-la no colo, abraçá-
la, dizer que tudo ficaria bem. Não ficaria. Tudo só tendia a piorar a partir de
agora.
- Porra, Harry – ela xingava, a dor presente em sua voz – Porra, porra, porra!
Eu achei que... Você não acordava... Eu achei que...
- Eu tivesse morrido? – Riu sem graça, fechando os olhos para tentar colocar a
mente no lugar, bolar um plano qualquer – Não foi dessa vez. Você pode me
lembrar o que aconteceu?
- Aquele... desgraçado. Ele nos levou pra fora da Sonic, nos mandou entrar em
um carro. – fantasmas corriam pelos olhos azuis dela – Você não quis. Brigou,
discutiu, ameaçou-o. Tentou me proteger – sua voz suavizou-se, mas só por
um momento. A raiva tomou conta novamente – Um capanga dele te acertou
na cabeça, eu não vi com o que. Mas era pesado. Você desmaiou em
seguida...
- Isso explica porque sinto que minha cabeça vai explodir – Harry observava o
cômodo, a procura de alguma luz, alguma chance de sair dali – E você? O que
diabos fizeram com você?
- Se você não achava uma boa ideia ir com eles, eu não iria me arriscar.
Digamos que eu tentei acertar o tal Greenfield. Ele não gostou. Bateu com a
minha cabeça contra a porta do carro. Aberta. Não foi nada, nada legal.
- Não devia ter feito isso. – resmungou, preocupado com ela – Eu vou dar um
jeito de tirar a gente daqui. Eu prometo.
- É o mínimo que você pode fazer – Karina cuspiu as palavras, como se
tivesse nojo dele. Ah, não...
- Karina...
- Não fale. Eu não quero ouvir você.
- Ah, que comovente – uma voz surgiu das sombras, seguida por palmas
ritmadas – Um jovem casal com os nervos a flor da pele. Eu não queria
interferir, é claro, mas temos assuntos mais importantes a tratar, agora que
nossa Bela Adormecida acordou – Então um par de olhos verdes insanos
reluziu no escuro, e Greenfield sorriu, exibindo todos os dentes brancos.

*Living On A Prayer é uma música FODA do Bon Jovi que eu queria usar
desde o início da fanfic: Vivendo em uma oração
*...”All your life, you were only waiting for this moment to be free. Blackbird,
fly, fly...” é um trecho de Blackbird, dos Beatles: Toda sua vida, você só
estava esperando esse momento para ser livre. Pássaro negro, voe, voe...
* Quentin Tarantino (Pulp Fiction), Tim Burton (tantos maravilhosos que Ká
não consegue escolher um só), Peter Jackson (Lord Of The Rings), Woody
Allen (Midnight in Paris) são cineastas fodas que eu admito muito, muito
mesmo.
* Uma informação bem inútil, mas que eu gosto de compartilhar: Lennon foi o
nome do meu primeiro cachorro. Eu amo esse nome, e achei justo fazer a
“homenagem”. Mas o meu Lennon não era um labrador francês.
Capítulo 21 – The Blower’s Daughter

Se tu tivesses um segredo, seria capaz de me contar?


Se tua vida fosse perfeita, seria capaz de comigo compartilhar?
E mesmo que não fosse, por que me deixar pra lá?
Se teu passado te condena, por que não se libertar?
Se teus fantasmas te perseguem, se o teu céu é só nuvens
Se na loucura te esconde, na improbabilidade te enraízas
Seria possível que tu, um dia, me deixaria livre?
Por toda minha vida te escondeste
Por toda minha vida me enganaste
E eu, que minha vida toda estive às cegas
Poderia eu nadar nesse mar de imprevisibilidades?
Depois disso, me deixe ir
Eu não preciso saber, eu não quero sentir
Mesmo no céu, mesmo na morte
Teria eu um pouquinho, quem sabe, de sorte?
Se te restasse um pouquinho de sanidade
Em toda sua glória, me porias a par da realidade?
No amor, na dor, na tragédia e na sorte
Teria eu, alguma chance, de fugir da morte?

A cabeça de Karina pesava, pendia para os lados com dificuldade, o cheiro do


sangue emplastrado em seus cabelos deixando-a cada vez mais nervosa.
Depois de tudo que já havia passado na vida, ela ainda teria aquela
experiência singular e doentia para acrescentar a lista. Um fanático religioso
diria que tudo aquilo era um sinal dos céus, Deus castigando-a por sua falta de
crença e pelos pecados que já havia cometido. Mas quem pagaria por todo o
sofrimento que corria em suas veias? De quem o todo poderoso Senhor
cobraria cada minuto de dor, cada lágrima e cada noite em claro que ela
passara? A despeito de tudo que diziam, a garota não encontrou fé alguma
naquela situação. Tudo que descobrira em si mesma fora a raiva, o ódio e a
pena. Pena do que havia se tornado, em quem havia confiado. Pena daqueles
que a amaram. E por fim, a resignação. Talvez algumas pessoas não tivessem
nascido com a premissa de felicidade. Karina talvez fosse o equilíbrio que
faltasse ao mundo. A solidão e a escuridão profundas e infinitas em
contraponto a luz e alegria. Se aqueles eram anjos, ela não passava de um
fantasma condenado ao eterno purgatório.
Lembrava-se com amargura das horas passadas desde que estivera a sós
com Harry pela última vez. Desde o corredor escuro e fétido no subsolo da
Sonic Underground, onde toda aquela história tivera seu inicio definitivo. A
multidão de bêbados, strippers e vagabundos observava aquele estranho trio
que se movia sob as luzes de neon roxo, Greenfield os guiando, quase que
flutuando pelo salão abarrotado. O filho do pastor ia logo atrás, o rosto sério e
os brilhantes olhos verdes agora opacos e sempre atentos, uma das mãos fortes
presas ao braço fino de uma Karina transtornada e quase que apavorada, mas a
pose de rainha continuava lá, em seu nariz empinado e seus passos firmes.
Nada bom poderia surgir daquela combinação improvável, e todas as suas
suspeitas se confirmaram quando saíram da boate nefasta, um imenso carro
negro, provavelmente blindado, estacionado em frente ao longo gramado
brilhante, dois dos homens com a aparência mais perigosa que ela já havia
presenciado montado guarda ao seu lado. Greenfield tinha o sorriso mais
enlouquecido de todos, olhos verdes brilhando em pura excitação, um tom
agradável demais em sua voz.
- Se vocês me dão a honra, por favor – abriu uma das portas traseiras,
gesticulando para o interior do veículo, quase que com pressa.
- Acho que hoje teremos que dispensar a gentileza, Lorenzo – Harry parecia
gigante em frente a garota, os ombros tensos, o corpo todo na defensiva –
Desista. Deixe-nos ir. Você sabe que vai ser o melhor pra todos.
- Desculpe-me, Harry, mas eu não me lembro de ter pedido a sua opinião.
Entrem. Agora.
- Ou? – Havia um tom de desafio na voz do garoto que ela não acreditava ser
o mais adequado para a ocasião. Se havia algo que acabaria matando os dois,
era a prepotência de Harry. Ela o dominava, cegava-o, induzindo-o a cometer
loucuras irreversíveis.
- Não vou repetir uma última vez. Entrem no carro – o tom amigável havia se
perdido entre a primeira e a segunda inspiração, e agora tudo era nervosismo,
agitação.
- Não – a palavra soou definitiva na voz do filho do pastor, alta e clara como
uma ordem. O único problema talvez fosse que, ali, as ordens do garoto não
passavam de piadas ridículas soltas ao vento, sem repercussão ou efeito
algum.
- Se é assim que você quer... Presley?
Foi rápido. Rápido demais para que ela pudesse registrar alguma coisa com
clareza. Num momento estava sozinha, e no outro havia um homem ao seu
lado, ainda maior do que os dois junto a Greenfield, e no segundo seguinte ele
já acertava Harry com algum objeto que ela não conseguira identificar.
Deduzira mais tarde que ele deveria estar montado guarda alguns metros atrás
dos dois, esperando caso qualquer movimento de fuga fosse sequer cogitado.
Um plano extremamente bem calculado e executado, cujo único resultado
aceitável era a vitória. Karina se perguntava qual era o prêmio. Ela? Harry?
Mas o que um homem como Greenfield poderia querer com dois adolescentes
problemáticos e mentirosos como eles? Não fazia qualquer sombra de sentido.
Um grito escapou de seus lábios quando Harry atingiu o chão com um
estrondo, os olhos fechados, expressão nenhuma escrita em seu rosto bonito.
Ali, assim, ele parecia quase inocente. Quase digno de ser perdoado.
- E você, minha querida Karina? O que você vai fazer agora?
Palavras lhe faltavam, fugiram dela sem dó ou piedade alguma. Poderia ter
dado uma resposta inteligente, uma ameaça bem ensaiada, uma ofensa
escorregando pela ponta da língua. Não o fez. Decidiu pela ação mais brutal e
primitiva, mesmo que também fosse a mais idiota e tecnicamente impossível
de oferecer algum resultado positivo. Tentou acertar Greenfield no rosto, com
o pouco de força que lhe restava, um ato totalmente impensado criado num
momento de puro desespero. A única coisa que conseguiu foi ser parada no
meio de seu movimento, olhos verdes dele em pura fúria, a mão calejada lhe
agarrando os longos cabelos pretos. No segundo seguinte ele já afundava sua
cabeça contra o material duro da porta negra do veículo, rasgando a pele perto
de seu couro cabeludo, causando uma dor intensa, que a cegou por um
momento, as lágrimas presas em seus olhos azuis. Já fora humilhada demais,
não? Ninguém ali merecia suas lágrimas. O sangue lhe escorria pela face,
quente e abundante, manchando de vermelho a pele extremamente alva e
imaculada.
- Não me desafie. Não sou seu menininho Styles. Eu não estou aqui para
brincadeiras, Karina.
Fora jogada para dentro do carro, escorregando pelos bancos de couro, o
corpo desacordado do filho do pastor sendo colocado com a mesma falta de
delicadeza ao seu lado. O interior era claro, cor de creme, exceto pelo vidro
negro que os separava dos bancos da frente. Karina não viu quem estava
dirigindo, ou quem estava sentado no banco do carona. Tudo que sentiu foi o
disparar veloz, a cabeça acertando a janela gelada. Espiava Harry pelo canto
do olho, sem saber exatamente o que fazer, pânico a consumindo da ponta dos
dedos até seu último fio de cabelo bagunçado. Confusão em sua mente,
nebulosidade em seu futuro. Ousou aproximar-se dele, deitar sem jeito sua
cabeça em seu colo, acariciar os cabelos negros e bagunçados. Sentia-se
segura junto aquele que a havia traído, sem medir qualquer consequência ou
pensar no quanto a machucaria. Era irônico, irônico e completamente doentio.
Preocupava-se com ele. Amava-o. Mas não sabia qual seria sua reação quando
ele estivesse acordado. Ali, em seu sono forçado, Harry não poderia lhe ferir
mais ainda a alma, nem mesmo despertar seus piores demônios. Ali, era puro
e doce, inocente como uma criança, algum tipo de anjo adormecido. Quando
olhos verdes encontrassem os azuis novamente, explosões aconteceriam.
- Don’t make me sad, don’t make me cry, sometimes love is not enough and
the road gets tough, I don’t know why… – cantava baixinho, uma canção que
já havia cantado para ele antes, na esperança talvez de queHarry acordasse,
como num bobo conto de fadas onde tudo se resolveria no final. Qual era a
real chance daquilo tudo dar certo? Nenhuma.
Sempre haveria a decepção iminente os esperando na próxima curva.
Depositou os lábios com delicadeza na boca de Harry, um beijo demorado e
melancólico. Uma despedida, um adeus premeditado e cheio de significados
dolorosos e assustadores. Foram dez minutos de silêncio, expectativa, nada
além de Karina e seu coração aos pulos, quase indo a sua garganta. Não saber
para onde estavam indo e o que iria acontecer uma vez que chegassem lá a
matava lentamente, segundos a menos em seu contador pessoal. Quando
pararam, foi tão repentinamente que ela precisou segurar o garoto em seu colo
para que seu corpo não tombasse novamente. A porta ao seu lado abriu
primeiro, com Greenfield ainda afundado em seu mau humor arrancando-a do
veículo, segurando seu braço com força. Um de seus comparsas retirava o
filho do pastor ao mesmo tempo, e assim que a lua iluminou o
caminho, Karina soube onde estava. Os pinheiros altos de pontas agudas e as
pequenas famílias de corujas que os habitavam espiando aquela estranha cena
que se sucedia, o chão sujo e os pilares altos de concreto junto a antigas
bombas desativadas, extremamente próximas uma das outras. O posto de
gasolina de Harry. Sempre o maldito posto de gasolina.
O interior continuava exatamente o mesmo, a tinta descascada nas paredes, o
velho sofá estampado e o mar de lençóis verdes na cama simples de madeira.
O cheiro de Harry presente em cada canto, perfume amadeirado e nicotina,
ainda que a acalmasse, dava o tom tenebroso daquele cenário. A ironia da
situação a deixava em choque. Um lugar onde descobrira um mundo novo e
onde fora ilusoriamente feliz, mesmo que por uma noite, agora se
transformava talvez no lugar onde tudo terminaria por definitivo. Fosse ‘tudo’
o amor, a dor ou a própria vida pulsante e elétrica da garota. Ouviu um baque
não muito distante, e não precisava que seus olhos lhe mostrassem a origem
do som para saber exatamente o que era. Harry fora jogado ao chão, preso por
uma corda fina na cabeceira da própria cama, ainda tão desacordado quanto
antes. Ela não foi detentora de tanta sorte. Obrigada a vestir uma das camisas
azuis de Harry, cobrindo seu corpo parcialmente desnudo por baixo da jaqueta
de couro que agora se encontrava em cima de uma pequena mesa, foi colocada
totalmente sem jeito sentada em uma cadeira fria e dura. Greenfield parecia rir
em silêncio enquanto prendia amarras fortes o suficiente para imobilizar até
mesmo um homem como Zumiô por dias e dias. Mas ela era Karina, tão
simples e talvez até tão fraca. O que diabos poderia ter feito para aquele
homem odiá-la daquela maneira tão exorbitante? Porque era aquilo. Ódio. Era
possível ver em cada traço do rosto não tão velho, e nos olhos verdes, loucos e
brilhantes. Se fosse chegada a hora de sua morte, que fosse rápido como o
tocar de uma brisa de verão. Era seu último desejo, se ainda lhe fosse
permitido fazer um. E que ele não estivesse acordado. O pensamento cortou
seu coração em duas metades sangrentas, doloridas. Que a última coisa
que Karina tivesse que ver não fossem os olhos verdes, refletindo uma agonia
imediata. Karina morreria duas vezes.
Mas o tempo passou, Greenfield os deixou logo depois, sussurrando palavras
ligeiras junto a um de seus comparsas. Ela podia ver a sombra de outro
desenhada nos vidros sujos, guardando o lugar como um cachorrinho bem
treinado, braços cruzados sobre o peito. Todo o apartamento improvisado
parecia girar, loops intermináveis e enlouquecedores. Minutos se arrastavam,
e a cada par deles que o relógio marcava, o coração da garota disparava mais
rápido, a respiração totalmente irregular, fazendo-a arfar em puro nervosismo.
Mantinha-se firme em sua decisão de não se deixar chorar, mas gritos lhe
escapavam inconscientes da garganta, raspando-a e machucando os próprios
ouvidos. Uma cena de filme de terror onde o que causava medo não era
sangue para todos os lados ou membros soltos de corpos. A questão era toda
psicológica. Greenfield estava brincando com sua sanidade. Quantas horas
haviam se passado, isso ela não saberia dizer. Duas horas, três? Talvez. As
corujas já não mais eram ouvidas, e mesmo em plena escuridão, poderia
amanhecer a qualquer momento. Uma sede avassaladora a consumia, como há
séculos não sentia, e as cordas machucavam-na profundamente. Tinha medo
que seu sangue parasse de circular, tinha medo de ficar desidratada,
simplesmente tinha medo. Foi então que verbalizou cada sentimento
escondido, chamando por aquele que era ao mesmo tempo sua salvação e sua
perdição. O nome de Harry lhe escapava dos lábios com força, o resto de força
que ainda lhe restava. Precisava dele, ou ao menos precisava saber que dele
ainda algo restava. Mesmo que fosse nada mais do que um sopro de vida.
Quando olhos verdes faiscaram em meio ao breu, o mundo parou.
Harry estava acordado.
Karina estava perdida.
Mas isso era passado, tudo era passado. E isso chegava a ser um tanto cômico,
engraçado. Como no momento em que a voz rouca do filho do pastor ressoou
pelos quatro cantos do cômodo e ela se sentiu como Alice caindo diretamente
no buraco que a levava ao País das Maravilhas. Já havia passado. O passado
havia escorregado entre seus dedos compridos e delicados. O presente se
resumia em confusão e expectativa, os olhos de ambos presos em uma única
figura que ria, dentes brilhando enquanto a cabeça pendia para trás. Lorenzo
Greenfield era uma confusão de preto, calças de linho, camisa e colete,
sapatos bem polidos, todas com a cor da escuridão. Exceto pela gravata de
seda vermelha como sangue que pendia em seu pescoço longo e branco como
a neve. O homem caminhava, os dedos massageando o maxilar inferior, os
passos leves. Nenhuma palavra, nenhum som, uma sílaba sequer.
Aguardavam, talvez os três, por qualquer coisa, qualquer ato. Não era ele que
havia anunciado, em plenos pulmões, que precisavam ter uma conversa?
Agora a curiosidade ruía o pequeno coração de Karina. Por favor, sua mente
conturbada sussurrava. Por favor, termine com isso logo.
- Vinte longos anos. Vinte anos intermináveis. Um tempo maior do que as
vidas insignificantes de vocês dois, minhas crianças. Depois de duas décadas,
você começa a acreditar que está plenamente pronto para tudo que sempre
quis. O momento chegou – umedecia os lábios entreabertos com a ponta da
língua, as mãos juntas em frente ao peito, como se pronto para uma oração, ou
para dar início a uma grande celebração – e eu simplesmente não sei por onde
começar. Não é fantástico, minha querida Karina? Finalmente aqui estamos,
cara a cara, velhos conhecidos. Mas você não deve se lembrar... Era tão
pequena e indefesa, tão amável. – agora Greenfield dava passos tranquilos ao
redor da cadeira de ferro onde a garota se encontrava, os olhos azuis presos
em um ponto qualquer do teto – Você cresceu. Tão bela e cheia de si. Energia
e vitalidade por todos os cantos. É tão triste que isso logo vá escorrer, como
água por entre os dedos – o homem acariciava os longos cabelos de Karina, e
não havia nada que ela pudesse fazer. Nenhum lugar para fugir – Mais
desolador ainda é que podia ter sido evitado, minha criança. Minha pequena
criança. Se hoje estamos aqui nessa situação, devemos tudo a nosso querido
amigo – dois dedos foram apontados na direção de Harry, e foi impossível
manter o olhar longe. Havia sombras, sombras e demônios no rosto do garoto,
e naquele momento, era impossível saber qual dos dois homens possuía uma
carga de ódio maior em seu coração.
Como um tigre atacando, Greenfield voou até Harry, sentando-se no colchão
macio coberto por lençóis verdes, agarrando o rosto do garoto com uma das
mãos, examinando-o com cuidado.
- Me culpando por seus crimes – Harry cuspiu as palavras, olhos em chamas e
respiração baixa – Tão típico. Mas conte a ela, Lorenzo. Conte a ela, e nós
veremos quem Karina julgara culpado.
- Você ainda tem esperanças! – riu alto, as mãos sobre o estômago, imitando
um palhaço de circo qualquer – Você realmente acha que um dia Karina vai
lhe querer de volta. Mas olhe, olhe bem, criança, para esta bela e inocente
garota. Olhe bem, porque por sua culpa, esta é a última vez que você verá este
rostinho tão angelical. – pôs-se de pé, mas parecia incerto quanto a qual
posição ocupar. Voltou a caminhar ao redor do sofá, as mãos inquietas – Mas
eu lhe prometi uma história, Karina Dawson. E eu costumo ser um homem de
palavra.
Naquele momento, mesmo que a manhã já houvesse chegado, o mundo
escureceu dois terços, e o frio cortante se instaurou na atmosfera.
- O engraçado da vida, minhas crianças, é que monstros não nascem monstros.
Nós, e pode acreditar, depois de todos esses anos, eu me classifico como um,
nós tivemos uma vida normal antes daquela minúscula válvula de escape se
soltar e nos transformar em pequenas aberrações urbanas, prontas para
infernizar a vida das criaturas que provocaram nossa explosão sentimental. –
Greenfield jogou-se então no velho sofá estampado, um cigarro pendurado
nos lábios e os pés sobre o apoio de madeira. A única voz do local. Karina
e Harry permaneciam em um silêncio dolorido – Nós somos os verdadeiros
diabos, fugidos de um inferno psicológico para qual não queremos voltar. Mas
antes disso, eu era normal. Um jovem afogado em vida, como vocês dois.
Talvez muito menos fodido que vocês. Mas eu tinha sonhos, esperanças,
desejos. Vinte e um anos de idade e um diploma em mãos. Um aluno
brilhante, um advogado em ascensão – o cigarro girava entre seus dedos,
passando de uma mão até a outra, esmeraldas verdes que tinha como olhos
mirando ás vezes Karina, ás vezes Harry – Sabem, minha família sempre teve
posses, sempre tive tudo que quis. Aos dezessete anos fui aceito em uma das
faculdades mais prestigiadas, e caras, deste país. Quatro anos fantásticos, de
puras realizações, amigos fantásticos, e um amor. O grande amor de minha
vida.
- Pule a merda, Greenfield – Harry resmungou, embora não fosse possível ver
o seu rosto, escondido na lateral de madeira branca da cama – Não nos
interessa saber quantas vadias você comeu, ou quantos babacas te seguiam,
iludidos como cabritinhos.
- Com pressa, Styles? Tem algum lugar para ir?
- Não – respondeu, simplesmente – sua voz me deixa enojado.
- Eu me identifiquei com você desde o principio, Harry – o homem revirava
despreocupado os bolsos, levantando-se num pulo, andando na direção do
garoto – Tão arrogante, mas cheio de vontades e determinação. Como eu. No
fim, somos iguais, criança – abaixou-se, e Karina então pode ver a pequena
lâmina prateada que carregava na mão, brincando como se não passasse de um
lápis ou uma caneta qualquer. – Dois filhos da puta fodidos. Cada qual a sua
maneira. Então, assim como eu, você deve odiar ser interrompido – A lâmina
foi encostada na pele macia da garganta do garoto, sem perfura-la, somente
provocando o pânico – Não sei dizer se você tem o mínimo de respeito, de
apreço por sua vida. Mas se não faz por você, faça por ela – apontou a garota
com o nariz, e então olhos verdes e verdes a encararam – Faça por Karina, que
não merece ver a sua morte. Faça por Karina, que está assustada como um
passarinho indefeso. Você não quer que ela sofra, quer? Você não quer ouvi-la
chorar, não é mesmo, Harry? – sua voz era debochada, nervosa, talvez até
mesmo maníaca.
- Não me importo – soprou, baixo, tão baixo que fora quase impossível ouvir.
- Tem certeza?
Harry não respondeu. Não conseguiria responder, porque havia algo
em Karina, algo que nem ele mesmo conseguiria classificar. Um presságio de
morte, um espírito escapando por seus poros. Quanto tempo mais sua menina
conseguiria aguentar tudo aquilo? Pelas sombras sob seus olhos, não muito. E
a história só estava começando... A história só estava começando, e Karina já
estava tonta, tão tonta, prestes a desmaiar. Ela não sabia se queria saber o
resto. Todos os caminhos apontavam para um coração partido. Tudo indicava
que seria o seu.
- Mudou de ideia? Bom garoto – Greenfield dava tapinhas no rosto de Harry,
levantando-se, guardando a arma em seu bolso. Karina estava prestes a
vomitar. Por que ele não a matava logo? Precisava de toda aquela tortura? –
Vamos voltar ao que interessa então? Onde eu estava mesmo, ah, é claro! –
Retornou ao sofá, uma ruga entre as sobrancelhas, como se houvesse esforço
no ato de resgatar antigas memórias – O grande amor da minha vida. Ela era
uma mulher fantástica, linda como um anjo enviado diretamente para mim por
Deus. Formou-se em antropologia. Todos a admiravam. As mulheres queriam
ser como ela, os homens queriam possuí-la. E entre todos os alunos que a
endeusavam, que ansiavam por um pouquinho que fosse de sua atenção, ela
me escolheu. A mim – um sorriso brincava em seus lábios, esticando-os sobre
os dentes e revelando a última gota de humanidade que corria em suas veias –
Aquela mulher era meu mundo, meu universo. Tudo que havia de mais
perfeito entre o Céu e a Terra. Eu não precisava de mais nada, só dela. Propus
casamento, ela disse sim. Meu amor disse sim – Seria bonito, tocante, se não
fosse doentio. A obsessão cega que Greenfield ainda parecia nutrir pela
mulher, o modo sonhador como falava dela. Cada célula do corpo de Karina
entrou em alerta. Harry parecia quase entediado. – Estavamos ambos
formados quando nos casamos. A igreja estava lotada, era uma tarde tão linda
de verão. Meu amor estava deslumbrante. A pele clara se fundindo ao vestido
branco, os ombros nus, o sorriso nos lábios pintados. E os cabelos... Os
cabelos vermelhos brilhavam, iluminando seu rosto. Naquela tarde, Esma
Voronov se tornou Esma Greenfield.
Foi como um estouro, uma explosão no cérebro de Karina. Inferno, não
poderia ser a mesma Esma. Sua Esma, sua mãe adotiva. Mas no fundo, no
fundo, ela sabia que era. A descrição fechava, completamente. Antropóloga,
os cabelos ruivos, o sobrenome russo... Aquele homem, sentado a sua frente,
em toda sua insanidade e tiques nervosos, fora casado com sua mãe adotiva.
Aquilo quase explicava as coisas. Quase. A garota sentia os olhos de Harry a
estudando, antecipando cada uma de suas reações com cuidado exagerado.
Não tinha tempo para pensar no filho do pastor. Precisava, desesperadamente,
saber o final da história que Lorenzo Greenfield escondera por toda sua vida.
- Foram seis meses de puro deleite, de eventos sociais, viagens pelo mundo e
amor. Havia amor, até demais – refletia, e agora certa melancolia começava a
se desenrolar por sua língua – Eu estava montado meu escritório de advocacia,
e nossa equipe já tinha certo prestigio e renome. Mas eu precisava de mais.
Vê, Harry? – dirigiu-se ao garoto, embora não olhasse exatamente para ele.
Parecia mais olhar para o interior da própria alma – Ai está o nosso erro
fundamental. Nós sempre temos o suficiente, mas mesmo assim almejamos
muito mais. Poder. Tudo que eu queria era a sensação de poder, de ter o maior
escritório do país. Para isso, só precisava de uma única pessoa. Meu melhor
amigo de infância havia se formado no exterior, durante seu intercâmbio.
Fazia anos que não nos víamos pessoalmente, mas eu ainda o idolatrava. – E
então Karina sabia exatamente de quem o homem falava. O nó em seu
estômago apertou, mais e mais – Eu precisava de Richard Dawson ao meu
lado. Mas Rick precisava de um tempo, para finalizar certos assuntos e
planejar sua nova vida de volta a sua pátria-mãe. Foi durante esse período que
eu tive a melhor notícia que um homem pode ter. Esma estava grávida.
Silenciou-se, o que para Karina foi algum tipo de benção. Sua cabeça pendia
para frente, e a garota nunca havia se sentido tão mal em sua curta vida. As
peças de quebra-cabeça se encaixavam aos poucos, terríveis e absurdamente
perigosas. Quanta merda, quanta podridão. E que culpa ela tinha naquilo
tudo? Era adotada. Não tinha nenhuma relação sanguínea com os Dawson, e
mesmo a emocional era fraca e fácil de ser interrompida. Greenfield estava
tentando vingar-se da pessoa errada. Mas era esse seu carma, sua sorte. Karina
era uma filha do vento, sem lugar para ir, ou para voltar, a solidão e a tristeza
lhe esperando no final da estrada. Tudo sempre daria errado para ela no final.
Foram cinco minutos talvez, para que Greenfield conseguisse se endireitar.
Quando sua voz voltou a reinar, raiva, nojo e loucura a rodeavam.
- Nove meses se passaram, longos e adoráveis. Tudo com Esma era adorável,
doce, com aroma de baunilha. Ela era como um raio de sol na tempestade.
Quando nosso bebê nasceu, eu sabia que ela seria igual à mãe. Ágatha era
tudo. Meu anjo, meu amor, minha vida. – Filha de Greenfield. O fantasma da
menininha de cabelos compridos e sorriso infantil que a assustou durante todo
o tempo com os Dawson era filha não de Rick, como sempre lhe foi dito, mas
de Greenfield. E novamente, Ágatha parecia destruir sua vida só mais um
pouquinho, como um pequeno demônio pessoal – Eu a adorava, e assim, nós
três éramos felizes. Tudo corria absolutamente bem, e a vida era boa. A vida
era fantástica – ele ria nervoso, e aquilo não era um bom sinal. Não foi um
bom sinal quando Greenfield agarrou os próprios cachos castanhos,
bagunçando-os, massageando as têmporas com força. Harry estava em alerta
máximo – Mas é engraçado, não é, crianças? Vocês já devem ter tido essa
sensação, a sensação macabra de um tornado no meio da calmaria. Quando
tudo está perfeito, Deus se dá conta de que a vida precisa de um equilíbrio.
Ninguém tem o direito de ser feliz demais. Só Deus pode ser digno da
perfeição. Então, quando tudo estava bom para mim, Richard Dawson chegou
à cidade. Eu achei que teria um irmão. Quando me dei conta, ele estava dentro
da minha casa, seduzindo minha mulher e roubando meu bebê de mim. – Ódio
cego, ódio louco e ódio desenfreado. Karina podia notar as mãos pálidas de
Greenfield prestes a furar o estofamento do sofá estampado – Não demorou
muito. Na verdade, não demorou nada, para que Esma estivesse totalmente
enfeitiçada pelo charme barato de Dawson, e as minhas duas preciosidades
foram arrancadas de mim, sem dó ou piedade. Eu estava afundando aos
poucos, e ele no topo do mundo. Cada dia que um pouco da minha alma
morria, ele crescia. Quando me dei conta, Richard era presidente da
Greenfield Advocacia, e eu estava no fundo do poço. Eu enlouqueci, Karina.
Louco, tão louco a ponto de me isolar e assistir a ascensão daquele que eu
mais odiava.
A garota não sabia exatamente o que pensar, em quem confiar. O modo como
Greenfield retratava Rick, seu pai Rick, o único que lhe deu um pouco de
amor na vida. Lorenzo fazia com que ele parecesse um monstro. E agora? O
que mais ela não sabia? Confusão lhe envolvia, como uma velha amiga, a
abraçando e colocando-a em seu colo, fraterna. Deixe-me em paz, ela
sussurrava. Ninguém a ouvia.
- Literalmente louco, literalmente fora de mim. Vivendo nas ruas, na esbórnia,
sem ter sequer lutado pelos meus amores. Sequer dito alguma coisa para que
ele não as levasse de mim. Minhas duas meninas... Tentaram me internar,
você sabia? Meus pais tentaram me internar. As manchetes, eu lia a mesma
coisa sempre, em todos os jornais. “Herdeiro de um império, Lorenzo
Greenfield, 24 anos, enlouquece pela depressão”. Tudo foi me piorando, cada
dia. As bebidas eram tão sábias, elas eram minhas melhores companheiras – O
homem gesticulava muito, agora em pé, caminhando para todos os lados –
Cinco anos se passaram, e eu mal vi. Ouvi em alguma sarjeta que Dawson
agora estava na lista dos maiores advogados do país, que estavam casados,
que criavam minha filha como se fosse deles. Ela já tinha seis anos. Vi uma
foto num jornal, tão linda, tão minha. Coisas que eu já esperava. O que me
pegou de surpresa foi uma coluna social de uma revista qualquer. Uma
imagem grande, colorida. Uma família feliz, quase uma propaganda de
margarina – agora ele ria, os olhos dilatados, as mãos tremendo – Minha filha
sentada no colo de Dawson, sorrindo abertamente, assim como ele. E ao lado
deles... Ao lado dos dois... Minha Esma. Mas ela não estava sozinha. Não. – a
risada tornou-se mais alta, e, num súbito ataque de raiva, Greenfield derrubou
as cadeiras mais próximas a ele – Minha mulher carregava um bebê em seus
braços. Deveria ter um pouco mais de três meses. A legenda dizia que era uma
menina. Você quer saber qual era o nome dela, meu bem? Você quer saber o
nome da filha da minha mulher com aquele desgraçado?
O homem havia crescido a sua frente, mas Karina só reparou no último
segundo que ele a encarava, toda a raiva do mundo em seu rosto. Não, não,
não. Será que a vida lhe seria tão sacana assim? Será que havia juntado as
peças corretamente? Não podia ser. Jogando a cabeça para o lado, um tanto
desajeitada, o corpo de Karina refletiu o exato estado de sua mente: doente.
Vomitando rapidamente, a garota tossia com força, tudo girando ao seu redor,
um gosto ruim em sua boca. Greenfield recuou, talvez um pouco admirado
com a reação exagerada, os olhos mostrando pura confusão. Deu as costas
para os dois, indo até a cozinha improvisada no canto leste. Os lábios de Harry
formavam palavras que ela não conseguia entender. Poderia ser um ‘você está
bem?’ ou ‘que merda, garota’. Ela não se importava. Quando Greenfield
voltou, segurando-a pelo queixo de modo que abrisse a boca, para então
despejar uma quantidade significativa de água a escorrer pela sua garganta, ela
não se afogou. Se prendeu aquele liquido como se fosse a própria vida.
- Fraca. Tão fraca. Eu já deveria supor. Talvez eu esteja sendo muito duro
com você, meu bem? Acho que minhas palavras são muito fortes. – Fingia
considerar, amassando o copo descartável que restara em suas mãos –
Talvez Harry pudesse contar essa parte da história. A parte sobre a filha de
Esma e Richard. Eu volto a assumir quando achar necessário. – puxou uma
outra cadeira de ferro ao lado da garota, Greenfield sentou-se, encarando
fixamente o filho do pastor – Você não estava com pressa, criança? Eu estou
fazendo um resumo de minha história. Me ajude a terminá-la.
- Karina – Harry resmungou, balançando a cabeça, encarando a ponta dos
sapatos. Nunca ela. – O nome do bebê era Karina...
- Não, não, não – a garota sussurrava, o cabelo cobrindo seu rosto, o mal estar
de volta a sua garganta.
- Sim, sim, sim, criança – Greenfield batia palmas, um tanto deliciado
– Karina era o nome da bastardinha. Mas espere! – ele fingia surpresa,
jogando as mãos para o alto – Esse não é o seu nome, meu bem? Que grande
coincidência! Ou talvez não. Só espero que você não desmaie com a segunda
parte desse conto de farsas nojento. É ainda pior – assobiou, fingindo
tranquilidade – Não vai terminar, Harry? Talvez você seja tão fraco e
insignificante quanto sua garotinha. Mas não se preocupe. Termino essa para
você. Vamos ver, por onde começar... Ah, é claro. – sorriu, voltando a
acariciar os cabelos de Karina – Você deve estar se perguntando, criança, deve
estar cheia de dúvidas terríveis e totalmente assustadoras. Uma vida toda
achando estar perdida no mundo, num lar estranho, uma pequena órfã fodida.
Como seria descobrir que esteve junto aos pais biológicos durante todos esses
anos? Mas calma, calma. Vou explicar direitinho essa história. Preste bem
atenção. – toda a atmosfera do cenário parecia afiada como uma adaga mortal,
prestes a ferir quem se descuidasse. A carga de revelações era muito alta,
muito forte para ser totalmente absorvida. Noites e noites ainda seriam
necessárias até que ela compreendesse tudo. Mas talvez não tivesse todo esse
tempo – Egocêntrico como sempre fui, me senti afrontado por aquela pequena
informação. A descoberta de que as duas pessoas que eu mais amava haviam
seguido em frente, que não precisavam mais de mim. Então eu senti raiva.
Muita raiva. Mas eu precisava me concentrar, precisava montar uma estratégia
que curasse toda aquela dor. E foi assim que eu montei meu pequeno plano
inicial.
Greenfield inspirou profundamente antes de continuar.
- Você vê, sempre fui muito inteligente, mesmo perdido em toda loucura. Me
infiltrei no antigo condomínio onde a família morava, estudei seus hábitos,
seus horários. Um estrategista nato. Eu estava com raiva de Esma, queria
matar Dawson, mas além disso, haviam duas coisas que eu queria, ainda mais.
– o olhar, as esmeraldas verdes, se encontravam tão perdidas que até pareciam
fora de órbita – Queria minha menina de volta, e queria a extinção daquela
criaturinha a qual eles chamavam de filha. Foi fácil, tão fácil que quase
pareceu clichê, como um filme de baixo orçamento ou uma novela mexicana
mal produzida. Todas as tardes uma babá as levava até
um playground particular, onde Ágatha brincava até se cansar, e a
pequena Karina tomava sua dose diária de sol. A mulher era tonta. Tonta,
burra e influenciável como uma abelha em busca de pólen. Meu Deus, que
tipo de pais contratariam aquela sonsa? – ria, preso em seu próprio mundo,
ignorando veementemente as duas pessoas junto a ele – Eu ainda tinha
dinheiro, sempre tive, escondido em lugares aqui e ali. Subornei um jovem
segurança, de boa aparência, para que a distraísse. Dito e feito. Enquanto ela
babava no bonitão, eu, pela primeira vez em cinco anos, falava com minha
filha. Ela era tão bonita, saudável e feliz. E, assim como a mãe, ela acreditava
na pessoas. Acreditava na humanidade. Disse a ela que era um antigo amigo
da família, e oras, não era uma mentira, era? Pedi que me levasse até sua casa,
onde poderíamos esperar seus pais. Pegando o carrinho da irmã, ela o fez, de
bom grado – dor, angústia em sua voz, toda a nostalgia e saudade de sua
Ágatha presentes ali – Passamos algumas horas assistindo seus desenhos
animados favoritos na sala cara e elegante dos Dawson. Ágatha ria, extasiada,
e comentava comigo sua paixão pelo Frajola e o Scooby-Doo. Tão amorosa,
tão generosa. Até mesmo com a bastardinha. Minha menina tinha um cuidado
e uma adoração pela meia-irmã, e de tempos em tempos checava se estava
tudo bem com o bebê. O que eu planejava fazer a magoaria, eu sabia, mas
seria para o bem de todos – parecia repetir aquilo mais para si mesmo, para se
fazer acreditar – Os dois traidores logo chegaram, talvez avisados pela babá
incompetente. O assombro em seus rostos, ah... Foi satisfatoriamente
delicioso. Mas ouvir Ágatha chamar Dawson de ‘pai’, aquilo me matou. Eu
não tinha mais paciência, vejam bem. Eu era louco e inconsequente, vocês
têm sorte. Agora não tenho pressa. Esbravejei contra os dois, coloquei todo
meu coração em uma bandeja de prata. Possuía uma arma em meu bolso – as
palavras eram rápidas, agitadas, atropeladas, a medida que seu nervosismo
crescia – Anunciei o que pretendia fazer, apontei o revólver para o carrinho.
Foi tão ligeiro, tão ligeiro... Disparei. Disparei – com uma das mãos livres,
puxou os cabelos de Karina, obrigando-a a jogar a cabeça para trás, olhá-lo
diretamente no olhos – Você sabe o que aconteceu, criança? Sabe? – riu, sem
humor. As palavras agora eram gritos – Minha Ágatha morreu. Ela entendeu
tudo, muito melhor do que eu poderia imaginar. Minha Ágatha se colocou na
frente do carrinho, disposta a salvar a maldita irmã bastarda – Doía, mas ela
não sabia o que doía mais. O puxão em seu crânio, ou o aperto em seu coração
– MINHA FILHA MORREU PARA SALVAR VOCÊ, SUA PEQUENA
VADIA INGRATA. Mas eu não podia sair de mãos vazias. Eu me recusava.
Mesmo atordoado pelo choque, a dor, Karina, a dor que você nunca vai saber
qual é, eu me recompus. Enquanto os malditos Dawson corriam para minha
filha, eu peguei o bebê no carrinho. Fugi, só Deus sabe como, pela porta dos
fundos.
Soltou a garota, que arfava, o ar escapando sem autorização por seus pulmões.
O mundo girava mais uma vez, mas só restava a vontade de gritar, até que seu
cérebro explodisse pelo esforço e ela não precisasse mais passar por tudo
aquilo. Não o fez.
- Caminhei, quadras e quadras de distância, até a casa de minha irmã, que
havia sido riscada da família pelo casamento infeliz e desastroso com um
traficantezinho de merda. Mas eu sabia que ela me ajudaria. Talvez você a
conheça, Karina. Seu nome era Carmen. Carmen Saxon. – Como seria
possível não conhecer aquela que por anos a garota chamara de “mãe”? Tudo
fazia cada vez mais, e ao mesmo tempo menos, sentido – O nome de seu
marido era Stephan, um camarada que eu também acredito que você
conhecesse, minha criança. Eu estava totalmente sem rumo, destruído e sem
saber o que fazer, ainda mais com um bebê que eu repudiava nos braços.
Naquela noite, fiquei na casa dos Saxon. Chorei todas as minhas mágoas, mas
foi durante a madrugada que meu segundo plano surgiu em minha mente,
perigoso e eficiente. E foi assim, meu bem, que você virouKarina Saxon.
Convenci Carmen a tomar conta de você, prometendo que seria por pouco
tempo. Tinha certeza absoluta que você sofreria nas mãos de minha querida
irmã, e a ideia me agradava. Quatro anos e meio se passaram, e a hora havia
chegado. Assassinar um casal de drogados renegados não foi uma tarefa difícil
– Claro como água, tudo ficou claro como água. Aqueles que a vida
toda Karina acreditava serem seus pais não morreram num acidente. Foram
brutalmente mortos por alguém da própria família. Alguém que agora sentava-
se exatamente ao seu lado – Se isso tudo parece confuso, deixe-me explicar,
minha querida. Eu precisava que você sofresse, o máximo que fosse possível.
Precisava que suas dores fossem maiores do que seu coração. Te levei para o
Lar Redenção, não só por ser próximo ao novo lar dos Dawson, mas também
por saber ser rígido e manipulador. Eu queria que seus pais lhe adotassem, e
que quando isso acontecesse, você fosse arisca, desconfiada e acima de tudo,
os odiasse. Fui eu, meu bem, que mandei uma foto sua para Esma e Richard,
com todas as informações sobre você, depois de três anos. Levou muito
tempo. A espera foi longa, eu sei. Mas cada minuto valeu a pena. Quando os
Dawson se mudaram com você para esta adorável cidade, permaneci por
perto. Nove anos de observação, nove longos anos divertindo-me com a dor
de Esma ao perceber que seu bebê agora era um monstro. Chegou um
momento onde eu não podia esperar mais. E foi ai que nosso amigoHarry
entra na história.
O filho do pastor parecia subitamente ter acordado depois de alguns minutos,
receoso, apreensivo. Os olhos verdes eram um mar de obscuridades, o peito
subia e descia com rapidez, sua garganta engolindo o medo a seco.
- Dezessete anos. Uma idade linda, de descobertas, amores e viveres. Mas
também de horrores e estupidez, se você se envergar pelo caminho errado. É
tão fácil influenciar uma pessoa aos dezessete anos. Você só tem que dar a ela
exatamente aquilo que ela precisa. O que uma garota que fingia ser revoltada,
que sofreu por toda uma vida e não possuía absolutamente nada precisava?
Um pouco de atenção, uma nesga de carinho e um garoto bonito pelo qual se
apaixonar. – deu de ombros, como se o pensamento fosse totalmente óbvio –
Sou uma pessoa da noite, não nego. E foi na noite que eu o encontrei. Sonic
Underground, um lugar infernal e perigoso para almas inocentes. Conheci
primeiro a doce e desejosa Megara, com a qual pretendo dividir os louros de
minha vitória pessoal no futuro. Ela, prestativa como uma fada madrinha, me
falou de um garoto que conhecia, um cuja fama, o ego e os sonhos precediam
o próprio nome. Harry Styles. Possuía uma pequena gangue, realizava alguns
serviços soturnos em troca de uma quantia considerável, e era o tipo de
homem que arrancava suspiros até mesmo das prostitutas. Quem melhor do
que ele? – gesticulou, ficando frente a frente a Harry, encarando-o – Meu
plano era bem simples, Karina. Nosso querido amigo deveria cortejá-la,
agradá-la, deixá-la suscetível a mim, ganhar total e inteiramente a sua
confiança, para que pudéssemos ter esta conversa de um jeito mais agradável.
Eu só queria que você tivesse raiva quando eu lhe contasse quem você
realmente era, meu bem, raiva a ponto de me ajudar num pequeno servicinho
sujo. – virou-se, sorrindo para ela – Meu plano inicial era convencê-la a me
ajudar a terminar com a vida de Esma e Richard Dawson. Eu havia até mesmo
comprado uma adorável pistola para você. Seria simples, rápido, eficiente, e
você seria livre para recomeçar.
A doença de Greenfield era assustadora. Depois de tudo que lhe fora dito, o
homem realmente esperava a ajuda dela? Dela, que agora o odiava mais do
que a si mesma, por ter destruído a única chance de uma vida comum que
ardia em seu âmago? Louco, totalmente louco. A prova concreta de que ele
conhecia os horários e os lugares que Karina frequentava, mas não sua cabeça
confusa. Lorenzo Greenfield, assim como HarryStyles, seria pego de surpresa
pela personalidade avassaladora que algumas vezes explodia de dentro da
consciência da garota.
- Mas é claro, eu não contava com a teimosia e o ego de meu caro contratado
– Greenfield continuou, indo novamente em direção a cozinha – Harry fez
tudo a seu modo, e observando agora, é claramente possível afirmar que sim,
ele conseguiu seu amor, mas também despertou um ódio que não estava
previsto. Harry despertou o Paraíso e o Inferno que haviam dentro de você,
meu bem. E além disso, despertou o Paraíso que havia dentro dele próprio.
Porque se hoje estamos aqui, nessa situação nada mais do que lamentável,
devemos tudo isso ao coraçãozinho patético de Harry Styles, que acabou
sendo domado e conquistado pelo seus olhares amorosos e acredito eu,
experiências sexuais prazerosas.
- Besteira – foi a primeira vez que o filho do pastor se manifestou depois de
tanto tempo, a voz carregada e o rosto fechado – Você passou tanto tempo
fugindo do mundo que desaprendeu a analisar as pessoas, Lorenzo.
Você realmente acha que eu poderia me apaixonar, ainda mais
por essa garota? Tola, patética, sem graça alguma. Como eu poderia? Foi tudo
pelo dinheiro. Tudo pelo trabalho – eram palavras frias como aço, sem
emoção alguma, típicas de Harry – Não sinto nada, a não ser desprezo,
por Karina.
- Ora, ora, ora. Tem certeza? – o deboche escorria por sua língua – Por que
para mim parece que você morreria por essa tola, patética e sem graça garota.
Tanto que está mentindo, que feio, Harry, mentindo descaradamente para
protegê-la de mim. Poupe seus esforços. Seja o lugar que esteja destinado para
você após a morte, vocês irão juntos. Como um casalzinho feliz. Ah!
Perdoem-me, quase esqueci dessa parte. Já queHarry arruinou completamente
meu plano original quando tentou fugir de mim e esconder Karina,eu criei um
novo e totalmente melhorado plano. Vocês vão ambos morrer, minhas
crianças, pelas minhas mãos, mas na presença de Esma e Richard, para que
eles saibam que todo esse tempo, e eu não esqueci. Será que minha amada
Esma vai aguentar ver outra de suas meninas morrer? Acredito que não. Mas
vamos descobrir. Agora que você já sabe de tudo, minha criança, peço licença.
Tenho alguns assuntos a resolver antes do nosso gran finale.
Assim, tão de repente quanto chegou, Greenfield deixou o apartamento
improvisado no interior do posto de gasolina, mantendo Karina e Harry num
silêncio e solidão admiravelmente doentios. Ela tinha muito a entender, muito
no que acreditar. Rick e Esma eram seus pais. Ágatha, a menininha que odiara
por anos, morreu tentando salvá-la. Fazia sentido, mas ao mesmo tempo,
machucava. O tempo perdido, a mágoa desnecessária. Arrependeu-se, de cada
palavra dura, de cada desvio de olhares, de cada acusação infundada.
Ressentiu a privação de informação. Seus pais sabiam, e não lhe contaram
nada. Por que não haviam lhe dito? Tudo seria tão mais simples, nada teria
acontecido daquela maneira. Angel diria que eram os ‘planos de
Deus’. Karina sabia que era só mais uma prova de que não deveria ter
nascido.
- Você está bem? – a voz do filho do pastor soou, meio indecisa, por entre as
paredes descascadas.
- Não fale comigo.
- Karina...
- Não. Fale. Comigo.
- Foi pelo que eu disse? – o tom subiu uma oitava, e ela pode ver os
olhos verdes em fendas – Vamos lá, Karina, seja um pouquinho inteligente,
por favor. Eu estava tentando desviar a atenção para mim... Tentando te dar
uma chance de...
- O quanto você sabia, Harry? – foi a única pergunta feita.
- O quanto eu... – parecia confuso, demorando até entender a pergunta – No
início, não muito. Só que Lorenzo tinha algum tipo de mágoa dos Dawson, e
precisava de você para alguma coisa. Depois, com o tempo, ele foi me
contando algumas coisas. – deu de ombros, olhando para o teto – Mas a
história completa, de que você era filha legítima de Esma e Richard e Ágatha
de Greenfield, além dos planos dele para você... Bom, eu descobri a não mais
de duas semanas. Sebastian fez uma pesquisa detalhada sobre o passado dele
para mim, e foi assim que o convenci a me contar o resto do plano. – a voz
suavizou-se – Karina, eu realmente queria fugir com você depois que soube de
tudo. Eu nunca, nunca deixaria ele lhe fazer mal...
- Cale a boca. Cale a merda da boca- a garota vociferou, os olhos
semicerrados e a cabeça doendo – Não quero ouvir mais nada. Nada. Quanta
MERDA, Harry, e você sabia. Sempre soube. – flechas, flechas disparadas
com força contra o coração do filho do pastor – Eu amei você, porra, como eu
amei você. E você nunca se importou um pouquinho que fosse comigo. Não
ouse falar, Styles. Não ouse abrir a maldita boca. De você, eu não quero ouvir
mais nada.
Ele respeitou a vontade dela, pela primeira vez em longos meses. Não seria
assim que ganharia um terço do seu respeito, mas ele se esforçaria. Se
conseguissem sobreviver, Harry se esforçaria o máximo possível. As horas
passavam, e pela luz que escapava pelas frestas descobertas das janelas de
vidro sujo, a tarde já havia chegado há algum tempo. Havia só o silêncio e vez
ou outra, algum passarinho corajoso que resolvia cantar do lado de
fora. Karina parecia ter dormido, e o filho do pastor parecia um tanto aliviado.
Se ela descansasse, talvez a fuga fosse mais fácil, talvez seus pensamentos
estivessem mais amenos, talvez ainda houvesse uma chance. Talvez. Se ao
menos conseguisse alcançar o pequeno pacote escondido entre as madeiras de
sustentação de sua cama... Mas os nós eram apertados em suas mãos,
cortavam sua pele toda vez que tentasse afrouxá-los. Precisaria de mais algum
tempo. Se o tivesse, conseguiria sair dali. Eram muitos ‘se’s, muitas
possibilidades, e nada concreto. O relógio continuava a tiquetaquear.
Gritos assustados arrancaram Karina de um mundo sem sonhos, todo pintado
de branco. Harry tentava enxergar por algum vão o que acontecia lá fora, mas
ela sabia. Conhecia aquele timbre, o ouvira muitas vezes nos últimos nove
anos. Greenfield tivera êxito, afinal. Abrindo a porta de vida com uma força
exagerada, dois de seus capangas arrastavam uma Esma descabelada e atônita,
em seu roupão de seda cor de creme completamente amassado, e um Rick que
parecia ter passado a noite toda sem dormir, ainda em seus pijamas cor de
vinho. Os berros cresceram quando a matriarca dos Dawson pôs seus olhos
em sua filha, amarrada e ensanguentada, e no genro atordoado e jogado no
chão. Assim que foram soltos, ambos correram em direção ao cárcere
improvisado de Karina, abraçando-a, apertando-a, tentando se certificar de
que ela estava bem. Que sua menininha continuava viva, e com eles.
- Karina, meu amor, o que ele fez com você? O que esse monstro fez com
você, meu amor? – a voz de Esma soava desesperada, chorosa, quando ela
acariciou os cabelos da filha, olhos verdes brilhando em tristeza.
- E você, Harry? Como você pôde fazer isso? Como pôde trair a nós, trair sua
família, todos que confiavam em você? – Rick esbravejava na direção do filho
do pastor – Nós já sabemos de tudo. Louis e Damian nos contaram, quando
chamamos a polícia pelo desaparecimento de vocês dois. COMO VOCÊ
OUSA COLOCAR A VIDA DA MINHA FILHA EM PERIGO?
- Oh, que comovente! A família reunida, julgando o pequeno traidorzinho de
merda – Greenfield apareceu, escorado em uma das paredes, analisando a
cena patética – Clap clap clap. Infelizmente, eu vou ter que cortar o mal pela
raiz. Presley, Milller, se puderem fazer a gentileza... – Os dois comparsas
voltaram a prender o casal em seus abraços, os afastando, mesmo que sob
protestos, da garota, enquanto Greenfield ia em sua direção, um revólver
girando entre os dedos longos. – Então... por qual dos dois eu deveria
começar? Talvez Harry – apontava a arma, alternando entre a cabeça do filho
do pastor e a da falsa rebelde – Ou seria melhor Karina? Me diga você, minha
amada Esma... Quem deveria ir para o inferno primeiro?
- Por favor, Lorenzo – Esma chorava, tentando a todo custo livrar-se de
Presley – Pelos tempos que vivemos juntos, que fomos felizes. Eu te perdoo,
por tudo que você fez. Mas deixe a minha filha em paz.
- Me perdoar? – Greenfield riu, um tanto escandaloso, apontando a arma para
a cabeça de Karina – Eu é que preciso conceder o perdão a vocês dois. Vocês
destruíram a minha vida, e agora, se vocês me permitem...
Mas não houve o tempo do disparo, mesmo que Karina houvesse encolhido o
corpo em suas amarras. Porque, naquele exato momento, uma confusão de
roupas negras e cabelos loiros e cacheados invadia o antigo posto de gasolina.
- Parado! Polícia! Lorenzo Greenfield, solte essa arma.
Parado ali, com um olhar totalmente feroz no rosto, Patrick Manson carregava
um revólver.

*The Blower’s Daughter é uma música LINDA do Damien Rice: A Filha do


Vento
*Mais uma vez, um trecho de Born To Die, da musa Lana Del Rey: ”Não me
deixe triste, não me faça chorar, às vezes amor não é suficiente e a estrada é
difícil, eu não sei porquê

Capítulo 22 – Lithium
Tum. Tum. Tum.

Tic Tac. Tic Tac. Tic Tac.

Sons ricocheteavam nas paredes, suor escorrendo dos poros, escorregando


lentamente pelo lado de rostos fechados em alerta. A tensão era palpável,
corações batendo num mesmo ritmo, frenético, enlouquecido. O nervosismo
corrompia a alma, segundo a segundo, transformando toda a dor que antes
somente pairava no imaginário em cãibras desconfortáveis, arrepios
diretamente na espinha, lufadas de ar escapando dos pulmões, uma a uma. Já
não era somente medo. Havia resignação, havia raiva e determinação. Mas
também havia aqueles que desistiram, aceitando com pesar o seu dito destino
cruel. Ainda existiam aqueles dispostos a lutar, a arrastar-se centímetro por
centímetro até uma solução que fosse ao menos temporária. Mas o relógio
corria, em seu barulhinho infinito, como se contasse quanto tempo de vida
ainda restava naquele ambiente. Se é que restava algum tipo de vida. A
escuridão os engolia, cegando os bons, os maus e as vítimas. Num canto, uma
voz entoava algum tipo de oração aos sussurros, torcendo para que alguém
olhasse por eles. Assim como em mitos gregos, a esperança parecia ser a
última a lhes abandonar.

Então todos os olhares estavam voltados para aquelas duas figuras que se
encaravam, tão opostas uma da outra. Greenfield com sua expressão louca,
suas mãos que tremiam junto com o lábio superior, os cabelos castanhos
limpos e penteados. Patrick e a frieza nos olhos verdes, a precisão e a coragem
nas mãos, seus cachos loiros bagunçados. Dois revolveres apontados um
contra o outro, prestes a disparar. Se fosse possível parar de respirar, então
todas as inalações e expirações seriam cortadas naquele cômodo. Era como
ouvir o cortante barulho do silêncio: doloroso e sem fim aparente. Até que a
voz de Lorenzo quebrou o padrão, um tom debochado que era tão típico dele.
- Mentir é feio, criança – estreitou os olhos, como se procurasse enxergá-lo
com mais nitidez – Mas confesso que estou surpreso. É um blefe muito bem
pensado. Meus parabéns... Me desculpe, acho que estamos em desvantagem.
Você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.
- Seria muito melhor mesmo se fosse um blefe, Greenfield – Patrick
resmungou, convicção estampada em seu rosto. – Principalmente para você.
Infelizmente, não passa da mais pura verdade.
- Nome – o homem apontou a arma com mais força, a voz elevada, quase
enlouquecida – Eu perguntei pelo nome.
- Manson. Oficial Manson.
- Então, oficial Manson – Lorenzo caminhava tranquilamente na direção
de Karina, acariciando seus cabelos, o que despertou um gemido de agonia do
fundo da garganta de Esma. Ele parecia não se importar com o revólver de
Patrick apontado em sua direção. – Pode me dizer como chegou a esta
adorável reunião?
-Eu estava lá. Na boate. Você não foi exatamente discreto.
- Acredito que você esteja de olho nos meus passos há algum tempo, estou
errado?
- Não só nos seus, mas nos daquele ali também – apontou Harry, que parecia
um tanto chocado, com a cabeça – Vocês realmente acharam que poderiam
fazer todas as merdas que fizeram sem despertar a atenção da polícia? Quanta
ingenuidade para um homem como você.
- Muita, realmente – Greenfield parecia considerar, o revólver apontando para
o próprio queixo – Mas quem aqui é mais ingênuo, oficial? Eu, ou um
policialzinho solitário como você? Patrick deu de ombros, um pequeno sorriso
se formando em seus lábios, como se tramasse alguma coisa por debaixo dos
panos. Seus olhos verdes agora se fixavam em Karina, perdida em tamanha
confusão. Preocupava-se tanto com ela... Vê-la sofrendo o fazia sofrer
também. Assim era o amor. Um canal, uma via de mão dupla. A dor de Karina
era sua dor. Infelizmente, o mesmo não acontecia com o seu amor.
- Você está tentando ganhar tempo – Lorenzo sussurrava, mais para si do que
para os outros – Tem reforços a caminho, não tem?
- Não só reforços – o sorriso agora crescia, como se aquela fosse sua carta na
manga – metade da cidade está vindo para cá. Você não pode sequestrar o
filho do pastor Styles e a filha dos Dawson e esperar que não haja uma reação
furiosa. Em poucos minutos esse lugar vai estar lotado de pessoas curiosas.
Quer um espetáculo, Lorenzo? Bom, você o terá. Só não espere sair ileso
dessa vez.
- Presumo então que é hora de agilizarmos nossos negócios – agarrou os
cabelos de Karina com força, apontando o revólver diretamente para sua
cabeça, arrancando gritos de Esma e Richard. Harry parecia concentrado
demais... – Presley, Miller, lá pra fora. Deem um jeito de atrasar as estradas.
Esses dois – apontou os Dawson com a cabeça – não vão nos causar
problemas agora. Vão, vão.
E então tudo começou a passar mais devagar quando os dois homens deixaram
o lugar. Karina sentia dor em sua cabeça, mas tudo parecia meio conturbado
em sua mente. Patrick continuava com a arma apontada para Greenfield, e a
ideia dele ser um policial de verdade beirava o surrealismo. Seus pais estavam
ao seu lado, falando palavras que ela não compreendia, como se implorassem
por alguma coisa que não poderia ser mudada. Será que pediam por sua vida?
Não deveriam fazer isso. Já estava conformada. Seria tão mais simples, tão
melhor para todo mundo se ela deixasse aquele mundo. Por que eles se
colocavam em risco por algo que não valia a pena? Vão embora, ela gostaria
de dizer. Mas suas cordas vocais pareciam tê-la abandonado, recusando-se a
funcionar. Então ela olhou para Harry. Seus olhos verdes pareciam vidrados,
sem vida, os lábios apertados como se toda energia estivesse sendo sugada
para fora de seu corpo. Estaria o filho do pastor tentando lutar também? A
garota não queria que ele o fizesse. Suor escorria de seu rosto, o cheiro de
sangue seco a incomodava. Quando aqueles olhos verdes que um dia a
hipnotizaram encontraram os azuis agora quase opacos, o choro quase
escorregou de sua garganta. Seus lábios formaram quatro palavras, sem emitir
som algum.
Primeiro três. Eu. Te. Amo.
A quarta seguiu, alguns longos segundos depois. Era uma palavra
simples. Harry.
Agora poderia morrer em paz.
Harry viu. Balançou a cabeça, piscando longamente os olhos em sinal de
entendimento. Queria dizer algumas coisas, queria tranquilizá-la, mas não
havia tempo. O que estava fazendo era mais urgente, mais importante. Restava
somente um nó, um nó simples, mas que parecia milhões de vezes mais
complicado de desfazer após aquela cena que havia derretido seu cérebro. Ela
estava desistindo. Fazendo daquelas quatro suas últimas palavras.
Ele não permitiria.
Ignorava a conversa boba e sem sentido que Greenfield mantinha com os
outros restantes na sala. Focava-se somente nela, nela e no pequeno nó em seu
pulso. Puxou de um lado, de outro, ignorando a dor que sentia. Os anos que
fora obrigado a ser escoteiro serviram para alguma coisa, afinal. Com um
último puxão forte, sentiu a corda ceder em seus pulsos. Estava livre.
E o pandemônio havia começado.
Sirenes ecoavam na escuridão, o burburinho de carros e pessoas se
aproximando cada vez mais do antigo posto de gasolina abandonado. Harry
ouviu com clareza a voz de sua mãe chamando aos gritos por seu nome, e
então haviam muitas outras se juntando a dela, clamando por todos que
estavam lá dentro.
- Vocês viram? Viram o que fizeram? – Greenfield gritava, ensandecido, um
dos braços ao redor do pescoço fino de Karina, que não esboçava reação
alguma – Agora a menininha vai morrer, pobrezinha. O quão triste vai ser ver
esse lindo rostinho todo marcado por balas? – ele desenhava o contorno do
rosto dela com o revólver, os olhos sempre grudados nos Dawson – Me diga,
Esma. Meu amor. Perder outra filha, o quanto você vai sofrer? Eu DUVIDO
do que mais do que eu sofri quando perdi TUDO que eu tinha. – Seu maxilar
tremia, lágrimas escorrendo por suas bochechas, olhos denegrido pela raiva –
Por que, meu amor? Por que você me deixou? Por que parou de me amar? Eu
não era digno? Eu não te amei o bastante?
- Lorenzo... Por favor... Minha Karina, minha menina não... Pela Ágatha...
- NÃO OUSE TOCAR NO NOME DELA, ESMA. NÃO OUSE. Quando foi
você que a deixou morrer. Pra salvar a vida dessa bastarda. Você matou nossa
filha, Esma... Matou a única coisa que eu ainda tinha...
Harry sentiu a textura do papel em suas mãos. Finalmente havia conseguido
alcançar o pequeno pacote embaixo da cama, aproveitando a distração criada
pelo drama que ocorria ali. Uma ideia havia surgido em sua mente um tanto
perturbada, uma ideia que tanto poderia dar muito certo ou muito errado. Ele
torcia pela primeira opção.
Com o metal frio do revólver prateado em mãos, Harry Styles rolou pelo chão
sujo, colocando-se em pé sem maiores dificuldades.
Dois contra um.
- Mas que merda...?
- Regra número um do sequestro, Greenfield – sua voz soava estranha, meio
abafada, meio enrolada. Mas era alta e clara – Nunca amarre um escoteiro.
Regra número dois: Certifique-se de ter pleno controle sobre o seu cativeiro.
Agora, com calma, solte Karina – seu revólver mantinha a mesma direção da
de Patrick, que o observava com certa confusão no olhar – Agora.
- Se eu atirar, vocês atiram – Sua sobrancelha se ergueu, em falsa surpresa.
Beijando a testa da garota em seus braços, ele soltou – Parece que vamos
morrer juntos, meu bem.
O choro de Esma era o único som do lugar, e pareceu apenas aumentar no
passo seguinte.
- Não, Lorenzo. Se você atirar – Harry virava-se lentamente para a mulher ao
seu lado, encostando o cano do revólver em seus cabelos ruivos – Eu atiro
também.
- Esse é seu joguinho, então?- Ele ria, mas havia nervosismo demais em sua
voz, quase como se a própria ameaçasse sumir a qualquer momento – A mãe e
a filha? Bem pensado, criança, bem pensado. Mas você não teria coragem. É
só um garotinho assustado. Um garotinho perdido e com medo de perder a
primeira paixão.
- Pague pra ver.
Os minutos arrastavam-se, a tensão no ar. Esma já não chorava, Rick
mantinha-se em silêncio. Lorenzo Greenfield parecia pesar as alternativas,
resolver o que fazer a seguir.
Até que um movimento mudou tudo.
Pela primeira vez, Patrick parecia concordar com a estratégia de Harry. -
Abaixem essas armas – Era difícil identificar se aquilo era um pedido ou uma
ordem direta. Todo o corpo dele parecia tremer, como se o medo finalmente
tomasse conta de seus movimentos – Vocês não ousariam. Não teriam essa
coragem.
- Deixe Karina ir, e Esma não sofrerá. Pelo seu amor por ela, pelo amor que
tinha por Ágatha. Deixe Karina ir, Greenfield – Patrick tentava negociar, mas
a atitude de Harry era mais intensa. Apertar mais o revólver contra o crânio da
mulher, se mostrar mais agressivo. Sem um pingo de hesitação.
- Não...
- Agora.
- Não ousem...
- AGORA.
O homem abaixou a arma, no exato instante em que uma única lágrima,
grande e pesada, escorreu pelo rosto pálido da mulher, manchando suas
bochechas. Greenfield ainda a amava. Depois de todos esses anos, ele ainda
amava a mulher que o deixara, o trocara por seu melhor amigo.
Depois de ver o melhor e o pior de uma pessoa, é difícil deixá-la ir. O amor
era assim. Capaz de todo tipo de milagre.
- Isso... Isso. Desamarre-a. – o filho do pastor não precisou dizer duas vezes.
Não foram necessários mais de três minutos para que Karina estivesse livre,
os braços pendendo ao lado do corpo, os olhos azuis quase fechando-se num
misto de dor, cansaço e fraqueza. Rick ofereceu-lhe a mão, puxando a filha
para os braços assim que a mesma conseguiu dar dois passos firmes, mas um
tanto perdidos. O homem que parecia tão centrado agora chorava baixinho,
pedindo perdão a menina que tanto amava.
Quando Harry e Patrick voltaram sua atenção novamente para aquele em sua
frente, Esma foi ao seu encontro, colocando-a em seu colo, prometendo que
tudo ficaria bem. Greenfield assistia aquela cena aos prantos, de joelhos ao
lado da cadeira de ferro. Rick levantou-se, parando ao lado daqueles que
tentavam os defender.
- Nós te perdoamos, Lorenzo. Por tudo. Nós te perdoamos.
Foram as palavras erradas a se dizer.
Foi um milésimo de segundo, talvez menos.
Quando Greenfield disparou, acertando Rick de raspão no braço direito, uma
outra arma disparou também.
Diretamente no coração.
Morto. Lorenzo Greenfield estava morto.
E fora Harry Styles aquele que o matara.

Meia hora, talvez uma. Ele não sabia ao certo quanto tempo havia se passado
desde que apertara o gatilho. Pessoas iam e viam, levando a família Dawson
para fora do posto de gasolina, cercando o local, recolhendo o corpo que agora
jazia largado em um canto. Harry permanecia ali. Esperando o seu destino,
sabendo que não sairia impune. Talvez não pela morte do homem responsável
por aquilo tudo. Mas por todos seus outros crimes. Crimes que pareciam
coisas tão inofensivas, coisas simples e bobas. Que o levariam para a cadeia.
Patrick dissera. O maldito Patrick Manson lhe garantira uma cela especial na
delegacia.
Talvez o pior fosse não saber como ela estava. Sua Karina. Aqueles
momentos quando ela achava que morreria continuavam grudados na sua
mente. Eu te amo, Harry.
Continuaria amando depois do susto passado, da vida recuperada? Não sabia
dizer. Só queria que aquela noite terminasse logo, que pudesse pular para a
próxima parte, como nos filmes. Mas a vida não funciona assim. Você precisa
estar presente em cada momento, ouvir cada palavra, e então receber sua
pena.
Harry sabia que teria mais de uma.
A da justiça. A de seus pais. A da sociedade. A de Karina.
Qual delas seria pior, porém, não estava em seu conhecimento.

I'm a puppet on a string


(Sou uma marionete num fio)
Tracy island, time-traveling diamond
(Tracy Island, diamante viajante do tempo)
Could've shaped heartaches
(Poderia esculpir mágoas)

Patrick voltou ao pequeno apartamento improvisado, usando agora uma


jaqueta da polícia local. Como pôde ser tão burro a ponto de não se dar conta
de algo que estava bem debaixo de seu nariz? Talvez estivesse muito cego. O
amor lhe cegara completamente. Amor e ganância. Combinação altamente
destrutiva.
- Sua vez, Styles – a voz era fria, um tanto debochada – Em pé.
- Você deve estar adorando isso, não é, Manson? – Harry riu sem humor
algum, levantando-se sem vontade alguma – Finalmente conseguiu o que
queria.

They' ve come to find ya fall in some velvet morning


(Venho para ver sua queda em alguma manhã aveludada)
Years too late
(Anos mais tarde)
She's a silver lining, lone ranger riding
(Ela é o contorno iluminado das nuvens)
Through an open space
(Através de um espaço aberto)
In my mind, when she's not right there beside me
(Na minha mente quando ela não está ali ao meu lado)

- Não, Harry – Patrick segurava seus pulsos machucados, algemando-os com


rapidez na frente de seu tronco, um meio sorriso estampado em seu rosto – Só
vou ficar feliz de verdade quando você pagar por seus crimes, e quando ela te
esquecer. Você sabe que Karina merece isso. Uma vida tranquila, sem mais
confusões como estas. Uma vida longe de você. Agora, andando.
- Talvez uma vida ao seu lado, Oficial Manson?
- Não necessariamente. Somente uma vida feliz. Se for ao meu lado, se for
com qualquer outro cara, não me interessa. Diferente de você, tudo que eu
quero é que ela viva bem, e feliz.
- E por que diabos você acha que eu não quero isso?
- Se quisesse, teria contado tudo antes. Caminhando, Styles. Agora.

I go crazy cause here isn't where I wanna be


(Eu fico louco pois aqui não é onde eu quero estar)
And satisfaction feels like a distant memory
(E satisfação se parece com uma memória distante)
And I can't help myself,
(E eu não consigo evitar)
All I wanna hear her say is "Are you mine?"
(Tudo que eu quero ouvi-la dizer é: "Você é meu?")
Well, are you mine?
(Você é minha?)
Are you mine?
(Você é minha?)
Are you mine? Alright
(Você é minha?)

Obedeceu, mesmo que a contragosto. Não precisava de mais atritos com a


polícia, mesmo que o policial que o acompanhava fosse um babaca de marca
maior. As luzes o cegaram ao pisar no concreto sujo do lado de fora, milhares
de rostos o observando em silêncio. O quão assustador e divertido não deveria
ser para aquela gente, ver o santo filho do pastor Styles sendo preso, arrastado
após o próprio sequestro, seguido da morte do sequestrador? Harry não se
importava com nada daquilo. Só queria que tudo acabasse, só queria saber
como ela estava. Ainda o amaria depois daquilo tudo?
Mas foi sua mãe que viu primeiro. Angel aos prantos, olhando-o com amor e
raiva naqueles grandes olhos cinzentos, que por muito tempo ele temeu. Não
mais. Tudo havia passado. Ter sangue derramado nas mãos mudara muitas
coisas em Harry. O modo de lidar com seus pais agora era totalmente
diferente. O pastor Philip amparava a mulher, um certo olhar de choque em
seu rosto. Ao lado deles, Angelina abraçada a um homem que ele nunca
poderia imaginar. Rodrigo Ernandez, seu professor de coral. Ele beijava-lhe o
cabelo, apertando-a firmemente contra o corpo. Um casal. Ele tinha certeza de
que aquilo era um casal.
Abrindo seu melhor sorriso convencido, Harry soprou ao passar por sua
família.
- Mãe, pai. Angs... professor... Noite agradável, não?

I guess what I'm trying to say is I need the deep end


(Acho que o que quero dizer é que preciso do fundo do poço)
Keep imagining meeting, wished away entire lifetimes
(Sigo imaginando encontros, desejados por vidas inteiras)
Unfair we're not somewhere
(Injusto não estarmos em algum lugar)
Misbehaving for days
(Agindo errado por dias)
Great escape, lost track of time and space
(Grande fuga, perca de noção do tempo e do espaço)
She's a silver lining, climbing on my desire
(Ela é o lado positivo, subindo no meu desejo)

Não houve tempo para uma resposta. Patrick o guiou mais para frente, abrindo
caminho entre a multidão embasbacada. Mas então Harry a viu. Sentada
quietinha em uma toalha de piquenique, no colo de Louis Kallister, uma
xícara de café em suas mãos. Seu rosto agora estava limpo, mas as olheiras
sob seus olhos denunciavam tudo aquilo pelo que ela havia passado. Era agora
ou nunca. Caminhando em sua direção, ele não se importava com os gritos de
Patrick, ou os outros policiais que se juntaram a ele. Tudo que importava era
ela. Sua Karina.

And the thrill of the chase moves in mysterious ways


(E a emoção da perseguição age de maneiras misteriosas)
So in case I'm mistaken,
(Portanto, no caso de eu estar enganado,)
I just wanna hear you say you got me, baby
(Eu só quero te ouvir dizer "você me tem, querido)
Are you mine?
(Você é meu?")

Jogou-se a sua frente, os joelhos doendo pela queda, os olhos azuis na linha
reta dos dele. Pode sentir a movimentação ao seu redor. Damian, Esma, até
mesmo Louis. Que fossem todos para o inferno. Ele só precisava de um
segundo. Um segundo.
- Karina – sussurrou, de modo que só os dois pudessem ouvir. Queria tanto
tocar seu rosto, tê-la em seus braços... Concentrou-se nas palavras que
precisava dizer – Nada importa, me ouviu bem? Nada disso. Eu só preciso que
você não esqueça de uma coisa. Por favor, se lembre disso mais tarde, lembre-
se de mim. Não me esqueça, Karina. E principalmente, não esqueça que
eu amo você. Eu te amo, Karina Dawson. Eu amovocê.
Então foi arrancado dali por braços fortes, talvez os de algum policial, com
Esma gritando insanidades em seu ouvido. Não ouviu nenhuma delas. Só
prestava atenção no rosto de sua garota, em seus olhos castanhos e confusos.
Carregado até uma viatura, aquela era sua última lembrança do posto de
gasolina.
Os olhos cheios de lágrimas de Karina Dawson.

*Lithium é uma música fantástica do Nirvana


*A música sensacional desse capítulo é R U Mine?, do Arctic Monkeys.

Capítulo 23 – Pais e Filhos


“Mãe, eu acabei de matar um homem. Coloquei uma arma contra sua cabeça,
puxei o gatilho, agora ele está morto. Mãe, a vida acabou de começar. E
agora eu tenho que jogar tudo fora. Mãe, eu não queria te fazer chorar. Se eu
não estiver de volta a essa hora amanhã, continue firme, como se nada
importasse [...] Mãe, eu não quero morrer. Algumas vezes eu desejo que
nunca tivesse nascido”*

O lugar era gelado, mesmo que não houvesse brisa nenhuma, janela alguma
aberta. O cheiro parecia uma interminável mistura de fumaça e produtos de
limpeza, ainda que o chão estivesse aparentemente sujo. As paredes de um
gasto concreto cinza eram duras e rabiscadas, nomes e datas que há muito já
haviam passado. Por entre barras e mais barras de ferro negro, toda a vista
revelada não passava de um quadro de camurça verde e um pedaço do
escritório amarrotado de mesas e luminárias, agitado na corrida dos últimos
acontecimentos. Havia uma cafeteira em um ponto leste, o que fazia as bocas
dos detentos salivarem descaradamente, sedentos por algo que não fosse a
água quente e estranha que lhes serviram mais cedo. Observando toda a
situação, afinal qual era o pior castigo para um passarinho? Ter suas asas
cortadas sem dó ou piedade na infância, para que ele não pudesse voar para
longe, ou estar trancafiado em uma gaiola por ter se distanciado
demais? Harry era a prova viva de que era possível sobreviver a ambos.
Estava ali, afogado em pensamentos e dúvidas, os cotovelos doloridos pelo
atrito com as barras que formavam sua cela, os braços cruzados do lado de
fora, como se observar um único pedaço de seu corpo do outro lado daquele
lugar o fizesse chegar mais perto da liberdade. Uma ideia ridícula, mas que o
poupava de outras ideias macabras e desnecessárias. As horas se passavam,
uma a uma, enlouquecendo-o um pouco mais a cada passagem sorrateira do
tempo. Duas, três, ele não saberia dizer. Lembrava-se de sua chegada
tumultuada, vários policiais e civis o acompanhando na entrada da pequena
delegacia, curiosos, talvez até mesmo divertidos pela situação. Quem diria,
não é? Harry Styles preso. O assunto seria comentado por toda a semana,
talvez até pelo resto do mês. Qual fofoca mais quente, mais emocionante do
que aquela? O garoto ria, sem humor algum. Virara entretenimento barato de
banca de revista para os idiotas daquela cidade. Depois vieram todas as
acusações perante o delegado, todos os crimes que diziam que ele havia
cometido, uma pequena lista digna de orgulhar criminosos profissionais. Não
proferiu uma palavra sequer, não pode medo de encrencar-se ainda mais, mas
por saber que cada uma daquelas que ouviu não passava da mais pura verdade.
Então fora trancafiado ali, naquela cela suja e gasta, uma pequena cama sem
travesseiros ou lençóis no lado direito, junto a parede, e o resto era puro
espaço. Vestindo o uniforme do local, uma camiseta branca e simples, assim
como os tênis limpos e calças de moletom negro compridas. Seus cabelos
eram uma pura confusão de fios, olheiras profundas sob seus olhos verdes e a
boca seca, mesmo após os goles de água que se sentira obrigado a beber.
Não era o único ali naquela noite. Sabia que na cela ao lado haviam alguns de
seus companheiros fiéis, que caíram no exato momento em que ele caiu. John,
Gustav e Sebastian conversavam num tom baixo, fazendo especulações ou
simplesmente gastando saliva para acabar com o tédio. Megara dormia num
canto, depois de ter ouvido coisas que não queria do próprio Styles. Atrevida
demais por tentar fazer piada com a vida deHarry, acabou magoada,
exatamente como sempre terminava. Viúva antes mesmo de subir ao altar,
fadada as grades eternamente. O que seriam todos eles? Culpados de deixar o
mundo um ou dois tons mais escuros, ou vítimas de uma sociedade que não os
deu outras escolhas? Talvez um pouco de cada, talvez nada daquilo. Eram
prisioneiros a espera de seu julgamento, de um ponto final naquela história
que os havia destruído até a alma.
Mas de todas as questões, todos os medos e as desconfianças, de todos os
perigos e as dores que viriam a seguir, a única que lhe preocupava realmente
era uma garota.
Não qualquer garota.
Karina.
Sua Karina.

Come up to meet you, tell you I’m sorry


(Vim pra te encontrar, dizer que estou arrependido)

You don’t know how lovely you are

(Você não sabe quão adorável você é)

I had to find you, tell you I need you

(Tive que te encontrar, dizer que preciso de você)

Tell you I set you apart


(Dizer que me afastei de você)
Pensar em como tudo havia começado e terminado tão repentinamente , sem
que ele realmente pudesse aproveitar aquilo que tanto necessitava,
machucava. Começou pequeno, uma atração cega e desenfreada toda vez que
as peles se encostavam, e aos poucos evoluiu como uma doença silenciosa,
tomando conta de todo seu coração. De repente pegava-se pensando nela em
horas remotas do dia, lembrando-se de seus toques e de seu sorriso, e então
tudo piorava. Repreendia-se, tentando expurgar aquelas pequenas memórias,
concentrando-se em outros problemas e outras mulheres. Nunca funcionava.
Voltava rapidamente para ela, desejando que fosse Karina aquela com quem
dividia lençóis, pesando sua consciência de um modo nada saudável. E então
começara a se preocupar com a garota, sentir suas dores e suas alegrias, querê-
la por perto em todas as horas do dia. Tentou se afastar, mas sempre voltava,
como se a abstinência dela fosse algo que não pudesse suportar. Talvez não
pudesse, realmente.
Os contrastes e altos e baixos daquelas duas últimas noites foram todos muito
irônicos. Primeiro o medo quando soube o que ela andava aprontando pela
cidade, seminua e arisca, pronta para estragar tudo que ele havia construído.
Logo depois a preocupação, a raiva e o nojo ao encontrá-la nos braços de
Gabriel Schmidt. O êxtase de seus lábios nos seus, de tê-la totalmente para si,
a delícia de ouvir seu nome entre gemidos sôfregos e sensuais. O pânico do
sequestro, de vê-la a beira de uma morte quase certeira. O coração aos pulos
por um simples “eu te amo”. A adrenalina da morte de Greenfield e de sua
libertação. A dor de ver a dor de sua garota. A declaração mais importante de
sua vida. E então ser arrancado dela como uma era venenosa, prestes a
destruir a mais preciosa das flores.
Agora tudo não passava de pontos de interrogações e “se”s que o atordoavam.
Se ele saísse dali, ela o perdoaria? Se Karina viesse lhe ver, seria por amor ou
por puro ódio? Se morresse, seria um favor ou só mais outra facada no
coração da única pessoa que realmente lhe importava? Ficava mais difícil
lidar com aquilo a cada minuto, sua respiração pesada e o coração aos pulos.
Nervosismo tomava conta de seu sistema, fechando sua garganta e lhe
causando náuseas intermináveis. Precisava de um cigarro, algo que lhe
deixasse relaxar, soltar os músculos retesados em seus ombros. Aquilo estava
começando a machucar.
Saindo de perto das grades, começou a dar voltas em sua pequena cela,
estralando os dedos das mãos com força, tombando a cabeça para os dois
lados a fim de dissipar um pouco a tensão interminável. Recusando-se a
deixar sua mente vagar de volta para Karina, parou, tentando prestar atenção
no que ocorria lá fora. Eram vozes e mais vozes, e algumas daquelas ele
conhecia.

Tell me your secrets, ask me your questions

(Me conte seus segredos, me pergunte suas dúvidas)

Oh, let’s go back to start

(Oh, vamos voltar para o começo)


(...)
Uma voz de mulher se sobressaía as outras, alta, clara e firme em meio a dos
homens. Lembranças de sua infância lhe invadiram completamente, aquele
tom que ele conhecia tão bem, a autoridade e exigência que ele lhe implicava.
Antigamente, aquilo lhe faria tremer, olhar para baixo e tentar desculpar-se
por qualquer coisa que havia feito. Não mais hoje. Hoje, ele só queria que lhe
deixassem em paz. A prisão era um lugar engraçado. Lhe preenchia de
nostalgia e novas certezas, objetivos a serem cumpridos uma vez que fosse
livre novamente. Coisas que antes pareciam tão simples e banais agora tinham
um novo significado, tudo em menos de vinte e quatro horas. Perguntou-se se
enlouqueceria caso passasse tempo demais ali. Não conhecia a resposta.
Encostando-se em uma das paredes de cimento liso, esperou, o barulho de
saltos no corredor deixando-o levemente irritadiço.
Foi o pastor Philip o primeiro a aparecer, em seu terno negro e camisa de
botões azul, e a expressão em seu rosto era indecifrável. O religioso nunca
parecera tão velho, tão cansado quanto naquele momento. Suas rugas
apareciam, os fios brancos em seus cabelos brilhavam mais, os olhos verdes
cheios de tristeza e culpa. Harry nunca realmente parara para pensar naquilo,
mas foi naquele momento que seu deu conta de que seu pai não era atemporal,
imortal. Morreria como qualquer outro ser humano. Então do que adiantava
tudo aquilo? Todas as preces e as pregações? Atrás do homem vinha Angel,
em um longo sobretudo púrpura, assim como os sapatos de salto. Seus cabelos
negros estavam bagunçados, e haviam lágrimas marcando todo seu rosto.
Certo arrependimento apareceu como uma pontada em seu estômago. Apesar
de tudo que havia acontecido, nunca havia visto a mãe chorar. Apesar das
mágoas que mantinha dela, saber que a culpa daquilo era sua lhe incomodava.
Um policial que ele não conhecia deu passagem para os dois, trancando o
lugar logo após e deixando-os a sós. Angel correu para o filho, abraçando-o e
beijando-o e certificando-se que tudo estava bem com seu garotinho. A
matriarca dos Styles não o via como um marginal, um delinquente perigoso
trancafiado para o bem das pessoas inocentes da cidade. Nem como um
assassino. Para ela, era seu filho, o menino que amava tanto e havia criado
com o esmero e preocupação. Harry resmungava, tentando livrar-se dos
cuidados da mãe, mas em vão. A mulher agarrou-se em seu pescoço, alisando
os cabelos do garoto entre os dedos, chorando todas as lágrimas guardadas em
seu ombro. Não lhe restou outra alternativa a não ser abraçar a mulher,
envolver sua cintura com os braços. Aquela era uma novidade em sua vida.
Nunca antes havia recebido abraços daquele tipo de sua família. Por entre os
curtos cabelos negros dela, olhou pela primeira vez nos olhos do pai, tão
iguais ao seu, perguntando-se o que fazer agora.
- Harry... O que você fez? – Foi tudo que o pastor Philip conseguiu dizer, as
mãos caídas ao lado do corpo, toda a decepção estampada no rosto.
- Philip! É claro que Harry não fez nada, isso foi tudo um grande e insano mal
entendido! – Angel exclamava, soltando-se do filho e ficando cara a cara com
o marido – Era o que eu estava tentando dizer aos policiais lá fora! Isso tudo
não passa de...
- Verdade – o garoto suspirou, cruzando os braços na altura do peito, um meio
sorriso irônico em seu rosto – Tudo absolutamente verdade. Do que
exatamente me acusam? Falsidade ideológica? Lavagem de dinheiro?
Formação de quadrilha? Envolvimento com prostitutas e traficantes? Eu fiz
tudo isso. Fiz mais. – caminhava pelo cubículo, com os atentos olhos dos mais
velhos sobre ele – Menti, enganei, trapaceei. Fodi com a minha vida, e fodi
com a vida de alguns outros também. Eu bebi, fumei, transei com cada vadia
que me deu vontade. Enriqueci as custas de panacas vingativos, idiotas
desesperados. Eu fugi, quase toda noite. Cada pecado, eu cometi pelo menos
duas vezes. Cada mandamento, eu corrompi com prazer absoluto. Eu matei
um homem hoje à noite. Apontei a arma pra sua cabeça – ele imitou o
movimento, apontando dois dedos para eles – e disparei. Comprei minha
passagem para o inferno, e estou pagando adiantado. Vendi minha alma por
cobiça, por sexo e por rebeldia. Por justiça. Agora eu só estou no buraco
fundo que eu mereço estar. O fim da linha.
- E você nos diz isso com a maior tranquilidade do mundo? – seu pai
continuava perplexo, enquanto ele via a boca da mãe abrir aos poucos, em
indignação.
- Bom, teoricamente eu poderia mentir mais uma vez – riu, sem humor algum
– Vocês têm tendência a acreditar em tudo que seu santo filho diz, não é? Mas
não adiantaria muita coisa. Mais cedo ou mais tarde vocês descobririam
sozinhos. Para que estender esse tempo?
- Quem é você? – a mulher gritou a plenos pulmões, e embora as lágrimas
ainda escorressem, havia raiva nos olhos cinzas – O que fizeram com você?
Que tipo de lavagem cerebral infernal foi essa? Fala pra mim,Harry. Por que
se desviar de uma vida perfeita, onde você tinha tudo?
- Perfeita? Uma vida perfeita? Você só pode estar debochando da minha cara,
Angel – ria alto, totalmente irônico, passando as mãos pelos cabelos curtos –
Eu nem sequer tinha uma vida. O que vocês estavam esperando? Que eu
passasse o resto da eternidade fazendo o que vocês achavam correto, o que me
levaria para o paraíso? Adivinhem só: ele não existe. Nem o paraíso, nem
o Harry que vocês julgavam tão bem conhecer. A minha vida toda foi uma
mentira, foi um inferno, e tudo isso vem de vocês.
- Está insinuando que a culpa é nossa? É isso que você está ousando
fazer, Harry? – o controlado pastor Styles não era tão controlado assim.
- Não estou vendo mais ninguém nessa cela – agora era sua vez de sentir ódio,
de lembrar as dores de dezoito anos de vida, os punhos cerrados ao lado do
corpo e a voz duas oitavas mais alta – Se vocês não se lembram, terei o maior
prazer de refrescar sua memória. Eu cresci numa gaiola de ouro, não posso
negar. Tive tudo que quis e era considerado apropriado, mas o que isso
significa? Nada. O preço que eu paguei foi alto demais. Nunca soube como
era o mundo lá fora, nunca pude fazer nada do que quis. Eu era uma criança, e
eu não podia brincar do modo como eu queria porque Deus não gostaria.
Ouvia meus colegas falando de coisas que assistiam ou comiam, mas que pra
mim eram absolutamente proibidas. Não vou mentir, no início eu não ligava
muito. Me orgulhava de quem eu era, do que tinha e pra onde iria. Até eu me
dar conta de que não era feliz daquele jeito. Que meu mundo não era perfeito.
E sabe como eu descobri isso, Styles? – aproximou-se do pai, ameaçador –
Quando você colocou o seu querido bastardinho dentro da nossa casa. Você
cometeu a merda dos seus erros, mas ninguém se importou. E eu tive que
aguentar as consequências. Vi a imagem da minha família desmoronando,
bem diante dos meus olhos. Toda a inocência foi embora. Por que diabos
Damian podia tudo que eu nunca pude? E então finalmente um cadeado se
rompeu. O primeiro foi a inveja. Inveja do bastardo que tinha tudo que eu não
tinha e tudo que eu queria ser, ver e sentir. Depois a raiva, o ódio de cada
segundo que eu perdia lendo Bíblias e recitando orações. Então a descrença.
Foram anos e anos engolindo tudo, sentindo o monstro crescer dentro de mim,
sem que eu pudesse fazer nada. Até que eu achei um modo de extravasar. De
colocar tudo pra fora, de me libertar – seus pais ouviam, e as palavras
escapavam rápidas e definitivas de seus lábios – ouvi alguns colegas de escola
falando desse pub louco na cidade vizinha, aquele tipo de delinquente de
boutique que existe em todo lugar. Era um local onde eles adorariam ir, mas
nunca conseguiriam entrar. Eu tinha quinze anos, e estava farto do mundo.
Resolvi tentar. Angelina me ajudou a fugir pela janela, e então peguei um
ônibus até a cidade. O quão divertido é descobrir que toda a sua família
preciosa é corrompida, Angel? Mas voltando a minha pequena história, aquela
foi a melhor noite da minha vida. Eu voltei por mais, sedento pela sensação –
caminhava, os olhos perdidos em lugar nenhum – As coisas ficaram sérias.
Guardei um pouco de dinheiro, vendi um dos meus relógios caros e comprei
uma Harley-Davidson usada, o orgulho da minha coleção. Fiz amizades
erradas, conheci um lugar ainda pior. Sonic Underground, uma boate infernal,
terra de ninguém. Foi lá que meus negócios começaram. Eu tinha dinheiro,
não tinha? Poderia emprestar em troca de coisas, de garantias, de mulheres
bonitas. Quando me dei conta, eu tinha um empreendimento, empregados e
trabalhos mais sérios. Perigosos. Nunca me senti mais vivo. E pensar, Philip,
que tudo isso começou porque você fodeu uma vadia porque Angel não
conseguiu te segurar.
De todos os tapas que recebeu, e esses foram muitos, nenhum doera tanto
quanto aquele que seu pai acertara em seu rosto naquele momento. Não pelo
físico, mas pelo emocional. A humilhação trouxe lágrimas para os olhos
de Harry, lágrimas que ele não deixaria escapar. Philip arfava, e Angel tinha
as duas mãos sobre a boca.
- Eu não sei o que fazer – o pastor sussurrou, e era visível que ele não estava
em seu melhor estado- Eu realmente não sei o que fazer com você, Harry.
Nem ao menos sei quem você é, qual é a melhor resolução para esse
problema. Está tudo – o homem respirou fundo, seu corpo inteiro tremendo –
confuso demais. Preciso... preciso ir embora. Aqui... eu simplesmente não
consigo pensar. Não consigo olhar para você. Me dá vergonha olhar pra
você, Harry. Parece que eu perdi um filho.
- Talvez você nunca o teve. Assim como eu nunca tive um pai.
- Calem a boca – Angel chorava copiosamente, tapando os ouvidos com as
mãos – Eu não quero mais ouvir vocês dois discutirem. Eu não aguento. Não
consigo. Nós vamos embora sim, Philip, mas eu quero que ele me responda
uma única pergunta. Só uma, a única dúvida que me resta: que prazer doentio
você encontrou em machucar os Dawson, principalmente Karina?
- Prazer nenhum. Foi tudo pelo dinheiro.
- Você nunca parou pra pensar em como a pobre garota sofreria? Que tipo de
monstro você se tornou?
- O tipo que se apaixona pela própria vítima – foi a primeira vez que deixou
que uma lágrima, uma única e simples lágrima atravessasse seu rosto – De
toda essa merda, o meu único arrependimento foi não ter dito antes que a
amava. Não ter percebido antes. Não se iluda, Angel. Não é a prisão ou a
decepção de vocês que está me matando minuto a minuto. É o simples
conhecimento de que ela é o amor da minha vida, e eu quase a perdi para a
morte por pura estupidez. É saber que, talvez, não haja mais esperanças para
mim.
Não houve uma resposta, mas Harry não precisava de uma. Ouviu quando seu
pai chamou por um policial, amparando sua mãe nos braços, tranquilizando-a
aos poucos. Fora muita merda para um dia só, muitos acontecimentos
perturbadores demais. Tudo que ele queria era dormir, apagar o dia de sua
memória, ao menos por algumas horas. Sabia que teria pesadelos, mas os
acolhia de braços abertos. Até pesadelos eram melhores do que sua realidade.
Aguardou que os dois deixassem o local, sem despedidas, para deitar-se no
colchão duro como uma pedra. A noite sempre fora uma amiga querida. Ali,
era mais do que isso. Era um abrigo para sua alma.

I was just guessing at numbers and figures

(Eu só estava adivinhando números e figuras)

Pulling the puzzles apart

(Desmontando os quebra-cabeças)

Questions of science, science and progress


(Questões da ciência, ciência e progresso)

Do not speak as loud as my heart

(Não falam mais alto que meu coração)

A cozinha da mansão dos Styles era grande, bem iluminada por luzes
fluorescentes. O branco predominava, dos azulejos nas paredes e no chão até
os muitos balcões e aéreos, o tom prateado dos eletrodomésticos dando a
impressão de um abrigo glacial em plena cidade. Uma chaleira fervia água no
fogão industrial, e a movimentação em volta do grande balcão central de
mármore era tranquila, considerando o quão insana fora poucas horas antes.
Angelina estava sentada em um dos altos bancos de madeira, os braços
apoiados no material frio. Estava cansada, preocupada com Harry, olheiras
fundas sob seus olhos, mas se recusava a dormir. Queria esperar a volta de
seus pais e suas notícias, o coração inquieto na caixa torácica. Rodrigo
cochilava tranquilamente no sofá da sala, e era estranho vê-lo em sua casa.
Guardaram o namoro por tanto tempo, um segredo tão grande que parecia tão
inferior perto de tudo que havia sido descoberto naquela noite. Quando ele
apareceu após a notícia estourar na cidade, seus pais não entenderam
realmente o que o homem fazia ali. Mas só um cego não enxergaria. Não
conseguiram esboçar nenhuma reação, e nem poderiam. Tantas bombas
jogadas em sua cabeça repentinamente. A homossexualidade de Damian, os
crimes de Harry. O namoro da caçula era só mais um detalhe na grande
confusão que aquela família enfrentava.
Damian estava de pé ao lado do fogão, enchendo duas xícaras altas com café
forte, o olhar meio perdido no horizonte. Havia sido uma noite longa demais.
A correria e a loucura após a ligação de Patrick esgotou todas as suas forças.
Não sabia qual revelação fora mais difícil, contar para os Dawson
sobre Karina e Harry, ou precisar explicar para os Styles porque estava de
mãos dadas com Louis. Em meio à confusão do sequestro, as reações de
Angel e Philip foram meio vagas, como se eles não tivessem entendido
realmente no que consistia a relação dos dois. O garoto não se importava. Não
precisou da aprovação de ambos antes, não precisaria agora. Misturando o
líquido mais uma vez, voltou ao centro para sentar-se com a irmã, depositando
uma das xícaras a sua frente. O pastor havia pedido que ele tomasse conta de
Angelina, mas mesmo que não tivesse, Damian não a abandonaria agora,
quando estava tão transtornada e infeliz. Não a única pessoa que fez a sua
estadia naquela casa um pouco mais suportável. Louis assistia TV quietinho,
embora não prestasse realmente atenção no programa. Estava apenas tentando
deixar a mente livre, descansada, o que não era exatamente uma tarefa fácil.
- Obrigada – a garota sussurrou, tomando um longo gole do café ainda quente
demais. O silêncio estendeu-se por alguns segundos, antes que ela
perguntasse, uma ruga entre suas sobrancelhas – Você acha que ele está bem?
- Você sabe o que eu penso sobre isso, Angs. – massageou as têmporas,
tentando não soar rude – Não é questão de estar bem ou não. Ele merece tudo
isso. Está pagando pelo que fez.
- Eu sei, só que... A prisão é um lugar horrível, não é?
- Acredite em mim quando digo que Harry já esteve em lugares piores.
- Dam, eu amo você, mas também o amo. Me mata ver que até hoje vocês dois
não conseguiram resolver as desavenças – ela choramingou, os olhos grandes
molhados por lágrimas – Mas que merda, vocês são irmãos!
- Meio-irmãos...
-E daí? Nós também somos, e você nunca pareceu se importar com isso! –
esbravejou, realmente irritada com a situação – Chegou a hora de parar com
essa picuinha infantil.
- Harry fez da minha vida um inferno, Angelina. Não só quando eu morava
aqui, mas depois também – Damian finalmente desabafou, lembrando-se de
tudo que havia ouvido, sentido e sofrido por culpa do garoto – Foram noites e
mais noites de ofensas, de mandar os capangas atrás de mim só pra ver a
minha humilhação completa. Imagine se soubesse de Louis? O que ele não
faria contra nós dois? Monstro, Angs. Ele é um monstro.
- Você precisa entender, Damian. Harry é uma criança perdida. Ele parece ser
um homem que sabe de tudo, um homem totalmente sem sentimentos. Mas ele
sente. Ele se apaixonou perdidamente, ele perdeu a cabeça, toda noite. A alma
dele, ela não é negra. A alma dele é só uma confusão de cores. - Angelina
ponderava, a cabeça apoiada em um dos punhos, todo o cansaço do dia
presente em seus olhos cinzas - Harry é uma criança, uma criança num corpo
de homem. Uma criança que a vida maltratou, uma criança que tudo que
possuía eram regras, e que não viu outra saída a não ser aquela que escolheu
erroneamente. Harry é uma criança cujo o único desejo na vida é ser
compreendido.
- Então parece que descobrimos quem precisa crescer, não é? – o garoto
resmungou baixinho, escondendo-se entre seus braços, cansado de pensar –
Eu só queria que tudo isso passasse, mas ainda tem tanto por vir... Philip disse
que quer me assumir, oficialmente. Tenho Styles no sobrenome desde que
nasci, mas agora ele quer que a cidade toda saiba. Que sou filho dele. Isso não
vai ser bom. As coisas estão desmoronando, e tudo vai recair sobre ele. Eu
também queria tanto poupar Louis das dificuldades, das piadas e da
repreensão, mas toda vez que eu tento parece que eu só falho, mais e mais. Por
que as pessoas pressionam tanto a família dele? A... nossa família? Por que
somos tão diferentes dos outros?
- Mas é quem somos, não é? É a nossa sina. Nunca seremos Harry, Damian e
Angelina. Seremos ‘os filhos do pastor’. Ninguém nos vê como indivíduos,
somos um conjunto. Somos a imagem de nosso pai. Mas é injusto, não é? Não
ter a chance de mostrar que há muito mais do que o sobrenome que
carregamos ou o sangue que corre em nossas veias. Coisas que nossos pais
fizeram nos definiram para a eternidade. É enlouquecedor, desesperador. É a
vida inteira em uma prisão psicológica. É ver o mundo e não poder fazer parte
dele, só por termos nascido. – ela riu, sem qualquer traço de humor presente
em sua voz – Isso me faz compreender o nosso irmão. Não aceitar tudo que
ele fez. Harry errou demais, fez muita merda. Mas ele continua a ser nosso
irmão. Nós somos uma família, apesar de tudo. Uma família fodida, mas uma
família.
Damian tentou formular alguma resposta, algum argumento contra aquele que
a irmã apresentara, mas a chegada de Louis na cozinha o impediu de concluir
os pensamentos. Estava esgotado. Tudo que queria era ir para sua verdadeira
casa, tomar um banho e dormir ao lado do namorado, pela noite toda, tentando
esquecer qualquer tipo de medo que o assolava. Como se adivinhasse, Louis
postou-se atrás dele, massageando seus ombros com força, fazendo com que
as pálpebras do garoto despencassem sem sua autorização. Ficaram assim, os
três em silêncio, observando o nada e bebendo café. Angelina suspirou
pesadamente antes de sorrir, olhando para o casal a sua frente.
- O casamento vai acontecer no sábado, de qualquer jeito?
- É claro que sim – Damian riu, entrelaçando as mãos com as do noivo quando
ele lhe abraçou pelo pescoço – Não importa o que eles digam, o que ninguém
diga.
- Damian não vai conseguir fugir de mim tão fácil, Angs – beijou os cabelos
negros do outro, apertando-o com mais força contra si – Você vai estar no
cartório, não vai? Pode não ser um casamento tradicional, mas ainda
precisamos de uma dama de honra.
- Podem contar com a minha presença – foi a primeira vez que seu rosto
realmente se iluminou, voltando a ter um pouco de vida – Minha e do
Rodrigo.
- Você acha que seus pais vão lidar bem com isso? – seu cunhado perguntou,
um tanto incerto. - Vão precisar aceitar, se não quiserem uma revolta tão
grande quanto a que estão enfrentando agora. Além disso, Rodrigo não é mais
meu professor. Pediu demissão na semana passada. Vai trabalhar no colégio
particular que fica alguns quilômetros daqui.
- Ainda assim, não vai ser fácil...
- Eu sei. Só não quero analisar isso agora.
O barulho de uma porta se abrindo e saltos altos batendo no chão os despertou
para a realidade que agora precisavam enfrentar. Ouviram Philip e Angel
conversarem rapidamente com Rodrigo, lhe pedindo para lhes deixar
sozinhos, ao menos naquela noite. Conversariam num outro dia, tentariam
esclarecer as coisas. Pelo segundo barulho de portas batendo, chegaram à
conclusão de que o homem havia aceitado, o que fez Angelina soltar um
muxoxo de desgosto. Lentamente, os três se dirigiram a sala, enxergando
somente a barra do sobretudo roxo da matriarca balançando enquanto ela
subia as escadas as pressas, provavelmente chorando. O pastor foi o único a
permanecer ali, e nunca antes parecera tão devastado. Tentou sorrir para eles,
mas em vão. Foi somente um esgar de lábios sem graça, frio e totalmente
vazio.
- Como ele está? – foi Angelina a primeira a falar, ansiosa por notícias do
irmão mais velho.
- Inteiro. Não quero falar sobre isso agora, querida. Podemos conversar
amanhã pela manhã? – não esperou a resposta, virando-se para Damian – Meu
filho, gostaria que passasse a noite conosco. Precisamos manter a família
unida, é o mais importante no momento. Seu quarto continua o mesmo,
exatamente do modo que você deixou. Se nos der licença, Louis, esses são
assuntos particulares. De família – fez menção de se juntar a esposa no
segundo andar, mas foi impedido pela voz do filho do meio.
- Philip... Pai. – ele chamou, segurando com força a mão do noivo – Não sei
se você compreendeu totalmente o que eu e Louis temos, o que nós somos.
Mas no sábado ele vai ser meu marido. Nós já dividimos um quarto, uma casa,
uma vida. Louis é a minha família também, e eu preciso que vocês
compreendam isso. Não peço que aceitem, que se forcem a conviver conosco.
Só que entendam e não tentem mudar o que temos. É impossível.
O pastor Philip nada disse, talvez porque lhe faltassem palavras ou
argumentos. Somente concordou com a cabeça, voltando a subir as escadas,
deixando-os para trás.
- Damian, você não precisava... –Louis começou, tentando se soltar com
delicadeza.
- Precisava. Ele precisa entender, de uma vez por todas, meu amor. Quanto
antes, melhor.
- Vou pegar lençóis e travesseiros limpos pra vocês – Angelina sussurrou,
antes de sair em direção ao grande armário que eles mantinham no andar
debaixo.
Sozinhos, Damian deixou que o outro lhe abraçasse com força, somente para
esconder o rosto na curva perfumada do pescoço do noivo. Ali, ele se sentia
seguro. Ali, nada o destruiria, nada os alcançaria. Fechando os olhos com
força, desejou que pudesse permanecer nos braços do amado para sempre. Seu
pequeno paraíso em meio a destruição.

Tell me you love, come back and haunt me

(Diga que me ama, volte e me assombre)

Oh, when I rush to the start


(Oh, quando eu corro para o início)
Running in circles, chasing our tails

(Correndo em círculos, perseguindo nossas caudas)

Coming back as we are

(Voltando a ser o que éramos)

A brisa era agradável, quase um alívio para o calor que irradiava da pele. As
estrelas no céu nunca pareceram tão brilhantes, mas a lua havia sumido, sem
qualquer tipo de rastro aparente. Era madrugada, mas ninguém parecia se
importar com a hora tardia ou com a manhã seguinte. Havia movimentação na
grande casa amarela dos Dawson, um entrar e sair de familiares e policias,
sedentos por informações exclusivas, por novas perspectivas do crime e por
um pouquinho de atenção desnecessária. Algumas pessoas estavam
simplesmente alheias a tudo aquilo. No jardim frontal de grama verde e bem
aparada, havia um antigo banco de balançar de dois lugares, feito totalmente
de madeira e correntes de ferro. Ali, Karina descansava, a cabeça deitada no
ombro do homem sentado ao seu lado, abraçando seus joelhos com força,
vestindo um pijama comprido de flanela cor de creme. Patrick tinha um de
seus braços ao redor do corpo frio da garota, deixando que os dedos
passeassem com calma pela lateral de seu tronco. Exausta, tanto física quanto
emocionalmente, deliciava-se com os carinhos dele em seus longos
cabelos pretos, o que lhe permitia relaxar, ao menos que superficialmente.
Sentindo o perfume cítrico do amigo em sua jaqueta de policial, era uma
sensação boa. Ficar ali, quietinha em seu conforto. Gostaria que aquilo
pudesse continuar para sempre, mas não podia. Tinham coisas a esclarecer,
assuntos que precisavam ser resolvidos. Doía ter que ser a primeira a quebrar
o silêncio.
- Por que você não me contou antes, Pat?
- Eu... não podia. Eu quis, todas às vezes que nos encontramos. Mas era um
caso sigiloso, eu precisava manter a minha identidade em segredo, se não tudo
iria por água abaixo.
- Seu nome é mesmo Patrick? – ela perguntou um tanto manhosa, arrancando
uma risada sonora dele.
- É. Patrick August Manson. Não ria – a cutucou nas costelas, puxando-a para
mais perto – Tudo é a mesma coisa, tudo continua igual, Ká. Só que agora
você sabe como eu ganho a vida.
A garota assentiu, voltando a posição original, os dedos brincando
distraidamente com um pedaço de tecido mais próximo a ela. Havia ainda
mais uma pergunta, aquela que a incomodava desde o dia anterior na boate.
- Por que... como você se apaixonou por mim?
- Wow – Patrick endireitou-se no banco, como se aquele assunto fosse sério o
suficiente para deixar a postura relaxada de lado – Bom, eu não sei
exatamente como, ou quando. A primeira vez que te vi foi aquela noite na
Sonic. Aquela em que a gente se beijou, você lembra? Eu não sabia quem
você era, nem toda essa merda do Greenfield. Só estava investigando Harry,
tentando levá-lo pra cadeia pelos crimes que já tinha cometido. Mas ele
parecia interessado demais em você e bom, depois que você me beijou, eu
meio que entendi. Fiquei obcecado com aquilo, louco pra te ver de novo. Cada
soco que levei naquela noite valeu a pena – riu, mesmo que não fosse
engraçado – Já tinha feito amizade com Damian aquela altura do campeonato,
e ele me contou quem você era, e como o irmão dele te perseguia por todos os
lados. Resolvi ir atrás, investigar um pouquinho a sua família. Vi os antigos
registros e foi ai que me convenci de que só podia ser aquilo. Algo
relacionado ao seu passado. Passei a seguir vocês dois, de longe. E você...
você era tão incrível. Tão doce com os outros, tão cuidadosa. Mas era forte, ao
mesmo tempo. Sua personalidade reinava. Confesso que Louis e Damian
ajudaram nesse processo. Eles falavam muito, e muito bem sobre você. Sabia
que alguma coisa estava acontecendo comigo. Desenvolvi um instinto de
proteção forte demais com tudo que te envolvia. Me doía saber que você
poderia terminar machucada – tocou levemente o curativo no alto da cabeça
da garota, a lembrança da noite anterior – Nos encontramos de novo, nas
arquibancadas da sua escola. Outro beijo. Outra sensação que eu nunca soube,
e talvez nunca vá saber descrever. A partir daí, tudo tomou proporções
imensuráveis. Precisava cuidar de você, precisava te proteger. Sabia que
estava totalmente apaixonado. Ainda estou.
Karina ouviu tudo, seu pequeno coração aos pulos, disparado em alta
velocidade. Procurou os olhos cor de mel, tão claros e limpos, tantas verdades
escritas ali. Sua mente sabia o que deveria fazer, e pela primeira vez seus
sentimentos e emoções concordavam. Ela inclinou-se, puxando o rosto do
homem para mais perto do seu, sentindo a pele macia sob seus dedos, até
mesmo nos lugares onde uma barba rala começava a nascer, imperceptível aos
olhos. Encostou o nariz no dele, observando os olhos de Patrick fecharem-se
lentamente. Deixou que seus lábios se tocassem sem pressa, somente
pressionados uns nos outros. Quase se esquecera de como era boa aquela
sensação, tão simples e sem segundas intenções mascaradas. Quando ele a
beijou de fato, pedindo passagem entre os lábios rosados, Karina quase sorriu.
Os braços do homem estavam ao redor de sua cintura, puxando-a para seu
colo, com firmeza, mas ao mesmo tempo lhe dando a escolha de ir embora a
qualquer momento. Não iria. Gostava de ficar ali, sentindo-se segura, o beijo
doce e lento aquecendo cada pedacinho de seu corpo. Exploravam as bocas
um do outro como se não houvesse amanhã, e agora as mãos de Karina
passeavam pelos cachos de cabelo loiro e macio, trazendo-o cada vez mais
perto. Parecia tão bom, tão certo, e ao mesmo tempo tão errado. Como se
faltasse uma peça no quebra-cabeças. Mesmo que sua mente concordasse que
beijar Patrick daquele modo faria bem para ambas as almas, seu coração ainda
resmungava, lembrando-se de palavras que havia ouvido mais cedo, palavras
que poderiam ser somente mais mentiras. Tratou de afastar tudo aquilo,
focando-se no homem que agora lhe beijava cada pedacinho do rosto, a testa,
as bochechas, o queixo, a ponta do nariz. Somente para sorrir, um sorriso
lindo e iluminado, e beijá-la nos lábios mais uma vez. Deixou que tudo
recomeçasse, suas línguas numa brincadeira calma, as mãos dele plantadas na
base de suas costas. Tudo no lugar certo. Tudo no lugar errado. Quando ele
depositou um último beijo em seus lábios, ela abriu os olhos, observando-o
com certo carinho.
- Posso perguntar qual o motivo disso? – a voz de Patrick soava rouca, porém
satisfeita, baixinha.
- É o meu jeito de dizer “muito obrigada” – ela acariciava o lado do rosto dele
com a ponta dos dedos, gostando da expressão que ele fazia aos mínimos
toques – Por cuidar de mim todo esse tempo, mesmo a distância. Por se
preocupar, por me proteger. Por me amar. Eu não posso te prometer nada no
momento...
- Eu não quero que...
- Shh – silenciou-o, o dedo indicador sob seus lábios inchados – Me deixe
falar. Não posso prometer nada. Foram dias longos, intermináveis e
totalmente catastróficos. Eu te juro que estou fazendo o possível e o
impossível para não enlouquecer e desmoronar cada vez mais. Eu não aguento
mais chorar, Patrick. Minha cabeça é puro caos. Preciso de tempo, pra
organizar tudo, deixar as coisas no lugar. Você sabe que, apesar de tudo, eu
tenho um coração teimoso que infelizmente escolheu a pessoa errada. Ainda
não parei pra pensar em tudo que aconteceu. Hoje eu sinto muita raiva, muito
ódio e muito nojo dele. Mas e amanhã? O que via acontecer amanhã? – sua
garganta pareceu travar, as lágrimas ameaçando voltar – Se você puder me dar
esse tempo, se puder continuar comigo enquanto isso. Vou entender se não
quiser. Se precisar seguir adiante. Mas se quiser ficar, podemos descobrir
algumas coisas juntos.
- Não estou indo a lugar algum, Ká.
Ela pôde sorrir verdadeiramente pela primeira vez quando Patrick a abraçou
com força, escondendo o rosto entre seus cabelos. Pela primeira vez na vida,
queria que alguma coisa funcionasse. Ainda precisava enfrentar conversas
longas, encontros perigosos, mas por enquanto, estava tudo bem. Ficaria tudo
bem.
- Karina? – Rick chamou, parado na soleira da porta. Havia um curativo onde
a bala havia pego de raspão, e o homem parecia fraco e absurdamente
cansado.
- Estou aqui – respondeu, demorando-se ao levantar, puxando Patrick consigo
– Já estou entrando.
- Ah, Oficial Manson. Não sabia que estava aqui – o homem o cumprimentou,
oferecendo uma das mãos.
- Agente Especial Manson – Karina corrigiu, cutucando-o com graça enquanto
ele apertava a mão de seu pai. Seu pai. A ideia ainda lhe dava arrepios.
- Eu ainda não aceitei a proposta, Ká – ele riu, explicando-se – Uma divisão
do FBI me fez um convite e, bom, é um cargo decente. O cargo que meu pai
costumava ocupar antes de morrer.
- Então o cumprimento da lei está no seu sangue?
- Acredito que sim – Sorriu, beijando a testa da garota rapidamente – Vocês
têm muito o que conversar. Vou deixá-los a sós. Boa noite. Qualquer coisa
que precisar, me ligue.
Ela assentiu, observando-o se afastar. Porém, antes que o homem chegasse ao
portão, Rick lhe chamou, fazendo com que virasse rapidamente.
- Não posso expressar com palavras o quanto estamos agradecidos por tudo
que fez conosco. Eu e minha esposa adoraríamos tê-lo como convidado de
honra em um jantar em nossa casa durante a semana.
- O prazer seria todo meu, senhor Dawson.
- Combinado então. Pedirei que lhe avisem o dia e a hora. Tenha uma boa
noite! – Virando-se para Karina, um tanto receoso, ele convidou – Vamos
entrar, querida?
Ela assentiu, mesmo que consternada. Ainda não havia superado o fato de que
a verdade sobre sua vida havia lhe sido escondida por tanto tempo, de modo
tão mesquinho e cruel. Rick e Esma eram seus pais, e sabiam disso por anos e
anos a fio, e ainda assim nunca lhe contaram. Entrou na casa na qual nunca se
sentiu inteiramente confortável, mas que afinal sempre fora sua. Esma estava
sentada em um dos grandes sofás, chorosa em seu pijama azul. Assim que a
viu, seus olhos verdes faiscaram, e cada vez mais lágrimas pareciam deslizar
sobre suas bochechas rosadas. A garota queria as explicações, e queria o mais
rápido possível. Ambos sabiam disso. Levando-a até a poltrona macia que lhe
pertencia, Rick pediu que se sentasse, ele mesmo sentando-se na mesa de
centro do local, bem a sua frente.
- Sabemos que temos muito a explicar, e que você quer saber de tudo, agora. –
começou, a voz tremendo levemente – Só lhe pedimos que não faça
julgamentos antecipados, que ouça de mente e coração abertos, meu bem. Não
existem pessoas no mundo que te amem mais do que a gente. E tudo que
fizemos até hoje foi para lhe proteger.
- A história que Greenfield te contou – Esma começou, aos soluços – Ela é
verdade. Sim, nós fomos casados. Ágatha era filha dele, e ele a matou. Você é
nossa filha, e foi sequestrada quando bebê. Nós sabíamos que era você o
tempo todo, desde o início. Mas ele distorceu várias partes, contou do jeito
que lhe fosse conveniente. Essa é a nossa versão, a verdadeira, e se você
escolher acreditar nela, nada no universo me faria mais feliz ou sossegaria
mais o meu coração. Mas cabe tudo a você. É tudo sobre você – limpando o
rosto, ela continuou – Meu casamento com Lorenzo foi uma confusão de altos
e baixos. Éramos felizes no começo, apaixonados como um casal jovem que
acabou de descobrir o mundo.Mas aos poucos, ele começou a mudar. Tornou-
se excessivamente ciumento e violento, proibindo-me de atos simples como
conversar, ou até mesmo olhar para outros homens. Ele sempre foi gentil, mas
estava começando a me sufocar. As coisas só pioraram quando engravidei de
Ágatha. Os primeiros sinais de distúrbios emocionais começaram a aparecer.
Era como se Lorenzo tivesse me trancado em uma redoma de vidro, como seu
troféu mais precioso. Nunca foi a vida que eu quis pra mim. Ele se tornava
cruel quando contrariado. Não vou mentir, ele me bateu algumas vezes,
mesmo grávida. Quando Ágatha nasceu, achei que fossemos conseguir nos
acertar, que tudo seria mais fácil. Que engano bobo – riu, nenhum humor na
voz. Lágrimas e mais lágrimas lhe escapavam – Nós nunca mais vimos a luz
do sol. Precisávamos viver para ele, em função dele. Era um inferno. Até Rick
aparecer – segurou a mão do marido com força, apoiando-se nele – Foi a
primeira visita em meses. Ele era tão gentil, tão doce e amável e tão solidário
com a nossa situação. Ágatha o adorava, e como eu não me apaixonaria
instantaneamente por esse homem? Era recíproco. Cada vez Richard me
visitava, mais e mais, e Lorenzo estava tão inerte em loucura que não se dava
conta. Foi aos poucos que saímos daquela casa, tentando alertar meu ex-
marido sobre nosso relacionamento. Ele fingia não ouvir, não perceber. Eu
ainda era sua propriedade, eu e nosso bebê. Mas ele viu quando eu finalmente
o deixei. Enlouqueceu por completo. Nos ameaçou de morte, nos perseguiu,
encurralou o máximo que pôde. Foi necessária uma ação judicial e a
intervenção de sua família para que ele nos deixasse em paz. O resto você já
sabe.
- Então voltamos para quase oito anos atrás. Havíamos acabado de nos mudar
para cá – Rick recomeçou, compreendendo que sua esposa não tinha mais
forças – Tentávamos reconstruir nossa vida, mesmo que nunca tivéssemos
parado as buscas por você. Era uma manhã de quinta-feira quando recebemos
as fotos e as indicações do Lar Redenção. Quando eu vi... Eu não conseguia
acreditar. Você era parecida com Ágatha, mas se parecia mais ainda comigo.
Os mesmos olhos. Exatamente iguais. O mesmo sorriso. Sabíamos que era
você. Corremos até lá, e foi tudo confirmado. Você não era nada além de
perfeita. A nossa menininha. Um exame de DNA mais tarde confirmou tudo
isso. Mas você era arisca, nada receptiva a nossas tentativas de nos
aproximarmos. Lembra-se da psicóloga que precisou frequentar? Foi ela que
nos sugeriu não contar. Esperar que você crescesse, que se adaptasse a nós
dois. Que nos amasse, um pouquinho que fosse. Então, quando você estivesse
pronta, poderíamos contar. Te abraçar de verdade, te chamar com todas as
letras de nossa filha. O medo de que você não nos compreendesse era muito
grande, ainda é. E se você não nos aceitasse, se a mágoa reinasse? Mas
precisávamos arriscar. Porque te perder de novo era muito mais dolorido do
que viver com uma mentira. – Nunca vira Rick chorar, mas naquele momento
ele o fazia – Você acabou descobrindo por outros meios, e isso não foi
correto. Nada foi correto. Mas nós só queríamos o seu bem. Perdemos tanto da
sua vida. Seus primeiros passos, suas primeiras palavras, toda a sua infância.
Ao menos uma vez, queríamos ser aqueles que te protegiam, um pouquinho
só. Ele silenciaram-se, olhando para ela, esperando uma reação. Mas Karina
não sabia como agir. Eram informações demais, muita coisa com a qual se
lidar. Acreditaria neles? Seria capaz de lhes perdoar? Ainda não sabia.
Precisava dormir, pesar com cuidado tudo que haviam lhe dito, se decidir com
cuidado. Limpou uma das lágrimas que lhe escaparam, colocando-se de pé
num pulo.
- Obrigada por me contarem – abraçou-se, olhando para o nada – Eu
precisava. Não consigo ter algo pra lhes dizer agora. Uma briga por não terem
me contado simplesmente me devastaria, mais e mais. Não tenho forças para
isso. Eu aprecio a preocupação, mas vocês continuam errados. Todos nós
estamos errados, de algum modo. Eu acho que só o tempo pode nos dar todas
as respostas que precisamos – subiu os primeiros degraus da escada, virando-
se lentamente – Por favor, me entendam, e me deem espaço. Tudo que eu
preciso é tempo e espaço. E uma boa noite de sono. – respirando fundo, soltou
as palavras com calma. – Pai. Mãe. Tenham uma boa noite.
E subiu, desligando as preocupações de sua mente. Seriam dias difíceis,
complicados e nebulosos. Decisivos. O que viria a seguir definiria o resto de
sua vida. Naquela madrugada, tudo que precisava era um pouquinho de paz,
um pouquinho de paciência. E um mundo dos sonhos, onde a ficção se
sobrepunha a realidade criando um universo onde era possível ser feliz, sem
que doesse. Felicidade era só uma parte do caminho, dificuldades não
existiam. O mundo dos sonhos era seu destino, afinal.

Nobody said it was easy

(Ninguém disse que seria fácil)

No one ever said it would be so hard

(Ninguém disse que seria tão difícil)

Oh, take me back to the start

(Oh, me leve de volta ao início)

* O título do capítulo, Pais e Filhos, é um clássico fantástico do Legião


Urbana
* O trecho do começo é Bohemian Rhapsody, do Queen
* Os outros trechos durante o capítulo pertencem a The Scientist, do Coldplay
Capítulo 24 – Lucky Ones

“Eu fiquei tão assustado, achei que ninguém poderia me salvar. Você veio e
me carregou como um bebê. De vez em quando as estrelas se alinham, garoto
e garoto* se conhecem pelo que foi destinado . Será possível que você e eu
somos os sortudos? Todo mundo me dizia que o amor era cego, então eu vi
seu rosto e você explodiu minha mente. Finalmente, eu e você somos os
sortudos dessa vez”

O tempo e o clima são a definição perfeita da palavra “instabilidade”. Mudam


repentinamente, levando embora o calor e trazendo o frio em seu lugar, para
depois voltar ao princípio e começar tudo de novo, sem qualquer tipo de aviso
prévio. Dominadora e controladora como é a raça humana, ela tenta lhe impor
números, estatísticas e prevê-lo em máquinas caras e sofisticadas. Nem
sempre funciona. Ambos são espíritos loucos e livres, esparramando-se por ai
como, quando e onde bem entenderem. Poderosos, esses dois pequenos
elementos são capazes de transformar emoções e sentimentos, certezas e
medos. As pessoas geralmente atribuíam os dias de chuva a tristeza, a dor e a
perda. O céu pesado e fechado refletindo a aura de muitos que já sofreram. Os
amanheceres ensolarados traziam a alegria, o lado doce e sorrisos estampados
nos rostos. O garoto parado nos largos degraus em frente a uma imensa igreja
de pedras brutas contestava aquelas lendas e crenças. Fora um dia de sol que
lhe roubara sua metade de alma dividida em outro corpo, sua companheira
mais antiga. Fora um dia de tormenta que lhe dera aquele que amaria por toda
a eternidade. Porém aquele entardecer no qual se encontrava era diferente. Era
fresco como uma tarde de outono, o céu naquele tom um tanto dourado, um
tanto laranja, que parecia absolutamente perfeito. O clichê diria que havia
passarinhos cantando, mas tudo que ele podia ouvir era o burburinho de
convidados que chegavam aos poucos. Não queria olhar seu relógio de pulso,
as horas não mais lhe importavam. Era um bom dia. Nada de brilho, de
aromas diferentes ou de grandes confusões no ar. Um dia tão simples e
comum quanto qualquer outro. A única diferença era que aquele final de tarde
seria o mais importante, para o resto de sua vida.
Seria uma mentira absurda dizer que não estava nervoso. Seu coração
acelerara de um modo incontrolável, aos pulos frenéticos dentro de sua caixa
torácica. Louis tentava não cruzar os braços, não amassar o terno negro que
usava, embora agora a gravata prateada parecesse lhe sufocar aos poucos. Em
sua lapela havia três pequenas flores de cerejeira, unidas por um minúsculo
galho envolto em cetim branco. Não sabia se aquilo estava relacionado à
decoração do interior do lugar, já que se recusara completamente a entrar
quando sua mãe prendeu o enfeite ali, mas a mulher possuía o mesmo arranjo
preso nos cabelos. Louis gostava de surpresas, e ter deixado o casamento aos
cuidados de Karina e Angelina parecia ter sido uma boa ideia. Bufou, olhando
para a grande construção atrás de si. Uma semana atrás, achava que teria um
casamento simples no cartório da cidade, com o noivo, seus pais e seus
padrinhos, ninguém mais. Bom, as coisas saíram um pouco de controle.
Ainda lembrava-se nitidamente da fatídica conversa. Era quarta-feira, e havia
tensão e correria na casa dos Styles. Ele se perguntava por que exatamente
estava lá, ao invés de estar terminando de arrumar suas malas para a viagem.
O período escolar havia terminado na segunda-feira, mas nenhum deles ficaria
para a formatura oficial. Era perda de tempo. Permanecia ali, sentado naquela
cadeira fria demais na cozinha impecavelmente branca, esperando que
Damian terminasse o que quer que estivesse fazendo para que ambos
pudessem ir embora. Aquele lugar ainda lhe dava arrepios. Principalmente
agora que barras de ferro estavam sendo instaladas numa janela do segundo
andar, onde Harry começara a cumprir prisão domiciliar até que o julgamento
fosse marcado. Tudo parecia estar desmoronando aos poucos para aquela
família. Brincava com uma xícara vazia quando o pastor Philip apareceu,
aparentemente exausto e devastado. Sentou-se ao seu lado, suspirando
profundamente ao encarar o garoto de verdade, pela primeira vez desde os
acontecimentos passados.
- Meu filho – chamou, a voz rouca e cansada, muito diferente do que ele se
lembrava – Se importa em me servir uma xícara de café?
Louis acenou com a cabeça, levantando-se rapidamente. Agora já conhecia o
lugar o suficiente para abrir armários e lidar com cafeteiras modernas, não
levando muito tempo para voltar ao grande balcão central, entregando o
recipiente ao mais velho antes de voltar a se sentar. Era estranho estar a sós
com o pastor, o silêncio pesado e carregado entre os dois, que mal sabiam
como agir um com o outro. Não era seu cenário favorito.
- Louis – respirou fundo, quase com dificuldade - Você e Damian já são dois
adultos, cientes de suas vidas e responsabilidades. Perdoe-me pela minha
intromissão, mas é de um de meus filhos que estamos falando. Para outros
pode parecer que eu nunca me importei por tê-lo deixado ir, mas tudo que
sempre quis foi o bem e a felicidade dele. Eu o amo, Louis, e não faço
diferença entre nenhuma das minhas crianças – o pastor tentava ser gentil, isso
era perceptível – Eu conversei com Damian ontem à noite, e agora venho falar
com você. Não posso negar que me preocupa o que vocês dois têm feito, a
vida que estão levando. Sinto que estou falhando miseravelmente como pai,
todos os meus filhos perdidos. Eu lhe pergunto, Louis, por que continuar com
essa dita relação, com essa loucura de casamento? Vocês são dois homens
jovens, bonitos, saudáveis, que poderiam facilmente arranjar duas lindas
garotas para formar duas famílias formidáveis. Por que se afogar no pecado,
cada vez mais?
- Porque eu o amo, senhor Styles – respondeu, simplesmente – Eu entendo a
origem de sua preocupação. Sei o que a religião pensa sobre
homossexualidade. O que vocês não compreendem é que não estamos
tentando afrontá-los. Não é uma escolha. Nascemos assim, é algo que faz
parte da gente. Se não for comigo, pode ter certeza que Damian vai escolher
algum outro cara para passar o resto da vida. Haverá uma família, mas não do
jeito que o senhor sempre imaginou. Não é curiosidade, não é uma
brincadeira. É real. Seu filho é o amor da minha vida – não conseguiu conter
um sorriso fraco ao ver Damian encostado na soleira da porta, somente
escutando – Não consigo imaginar uma vida sem ele, longe dele. É simples
assim, senhor. É tudo que posso oferecer.
- E é o suficiente pra mim, pai – o outro adentrou a grande cozinha, parando
ao lado do pastor – foi o que eu lhe disse ontem à noite. Pensei que houvesse
compreendido que não há nada que você possa fazer para mudar isso.
- Compreendi, meu filho. Mas precisava ouvir isso de Louis – segurou uma
das mãos de cada garoto, juntando-as no centro da bancada de mármore – Eu
poderia fazer muitas coisas para tentar impedir isso. Para fazê-los enxergar o
mundo do jeito que eu vejo, do modo como fui ensinado. Mas assim eu já
cometi erros demais. Errei demais com você, Damian, e quero começar a
corrigir esses erros. Consigo ver o amor aqui, consigo sentir. – olhou para
ambos, seus olhos verdes cheios de sentimentos diferentes - Sei que vocês
nunca pediram minha benção, mas deem esse pequeno presente a um velho
pai. Deixem que eu os case, na minha igreja. É o único pedido que lhes faço.
E agora estavam ali, praticamente a um passo de entrar no grande prédio e
receber as bênçãos do pastor Philip. Havia um juiz de paz parado no primeiro
degrau, trocando algumas palavras calmas com seu pai. Mas toda aquela
situação o deixava um tanto preocupado, quase desconfortável. Não pela
religião envolvida, pelo local escolhido ou os poucos convidados
acrescentados à lista. Mas porque fora fácil demais. Esperava encontrar mais
dificuldades, negações e oposições severas. Mas tudo se desencadeara de um
modo até belo, levando a crer que finalmente o mundo conspirava a seu favor.
Infelizmente, ainda tinha lá suas dúvidas.
Pôde ver Karina chegando junto aos pais, caminhando rapidamente em sua
direção. Seu coração subitamente acalmou-se. A amiga era como um
tranquilizante natural para seu rebelde sistema nervoso.
Karina parecia cansada, mesmo com a maquiagem que cobria seu rosto, o
característico batom vermelho nos lábios cheios. As coisas continuavam
difíceis em sua casa, sua nova adaptação a uma vida tão antiga. Ainda não
havia perdoado completamente Esma e Rick, e ninguém saberia dizer se um
dia aquilo realmente aconteceria. Mas eles estavam convivendo, encontrando
brechas nas armaduras uns dos outros. O casal comparecera ao casamento,
juntando-se aos Kallister, apenas o brilho vermelho do vestido de Esma
destacando-se ao lado do amarelo-mostarda de Linda. Já a garota parecia ter
achado um equilíbrio entre seus dois estilos, criando um novo e único, que
talvez afinal pertencesse à verdadeira Karina. Seu vestido era curto e delicado,
preso em um ombro só, num tom bonito de bege repleto de desenhos de
pequenas flores vermelhas. O contraponto eram as pesadas lita boots negras
em seus pés, e nos cabelos, obviamente, havia um pequeno arranjo de flores
de cerejeira jogando-os para o lado.
- Ah, Louis! – ela suspirou, sorrindo abertamente para ele – Puta merda, você
está tão bonito. Estou morrendo de inveja de Damian e a ponto de te pedir pra
darmos uns amassos ali no cantinho.
- Vamos escapulir enquanto ninguém está olhando – ambos riam quando ela o
abraçou com força, sentindo-o tremer levemente.
- Vai dar tudo certo. Mantenha a calma.
- Ele ainda não chegou – o garoto resmungou, largando-a com cuidado.
- Vou te dar uma informação confidencial, está me entendendo, mocinho?
Diga a alguém que te contei e você morre – passou o dedo indicador pelo
próprio pescoço, ilustrando o que queria dizer – Mas faz algum tempo que
Damian está aqui. Escondido perto da sacristia. Sua mãe disse que passou por
lá há poucos minutos e que ele e Angelina já começaram a discutir. Algo
relacionado ao cabelo dele.
- No mínimo ela está tentando pentear. Dam odeia que façam isso.
- A não ser que seja você.
- É. – Louis sorriu quase envergonhado – Mas por que diabos ele está lá e não
aqui esperando comigo?
- Porque vocês vão se casar, e na cabeça da sua adorável cunhada os noivos
não devem se ver antes do casamento – Karina deu de ombros, como se não
tivesse absolutamente nada a ver com aquilo.
- Mas não é um casamento tradicional. Somos só nós dois, vocês, o pastor e o
juiz. Algumas palavras, um pedaço de bolo, e acabou. – ele parecia ainda mais
nervoso do que antes, movendo as mãos descontroladamente.
- Vou te dar um tapa se você continuar nesse colapso nervoso, Louis.
Mantenha a calma e não se preocupe com os detalhes – segurou-lhe as mãos,
o sorriso mais tranquilo tomando conta de seu rosto – Falando neles... Afinal,
como vocês escolheram quem vai entrar primeiro na igreja?
- Nós tiramos par ou ímpar – deu de ombros, como se fosse a coisa mais
natural do mundo.
- Inacreditável. Mas vindo de um casal que poderia casar de pijamas, eu
acredito.
- Você nos conhece absurdamente bem para nossa própria segurança, Ká.
Riram juntos, porque não passava da pura verdade. Então permaneceram
naquele silêncio confortável que lhes era tão conhecido, se não apreciado. Não
precisavam de palavras para estar em sintonia, elas eram totalmente
dispensáveis. Como no momento em que Patrick chegou, subindo os longos
degraus de pedra em seu terno cinza claro, o blazer aberto e uma gravata
negra em seu pescoço, os cabelos milagrosamente penteados. Assim
como Louis, levava o arranjo de flores de cerejeira preso na lapela. Acenou
para eles com um sorriso brilhante no rosto, antes de apontar para sacristia e
gesticular um pedido de desculpas com as mãos. Era o melhor amigo de
Damian, natural que fosse ajudá-lo com o que quer que precisasse. Assim
como Karina estaria ali para Louis. Era uma ideia até um tanto engraçada, se
parassem para pensar com calma. Juntos seriam padrinhos dos amigos,
testemunhariam seu amor eterno e verdadeiro, embora seu próprio caso fosse
confuso. Ela não queria analisar tudo aquilo. Ao menos não naquele dia tão
especial. O pigarro de Louis, porém, fez com que ela o olhasse com
severidade.
- Então...
- Senhor Louis Kallister, futuro marido do senhor Damian O’Hare, já que
vocês se recusaram a me contar quem vai adotar o sobrenome de quem ou
como isso vai funcionar – tagarelou rapidamente, uma ruga entre suas
sobrancelhas – Está querendo dizer alguma coisa?
- Eu? Absolutamente, senhorita Karina Dawson. – fingiu inocência,
assobiando vagarosamente – O quê? Não posso fazer nada se está na cara do
panaca do nosso padrinho que alguma coisa fantástica anda acontecendo no
universo. E como você ficou ligeiramente corada perante esse comentário, o
que mais poderia ser?
- Você não sabe que...
- Não estou te julgando, Ká. Nunca faria isso. Vocês podem não estar juntos,
não ser um casal, todo aquele blábláblá, mas pelo sorriso no rosto dele e como
vocês passam um tempo consideravelmente grande na companhia um do
outro, consigo tirar minhas próprias conclusões – o garoto piscou, levando um
dedo aos lábios como se guardasse um segredo – Acho isso agradável. Ajuda
a ambos, cura seus corações. Só tomem cuidado, sim? Me preocupo com os
dois. Façam as coisas de uma maneira que ninguém sofra no final.
Karina somente concordou, mil pensamentos lhe surgindo como um turbilhão.
Perdera há muito tempo a noção de certo e errado. Sua vida era uma bola de
neve, um navio solto pelo oceano sem qualquer previsão de volta ou âncora
que pudesse lhe manter firme. Era uma confusão, uma garota totalmente
partida e arrasada. O que teria a oferecer para Patrick? Nada além de
promessas que talvez não se cumpririam e um coração que tinhas grandes
possibilidades de nunca se recuperar.

Se Angelina não calasse a boca, o próprio Damian se certificaria de agarrar-


lhe o pescoço até que não restasse espaço possível para o ar atravessar. A irmã
caçula não parava de lhe dar instruções e reclamar sobre o estado dos seus
cabelos negros. Não se importava com nenhuma daquelas porcarias. Só queria
encontrar Louis logo, segurar sua mão e finalmente poder sair daquela maldita
cidade. Dobrou a manga do terno negro, recusando-se a deixar a garota dar o
nó em sua gravata verde. Já fora uma ideia ruim o suficiente que ela prendesse
o pequeno arranjo de flores de cerejeira em sua lapela, cutucando-o sem
piedade com o pequeno alfinete. O professor Ernandez, a quem agora deveria
chamar de Rodrigo, o que ainda era difícil para ele, observava de longe com
um meio sorriso divertido no rosto. Aprendera que ninguém se mete no
caminho de Angelina, esfuziante em seu vestido de seda roxo, um exagero
para um casamento tão pequeno. Ela não se importava. Jogava os cachos
loiros para os lados, o mesmo arranjo da lapela do garoto preso no topo de sua
cabeça.
- Você é o pior noivo que já conheci, Dam.
- E você é uma organizadora maluca. Deveria ter implorado para que
fosse Karina a ficar comigo. Ao menos ela não tentaria me matar com um
alfinete.
Angelina somente mostrou a língua, um jeito infantil que nunca perderia.
Abraçou-se ao namorado, recusando-se a manter uma conversa com o irmão.
Sabia que ela desistiria da birra logo, já que seria sua acompanhante até o
altar. Estremeceu com a lembrança, ao se dar conta de como desejava que
fosse sua mãe ali, acompanhando-o no dia mais feliz de sua vida. A falta que
sentia dela era absurda. Mas se recompôs, antes que viessem as lágrimas.
Damian não era o tipo de pessoa que chorava. Não se lembrava da última vez
que deixou as emoções lhe dominarem. Suspirou com alívio ao ver Patrick se
aproximando, um sorriso glorioso nos lábios que só poderia significar que
havia visto Karina. Se a garota estava lá, provavelmente estaria junto
de Louis. A ideia lhe injetou um novo ânimo.
- Cara, você ainda não está pronto? – ouviu o homem reclamar, consultando o
relógio de pulso – Seu pai já está ai, seu noivo também. A cerimônia está
prestes a começar!
- Não sei dar nó na maldita gravata. Nunca precisei usar uma – resmungou,
irritado pela confissão – Não confio em Angs para fazer isso. Não posso
simplesmente não usar essa porcaria?
- Venha cá – rolou os olhos, puxando o amigo mais para perto – Nervoso?
- Não muito – deu de ombros, deixando que Patrick lidasse com as tiras de
tecido – Mais ansioso. Como ele está?
- Parecia bem. Karina está lá com ele – o sorriso sempre o denunciava –
Ambos parecendo incríveis. Não podemos perder para aqueles dois. Meu
tributo precisa parecer bonitinho.
- Você não pode estar comparando meu casamento aos Jogos Vorazes,
Patrick.
- Que a sorte esteja sempre ao seu favor! – riu abertamente, divertido pela
consternação no rosto do outro – Vai dar tudo certo, ok? Fique calmo.
Ninguém vai fugir. Estou com as alianças no bolso. Seu pai apoia. O universo
conspira positivamente.
- Eu sei. Mas me entenda, as coisas nunca deram certo pra mim. Nunca.
Tenho medo de no final isso ser só uma conspiração do meu pai para nos
separar diante de todo mundo, de que alguém tente impedir, de que Louis
desista... Eu não sei. Só estou acostumado a esperar pelo pior.
- E eu entendo seu pai, Dams. Ele sabe que não vai adiantar separar vocês
dois. Ele entendeu, e está tentando ficar perto de você. Toda essa história com
o desgraçado do Harry, isso mexeu com o pastor Philip. O fez enxergar o
mundo de uma maneira diferente. Está tentando fazer você feliz, da maneira
que puder, porque apesar de tudo, você ainda guarda alguma confiança nele.
Não é como o filhinho perfeito que o esfaqueou pelas costas. – Patrick adotara
uma seriedade que era incomum, mas bem-vinda – Nem mesmo você
consegue ver, mas está ai. A sua vulnerabilidade quando o assunto é família.
Não vou mentir, me preocupo em relação a isso. Tenho medo de você se
entregar demais e depois sofrer. Você é o irmão que nunca tive, Damian. Me
sinto no dever de protegê-lo.
- Você simplesmente não pode me dizer isso quando já estou emocionalmente
inconstante, Patrick. Que merda – mas ele ria quando socou o amigo
levemente na altura dos ombros, observando o nó bem feito em sua gravata –
Preferiria mil vezes ter nascido seu irmão, do que daquele... Bom, é melhor
nem dizer a palavra. Mas somos, cara. Irmãos de uma família que nós mesmos
escolhemos. Eu, você, Louis e Karina. E vai ser assim a partir de amanhã. Que
horas você parte?
- Um pouco depois do casamento. Vou passar na casa da minha mãe, pegar as
chaves dos apartamentos. Sei que tia Judith deixou a de vocês lá. Ela não
gosta de imobiliárias. Mas nos encontramos naquele restaurante. Consegue
chegar lá?
- É óbvio – pareceu ligeiramente ofendido – Acha que sua mãe vai reagir bem
as novidades? Digo, você entrando pro FBI no cargo do seu pai, vivendo no
primeiro apartamento deles?
- Sinceramente? Não faço ideia. Ela pareceu desconfiada, com o apartamento
dos meus tios sendo finalmente comprado e eu pedindo a chave do nosso...
Mas uma hora ela precisa ficar sabendo, não é? – mas ele não parecia
exatamente confiante.
- Vai dar tudo certo. Você vai ver. Nossa vida começa amanhã. E vai ser bem
melhor que a atual.
- Na verdade, a sua começa exatamente agora – consultou o relógio
novamente – Vamos lá pra frente.
Respirou fundo uma última vez, grato por aquela agonia estar prestes a chegar
ao fim. Seguiu Patrick pelos degraus que levavam diretamente a frente da
grande construção que era a igreja, pouquíssimas pessoas agora paradas ali.
Pôde ver Angelina com um bico nos lábios, ainda irritada pelas palavras que o
irmão dissera mais cedo, e Linda Kallister junto a ela, sorrindo abertamente.
Saberia quem encontraria nos degraus superiores, mas Patrick parecia estar
cooperando com o plano de evitar que os noivos se vissem. Seria falta de ética
nocautear o padrinho cinco minutos antes do casamento? Mesmo que
quisesse, provavelmente não conseguiria. Então se deixou abraçar por Linda,
agradecendo suas palavras e seu carinho. Sua sogra era um ser humano
extremamente doce e especial. Assim como o filho.
- Hey, Damian! - alguém gritou dos degraus superiores, uma voz que ele
reconheceria em qualquer lugar, em qualquer situação. Virou-se, driblando o
falho esquema de proteção de Patrick, e lá estava Louis, escondido atrás de
uma Karina que ria descontroladamente, talvez porque o melhor amigo lhe
cutucasse em pura vingança por não deixá-lo ver propriamente seu noivo
antes do casamento. Seus olhos azuis nunca brilharam tanto, e havia um
sorriso calmo e tranquilo em seu rosto ao pronunciar as palavras seguintes -
Te vejo no altar.
E então parecia tudo bem, tudo certo e maravilhoso. Funcionaria. Porque o
estupor em que entrara no momento em que Louis lhe sorrira garantira isso, e
muito mais. Ao menos daquela vez, seria feliz. Ouviu uma música que não
conhecia soando na igreja, e Linda apressou-se para se juntar ao filho. Era
chegada a hora. Não quis olhar os dois entrando na igreja, preferia saber que
estaria lá dentro, lhe esperando. Seu coração não possuía mais controle, mas
ele não se importava. Voltou à realidade apenas ao ouvir as palavras de
Patrick.
- Afinal, que sobrenome vocês escolheram, e como vocês escolheram?
- Par ou ímpar. – deu de ombros – Meu pai pediu que ficássemos com Styles,
mas eu... Não achei certo. São lembranças demais, para nós, para Karina.
Então ficamos com o simples e velho O’Hare. Eu realmente não me
importaria em me chamar Kallister, mas Louis tem um senso de justiça
inabalável demais.
- Seu praticamente marido é o maior fã de Liga da Justiça e
os Vingadores que eu já conheci. Não me surpreende. – mas Damian já havia
perdido Patrick para a garota parada perto das grandes portas de madeira – É a
minha deixa. Nos vemos lá dentro!

Naquele momento, Karina podia jurar que estava mais nervosa que os noivos.
Quando Patrick atingiu o último degrau, dois passos de distância, seu coração
estava aos pulos caóticos, irrefreáveis. Quando aquela distância foi vencida e
ela podia sentir seu perfume cítrico inebriá-la lentamente, só pôde rir. Céus,
como o cumprimentaria? Era tão estranho estar perto dele e não saber como
agir diante de outras pessoas. Mas ele sabia. Beijou-lhe a bochecha
rapidamente, sussurrando um “oi” com aqueles brilhantes olhos cor de mel. O
que mais poderia fazer, se não retribuir?
- Você está maravilhosa. Acho que poderia passar o dia inteiro te olhando, e
nunca me cansaria.
- Não seja bobo – sentiu-se corar, algo que fazia muito ultimamente – Você
precisa acender, não esqueça – apontou distraidamente para a pequena caixa
de vidro que trazia nas mãos, uma redonda vela branca em seu interior.
- Ah, claro! – Patrick parecia procurar algo nos bolsos internos de seu blazer,
logo encontrando o pequeno isqueiro de prata – Ainda não entendi o esquema
das velas.
- É para iluminar o caminho dos dois, segundo Angelina. Uma metáfora. –
controlou o riso, observando a chama tremeluzir no pavio alvo – Ela disse que
seria mais original e bonito do que todas nós carregando flores. Você
simplesmente não discute com Angelina.
- Eu sei. Ela é assustadora.
A música agora havia mudado, quase como se tivesse crescido, o som
tomando conta de todo o lugar. Patrick respirou fundo, oferecendo um braço
para Karina, e o sorriso em seu rosto era capaz de iluminar cada pedacinho
escuro e nefasto da vida da garota.
- Pronta, madame Dawson?
- Pronta, agente Manson. – aceitou-o, apertando-o delicadamente antes que
ambos se endireitassem, prontos para dar o primeiro passo em direção ao
altar.
A inquietação de Damian apenas cresceu após presenciar Patrick e Karina
sumirem pelas gigantescas portas de madeira. Agora era sua vez, e ser o
último a entrar em seu próprio casamento lhe dava nos nervos. Maldita hora
que fora escolher “par”. Esfregava as palmas das mãos uma na outra,
tentando encontrar um pouco de calma no ato. Tudo ficaria bem, tudo daria
certo. Esse era o seu mantra. Antes que pudesse chamar Angelina, sentiu uma
mão leve e delicada em um de seus ombros. Tinha medo de virar-se para
encarar quem quer que fosse. Aquilo não podia ser um bom sinal. Não àquela
altura do campeonato. Girando os calcanhares lentamente, o choque e a
surpresa tomaram conta de seu rosto.
Angel Styles o observava com todo o poder de seus maquiados olhos cinzas.
Usava um longo vestido azul escuro, pérolas brilhantes em seu pescoço e o
pequeno arranjo de flores de cerejeira preso nos curtos cabelos negros. Não
sorria, mas parecia calma e mergulhada em determinação. Uma das velas que
deveriam ser acesas estava em suas mãos, junto a alguma coisa que possuía
um brilho dourado reconhecível. Damian não conseguiu formar qualquer tipo
de frase coerente diante daquela situação tão esdrúxula.
- Antes que você possa fazer qualquer tipo de comentário, Damian, deixe-me
explicar os motivos da minha presença aqui está noite – o tom de sua voz era
surpreendentemente gentil, comparado à hostilidade que havia enfrentado a
vida toda – Não concordo com este casamento. Acho um absurdo, um pecado
sem proporções. Mas – ergueu um dedo, antes que ele rebatesse – Não estou
aqui para tentar impedir alguma coisa, ou para fazê-lo mudar de opinião.
Acredito que precisarei aprender a viver com você e essa... Bom, vou poupá-
lo de minhas crenças. Estou aqui como uma oferta de paz dentro de nossa
família. As coisas já estão difíceis o suficiente para que haja mais um
rompimento de risco. Estou aqui pelo meu marido e pelo filho que ele tanto
considera.
- E o que a leva a crer que eu aceitaria essa oferta, considerando todos esses
anos?
- Também estou aqui por isso – levantou uma das mãos na altura do rosto, e
agora era possível identificar o objeto. Era uma fina corrente dourada, um
crucifixo muito simples preso a ela.
- Mas... Mas...
- Sim. Era de Ellis, sua mãe. Eu estive no hospital, pouco antes de sua morte.
Ela me pediu que fosse até lá, e me pediu que estivesse aqui hoje e lhe
entregasse isso. – seu olhar parecia longe, perdido em lembranças – No dia do
seu casamento, Ellis queria que você presenteasse sua esposa com o colar que
um dia fora dela. Confesso que foi uma surpresa para mim, mas como poderia
eu negar esse pedido? Ela sempre quis que as coisas fossem diferentes para
você. Que se casasse, que tivesse uma família de verdade. Me pergunto o que
ela diria se o visse hoje.
- Provavelmente teria orgulho – as lágrimas escapavam, e ele não podia evitar
– Amaria Louis, porque ele me faz feliz.
- Provavelmente – respondeu, um pouco a contragosto – Peço então que me
deixe levá-lo até o altar. Por ela.
Damian só pôde concordar com um aceno de cabeça, enquanto sentia a textura
gelada do colar em suas mãos. Lembrava-se dele, de como a mãe nunca o
tirava do pescoço. Procurou-o em todos os lugares após sua morte, mas
imaginou que tivesse sido perdido durante o acidente. Todos esses anos
pensara que Angel lhe aceitava e tentava ser justa com ele apenas porque era
filho de seu marido. Naquele momento, descobrira que havia muito mais. Não
era necessária nenhuma outra palavra, nada para tentar convencê-lo. Chamou
Angelina, pedindo desculpas e dizendo que entrasse com Rodrigo. A garota
não pareceu ofendida, sussurrando que sempre soube que seria uma dama de
honra fantástica e sorrindo para a mãe, antes de sumir para dentro da igreja.
Acendendo a vela de Angel com um isqueiro que Patrick havia colocado em
seu bolso, ele lhe ofereceu um braço, e juntos subiram os longos degraus de
pedra até as imensas portas de madeira.

O lugar não estava nada menos do que fantástico. Um tapete cor de creme
cobria o corredor central, e somente a luz de centenas de velas redondas e
brancas espalhadas aleatoriamente pelos bancos de madeira iluminava o
caminho. Havia galhos repletos de flores de cerejeira espalhados por todos os
cantos, e imensos vasos de vidro cheios das mesmas flores. Somente os dois
primeiros bancos estavam ocupados, alguns amigos de Damian e primos
de Louis, os Dawson e os Kallister, e Angelina e Rodrigo. Havia uma bonita
mesa preparada no fundo, mas não era possível ver o que exatamente a
preenchia. O pastor Philip estava no altar, seu sempre presente terno negro
bem abotoado e um sorriso terno no rosto. Do lado esquerdo, Karina e Patrick
de braços dados, sorrindo como loucos e completamente emocionados.
Mas para Louis e Damian, não existia nada além um do outro. Louis esperava,
certa confusão no rosto ao ver Angel ali, mas o restante era pura glória.
Faltavam poucos passos, um ou dois, mas suas mãos já pareciam se procurar,
automaticamente. Quando se entrelaçaram, assim que a matriarca dos Styles
beijou a bochecha do enteado e se retirou para junto da filha, o mundo já
poderia explodir. Apertando a mão do noivo como se ele fosse o tesouro mais
precioso do universo, Damian sussurrou um ‘oi’ divertido para o garoto, que
respondeu do mesmo modo. Olhos nos olhos, estariam mentindo se dissessem
que prestaram atenção total as palavras do pastor, que eram bonitas, falando
sobre amor e sua várias formas, sobre o que os levara ali naquela noite, o que
os aguardaria a partir de agora. Prestavam mais atenção nos detalhes dos
rostos, na felicidade estampada nas pupilas, nos lábios erguidos em belos
sorrisos. Era isso que importava. Nada mais.
A hora dos votos chegara, e Damian anunciou, em sua voz tremulamente
animada:
- Nós decidimos pular essa parte, para o bem de todos e felicidade geral da
nação. – deu de ombros – Nenhum dos dois é bom com palavras sem cair no
choro, e preferimos manter nossa dignidade intacta até o final do casamento.
Muito obrigada.
- Decidiram isso no par ou ímpar, também? – Patrick perguntou, arrancando
ainda mais risos dos convidados.
- Me lembre de nunca mais convidar Patrick para nada, sim? – Louis
resmungou, mas a vontade de rir denunciava a falta de seriedade da situação.
- Bom, já que é assim, só nos resta passar para o próximo passo – o pastor
pigarreou, retomando a atenção – Louis Kallister, você aceita Damian O’Hare,
como seu legítimo esposo?
- Aceito.
- Damian O’Hare, você aceita Louis Kallister como seu legítimo esposo?
- Sem dúvidas – ao reparar na ruga que se formara entre as sobrancelhas do
noivo, emendou – Aceito, é claro.
Patrick apressou-se para a frente, procurando a caixinha com as alianças nos
bolsos internos do blazer, o que fez Louis bufar em descrença. Que tipo de
padrinho haviam arrumado? Mas logo os dois anéis dourados estavam à vista,
sendo encaixados delicadamente nos dedos certos de cada um.
- Então, pelo poder investido em mim, abençoo está união. Que Deus ilumine
seus caminhos, proteja sua casa e sua família, e que o amor que aqui hoje se
celebra, perdure para toda a eternidade. Não há maior dádiva do que essa,
maior oportunidade de mudar e de lembrar o verdadeiro propósito da vida.
Diante das dificuldades, dos percalços e das tentações que terão que enfrentar,
não se esqueçam de como se sentiram hoje, de quem aqui esteve com vocês, e
de porque estão nessa estrada. Não há nada mais belo e sagrado que o amor.
Não há nada mais puro que a confiança. Hoje, eu coloco a minha fé,
inabalável, em vocês – gesticulando rapidamente, acrescentou – Bom, vocês
podem se beijar.
E então bocas se chocaram, um beijo doce e tão apaixonado que arrancou
palmas da pequena plateia. Sussurravam juras de amor entre os lábios,
afundando-se um no outro até que alguém, provavelmente Patrick, lhes gritou
que arrumassem um quarto. Só fizeram rir, milhares de outros pequenos beijos
singelos, até que fosse necessária sua atenção junto ao juiz de paz. Assinaram
os documentos, junto a seus padrinhos, e então uma onda de abraços e
cumprimentos começou.
Não havia luxo ou uma grande festa, era possível contar os convidados nos
dedos, e Rick Dawson os fotografava, discretamente. Mas ainda assim, era o
dia mais incrível que poderiam imaginar. Contanto que tivessem um ao outro
e seus amigos, nada mais era necessário. A felicidade estava em coisas
simples, como flores de cerejeira e velas brancas, sorrisos nos lábios e apertos
de mãos.
As pessoas agora se espalhavam pelos bancos, mordendo docinhos adoráveis
vindos da mesa no fundo da igreja, e conversando baixinho. Damian tinha um
braço em volta da cintura do marido, enquanto ria de alguma discussão boba
entre Patrick e Angelina, Karina entretida por histórias do professor Rodrigo.
Mas os olhos de Louis estavam ao longe, um brilho que ele já conhecia
refletido atrás das portas de madeira. Não fazia mais de cinco minutos desde
que notara, e de início realmente achou que fosse uma ilusão, um truque
barato de sua mente estuporada de alegria. Mas não era. Sussurrou uma
desculpa qualquer para o pequeno grupo, tranquilizando o marido, para então
poder checar se suas suspeitas se confirmariam. Torcia de todas as maneiras
possíveis para que estivesse errado, ao menos daquela vez. Mas Louis não era
o tipo de pessoa que se enganava facilmente. Esgueirando-se para trás de uma
das portas, onde alguns bancos extras ficavam estocados. Como temia, ele
estava bem ali.
Harry Styles o observava com os opacos olhos verdes, sentando
desajeitadamente em uma cadeira simples de madeira. Os cabelos antes
sempre milimetricamente penteados agora eram desgrenhados e sem vida.
Usava jeans simples e uma camiseta branca lisa, tênis de corrida negros em
seus pés. Nunca parecera tão abatido e pálido, como se toda a vida antes
presente estivesse sendo roubada dele. Puxando uma cadeira, Louis sentou-se
ao seu lado, tentando não olhar para seu rosto.
- Mais alguém sabe que você está aqui?
- Não. Eu esperava que você também não soubesse – havia cansaço em sua
voz, mas a antiga arrogância continuava presente.
- Faz muito tempo? – Ignorou o comentário, tentando não se irritar.
- Desde um pouco antes de começarem a decorar a igreja.
O silêncio predominou, enquanto os dois assistiam as pessoas se
movimentarem na nave central, Patrick se agachando ao lado de Karina e
segurando suas mãos. Eles conversavam baixinho, rindo ocasionalmente e
parecendo adoráveis aos olhos dos outros. Pela expressão no rosto de Harry,
aquilo não o agradava nem um pouco.
- Aquilo – gesticulou para os dois – significa alguma coisa?
- Mesmo que eu soubesse, e eu não sei, não seria eu que te contaria –
suspirou, brincando com a nova aliança em sua mão – Está aqui por causa
dela, não é?
- Por você e seu marido é que não seria, Kallister – resmungou, e havia
negatividade no jeito que pronunciou a palavra – Ah, me perdoe. É O’Hare
agora, não? Pronto para viver embaixo da ponte?
- Escute-me bem, Styles. Só vim até aqui para me certificar de que você não
chegue perto de Damian. Ele não precisa de um peso morto como você
atrapalhando nosso casamento. - Já disse que não dou a mínima para vocês
dois. Boa sorte na nova vidinha patética. Aliás, não posso esquecer-me de
comentar que admito, fui muito burro ao não notar antes que vocês dois eram
menininhas. Estava na cara – a onda de raiva que percorreuLouis foi
inacreditável – Só estou aqui porque sabia que ela estaria. Essa merda –
cutucou a tornozeleira negra na perna esquerda com a ponta dos tênis – Não
me permite sair do quarteirão. Só queria vê-la, tentar falar com ela mais
tarde... Karina está linda. – sussurrou, mais para si do que para o outro.
- Está doente se ainda acredita que ela vai lhe perdoar depois de tudo. –
levantou-se, precisando sair dali antes que a tentação de acertar a cabeça do
garoto com uma cadeira fosse grande demais.
- É o que dizem. Oxigênio, água e esperança não se negam a ninguém. Nem
aos loucos, nem aos doentes, nem aos criminosos.
- Você se encaixa perfeitamente nas três categorias. Mas pode ir
embora, Styles. Se depender de mim, Karina nem vai saber que esteve aqui. –
afastou-se, sem ouvir a última frase do filho do pastor.
- Se você diz...
Damian não fez perguntas ao seu retorno. Somente o abraçou com força, antes
de colocar um delicado colar com um pendente crucifixo em seu pescoço.
Disse que era de sua mãe, e que ela gostaria que ele usasse. Não poderia se
sentir mais honrado. Deixou que seu marido o envolvesse, o contato com sua
pele quente e macia e seu perfume delicioso acalmando cada célula nervosa de
seu corpo. Beijaram-se, uma, duas, três vezes, antes que Patrick e Karina os
abraçassem para uma foto. Uma foto de sua pequena nova família, todos
felizes e sorridentes enquanto Rick disparava o flash. Uma memória perfeita
de um dia quase perfeito.
Não fossem as palmas vindas do final do corredor.
Harry aplaudiu a cena, seu melhor sorriso irônico no rosto, antes de deixar a
igreja com passos firmes, levando consigo o sorriso e a tranquilidade
de Karina Dawson.

* Lucky Ones é uma música maravilhosa da diva suprema, Lana Del Rey. O
trecho que abre esse capítulo também faz parte da canção. A frase original
seria “boy and girl meet by the great design”, mas devido as circunstâncias do
capítulo, resolvi mudar um pouquinho

Capítulo 25 – Bad Romance

A madrugada era absolutamente fria. Sempre fora, mas naquela ocasião


singular as correntes de ar gélido pareciam ainda mais cortantes do que o
habitual. Principalmente no meio da estrada, sentado no concreto duro das
ruas do centro da cidade. Os pacatos cidadãos já dormiam, embalados por
sonhos doces e perspectivas para o futuro, e ambos ele já não mais possuía, ao
menos por enquanto. A única luz que embalava sua companhia soturna era a
de um poste velho, um tanto enegrecido pelo tempo, e que em determinados
segundos não contados falhava consideravelmente. Era um cenário um tanto
triste, um tanto desolador para quem espiasse de fora, intruso num carnaval de
emoções que não lhes pertencia. Para o protagonista de toda aquela confusão,
aquele era o cenário perfeito. Os paralelos de um começo e de um caminho
bipartido que se abriria no exato momento em que ela surgisse. Como
terminaria o conto de fadas há muito tempo já transformadas em bruxas,
porém, ele não sabia. Esperava que estivesse prestes a descobrir.
E Harry esperava, preso numa bolha de pensamentos desastrosos e raros
períodos de alucinação de felicidade, contando segundo por segundo e
alimentando uma esperança que talvez devesse ser deixada morrendo de fome.
Mas o velho e barato truque que era sua intuição lhe dizia para permanecer ali,
em seus jeans surrados e camiseta branca, o uniforme de uma prisão particular
demais para ser verdade. Se recusava a olhar para o tornozelo direito, o
aparelho que carregava ali era um lembrete claro do que precisaria enfrentar,
assim como a grande casa branca de luzes apagadas no lado oeste. Dois
símbolos de sua total ruína.
Então ouviu os passos, tão leves como plumas, o farfalhar de algumas folhas
secas perdidas na rua, uma respiração descompassada pelo nervosismo e um
perfume de frutas vermelhas do qual ele havia decorado nota por nota.
Não se moveu, medindo bem as palavras.Aquele Harry impulsivo e cheio de
discursos egoístas e maliciosos ainda existia em algum lugar de sua mente,
mas sabia que se utilizasse daqueles métodos a perderia antes de ter a chance
de tê-la de volta. Quem diria, não é mesmo? Seu coração estúpido lhe pregara
uma peça que nem ele próprio conseguira evitar.
- Eu estou aqui, - Karina chamou, a voz firme e sem emoção, tão diferente das
várias tonalidades que geralmente alcançava, dos sentimentos tão expressos
em suas palavras.
- Eu sei. Você vem e vai, como os dias de inverno. Mas você volta. – deu de
ombros, levantando-se demoradamente para então finalizar – Você sempre
vem.
- Não posso tirar sua razão. Idiota e influenciável como sou, sempre acabo
fazendo o que os outros querem. Como tentar te dar uma chance de dizer algo,
mesmo que não vá adiantar merda nenhuma. – agora sim, havia raiva. Mas
raiva era melhor do que nada. O amor era feito também de raiva – O problema
do amor, Harry, é que por mais fodidos que estejamos no final, ainda tentamos
estender o máximo a dor, só para lembrar que um dia, um dia houve alguma
coisa boa. Aqui não existe mais nada. Agora, como eu posso ser tão burra? Eu
continuo me enganando, cometendo as mesmas merdas de erros, todos os dias.
Eu estou sinceramente cansada disso. Essa é a última vez.

Pra ser sincero, eu não espero de você


Mais do que educação
Beijos sem paixão, crimes sem castigo< br> Apertos de mãos, apenas bons
amigos

- Você volta porque me ama, e porque sabe que eu amo você – continuou,
como se todo o seu monólogo não valesse nada, não mudasse tudo que ele
havia planejado – Porque sempre fomos imperfeitamente perfeitos um pro
outro, e sempre vamos ser. Você voltou porque sabe disso, e porque assim
como eu desaprendeu a viver longe – E então virou-se, finalmente lhe
encarando, os olhos verdes faiscando. Ela sempre fora bela. Agora, em seu
roupão de seda cor de creme, tão atípico, se fantasiava de um tipo de anjo.
Que pensamento horrível para se ter, algo vindo de um estúpido apaixonado. –
Você veio pra tentar de novo.
- Não. – balançou a cabeça, os braços cruzados na linha do peito, encarando-o
com força – Vim porque Angelina me implorou para que eu te ouvisse. Eu
não sei o que disse a ela, , mas foi mais uma de suas belas mentiras. Ela
parecia realmente convencida de que você não é um filho da puta desgraçado.
Vim para por um ponto final nessa história. Tenho certeza que perdi meu
tempo, meu sono e a companhia valiosa que estava comigo.
- Já colocou Manson na sua cama? – riu sem humor algum, e agora era ele
mergulhado em ódio – É claro que colocou. Toda aquela ceninha de
casalzinho no maldito casamento esta tarde, foi isso, não foi? Ele finalmente
conseguiu te levar pra cama. Meus parabéns, Dawson, parece que alguma
coisa você aprendeu comigo. Te conheci uma virgem reprimida e agora você
se transformou numa vadia de primeira. Eu chamo isso de progresso.
- O que faço ou deixo de fazer não é da sua conta. E não esqueça de que você
fez pior, Harry. Você dormiu comigo por um negócio. Me tratou como uma
prostituta – Karina se magoava fácil, e agora ele podia ver o brilho das
lágrimas se formando nos cantos de seus grandes olhos. Estava errando, por
ciúmes bobos e sem fundamentos, ciúmes de alguém que nunca poderia ser
para ela o que era o próprio Harry.
- Você sabe que não foi assim. Por favor, não use essa jogada- tentando
contornar a situação, emendou rapidamente – E sim, o que você faz ou deixa
de fazer, é da minha conta. Tudo relacionado a você me diz respeito, tem a ver
comigo, é do meu interesse.
- Por que, exatamente?

Pra ser sincero, não espero que você minta


Não se sinta capaz de enganar
Quem não engana a si mesmo

- Porque eu quero te beijar até que a lembrança dele saia da sua pele, por
completo, porque não consigo aguentar a ideia de que ele a tocou desse jeito.
– aproximou-se, segurando uma de suas mãos frias e macias, colando a testa
na dela de modo que aquela conexão de olhares tão deles, tão inquebrável, se
formasse, mais uma vez - Quero te colocar nos meus braços, e nunca mais
deixar você sair. Quero te olhar por horas e horas e horas, do amanhecer ao
entardecer. Quero poder te amar e não ser punido por isso. Quero meu nome
nos teus lábios e no teu coração. Quero você, Karina, e quero pra sempre.
O silêncio dela doía, a antecipação de uma resposta que poderia ser o início ou
o fim, um conjunto de palavras que mudaria ambas as vidas, para
sempre. Harry podia sentir sua respiração descompassada, seu perfume
característico, a confusão em seu rosto. Os lábios entreabertos lhe
convidavam, doces e plenos, mas o garoto sabia que não poderia beijá-los, ao
menos não naquele momento. Quando ela respondeu, porém, ele desejou que
o tivesse feito.
- Querer não é poder, Harry. Você já devia saber disso há muito, muito
tempo.
- Por que, se você quer a mesma coisa?
- Porque eu não consigo perdoar você! – as palavras saíram altas, e
explodiram aqueles últimos sentimentos restantes, toda a dor e toda a mágoa
que ela estava guardando. As lágrimas começaram a correr por seu rosto,
livres e pesadas, manchando a pele clara demais – Eu mal consigo olhar pra
você sem me lembrar de tudo que você me fez, o modo como me machucou.
Você não consegue entender isso? A minha vida está aos pedaços espalhados
por todos os cantos, e você sabia disso! – a irritação dela era verdadeira, o
modo como seu lábio superior tremia a cada nova descarga de energia, a cada
acusação totalmente bem fundada – Harry, não é o caso de uma pequena
mentira, de uma traição boba qualquer. É a minha vida inteira. Tudo não
passou de uma mentira, e você me tirou o direito de saber disso. Não consegue
entender a gravidade disso? O como eu me sinto sem saber pra onde ir?
- Então me deixe te ajudar a encontrar um caminho. Vamos fazer isso juntos,
porra. Qual é a dificuldade?
- Você ainda tem coragem de me fazer essa pergunta? Qual a
dificuldade? Como eu posso construir um castelo sobre areia
movediça, Harry? Como eu posso confiar numa pessoa que tudo que fez foi
mentir pra mim? – afastou-se, arfando – Nunca parou pra pensar que eu
poderia ter morrido? Greenfield ia me matar, de um jeito ou de outro. Você
estava ajudando um assassino. O meu assassino.
- Mas as coisas mudaram, Karina. Eu fiz o que pude pra te salvar. Eu me
apaixonei por você. De verdade. Mas que merda, você não entende a
proporção disso – o garoto gesticulava, doente por fazê-la compreender suas
palavras – Karina, eu nunca amei ninguém na vida. Não até encontrar você.
- Amor não é suficiente, Harry – ela suspirou, tentando sem sucesso limpar
suas muitas lágrimas – E como pode saber que o que sente é isso mesmo?
- Sabendo. Nunca estive tão certo de algo na vida. Eu não sei exatamente
como descrever isso. – deu de ombros, passando as mãos pelos cabelos - Se
for o Inferno, então que haja fogo. Que as chamas me devorem. Mas se for o
Paraíso, me afogo nele de bom grado. Você é meu Paraíso.
Ela riu, sem qualquer vestígio de humor em seu rosto, abraçando-se para
afastar o frio que o vento proporcionava. Jogando para cima dele aqueles
grandes e pesados olhos azuis, as palavras seguintes esmagaram o coração
de Harry, lentamente.
- Talvez você precise de um tempo no Purgatório.
- Não. Só preciso de você. É tudo que eu preciso. – aproximou-se lentamente,
sem tentar um novo contato físico, pela primeira vez o medo de ser rechaçado
tomando conta de Harry – Não precisamos achar uma solução agora, meu
bem. Nós precisamos dar tempo ao tempo. Dizem que o tempo cura tudo.

Pra ser sincero, não espero que você me perdoe


Por ter perdido a calma
Por ter vendido a alma ao diabo
- Não há tempo pra nós dois. Não mais – Karina acariciou seu rosto com a
ponta dos dedos, observando quase encantada as pálpebras do garoto se
fechando em puro deleite – Eu estou indo embora com Louis e Damian
amanhã de manhã, logo após o culto.
- Não. – afastou-se repentinamente, encarando-a em puro choque – Não, você
não pode. Como você pode Karina? Você me ama! Você não pode ir.
- Mas eu preciso, Harry. Eu preciso ir embora – o choro ameaçava voltar,
poderoso – É a única chance pra mim. A única chance talvez, para nós dois. A
distância pode me ajudar a superar. Eu te amo, sim. Pra que negar, ou pra
quem? Pra mim mesma? Já sei disso há muito, muito tempo. – ele continuava
a sussurrar negações, visivelmente transtornado, ajoelhando-se em frente dela
– Eu vou te amar até o final dos tempos, talvez depois disso. Mas eu não
consigo ficar aqui agora. Não posso.
- Eu amo você, porra. Não vá... – Harry murmurava, abraçando com força a
cintura dela, encostando a cabeça em sua barriga – Ou me leve junto. Vamos
começar tudo, de novo, num lugar novo.
- Como? Transgredindo sua prisão domiciliar? Piorando a nossa situação,
tendo que conviver num terreno de pura mágoa e ressentimento. Nós vamos
nos matar desse jeito. – acariciou seus cabelos, as lágrimas quentes e raras do
garoto manchando seu roupão – Eu tenho que ir, Harry. Isso é um adeus.
- Não. – levantou-se, enxugando as lágrimas que se recusava a admitir – Isso é
um breve até logo. Porque a nossa história não termina aqui, e definitivamente
não termina assim.
- Talvez...
- Não, Karina. Isso eu garanto pra você. Nós pertencemos um ao outro. A
ninguém mais. – evitou o olhar dela, o pensamento ao longe, perdido – Vá. Vá
embora logo. Mas não se engane. Esse não é o ponto final.
Karina nada disse, apenas o observou uma última vez, seu perfil iluminado
pela fraca luz da rua, bonito, perigoso e melancólico, em sua mistura de
sempre. Sentiria falta dele, de seu toque e de seu perfume, de tudo que havia
de mágico e monstruoso em seu relacionamento. Mas ao mesmo tempo o
ressentia, o odiava como nunca antes. Não saberia conviver com ambos os
sentimentos. Dando um meio giro, sussurrou, tensa:
- Mas por favor, não venha atrás de mim. Me deixe partir sozinha.
A resposta falhou, nem mesmo um olhar ele foi capaz de dirigir a ela.
Simplesmente virou-se, andando em direção a sua nova prisão, recusando-se a
enxergar o momento em que ela lhe daria as costas. Preferia sair de cena por
conta própria, afogado em seu velho orgulho predominante. Mas como
garantira a Karina, aquele não era o fim. Era só um novo capítulo de uma
antiga história.
Nós dois temos os mesmos defeitos
Sabemos tudo a nosso respeito
Somos suspeitos de um crime perfeito
Mas crimes perfeitos não deixam suspeitos

Era manhã de domingo, o calor do sol aquecendo a cidade gradualmente,


convidando seus moradores a saírem de casa e aproveitarem o último dia de
descanso antes de outra semana corrida de compromissos. Mas para alguns,
domingo significava um novo encontro com a fé, uma renovação de sua dita
religião. A única igreja do lugar se encontrava lotada, mas a maioria dos
presentes não se passava de curiosos, sedentos por fofocas quentes e novos
motivos de chacota para exercer durante a semana. Belos exemplos para
juventude.
Mas Karina estava ali por uma promessa, mesmo que a contragosto. Todos os
momentos que passara durante a última semana só pioraram sua falta de
crença, seu sentimento de estar abandonada no mundo, o sufoco que aquelas
paredes lhe implicavam. Estava ali por Louis e Damian, sentados ao seu lado
de mãos dadas, e pelo pastor Philip. Sim, aquele com certeza fora um dos
pontos mais estranhos de sua semana. O convite que o próprio homem fizera
parecia mais um pedido desesperado do que qualquer outra coisa. Um grito
de socorro em meio ao caos.
Mas os motivos ainda lhe eram totalmente desconhecidos. Talvez Harry tenha
herdado esse fator incomum de seu pai, a falta de clareza nos caminhos que
levavam a determinadas ações. O culto já chegava praticamente ao final, e
até agora nada havia feito o menor sentido para ela. Gostaria que Patrick
estivesse ao seu lado, distraindo-a como sempre fazia. O blefe para Harry na
noite anterior havia sido útil, mas ela realmente sentia sua falta, a falta de
seu apoio e compreensão. Se encontrariam novamente em algumas horas,
num restaurante no meio do caminho para a nova cidade, onde seriam
vizinhos. Ela dividiria um apartamento com seus melhores amigos, e seria
maravilhoso. Ou ao menos era isso que dizia para si.
Voltou a prestar atenção nas últimas palavras do pastor, o conteúdo delas
sendo de extrema importância e finalmente revelando o porquê de sua
presença ali naquele dia:
- Sei que todos aqui esperam uma declaração oficial minha sobre os
acontecimentos dos últimos dias, aqueles que envolvem a minha família –
Philip começou, dobrando as mangas do terno negro enquanto caminhava em
frente aos seus fiéis – Os rumores são muitos, e compreendo que estejam
ávidos por maiores informações. Infelizmente, se esse é o motivo que lhes traz
aqui nesse domingo, sinto lhes decepcionar – parado atrás de seu púlpito,
observou a multidão um tanto estarrecida - Tenho coisas mais importantes
para dizer hoje. Primeiro, quero dizer que sim, meus filhos passaram por
períodos tortuosos. Os meus três filhos. Mas isso não os torna menos meus.
Eu quero que levante a mão, nesse exato instante, quem nunca cometeu
sequer um erro na vida. Não importa se foi pequeno ou grande. Só levantem a
mão – Com a falta de ações da plateia, ele continuou – Sim, alguns erros são
difíceis e duros de se perdoar ou consertar, mas para tudo há uma solução.
Deus perdoa todos os nossos pecados, se mostrarmos real arrependimento
por eles. Quem somos nós então, para condenarmos uns aos outros?
Ninguém. Não somos donos da verdade, nem da razão. Só Deus tem esse
direito, só Deus nos encontrará no Juízo Final – respirando fundo, continuou
– É por isso que hoje, perante toda essa comunidade, venho dizer que meus
filhos tem eternamente o meu amor. Eles não precisam do meu perdão. São
meus filhos, e serão por toda eternidade. Mas eles precisam saber que tem o
meu amor incondicional. Eles, e aqueles a quem eles escolheram amar. Amo
minha menina Angelina, assim como estou aprendendo a amar Rodrigo
– Karina podia ver os dois sorrindo de mãos dadas na primeira fileira,
realmente apaixonados e cheios de vida – Amo profundamente a meu filho
Damian, e tenho imenso orgulho de proclamá-lo meu, assim como a seu
marido, Louis – Havia lágrimas nos olhos do garoto quando Louis beijou
uma de suas bochechas, e isso era raro vindo de Damian. Família lhe afetava
daquele modo destruidor, mas ao mesmo tempo, reparador – E apesar de
tudo, de todas as circunstâncias e de tudo que vocês possam dizer, não há
amor maior no universo do que eu sinto por meu Harry – agora era o pastor
que chorava, olhando diretamente para o filho de cabeça baixa na primeira
fila – Talvez maior mesmo, só o que ele sente por sua Karina Dawson. -
Aquilo pegou não só a ela, mas a todos os presentes de surpresa. Harry olhou
para o pai, um tanto boquiaberto, mas talvez agradecido. Não passava de
verdade - É só isso que eu tenho a dizer. Obrigada pela presença de todos, e
um bom e abençoado dia. Que Deus os acompanhe.
As pessoas começaram a sair em bando, mas Karina permanecia ali, presa
numa bolha de confusão. Sentiu um aperto em seu ombro direito, Louis
sorrindo para ela e lhe dizendo que os dois a esperariam no carro. Era hora
de ir. Começar uma nova vida, de um novo jeito. Longe de seus pais, longe
daquela cidade, longe de Harry. Continuou alguns minutos ali, respirando
fundo, tentando compreender se teria forças para levantar-se. Quando
descobriu que tinha, seguiu a multidão para fora, os raios de sol cegando-a
por um instante. O mar de gente impedia que ela caminhasse com rapidez até
onde os O’Hare lhe esperavam, o burburinho alto lhe deixando tonta.
Chegava a tropeçar aqui e ali, as palavras do pastor ainda confundindo sua
mente.
Até que os gritos começaram.
Eram simplesmente uma palavra, repetida inúmeras vezes, por uma voz que
ela conhecia bem demais.
Karina. Karina. Karina.

Um dia desses, num desses encontros casuais


Talvez a gente se encontre
Talvez a gente encontre a explicação
E então as pessoas pareciam se afastar, dando passagem a um Harry que
corria ao seu encontro, a camiseta azul colada ao corpo junto com os mesmos
jeans surrados do dia anterior.
E então não havia mais nada.
Só os braços dele ao redor de sua cintura, fortes o suficiente para que seus
corpos se chocassem de um jeito verdadeiramente agradável. Depois só havia
sua pele macia em contato com a sua, seus olhos muito verdes a encarando
com muitos sentimentos, do amor e ternura ao desejo e volúpia irreparáveis,
o perfume amadeirado tão conhecido. E então só havia sua boca exigente
chocando-se na dela, exigindo tudo que podia num beijo que significava
muitas coisas. O desespero dele por ela quando as línguas se encontraram,
saudosas, seu amor profundo a cada novo movimento, as mãos que
passeavam por seus longos cabelos. Era tudo bem ali, tudo que um dia
compartilharam resumido em um não tão simples beijo, cheio de loucura e de
verdade. Pela primeira vez, ali havia verdade. Verdade quando ele movia sua
boca com vontade contra a dela, verdade quando ela respondia sem
hesitação, verdade nos murmúrios da gente ao seu redor, chocada e deliciada
com a cena que eram capazes de presenciar.
Quando o ar lhes faltou pela primeira vez, Harry não a deixou ir, muito
menos falar. Colou a testa na dela, roubando-lhe milhares de pequenos
beijos, sentindo seu cheiro, aproveitando-a como se fosse a última vez. Talvez
realmente fosse quando ele soprou as palavras seguintes.

Um dia desses, num desses encontros casuais


Talvez eu diga, minha amiga

- Você vai, mas não é o final. Nós vamos nos encontrar de novo, e vamos
começar de novo, e terminar juntos. Não me interessa o que aconteça nesse
meio tempo. Esse beijo é um até logo, uma despedida breve – beijou-a
novamente, reforçando seu ponto – Você me entendeu bem? Eu amo
você, Karina. Até o final dos tempos, talvez depois disso – repetiu as palavras
dela na noite anterior – Mas para eu te deixar ir, eu preciso que você me jure
uma coisa. Somente uma. – ela acenou com a cabeça, dando a entender que
estava lhe escutando – Por favor, não se envolva com Manson. Não fique com
ele, por favor. Espere por mim. Por favor, espere por mim. É meu último
pedido.
Aquilo complicava tudo, toda sua situação com Patrick, tudo que enfrentaria
dali para a frente. Mas por que parecia tão certo aos seus ouvidos?
Porque por mais errado que fosse, era exatamente o que queria.
A nenhum outro. Somente a ele, no futuro.
Quando ele lhe beijou uma última vez, havia lágrimas em ambos os rostos.
- Agora vá, e não olhe para trás. Antes que eu mude de ideia – sussurrou, as
mãos firmes em seu rosto, limpando uma última lágrima teimosa que
escorria.
E ela o fez. Afastou-se dele, caminhando agora com facilidade entre a
multidão perplexa. Sem nunca olhar para trás.

Pra ser sincero


Prazer em vê-la
Até mais

Caminhou os metros restantes,tentando não pensar na dor e na tristeza, no


sofrimento da ação que haviam acabado de praticar. Choraria por isso mais
tarde, deitada em sua nova cama, abraçada a um travesseiro que agora lhe
serviria de companheiro fiel. Na outra quadra, um grupo igualmente grande
de pessoas caminhava, parecendo igualmente chocadas, mas por outro
motivo.
Ela logo entendeu porquê.
Damian beijava com vontade um Louis ligeiramente corado, encostado num
antigo carro vermelho que ela sabia pertencer ao filho do meio do pastor da
cidade. Os conservadores cidadãos tinham seus olhos arregalados,
apontando e cochichando enquanto os dois pareciam não se incomodar nem
um pouco com a atenção, intensificando aquele beijo tão bonito a cada
segundo que passava. Ao menos algo para lhe alegrar, lhe fazer rir por um
instante.
- Vocês dois – gritou, tentando esconder as lágrimas e o que o choro havia
feito para sua voz – Arrumem um quarto!
- Deixe de ser falsa moralista, Dawson – Damian riu, depositando um último
beijo no pescoço do amado – Só estamos exemplificando nosso amor para
alguns queridos amigos. – olhando-a mais atentamente, indagou – Hey, você
está bem?
- Estou. Não reparem em mim. Estamos prontos para ir?
- Tudo nos conformes. Malas no lugar, gasolina no tanque, motorista a
postos. E Karina, eu realmente espero que você saiba dirigir. É um caminho
muito longo para uma pessoa só no volante.
- Mas eu também dirijo – Louis protestou, abrindo a porta do carona quando
os outros fizeram menção em entrar no carro.
- Eu sei – seu marido respondeu, aprontando-se em frente ao volante – O
problema é que, como seu marido e cunhado de Karina, pelo seu lado, já
aviso, eu preciso me preocupar com a segurança de todos no nosso carro. E
principalmente, com a segurança do meu precioso automóvel. Então
você, Louis O’Hare, amor da minha vida – roubou um selinho demorado dele,
espiando Karina pelo retrovisor – fica longe da direção. Tudo bem por
você, Ká?
- Tudo maravilhoso. Quando precisar, me avise.
- Vamos nos encontrar com Patrick no Malboro Hotel – Louis comentou,
procurando por uma estação no antigo rádio do painel – e depois, direto para
a nova vida. Todos preparados?
Karina e Damian concordam, e quando a partida foi dada, não havia mais
volta. Era o novo começo que tanto quis, mas de um jeito doloroso demais
para ser real. Mesmo que houvesse dito que não olharia para trás, não
resistiu em espiar a janela traseira.
Não deveria ter feito, porém.
Porque a última vista que teve de sua antiga cidade, fora o seu amor
abandonado no meio da estrada.

Nove horas e quarenta e sete minutos. Era isso que o relógio de pulso
indicava, piscando em vermelho no seu braço direito. Muitas horas desde a
sua partida, muito tempo para a dor que ele carregava. Prometera a si
mesmo na noite anterior que uma vez na vida faria as coisas do jeito dela, que
jogaria o jogo pelas regras reais. Mas aquilo era absurdamente mais difícil
do que imaginava.
Harry estava sentando na varanda de sua casa, observando a grande
construção de pedras que era a igreja ao seu lado. Aquilo lhe dava nojo e
raiva, aquele prédio que significava tantas coisas erradas e partidas,
quebradas pelo tempo e destruídas pela alma. O ódio que havia desenvolvido
por aquela construção específica havia se tornado doentio.
Assim como a doentia necessidade e saudade que já sofria de sua Karina.
Porque ele sempre seria o equivocado Harry , com suas ações impensadas e
seus erros caros demais.
Ela precisaria entender porque ele não conseguiria manter sua promessa.
Quando a insanidade tomava conta de seu ser, não havia o que conseguisse
refrear.
Foi essa mesma insanidade que o fez levantar dali e ir até a garagem que seu
pai mantinha em casa, procurando em uma das prateleiras por um galão de
gasolina cheio que sabia que deveria estar por lá. Foi essa insanidade que o
fez pular a grade que separava casa de igreja, e que ao mesmo tempo não
separava exatamente nada. Foi essa insanidade que o fez molhar cada
centímetro de pedra possível com o líquido que continha naquele recipiente.
Depois de feito, acendeu um cigarro, levando aos lábios uma, duas, três
vezes.
Antes de deixá-lo cair, nada acidentalmente.
Em seguida, só haviam as chamas que lambiam o local, a fumaça que se
desprendia e se espalhava pelas árvores, um império que começava a ruir aos
poucos.
Mas não havia mais nenhum Harry para observar a cena.
A Harley Davidson vermelha continuava em seu esconderijo entre as árvores,
e lá ele se reuniu a sua pequena paixão material.
Juntos, eles desbravaram a cidade, mesmo que sua tornozeleira apitasse
enlouquecidamente. Juntos, eles foram atrás do que era dele.
Porque Harry simplesmente não estava pronto para dizer adeus.
E Harry simplesmente precisava daquilo que queria.
Harry seria sempre Harry .

Fim.

Epílogo

Nós dois temos os mesmos defeitos


Sabemos tudo a nosso respeito
Somos suspeitos de um crime perfeito
Mas crimes perfeitos não deixam suspeitos

Segunda-feira sempre foi um dia odiado pela maioria da população. Mas


naquele final de tarde, seis de janeiro, era o melhor dia da história para
aquele homem. Ele havia acabado de sair de um banho quente e vestia roupas
que a ele mesmo pertenciam. Há três anos ele não experimentava daquela
sensação. Da sensação de liberdade ao sair de sua cela apertada e suja. Da
sensação de poder respirar ar puro fora daquele presídio.
Era o primeiro dia de liberdade de Harry . Três anos de prisão pela reunião
de seus crimes com o incêndio na igreja e a violação da prisão domiciliar
haviam sido suficientes para mudar muito no homem. Aos vinte e um anos, já
vivera demais. Era hora de se acalmar.
Quando deu o primeiro passo para fora do presídio e encontrou a irmã
caçula e o pai lhe esperando com sorrisos nos rostos, respirou aliviado. Era
de verdade. O mundo estava ao alcance de suas mãos novamente.
Mas em três anos, somente um lugar era o habitat natural de seus
pensamentos.
Aquilo deveria ser deixado para mais tarde.
No momento em que pisou em sua antiga casa, que costumava lhe dar
arrepios, foi a nostalgia que o afogou. Os momentos que passou, os anos que
fora agridocemente triste e feliz ali dentro. Abraçou a mãe chorosa com
força, dispensando o almoço e a comemoração que sua família havia
preparado.
Tudo que queria agora era o lado de fora, o vento no rosto e o farfalhar das
árvores.
Apoiou-se na varanda, um cigarro nos lábios, um vício irrecuperável, e as
mãos nos bolsos do casaco cinza de moletom que usava. Parecia mais velho e
cansado, mas ainda era o mesmo Harry que arrancava suspiros de sempre,
agora a barba rala começando a aparecer em seu rosto. Não se importava
muito com aquilo.
Seis de janeiro. Aquele dia estava sempre em seu calendário.
Esperou, temendo alimentar uma esperança que deveria ser deixada de lado.
A uma altura da tarde a mãe apareceu novamente, forçando-o a comer ao
menos um pedaço de seu bolo favorito que ela havia preparado com carinho.
Aceitou mais por necessidade do que por vontade.
Eram por volta de seis horas da tarde quando ele ouviu o barulho do motor.
Uma Harley Davidson vermelha cortava a rua, veloz e barulhenta como
sempre fora. Estacionou em frente a uma casa de dois andares no lado
oposto, atraindo sua atenção. Era uma mulher que a dirigia, coberta de
roupas negras dos pés a cabeça.
Quando tirou o capacete, um mar de longos cabelos pretos surgiu, o perfil de
um sorriso que ele já havia decorado, e que nunca seria capaz de esquecer.
Então Harry sorriu também.
Talvez fosse a hora de dar uma última volta em sua velha Harley Davidson.

*Começamos com Lady Gaga, terminamos assim. É dela a canção título, Bad
Romance, um Romance Ruim
*E a misteriosa música que é PERFEITA para Holy Fool, é Pra Ser Sincero,
dos Engenheiros do Hawaii

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