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Grande Sertão: Veredas

– literatura e memória
MÁRCIO HENRIQUE MURACA*

Resumo
Muito já se escreveu sobre Grande Sertão: Veredas, sobretudo a respeito do
conceito de sertão como microcosmo, bem como, em termos de linguagem, da
técnica narrativa do monólogo-diálogo. Neste artigo, pretende-se investigar os
elementos de memória presentes na obra. O produto da tentativa do narrador-
protagonista Riobaldo de entender o sentido de sua vida ao rememorar eventos
tem como resultado um tipo de relato memorialístico. Ainda que tais eventos
sejam ficção, Guimarães Rosa os situa em um plano temporal e espacial
concretos, o que permite revelar um enquadramento social a partir dessa
“memória individual” de Riobaldo enlaçada à memória coletiva do sertão. O
diálogo teórico abarca dois textos básicos, o de Eduardo F. Coutinho, sobre
Grande Sertão: Veredas, e os estudos de Marina Maluf sobre memória.
Palavras-chave: Grande Sertão: Veredas; Microcosmo; Monólogo-Diálogo;
Memória.

Abstract
So many studies have been written on João Guimarães Rosa’s Grande Sertão:
Veredas, manly focusing on the concept of sertão (hinterland) as a microcosm,
as well as the monologue-dialogue employed as its narrative technique. This
article aims at investigating concepts of memory present in the novel. Intending
to understand the meaning of his life, the narrator Riobaldo recall past events,
which results in a sort of memorialistic report. Although those events are
nothing but fiction, Guimarães Rosa arranges them in an actual time and place,
which reveals a particular social portrait by linking the “individual memory” of
Riobaldo to the collective memory of the sertão. We will quote Coutinho’s
articles on the novel also Maluf’s studies on memory.
Key words: Grande Sertão: Veredas; Microcosm; Monologue-Dialogue;
Memory.

*
MÁRCIO HENRIQUE MURACA é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Teoria
Literária, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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Narrei ao senhor. No que narrei, o metonimicamente, “somos todos nós”,
senhor talvez ache mais do que eu, cada qual na luta de seu próprio tempo.
a minha verdade. Fim que foi. Em contraste, esse plano temporal do
(ROSA, 1976, p.254) romance – ou a-temporal, sob a leitura
metafórica – é capaz de revelar sua
outra face: a de um tempo que de fato
A dinâmica narrativa de Grande Sertão:
existiu, delimitado, referencial, um
Veredas tem como eixo o ponto de vista
tempo histórico de uma sociedade.
de Riobaldo, narrador-protagonista, o
qual se dispõe a “expor”, como diz Há uma “face documental”, portanto,
(ROSA, 1976, p.39), seu passado. em Grande Sertão: Veredas que
Entremeadas à sua rememoração de Coutinho destaca no plano espacial,
fatos estão suas indagações existenciais enquanto “uma região concreta, o sertão
bem como suas conclusões (muitas é aqui uma representação, tão próxima
vezes em tensão) sobre diferentes temas do possível, de uma área específica do
e imagens que orbitam em seu espaço- interior do Brasil” (COUTINHO, 1993,
tempo e que constituem seu contexto p.16). Próxima do possível porque seus
físico-existencial, seu mundo. Se o seu limites variam na concepção dos
espaço é o sertão, “região múltipla e próprios moradores, sua região não
ambígua”, que corresponde, de um lado, pode ser tratada como uniforme (com
a uma área física de fato e, noutro variações climáticas e de vegetação) e o
plano, “a uma realidade interior, denominador comum, talvez, estaria na
espiritual ou psicológica, sem fronteiras junção da atividade econômica da
externas” (COUTINHO, 1993, p.15), ou pecuária com a miséria de quem lá
seja, aquele microcosmo da sociedade habita. O sertão, ainda, pode ser visto
humana já consagrado, o seu tempo, como o oposto à cidade, ao urbano
aquele que rememora, é o do sertanejo- “civilizado”; o sertão rural é rudimentar,
jagunço. Em simbiose com o espaço, “anacrônico” (COUTINHO, 1993, p.17-
esse tempo também possui, num plano, 18).
sua dimensão interior, no qual os O efeito da impossibilidade da
jagunços se inserem, vivem sob o ritmo delimitação física, num plano mais
de seus valores, e que,

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profundo (subjetivo) da obra, é aquele universais com os quais o homem está
que pretende tocar o nível metonímico, sempre lidando no mundo.”
universal. O sertão é o mundo, o mundo (COUTINHO, 1993, p.25).
é o sertão, seus limites parecem sempre Dentre diversas motivações que levam
irreconhecíveis, além da capacidade indivíduos a registrarem suas memórias
humana de rotular, pôr ordem no caos, – sejam em cartas, diários ou confissões
delimitar fronteiras. Mais uma vez: “o –, a que mais me parece se destacar é a
microcosmo do mundo, uma região de um sentimento de ajuste de contas
misteriosa, ilimitada, em que o homem com o tempo. É como se o “juntar os
vive em constante busca de sentido.” cacos de lembranças” pudesse organizar
(COUTINHO, 1993, p.24). uma vida entrecortada pela rotina,
E quanto ao tempo? A meu ver, análogo incidentes, perdas, ganhos etc. e, como
ao espaço “concreto” do romance: resultado, fosse capaz de responder, ao
impossível, de certo modo, delimitá-lo, mesmo tempo, questões factuais e
mas possível encontrar vestígios de uma metafísicas. É a busca pelo sentido de
época que se configurou delineando uma vida e, em alguns casos, também
uma face, cujos traços foram herdados garantia à posteridade do que “de fato”
das relações sociais desiguais e aconteceu. Entretanto, nem o desenrolar
opressivas, assim como das nem o fim de um relato trazem,
transformações, como já dito, que o necessariamente, um sentido; tampouco,
sertão foi sofrendo ao longo das décadas respostas àquelas questões, tanto do
e que se revela no romance. mundo externo, prático e racional, como
da dimensão interior. No máximo, traz
Tais vestígios podem aparecer em uma
algum alívio que pode representar
leitura da obra ao se deslocar (mas sem
aquele ajuste de conta com o passado,
abandonar) o conceito da técnica
mas para logo a existência seguir sua
híbrida do “monólogo-diálogo”1, para
marcha adiante, fazendo emergir mais
aproximar Grande Sertão: Veredas da
perguntas e todo o mistério existencial.
noção de relato, cujos elementos de
Nas próprias palavras de Riobaldo:
registro memorialístico, se não
“Vivendo, se aprende, mas o que se
trouxerem sentidos originais para a
aprende, mais, é só fazer outras maiores
análise da obra, podem vir a servir de
perguntas.” (ROSA, 1976, p.389). O
motivo para se discutir, ainda que de
símbolo infinito (∞), em substituição à
modo generalista, a dimensão histórica
palavra “fim” no término de Grande
do sertão. A memória individual de
Sertão: Veredas, sugere adequadamente
Riobaldo, ainda que fictícia, parte da
esse mecanismo espiralado.
memória coletiva daquela região,
factual e mítica, revelando, no conjunto, Uma possível armadilha no esforço de
uma memória social. produzir uma narrativa como resposta a
tantos questionamentos de uma vida é
Com o risco de reduzir à obra literária a
que cada lembrança funciona mais
um pastiche documental, não se deve
como um fio que, combinado de um
perder de vista, aqui, aquela
determinado jeito a outros, forma um
representação “próxima do possível” e
tecido, o qual representa uma “verdade
tendo sempre em mente que o poder
recapturada que é obtida pela
marcante de Grande Sertão: Veredas
perspectiva do narrador no presente”
reside na “busca metafísica” de
(MALUF, 1995, p.34). As indagações
Riobaldo, nos seus conflitos interiores2,
metafísicas e possíveis conclusões sobre
que representam “todos conflitos

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tal “narrativa-verdade” estarão sempre a Riobaldo, se aproxima da linguagem de
mercê desse ponto de vista. Marina textos memorialísticos que, em geral,
Maluf escreve sobre a relevância do denuncia o espaço-tempo do narrador, o
“lugar”, do espaço, onde se produz o que permite o ajustamento do leitor a
relato que, estando sempre uma rede de signos pertencentes a uma
“mergulhado na linguagem e na realidade específica. Marina Maluf,
cultura”, não há como o escrevente (ou citando Michel de Certeau: “meu
o expositor de memórias) “erradicar o dialeto demonstra minha ligação com
ponto de vista, a incerteza, a um certo lugar.” (MALUF, 1976, p.34).
contradição e a parcialidade da Portanto, Guimarães Rosa, ao arquitetar
narrativa.”. Assim, quem dita as regras, a fala de Riobaldo, emprega duas
hoje, do desenho daquele tecido que se noções. A primeira, de que apenas o
projetou no passado, é o narrador, “sob homem do sertão pode contar a si
uma ordenação comandada pelo mesmo no sertão e, a segunda, de que
presente – e é essa ordenação que faz apenas Riobaldo pode contar-atravessar
com que o próprio passado se torne Grande Sertão: Veredas. Sem a
inteligível e significativo...” (MALUF, linguagem única, híbrida e complexa
1995, p.34). Riobaldo traduz a empregada no romance, não pode haver
relatividade da rememoração: “Como Riobaldo. Sem a fala-mundo dele, o
vou achar ordem para dizer ao senhor a romance tampouco poderia existir.
continuação do martírio...?” (ROSA,
1976, p.41). Assim, como em textos memorialísticos
baseados na realidade, a enunciação de
Embora Riobaldo não seja um Riobaldo segue uma lógica básica
“escrevente” de suas memórias, o confessional (ou mesmo de
romance parece, a princípio, composto testemunho), típica de quem relata uma
como se fosse o registro fiel (ou muito história de vida, mas não de modo
próximo dele) da “fala” do sertanejo, pragmático e mecânico. Ao contrário,
como a transcrição da gravação de um esse homem está imbuído de
testemunho recolhido pelo interlocutor “interrogações que constituem a
– onde apenas a “voz” de Riobaldo substância de sua narração, que, longe
aparece. Pura aparência ou de um frio relato de fatos e
reducionismo, se assim visto. A acontecimentos do passado, é um
construção estilística de Rosa vai além processo vivo, ou seja, uma fase do
de tal ideia. É muito mais complexa do processo de busca que se desenvolve e
que a mera tentativa de reproduzir a fala toma forma, mediante palavras, no
do sertanejo. próprio ato da narração.” (COUTINHO,
A ilusão rosiana do relato “puro” de 1993, p.27).
Riobaldo, sem interferência, gera Nesse sentido que o romance segue, no
verossimilhança como um primeiro geral, a lógica do texto memorialístico
efeito, mas impulsiona a narrativa para que, esquematicamente, assim se
sua complexidade, ao produzir alterna, no momento da narração:
estranhamento, ambiguidade, rememoração de fatos – reflexão sobre
potencializando os conflitos e servindo os temas que esses fatos encerram –
como um mapa cujos símbolos destoam volta à rememoração de fatos. Segue,
do conhecido, mas que não impedem de ainda, o que Marina Maluf caracteriza
ser trilhado. Assim, a técnica de relato como a “tripla operação” que constitui a
empregada por Rosa, a fala de memória: acumulação primitiva,

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rememoração e ordenamento da persuasão para garantir que sua busca
narrativa. Não é à toa, portanto, que a continue: “Depois, quinta-de-manhã-
narrativa de Riobaldo não escapa da cedo, o senhor querendo ir, então vai
autointerpretação. Como a [...]. Visita, aqui em casa, comigo, é por
rememoração se liga mais a fatos que à três dias!” (ROSA, 1976, p.22). Recurso
imaginação, a estrutura de Grande ainda melhor para seduzir o amigo a
Sertão: Veredas obriga o narrador- continuar a ouvi-lo é oferecer o que o
protagonista a enfrentar o dilema da interlocutor parece procurar e apenas
tradução de lembranças dos ele, Riobaldo, em sua memória, agora
subterrâneos da memória. É preciso retém:
fazer escolhas verbais de como contar Mas, o senhor sério tenciona
os fatos, e daí o conflito: o desejo de devassar a raso este mar de
transparência “no esforço de trazer o territórios, para sortimento de
passado para o projeto narrativo do conferir o que existe? Tem seus
presente” sempre se choca com motivos. Agora – digo por mim – o
inevitáveis obstáculos do inconsciente, senhor vem, veio tarde. Tempos
ou seja, “os artifícios, as interpretações, foram, os costumes demudaram.
os lapsos e os recalques de Quase que legítimo leal, pouco
acontecimentos de toda uma vida sobra, nem não sobra mais nada [...]
sempre tão complexa e cuja totalidade Não fosse meu despoder, por azias
e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o
constantemente lhe escapa – tanto mais
senhor até tudo. (ROSA, 1976,
quando pressionado a dar uma ordem a p.23).
esses fatos.” (MALUF, 1995, p.29-30).
O registro da rememoração, se não faz Seu relato então segue, partindo de suas
revelar a verdade pura dos fatos, traz minuciosas descrições de lugares, desde
vestígios da história, ainda que esta a vegetação e animais até o próprio
tenda para memória mítica de um lugar, clima. São como a cortina de um teatro
de um povo, uma época. A memória que lentamente se abre e convida os
individual se enlaça à coletiva. olhos do expectador ao palco de
expressão da vida humana. Sua
Riobaldo, nesse vaivém, evoca a figura memória orquestra os fatos, os atores
de um senhor sábio e vivido, mestre do surgem naquele cenário que tanto
passado, que proseia sem pressa cambia conforme se atravessa. Riobaldo
mirando o horizonte, contando histórias se desculpa ao interlocutor: “Se estou
que ouviu e as que ele próprio viveu, falando às flautas, o senhor me corte.”
mais preocupado em falar do que (ROSA, 1976, p.49) ou “O senhor me
mesmo ser escutado, como se muitas releve tanto dizer!” (ROSA, 1976,
vezes esquecesse que tem sentado ao p.52). Ou ainda, quase no final do
lado um interlocutor. Em seu relato, romance, pede a compreensão do amigo
Riobaldo quer refazer o passado a todo diante do horror das lembranças que
custo, porque a dúvida impera, e é ele beiram o inenarrável: “Como vou
quem determina quando é o fim da contar, e o senhor sentir em meu
travessia, que, na verdade, não há: “Eh, estado? O senhor sobrenasceu lá? O
que se vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. senhor mordeu aquilo? O senhor
Amanhã, não. Não consinto. O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?! [...]
me desculpe, mas em empenho de O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou
minha amizade aceite: o senhor fica.” contar.” (ROSA, 1976, p.449).
(ROSA, 1976, p.22). Na sequência, usa
de seu “costume” como elemento de

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Ele faz digressões, autojustificativas, coisas de rasa importância. (ROSA,
interroga, comete anacolutos e retoma: 1976, p.98).
“Mas aí, eu estava contando...” (ROSA, Sobre a rememoração e a escolha
1976, p.34), “De sorte que, do que eu daquelas lembranças que se refletem
estava contando, ao senhor...” (ROSA, ainda no presente, faço a aproximação
1976, p.36). do estudo de Maluf sobre o texto
Riobaldo reflete sobre razões de ele memorialístico de Floriza, uma senhora
tanto falar. Ele explica: de 73 anos, que decide escrever suas
memórias de fazendeira paulista na
O senhor é de fora, meu amigo mas
virada do séc. XIX e que “confessa que
meu estranho. Mas, talvez por isto
mesmo. Falar com o estranho o seu estado psíquico presente foi o
assim, que bem ouve e logo longe elemento desencadeador de suas
se vai embora, é um segundo memórias.” (MALUF, 1995, p.32).
proveito: faz do jeito que eu falasse Maluf sublinha que se “o eu atual difere
mais mesmo comigo. Mire veja: o daquele do passado, criando ao mesmo
que é ruim, dentro da gente, a gente
tempo uma distância temporal e outra
perverte sempre por arredar mais de
si. Para isso é que o muito se fala? mais profunda, de identidade, [...] o
(ROSA, 1976, p.33). narrador, a despeito do voto de
sinceridade, pode assumir todas
Sabemos, então, que seu relato se prerrogativas.” (MALUF, 1995, p.32).
estenderá por três dias, tempo da visita O que converge para a reflexão de
do interlocutor, anônimo ao leitor, mas Riobaldo:
com indícios de ser um amigo culto –
“... o senhor, com toda sua cultura e De cada vivimento que eu real tive,
doutoração.” (ROSA, 1976, p.14), de alegria forte ou pesar, cada vez
daquela hoje vejo que eu era como
urbano – “o senhor mal conhece esta
se fosse diferente pessoa. Sucedido
gente sertaneja” (ROSA, 1976, p.199) – desgovernado. Assim eu acho,
e que, por isso, pode ajudá-lo com suas assim é que eu conto. (ROSA,
dúvidas – “Quero é armar o ponto dum 1976, p.115).
fato, para depois lhe pedir um
conselho.” (ROSA, 1976, p.196). O O privilégio que o narrador possui ao
leitor terá cerca de 500 páginas para ter em mão a seleção de fatos tem sua
fazer a travessia com Riobaldo, para exigência no “esforço de reencontro e
ouvi-lo. Ainda que Riobaldo não seja de restauração marcado pela
mais o mesmo, se é homem mudado, o melancolia”, no caso de Floriza, e mais
passado deixou algo que se alonga no pela dúvida quanto a Riobaldo. Dúvida
presente e incomoda. A lembrança que que tem como figura o demônio e toda
importa é a que machuca e aí também se dualidade e divisão (di-abo) que ele
explica a desordem do relato, que se evoca: “Digo ao senhor: o diabo não
guia menos pelo racional ordenamento existe, não há, e a ele eu vendi minha
cronológico: alma... Meu medo é este. A quem
vendi? Meu medo é este, meu senhor...”
A lembrança da vida da gente se (ROSA, 1976, p.372). Floriza, tanto
guarda em trechos diversos, cada quanto Riobaldo, ao relembrar, está
um com seu signo e sentimento, uns “construindo um significado ou um
com os outros acho que nem não se
ponto de vista renovado para sua
misturam. Contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as experiência de vida. Para tanto, lança
mão de uma ordenação e de uma

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seleção de fatos pretéritos que digam global como palco de diversidade e
respeito a essa necessidade de catarse.” hibridismo, onde a identidade, segundo
(MALUF, 1995, p.32). Bauman, é muito mais “desprendida” de
“pontos firmes de segurança”3 – como o
Nesse ponto que a observação de Maluf
sertão-mundo da época do jagunço
toca a análise de Coutinho sobre a
Riobaldo –, a dualidade humana não
técnica narrativa híbrida (monólogo-
termina como o resultado de uma
diálogo) empregada em Grande Sertão:
equação. “Nonada”, que abre Grande
Veredas: “o diálogo presente no
Sertão: Veredas, e “travessia”, palavra
romance é o que o protagonista
que o fecha, representam o mergulhar
Riobaldo trava consigo mesmo, isto é,
na existência vazia que, gradualmente,
um processo catártico de autorrevelação
se aflora em muitas veredas, conexões
em que se torna seu próprio interlocutor
infinitas, eternas. Talvez apenas a morte
e gradativamente constrói sua
personalidade no ato mesmo da aponte alguma resposta. Talvez...
narração.” (MALUF, 1995, p. 65).
Assim, o homem dividido que se Referências
metaforiza na dúvida da existência do
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de
demônio mostra seu alívio nas últimas Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
linhas do relato:
COUTINHO, Eduardo F. Monólogo-Diálogo: A
Amável o senhor me ouviu, minha Técnica Híbrida do Grande Sertão: Veredas. In:
ideia confirmou que o Diabo não Em Busca da Terceira Margem: Ensaios
existe. Pois não? O senhor é um sobre o Grande Sertão: Veredas. Salvador:
homem soberano, circunspecto. Casa de Palavras, 1993. p.61-70.
Amigo somos. Nonada. O diabo _____________________. Sertão: Um Conceito
não há! É o que eu digo, se for... Múltiplo em Grande Sertão: Veredas. In: Em
Existe é homem humano. Travessia. Busca da Terceira Margem: Ensaios sobre o
(ROSA, 1976, p.460). Grande Sertão: Veredas. Salvador: Casa de
Palavras, 1993. p.15-30.
Riobaldo parece chegar a uma
conclusão que, entretanto, não deixa de MALUF, Marina. A Reconstrução do Passado.
In: Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano,
ser provisória, já que a divisão Deus 1995. p.27-89.
versus diabo é a própria representação
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão:
do conflito humano, o bem x mal, o
Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
lícito x ilícito, etc. Por mais que a
dinâmica do mundo aposte na aldeia

encarna, em sua androginia, as faces lícita e


1 ilícita do amor; o desejo e, ao mesmo tempo,
“Monólogo-diálogo”, sintagma definido por
receio de levar a cabo aquilo que considera a
Coutinho como a técnica híbrida empregada por
sua missão...” (COUTINHO, 1993, p.25).
Guimarães Rosa “para expressar perfeita 3
Segundo o autor, o entendimento, hoje, da
simbiose com o universo que visava recriar.”
questão da identidade deve partir de “uma
(COUTINHO, 1993, p.61). Sob a perspectiva da
reflexão mais adaptada à dinâmica do transitório
memória, parto da visão do romance como um
que se impõe sobre o perene” (BAUMAN,
“relato”.
2 2005, p.74).
Convém transcrever a síntese que Coutinho faz
dos conflitos interiores de Riobaldo no plano
subjetivo amarrado ao plano figurativo da
narrativa: “a hesitação entre o amor espiritual
por Otacília e o desejo carnal pela prostituta
Nhorinhá: a insegurança decorrente da atração e
repulsa simultânea pelo amigo Diadorim, que

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