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RESUMO
Este artigo examina possíveis categorias que configuram a narrativa, ou seja,
memória e subjetividade no percurso do outro. Tece questões que abrem novas
perspectivas para se interpretar narrativas no plano da história e do discurso,
registrando seus desafios. Analisa a oralidade e seus desdobramentos na tra-
vessia do relato individual e singularizado, para a engenhosa construção do
coletivo.
Palavras-chave: Narrativa; Subjetividade; Interpretação; Ética.
P
ela narrativa de Ovídio, sabe-se sobre as metamorfoses através das quais
que Aracné, exímia tecelã, esque- certos deuses punem seus rivais; teceu
ceu-se de sua dimensão humana também a si própria e outros deuses em
e, numa atitude de imprudente soberba, sua grandeza. Aracné, por sua vez, de-
pretendeu dever seu talento apenas a si senhou histórias maliciosas das meta-
mesma. Isolou-se, na presunção de que morfoses e das intrigas entre os deuses.
seus trabalhos eram inigualáveis. Per- Sutil malevolência e reprovação perpas-
deu, então, o contato com sua mestra di- savam suas histórias. A despeito da per-
vina Palas Atena, a mãe da tecelagem. feição do trabalho de sua discípula, Ate-
Numa atitude maternal a deusa, disfar- na o rasga e fere sua rival com uma agu-
çada de velha, aconselhou-a a se arrepen- lha. Aracné, insultada, enforca-se. A deu-
*
Este texto foi escrito especialmente para apresentação no VI Encontro Nacional de História Oral
realizado na USP, cidade de São Paulo, de 28 a 31 de maio de 2002.
**
Professor do Departamento de Filosofia e Teologia da PUC Minas e do Instituto Santo Tomás de
Aquino (Ista) – Belo Horizonte.
***
Professora do Departamento de Sociologia e Relações Internacionais da PUC Minas.
tiça e da vingança. Realiza a ligação entre del. A grande dificuldade é que esses
o mundo real (terra) e o mundo da repre- tempos apresentam-se simultaneamen-
sentação do Urano (céu). Da união entre te. Então, o evento, a rápida transforma-
Zeus e Mnemósine nasce a musa Clio, a ção, mesmo a revolução não são ruptu-
história, cujo berço é o cume do poder ter- ras que tudo alteram, pois lentamente é
restre e a configuração do passado. que se modificam hábitos, práticas coti-
A memória no segmento medieval dianas, certos atavismos que resistem a
adquire outro significado, parecendo ter toda novidade.
presente a lembrança de Deus. Por essa
possibilidade Santo Agostinho a consi- É que, se o novo insiste em nascer, e o faz
quase sempre com a estridência do grito,
dera um lugar divino, pois nela moram o velho resiste e não desaparece abrupta-
idéias inatas, ou seja, a memória coleti- mente. Daí que a história seja a lenta pre-
va. A memória faria ponte entre o céu sença de um luto lento e de uma aurora
que, prenunciada, não é tão imediata
(passado) e a terra (presente), o elemen- quanto faz crer sua luz, que parece tudo
to de ligação entre o homem e Deus (Gi- querer inaugurar. (Paula, 2001, p. 7)
ron, 2000, p. 25).
Já o homem do renascimento privile- Donde a pergunta: o que é ter uma
gia Géa. O espaço terrestre é mais valio- história? Seria possível pensar que ter
so do que as lembranças. Os pensadores uma história significa passar por ações
modernos ocupam-se da descoberta de transformadoras. Transformações que
novos mundos e novos conhecimentos. podem ter o registro do documento es-
Locke nega a existência de idéias inatas, crito ou estriar marcas que tangenciam a
o homem conheceria o mundo de forma oralidade. Também o sujeito vive em um
indutiva, preenchendo o vazio de sua contexto; de suas relações e tensões emer-
mente com as sensações colhidas pelos ge sua história. É quando se faz apelo à
sentidos. À memória caberia um papel memória, “princípio de unidade e de
de lembrança do entendimento das coi- continuidade, ponte que assegura o vín-
sas e do mundo. Nela não habitariam culo entre o sujeito e suas experiências”
nem deusas nem deuses. Ora, se não exis- (Mitre, 2001, p. 2). A memória, da qual
tem idéias inatas, Deus não pode mo-rar se alimentam as narrativas. Assim, “os
na memória humana. Eis que Locke, no relatos vão devolver a história através de
século XVII, interdita a possibilidade de suas palavras, conferindo-lhe um passa-
Deus habitar a mente humana desde do, trançando identidades” (Thom-pson,
sempre. Decorre, então, a dessacraliza- 1992, p. 337).
ção da memória. A tentativa é procurar, como lembra
A concepção histórica dos gregos e Roland Barthes (Samain, 2000, p. 2), “a
suas derivações permanecem ao longo estrutura que liga” relatos pessoais do
dos séculos. Hoje, consideramos a histó- vivido e rememorado a uma interpreta-
ria como o permanente entrelaçar-se de ção consistente, capaz de compreender,
continuidades e rupturas, a coexistência desvendar e enunciar nos moldes exigi-
dos tempos lentos e rápidos, dirá Brau- dos pela ciência. O constante é a possibi-
Assim também com as histórias narra- o mundo exibido por qualquer narrati-
das, pois, como se afirmou antes, “a ex- va é sempre temporal. O tempo torna-se
periência de um sujeito preciso não es- tempo humano na medida em que está
capa das concretudes socioculturais que articulado de modo narrativo. Trata-se de
tensamente o realizam como pessoa” um tempo que alcança concretude atra-
(Kofes, 2001, p. 11, 13). Mas, mesmo vés da realização subjetiva.
quando o registro muda para os relatos Reforça Ricoeur (1983, p. 103) a rele-
orais, não se pode ignorar a existência vância do enredo como uma malha cu-
de indícios materializados em documen- jos fios mediadores interligam os acon-
tos escritos, fotos, objetos, ícones etc., a tecimentos e o conteúdo da história. Eis
que Kofes (2001, p. 21) denomina “ins- porque o autor, ao considerar a narrati-
crições objetivas”. Há que se chamar a va uma forma de linguagem, considera-
atenção para o que faz a diferença entre a “um equivalente simbólico da ação e
“inscrições objetivas” e relatos orais. do tempo humano correlato” (Nunes,
Aquelas representam temporalidades 1988, p. 77). Portanto,
cristalizadas, marcas que guardam mais
o tempo, o qual na oralidade é fluidez, contando histórias, os homens articulam
sua experiência do tempo, orientam-se no
deriva, errância. Há uma dispersão, mes- caos da modalidade de desenvolvimen-
mo pelas distintas temporalidades dos to, demarcando com intrigas e desenla-
próprios sujeitos que narram. Na fron- ces o curso muito complicado das ações
reais dos homens. Desse modo, o homem
teira entre a objetividade e a subjetivi- narrador torna inteligível para si mesmo
dade, a escuta é sobre o que pode ser a inconstância das coisas humanas, que
construído, tecido através de indagações tantos sábios, pertencendo a diversas cul-
turas, opuseram à ordem imutável dos
sobre uma pessoa. Eis porque é possível astros. (Ricoeur, 1978, p. 16)
trabalhar em vários tempos simultâne-
os. A recorrência de figurações permite Em síntese, o enredo dimensiona duas
criar imaginários, demarcando categori- direções: a ordenação cronológica, epi-
as de referência e de interpretação. sódica dos acontecimentos, e a configu-
Construir itinerários orais lembra ração, fundadora do discurso, que reme-
uma pergunta de Paul Ricoeur (apud Ko- te à forma de expressão.
fes, 2001, p. 123): “Como se pode falar Outras texturas, segundo Suely Kofes,
de história de uma vida se esta não esti- mostram certa dificuldade em encontrar
vesse reunida, e como estaria reunida se- correspondência entre uma vida co-mo
não em forma narrativa?”. é vivida (o que atualmente acontece),
Avança que a narração faz parte da uma vida como experiência (imagens,
vida, antes de exilar da vida na escrita. sentimentos, emoções, pensamentos e
Narrar (historiar) e contar são intercam- significações conhecidas pelas pessoas
biáveis, diz Ricoeur. Daí a importância que as vivenciaram) e uma vida co-mo
dada ao enredo, ao tecer do enredo, na contada (narrativa, influenciada pelas
configuração narrativa desse autor. O convenções culturais do contar, pela au-
que armaria o enredo seria o fato de que diência e pelo contexto). Também existe
tórias, o narrador busca um sentido e um neira do outro. Outro que tem um nome,
significado no tempo. O que é contado um culto, um uniforme, uma língua, um
torna-se unidade de referência mítica, em país. Paralelamente à crise, ocorre uma
que é possível retornar numa atempora- ausência de sentido nos discursos que te-
lidade, convocando o pesquisador a es- matizam a individualidade. Talvez insu-
cutar a mesma história com significados ficiência das ciências do psiquismo para
diferentes. Assim, escutar novas subjetividades.
É nesse exílio do outro territorializa-
a entrevista, implicitamente, realça a au-
toridade e a autoconsciência do narrador do que novas demandas no campo das
e pode levantar questões sobre aspectos subjetividades emergentes exigem expe-
da experiência do relator a respeito dos riências de sujeitos que signifiquem seu
quais ele nunca falou ou pensou seria-
mente. (Portelli, 2001, p. 12)
ser no mundo, construindo trajetórias
que atribuam sentido ao real. Lugares de
Diante de narrativas que registram memória, modernidades tardias, pós-
unidades de referência, o pesquisador in- modernidade, alta modernidade fulgu-
terpreta o jogo intrincado da subjetivi- ram em nossos discursos, tentando qua-
dade que estampa um discurso diferen- lificar hiatos criados pela crise de inter-
te daquele apresentado pelo documento pretação de narrativas. Estas são cons-
escrito. Sujeitos narram quem são e como truídas e analisadas pelo discurso aca-
significam seu passado, e a história oral dêmico, sem contudo levar em conta su-
registra o evento como acontecimento. jeitos que constroem significados para
Uma nova relação se constitui devido a sua própria existência.
sujeitos que se fazem escutar, levando É a partir desse lugar da significação
pesquisadores a visualizar uma perspec- que o pesquisador da história oral, ao se
tiva ética capaz de emoldurar o campo deparar com sujeitos, deve assumir uma
da narrativa ao enfrentar os desafios da responsabilidade ética, pois a relação su-
interpretação. jeito/outro necessita ser contemplada em
A relação entre sujeitos demanda uma um processo que envolve individualida-
subjetividade que necessita ter por me- des. Cabe ao pesquisador circunscrever-
diação o reconhecimento do outro como se ao ethos, caracterizado como habi-ta-
pertencente à espécie humana. Sua po- bilidade, termo da arquitetura moderna
sição alcançou importância a partir do que significa lugar em que o sujeito se
momento em que instituições de contro- sente bem. Na perspectiva ética, esse lu-
le, preocupadas com um outro territoria- gar é com o outro. A relação que se esta-
lizado, perceberam-se em crise. Essas belece entre entrevistador e entrevista-
instituições, representadas socialmente do é mediada pelo respeito às diferen-
em lugares definidos como família, reli- ças. Tal respeito convoca-nos a tematizá-
gião, escola e Estado, cuidavam à sua ma- lo na fronteira da alteridade.1 Assim, ao
1
Alteridade: característica do que é outro numa perspectiva ética; reconhecimento do outro como
igual enquanto espécie.
e, mediante a narrativa, mostra-nos uma tos têm seu tempo próprio de ser pes-
subjetividade de ser no mundo, apresen- quisados por outros, que tempo oferece-
tando textos e vivenciando contextos. O mos aos arquivos de documentação oral
lugar do historiador que trabalha com a para que sejam pesquisados por outros?
oralidade é na escuta sensível de onde O trabalho de uma memória oral
emerge a voz de sujeitos portadores de como documento vivo contrapõe-se ao
uma memória, cuja significação tece fios olhar muitas vezes descuidado do pes-
na história de uma época. Nessa direção, quisador. “O trabalho da memória com-
Levinas (1982, p. 87) pretende que “a éti- porta o tempo de lembrar e do esquecer.
ca não aparece como suplemento de uma É com base nesse inventário de recorda-
base existencial prévia, é na ética enten- ções e esquecimentos que sujeitos criam
dida como responsabilidade que se dá o e manipulam representações que serão
próprio nó do subjetivo”. Portanto, não mobilizadas no cotidiano, nas atividades
se trata do narrar por narrar quando al- do pensar e do fazer” (Lopes, 2000, p. 46).
guém deseja dizer sobre si mesmo, mas O estranhamento do documento oral e
do narrar que abre possibilidades de se sua distância abrem para o pesquisador
apreender uma subjetividade que se uma fresta para se compreender o ato de
mostra na pluralidade de seu tempo. As- narrar como um desafio de interpretação.
sim, “a subjetividade não é um para si, A interpretação está ligada à herme-
ela é mais uma vez inicialmente um para nêutica que, segundo Manuel Antônio de
o outro. A responsabilidade como res- Castro (1994), associa-se etimologica-
ponsabilidade por aquilo que não fui eu mente, de um lado, ao verbo herme-
que fiz, ou não me diz respeito, é por neueim, que significa exprimir seu pen-
mim abordada como rosto” (Levinas, samento, fazer conhecer, interpretar, tra-
1982, p. 87). duzir, comunicar-se, e, de outro, a Her-
A relação eu e outro na história oral mes, mensageiro entre os deuses e os
demanda a responsabilidade de se con- mortais, deus dos caminhos da luz e das
ceber projetos comprometidos com o ou- trevas, revelador do conhecimento (mas
tro e com o próprio exercício do fazer his- que nunca diz toda a verdade), ligado à
tórico. No dizer, o ser que diz ali se colo- alquimia e à adivinhação.
ca num lugar de poder e espera uma con- É nesse dizer uma parte da verdade
trapartida na contribuição que ofereceu. que a subjetividade de um narrador de-
Aqui levantam-se indagações. A que e a manda do pesquisador à procura de sig-
quem servem depoimentos orais? Que nificações que lhe permitam compreen-
compromisso ético e moral tem o profis- der, na ordem do discurso, cenas que re-
sional que desejou utilizar tal metodolo- presentem um sujeito e sua autonomia
gia? A que servem depoimentos coleta- no ato de narrar. Nessa direção, não é o
dos em suas vertentes de vida e temáti- relato pelo relato que contenta o pesqui-
ca? Essas indagações se perdem às ve- sador, mas as possíveis inferências que
zes no vazio do tempo da escrita. Se os pode fazer a partir das narrativas.
arquivos que colhem documentos escri- Nesse impasse se deparam as áreas do
como um mecanismo de compor peda- fazer-se sujeito, através das próprias pala-
ços de uma história que, ao ser vivida, vras que vão inaugurando os relatos.
demonstra a possibilidade de trazer da- A segunda, a subjetividade, remete-
dos que se conectam com o imaginário nos a possíveis fundamentos no fazer-se
epocal. Ao que tudo indica, o narrador da narrativa: a ética e a interpretação.
diz de um mundo que construiu com Perspectivas e desafios nos saberes da
cacos que restaram do passado. Esse história oral. Forjam um amálgama de
mundo representa para o ouvinte histó- senhas de intervenção no contexto das
rias que têm seu valor, de forma indivi- histórias narradas. Presentificam o pas-
dual ou coletiva. Isso porque “o mundo sado sobre o fundo intrincado da lem-
contado é o mundo do personagem e é brança e do discurso, instâncias simbó-
contado pelo narrador” (Ricoeur, 1995, licas da relação com o outro. Represen-
p. 147). tam e configuram o conhecimento para
O narrador oferece ao ouvinte even- se apreender o itinerário das jornadas de
tos que correspondem ao “mundo do tex- sujeitos.
to” em sua singularidade, abrindo fres- A subjetividade apresenta um domí-
tas para se perceber que o discurso uní- nio próprio, uma visibilidade que per-
voco é impossível, uma vez que há uma mite percebê-la não como algo dado. Pe-
pluralidade de possibilidades no ato de ter Felbart (2000, p. 12-19) assinala que
se interpretar. Então, ficamos com este se pode concebê-la como “produzida,
desafio: “Interpretar é confrontar a pro- moldada, modulada” e talvez automo-
posição de mundo do texto com as pos- dulável. A construção social e histórica
sibilidades existenciais do intérprete no da subjetividade, segundo o autor, pas-
seu próprio mundo; é lógico que a in-ter- sa pela reflexão de pensadores como Nie-
pretação é sempre um processo relativo, tzsche e Foucault, que mostram seus des-
sujeito às vicissitudes do tempo” (Gross, locamentos da violência à crueldade para
1999, p. 40). inscrever o sujeito em um “mínimo de
Concebemos fios trançados numa du- civilização, de memória, de culpa, de
pla interconexão: senso de promessa e dívida, em suma,
de moral”. Chegou-se a métodos que in-
Memória e subjetividade. Instituem um cluem o apedrejamento, o dilaceramen-
lugar de reflexão. A primeira nos conduz
ao elo identitário que une o presente ao
to, o pisoteamento por cavalos, o empa-
passado. Seduzidos ficamos pelas nascen- lamento etc. Hoje há variantes tecnoló-
tes, aquela escura e misteriosa região gicas mais sutis para moldar o corpo,
“Madres” – de onde ascende à superfície
marcá-lo, demarcá-lo. Daí se pode depre-
da terra tudo que tem figura e vida. (Ho-
landa, 1991, p. 453) ender que a subjetividade, moldagem
humana histórica, torna-se complexa e
Trata-se de uma matriz de excelência mutante, o que abre perspectivas e cria
na interpretação do presente. Lembran- desafios à sua interpretação.
ças valem pelo que dizem e criam. Pro- Não ficamos presos a uma configura-
duzem vínculos identitários e perfilam o ção reassegurada da subjetividade. Em-
ABSTRACT
This article examines possible categories that define narrative, that is, memory
and subjectivity in the other’s trajectory. Questions are posed so as to open
new perspectives for the interpretation of narratives within the scope of histo-
ry and discourse, focusing on the challenges involved. It analyses orality and
its consequences in the flow of individual and singular accounts towards the
ingenious weaving of the collective.
Key words: Narrative; Subjectivity; Interpretation; Ethics.
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