Você está na página 1de 15

Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

A narrativa na trama da subjetividade:


perspectivas e desafios*
Amauri Carlos Ferreira**
Yonne de Souza Grossi***

RESUMO
Este artigo examina possíveis categorias que configuram a narrativa, ou seja,
memória e subjetividade no percurso do outro. Tece questões que abrem novas
perspectivas para se interpretar narrativas no plano da história e do discurso,
registrando seus desafios. Analisa a oralidade e seus desdobramentos na tra-
vessia do relato individual e singularizado, para a engenhosa construção do
coletivo.
Palavras-chave: Narrativa; Subjetividade; Interpretação; Ética.

Contra a fugacidade, a letra. der. Insultada, ouviu um desafio para


Contra a morte, o relato.
que seus trabalhos fossem comparados.
(T. E. Martinez)
Ofendida, Palas Atena aceita o desafio.
Ambas teceram histórias. Atena teceu

P
ela narrativa de Ovídio, sabe-se sobre as metamorfoses através das quais
que Aracné, exímia tecelã, esque- certos deuses punem seus rivais; teceu
ceu-se de sua dimensão humana também a si própria e outros deuses em
e, numa atitude de imprudente soberba, sua grandeza. Aracné, por sua vez, de-
pretendeu dever seu talento apenas a si senhou histórias maliciosas das meta-
mesma. Isolou-se, na presunção de que morfoses e das intrigas entre os deuses.
seus trabalhos eram inigualáveis. Per- Sutil malevolência e reprovação perpas-
deu, então, o contato com sua mestra di- savam suas histórias. A despeito da per-
vina Palas Atena, a mãe da tecelagem. feição do trabalho de sua discípula, Ate-
Numa atitude maternal a deusa, disfar- na o rasga e fere sua rival com uma agu-
çada de velha, aconselhou-a a se arrepen- lha. Aracné, insultada, enforca-se. A deu-

*
Este texto foi escrito especialmente para apresentação no VI Encontro Nacional de História Oral
realizado na USP, cidade de São Paulo, de 28 a 31 de maio de 2002.
**
Professor do Departamento de Filosofia e Teologia da PUC Minas e do Instituto Santo Tomás de
Aquino (Ista) – Belo Horizonte.
***
Professora do Departamento de Sociologia e Relações Internacionais da PUC Minas.

120 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

sa sustenta-a no ar e não a deixa morrer. (Santiago apud Melo Miranda, 1992,


Transforma-a em aranha e lhe diz que, p. 120). Opera-se uma reterritorialização
se quisesse tecer, que tecesse. do vivido, “um esgueirar pelos cantos”,
À semelhança do mito de Aracné, as ecoando e modulando o tecido de uma
histórias narradas amealham vozes re- história com os fios da experiência tran-
vividas e constelações de imagens, enre- çada. A diferença se faz na urdidura que
dando os fios da existência. Mobilizam não contém os fios tecidos pelo outro. Na
um outro universo, emaranhado porta- saga de Aracné, idéias e imagens do pre-
dor de memória e de experiência do vi- sente reatualizam o passado. Não se tra-
vido. Criam disponibilidade para o en- ta, no entanto, do fio de Ariadne, mas da
contro e a presença. Asseguram o víncu- tecelagem de Aracné perfazendo meta-
lo entre o sujeito e suas interações no morfoses, recriando subjetividades de-
mundo. Desenvolvem uma história atra- mandadas pela diferença.
vés de palavras, conferindo-lhe um pas- Para os povos ágrafos, a memória é o
sado, trançando identidades. Tornam repositório de feitos e de fatos. Tendo em
possível a travessia do relato individu- vista a garantia de sua manutenção, de
al, nomeado e singularizado, para a en- forma cuidadosa, era escolhido o “pas-
genhosa construção do coletivo. As his- tor da memória”, encarregado de guar-
tórias narradas abrem a cena para o nós dar o legado que seria entregue a seu su-
coletivo, quando dão lugar em si para um cessor. O guardião da memória articula-
perceber exterior a si mesmo. Há um re- va fatos e sua representação, vivifican-
conhecimento sensível de um pelo ou- do o passado para o grupo. Haja vista
tro. Trata-se de uma recomposição, rela- que apenas para os loucos a memória não
cionando questões que abrem perspecti- existe como história. Os loucos vivem o
vas novas para se interpretar narrativas “sem tempo” de suas alucinações. A lou-
no plano da história e do discurso, regis- cura não tem passado: como “tempo de
trando seus desafios. Analisar a oralida- loucura”, existe “a presentificação cons-
de e seus desdobramentos constitui a tante de seus traumas”. Não há, portan-
matriz de nossos objetivos. Seus patama- to, uma memória coletiva. Essa possibi-
res balizam instâncias performativas: lidade é colhida pela razão quando cir-
memória e subjetividade, no percurso cunscreve o itinerário da memória (Gi-
ético do outro. Sua tópica é a narrativa. ron, 2000, p. 23).
De origem latina, a palavra “memória”
significa “o que lembra”. Todavia, do pon-
LUGARES to de vista histórico, a palavra “memó-
ria” guarda uma deusa: Mnemósine. Se-
Como se tece uma lembrança? Uma gundo Hesíodo, ela é a “rainha das coli-
lembrança que conduz quem lembra aos nas de Eleutera”, ou seja, a terra da li-
construtos de si mesmo? À “confirma- berdade completa. Memória nasce dos
ção de seu mito pessoal em que se reco- amores entre Urano (céu) e Géa (terra),
nhece e deseja ver-se reconhecido”? sendo ao mesmo tempo protetora da jus-

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 121


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

tiça e da vingança. Realiza a ligação entre del. A grande dificuldade é que esses
o mundo real (terra) e o mundo da repre- tempos apresentam-se simultaneamen-
sentação do Urano (céu). Da união entre te. Então, o evento, a rápida transforma-
Zeus e Mnemósine nasce a musa Clio, a ção, mesmo a revolução não são ruptu-
história, cujo berço é o cume do poder ter- ras que tudo alteram, pois lentamente é
restre e a configuração do passado. que se modificam hábitos, práticas coti-
A memória no segmento medieval dianas, certos atavismos que resistem a
adquire outro significado, parecendo ter toda novidade.
presente a lembrança de Deus. Por essa
possibilidade Santo Agostinho a consi- É que, se o novo insiste em nascer, e o faz
quase sempre com a estridência do grito,
dera um lugar divino, pois nela moram o velho resiste e não desaparece abrupta-
idéias inatas, ou seja, a memória coleti- mente. Daí que a história seja a lenta pre-
va. A memória faria ponte entre o céu sença de um luto lento e de uma aurora
que, prenunciada, não é tão imediata
(passado) e a terra (presente), o elemen- quanto faz crer sua luz, que parece tudo
to de ligação entre o homem e Deus (Gi- querer inaugurar. (Paula, 2001, p. 7)
ron, 2000, p. 25).
Já o homem do renascimento privile- Donde a pergunta: o que é ter uma
gia Géa. O espaço terrestre é mais valio- história? Seria possível pensar que ter
so do que as lembranças. Os pensadores uma história significa passar por ações
modernos ocupam-se da descoberta de transformadoras. Transformações que
novos mundos e novos conhecimentos. podem ter o registro do documento es-
Locke nega a existência de idéias inatas, crito ou estriar marcas que tangenciam a
o homem conheceria o mundo de forma oralidade. Também o sujeito vive em um
indutiva, preenchendo o vazio de sua contexto; de suas relações e tensões emer-
mente com as sensações colhidas pelos ge sua história. É quando se faz apelo à
sentidos. À memória caberia um papel memória, “princípio de unidade e de
de lembrança do entendimento das coi- continuidade, ponte que assegura o vín-
sas e do mundo. Nela não habitariam culo entre o sujeito e suas experiências”
nem deusas nem deuses. Ora, se não exis- (Mitre, 2001, p. 2). A memória, da qual
tem idéias inatas, Deus não pode mo-rar se alimentam as narrativas. Assim, “os
na memória humana. Eis que Locke, no relatos vão devolver a história através de
século XVII, interdita a possibilidade de suas palavras, conferindo-lhe um passa-
Deus habitar a mente humana desde do, trançando identidades” (Thom-pson,
sempre. Decorre, então, a dessacraliza- 1992, p. 337).
ção da memória. A tentativa é procurar, como lembra
A concepção histórica dos gregos e Roland Barthes (Samain, 2000, p. 2), “a
suas derivações permanecem ao longo estrutura que liga” relatos pessoais do
dos séculos. Hoje, consideramos a histó- vivido e rememorado a uma interpreta-
ria como o permanente entrelaçar-se de ção consistente, capaz de compreender,
continuidades e rupturas, a coexistência desvendar e enunciar nos moldes exigi-
dos tempos lentos e rápidos, dirá Brau- dos pela ciência. O constante é a possibi-

122 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

lidade de contato com o presente, em que eixos vivenciais, módulos de significa-


o narrador não é apropriado pela po-si- ção se expressam em palavras instaura-
ção ou discurso do entrevistador, mas se doras de sentido.
expressa em sua maneira de existir ao Numa perspectiva paralela, Dayse Pe-
“afirmar todas as suas redes vivenciais, relmutter (1998, p. 854) observa que his-
todas as suas determinações, caminhos toriadores orais, ao produzirem e inter-
e tecidos particulares, todas as suas dife- pretarem seus documentos, deparam-se
renças, corpos, visões, desejos, sonhos...” com a subjetividade. Esta é “mais exten-
(Caldas, 2001, p. 1). O sentido não é re- sa e mundana” que a interdita figura cri-
produzir o acontecido e sim construir o ada pela modernidade, considerada fun-
vivido através de palavras, imagens, dis- dadora e ordenadora de cada indivíduo
cursos. Confere-se ao sujeito o poder de particular. Ademais, como é de domínio
dizer, dizer-se, dizer-nos, o poder de re- público, promover a coesão, a consciên-
sistir em sua singularidade, procurando cia e o sentimento de identidade não con-
apenas uma abertura dialógica. A atitu- templados pela documentação escrita
de não é a de domesticar o sujeito trans- foi, ao longo dos anos 80, cedendo lugar
formando-o em depoimento ou dado, a preocupações de ordem teórico-meto-
“mas dar mais nitidez aos horizontes e dológica: implantar projetos, transcrever
eixos” da narrativa para se compreender depoimentos, relacioná-los, arquivá-los,
como o mundo incita transformações e analisá-los, adaptá-los a práticas museo-
sua ordem dificulta escapes (Caldas, lógicas, pedagógicas, televisivas. Emer-
2001, p. 2-3). gir do ostracismo e do descrédito a que
Caldas designa como “cápsula narra- fora condenada pela história tornou-se
tiva” a uma organização em que homens “um processo lento, turbulento e descon-
e fatos se dispõem de modo fragmentar, certante” (Perelmutter, 1998, p. 856). Não
heterogêneo, sem estrutura preestabele- mais uma visão unitária, retilínea do que
cida, onde temporalidades aparentemen- seria a história oral.
te díspares se superpõem. Não se trata Questões que tangenciam compro-
de uma projeção do sujeito, mas “texto missos hoje começaram a criar raiz. En-
vivo”, momento narrativo com suas tre outras,
“contradições insolúveis”, junção de
“rosto e massa”, integração de “memó- a consciência de que a história oral re-sul-
ria e esquecimento”, conjuração do per- ta de uma relação entre sujeito e sujeito, o
que implica co-autoria e, portanto, a falta
mitido e do negado. Pode-se apreender de controle e autoridade do his-toriador
uma vida vivida e contada como uma sobre a sua fonte; sua concepção como
“escolha narrativa”, ou seja, “o ordena- uma narrativa, como um tipo específico
de construção do discurso e que apresen-
mento, o princípio, meio e fim com seu ta uma trama e um enredo próprio; a con-
encadeamento, expressão de um narrar sideração da memória como matéria e ob-
e não de um ter vivido” (Caldas, 2001, jeto de interesse do historiador; (...) a his-
tória oral como um canal de comunica-
p. 4-5). As singularidades ordenam e or- ção entre o puramente individual e a pai-
denam-se na narrativa em que imagens, sagem cultural; sua definição como estu-

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 123


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

do das representações do presente sobre O próprio corpo não se comporta co-mo


o passado. (Perelmutter, 1988, p. 256-257)
um envólucro amorfo e apático onde se
A subjetividade passará então a ter passa a existência, endossando de forma
seu estatuto que, para Perelmutter, sus- viscosa mensagens elaboradas pela cons-
tenta-se em quatro pilares: o da subjeti- ciência. Na realidade, o corpo possui
vidade enquanto emoção, o da subjeti- multifacetadas vozes, passíveis de se-
vidade enquanto faculdade psicológica rem ou não vazadas, dependendo da
semelhante à imaginação e ao sonho, o fluidez do espaço subjetivo que lhe ser-
da subjetividade enquanto identidade ve de ethos.
individual e mesmo coletiva inconscien- Há texturas da existência quando con-
te. Identidade esta na configuração ins- templamos um corpo desvitalizado, abs-
taurada pelos tempos modernos (Gros- tinente; um corpo sensual, quente, expe-
si, 1997, p. 37). rimentador; um corpo que só se explici-
Também os sólidos, sensíveis e inter- ta a partir de operadores incorporais, co-
disciplinares trabalhos de Alessandro mo pai, empregado, patrão; um corpo
Portelli e Luiza Passerini (Portelli, 1996, que evoca a sua liberdade; um corpo am-
2001; Passerini, 1993) enveredam pelo bíguo. Todos esses e demais enunciados
campo da subjetividade. Não pretendem podem ser inscritos sobre o corpo e per-
desatar os emaranhados conteúdos da cebidos na prática da história oral. Cons-
subjetividade, mas difundir uma espé- tituem preciosidades de que se dispõe
cie de escuta sensível nesse território ala- para interpretar manifestações humanas.
gadiço e escorregadio. Mostram que, Há uma polissemia de sentidos que o do-
muitas vezes, onde pairam esquecimen- cumento oral engendra: expressões faci-
to, omissão, conivência silenciosa, per- ais, gastos, timbre e tonalidade de voz,
cebe-se que a subjetividade não guarda formas de respiração, regularidade das
nada de individual e transcendente, sen- pausas etc.
do fundamentalmente coletiva, fundada Os relatos orais representam paisa-
no embate com o real (Portelli e Passeri- gens onde se esboçam algumas das ques-
ni, apud Perelmutter, 1998, p. 858-859). tões, afetos e produções que estão mobi-
Apreender a subjetividade não signi- lizando certa existência. Expõem o subs-
fica identificar formas através das quais trato de sua cena e as costuras de seu te-
ela se reconhece e é reconhecida. Impli- cido, celebram transformações como
ca apreender o processo de emergência condicionantes da realidade vital. Ades-
das figuras que ela desenha. Constitui a tram a sua polifonia, murmuram a sua
própria trama, uma vez que não possui historicidade.
um antes já dado. Trata-se da composi- George Duby, em sua obra Heloisa,
ção dos diversos universos que habitam Isolda e outras damas do século XII, as-
cada existência em seu estar no mundo. sinala que confia nos escritos pesquisa-
Universos estes sempre sujeitos a novos dos, não pela sua verdade mas pelo que
arranjos, a novas errâncias, dependendo dizem. Importam as imagens que ofere-
da força dos condicionamentos sociais. cem de uma época ou de uma situação.

124 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

Assim também com as histórias narra- o mundo exibido por qualquer narrati-
das, pois, como se afirmou antes, “a ex- va é sempre temporal. O tempo torna-se
periência de um sujeito preciso não es- tempo humano na medida em que está
capa das concretudes socioculturais que articulado de modo narrativo. Trata-se de
tensamente o realizam como pessoa” um tempo que alcança concretude atra-
(Kofes, 2001, p. 11, 13). Mas, mesmo vés da realização subjetiva.
quando o registro muda para os relatos Reforça Ricoeur (1983, p. 103) a rele-
orais, não se pode ignorar a existência vância do enredo como uma malha cu-
de indícios materializados em documen- jos fios mediadores interligam os acon-
tos escritos, fotos, objetos, ícones etc., a tecimentos e o conteúdo da história. Eis
que Kofes (2001, p. 21) denomina “ins- porque o autor, ao considerar a narrati-
crições objetivas”. Há que se chamar a va uma forma de linguagem, considera-
atenção para o que faz a diferença entre a “um equivalente simbólico da ação e
“inscrições objetivas” e relatos orais. do tempo humano correlato” (Nunes,
Aquelas representam temporalidades 1988, p. 77). Portanto,
cristalizadas, marcas que guardam mais
o tempo, o qual na oralidade é fluidez, contando histórias, os homens articulam
sua experiência do tempo, orientam-se no
deriva, errância. Há uma dispersão, mes- caos da modalidade de desenvolvimen-
mo pelas distintas temporalidades dos to, demarcando com intrigas e desenla-
próprios sujeitos que narram. Na fron- ces o curso muito complicado das ações
reais dos homens. Desse modo, o homem
teira entre a objetividade e a subjetivi- narrador torna inteligível para si mesmo
dade, a escuta é sobre o que pode ser a inconstância das coisas humanas, que
construído, tecido através de indagações tantos sábios, pertencendo a diversas cul-
turas, opuseram à ordem imutável dos
sobre uma pessoa. Eis porque é possível astros. (Ricoeur, 1978, p. 16)
trabalhar em vários tempos simultâne-
os. A recorrência de figurações permite Em síntese, o enredo dimensiona duas
criar imaginários, demarcando categori- direções: a ordenação cronológica, epi-
as de referência e de interpretação. sódica dos acontecimentos, e a configu-
Construir itinerários orais lembra ração, fundadora do discurso, que reme-
uma pergunta de Paul Ricoeur (apud Ko- te à forma de expressão.
fes, 2001, p. 123): “Como se pode falar Outras texturas, segundo Suely Kofes,
de história de uma vida se esta não esti- mostram certa dificuldade em encontrar
vesse reunida, e como estaria reunida se- correspondência entre uma vida co-mo
não em forma narrativa?”. é vivida (o que atualmente acontece),
Avança que a narração faz parte da uma vida como experiência (imagens,
vida, antes de exilar da vida na escrita. sentimentos, emoções, pensamentos e
Narrar (historiar) e contar são intercam- significações conhecidas pelas pessoas
biáveis, diz Ricoeur. Daí a importância que as vivenciaram) e uma vida co-mo
dada ao enredo, ao tecer do enredo, na contada (narrativa, influenciada pelas
configuração narrativa desse autor. O convenções culturais do contar, pela au-
que armaria o enredo seria o fato de que diência e pelo contexto). Também existe

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 125


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

a dificuldade de se traçar a diferença cultura que representa. Segundo Manfre-


entre esses distintos planos. do Araújo de Oliveira,
Subjetividade evoca que, para lem-
brar, é preciso não só vivenciar como tor- a autonomia é conceito-chave da moder-
nidade, apesar de ser também categoria
nar conteúdos significativos. Recordar com uma longa história. Em sua origem
também contempla o experimentar do grega, ela significou a meta das cidades-
sujeito, onde novas dobras de subjetivi- estados de poderem determinar suas
questões próprias na independência de
dade triscam o estofo do que antes era poderes estranhos. Na modernidade, na
instituído na tradição contemporânea. época das guerras de religião, ela expri-
Paralelo a certezas esvaídas, “o abismo mia a pretensão de uma autodetermina-
ção religiosa-confessional. Kant a introdu-
escancarado, a quebra irremissível no fio ziu na esfera da reflexão filosófica e atra-
do tempo e no contorno da alma” (Pel- vés disso lhe deu a determinidade de ex-
bart, 2000, p. 7). primir aquilo que o homem tem de mais
próprio e que, assim, o distingue dos de-
mais seres. A autonomia significa, a par-
tir de então, a capacidade e a tarefa que
INTERFACES caracteriza o homem como homem, ou se-
ja, de autodeterminar-se e de autocons-
truir-se em acordo com as regras de sua
A temática sensível da subjetividade própria razão. (Oliveira, 1995, p. 199-120)
no que se refere à narrativa de seres que
pertencem ao mundo e se fazem repre- A partir da segunda metade do sécu-
sentar mediante a tradição oral apresen- lo XX, a questão da subjetividade emer-
ta um desafio da ordem do discurso, ge aliada à de autonomia como forma de
uma vez que “a história oral é uma for- apresentar filandras de vozes ocultas que
ma específica de discurso: história evo- iriam desvelar um outro lado do discur-
ca uma narrativa do passado; o oral in- so. Acontecimentos como emergência da
dica um meio de expressão” (Portelli, subjetividade feminina e grupos social-
2001, p. 10). mente segregados convocam pesquisa-
A construção de um sentido na rela- dores, particularmente historiadores, a
ção entre entrevistado e entrevistador tentar perceber analiticamente discursos
apresenta, como assinalado, uma trama que configuram outro lugar na constru-
construída no território de sujeitos pres- ção da história.
supondo autonomia. A categoria sujei- É nesse contexto de desconfiança no
to, como elemento indissociável da auto- que discursa que a história oral se pre-
nomia moderna, remonta ao século sentifica, dando voz a sujeitos que exer-
XVIII. O século XIX configura aos pou- citam sua autonomia ao escolher dizer o
cos seu estatuto à medida que o projeto não dito. Pesquisadores e indivíduos co-
iluminista é interpelado em suas bases muns marcam suas histórias e de outros,
estruturantes, por pensadores como Nie- tornando a narrativa uma presença viva
tzsche, Marx e Freud, não lidos, entre- de fatos que ocorreram no tempo vivi-
tanto, em sua época. O sujeito, com seu do. Como Aracné, que tece histórias com
caráter autônomo, liga-se ao conceito de fios de seu próprio corpo. Ao contar his-

126 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

tórias, o narrador busca um sentido e um neira do outro. Outro que tem um nome,
significado no tempo. O que é contado um culto, um uniforme, uma língua, um
torna-se unidade de referência mítica, em país. Paralelamente à crise, ocorre uma
que é possível retornar numa atempora- ausência de sentido nos discursos que te-
lidade, convocando o pesquisador a es- matizam a individualidade. Talvez insu-
cutar a mesma história com significados ficiência das ciências do psiquismo para
diferentes. Assim, escutar novas subjetividades.
É nesse exílio do outro territorializa-
a entrevista, implicitamente, realça a au-
toridade e a autoconsciência do narrador do que novas demandas no campo das
e pode levantar questões sobre aspectos subjetividades emergentes exigem expe-
da experiência do relator a respeito dos riências de sujeitos que signifiquem seu
quais ele nunca falou ou pensou seria-
mente. (Portelli, 2001, p. 12)
ser no mundo, construindo trajetórias
que atribuam sentido ao real. Lugares de
Diante de narrativas que registram memória, modernidades tardias, pós-
unidades de referência, o pesquisador in- modernidade, alta modernidade fulgu-
terpreta o jogo intrincado da subjetivi- ram em nossos discursos, tentando qua-
dade que estampa um discurso diferen- lificar hiatos criados pela crise de inter-
te daquele apresentado pelo documento pretação de narrativas. Estas são cons-
escrito. Sujeitos narram quem são e como truídas e analisadas pelo discurso aca-
significam seu passado, e a história oral dêmico, sem contudo levar em conta su-
registra o evento como acontecimento. jeitos que constroem significados para
Uma nova relação se constitui devido a sua própria existência.
sujeitos que se fazem escutar, levando É a partir desse lugar da significação
pesquisadores a visualizar uma perspec- que o pesquisador da história oral, ao se
tiva ética capaz de emoldurar o campo deparar com sujeitos, deve assumir uma
da narrativa ao enfrentar os desafios da responsabilidade ética, pois a relação su-
interpretação. jeito/outro necessita ser contemplada em
A relação entre sujeitos demanda uma um processo que envolve individualida-
subjetividade que necessita ter por me- des. Cabe ao pesquisador circunscrever-
diação o reconhecimento do outro como se ao ethos, caracterizado como habi-ta-
pertencente à espécie humana. Sua po- bilidade, termo da arquitetura moderna
sição alcançou importância a partir do que significa lugar em que o sujeito se
momento em que instituições de contro- sente bem. Na perspectiva ética, esse lu-
le, preocupadas com um outro territoria- gar é com o outro. A relação que se esta-
lizado, perceberam-se em crise. Essas belece entre entrevistador e entrevista-
instituições, representadas socialmente do é mediada pelo respeito às diferen-
em lugares definidos como família, reli- ças. Tal respeito convoca-nos a tematizá-
gião, escola e Estado, cuidavam à sua ma- lo na fronteira da alteridade.1 Assim, ao

1
Alteridade: característica do que é outro numa perspectiva ética; reconhecimento do outro como
igual enquanto espécie.

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 127


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

reconhecer o outro enquanto espécie, ao narrarem suas histórias, os contadores


deixam-se ficar suspensos no tempo, a fim
passamos a estabelecer uma relação en-
de que o passado esquecido possa ser re-
tre iguais que abre a possibilidade do en- descoberto, salvo no presente. A presen-
contro entre sujeitos. tificação do passado, ao possibilitar uma
experiência da temporalidade do mundo,
A autonomia das partes envolvidas no
permite, também, que se descubram as
processo de construção de narrativas é sendas do futuro. (Lopes, 2000, p. 46)
fundamental, pois “o sujeito é autôno-
mo quando, vinculando-se a um grupo Os princípios são apenas unidades de
com suas normas morais, ele as interio- referência que abrem possibilidades na
riza, e ao refletir sobre as conseqüências opção de ouvir sujeitos não escutados,
de suas decisões, escolhe aceitar a nor- que demandam cuidado em nossa ação
ma ou recusá-la” (Ferreira, 2002, p. 33). de entrevistadores. Ferreira (2002, p. 38-
Na relação entrevistador e narrador, 41) assinala quatro princípios na ação éti-
a mediação ética se expressa numa ten- ca do sujeito contemporâneo: o da justi-
tativa de construção de projetos autôno- ça, o da não violência, o da solidarieda-
mos, como assinala Castoriadis: de e o da responsabilidade.
Quanto ao princípio da justiça, o ideal
O projeto de construção da autonomia não de ser justo inspira-se no respeito ao ou-
pode desconhecer as condições e a dimen-
são sócio-histórica que o influencia (mas não tro que se iguala enquanto espécie, mas
o determina) e coloca em um suposto su- se diferencia enquanto singularidade. É
jeito fictício, autárquico em plena confor- através do senso de justiça existente en-
midade com a lei da razão, a tarefa de des-
tre os homens que a lei moral e a ética se
vencilhar-se das contingências impostas
pela realidade. (apud Lopes, 2000, p. 45) objetivam e permitem ao sujeito o exercí-
cio da autonomia, tendo-se a liberdade co-
Se entre sujeitos há uma busca de di- mo possibilidade de escolha, ao se tomar
zer verdades construídas ao longo de decisões. Dessa forma, ser justo é ir livre-
uma experiência, essas verdades conso- mente em busca da melhor decisão, lem-
lidam-se em narrativas que dão forma ao brando que é a ação justa que move os
conteúdo do tempo vivido, tornando sujeitos no mundo. Não existe modelo de
verdadeiro o que é proferido. Para Cas- justiça, nem caminhos a serem percorri-
toriadis, “a verdade própria do sujeito é dos para se estabelecer parâmetros de jus-
sempre a participação em uma verdade tiça. O princípio da justiça é aliado ao da
que o ultrapassa, que se enraíza final- igualdade de condições mínimas de so-
mente na sociedade e na história, mes- brevivência. Isso implica a exigência per-
mo quando o sujeito realiza sua autono- manente de direitos e de oportunidades
mia” (apud Lopes, 2000, p. 46). sociais. Nessa direção, a justiça torna-se
Ao se pensar a relação entre sujeitos, um critério para se avaliar um ato, o que
é necessário refletir sobre alguns princí- nos faz compreender as desigualdades
pios que se tornem pilares para a ação nas relações entre os sujeitos, levando o
ética do entrevistador, ao lidar com a ver- ser humano ao exercício da recusa a qual-
dade do sujeito, uma vez que, quer tipo de violência.

128 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

O princípio da não violência coloca- dentemente de suas escolhas, pois o ser


nos a possibilidade de respeitar e preser- humano é livre na tomada de decisões.
var as diferenças, bem como reconhecer O princípio da solidariedade, ao expres-
o outro como um ser que pertence à espé- sar responsabilidade para com o outro,
cie humana. O outro é compreendido co- sem esperar reciprocidade, faz lembrar
mo o próximo: que “o eu tem sempre uma responsabili-
dade a mais do que todos os outros” (Le-
o próximo pode ser aquele [e é] aquele
que me é desconhecido, me enfrenta face vinas, 1982, p. 91).
a face. É uma relação de parentesco fora O princípio da responsabilidade pos-
de qualquer biologia, contra qualquer ló- sibilita-nos perceber no outro a condição
gica. Não é pelo fato de o próximo ser re-
conhecido como pertencente ao mesmo
humana, como também abre uma possi-
gênero que ele me concerne. É precisa- bilidade de se respeitar as coisas que es-
mente por ser o outro. A comunhão com tão no mundo, pois essas se relacionam
ele começa na minha obrigação para com
com o meu próximo. A responsabilida-
ele. (Ferreira, apud Lopes, 1993, p. 39)
de pela natureza do mundo está em con-
Dessa maneira, o outro convoca-me a ceber dentro dele um outro que difere do
recusar qualquer forma de violência, pois eu e necessita aprender que, além da con-
é o próximo, um ser humano qualquer; vivência, é preciso preservar o que é de
pode ser o passante, o turista, o homem todos. Assim é necessário cultivar o res-
da vida urbana, da vida rural, o mestre, peito pelo outro em sua singularidade,
o aluno, o estranho. O outro é o primeiro para que se concretizem os ideais de so-
que passa e toca meus sentidos, é o pri- brevivência dos seres e a possibilidade
meiro que chega. Por não ser permitido de se viver bem.
violar sua integridade física e psíquica, Assumidos na ação ética do entrevis-
é preciso que se aprenda a não tor-nar o tador, esses princípios abrem possibili-
outro um objeto, uma coisa, nem usar a dades para se conceber o outro como
força como mecanismo de coerção. A éti- “rosto”, na expressão de E. Levinas (1982,
ca, enquanto forma de interação com o p. 77), quando afirma que
outro, abre campo aos sujeitos para a
construção e o exercício da so-lidarieda- o acesso ao rosto é, num primeiro momen-
to ético, quando se vê o nariz, os olhos, a
de ao próximo. testa, um queixo e se podem descrever, é
O princípio da solidariedade não de- que nos voltamos para outrem como para
signa, mas funda-se em um dever. O ges- um objeto. Melhor maneira de encontrar
outrem é nem sequer atentar na cor dos
to de ser solidário liga-se ao respeito à olhos. Quando se observa a cor dos olhos
diferença, pelo qual o ser humano apren- não se está em relação social com outrem.
de a perceber que o outro também per- A relação com o rosto pode, sem dúvida,
ser dominada pela percepção, mas o que
tence ao mundo. O pressuposto da soli-
é especificamente rosto é o que não se re-
dariedade é a interdependência huma- duz a ele.
na. A ação solidária liga-se à construção
do sujeito diante de ideais democráticos É nesse ultrapassar o rosto que o ou-
e de cidadania; envolve o outro, indepen- tro se revela como pertencente à espécie

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 129


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

e, mediante a narrativa, mostra-nos uma tos têm seu tempo próprio de ser pes-
subjetividade de ser no mundo, apresen- quisados por outros, que tempo oferece-
tando textos e vivenciando contextos. O mos aos arquivos de documentação oral
lugar do historiador que trabalha com a para que sejam pesquisados por outros?
oralidade é na escuta sensível de onde O trabalho de uma memória oral
emerge a voz de sujeitos portadores de como documento vivo contrapõe-se ao
uma memória, cuja significação tece fios olhar muitas vezes descuidado do pes-
na história de uma época. Nessa direção, quisador. “O trabalho da memória com-
Levinas (1982, p. 87) pretende que “a éti- porta o tempo de lembrar e do esquecer.
ca não aparece como suplemento de uma É com base nesse inventário de recorda-
base existencial prévia, é na ética enten- ções e esquecimentos que sujeitos criam
dida como responsabilidade que se dá o e manipulam representações que serão
próprio nó do subjetivo”. Portanto, não mobilizadas no cotidiano, nas atividades
se trata do narrar por narrar quando al- do pensar e do fazer” (Lopes, 2000, p. 46).
guém deseja dizer sobre si mesmo, mas O estranhamento do documento oral e
do narrar que abre possibilidades de se sua distância abrem para o pesquisador
apreender uma subjetividade que se uma fresta para se compreender o ato de
mostra na pluralidade de seu tempo. As- narrar como um desafio de interpretação.
sim, “a subjetividade não é um para si, A interpretação está ligada à herme-
ela é mais uma vez inicialmente um para nêutica que, segundo Manuel Antônio de
o outro. A responsabilidade como res- Castro (1994), associa-se etimologica-
ponsabilidade por aquilo que não fui eu mente, de um lado, ao verbo herme-
que fiz, ou não me diz respeito, é por neueim, que significa exprimir seu pen-
mim abordada como rosto” (Levinas, samento, fazer conhecer, interpretar, tra-
1982, p. 87). duzir, comunicar-se, e, de outro, a Her-
A relação eu e outro na história oral mes, mensageiro entre os deuses e os
demanda a responsabilidade de se con- mortais, deus dos caminhos da luz e das
ceber projetos comprometidos com o ou- trevas, revelador do conhecimento (mas
tro e com o próprio exercício do fazer his- que nunca diz toda a verdade), ligado à
tórico. No dizer, o ser que diz ali se colo- alquimia e à adivinhação.
ca num lugar de poder e espera uma con- É nesse dizer uma parte da verdade
trapartida na contribuição que ofereceu. que a subjetividade de um narrador de-
Aqui levantam-se indagações. A que e a manda do pesquisador à procura de sig-
quem servem depoimentos orais? Que nificações que lhe permitam compreen-
compromisso ético e moral tem o profis- der, na ordem do discurso, cenas que re-
sional que desejou utilizar tal metodolo- presentem um sujeito e sua autonomia
gia? A que servem depoimentos coleta- no ato de narrar. Nessa direção, não é o
dos em suas vertentes de vida e temáti- relato pelo relato que contenta o pesqui-
ca? Essas indagações se perdem às ve- sador, mas as possíveis inferências que
zes no vazio do tempo da escrita. Se os pode fazer a partir das narrativas.
arquivos que colhem documentos escri- Nesse impasse se deparam as áreas do

130 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

conhecimento. A história narra aconte- co, a hermenêutica apresenta sua dupla


cimentos e deles infere hipóteses. Mas face. Historicamente, há uma tentativa
quem narra na história oral é o sujeito de se interpretar o texto e se chegar à ver-
autônomo que decidiu narrar. Nesse sen- dade. De Lutero à atualidade, a interpre-
tido, há a demanda de uma escuta sensí- tação é um desafio pelo qual se busca
vel e de uma demarcação que possibili- compreender o que se diz no que se dese-
tem ao pesquisador analisar os relatos ja dizer.
construídos. A interpretação dos docu- No campo da história oral percebe-se
mentos é fundamental, mas trata-se de a ausência de métodos na arte de inter-
um desafio. Se a hermenêutica está liga- pretar seus documentos. Ao pensarmos
da à interpretação do texto, numa tenta- nas subjetividades e na relação com o ou-
tiva de traduzir a relação entre o leitor e tro, consideramos pertinente buscar ele-
o texto, há uma outra relação que, segun- mentos constitutivos à fundamentação
do Castro (1994, p. 18), apresenta proble- no campo da interpretação. Paul Ricoeur
mas de ordem diversa: tem-se apresentado, na tradição contem-
porânea, como um expoente nessa preo-
Um texto, desde que produzido, incorpo- cupação de compreender o dito distan-
ra alguns dados, diante dos quais o leitor
ciando-se em parte da pretensão psica-
tem que tomar posição. Estes dados po-
dem ser internos ou externos e se fazem nalítica e concentrando-se na linguagem.
sentir mais difíceis para compreender, Torna-se “necessária a mediação entre os
sobretudo, quando há um grande distan- seres humanos e também a mediação da
ciamento histórico. Os externos dizem
respeito às referências contextuais ineren- cultura e, portanto, do conhecimento”
tes à época de sua elaboração. Já os inter- (Gross, 1999, p. 35).
nos apontam para variações textuais, de- A linguagem, ao estabelecer a media-
correntes da reprodução pelos copistas e
da conservação do texto e para a mudan- ção entre ouvinte e narrador, demarca
ça de significados de certos vocábulos, para pesquisadores a necessidade de
uma vez que a língua é um todo dinâmi- compreender o ocorrido no tempo das
co. Ocorre ainda que o autor pode apre-
sentar em sua obra uso característico de narrativas. Assim, o “mundo do texto” é
vocabulário. considerado por Ricoeur como referente:

O lado da interpretação que remete a O mundo do texto é uma proposição de


mundo. É um mundo ideal. É justamente
Hermes encerra um conteúdo misterio- em diálogo com o seu contexto específico
so. É quando a mediação com o que ul- que um texto produz o seu próprio mun-
trapassa o texto faz sua morada. Para do. Por mais irreal que seja, trata-se sem-
pre de uma construção a partir do con-
Castro (1994), a hermenêutica, embora
texto da produção textual. (Gross, 1999,
ainda se atenha ao texto, já articula uma p. 40)
realidade transcendente e outra imanen-
te. Parte-se do domínio gramatical para Nessa direção, o narrador expressa
o correto encaminhamento do sentido fi- em sua fala seu contexto ideal, pois traz
gurativo ou alegórico. de volta coisas perdidas no tempo. Ele
Ao trazer seu significado etimológi- as significa e as coloca em movimento

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 131


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

como um mecanismo de compor peda- fazer-se sujeito, através das próprias pala-
ços de uma história que, ao ser vivida, vras que vão inaugurando os relatos.
demonstra a possibilidade de trazer da- A segunda, a subjetividade, remete-
dos que se conectam com o imaginário nos a possíveis fundamentos no fazer-se
epocal. Ao que tudo indica, o narrador da narrativa: a ética e a interpretação.
diz de um mundo que construiu com Perspectivas e desafios nos saberes da
cacos que restaram do passado. Esse história oral. Forjam um amálgama de
mundo representa para o ouvinte histó- senhas de intervenção no contexto das
rias que têm seu valor, de forma indivi- histórias narradas. Presentificam o pas-
dual ou coletiva. Isso porque “o mundo sado sobre o fundo intrincado da lem-
contado é o mundo do personagem e é brança e do discurso, instâncias simbó-
contado pelo narrador” (Ricoeur, 1995, licas da relação com o outro. Represen-
p. 147). tam e configuram o conhecimento para
O narrador oferece ao ouvinte even- se apreender o itinerário das jornadas de
tos que correspondem ao “mundo do tex- sujeitos.
to” em sua singularidade, abrindo fres- A subjetividade apresenta um domí-
tas para se perceber que o discurso uní- nio próprio, uma visibilidade que per-
voco é impossível, uma vez que há uma mite percebê-la não como algo dado. Pe-
pluralidade de possibilidades no ato de ter Felbart (2000, p. 12-19) assinala que
se interpretar. Então, ficamos com este se pode concebê-la como “produzida,
desafio: “Interpretar é confrontar a pro- moldada, modulada” e talvez automo-
posição de mundo do texto com as pos- dulável. A construção social e histórica
sibilidades existenciais do intérprete no da subjetividade, segundo o autor, pas-
seu próprio mundo; é lógico que a in-ter- sa pela reflexão de pensadores como Nie-
pretação é sempre um processo relativo, tzsche e Foucault, que mostram seus des-
sujeito às vicissitudes do tempo” (Gross, locamentos da violência à crueldade para
1999, p. 40). inscrever o sujeito em um “mínimo de
Concebemos fios trançados numa du- civilização, de memória, de culpa, de
pla interconexão: senso de promessa e dívida, em suma,
de moral”. Chegou-se a métodos que in-
Memória e subjetividade. Instituem um cluem o apedrejamento, o dilaceramen-
lugar de reflexão. A primeira nos conduz
ao elo identitário que une o presente ao
to, o pisoteamento por cavalos, o empa-
passado. Seduzidos ficamos pelas nascen- lamento etc. Hoje há variantes tecnoló-
tes, aquela escura e misteriosa região gicas mais sutis para moldar o corpo,
“Madres” – de onde ascende à superfície
marcá-lo, demarcá-lo. Daí se pode depre-
da terra tudo que tem figura e vida. (Ho-
landa, 1991, p. 453) ender que a subjetividade, moldagem
humana histórica, torna-se complexa e
Trata-se de uma matriz de excelência mutante, o que abre perspectivas e cria
na interpretação do presente. Lembran- desafios à sua interpretação.
ças valem pelo que dizem e criam. Pro- Não ficamos presos a uma configura-
duzem vínculos identitários e perfilam o ção reassegurada da subjetividade. Em-

132 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002


A NARRATIVA NA TRAMA DA SUBJETIVIDADE: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

bora mutilada, esgarçada, devassada pe- comunidade de significações mediada


la representação exacerbada do indivi- pela ética. Essa perspectiva nos insere em
dualismo contemporâneo e seus avata- novas dobras da narrativa e na comple-
res, pode-se pensar em novos agencia- xidade de sua interpretação. Talvez seja
mentos, novos sentidos, novos poderes conveniente retomar Ricoeur quando co-
capazes de afetá-la. Que novas forças se- bre o suposto entre o que é vivido e a vi-
riam essas? Sabemos que nossos territó- da como experiência e a construção iden-
rios trançam fronteiras de mobilidade titária do eu modulado e intercambiável
que deslocam lugares familiares de abri- em seu encontro com o outro. Também
go para o nosso corpo, passando pelos remontar a Levinas quando indaga so-
nossos cultos até nossos afetos. Entretan- bre o ser humano e sua resposta assume
to, o sujeito não deixa de subsistir, ape- a forma narrativa. Segundo o autor, é pre-
sar de dividido, despedaçado, desloca- ciso que alguma coisa aconteça ao eu pa-
do pela velocidade de temporalidades ra que deixe de representar uma força em
fugazes. movimento, acordando para princípios
Um personagem de Eduardo Pavlo- de convivência. Acorde para o outro que,
vsky anuncia a gesta desses novos mo- no caso, significa a revelação do “rosto”.
dos de vida: “Basta de vínculos, nunca Há encontro, revelação e não conheci-
mais vínculos, apenas contigüidades” mento. A possibilidade da leitura do
(Pavlovsky apud Pelbart, 2000, p. 19). En- “rosto” significa que o outro não é um
tretanto, seria possível desafiar a tirania objeto ao alcance do eu, mas o seu próxi-
das “relações de trocas produtivas” e da mo. Lavramos assim a existência de ou-
“circulação social”. Subjetividades par- tros territórios e novos poderes, moldan-
ciais podem ser vividas e revividas numa do sujeitos e narrativas.

ABSTRACT
This article examines possible categories that define narrative, that is, memory
and subjectivity in the other’s trajectory. Questions are posed so as to open
new perspectives for the interpretation of narratives within the scope of histo-
ry and discourse, focusing on the challenges involved. It analyses orality and
its consequences in the flow of individual and singular accounts towards the
ingenious weaving of the collective.
Key words: Narrative; Subjectivity; Interpretation; Ethics.

Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002 133


Ferreira, A. C.; Grossi, Y de S.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALDAS, Alberto. A noção de cápsula narrativa: a entrevista, o texto e o outro na herme-
nêutica do presente. www.unir.br, 27/7/2001.
CASTRO, Manuel Antônio. Tempo de metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.
FERREIRA, Amauri Carlos. Ensino religioso nas fronteiras da ética. 2. ed. Petrópolis: Vo-
zes, 2002.
GIRON, Loraine Slomp. Da memória nasce a história. In: LENSKIJ, Tatiana; HELFER, Na-
dir Emma (Org.). Santa Cruz do Sul: Edunisc/Anpuh, 2000.
GROSS, Eduardo. Hermenêutica e religião a partir de Paul Ricoeur. In: Revista de Estudos
e Pesquisa em Religião. Juiz de Fora: Numen, 1999, p. 33-49.
GROSSI, Yonne de Souza. O enigma da identidade. Cadernos de Ciências Sociais. Belo
Horizonte: PUC Minas, 1997, v. 5, n. 8, dez. 1999.
KOFES, Suely. Uma trajetória em narrativas. Campinas: Mercado de Letras, 2001.
LEVINAS, E. Ética e infinito. Lisboa: Ed. 70, 1982.
LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 1980.
LOPES, Etelvina Pires Nunes. O outro e o rosto: problemas na alteridade em E. Levinas,
UCP. Portugal: Braga, 1993.
LOPES, José Carlos Cacau. A voz do dono e o dono da voz. São Paulo: Hucitec, 2000.
MENDONÇA CRUZ, Thais Wense. Miragens da existência. São Paulo: Fapesp, 1998.
MITRE, Antônio. Memória y olvido en la historiografia. Belo Horizonte: UFMG, 2001, mimeo.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
OLIVEIRA, Manfredo de Araújo. Ética e práxis histórica. São Paulo: Ática, 1995.
PASSERINI, Luisa. Mitobiografia em história oral. In: Revista Projeto História. São Paulo:
PUC-SP, 1993, mimeo.
PAULA, João Antônio. Uma herança humanista. Belo Horizonte: UFMG, 2001, no prelo.
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio. São Paulo: Iluminuras, 2000.
PERELMUTTER, Daisy. A história oral e a trama sensível da subjetividade. In: Internacio-
nal Oral History Conference. Rio de Janeiro, 1998.
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Revista Projeto História. São Paulo: PUC-SP,
1996, mimeo.
PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. In: Revista do Programa de Estudos
pós-graduados em História e do Departamento de História – História e Oral – Projeto
História, n. 22, São Paulo: PUC-SP, junho 2001.
RICOEUR, Paul. Le temps et les philosophies. Paris: Payot/Unesp, 1978.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Papirus, 1995, t. II.
RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983, t. I.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

134 Economia & gestão, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 120-134, jan./jun. 2002

Você também pode gostar