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1. Mbaraka
Sob a imagem ainda abstrata, ouvimos o canto, seu desenho
circular, ritmado pelo bater dos pés: as vozes das mulheres
cuidam para guardar uma leve defasagem em relação ao coro dos
homens. A abertura do enquadramento permite então perceber o
Mbaraka, que se agita em primeiro plano, diante do fundo noturno.
Agora, são vários os chocalhos, empunhados pelos rezadores
que cantam em uma linha transversal ao quadro. A manhã dá
seus primeiros sinais, nos sugerindo que o grupo atravessou a
noite em vigília. O close no rosto de um rezador leva a intuir um
parlamento que liga visível e invisível.
Martírio (2016), de Vincent Carelli, inicia-se pelas imagens
feitas pelo diretor, ainda em 1988, quando esteve no Mato Grosso
do Sul para acompanhar o Jerokyguasu, a grande reza guarani
-kaiowá: como nos diz a narração, a consulta aos espíritos durante
a noite indicava o rumo das discussões políticas do dia seguinte.
Ao nos mostrar o encontro entre lideranças, o filme não desfaz
nossa ignorância sobre o debate em curso: compartilhamos
com Carelli, que filmou a conversa “às surdas”, o desconheci-
mento da língua ali falada, identificando uma ou outra palavra
em português, entre elas esta: “capitalismo”.
Figura-se assim o sentido de um movimento “invisível para
o país”, que o diretor acompanhou por cerca de 10 anos: a reto-
mada das terras pelos Guarani-Kaiowá, que vinculava, de modo
indissociável, a luta política ao trabalho espiritual, em uma expe-
riência que hoje chamaríamos de cosmopolítica. Em um mesmo
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gesto, os chocalhos dos rezadores movem o cosmos e a história, fazem
atravessar a política pelos sonhos, ligam a vida dos homens àquela dos
espíritos, uma a vibrar na outra.
2. Deserto
Destas cenas iniciais, que nos convidam a acompanhar a mínima variação
dos rostos, dos gestos e dos cantos, a cuidadosa enunciação das palavras,
passamos ao trânsito ininterrupto dos caminhões e ao travelling pelo inter-
minável deserto de soja. Recorrente em Martírio, esse travelling confere
materialidade e, ao mesmo tempo, cifra conceitualmente, o modo como
o imaginário expansionista do agronegócio confina e cerceia a vida dos
índios, empurrando-os para as margens estreitas das rodovias, que eles
atravessam com dificuldade, levando suas crianças pelas mãos.
3. Pedagogia do corte
Não sem espanto, vemos então o discurso da senadora Kátia Abreu,
bandeira do Brasil ao fundo, a nos indagar quando terão paz os fazendeiros.
À cínica retórica ruralista, Martírio responde com um corte, digamos,
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godardiano: sem mais, a cartela com o título do filme vem interromper
o discurso, como a interpelá-lo.
A elipse que o corte abriga dá o tom da pedagogia do filme: quando
o direito à propriedade se impõe ao direito à vida, a paz de uns estará
inelutavelmente ligada ao martírio de outros. Ou, na conhecida fórmula
benjaminiana, não há imagem do progresso que não seja, ao mesmo
tempo, imagem da barbárie.
4. Reencontros
Como nos mostra Clarisse Alvarenga (2016), Corumbiara (2009), filme
anterior de Carelli, se move pela cena equívoca do “contato”, cena que não
cessa de se atualizar e de espalhar vestígios dos desastres que produz.
Lá, o cineasta hesita em filmar, se arrisca, recua (lembremos da sequ-
ência do “índio do buraco”, escondido na cabana de palha, lança aguda,
a recusar o contato com os brancos, entre eles, aquele que empunha a
câmera). São os próprios termos da relação que estão em jogo, em uma
aliança ainda por se construir ou por se recusar.
Agora não há hesitação: trata-se, afinal, de rever companheiros de
luta, buscar velhos aliados, reencontrar inesperadamente aqueles com
quem se conversou há pouco, ou há muitos anos. A história que Martírio
nos conta é feita de desterros, de reencontros e de retomadas.
É assim desde o começo do filme, quando Carelli reencontra os
companheiros Celso e Myriam, que o ajudarão nas conversas com os
Guarani-Kaiowá. O casal, por sua vez, se alegra ao rever seus amigos
José Benites e Emília Romero, sobreviventes das primeiras invasões dos
fazendeiros na região do Jaguapiré. E ainda, mais adiante, somos tocados
pelo reencontro de Carelli com Velho Ambrósio em Pyelito Kue, local de
onde foi expulso em 1950 e para onde manifestava o desejo de regressar
quando exilado na reserva de Sassoró.
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Reencontrar pessoas e imagens, reencontrar pessoas nas imagens,
fazer as pessoas reencontrarem imagens da própria história: esse parece
ser o procedimento do filme, sua tessitura mesma. Vem daí, quem sabe, a
força afetiva e política deste corte seco, que aproxima a imagem de Emília
Romero, já velhinha, quase cega, e seu rosto mais jovem, redescoberto
por Vincent Carelli em meio a um registro que fez em 1994. Entre uma e
outra imagem, um longo arco temporal; a terra, na qual está enterrado
o avô; a história de despejos e de retomadas; a expressão, ao mesmo
tempo firme e afetuosa.
5. “Estar com”
Essa história feita de retornos e reencontros, que dispersa seus traços
pelos arquivos de imagens, é a história de um povo cuja errância não
contradiz a estreita ligação com a terra, com a qual mantém relação
espiritual, ética e estética. Afinal, para os Guarani, a terra é um corpo
que respira; que fala, sussurra, que vê e se adorna. Corpo com o qual
mantêm relação de reciprocidade (diz um ancião que a árvore que dá
bons frutos deve ser plantada por outros, que a deixam para aqueles
que estão por vir).1
Se o discurso dos ruralistas distorce deliberadamente a fórmula do
nomadismo para usá-la contra os índios (ao dizer que eles não se fixam
à terra e, portanto, não podem ser donos dela), o filme faz o trabalho
inverso: retorna aos locais, refaz os percursos, recolhe os testemunhos
e reencontra os traços que religam os sujeitos à terra, em um vínculo
que não se define pela propriedade. Não se trata da circunscrição de um
domínio – o próprio –, mas de estabelecer trocas e traçar relações com
o entorno. Se as linhas da propriedade são limites, aqui os vínculos com
1 Devo essa sugestão a Josely Vianna Baptista. Em busca do tempo dos longos sóis
148 eternos. In: Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
a terra se dão por linhas de errância e de avizinhamento, cujos traçados
não se abstraem da experiência vivida e cuja circunscrição é centrífuga,
excêntrica, atraída pelas relações com o fora.
Não à toa, acompanhando a luta dos Guarani-Kaiowá pela demar-
cação de suas terras, a câmera de Carelli e de Ernesto de Carvalho (que
divide com Tita a co-autoria do filme) precisa desrespeitar os limites da
propriedade, atravessando com eles cercas, fronteiras e espaços insti-
tucionais. Ganha todo sentido aqui a citação de Rithy Panh que encerra
Martírio – “filmar é ‘estar com’, de corpo e alma”: adentrar a terra reto-
mada; esperar o barqueiro sob a chuva fina, atravessar o rio; percorrer
a plantação de soja para descobrir ali a roça rara de Bonifácio.
6. Cenário da resistência
A roça, nos diz a narração, é um verdadeiro “cenário da resistência”
Guarani-Kaiowá. A mandioca e as bananeiras de Bonifácio persistem, brotando
resilientes do solo coberto pela soja. Essa persistência demonstra como,
ao contrário da perspectiva cristã que projeta o paraíso além desta vida, yvy
marã’ey, a terra sem males que move os Guarani em suas buscas, deve nascer
de um trabalho terreno: em meio ao deserto de soja, cultivar a roça é como
cuidar de um corpo que adoece, curando-o para o bem viver (ñande reko).
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7. Narrar, participar
São vários os caminhos que ligariam Martírio à herança de Cabra marcado
para morrer, de Eduardo Coutinho. Como lembra Victor Guimarães em seu
belo texto sobre o filme, ambos, Cabra e Martírio (assim como Serras da
Desordem, de Andrea Tonacci) assumem a responsabilidade de edificar
uma contra-narrativa de ampla envergadura histórica.2 Não teríamos aqui
como tirar consequências dessa comparação, mas um ponto mereceria
atenção: ambos os filmes se apresentam, cada qual a seu modo, como
uma resposta cinematográfica ao impasse que a história nos impõe,
impasse que nos levaria a opor, como inconciliáveis, os gestos de narrar
e participar (para narrar devo me distanciar e “perspectivar” o aconte-
cimento; para participar devo me lançar ao interior do acontecimento,
adiando, portanto, a tarefa de narrá-lo).
Aqui também Vincent Carelli alia-se aos Guarani-Kaiowá para recusar
essa fronteira, demonstrando como narrar pode ser um gesto de engaja-
mento e como se pode passar de um a outro, da narração à intervenção e
desta de volta à narração, tornando indissociáveis esses gestos, sem os
quais a experiência histórica não se constitui enquanto tal. Ao trabalho de
pesquisa nos arquivos da história; ao trabalho de observação e escuta do
testemunho dos Guarani-Kaiowá, e ao trabalho de narração e comentário
às imagens, o diretor acrescenta a tarefa de engajar-se, implicar-se e
intervir no curso dos acontecimentos, recusando-se a respeitar os limites
da cena, para adentrá-la e se posicionar em seu interior.
Na visita às comunidades de M’barakai e de Pyelito Kue, depois de
uma fala desesperançada de Celso, Carelli pede a palavra: “como Celso
tá falando, nós não somos autoridade. Mas, se depender das autoridades,
vocês têm que tomar a frente. E é importante que as imagens, a fala de
vocês cheguem nas cidades”. Ao não se conter e lançar-se em cena, ele
acusa a percepção de que narrar a história é intervir em seu curso e de
que a intervenção no presente faz parte da narração que dele se produzirá.
Ao final do filme, o gesto máximo dessa postura: depois de voltar a
Pyelito Kue, onde o grupo havia ocupado a sede da fazenda, e de teste-
munhar as marcas de bala, resultado dos ataques dos pistoleiros, Carelli
e seus aliados retornam uma vez mais, agora trazendo uma câmera, que
será deixada para a comunidade. Como se ao cinema se exigisse tarefa
mais urgente.
2 GUIMARÃES, Victor. Que fazer? In: Revista Cinética, 28 set. 2016. Disponível em
150 http://revistacinetica.com.br/nova/que-fazer.
8. Encontrar a palavra3
O filme reafirma uma crença na palavra, em sua possibilidade. No momento
em que o martírio do povo Guarani e Kaiowá, parece não encontrar mais
palavras para designá-lo – dada a situação de etnocídio a que estão subme-
tidos os índios – o movimento de Martírio é oposto: acreditar na palavra,
reencontrá-la ali, nos locais em que ela se mistura à luta; tomá-la como
testemunho e como intervenção no presente. Abrindo-se ao testemunho
de uma luta em curso, o filme novamente aproxima, torna intercambiáveis
narrar e intervir.
Por isso mesmo, os testemunhos são sempre situados: ao mesmo
tempo em que observa e escuta com atenção, a câmera está disponível
a percorrer o território com os sujeitos para com eles buscar os vestí-
gios dos massacres, reencontrar os cemitérios onde enterraram seus
ancestrais, acompanhar os cantos que, novamente, religam testemunho
histórico e palavra mítico-poética.
Se as palavras não devem ser dissociadas dos espaços de onde
nascem é por conta de uma mútua implicação: de um lado, situada e
incorporada, a palavra ganha a força da experiência que tem na terra seu
lastro e seu sentido. De outro lado, as falas são capazes de transfigurar
o espaço visível, fenomênico, do filme, fazendo-o atravessar por imagens
que o testemunho ou o canto evocam.
Dessa mútua transfiguração – da palavra pelo espaço e do espaço
pela palavra – parece vir a força do testemunho de Damiana, cacique de
Apyka’i que, há 12 anos, acampa à beira da estrada, enfrentando uma
luta desigual para retornar ao seu tekoha. Ela nos conta sobre a história
do lugar, lembra o despejo que a comunidade sofreu pela usina São
3 Empresto essa ideia ao curso que vem sendo ministrado na UFMG, no âmbito do
Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, denominado Ojuhu
Ñe’e/Mbopaje Ñe’e – Encontrar a Palavra/Encantar a palavra. Em parceria com a
professora Luciana de Oliveira, o curso vem sendo ministrado pelos Guarani-Kaiowá
Daniel Vasquez, Genito Gomes e Valdomiro Flores. 151
Fernando, que destruiu a trator a roça de milho, feijão, arroz e mandioca;
narra o assassinato de sete parentes, entre eles dois filhos. Então, toma
seu mbaraka e canta para o dono da vida, para o dono do céu, o dono
da terra e da água. “O brilho do sol e nossas rezas os brancos nunca
poderão impedir.”
O gesto de Damiana prolonga-se em vários outros, tantos deles por
mulheres que dividem a luta com os companheiros, lideranças assassi-
nadas pelos pistoleiros. Gesto assertivo, de afirmação e de interpelação,
ele também parece ligar o plano histórico ao mítico, como a convocar
para a luta terrena a companhia dos deuses.
9. Medida do insustentável
A testemunha, nos diz Jeanne Marie Gagnebin, não é somente quem viu
com os próprios olhos, mas também “aquele que não vai embora, que
consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas
palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro”.4 A
equipe de Martírio assume a tarefa da testemunha. Aquele que porta a
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Se por um momento, estes rostos nos olham, ainda sem nome,
inscrevendo no filme sua inapreensível singularidade, não demora e eles
serão devolvidos a um conjunto de outros rostos, a uma assembleia, a
uma dança, a uma manifestação, a um ritual de guerra.
11. Tradução
A clareza de propósitos que caracteriza o projeto do filme não desfaz
totalmente o desconhecimento que permanece em relação à experiência
política e cultural ali implicada. A despeito da lúcida generosidade e, para
alguns, do didatismo que marcam Martírio, preservar essa opacidade e
esse não-saber será, no filme, um modo de reafirmar a autonomia e a
autoafirmação dos Guarani-Kaiowá.
O fato é que a profunda elaboração histórica a que o filme se dedica,
valendo-se para isso da retomada dos arquivos, acaba por coincidir com o
diagnóstico feito pelas lideranças, ainda em 1988. É o que percebe Carelli
ao traduzir, muitos anos depois, os registros da reunião que filmara “às
surdas”, apresentada sem tradução no início do filme. Ali, constatamos a
acuidade da análise histórica feita pelas lideranças: na conversa, percebe-
se a consciência que guardam em relação ao Estado, desde quando o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) leva adiante o projeto de progressiva
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“desindianização” e integração dos índios ao sistema de trabalho. “Nós,
índios, estamos envolvidos no capitalismo”, nos diz uma das lideranças,
e continua: “É por isso que eles nos acusam de ser aculturados”. Ao
que o companheiro responde: “eles vão entender que não somos acul-
turados. Nem brancos, nem brasileiros. Resistiremos se estivermos na
nossa terra retomada”. Estamos em um momento posterior ao Projeto
de Emancipação formulado pelo ministro do governo Geisel, Rangel Reis
(que visava com a tal “emancipação” a extinção da condição de indígena e
a liberação das terras ocupadas pelos índios para o mercado), e próximos
ao fortalecimento da luta indígena com emergência de importantes lide-
ranças, entre elas, o Kaiowá Marçal de Souza, brutalmente assassinado.
Ao retomar o registro da conversa das lideranças, agora traduzida,
Martírio produz um inventivo gesto reflexivo. Reitera a busca do filme,
justificando-a: encontrar a palavra dos Kaiowá, reconhecer o que ela
porta de lucidez e o que produz também, em nós, de opacidade.
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Aty Guasu, assembleia guarani-kaiowá em que a palavra é franca e na qual
homens e mulheres, guerreiros, dividem o parlamento com os rezadores.
5 RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996. 157
o noticiário local informa sobre a prisão de uma ex-miss da região por
transporte de armas e munição de grosso calibre. Além de uma pistola,
ela carregava cerca de 5 mil munições e um fuzil. Sobre a imagem escura,
que pouco nos dá a ver, o diálogo entrecortado nos aproxima de uma morte
terrível, um atropelamento em Apyka’i, no acampamento de Damiana. É
o segundo atropelamento em um mês em Apyka’i. No Mato Grosso do
Sul, a frase de Ailton Krenak parece ecoar em cada retomada.
As festas e rodeios, com suas coreografias aeróbicas e a macabra
celebração das Hilux; os leilões dos ruralistas para arrecadar fundos
para as milícias armadas, estes são rituais de morte, iluminados pela
luz do espetáculo.
Como filmar a morte? Antes de tudo e novamente, “filmar com”,
colocar-se ao lado daqueles que sofrem, aprendendo com eles como retirar
do sofrimento a força para permanecer na terra e lutar por ela. Silenciosa
e discretamente, a equipe entra no acampamento para acompanhar o
ritual de luto. Diante do barraco do tio, o grupo canta enquanto agita os
chocalhos: “Ele se foi cantando e rezando pelo horizonte iluminado e
pelas estradas encantadas”. A sobrinha chora a morte do tio, para então
prometer que serão um dia felizes na terra em que ele caiu. Um longo
e belo plano-sequência acompanha o grupo a percorrer uma pequena
trilha, Damiana à frente, dançando, a aparência de uma nhandesy, a
agitar seu mbaraka.
Depois de desviar sua rota por uma estreita estrada de terra para
compartilhar o luto com seus aliados, o filme recobra, em novos moldes,
a investigação histórica de larga amplitude, com a histórica manifestação
indígena em Brasília.
16. Povos
Seja porque subexpostos pela invisibilidade a que são submetidos, seja
porque sobreexpostos pela luz do espetáculo, os povos, nos diz Didi-
Huberman, estão expostos a desaparecer. Como então fazer para que
“se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento?”6
Ao entrelaçar a história de um povo àquela de uma nação, evitando a
todo custo que uma se sobreponha à outra, Martírio nos questiona, então,
sobre o que seria afinal um povo. O filme parece explicitar aquela fratura
que, para Giorgio Agamben, divide a ideia em duas metades dialéticas:
6 DIDI-HUBERMAN, George. Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural. In: A
república por vir: Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Gulbenkian,
158 2011, p. 41.
de um lado, o povo como corpo político integral, unitário; de outro, “o
subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos neces-
sitados e excluídos”.7 Nossa época não seria senão a tentativa impla-
cável de eliminar o povo dos excluídos, de modo a produzir um corpo
uno, indivisível.
O que se deveria então reivindicar ao aparecer político dos povos? A
resposta não deve vir na forma de uma prescrição, ela não está garantida
a priori. Em Martírio, digamos que ela poderia se encontrar nesses inúmeros
planos-sequência, dispersos pelo filme, em que a câmera acompanha o
percurso de um pequeno coletivo em um pedaço de terra: são rostos que
guardam nomes e trajetórias singulares; quando se reúnem, produzem
uma fala coletiva, em que se fala pela boca uns dos outros. Ao filmá-los,
a câmera acompanha um evento que é, a um só tempo, ritual e mani-
festação política. Ela filma uma aliança e também uma distância intrans-
ponível. Ao montar as imagens, procura-se encontrar para elas um sentido
histórico, mas se preserva o modo opaco, disperso, precário de seu aparecer.
18. Cinema II
Vincent Carelli deixa na retomada de Pyelito Kue a pequena câmera
que produz as imagens que encerram o filme. Nelas, vemos a ação dos
pistoleiros que atiram impunemente contra homens, mulheres e crianças,
crivando de balas as paredes dos barracos.
Não teria muito a acrescentar à análise precisa que Amaranta César
fez destas imagens urgentes, que ganham força política ao ter reativado
seu poder de evidência. “A fragilidade do corpo que segura a câmera e a
usa como um escudo precário imprime-se na tensão que faz tremer as
bordas do quadro e na profundidade de campo através da qual se negocia a
distancia segura para o olhar”. Em risco, na busca estreita pela justa distância,
o cinema se faz, resume a autora, como “questão material de justiça”.8
Antes de Martírio ser finalizado, as imagens circularam pela internet,
valendo inclusive como evidência para ações na justiça. Situadas pela
montagem ao final do filme, elas talvez prosseguem o trabalho de Martírio,
que, de modo aberto e inacabado, entrelaça o cinema à ação; a tomada
9 LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. 161