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2. Em entrevista a André Brasil e Marco Antônio Gonçalves, Ginsburg afirma: “Temos a ilusão
de que a câmera é transparente, disponível para qualquer um, portando sempre a mesma
função ideológica e ontológica. Do mesmo modo que um pesquisador que avalia a TV dos
aborígenes australianos imaginando que a câmera estivesse embebida, ela mesma, na on-
tologia do Ocidente e que, por isso, produziria efeitos universais. Isso não é absolutamente
verdadeiro, uma vez que cada grupo vai usar a câmera e as imagens de um modo específico,
vinculado a sua experiência cultural” (GINSBURG, 2018).
se trata de maneira alguma de um retorno conclusivo que assegure a
chegada a um ponto originário ao qual se pretende regressar, mas cer-
tamente de um gesto produtivo (próximo ao gesto de “descalçar-se”, na
imagem criada por Célia Xakriabá e que serve de epígrafe a este capí-
tulo), que não coincide com alguma expectativa prévia sobre o senti-
do desse regresso, que cada uma delas experimenta ao seu modo. Para
discutir essa produção, irei abordar três filmes realizados em tempos e
espaços distintos: Navajo talking picture (Arlene Bowman, 1986), Ayani
por Ayani (Ayani Huni Kuin, 2010) e Para Reté (Para Yxapy, 2015).
3. Atualmente, os Kagwahiva ocupam uma área de pouco mais de 1,8 milhões de hectares no
centro de Rondônia. A população indígena hoje contatada envolve 250 pessoas, sendo que
entre eles há grupos Uru-Eu-Wau-Wau, Juma e Amondowa. Os Uru-Eu-Wau-Wau, especifi-
camente, estão distribuídos em sete localidades, espalhadas dentro da terra indígena, haven-
do fortes indícios de grupos ainda hoje isolados na área (FRANÇA, 2012, p. 33).
Cowell de realizar um segundo filme toca nessa questão: reparar algo
que não fora percebido no passado. O dado novo e fundamental diz
respeito à Maria, uma mulher Uru-Eu-Wau-Wau, e sua experiência na
situação do contato.
Quando do primeiro filme, Cowell pretende localizar os
Uru-Eu-Wau-Wau, então acusados de matar dois filhos e sequestrar um
terceiro, chamado Fábio Prestes, do casal de seringueiros Chico e Rai-
munda. Ainda nesse primeiro momento, ele filma, em entrevista, o se-
ringueiro Alfredo a fim de entender o conflito que se estabelecia entre
seringueiros e indígenas na região. Alfredo assume ter sequestrado duas
mulheres Uru-Eu-Wau-Wau: mãe e filha. A filha, que na época tinha seis 178
anos de idade (a mesma idade de Fábio Prestes quando fora sequestrado),
ele fez dela sua esposa, Maria. A mãe de Maria morrera logo em seguida
de pneumonia. O cineasta não se dera conta de que Maria era justamen-
te a irmã de Tarí, o líder Uru-Eu-Wau-Wau responsável pelo sequestro e
morte do filho menor de Chico Prestes, fato que será retomado a partir
do segundo filme.
O segundo filme de Cowell está, portanto, centrado na pos-
sibilidade de evidenciar a contraparte por detrás do ocorrido ao menino
Fábio Prestes e sua família: o sofrimento que acometeu anteriormente a
família de Maria após o sequestro dela e o sequestro e morte de sua mãe,
o que torna possível entender o ato de Tarí, como uma reação. Além
de chamar a atenção para a invisibilidade das experiências das mulhe-
res antes, durante e após o contato, esse fato indica ainda como suas
experiências afetam outras mulheres, os homens, os filmes e as próprias
sociedades de um modo geral.
Entre as informações que acessamos por meio da entrevista
ao seringueiro Alfredo, usadas no primeiro filme e retomadas no segun-
do, estão a descrição do modo como Maria e sua mãe foram tratadas.
No início, ambas eram mantidas acorrentadas para que não fugissem.
Alfredo conta que logo que Maria foi sequestrada, foi colocado nela um
vestido, emprestado de outra mulher, chamada Dona Laura. Alfredo re-
lembra que a primeira reação de Maria foi rasgar o vestido.
A iniciativa de “trajar” os povos indígenas está relaciona-
da com uma concepção “ultrajante”, de acordo com Célia Xakriabá
(2018). Vestir com roupa é impor uma aparência e uma determinada
representação, que não leva em conta os corpos e tampouco a relação
desses corpos com os territórios. Ou seja, sem o acesso aos corpos,
as mulheres perdem também seus territórios e suas histórias, sendo,
com isso, totalmente expropriadas. De modo geral, para as mulhe-
res indígenas o corpo é parte do território, assim como as narrativas.
Essa perspectiva difere daquela não-indígena capitalista em que um
sujeito detém o território como propriedade. 4 O corpo pintado com
jenipapo, além de fazer parte do território, está trajado com história.
Isso é o que Célia chama de trajes-história (2018), reconhecendo seu
179 pertencimento à terra.
Desse ponto de vista, agir sobre os corpos é, portanto, tam-
bém agir sobre o território, já que os corpos estão ligados ao território.
No conhecido filme Ao redor do Brasil5 (Major Thomaz Reis, 1932), cujo
objetivo era mostrar a política de “integração” empreendida pela expe-
dição de Marechal Rondon no Brasil, os povos indígenas são vestidos
para se evidenciar a ação realizada sobre eles e elas (o que é igualmente
uma ação efetuada sobre o território) e valorizar os agentes dessa ação
(os militares).
No início da sequência que demonstra os procedimentos do
contato, foi incluída uma cartela: “Logo que viram os expedicionários os
índios conservaram-se ocultos em suas palhoças, as mulheres quase todas
O caminho do retorno: o cinema feito pelas cineastas ameríndias
receavam aparecer”.
9. De acordo com Federici, “a bruxa era o sujeito social mais perigoso, uma vez que (na
visão dos inquisidores) era menos controlável; era ela que podia dar dor ou prazer, curar
ou machucar, misturar os elementos e acorrentar a vontade dos homens; podia até mesmo
causar dano com seu olhar, um maloc-chio (mau-olhado) que, supostamente, podia matar”
(FEDERICI, 2017, p. 355).
10. Ainda de acordo com Federici, “a batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvol-
vimento do capitalismo, até os dias de hoje. [...] Ao tentar controlar a natureza, a organização
capitalista do trabalho devia rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia,
assim como a possibilidade de se estabelecer uma relação privilegiada com os elementos na-
turais e a crença na existência de poderes a que somente alguns indivíduos tinham acesso,
não sendo, portanto, facilmente generalizáveis e exploráveis. A magia constituía também um
obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimen-
to do princípio da responsabilidade individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de
rejeição do trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de base ao poder.
O mundo devia ser ‘desencantado’ para poder ser dominado” (FEDERICI, 2017, p. 312-313).
Acredito que, em conjunto, os dois movimentos propostos
nesse capítulo permitem identificar a passagem que as mulheres ame-
ríndias efetuam de objeto do olhar para sujeito do olhar por meio do
cinema. Nesse sentido, parece claro que, ao ato de retirar o corpo do ter-
ritório e vesti-lo (ou mesmo violentá-lo), haja diversos tipos de reações,
dentre as quais há tentativas de associar novamente o corpo ao território
e o direcionamento do olhar para as práticas e saberes femininos, algo
que os filmes analisados propõem em diferentes termos.
Procurei mostrar que em todos os três filmes está em jogo um
gesto de retorno das cineastas a seus territórios de origem. É preciso lem-
189 brar que não se trata de tentar estabelecer uma aproximação ao território
distante ou ao outro, como fez o cinema ao se aproximar dos povos in-
dígenas, mas tentativas de reaprender a restabelecer uma ligação com o
território e com o conhecimento tradicional das mulheres por meio do
cinema, algo que se torna imprescindível nos dias de hoje para a sobrevi-
vência das mulheres indígenas, de seus povos e territórios.
No entanto, encontrar o caminho do retorno é inevitavel-
mente uma experiência singular e requer a produção de um novo conhe-
cimento. No caso de Arlene Bowman, transparece a necessidade de lidar
com o fato da avó indicar um caminho (as práticas e narrativas tradicio-
nais) e a neta optar por outro (o cinema), que não se encontram. No caso
de Ayani, está em jogo o encontro entre a neta e a avó que usam da expe-
O caminho do retorno: o cinema feito pelas cineastas ameríndias
Referências Bibliográficas
Filmografia