Você está na página 1de 107

Análises de

Obras Literárias
USP 2023

Guimarães Rosa
Bernardo Carvalho
Fernando Pessoa
Drummond
Mia Couto
APOSTILA II

professor Gilmar
LITERATURA BRASILEIRA
E PORTUGUESA
Sumário

Guimarães Rosa: Campo Geral (1964) 04

Exercícios 18

Bernardo Carvalho: Nove Noites (2002) 21

Exercícios 41

Fernando Pessoa: Mensagem (1934) 44

Exercícios 62

Drummond: Alguma Poesia (1930) 65

Exercícios 81

Mia Couto: Terra Sonâmbula (1992) 83

Exercícios 103
2022
Material organizado pelo Professor Gilmar Ramos.
Contato: gilmarliteratura@gmail.com
Apresentação

Os resumos apresentados a seguir não têm a intenção, nem a pretensão, de esgotar


as possibilidades de interpretação acerca das obras abordadas. São fontes de apoio
e encaminhamento para a leitura. Cabe ao aluno a leitura integral do livro, atento às
relações entre as personagens, ao ambiente, ao contexto histórico em que foi produzida
a obra, bem como, as possíveis relações intertextuais entre os livros exigidos na lista do
vestibular.

É importante durante a leitura que o aluno faça anotações e questionamentos,


levantando suas dúvidas de maneira a elucidar tudo o que permeia o universo literário da
obra em análise.

Boa leitura!

Professor Gilmar
2022
GUIMARÃES ROSA

Guimarães Rosa
1908-1967
Campo geral, 1964
4

I. O Autor − A lírica e a narrativa fundem-se,


abolindo os limites entre ambos.
− Permanência realista do testemunho
humano. “Não gosto de falar da infância. É um
tempo de coisas boas, mas sempre com
− Universalização do Regionalismo. pessoas grandes incomodando a gente,
intervindo, comentando, perguntando,
− Mundo de fantasia e realidade do sertão mandando, comandando, estragando os
(místico/mítico) mineiro. prazeres. Recordando o tempo de criança,
vejo por lá um excesso de adultos, todos
− Sondagem do mundo interior de eles, mesmo os mais queridos, ao modo de
personagens com poder generalizante. soldados e policiais do invasor, em pátria
ocupada. (...) Gostava de estudar sozinho e
− Grande preocupação em manter o de brincar de geografia. Mas, tempo bom,
enredo e o suspense. de verdade, só começou com a conquista
de algum isolamento, com a segurança de
− A natureza, além de cenário, é um poder fechar-me num quarto e trancar a
agente ativo, participante, diretamente porta. Deitar no chão e imaginar histórias,
ligado aos destinos do homem. poemas, romances, botando todo mundo
conhecido como personagens, misturando
− Revitalização dos recursos da as melhores coisas vistas e ouvidas, numa
expressão poética, tais como ritmo, rima, combinação mais limpa e mais plausível,
aliterações, cortes e deslocamentos de porque – como muita gente compreendeu
sintaxe, vocabulário insólito, erudito e e já falou – a vida não passa de histórias
arcaico, neologismos, a fim de captar e mal arranjadas, de espetáculo fora de
imortalizar os valores espirituais, humanos foco.” (BORBA, 1946).
e culturais de um povo.
GUIMARÃES ROSA
II. O Movimento Toda a narrativa desenvolve-se na véspera
de sair uma boiada, o tema boi serve de
− Representa um retrocesso em relação ligação entre as cenas, reaparecendo
às conquistas de 22. aqui e ali, dominante, ora como o próprio
animal, ora como vaqueiro ou instrumento
− Propõe uma volta ao passado, com de trabalho.
a revalorização da rima, da métrica, do
vocabulário erudito e das referências As duas novelas complementam-se como
mitológicas. histórias de um começo e de um fim de
vida. 5
− Tendência para o intelectualismo,
preocupação existencial e universalidade Enquanto a do menino é uma constante e,
temática. por vezes, dolorosa descoberta do mundo;
a do vaqueiro sessentão é um relembrar
− Aguda consciência estética, explorando também por vezes doloroso do que foi
as potencialidades da linguagem. a sua vida, em que as recordações se
misturam com os fatos do presente, como
− Preocupação com a forma e o fazer se aquela festa fosse a própria súmula de
poético. seus dias.

− Consciência do caráter metalinguístico


e intertextual da literatura. IV. A Novela como espécie
literária

III. Introdução Como espécie literária, a novela não se


distingue do romance, evidentemente,
Como observa Beth Brait: “Campo Geral pelo critério quantitativo, mas pelo
é uma narrativa profundamente lírica essencial e estrutural.
que traduz a habilidade de Guimarães
Rosa para recriar o mundo captado pela Tradicionalmente, a novela é uma
perspectiva de uma criança” (BRAIT, 1982). modalidade literária que se caracteriza
pela linearidade dos caracteres e
O tema do livro é a infância - a infância de acontecimentos, pela sucessividade
um menino da roça, com suas descobertas episódica e pelo gosto das peripécias.
da vida.
Contrariamente ao romance, a novela
Quanto a “Uma estória de amor”, que não tem a complexidade dessa espécie
focaliza a outra ponta da vida, de forma literária, pois não se detém na análise
igualmente lírica, relata-se, ao mesmo minuciosa e detalhada dos fatos e
tempo, em que se vai reconstituindo a vida personagens.
do vaqueiro sessentão Manuelzão, a festa
de consagração de uma capela que ele faz A novela condensa os elementos do
construir na fazenda que administra. romance: os diálogos são rápidos e a
narrativa é direta, sem muitas divagações.
GUIMARÃES ROSA

Nesse sentido, muita coisa que chamamos − O espaço primitivo da infância, cheio
de romance não passa de novela. de ingenuidades, de sonhos e de mitos
é substituído pelo espaço urbano, que
Naturalmente a novela moderna, como simbolizará uma visão amadurecida, crítica
tudo que é moderno, evoluiu e não se e intelectualizada do mundo, ampliando-
sujeita a regras preestabelecidas. lhe os horizontes.

Tal como o conto, parodiando Mário de − É importante notar que os elementos


Andrade, “sempre será novela aquilo que naturais presentes no espaço inaugural
6 seu autor batizou com o nome de novela” do MUTUM são transformados pela
(BRAIT, 1982). visão mágico-religiosa das pessoas que o
habitam.
Como autor pós-modernista, Guimarães
Rosa procurou ser original, imprimindo, − Em sua obra, o autor sempre busca
em suas criações literárias, a sua marca estabelecer a comunicação entre o
pessoal, o seu estilo inconfundível. universo do sertão e o mundo citadino,
entre o universo da cultura rústica de base
Suas novelas, contudo, apesar das oral e a cultura escrita.
inovações, sempre apresentam aquela
essência básica dessa modalidade − A possibilidade do milagre e do
literária, que é o apego a uma fabulação maravilhoso ronda a todo instante a vida
contínua como um rio. dos personagens.

V. Tempo e Espaço VI. Foco Narrativo

− O espaço da narrativa se divide entre A história é narrada em terceira pessoa,


o MUTUM, espaço fechado e isolado do por um narrador onisciente que, no
mundo, onde Miguilim vive suas primeiras entanto, se identifica intensamente com a
experiências da dor e do sofrimento e o perspectiva do personagem principal.
espaço da CIDADE.
A adesão do narrador às razões e aos
− O MUTUM é um representante do sentimentos do Miguilim faz que muitas
espaço privilegiado do autor: o sertão das vezes, através do discurso indireto livre,
Gerais. o personagem central seja surpreendido
nos seus pensamentos e desejos mais
− Nesse espaço reduzido, estreito, Rosa íntimos, dando-nos momentaneamente
consegue instalar toda a riqueza e a a sensação de estarmos lendo uma
complexidade de sua cultura universal. narrativa em primeira pessoa.

− A saída de Miguilim do MUTUM para O narrador não impõe à estória a sua


a cidade marca uma transformação perspectiva; ao contrário, aproxima-se
fundamental no personagem. tanto do protagonista que é capaz de
expressar as nuances mais delicadas da
GUIMARÃES ROSA
subjetividade do menino e sua forma de VII. Personagens
perceber o mundo.
a) Miguilim: protagonista da estória, o qual
“[…] Aquela miopia de Miguilim foi minha. se revela um menino sensível, delicado e
Escrevi aquela novela, em quinze dias, inteligente ao longo da narrativa.
em lágrimas. Chorava muito enquanto
a escrevia. Lágrimas sentidas, grossas,
descidas do fundo do coração”. (Cartas de
J. Guimarães Rosa a Paulo Dantas). “E é justamente com Miguilim que
fazemos a travessia de sua infância, 7
aprendemos com ele a lidar com a dor,
com a morte, com a sensação de não
Uma grande qualidade dessa narrativa pertencer ao mundo dos adultos e, logo, de
está exatamente na capacidade que o não compreendê-lo.” (MEDEIROS, 2013)
autor teve de manter-se fiel à maneira
específica de entender e de sentir o
mundo típica da criança.
Podemos analisá-lo em três planos:

1. Arquétipo de criança: dimensão


“Desde estavam brincando de jogar universal, aquilo que há de comum a todo
malha, no pátio, meio de tardinha. Era menino de oito anos: o momento da difícil
com dois tocos, botados em pé, cada um passagem da primeira infância, em que a
de cada lado. A gente tinha que derrubar, percepção do mundo é determinada pela
acertando com uma ferradura velha, fantasia, imaginação e emoções, para a
de distância. Duma banda o Dito, mais puberdade, quando esses três elementos
vaqueiro Salúz, da outra Miguilim mais se mesclam à consciência da realidade.
o vaqueiro Jé. Mas Miguilim não dava
para jogar direito, nunca que acertava − Podemos associar esse momento
de derribar. Faz mal não, Miguilim, hoje é da infância com a da passagem da
dia de são-gambá: é de branco perder e mentalidade mítica para a lógica.
preto ganhar…” – o vaqueiro Jé consolava.
Mas Miguilim não enxergava bem o toco, 2. Criança sertaneja de família pobre:
de certo porque estava com o bilhete no aqui, podemos estudar aspectos típicos
bolso, constante em que Tio Terêz não da experiência infantil condicionada pelo
queria pensar. Essa hora, Pai tinha voltado meio físico e social.
da roça, estava lá dentro, cansado, deitado
na rede macia de buriti, perto de Mãe, − As experiências com a natureza,
como cochilava. Miguilim forcejava, não mostrando o contato com os bichos e a
queria, mas a ideia da gente não tinha terra, cultivada ou selvagem, desenvolve a
fecho. Aquilo, aquilo. Pensamentos todos percepção sensorial e o senso de mistério
desciam por ali a baixo.” (p.70)* do menino;

* Ver referências.
GUIMARÃES ROSA

− Quanto à cultura, quando ele vai sendo “Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito
moldado para a vida de acordo com o era menor, mas sabia o sério, pensava
meio social e familiar de camponeses ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele
pobres, ignorantes e supersticiosos, em todo juízo. E gostava, muito, de Miguilim.
que a brutalidade física é comumente Quando foi a estória da Cuca, o Dito um dia
empregada como suposta forma de perguntou: - “Quem sabe é pecado a gente
educação. ter saudade de cachorro?...” O Dito queria
que ele não chorasse mais por Pingo-de-
3. Singularidade: personagem esférica, Ouro, porque sempre que ele chorava o
8 de personalidade ímpar, ricamente Dito também pegava vontade de chorar
caracterizada em sua vida exterior e junto.” (p. 19)*
interior, uma vida complexa, contraditória,
que vai mudando de acordo com as
circunstâncias.
Regionalismo Universal: Dito e Miguilim
Três traços marcantes na personalidade:
A visão objetiva e adulta nos é dada
− Sua fome de saber, que o leva a através do Dito, enquanto Miguilim nos
perguntar às pessoas e a querer guardar traz o olhar subjetivo, em busca da beleza
na memória tudo o que há de essencial; no Sertão.

− Sua aguda sensibilidade, que se


manifesta, especialmente, no amor à mãe
Nhanina, ao irmão Dito e à cadelinha Pingo “Dito não fazia companhia, falava que
de Ouro; carecia de ir ouvir as conversas todas
das pessoas grandes. Miguilim não tinha
− Imaginação poderosa, que se revela no vontade de crescer, de ser pessôa grande,
seu talento inato para inventar histórias. a conversa das pessôas grandes era
sempre as mesmas coisas secas, com
b) Dito: irmão de Miguilim, embora mais aquela necessidade de ser brutas, coisas
novo, sabia viver melhor no mundo e era assustadas.” (p. 35)*
capaz de orientar o irmão em assuntos
essenciais. Nunca apanhava do pai e se
deva bem com todos e tudo. Sentia uma
ligação mais forte com Miguilim, seu − É perceptível a influência da filosofia
companheiro mais constante, com quem grega na obra rosiana, no caso dessa obra
mantinha longas conversas. mais especificamente de Platão.

− Dito parecia dotado de uma sabedoria − Rosa enxertou algumas questões


infusa, nunca se atrapalhava; mesmo em decisivas para a filosofia platônica: a
situações difíceis, sabia sair-se bem, com hipótese da anamnese, ou teoria da
desembaraço. reminiscência, relacionada com a questão
do saber, que pode ser encontrada no
diálogo chamado Menon.
GUIMARÃES ROSA
− Neste, Sócrates comenta: Miguilim, descarece. Fica todo olhando para
a tristeza não, você parece Mãe.’” (p. 56)*
“A alma é, pois, imortal; renasceu repetidas
vezes na existência e contemplou todas as
coisas existentes tanto na Terra como no
Hades e por isso não há nada que ela não Também a facilidade de Miguilim inventar
conheça! Não é de espantar que ela seja histórias é apresentada como uma
capaz de evocar à memória a lembrança inspiração que transcendia sua pouca
de objetos que viu anteriormente, e que experiência de menino:
se relacionam tanto com a virtude como 9
com as outras coisas existentes. Toda a “E o Dito mesmo gostava, pedia: “Conta
natureza, com efeito, é uma só, é um todo mais, conta mais... “ Miguilim contava,
orgânico, e o espírito já viu todas as coisas; sem carecer de esforço, estórias
logo, nada impede que ao nos lembrarmos compridas, que ninguém nunca tinha
de uma coisa - o que nós, homens, sabido, não esbarrava de contar, estava
chamamos de “saber” - todas as outras tão alegre nervoso, aquilo para ele era
coisas acorram imediata e maquinalmente o entendimento maior. Se lembrava de
à nossa consciência. A nós compete Seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com um
unicamente nos esforçarmos e procurar viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele
sempre, sem descanso. Pois sempre, toda sabia, sabia: Deus mesmo era quem estava
investigação e ciência são apenas simples mandando! – “Dito, um dia eu vou tirar a
recordação” (PLATÃO, n/d). estória mais linda, mais minha de todas:
que é a com Cuca Pingo-de-ouro!...” O Dito
tinha alegrias nos olhos; depois, dormia,
rindo simples, parecia que tinha de dormir
− À luz desse fragmento, esclarecem-se a vida inteira.” (p. 96-97)*
certas particularidades do Dito, que, de
repente, sabia das coisas, sem saber antes
que sabia.
Além da influência platônica, duas outras
− Quanto a Miguilim, essa passagem vertentes filosóficas são aproveitadas pelo
auxilia na compreensão de sua autor na composição da personalidade
personalidade inquiridora. de Dito e Miguilim: o estoicismo e o
epicurismo.
− O menino age como o filósofo modelo
de Platão, que tudo quer saber, incitado O estoicismo surgiu no século III a.C., na
por uma saudade de algo não vivido. Grécia, fundada por Zenão. Segundo essa
doutrina, o homem devia esforçar-se para
se tornar insensível aos males físicos e
espirituais, praticando uma vida austera e
“‘- Dito, eu às vezes tenho uma saudade de resignada.
uma coisa que eu não sei o que é, nem de
donde, me afrontando....’ ‘- Deve de não, O epicurismo, fundada por Epicuro (341-
271/70 a.C.), notou a impotência humana
GUIMARÃES ROSA

perante a efemeridade das coisas naturais tudo de ruim que acontecesse, alegre nas
e a dor. A partir dessa constatação, incita profundas. Podia? Alegre era a gente viver
o homem a viver com lucidez e moderação devagarinho, miudinho, não se importando
no mundo e a construir a própria vida demais com coisa nenhuma.” (p. 129)*
buscando a felicidade possível aos
mortais, posto que ela é sempre relativa.

Dito, na hora da morte, tem uma última c) Nhanina: Mulher que se casou jovem,
conversa com Miguilim: vivia melancólica, insatisfeita com sua
10 condição e com o lugar onde morava.
“E o Dito também não conseguia mais
falar direito, os dentes dele teimavam − Sonhava em conhecer o mundo, além do
em ficar encostados, a boca mal abria, território limitado do Mutum.
mas mesmo assim ele forcejou e disse
tudo: — “Miguilim, Miguilim, vou ensinar − Ao que parece, casou por imposição da
o que agorinha eu sei, demais: é que a família.
gente pode ficar sempre alegre, alegre,
mesmo com toda coisa ruim que acontece
acontecendo. A gente deve de poder
ficar então mais alegre, mais alegre, por “Mas sua mãe, que era linda e com
dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. cabelos pretos e compridos, se doía de
Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, tristeza de ter de viver ali. Queixava-se,
os outros vieram, puxaram Miguilim de lá.” principalmente nos demorados meses
(p. 100)* chuvosos, quando carregava o tempo,
tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era
mais escuro; ou, mesmo na estiagem,
qualquer dia, de tardinha, na hora do sol
Miguilim, após a morte do Dito, sente certa entrar. — “Oê, ah, o triste recanto...” — ela
indiferença por tudo e todos, achando exclamava”. (p. 11-12)*
bobas as pessoas e bobagens as suas
preocupações, acaba concluindo:

“— “Se daqui a uns meses sua mãe se − Carinhosa, de personalidade fraca, era
casar com o Tio Terêz, Miguilim, isso é de incapaz de defender os filhos contra a
teu gosto?” — Mãe indagava. Miguilim não brutalidade do pai.
se importava, aquilo tudo era bobagens.
Todo mundo era meio um pouco bôbo. − Adúltera, tem um caso com o cunhado
Quando ele ficasse forte são de todo, ia Tio Terez e acaba se envolvendo também
ter de trabalhar com Tio Terêz na roça? com Luisaltino.
Gostava mais de ofício de vaqueiro. Se
o Dito em casa ainda estivesse, o que d) Nhô Bero: pai, homem dedicado ao
era que o Dito achava? O Dito dizia que trabalho, mas de temperamento irascível,
o certo era a gente estar sempre brabo que se manifestava em explosões de
de alegre, alegre por dentro, mesmo com violência física.
GUIMARÃES ROSA
− Seu comportamento provoca e) Tio Terêz: oposto do irmão.
ressentimento em Miguilim. Compreensivo e afetuoso liga-se
carinhosamente ao sobrinho.

− Por seu relacionamento ilícito com a


“Diante do pai, que se irava feito um fero, cunhada é obrigado a afastar-se da família.
Miguilim não pode falar nada, tremia
e soluçava; e correu para a mãe, que − Após a morte do irmão, volta pra casa
estava ajoelhada encostada na mesa, com o intuito de casar-se com Nhanina.
as mãos tapando o rosto. Com ela se 11
abraçou. Mas dali já o arrancava o pai, f) Jé, Saluz e Luisaltino: trabalhadores,
batendo nele, bramando. Miguilim nem homens rústicos, mas pessoas de
gritava, só procurava proteger a cara e incondicional sentimento de solidariedade.
as orelhas; o pai tirava o cinto e com ele O último foi morto pelo pai, por ciúmes.
golpeava-lhe as pernas, que ardiam, doíam
como queimaduras quantas, Miguilim g) Seo Deográcias: Personagem que
sapateando. Quando pôde respirar, estava influencia e abala bastante Miguilim,
posto sentado no tamborete, de castigo. quando disse que ele poderia ficar tísico.
E tremia, inteirinho o corpo. O pai pegara o
chapéu e saíra.” (p. 20)* − Miguilim acredita que irá morrer e fez
um pacto com Deus de um prazo de dez
dias para sua morte.

− Em alguns momentos, dá vazão a − Pai de Patori, rapaz de gênio ruim e de


sentimentos ternos, demonstrando amor quem Miguilim não gostava.
aos seus, principalmente, quando Tio
Terêz vai embora ou quando Miguilim h) Seo Aristeu: curandeiro da região.
ficou doente.
i) Dr. José Lourenço: do Curvelo, percebe
a dificuldade que o menino tinha para
enxergar, experimentando seus próprios
“E então Miguilim viu Pai, e arregalou os óculos na criança, que se deslumbrou com
olhos: não podia, jeito nenhum não podia a revelação de um mundo nítido e claro.
mesmo ser. Mas era. Pai não ralhava, não Acaba levando Miguilim para a cidade,
estava agravado, não vinha descompor. onde viveria e poderia estudar.
Pai chorava, estramontado, demordia
de morder os beiços. Miguilim sorriu. Pai j) As crianças: são irmãos de Miguilim:
chorou mais forte: - “Nem Deus não pode Liovaldo, Drelina, Chica, Dito e Tomezinho.
achar isso justo direito, de adoecer meus
filhinhos todos um depois do outro, parece − Exceto Dito, nenhum apresenta maior
que a gente só tem que purgar padecer!?” desenvolvimento, enquanto personagem.
Pai gritava uma brabeza toda, mas por
amor dele, Miguilim. Mãe segurou-o braço “Drelina era bonita: tinha cabelos
de pai e levou-o embora” (p. 125)* compridos, louros. O Dito e Tomezinho
GUIMARÃES ROSA

eram ruivados. Só Miguilim e a Chica é que pegava a almofada, ia fazer crivo, rezava e
tinham cabelo preto, igual ao da mãe. O resmungava, no quarto dela, que era o pior,
Dito se parecia muito com o pai, Miguilim sempre escuro, lá tinha tanta coisa, que a
era o retrato da mãe. Mas havia ainda um gente não pensava; Vovó Izidra quase vez
irmão, o mais velho de todos, Liovaldo, nenhuma abria a janela, ela enxergava no
que não morava no Mutúm. Ninguém se escuro.” (p. 20)*
lembrava mais de que ele fosse, de que
feições.” (p. 17)*

12 m) Rosa, Maria Pretinha e Mãitina: são


agregadas da família.
l) Vovó Izidra: é tia de Nhanina.
− A primeira, cozinheira e solteirona;
− Mulher seca e religiosa, representa a
moral repressora da família. É ela quem − A segunda, uma negra velha dos tempos
obriga Tio Terez a abandonar a casa, para da escravidão, meio louca, que diziam ser
evitar a briga entre os irmãos. feiticeira e que também se ocupava dos
trabalhos da cozinha.
− É ela que vive a exigir de Nhanina um
comportamento decente, de mulher − Mãitina á a mais caracterizada das três:
casada.

− Atreve-se a tomar a defesa das crianças


contra os excessos de violência do Pai. “O Dito era a pessoa melhor. Só que não
devia de conversar naquelas coisas com
− Quando todos se entregam às paixões Mãitina. Mãitina tomava cachaça, quando
(medo, desespero, ira, etc), vovó Izidra podia, falava bobagens. Era tão velha, nem
impõe, com sua firmeza, o equilíbrio sabia que idade. Diziam que ela era negra
necessário. fugida, debaixo de cativeiro, que acharam
caída na enxurrada, num tempo em que
Mamãe nem não era nascida.” (p. 23)*

“A mãe, no quarto, chorava mais forte, ela


adoecia assim nessas ocasiões, pedia todo
consolo. Ninguém tinha querido defender Para finalizar, é importante observar que,
Miguilim. Nem Vovó Izidra. E tanto, até o ao contrário da cidade grande onde as
pai parecia ter medo de Vovó Izidra. Ela pessoas praticamente são anônimas,
era riscada magra, e seca, não parava no mundo roseano tudo e todos têm um
nunca de zangar com todos, por conta de nome que os caracteriza e individualiza.
tudo. Com o calor que fizesse, não tirava
o fichú preto. - “Em vez de bater, o que
deviam era de olhar para a saúde deste VIII. Estrutura e Enredo
menino! Ele está cada dia mais magrinho...”
Sempre que batiam em algum, Vovó Izidra A novela se organiza da mesma maneira
vinha ralhar em favor daquele. Vovó Izidra que Grande Sertão; Veredas, ou seja, a
GUIMARÃES ROSA
narrativa não é dividida em capítulos e não podia, porém, concordar, por mais que
as falas, nos diálogos, não se sujeitam às gostasse dela: e achava que o moço que
normas convencionais. tinha falado aquilo era que estava com a
razão. Não porque ele mesmo Miguilim
A narrativa, entretanto, pode ser dividida visse beleza no Mutúm — nem ele sabia
em alguns núcleos básicos que passamos distinguir o que era um lugar bonito e um
a descrever: lugar feio.” (p. 12)*

1. Ao completar sete anos, Miguilim é


levado pelo tio Terêz até um lugarejo 13
distante para ser crismado. Nessa viagem, 2. A família de Miguilim é numerosa e
uma lembrança que o marcou e que jamais compõem-se de pai, mãe, irmãos, avó,
esqueceu foi o dito de um moço que já tios, empregados, gatos e cachorros.
estivera no Mutum: Inicialmente, o seu relacionamento é
bom com todos eles, aos poucos, vai-se
“Da viagem, que durou dias, ele guardara percebendo a sua maior predileção pelo
aturdidas lembranças, embaraçadas irmãozinho Dito.
em sua cabecinha. De uma, nunca pôde
se esquecer: alguém, que já estivera no Mais novo do que Miguilim, Dito se
Mutum, tinha dito: - ‘É um lugar bonito, destaca pela sabedoria e esperteza:
entre morro e morro, com muita pedreira e
muito mato, distante de qualquer parte; e “De onde era que o Dito descobria a
lá chove sempre...’” (p. 11)* verdade dessas coisas? Ele estava quieto,
pensando noutros assuntos de conversa,
e de repente falava aquilo. — “De mesmo,
de tudo, essa ideia consegue chegar em
− Essa opinião opunha-se à da mãe, que sua cabeça, Dito?” Ele respondia que não.
ali morava e vivia queixando-se do triste Que ele já sabia, mas que não sabia antes
recanto. que sabia. Como a respeito de se fazer
promessa. O Dito tinha falado que em vez
− Ao voltar, esta será a sua primeira d’a gente só fazer promessa aos santos
preocupação: dizer à mãe “que o Mutum quando se estava em algum aperto, para
era lugar bonito”. cumprir o pagamento dela depois que
tivesse sido atendido, ele achava que a
− A mãe, evidentemente, não lhe deu gente podia fazer promessa e cumprir
importância, apontando o morro como antes, e mesmo nem não precisava
causa do seu infortúnio e da sua tristeza. d’a gente saber para que ia servir o
pagamento dessa promessa, que assim se
“Estou sempre pensando que lá por estava fazendo... Mas a gente marcava e
detrás dele acontecem outras coisas, que cumpria, e alguma coisa boa acontecia, ou
o morro está tapando de mim, e que eu alguma coisa ruim que estava para vir não
nunca hei de poder ver...” Era a primeira vinha!” (p. 114)*
vez que a mãe falava com ele um assunto
todo sério. No fundo de seu coração, ele
GUIMARÃES ROSA

Grande era a amizade que unia os dois. sentou no chão, num canto, chorava, não
Boa parte da novela concentra-se nessa queria esbarrar de chorar, nem podia. —
amizade e nas conversas de ambos. ‘Dito! Dito!...’” (p. 101)*

“Voltou para junto. Agora, ele se aliviava 4. O relacionamento com o pai, a princípio,
qualqual, feliz no acomodamento, bom e cordial, vai-se deteriorando e
espairecia. Era capaz de brincar com chega ao clímax, quando, numa briga com
14 o Dito a vida inteira, o Ditinho era a um parente que os visitava, Miguilim é
melhor pessoa, de repente, sempre sem surrado violentamente por ele. Liovaldo
desassossego. O Dito como que ajudava. bate sem motivo nenhum em Grivo, amigo
Ele Miguilim ainda carecia de sinalar os de Miguilim, que passava perto da casa.
dias todos, para aquela espera, fazia a Miguilim resolve defender seu amigo.
conta nos dedos.” (p. 48)*

“Era dia-de-domingo, Pai estava lá, veio


3. A morte prematura de Dito vai provocar correndo. Pegou Miguilim, e o levou para
nele um impacto doloroso e chocante - casa, debaixo de pancadas. Levou para o
exatamente Dito que não pensava em alpendre. Bateu de mão, depois resolveu:
morrer e traçava planos para o futuro. tirou a roupa toda de Miguilim e começou
a bater com a correia da cintura. Batia e
xingava, mordia a ponta da língua, enrolada,
se comprazia. Batia tanto, que Mãe, Drelina
“Eu gosto de todos. Por isso que eu quero e a Chica, a Rosa, Tomezinho, e até Vovó
não morrer e crescer, tomar conta do Izidra, choravam, pediam que não desse
Mutum, criar um gadão enorme.” (p. 92)* mais, que já chegava. Batia. Batia, mas
Miguilim não chorava. Não chorava, porque
estava com um pensamento: quando ele
crescesse, matava Pai. Estava pensando
Mas Dito morre, e a desolação de Miguilim de que jeito era que ia matar Pai, e então
é grande e de difícil superação. começou a rir. Aí, Pai esbarrou de bater,
espantado: como tinha batido na cabeça
também, pensou que Miguilim podia estar
ficando dôido.” (p. 116)*
“Miguilim entrou, empurrando os outros:
o que feito uma loucura ele naquele
momento sentiu, parecia mais uma
repentina esperança. O Dito, morto, era a A mãe, sempre preocupada e zelosa,
mesma coisa que quando vivo, Miguilim afasta-o de casa, mandando-o passar
pegou na mãozinha morta dele. Soluçava algum tempo com o vaqueiro Salúz.
de engasgar, sentia as lágrimas quentes, Miguilim retorna carrancudo e ainda mal-
maiores do que os olhos. Vovó Izidra o humorado.
puxou, trouxe para fora do quarto. Miguilim
GUIMARÃES ROSA
“Naqueles três dias, Miguilim desprezou “Mas Vovó Izidra vinha saindo de seu
qualquer saudade. Ele não queria gostar quarto escuro, carregava a almofada de
mais de pessoa nenhuma de casa, afora crivo na mão, caçando tio Terêz. - “Menino,
Mãitina e a Rosa. Só podia apreciar os você ainda está aí?!” -; ela queria que
outros, os estranhos; dos parentes, Miguilim fosse para longe, não ouvir
precisava de ter um enfaro de todos, o que ela ia dizer a tio Terêz. Miguilim
juntos, todos pertencidos. Mesmo de parava perto da porta, escutava. O que
Tomezinho; Tomezinho era muito diferente ela estava dizendo: estava mandando tio
do Dito. Também não estava desejando se Terêz fosse embora. Mais falava, com uma
lembrar daqueles assuntos, dos conselhos certa curta brabeza diferente, palavras 15
do Dito. Um dia ele ia crescer, então todos raspadas. Forcejava que o tio Terêz fosse
com ele haviam de comer ferro. E mesmo embora, por nunca mais, na mesma
agora não ia ter medo, ah, isso Mexessem, hora. Falava que por umas coisas assim
fosse quem fosse, e mandava todo-o- é que há questão de brigas e mortes,
mundo àquela parte, cantava o nome- desmanchando famílias. Tio Terêz nem
da-mãe; e pronto. Quando teve de voltar, não respondia nada. Como é que ela
vinha pensando assim. podia mandar Tio Terêz embora, quando
vinha aquela chuvada forte, a gente já
Chegou, e não falou nada. Não tomou a pressentia até o derradeiro ameaço dela
bênção. Pai estava lá. “— O que é que este entrando no cheiro do ar?! Tio Terêz só
menino xixilado está pensando? Tu toma perguntou: - ‘Posso nem dar adeus a
a bênção?!” Tomou a bênção, baixinho, Nhanina?...” Não, não podia, não. Vovó se
surdo. Ficava olhando para o chão. Pai endurecia de magreza, aquelas verrugas
já estava encostado nele, como um boi pretas na cara, com os compridos fios de
bravo. Miguilim desquis de estremecer, pêlo desenroscados, ela destoava na voz,
ficou em pau, como estava. Já tinha no pescoço espichava parecendo uma
resolvido. Pai ia bater, ele aguentava, não porção de cordas, um pavor avermelhado.
chorava. Pai batia até matar. Mas, na hora Miguilim mesmo começava a ter medo,
de morrer, ele rogava praga sentida. Aí Pai trás do que ouvia, que nem pragas. Ah, Tio
ia ver o que acontecia. Todos se chegaram Terêz devia de ir embora, de ligeiro, ligeiro,
para perto, até o tio Osmundo Cessim. se não o Pai já devia estar voltando por
Miguilim esperava. Duro.” (p. 120)* causa da chuva, podia sair homem morto
daquela casa, Vovó Izidra xingava Tio
Terêz de “Caim” que matou Abel, Miguilim
tremia receando os desatinos das pessoas
5. O conflito gerado pelo relacionamento grandes, tio Terêz podia correr, sair
existente entre o pai, a mãe e o tio Terêz, escondido, pela porta da cozinha...” (p. 25)*
irmão do Pai, é outro núcleo que se
destaca na narrativa. Tudo indicava que
havia alguma coisa entre a mãe e o tio
Terêz, e o pai certamente sabia. Uma vez, A mãe de Miguilim, após a partida de Tio
Miguilim viu-o bater na mãe e foi surrado Têrez, acaba se envolvendo com Lisaltino.
também. A partir daí, o tio Terêz, tão amigo O Pai descobre e a desgraça toma conta
de Miguilim afasta-se da casa. da família.
GUIMARÃES ROSA

“Quando Miguilim tornou a acordar, era Alegre era a gente viver devagarinho,
de noite, a lamparina acendida, e Vovó miudinho, não se importando demais com
Izidra estava sempre lá, no mesmo coisa nenhuma.” (p. 129)*
lugar, rezando. Ela dava água, dava caldo
quente, dava remédio. Miguilim tinha de
ter os olhos encostados nos dela. E de
repente ela disse: — ‘Escuta, Miguilim, 6. A novela se encerra com uma cena
sem assustar: seu Pai também está morto. altamente simbólica: a descoberta de que
Ele perdeu a cabeça depois do que fez, era míope e a possibilidade de uma nova
16 foi achado morto no meio do cerrado, se vida em outro lugar. Foi assim:
enforcou com um cipó, ficou pendurado
numa moita grande de miroró... Mas Deus “De repente lá vinha um homem a cavalo.
não morre, Miguilim, e Nosso Senhor Jesus Eram dois. Um senhor de fora, o claro da
Cristo também não morre mais, que está roupa. Miguilim saudou, pedindo a benção.
no Céu, assentado à mão direita!... Reza, O homem trouxe o cavalo cá bem junto.
Miguilim. Reza e dorme!’” (p. 127)* Ele era de óculos, corado, alto, com um
chapéu diferente, mesmo.

— Deus te abençoe, pequenino. Como


No final da narrativa, com a morte do pai, é teu nome?
tio Terêz retorna e passa a morar com a
família. — Miguilim. Eu sou irmão do Dito.

— E seu irmão Dito é o dono daqui?

“Tio Terêz agora estava trabalhando por — Não, meu senhor. O Ditinho está em
demais, fez ajuste com mais um enxadeiro, glória.
e ia se agenciar de garroteiro, também.
Ele tinha uma roupa inteira de couro, mais O homem esbarrava o avanço do
bonita do que a do vaqueiro Salúz; dava cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso
até inveja. — “Se daqui a uns meses sua como nenhum outro. Redizia:
mãe se casar com o Tio Terêz, Miguilim,
isso é de teu gosto?” — Mãe indagava. — Ah, não sabia, não. Deus o tenha em
Miguilim não se importava, aquilo tudo sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?
era bobagens. Todo mundo era meio um
pouco bôbo. Quando ele ficasse forte Miguilim queria ver se o homem estava
são de todo, ia ter de trabalhar com Tio mesmo sorrindo para ele, por isso é que o
Terêz na roça? Gostava mais de ofício encarava.
de vaqueiro. Se o Dito em casa ainda
estivesse, o que era que o Dito achava? — Por que você aperta os olhos assim?
O Dito dizia que o certo era a gente estar Você não é limpo de vista? Vamos até lá.
sempre brabo de alegre, alegre por Quem é que está em tua casa?
dentro, mesmo com tudo de ruim que
acontecesse, alegre nas profundas. Podia? — É Mãe, e os meninos...
GUIMARÃES ROSA
Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam você é piticego...” E ele respondeu: —
todos. O senhor alto e claro se apeou. ‘Donazinha...’” (p. 130-131)*
O outro, que vinha com ele, era um
camarada. O senhor perguntava à Mãe
muitas coisas do Miguilim.
Referências
Depois perguntava a ele mesmo: —
“Miguilim, espia daí: quantos dedos da * Todos os fragmentos foram retirados de:
minha mão você está enxergando? E ROSA, Guimarães. Corpo de Baile. Guimarães
agora?” Rosa. Vol 1. Edição comemorativa 50 anos. Ed. 17
Nova Fronteira. Rio de Janeiro, RJ. 2006.
Miguilim espremia os olhos. Drelina
e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se BORBA, J. C. HISTÓRIAS DE ITAGUARA E
esconder. CORDISBURGO. CORREIO DA MANHÃ, RIO DE
JANEIRO, 19 MAIO 1946. IEB. JGR-R2, 214.
— Este nosso rapazinho tem a vista
curta. Espera aí, Miguilim... BRAIT, Beth. Literatura Comentada. Guimarães
Rosa. Editora Abril Educação. São Paulo, SP.
E o senhor tirava os óculos e punha-os 1982.
em Miguilim, com todo o jeito.
JR, Walther Castelli. Resumos Fuvest 1996,
— Olha, agora! Vários Autores, Editora Companhia da Escola.
Campinas, SP. 1995.
Miguilim olhou. Nem não podia
acreditar! Tudo era uma claridade, tudo Manuelzão e Miguilim. <https://www.algosobre.
novo e lindo e diferente, as coisas, as com.br/resumos-literarios/manuelzao-e-
árvores, as caras das pessoas. Via os miguelim.html>
grãozinhos de areia, a pele da terra, as
pedrinhas menores, as formiguinhas MEDEIROS, Manuela Quadra de. A infância
passeando no chão de uma distância. míope de Miguilim em Campo Geral. Mafuá,
E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 19, 2013.
coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele
os óculos, e Miguilim ainda apontava, PLATÃO, Ménon. Diálogos. 8ªed. Rio de Janeiro:
falava, contava tudo como era, como Ediouro, p. 85. n/d.
tinha visto. Mãe esteve assim assustada;
mas o senhor dizia que aquilo era do SOARES, Cláudia Campos. O olhar de Miguilim.
modo mesmo, só que Miguilim também Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira.
carecia de usar óculos, dali por diante. O UFMG. Belo Horizonte, MG. 2007.
senhor bebia café com eles. Era o doutor
José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia.
Coração de Miguilim batia descompasso,
ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa,
à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio
correndo atrás, mexeu: — “Miguilim,
GUIMARÃES ROSA

Exercícios O senhor perguntava à Mãe muitas


coisas do Miguilim. Depois perguntava a
ele mesmo:
1. “De repente lá vinha um homem a
cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o – Miguilim, espia daí: quantos dedos
claro de roupa. Miguilim saudou, pedindo a da minha mão você está enxergando? E
bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem agora?”
junto. Ele era de óculos, corado, alto, com
um chapéu diferente, mesmo. ROSA, João Guimarães. Manuelzão e
18 Miguilim. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova
— Deus te abençoe, pequenino. Como Fronteira, 1984.
é teu nome?
EXERCÍCIOS

Esta história, com narrador observador


— Miguilim. Eu sou irmão do Dito. em terceira pessoa, apresenta os
acontecimentos da perspectiva de
— E o seu irmão Dito é o dono daqui? Miguilim. O fato de o ponto de vista do
narrador ter Miguilim como referência,
— Não, meu senhor. O Ditinho está em inclusive espacial, fica explicitado em:
glória.
a) “O homem trouxe o cavalo cá bem
O homem esbarrava o avanço do junto.”
cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso
como nenhum outro. Redizia: b) “Ele era de óculos, corado, alto (...)”.

— Ah, não sabia, não. Deus o tenha em c) “O homem esbarrava o avanço do


sua guarda... Mas que é que há, Miguilim? cavalo, (...)”.

Miguilim queria ver se o homem estava d) “Miguilim queria ver se o homem estava
mesmo sorrindo para ele, por isso é que o mesmo sorrindo para ele, (...)”.
encarava.
e) “Estava Mãe, estava tio Terez, estavam
— Por que você aperta os olhos assim? todos”.
Você não é limpo de vista? Vamos até lá.
Quem é que está em tua casa?
2. Figuras de Linguagem são recursos
— É Mãe, e os meninos... literários utilizados para garantir uma
maior expressividade ao texto. Nos
Estava Mãe, estava tio Terez, estavam trechos destacados abaixo, Guimarães
todos. O senhor alto e claro se apeou. Rosa fez uso de uma ou mais figura(s).
O outro, que vinha com ele, era um Assinale a alternativa em que há uma
camarada. relação incorreta entre o excerto e
uma respectiva figura de linguagem
encontrada nele:
GUIMARÃES ROSA
a) “Choveu muitos dias juntos. Chuva, condição de menino ainda menor, de forma
chuvisco, faísca – raio não se embaraçada, misturando tudo por sua
ótica desordenada, não sabendo discernir
podia falar (...)” – gradação. o vivido do imaginado.” (RESENDE, Vânia
Maria. O menino na literatura brasileira. São
b) “- Não meu senhor. O Ditinho está em Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p.31.)
glória.” – eufemismo.
Assinale a alternativa que traz a passagem
c) “O mato do morro do Mutum em branco da narrativa que confirma a opinião da
morava.” – hipérbole. ensaísta. 19

d) “Miguilim tinha sido arrancado de uma a) “[...] se recordava de sumidas coisas,

EXERCÍCIOS
porção de coisas, e estava no mesmo lembranças que ainda hoje o assustavam.
lugar.” – paradoxo. [...] Naquele quintal estava um peru, que
gruziava brabo e abria roda, se passeando,
pufo-pufo – o peru era a coisa mais vistosa
3. Assinale a alternativa INCORRETA em do mundo, importante de repente, como
relação à narrativa de Guimarães Rosa. uma estória.[...] Do Pau-Roxo conservava
outras recordações, tão fugidas, tão
a) A dimensão mítica da estória é afastadas, que até formavam sonho.”
acentuada pela presença de seu Aristeu,
figura solar, que reconhece Miguilim b) “O gato Sossõe, certa hora, entrava.
como sujeito virtual da aquisição de sua Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha,
sabedoria. censeando os ratos, com o ar. Mas, daí,
rodeando como quem não quer, o gato
b) A partir da morte de Dito, Miguilim Sossõe principiava a se esfregar em
tem motivação para inventar estórias, Miguilim, depois deitava perto, se prazia
evadindo-se, assim, da triste realidade de de ser, com aquela ronqueirinha que era a
pobreza e de perda. alegria dele, e olhava, olhava, engrossava
o ronco, os olhos de um verde tão menos
c) O desejo de saber o certo, de separar vazio – era uma luz dentrode outra, dentro
o bom do mau é um aspecto que pontua doutra, dentro outra, até não ter fim.”
a trajetória psicológica do protagonista
Miguilim. c) “Traziam o tatu, que guinchava, e com
a faca matavam o tatu, para o sangue
d) Os conflitos entre os pais de Miguilim escorrer por cima do orpo dele para
remetem a aspectos bíblicos e trágicos, dentro da bacia [...] e a mãe confirmava:
intensificando o caráter universalista da dizia que ele tinha estado muito fraco,
narrativa. saído de doença, e que o banho no sangue
vivo do tatu fora para ele poder vingar.”

4. “Voltando mais ao início da narrativa, d) “[...] – ‘Que é que você está pensando,
é interessante notar que Miguilim se Miguilim?’ – Tio Terêz perguntava. [...]
lembra de algumas passagens, na Relembrável era o Bispo – creio para ser
GUIMARÃES ROSA

bom, tão rico nas cores daqueles trajes,


até as meias dele eram vermelhas, com
fivelas nos sapatos, e o anel, milagroso,
que a gente não tinha tempo de ver, mas
que de joelhos se beijava.”

5. Sobre a obra Miguilim, a narrativa

20 I. desenvolve-se num universo fantástico,


corroborado pela subversão da linguagem.
EXERCÍCIOS

II. não retrata as experiências afetivas


entre Miguilim e as outras personagens,
pois o foco está nas ações dele.

III. é escrita em terceira pessoa, mas a


história é filtrada pela perspectiva do
menino Miguilim.

Está(ão) correta(s)

a) apenas I.

b) apenas I e II.

c) apenas II.

d) apenas III.

e) todas.
BERNARDO CARVALHO
Bernardo Carvalho
(1960-)
Nove Noites, 2002
21

A Obra e o Título Segunda Guerra e, para muitos, uma das


maiores desilusões políticas do século
“Os ficcionistas são historiadores XX. Topei com uma referência à carta de
que fingem estar mentindo, e os Einstein, por mera coincidência, logo que
historiadores, ficcionistas que fingem comecei a vasculhar a morte de Quain.
estar dizendo a verdade.”1 Ele não chegou a ver nada. O mundo dele
Ana Miranda não foi o meu. Não viu a guerra, não viu
a bomba — ainda que, na loucura final
das suas observações sobre os Krahô, e
A obra narra a investigação sobre a morte com base nas lembranças das revistas
do antropólogo americano Buell Quain, científicas que lia na adolescência,
que se suicidou em 02 de agosto de 1939, tenha tentado aplicar “os mesmos
aos 27 anos, após uma breve estada entre princípios matemáticos que governam
os índios Krahô, no Brasil. os fenômenos atômicos” aos fenômenos
sociais, detectando nos índios “síndromes
“Buell Quain se matou na noite de 2 de de comportamento cultural” análogas
agosto de 1939 — no mesmo dia em que às leis da física. Tinha um fascínio quase
Albert Einstein enviou ao presidente adolescente pela ciência e pela tecnologia.
Roosevelt a carta histórica em que Não podia ter pensado que quanto mais
alertava sobre a possibilidade da bomba o homem tenta escapar da morte mais se
atômica, três semanas antes da assinatura aproxima da autodestruição, não podia lhe
do pacto de não-agressão entre Hitler passar pela cabeça que talvez fosse esse
e Stalin, o sinal verde para o início da o desígnio oculto e traiçoeiro da ciência,
sua contrapartida, embora muito do que
observou entre os índios e associou por
1 Retirado de MIRANDA, Ana. Musa intuição à sua própria experiência pudesse
Praguejadora: a vida de Gregório de Matos /
Ana Miranda. 1.ed.Rio de Janeiro: Record, 2014.
Epígrafe.
BERNARDO CARVALHO

tê-lo levado a alguma coisa muito próxima No decorrer da história, o narrador supõe a
dessa conclusão.” (p.12)* existência de uma oitava carta, que teria
ficado nas mãos de Manoel Perna e cujo
destinatário seria o misterioso “você” a
quem o engenheiro se dirige em seu relato
Antes de dar fim a sua própria vida, Quain das nove noites partilhadas de conversas
redigiu sete cartas, em que, além de e revelações junto ao antropólogo, durante
enfatizar a inocência dos indígenas na sua a sua passagem por Carolina.
decisão fatídica, dá orientações sobre a
22 distribuição de seus bens.

Essas cartas foram endereçadas para: “Isto é para quando você vier. É preciso
estar preparado. Alguém terá que preveni-
1. a sua orientadora, Ruth Benedict, da lo. Vai entrar numa terra em que a verdade
Universidade Columbia (N.Y.); e a mentira não têm mais os sentidos
que o trouxeram até aqui. Pergunte aos
2. a dona Heloísa Alberto Torres, diretora índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe
do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar,
responsável pelo etnólogo, no Brasil; faça de novo a mesma pergunta. E depois
de amanhã, mais uma vez. Sempre a
3. ao engenheiro Manoel Perna, de quem mesma pergunta. E a cada dia receberá
o etnólogo se tornara amigo na cidade uma resposta diferente. A verdade está
de Carolina, onde havia se instalado perdida entre todas as contradições e os
durante as suas pesquisas sobre os disparates. Quando vier à procura do que
Krahô; o passado enterrou, é preciso saber que
estará às portas de uma terra em que a
4. ao capitão Ângelo Sampaio, delegado memória não pode ser exumada, pois o
de polícia de Carolina; segredo, sendo o único bem que se leva
para o túmulo, é também a única herança
5. ao pai, Eric R. Quain; que se deixa aos que ficam, como você e
eu, à espera de um sentido, nem que seja
6. ao reverendo Thomas Young, pela suposição do mistério, para acabar
missionário americano instalado com morrendo de curiosidade. Virá escorado
a mulher em Taunay, no Mato Grosso, em fatos que até então terão lhe parecido
que Quain conhecera durante uma incontestáveis.” (p.06)*
expedição à aldeia dos índios Trumai;

7. e, finalmente, a Charles C. Kaiser,


casado com sua irmã, Marion. Entretanto, ao final da narrativa, o narrador
revela que Manoel Perna não havia
deixado nenhum testemunho por escrito
e que a oitava e misteriosa carta fora
inventada.
* Ver referências.
BERNARDO CARVALHO
Buell Quain é personagem do mundo real também nem um pouco agradáveis, ao
e deixou para os estudos antropológicos lado do pai.
documentação importante sobre a língua
Krahô. − Ao final, o narrador ainda relata a sua
viagem aos EUA, na tentativa de encontrar
Nove noites é um misto de jornalismo mais informações sobre a identidade do
investigativo, memória e ficção. Como o jovem suicida.
próprio Bernardo Carvalho afirma:
− O encontro desses relatos constituem a
“Este é um livro de ficção, embora esteja narrativa ficcional. 23
baseado em fatos, experiências e pessoas
reais. É uma combinação de memória e − Yara Frateschi Vieira toca no eixo
imaginação — como todo romance, em labiríntico da narrativa, que não se deixa
maior ou menor grau, de forma mais ou decifrar linearmente: “[...] maquinaria
menos direta.” (2002, CARVALHO) destinada a desqualificar fronteiras
entre identidades e discursos, dá
simultaneamente ao leitor a sensação
de estar numa casa de espelhos, cuja
Ficção e realidade montagem inteligente permite criar um
ponto simultaneamente central e cego —
A modelagem de Nove noites compõe-se como se Narciso, afinal, se contemplasse
de 19 blocos superpostos em dois relatos: num espelho que não reflete nada”2.

1. Manoel Perna sobre as noites que − Os relatos deixados por Manoel Perna,
BuelI Quain passou ao seu lado; assim como os do Autor sobre suas
aventuras ao lado do pai, em viagens à
2. A investigação do narrador (Autor), selva assustadora em pequenos aviões
que, 62 anos após a morte do — ainda que exista o registro de uma foto
etnólogo, está disposto a descobrir sua com um índio, no livro — não podemos
em cartas perdidas, depoimentos de dar tanto crédito assim.
contemporâneos, jornais e outros
documentos, as razões desconhecidas − Desse modo, ao lado da narrativa do
que levaram o antropólogo ao seu fim que seria a busca pelo mais verídico, mais
trágico. real, mais fidedigno, vai-se construindo
a ficção, que se desdobra em tempos
− Na sua obsessiva pesquisa, o narrador diferentes, como salienta Alcir Pécora o
vai ao Xingu, onde já estivera na infância
e se mistura aos índios em busca de
informações. 2 NOVE Noites. In: ENCICLOPÉDIA Itaú
Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
− Boa parte do livro constitui-se do relato Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
sobre sua angustiante e malfadada estada <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
entre os Krahô e das suas memórias, obra67426/nove-noites>. Acesso em: 28 de
Out. 2020. Verbete da Enciclopédia.
BERNARDO CARVALHO

mais atual, em que o narrador empreende Com efeito, em Nove noites, as ameaças
a sua pesquisa, marcado pelo ambiente de uma guerra, o arbítrio da ditadura de
de desconfiança generalizada que se Vargas e a intranquilidade dos tempos
seguiu à queda do World Trade Center; em que a narrativa é construída, após o
o mais recuado, que se situa no final dos atentado de 11 de setembro, propiciam
anos 1960, quando o narrador (Autor) uma atmosfera de medo e opressão que
“é ainda uma criança e viaja com o pai paira sobre o texto:
fazendeiro pelo alto Xingu, (...)”; e um
tempo intermediário, situado no início dos “A situação dos estrangeiros no Brasil do
24 anos 1990, quando o narrador, em virtude Estado Novo era delicada. A impressão era
de uma doença degenerativa do cérebro que estavam sob vigilância permanente.
sofrida pelo pai, passa com ele alguns dias Dos jovens antropólogos de Columbia
em um quarto de hospital, “interessando- que trabalhavam no país no final dos anos
se simultaneamente por outro paciente 30, Ruth Landes foi provavelmente a que
em estado terminal, norte-americano mais sentiu na pele o clima de ignorância
como Quain, que parece esperar, há anos, e o horror, uma vez que estava envolvida
um antigo amigo, cujo nome, pronunciado pessoal e profissionalmente como os
em delírio, soa como “Bill Cohen”“. intelectuais baianos perseguidos, presos
e intimidados pelo regime sob a acusação
− Nessa perspectiva, Alcir Pécora analisa de serem comunistas. Foram eles que
que se percebe: facilitaram o seu acesso aos rituais de
candomblé, objeto da sua pesquisa. A
“(...) em algum instante súbito da correspondência dela com Ruth Benedict
leitura, que os três tempos da narração é reveladora. Numa carta de maio de
do jornalista absorvem ou ecoam as 1938, Landes menciona à orientadora
principais situações e acontecimentos ter recebido “notícias pesarosas” de
assinalados pelo enigma de Quain, de Quain — que estava retido em Cuiabá com
modo que o objeto de sua investigação uma infecção no ouvido — mas que ele
se confunde com a memória mais próprio revelaria mais detalhes a Benedict
irreparavelmente dolorosa de quem o em carta a ser remetida pela Bolívia por
investiga. Esse é o ponto sem retorno razões de segurança. Landes se desculpa
da investigação: aquele em que a pela linguagem “um tanto canhestra”,
causa do suicídio, sem se esclarecer explicando que é obrigada a escrever
pela explicação, volta a pulsar no cerne dessa maneira também por razões de
da narração. A eventual loucura da segurança”. (p.38)*
aniquilação do corpo no passado remoto
se reinstala como vírus da linguagem no
presente”.3
− Na construção desse romance de
fatos e histórias reais, vão circulando os
mistérios da vida e da morte, a ideia de
que “viver é muito perigoso”, como diria
3 Trecho de https://www1.folha.uol.com.br/ Guimarães Rosa.
fsp/resenha/rs0803200312.htm. Segredos e
Distorções, Alcir Pécora. 08/11/2003.
BERNARDO CARVALHO
− A narrativa, sobretudo, propõe múltiplos tivesse poupado esforços para tanto, e
graus de compreensão, oferecendo que essa descoberta fosse ainda pior do
ao leitor várias camadas de leitura, que tudo o que o pudesse levar à morte.
“convidando-o”, sugestivamente, a O certo é que, ao deixar a aldeia pela
completar o texto, a preencher seus última vez, ele estava fugindo. E isso eu
vazios, seus cantos e suas arestas. já lhe disse, mas repito, porque quero
que guarde bem. Quando muito, haverá
− Ao lado da tenaz ansiedade e do um lugar para uma única causa e uma
eminente suspense que a narrativa única imagem na sua cabeça. Terá que
provoca, o leitor vai acumulando uma série aprender a se lembrar dele como um 25
de reflexões sobre temores e culpas, vida homem fora do seu campo de visão, se é
e, principalmente, morte: que pretende vê-lo como eu o vi. Também
demorei a entender o que ele queria dizer
“O importante”, ele me disse ainda na com aquilo, o que havia de mais terrível
primeira noite em Carolina, sem que eu nas suas palavras: que, ao contrário dos
pudesse entender do que realmente outros, vivia fora de si. Via-se como um
falava, “é que os Trumai veem na morte estrangeiro e, ao viajar, procurava apenas
uma saída e uma libertação dos seus voltar para dentro de si, de onde não
temores e sofrimentos.” Uma vez em que estaria mais condenado a se ver. Sua fuga
havia caído doente, um de seus amigos foi resultado do seu fracasso. De certo
índios se ofereceu para esfaqueá-lo com modo, ele se matou para sumir do seu
o intuito beneficente de livrá-lo da dor campo de visão, para deixar de se ver.”
da doença. Não era à toa que matavam (p.100)*
os recém-nascidos. Pior era nascer. Ele
me disse: “Uma cultura está morrendo”.
Agora, quando penso nas suas palavras
cheias de entusiasmo e tristeza, me
parece que ele tinha encontrado um A Busca da Verdade e o
povo cuja cultura era a representação suspense
coletiva do desespero que ele próprio
vivia como um traço de personalidade. E “E já esse leitor está cheio de suspeitas,
compreendo por que quisesse tanto voltar porque o leitor de contos policiais
aos Trumai e ao inferno que me relatou. é alguém que lê com incredulidade,
Como se estivesse cego por algum com desconfiança, uma desconfiança
tipo de obstinação. Queria impedir que especial”. (BORGES, apud NUNES, 2014)
desaparecessem para sempre. O livro que
escreveria sobre eles seria uma forma de
mantê-los vivos, e a si mesmo.” (p.50)*
− Essa “desconfiança especial” de que
fala Borges provém do fato de que a
narrativa policial se desenvolve de modo
“Também temia que a morte fosse, ao a que, aos olhos do leitor, o enigma, o
contrário, a descoberta do que até então mistério, o crime pareça ser resolvido
não tinha conseguido ver, embora não
BERNARDO CARVALHO

por uma operação puramente lógica e algumas viagens, alguns contatos, e aos
intelectual. poucos fui montando um quebra-cabeça e
criando a imagem de quem eu procurava.
− O detetive (ou aquele que busca Muita gente me ajudou. Nada dependeu
resolver o mistério) é dotado de um de mim, mas de uma combinação de
impressionante (quase sempre até mesmo acasos e esforços que teve início no dia
fantástico) raciocínio hipotético-dedutivo, em que li, para o meu espanto, o artigo
ele é uma máquina de raciocinar. da antropóloga no jornal e, ao pronunciar
aquele nome em voz alta, ouvi-o pela
26 − Essa é a grande herança de Edgar AlIan primeira vez na minha própria voz.” (p.12)*
Poe.

− O leitor, de todo modo, acompanhando


a narrativa, acompanha também a E, depois, quase ao fim do livro:
investigação, transformando-se assim
numa espécie de parceiro do detetive,. “De posse da informação, escrevi uma
Por isso ele se torna “automaticamente” carta ao filho do fotógrafo, em Nova York,
desconfiado, incrédulo, afinal a chave para na tentativa de esclarecer a relação entre
o mistério pode estar ali, bem na cara, o velho e Buell Quain, se é que havia
num simples detalhe que poderia passar alguma, porque em momento nenhum
despercebido. deixei de desconfiar da possibilidade,
ainda que pequena, de uma confusão ou
− Mas por que o leitor de Nove Noites de um delírio da minha parte. Podia ter
deveria se aproximar de um leitor de ouvido errado, os meses que precederam
ficção policial? a morte do meu pai foram especialmente
tensos, e eu não andava com a cabeça no
− Há uma morte, um suicídio cujos lugar. Esperei em vão uma resposta. Nesse
motivos não são claros. meio tempo, minha pesquisa me levou
para outras frentes: vasculhei o arquivo
− Mas há algo mais: há o relato de de Heloísa Alberto Torres, fui a Carolina e
uma busca que se confunde com a visitei os Krahô. Ao voltar sem respostas
investigação policial: a busca pela escrita da aldeia, em setembro, achei que só a
de um romance. família de Quain poderia me esclarecer
o que faltava no meu quebra-cabeça.
− Essa particularidade é de grande Tudo o que eu precisava era do teor de
importância, pois é ela que faz do livro de uma suposta oitava carta, além das que o
Bernardo Carvalho um tipo estranho de etnólogo enviara ao pai, a um missionário
romance policial. e ao cunhado antes de morrer (por que
não teria escrito antes à irmã? Ou teria
− Logo nas primeiras páginas, um dos escrito uma oitava carta à irmã?), e de um
narradores admite: eventual diário que, segundo a mãe, ele
sempre mantinha..” (p.137)*
“Os papéis estão espalhados em arquivos
no Brasil e nos Estados Unidos. Fiz
BERNARDO CARVALHO
− A comparação da investigação/narrativa aponta para uma indiferença entre a
com a imagem do quebra-cabeça é, aqui, verdade e a mentira, cujos sentidos,
fundamental. extraviados, já não existem mais; a
segunda afirma que, de fato, a verdade
− Pensemos em Nove noites como um está perdida.
livro-quebra-cabeça.
− É preciso, assim, “estar preparado”:
− As diferentes peças estão fora de lugar, quando você, leitor, vier para a leitura é
é preciso ordená-las, combiná-las de preciso estar atento aos sinais que, ao
modo a que algo se forme, uma imagem se longo da narrativa, vão sendo deixados 27
revele. pelos narradores.

− Esse é o trabalho do leitor. − Mas é preciso estar duplamente atento:


primeiro, à maneira dos detetives, é
− Contudo, é preciso estar prevenido: a necessário prestar cuidadosa atenção
imagem pode ser pouco nítida, o mapa aos fatos narrados (que são muitos e se
pode ser impreciso, a frase final inacabada. proliferam) e às formas como eles são ou
podem ser encadeados, como uma peça
− É possível que as peças não formem um se conecta na outra; depois, tomando
todo, que algo continue sempre faltando. uma distância maior da narrativa, observar
Não é essa, afinal, a advertência que se como ela é construída, suspeitar de sua
estampa logo na abertura do livro, feita estrutura e do sentido das palavras.
por uma voz misteriosa e dirigida a um
interlocutor também desconhecido? − Afinal, quem é o narrador de Nove
noites?

− Duas vozes parecem se diferenciar.


“Isto é para quando você vier. É preciso Serão mesmo duas?
estar preparado. Alguém terá que preveni-
lo. Vai entrar numa terra em que a verdade − E o que liga essas vozes ao suicídio do
e a mentira não têm mais os sentidos etnólogo americano Buell Quain, que é,
que o trouxeram até aqui. Pergunte aos aparentemente, o problema central do
índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe livro?
passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar,
faça de novo a mesma pergunta. E depois
de amanhã, mais uma vez. Sempre a Nove mil e uma noites
mesma pergunta. E a cada dia receberá
uma resposta diferente. A verdade está Recapitulemos, tendo em vista essa dupla
perdida entre todas as contradições e os atenção exigida ao leitor, o percurso das
disparates.”(p.12)* páginas iniciais da narrativa.

Vejamos que peças (que pistas) podemos


enumerar tal qual um investigador — a fim
− Destaquemos deste início as duas de montarmos uma primeira versão do
frases sobre a verdade: a primeira delas nosso quebra-cabeça, do nosso enigma.
BERNARDO CARVALHO

1. Já na primeira página o leitor é as circunstâncias e as vantagens de ter


informado de uma morte, o suicídio um aliado em mim. Só então aceitaria a
do antropólogo Buell Quain, “que se minha amizade, a falta de outra. Posso ser
matou sem explicações aparentes”, em um humilde sertanejo, amigo dos índios,
plena selva brasileira, em 1939: mas tive educação e não sou tolo. Não
guardo rancor de ninguém, muito menos
“Que o antropólogo americano Buell do dr. Buell, meu amigo, a despeito de
Quain, meu amigo, morreu na noite de tudo o que possa ter pensado ou escrito
2 de agosto de 1939, aos vinte e sete e a que só tive acesso pela incerteza das
28 anos. Que se matou sem explicações traduções do professor Pessoa a procurar
aparentes, num ato intempestivo e de uma nos papéis do morto uma explicação que
violência assustadora. Que se maltratou, a eu mesmo fiz o que pude para esconder.
despeito das súplicas dos dois índios que Era preciso que ninguém achasse um
o acompanhavam na sua última jornada de sentido. É preciso não deixar os mortos
volta da aldeia para Carolina e que fugiram tomarem conta dos que ficaram.” (p.08)*
apavorados diante do horror e do sangue.
Que se cortou e se enforcou. Que deixou
cartas impressionantes mas que nada
explicam. Que foi chamado de infeliz e 4. Buell Quain deixou algumas cartas
tresloucado em relatos que eu mesmo tive antes de se matar. O narrador, por
a infelicidade de ajudar a redigir para evitar motivos não muito claros, guardou
o inquérito. ” (p.06)* uma delas, justamente endereçada ao
seu interlocutor;

“Queria isentar os índios de qualquer


2. A narração, simulando um escrito culpa, constituir seus executores
(um “testamento”), é dirigida a um testamentários e instruí-los sobre a
interlocutor desconhecido, por quem o disposição de seus bens. São cartas em
narrador espera (Apresentada no início que dá instruções aos vivos sobre como
dessa análise); proceder depois da sua morte.” (p.13)*

3. O narrador não é nomeado, apresenta-


se apenas como amigo do morto:
5. Surge outra voz narrativa (as vozes são
“O representante da Condor nos diferenciadas graficamente através
apresentou, mas o etnólogo não me viu. do uso do itálico, que caracteriza a
Apertou a minha mão como a de qualquer primeira delas e aproxima-a da imagem
outro e sorriu, sorria para todos, mas não de um manuscrito);
notou a minha presença. Mal ouviu o meu
nome. Se o tivesse entendido, teria na 6. Os narradores diferenciam-se também
certa caçoado, porque apesar de tudo não temporalmente: o primeiro narra em
lhe faltava humor. O meu nome é motivo 1945, seis anos após a morte de Quain;
de chacota fora daqui. E ele tinha acabado o segundo, em 2001, quase sessenta e
de chegar. Só mais tarde é que entenderia dois anos depois do suicídio;
BERNARDO CARVALHO
7. O segundo narrador não conhecia fotografias. O seu retrato não estava entre
o antropólogo morto, de quem tem elas. Havia a foto de uma casa de madeira
notícia através de um artigo de jornal na praia; havia os retratos dos negros
(embora sugira sutilmente que já tinha do Pacífico Sul, que lhe contaram lendas
escutado antes o seu nome); e canções; havia retratos dos Trumai
do alto Xingu, mas não havia nenhuma
8. O interesse do segundo narrador pela foto de família, nem do pai, nem da mãe,
história de Quain não é explicitado. Há nem da irmã, nem de nenhuma mulher.
uma menção a um provável interesse É possível que tivesse queimado esses
literário, mas ele dá a entender que retratos junto com as outras cartas que 29
isso é apenas um pretexto e que suas recebera antes de se matar. Os índios
verdadeiras intenções são outras, não não tocaram em nada. Foram à minha
reveladas; casa sem parar nem falar com ninguém
pelo caminho — estavam com medo,
“Ninguém me perguntava a razão. Eu dizia achavam que pudessem ser incriminados
que queria escrever um romance. Diante —, o que não impediu que a notícia logo
do meu entusiasmo, que a outros podia se espalhasse, e em pouco tempo uma
parecer doentio e inexplicável, acho que pequena multidão de curiosos cercava a
os dois de início ficaram apenas um pouco minha modesta morada. Mandei chamar o
ressabiados.”(p.66)* professor Pessoa às pressas, que depois
de ler uma das cartas deixadas pelo infeliz,
em inglês, acalmou os índios e garantiu
a todos que eles não tinham nenhuma
9. O segundo narrador relata as responsabilidade na trágica ocorrência.
circunstâncias da morte de Quain Ele deixou cartas para os Estados Unidos,
com maior riqueza de detalhes, para o Rio de Janeiro, para Mato Grosso
segundo cartas e depoimentos a que e duas para Carolina, uma para o capitão
tem acesso, ao contrário do primeiro Ângelo Sampaio, delegado de polícia, e a
narrador, que apenas alude aos fatos; outra para mim.(p.09-10)*

“No dia 9 de agosto daquele ano, cinco


meses depois de ele ter chegado a
Carolina, uma comitiva de vinte índios 10. Fica evidente que o segundo narrador
entrou na cidade no final da tarde. Traziam empreenderá uma busca (uma
a triste notícia e, na bagagem, os objetos investigação) em torno da história de
de uso pessoal do dr. Buell, que eu mesmo Quain;
recebi e contei, com lágrimas nos olhos:
dois livros de música, uma Bíblia, um 11. E traçado um perfil do jovem etnólogo;
par de sapatos, um par de chinelos, três
pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma “O mais incrível, nos nascimentos, é a
capa preta, uma toalha, quatro lenços, euforia cega com que os pais encobrem
dois pares de meias, um suspensório, o risco e a imponderabilidade do que
dois ternos de brim, dois ternos de acabaram de criar, a esperança com
casimira, duas cuecas e um envelope com que o recebem e que os faz transformar
BERNARDO CARVALHO

em augúrio promissor a incapacidade demais. Na solidão, vivia acompanhado


de prever o futuro que ali se anuncia e dos seus fantasmas, via a si mesmo como
a impotência de todas as medidas de a um outro de quem tentava se livrar.
precaução nesse sentido. Se assim não Arrastava alguém no seu rastro. Carregava
fosse, é bem provável que o ser humano um fardo: Cãmtwyon. “Toda morte é
já tivesse desaparecido da face da Terra, assassínio”, ele escreveu a Ruth Benedict,
pelas mãos de mães zelosas e assassinas. sobre os Tramai.” (p.101)*
Buell Halvor Quain nasceu em 31 de maio
de 1912, às 1 lh53 da noite, no hospital
30 de Bismarck, capital da Dakota do
Norte. A certidão de nascimento diz que 13. Os pais de Quain separam-se pouco
foram tomadas as devidas precauções antes do suicídio;
contra oftalmia neonatal, àquela altura
um procedimento de praxe contra a “Fannie e Eríc Quain se separaram pouco
transmissão de doenças venéreas aos antes do suicídio do filho. Aparentemente
recém-nascidos. Quase cinco anos depois inconformado com a morte de Buell — a
do suicídio, numa carta de 31 de maio despeito do que depois revelaria a filha
de 1944, dia do aniversário dele, sua Marion a Ruth Be-nedict, numa carta
mãe escreveu a Heloísa Alberto Torres: estranha e cheia de amargura —, o pai
“Faz trinta e dois anos esta noite que ele lançou mão de seus conhecimentos e
nasceu. Em pequeno, sempre respondia apelou a um influente senador da Dakota
às pessoas que lhe perguntavam quando do Norte, Gerald Nye, para que entrasse
tinha nascido: ‘A dez minutos de junho’. Há com um pedido de investigação junto ao
cinco anos, ele me escreveu de Carolina a Departamento de Estado. O processo não
última carta de aniversário”. (p.16)* foi adiante, uma vez constatadas as provas
irrefutáveis do suicídio.” (p.17)*

12. Quain é referido como possuidor de


um estado de espírito instável; 14. A mãe é caracterizada como “uma
mulher aflita”. O narrador suspeita
“A saída de Buell Quain da aldeia pela dessa ansiedade, sugerindo que a mãe
última vez lembra uma fuga. Sua teme que algo seja descoberto;
caminhada pela mata acompanhado de
dois rapazes que havia contratado para 15. Quain faz referência, em uma carta, a
guiá-lo até Carolina se parece com uma problemas familiares;
luta contra o tempo ou contra alguma
coisa no seu encalço. Se estava realmente “Dois meses antes de se matar, o
louco, e a despeito do clichê psicológico, antropólogo mencionou em suas cartas
era então uma fuga de si mesmo, do duplo “questões familiares” que o obrigavam
que o mataria na eventualidade de uma a interromper o trabalho com os índios e
nova crise, que se aproximava. Deve ter voltar aos Estados Unidos. A dona Heloísa,
sentido a iminência de uma nova crise e ele escreveu em 5 de junho de 1939:
decidido ir embora antes que fosse tarde “Os dois contos que a senhora mandou
BERNARDO CARVALHO
podem tornar possível o meu retorno a Assim poderíamos prosseguir listando,
Nova York pela Bahia ou por Belém. Por passo a passo, os dados fundamentais de
mais que quisesse voltar ao Rio de Janeiro, nossa leitura, até o fim do livro.
questões familiares exigem a minha
presença nos Estados Unidos. Eu havia Mas os elementos dos primeiros
mencionado alguma coisa sobre doença fragmentos narrativos são suficientes
na família, mas também não é isso que me para refletirmos sobre alguns aspectos
preocupa. Meus pais acabam de passar iniciais.
por um processo de divórcio que durou
seis meses. Estão com quase setenta Atentemos para o fato de que a narração 31
anos, e se odiaram por trinta anos ou mais. se faz em blocos narrativos, através de
Meu pai sofre de uma forma atenuada de duas vozes diferentes, que se alternam.
degenerescência senil — talvez seja o que
o tenha levado a escarafunchar o passado Os blocos narrativos são numerados,
nos últimos seis meses. A senhora pode remetendo o leitor, instantaneamente,
me achar materialista ao extremo, mas ao título do livro, que é marcado por um
tenho que voltar à América na esperança número.
de salvar uma pequena propriedade e pô-
la a serviço da etnologia. Temo, entretanto, Contudo, a numeração dos blocos não
que seja tarde demais”. (p. 18)* corresponde ao número do título: ao todo,
eles contabilizam dezenove.

Somente no oitavo bloco teremos


16. Numa outra carta, Quain se diz a informação de que as nove noites
portador de uma doença contagiosa, aludidas no título referem-se às noites
da qual estaria morrendo; que Buell Quain passou em companhia do
engenheiro Manoel Perna, na cidade de
17. O testemunho dos índios parece Carolina:
desmentir o álibi da doença:
segundo eles, não havia sintomas de “A primeira, na véspera de sua partida para
doença física, mas uma “prostração a aldeia. Depois mais sete durante a sua
psicológica” decorrente das últimas passagem por Carolina em maio e junho,
cartas enviadas pela família para o quando vinha à minha casa em busca de
etnólogo; abrigo, e a última quando o acompanhei
pelo primeiro trecho de sua volta à aldeia,
18. O narrador sugere através da carta quando pernoitamos no mato, debaixo do
do engenheiro Manoel Perna, que céu de estrelas.” (p.41)*
o suicídio está ligado a “questões
familiares”;

19. Quain destruiu as cartas recebidas. − Durante as nove noites, Quain


conversa e faz confissões ao engenheiro,
estabelecendo uma proximidade entre
os dois, tanto que Manoel Perna irá se
BERNARDO CARVALHO

considerar seu amigo, oferecendo sua − D’As mil e uma noites, o autor subtrai
escuta como um consolo à imensa solidão essa outra noção de tempo, cuja unidade
do etnólogo. não é a hora, mas a noite, e que não se
confunde com a noite linear e cronológica.
− As cartas escritas antes do suicídio “Se faço as contas, vejo que foram apenas
serão confiadas a Manoel Perna, assim nove noites. Mas foram como a vida toda.”
como será ele quem os índios irão (p.41)*, confessa Manoel Perna.
procurar primeiro para comunicar o
suicídio e entregar os objetos pessoais de − Assim, as fugazes nove noites ganham
32 Quain. uma extensão inesperada, a duração de
toda uma vida.
− Tudo isso faz do engenheiro uma
peça-chave da história, o que o torna − É necessário relembrar os três tempos
(saberemos com certeza apenas no que formam a narrativa.
bloco onze) o primeiro narrador, aquele
que escreve o testamento e espera por − Mas, além dessa partição em três
um interlocutor misterioso com uma das tempos, podemos pensar ainda no próprio
cartas de Quain. presente da narração, o momento em
que ela escoa e que articula os outros
− Assim, temos aí uma relação que deve tempos, o presente que implica a escrita
ser explicitada: as noites estão ligadas do suposto romance do narrador-jornalista
à produção de um discurso, à fala, às (afinal o leitor tem em mãos um livro, um
confissões e às histórias contadas por romance).
Quain ao seu amigo.
− Sem falar que há também a narração
− Posteriormente (uma vez que ficamos de Manoel Perna, que se passa em 1945,
sabendo dessas noites e dessas histórias como vimos, mas que evoca o passado de
pelo testamento de Manoel Perna, ou seja, Quain e também tempos depois de sua
de segunda mão), as noites ligam-se à morte.
produção do próprio texto do engenheiro:
se contarmos apenas os blocos referentes − Esses desdobramentos temporais
ao seu testamento, eles totalizam em nove. podem parecer por demais complicados,
se tentarmos estabelecer uma hierarquia
− Assim, talvez possamos dizer que entre eles, saber o que vem antes e o que
cada bloco é uma noite, embora eles vem depois.
não correspondam cronologicamente às
noites vividas. − Na verdade, essa tentativa vale pouco,
pois o que importa aqui é justamente o
− E que as noites são noites do discurso, efeito de uma outra temporalidade.
são o próprio texto.
− Esse efeito é conseguido, em parte, pela
− Para melhor entendermos essa ideia, intercalação das duas vozes narrativas
é necessário evocar aqui uma referência (elas se repetem e se complementam),
importante para o livro: As mil e uma noites.
BERNARDO CARVALHO
que são constantemente interrompidas A minúcia contribui, contudo, para um
uma pela outra. sentimento de inquietação, uma vez
que as datas e dados se proliferam
− A interrupção revela uma “variação exageradamente, sendo rara a página que
rítmica” à maneira de Sheherazade não apresenta (ou reapresenta, porque
(lembrando que cada voz narrativa elas se repetem) referências temporais e
comporta vários tempos, assim como geográficas.
cada história de Sheherazade levava a
outras histórias) e uma noção de tempo Esse excesso de informações, portanto,
abismado, vertiginoso, como se o leitor alimenta a experiência de um tempo 33
fosse jogado incessantemente em outro confuso e inexato, em que o leitor
tempo, num vai e vem que o faz perder a se depara constantemente com a
referência temporal. necessidade de se situar, e os seus
parâmetros porque são muitos — pouco
− Assim, o número que qualifica as lhe servem de amparo.
noites bem como a numeração dos
blocos narrativos vem apenas iludir Pensar a questão do tempo em Nove
o leitor, fazendo-o acreditar que uma noites envolve também pensar o recurso
quantificação é possível (na verdade, do suspense, da hesitação e da ansiedade.
trata-se do que não pode ser quantificado
— as nove noites são “como a vida O suspense que caracteriza Nove noites
toda”), que uma ordenação é possível (na aproxima-se mais da arte de narrar de
verdade, o que há é um emaranhado de Sheherazade do que do romance policial,
fatos, que nunca acabam de se esclarecer, embora o livro de Bernardo Carvalho se
de se ordenar). filie também, evidentemente, às boas
histórias de investigação.
− Alcir Pécora observa:
Mas o suspense em Nove noites tem a ver
“Isso posto, pode-se dizer que o livro de com o sentido de “cessar, interromper”
Bernardo Carvalho se apresenta como (o tempo, as vozes narrativas), não
um misto de romance-reportagem e de para revelar pouco a pouco a solução
romance policial, selado pela obsessão do mistério, mas para manter o leitor
investigativa do narrador-jornalista continuamente “suspenso no ar”, como
e pelo suspense do andamento das indica a origem latina do verbo suspender.
descobertas, que é, em parte, sustentado
pelo minucioso balizamento das datas e
circunstâncias da investigação.”4 Cronologia da Obra

“Para orientação de leitura, apresentamos


a seguir a cronologia dos eventos da vida
de Bueel Quain e do Narrador:
4 Trecho de https://www1.folha.uol.com.br/ 1912 - 31 de maio: nascimento de Buell
fsp/resenha/rs0803200312.htm. Segredos e Quain em Bismarck, capital da Dakota do
Distorções, Alcir Pécora. 08/11/2003.
BERNARDO CARVALHO

Norte, nos Estados Unidos; os pais, Eric e acusam os indígenas de terem roubado o
Fannie, já tinham uma filha, Marion. gado.
1926-1930 - Buell Quain faz varias Andrew Parsons viaja ao Brasil ele nunca
viagens: Europa, Canadá, Oriente Médio e mais voltaria aos Estados Unidos (cf. p.
Rússia. 151).
1931 - Março: para comemorar a 1945 - Manoel Perna escreve sua carta;
aprovação nos exames universitários, ele morreria no ano seguinte,
Buell Quain viaja com alguns amigos; 1960 - Nascimento do narrador
nessa viagem, conhece o fotógrafo que se 1967 - Julho: primeira visita do narrador à
34 tornaria seu amigo íntimo; no mesmo ano, região do Xingu, onde o pai buscava terras
viaja para Xangai, como marinheiro, em um para comprar.
vapor. 1970 - O pai do narrador funda uma
1936 - Quain passa dez meses nas ilhas Fiji fazenda no Xingu.
1938 - Fevereiro: Quain chega ao Brasil, 1972 - Nova viagem do narrador ao Xingu,
em pleno carnaval, hospedando-se em com o pai.
uma pensão barata, no bairro da Lapa, no 2001 - 12 de maio: o narrador lê um artigo
Rio de Janeiro. que cita o suicídio de Quain.
Agosto-novembro: Quain passa um tempo 02 de agosto: o narrador visita a aldeia
com os Trumai, no Xingu. Krahô em companhia de um antropólogo
07 de novembro: Quain volta do Xingu e (trata-se da mesma data do suicídio de
se dirige ao Rio de Janeiro, chamado pelas Buell Quain)
autoridades locais. 2002 - 19 de fevereiro: o narrador vai aos
1939 - Março: Quain chega a Carolina Estados Unidos para tentar se encontrar
08 de março: Quain põe a com o filho do fotógrafo que teria sido
correspondência em dia, enquanto amigo de Buell Quain.” (COUTO, 2020)
espera mantimentos e montarias a fim de
seguir para a aldeia de Cabeceira Grossa;
no mesmo dia, assiste a homenagens
ao escritor maranhense Humberto de As Pistas deixadas através da
Campos. Intertextualidade
Separação dos pais de Quain, pouco antes
de seu suicídio. As referências devem ser percebidas pelo
05 de junho: carta de Quain a Dona Heloísa leitor tanto como indícios do autor — pois
Alberto Torres, comunicando a necessidade alimentam sua escrita, seu estilo e sua
de retornar aos Estados Unidos devido a visão de mundo — como também pistas
“questões familiares” (p.21). literárias, que nos fornecem, através de
31 de julho: Quain sai da aldeia indígena de outros textos, caminhos que iluminam a
Cabeceira Grossa, em direção a Carolina. trajetória da nossa leitura.
02 de agosto: suicídio de Quain.
09 de agosto: comitiva de índios chega a Vejamos algumas das referências mais
Carolina para comunicar a morte de Quain. explícitas:
1940 - 25 de agosto: a aldeia em que Buell
Quain tinha passado seus últimos dias 1. O clássico livro Triste trópicos, de
sofre ataque a mando de fazendeiros, que 1955, do etnólogo Claude Lévi-
BERNARDO CARVALHO
Strauss, que levou o estruturalismo 2. O filme Fitzcarraldo, do diretor Werner
para a etnologia e para a análise dos Herzog, produção alemã de 1982,
mitos. que conta a história de um homem
obstinado a encontrar um caminho
Ecos: a condição de BuelI como através do Amazonas para construir na
pesquisador estrangeiro no Brasil, as região um teatro de ópera.
dificuldades no contato entre a civilização
branca e os povos indígenas, a violência Ecos: o Xingu como cenário de um mundo
traduzida na relação “eu” x “outro”; selvagem e inóspito, o retrato de homens
conduzidos por miragens e obsessões 35
“Duas vezes entrevistei Lévi-Strauss (Quain e o jornalista);
em Paris, muito antes de me passar pela
cabeça que um dia viria a me interessar 3. As peças de Nelson Rodrigues,
pela vida e pela morte de um antropólogo conhecido por sua obra e vida
americano que ele conhecera em sua trágicas, em que abundam suicídios,
breve passagem por Cuiabá, em 1938. assassinatos, relações incestuosas,
Muito antes de eu ouvir falar em Buell prostituição, etc.
Quain. Numa das entrevistas, a propósito
de uma polêmica sobre o racismo e a Ecos: a hipótese de uma possível relação
xenofobia na França, em que tinha sido incestuosa entre BuelI Quain e sua irmã,
mal interpretado, Lévi-Strauss reafirmou sua possível homossexualidade; as
a sua posição: “Quanto mais as culturas “perversões” e a vida promíscua do pai do
se comunicam, mais elas tendem a se jornalista;
uniformizar, menos elas têm a comunicar.
O problema para a humanidade é que haja “Em 1947, em nova passagem pelo Rio,
comunicação suficiente entre as culturas, Métraux jantou com Bernard Mishkin,
mas não excessiva. Quando eu estava no jovem antropólogo da Universidade
Brasil, há mais de cinquenta anos, fiquei Columbia, que ele considerava rancoroso,
profundamente emocionado, é claro, com pretensioso e fofoqueiro. Mishkin
o destino daquelas pequenas culturas aproveitou a ocasião para lhe contar
ameaçadas de extinção. Cinquenta anos sobre a juventude de Wagley: “Mãe
depois, faço uma constatação que me divorciada, infância pobre e negligente”.
surpreende: também a minha própria Em seguida, deu a ficha completa de
cultura está ameaçada”. Dizia que toda Quain, morto havia oito anos: “Filho
cultura tenta defender a sua identidade e de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe
originalidade por resistência e oposição neurótica e dominadora. Obriga-se à
ao outro, e que havia chegado a hora de homossexualidade com negros, dos quais
defender a originalidade ameaçada da ele tem horror. Garoto de talento, poeta”.
sua própria cultura. Falava da ameaça do Métraux não se conteve em suas notas:
islã, mas podia estar falando igualmente “Como caluniador, não há ninguém melhor
dos americanos e do imperialismo cultural do que Mishkin”.(p.116)*
anglo-saxão.” (p.46)*
BERNARDO CARVALHO

4. O poema político e pessimista “Elegia travestimento) e troca de papéis (sugestão


1938”, de Drummond. da homossexualidade de Quain);

Ecos: o narrador cita boa parte do poema 6. A personagem (real) e ao filme,


e nos conduz a lê-lo pensando no perfil de Karim Ainoux, Madame Satã,
angustiado de Quain (Quain chega ao “expoente da malandragem, do crime
Brasil em 1938), mas podemos associá-lo e da homossexualidade” da Lapa
também à busca fracassada do jornalista, carioca.
que se depara com o impossível da
36 descoberta; Ecos: Quain desembarca no RJ. e
hospeda-se na Lapa, bairro conhecido, na
“Cada um lê os poemas como pode e época, pelos habitantes de baixa renda
neles entende o que quer, aplica o sentido e pela frequência de tipos marginais,
dos versos à sua própria experiência como prostitutas, homossexuais e
acumulada até o momento em que os bandidos. Madame Satã, que era um negro
lê. Num fim de semana na praia, durante nordestino, também pode ser associado
uma noite de insônia, semanas depois de aos negros das ilhas Fiji, visitados por
começar a investigar a morte de Quain, Quain, impregnando- os de uma forte
e o mistério que a meu ver tinha ficado conotação sexual;
adormecido por sessenta e dois anos, abri
ao acaso uma antologia do Drummond na “Isto foi o que ele viu. Chegou ao Rio
página da “Elegia 1938”: “Trabalhas sem de Janeiro às vésperas do Carnaval de
alegria para um mundo caduco,/ onde as 1938 e se hospedou numa pensão da
formas e as ações não encerram nenhum rua do Riachuelo, na Lapa. O bairro era
exemplo./ Praticas laboriosamente os conhecido por suas “pensões do amor
gestos universais,/ sentes calor e frio, barato”, como as definiu Luís Martins,
falta de dinheiro, fome e desejo sexual./ àquela altura célebre cronista do bas-
[...] Coração orgulhoso, tens pressa de fond e da prostituição carioca. Ao pé
confessar tua derrota/ e adiar para outro da carta de apresentação que trazia,
século a felicidade coletiva./ Aceitas a assinada por Franz Boas, o jovem etnólogo
chuva, a guerra, o desemprego e a injusta escreveu à mão o seu novo endereço
distribuição/ porque não podes, sozinho, no Rio: “B. H. Quain, 107 Rua Riachuelo
dinamitar a ilha de Manhattan”.(p.102)* (Pensão Gustavo)”. Na mesma época,
Banana da terra, filme em que Carmen
Miranda foi imortalizada com bananas
na cabeça enquanto cantava “O que é
5. O filme Banana da terra, de 1938, que a baiana tem?”, entrou em cartaz no
com Carmem Miranda, que difundiu cine Metro-Passeio, no centro da cidade.
no exterior a imagem do Brasil e do O filme inspirou os foliões, que saíram
brasileiro como terra e povo exóticos. às ruas da Lapa, em blocos, travestidos
de baianas, com a cabeça coberta de
Ecos: Quain chega ao Brasil às vésperas frutas. Ainda no Carnaval de 1938, um dos
do carnaval, festa associada à liberação principais personagens da mitologia local,
sexual (através da fantasia e do expoente da malandragem, do crime e
BERNARDO CARVALHO
da homossexualidade do bairro, ganhou disse ao velho — que, como eu, o havia
o concurso do baile do teatro República, escutado impassível por mais de duas
próximo à praça Tiradentes, com uma horas — que voltava no dia seguinte,
fantasia de lantejoulas inspirada num despediu-se de mim com um gesto de
morcego do Nordeste, de onde vinha, e daí cabeça e foi embora. Fiquei perplexo.”
em diante passou a ser chamado Madame (p.127-128)*
Satã, por associação ao filme homônimo
de Cecil B. DeMille.” (p.108-109)*

8. Machado de Assis, sobretudo por Dom 37


Casmurro e Memórias Póstumas de
7. O conto “O companheiro secreto” e o Brás Cubas.
livro Lord Jim (1900), do escritor inglês
de origem polonesa Joseph Conrad. Ecos: a referência a Machado é breve,
através de um conto que não é nomeado.
Ecos: o conto é identificado pelo jornalista Como a obra de Machado é fortemente
como um de seus contos preferidos. associada à questão da ambiguidade
Lord Jim, “romance de aventura”, como feminina e da infidelidade amorosa,
consideram os críticos, reverbera no podemos imaginar que conto seria esse:
livro um certo tom de suspense e da “Trio em lá menor”? As opções são muitas.
ambiguidade da linguagem, além dos
episódios da infância do jornalista com seu Ecos: a hipótese de que o suicídio de
pai “aventureiro’ (esse de fato não é um Quain estaria relacionado a uma suposta
bom qualificativo). Certamente Conrad é traição. Das muitas versões e tentativas
uma das grandes referências estilísticas de compreender quem são os envolvidos,
do autor Bernardo Carvalho; há um misterioso trio que se forma: Quain,
seu amigo fotógrafo e uma prostituta.
“O rapaz lia em inglês. Para meu espanto, Desse triângulo, há ao que tudo indica um
logo reconheci as primeiras linhas de filho, cuja paternidade é posta em dúvida.
“O companheiro secreto”, de Joseph
Conrad, um dos meus contos preferidosde 9. O livro Moby Dick, de 1851, do
adolescência. O rapaz não tinha nenhum escritor americano Herman Melville,
sotaque. Nem em português nem em especialmente o capítulo “A brancura
inglês. Era bilíngüe. Falava como um da baleia”, em que o autor discorre
americano do Meio-Oeste. “Ainda pude sobre a cor branca, associando-a, ao
vislumbrar um lampejo do meu chapéu mesmo tempo, à beleza, ao fascínio
branco deixado paratrás, marcando o e ao horror (Moby Dick é uma “baleia
lugar onde o companheiro secreto da branca”).
minha cabine e dos meus pensamentos,
como se fosse o meu segundo eu, havia Ecos: o caráter obsessivo e cego da
imergido na água para cumprir a sua pena: investigação do jornalista, assim como
um homem livre, um nadador orgulhoso do livro em si, que guarda um “ponto
dando braçadas rumo a um novo destino.” branco”, opaco e inapreensível aos olhos
Quando terminou o conto, levantou-se, do narrador e do leitor.
BERNARDO CARVALHO

Assim, depois de passarmos por todas estada entre os Trumai. O curioso é que,
essas referências, podemos concluir que ao ser obrigado a interromper o trabalho,
o autor, no caso de Nove noites, não se tivesse se esquecido de lhes fazer justo
situa nem fora nem exatamente dentro do essa pergunta: se houvera alguma vez
espaço da ficção, mas, entre um e outro, um suicídio entre eles. Em todo caso,
ele compactua com o jogo de duplicação ficou com o sentimento de que tinham o
proposto pelo livro, levando-nos, por fim, a temperamento suicida e estavam prontos
investigar aquele que parece ser o centro para se matar. “O importante”, ele me
de irradiação (ou o ponto de confluência) disse ainda na primeira noite em Carolina,
38 dos duplos: a personagem BuelI Quain. sem que eu pudesse entender do que
realmente falava, “é que os Trumai veem
na morte uma saída euma libertação dos
A Linguagem e o Gênero seus temores e sofrimentos.”(p.50)*

Caracteriza-se pela objetividade, pela


ausência de redundâncias e preciosismos
linguísticos, podendo-se observar, Em relação ao gênero, Nove noites é um
inclusive, algumas infrações à norma culta, romance que, num primeiro momento
como o uso de pronome oblíquo no início parece associar-se à investigação
de frases e a utilização, por algumas vezes, jornalística, quer pela objetividade,
de termos chulos. quer pela presença do relato factual e
referencial.
Além disso, há citações de termos
indígenas, de costumes e tradições desse Entretanto, o narrador quando se
povo: envereda pelo relato autobiográfico,
utiliza-se de uma linguagem que se eleva
“Me lembro ainda de ele ter comentado, a graus subjetivos, o que afasta a narrativa
perplexo, que os Trumai, apesar de da dimensão imparcial, jornalística.
estarem em vias de extinção, continuavam
fazendo abortos e matando recém- Cabe ressaltar que o romance, embora
nascidos. E que, talvez sem saber, tenha como centro o suicídio de Buell
estivessem cometendo um suicídio Quain, não deixa de apresentar passagens
coletivo, vivendo um processo coletivo marcadas pelo humor e pela ironia,
de autodestruição, já que, ao contrário de principalmente quando o narrador (Autor)
outras tribos, não tinham quase nenhum se dispõe a relatar os dias em que passou
contato com os brancos, não conheciam junto aos índios Krahô.
nada além dos rios Coliseu e Culuene,
e não sofriam nenhum processo de Esses momentos são marcados por um
aculturação, embora fossem subjugados nítido desajuste entre costumes, culturas,
pelos Kamayurá e em parte assumissem comportamentos e identidades.
a cultura deles. Além dessa forma
coletiva e inconsciente, ele me disse que “Nove pessoas dormiam na casa. Como
não observou nenhum caso de suicídio era tempo de seca, o verão deles, o casal
propriamente dito durante a sua breve dormia num jirau debaixo de um alpendre
BERNARDO CARVALHO
lateral. As crianças ficavam em redes na
sala, onde também estavam pendurados
os peixes secos com cheiro de podre. Comenta o narrador (Autor), que os
Sobravam mais dois quartos. Num deles, índios vivem num estado irremediável de
ficavam as duas filhas mais velhas com carência:
suas crianças de colo. Não entendi direito
onde estavam os maridos, se é que havia. “De volta a São Paulo, depois de minha
Pendurei a minha rede no outro quarto. O passagem pela aldeia, comecei a receber
chão era de terra batida. As noites eram telefonemas a cobrar. (...) Pediam coisas.
um festival de sons íntimos, roncos, peidos (...) Como se fossem agora meus filhos. (...) 39
e choros de crianças. Na sala, os meninos São os órfãos da civilização. (...) Há neles
nas redes se debatiam em pesadelos. Na uma carência irreparável. Não querem ser
última noite, outra filha do casal e o genro, esquecidos. Agarram-se como podem a
que estavam em viagem quando cheguei, todos os que passam pela aldeia, como
juntaram-se às duas irmãs e seus filhos se os visitantes fossem os pais há muito
de colo, amontoados no quarto ao lado do desaparecidos”. (p.97)*
meu. E ao choro das crianças somaram-se
os gemidos do sexo.” (p.81)*

Conclusão
Entretanto, a narrativa não deixa de expor
também os diversos problemas por que Embora a narrativa de Nove noites retrate
passam os índios, causados pelo contato épocas distintas, estas são marcadas pelo
com a civilização: medo, pela insegurança e pela opressão.

“O Xingu, em todo caso, ficou guardado Um vasto repertório de citações, alusões


na minha memória como a imagem do e comentários a fatos e personagens
inferno. Não entendia o que dera na históricos nos são apresentados: Vargas,
cabeça dos índios para se instalarem lá, Estado Novo, a megalomania militarista
o que me parecia uma burrice incrível, após o golpe de 1964, até chegar
se não um masoquismo e mesmo uma aos ataques terroristas aos EUA e o
espécie de suicídio. Não pensei no assunto consequente clima paranoico de ameaça.
até o antropólogo que por fim levou aos
Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: Nesse sentido, reiteramos: Nove noites,
“Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? mais do que se apegar aos mistérios
Porque foram empurrados, encurralados, acerca de um suicídio, retrata um mundo
foram fugindo até se estabelecerem que, contraditoriamente, ao mesmo tempo
no lugar mais inóspito e inacessível, o em que se globaliza, se desagrega.
mais terrível para a sua sobrevivência,
e ao mesmo tempo a sua única e última
condição, O Xingu foi o que lhes restou.”
(p.64-65)*
BERNARDO CARVALHO

Referências

* Todos os fragmentos foram retirados da


edição: CARVALHO, Bernardo. Nove Noites:
romance / Bernardo Carvalho. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

BRASILEIRO, Marcus Vinicius Câmara.


Duplicidade do olhar em Nove noites (2002),
40 de Bernardo Carvalho. Utah State University
– Logan – Utah – Estados Unidos da América.
Navegações, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 125-133,
jul.-dez. 2014.

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. 1ª edição,


São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 169.

COUTO, Fernando Marcílio Lopes. Nove noites/


Bernardo Carvalho; análise de Fernando
Marcílio Lopes Couto. -1.ed.- São Paulo: SOMOS
Sistema de Ensino, 2020.

MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Cadernos de


Literatura Comentada: vestibular 2005 UFMG
/ Luiz Carlos Junqueira, Gilberto Xavier. – Belo
Horizonte: Horta Grande, 2004.88p.

NOVE Noites. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural


de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo:
Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67426/
nove-noites>. Acesso em: 28 de Out. 2020.
Verbete da Enciclopédia.

NUNES, Lidiane Carvalho. O CRIME COMO


MÉTODO: UM ESTUDO DA LITERATURA
POLICIAL NA OBRA DE MAYRANT GALLO.
Departamendo de Letras e Artes. Programa
de pós-graduação em estudos literários
(UEFS). 2014.
BERNARDO CARVALHO
Exercícios d) Esse romance retrata a morte violenta
e inexplicável que se impôs o jovem
antropólogo Buell Quain.
1. A partir da leitura da obra Nove noites, é
INCORRETO afirmar que:
3. Com base na leitura de Nove noites, de
a) O relato do narrador-jornalista Bernardo Carvalho, é INCORRETO afirmar
desdobra-se em três tempos diferentes que, nessa obra, a linguagem:
articulados pelo enigma da morte de Buell
Quain. a) Reflete uma alternância de fragmentos 41
jornalísticos e tons memorialísticos.
b) O narrador-epistolar apresenta uma

EXERCÍCIOS
escrita fidedigna com relação aos b) Manifesta-se através de tempos que
depoimentos do antropólogo americano. coexistem, num ritmo quebrado e não
linear.
c) O engenheiro sertanejo escreve em
meados dos anos 40, quando pressente c) Apresenta-se em diversas passagens
a iminência da própria morte e relembra como descritiva e objetiva.
as “nove noites” em que estivera com o
etnólogo. d) Afirma-se na teatralidade que veicula o
comportamento das personagens.
d) O jornalista que escreve em 2002 não é
o único a ocupar a posição de narrador.
4. A partir da leitura da obra Nove noites,
de Bernardo Carvalho, é INCORRETO
2. Todas as alternativas apresentam afirmar que:
características de Nove noites, de
Bernardo Carvalho, EXCETO: a) O suicídio de Buell Quain trata-se do
ponto de partida dessa narrativa: um caso
a) Virtualmente, o “você” a quem a carta trágico, perdido nos anos e na memória.
se dirige inclui não apenas o esperado
amante de Quain, como também qualquer b) O autor insere fotos e personagens da
um que esteja em posição de lê-la. década de 30 na história, como pessoas
reais e de um fato real e registrado.
b) Nessa narrativa tudo é ou se torna
suspeito; todas as personagens c) Buell Quain é personagem do mundo
aparentam saber mais do que dizem e real, etnólogo reconhecido que deixou
toda a investigação parece estar fadada a estudos antropológicos e documentação
não descobrir e sim e encobrir. importante sobre a língua Krahô, falada
por indígenas brasileiros.
c) O narrador-jornalista é o único
personagem que apresenta um discurso d) Buell Quain conviveu com os mais
verossímil, isento de suspeitas e de ilustres antropólogos que lhe foram
motivos secretos.
BERNARDO CARVALHO

contemporâneos, como o Professor 7. Todas as alternativas apresentam uma


Castro Faria e Lévi-Strauss. relação corretamente estabelecida entre
as personagens de Nove noites e suas
características principais, EXCETO:
5. Sobre a narrativa Nove noites, é
INCORRETO afirmar que: a) Manoel Perna – o silêncio do sertanejo
era a prova de sua amizade que ia
a) Os três tempos do relato do narrador- conquistando Quain.
jornalista não absorvem aspectos que
42 marcam a vida do antropólogo americano. b) Ruth Landes – jovem geógrafa que
estava no Brasil com o objetivo de estudar
b) Em seu primeiro parágrafo uma os rios e florestas da região norte.
EXERCÍCIOS

advertência ao leitor ou ao pesquisador


que decidiu investigar as razões do c) Professor Pessoa – traduziu uma das
suicídio do antropólogo: trata-se de um cartas, em inglês, deixada por Buel e
território do indiferenciado, em que falso e acalmou os índios, garantindo que eles
verdadeiro combinam. não tinham nenhuma responsabilidade na
tragédia.
c) O narrador-repórter, em busca de
respostas sobre a morte de Quain, d) Buell Quain – achava que estava
entrevistou parentes e antropólogo, sendo perseguido ou vigiado onde quer
pesquisou documentos e concluiu que que estivesse e era marcado por uma
imigrar do jornalismo para a ficção era inquietação existencial.
uma saída honrosa.

d) Ao procurar traços da identidade de


Quain, o narrador-jornalista expõe a
própria intimidade e os mecanismos da
criação literária.

6. Todas as alternativas retratam


questões abordadas pela obra Nove
noites, de Bernardo Carvalho, EXCETO:

a) Choque cultural.

b) Memorialismo.

c) Nacionalismo xenófobo.

d) Verdade e mentira.
FERNANDO PESSOA
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mensagem, 1934
43

I. O Movimento Literário A revista Orpheu, a despeito de seu


fracasso comercial e breve história, deixou
A Primeira Fase do Modernismo uma imensa contribuição para a literatura
Português foi chamada de Orfismo, devido moderna. Foi em suas páginas que a
ao nome da Revista Orpheu, que teve seu poesia rompeu com os padrões estéticos
lançamento em 1915. A revista foi uma e apresentou novos contornos ao
espécie de porta-voz dos precursores do abandonar a poesia de caráter histórico.
modernismo, extremamente influenciados Nessa nova poesia, o homem e seu
pelas modernas correntes europeias, espanto de existir são a principal temática,
entre elas o futurismo e o cubismo. bem como a preocupação com o futuro.

Mais do que uma revista, Orpheu foi Essa ruptura causou grande
um marco: símbolo do nascimento de estranhamento entre a crítica literária e
uma geração de escritores que trouxe chocou a burguesia portuguesa, habituada
para Portugal a essência do movimento ao estilo passadista de sua literatura.
modernista, além de grandes revelações
literárias, entre elas, Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. II. O Autor

Embora a revista contasse com outros Sua poesia é marcada pelo ceticismo, pela
colaboradores, foram esses três escritores sensação do tédio, pela ideia de que o
que, com suas obras, delinearam os novos poeta é um desajustado, marcado para a
rumos a serem seguidos pelos autores solidão e o desamparo.
portugueses e deram início a um processo
de reflexão. Pessoa ele - mesmo apresenta duas
tendências:
crítica sobre as causas da decadência e da
estagnação intelectual de Portugal.
FERNANDO PESSOA

− de um lado, adere às correntes IV. A Obra


modernistas embora conservando certos
traços simbolistas e impressionistas; − A leitura pressupõe um conhecimento
prévio da História de Portugal.
− de outro, cultiva um lirismo nacional,
de sentido lusitano e voltado para o − A obra nos traz uma visão de Portugal
misticismo. oferecida por um anunciado ‘supra
Camões’, posto, propositadamente, à
venda em 01 de Dezembro de 1934, dia da
44 III. Visão do autor Restauração da Independência.

“Ha só uma espécie de propaganda com − O livro, de estrutura simbólica e


que se pode levantar o moral de uma hermética, foi destinado a servir de roteiro
nação — a construção ou renovação, e iniciático à visão de um Quinto Império
a difusão consequente e multimoda, de que não seria outro que o império lusíada
um grande mito nacional. De instinto, a sublimado.
humanidade odeia a verdade, porque
sabe, com o mesmo instinto, que não ha − Tentando a épica sem abandonar uma
verdade, ou que a verdade é inatingível. atitude lírica, o autor insere-se na mesma
O mundo conduz-se por mentiras; quem corrente.
quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que
mentir-lhe delirantemente, e fá-lo-á com − A ditadura franquista colocara-o “dentro
tanto mais êxito, quanto mais mentir a si do patriotismo literário” (Carta a Armando
mesmo e se compenetrar da verdade da Côrtes-Rodrigues, Apêndice, p.89)
mentira que criou. Temos, felizmente, o
mito sebastianista, com raízes profundas − Depois, o saudosismo decerto ajudou
no passado e na alma portuguesa. Nosso a despertar nele quaisquer tendências
trabalho é pois mais fácil; não temos messiânicas herdadas com o sangue
que criar um mito, senão que renová- judaico. (“Ascendência geral – misto
lo. Comecemos por nos embebedar de fidalgos e judeus” – diz uma nota
d’esse sonho, por o integrar em nós, por biográfica escrita pelo poeta em 1935).
o encarnar. Feito isso, por cada um de
nós independentemente e a sós consigo, − Mensagem é uma homenagem do poeta
o sonho se derramará sem esforço em à sua pátria.
tudo que dissermos ou escrevermos, e a
atmosfera estará criada, em que todos − Nele, Pessoa revê a história do seu
os outros como nós o respirem. Então país, passando pelo período da mitológica
se dará na alma da nação o fenômeno fundação de Lisboa por Ulisses, pela
imprevisível de onde nascerão as Novas época das navegações, os diversos
Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o monarcas e figuras da corte, pelo mito
Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. do Sebastianismo e do Quinto Império, e
Sebastião.” (PESSOA, 1978) urge Portugal a ir ao encontro do glorioso
futuro que, segundo ele, lhe estava
reservado.
FERNANDO PESSOA
− Repleto de símbolos e signos místicos e nem programa governamental, tendo
esotéricos – até mesmo na sua estrutura, sido, sobretudo, um movimento a favor da
que respeita os números importantes monarquia e contra a república.
para o esoterismo –, Mensagem revisita
a forma épica, dando-lhe contornos e Defendia a consolidação da autoridade
tratamentos especiais (a estrutura dos do Governo, a limitação de liberdades
versos, por exemplo, é completamente individuais, como a da imprensa, e a
modernista) e revela uma visão de mundo reforma da organização administrativa
muito particular do próprio poeta, sendo o e do ensino. Tentava também atacar o
mar um dos personagens principais. rotativismo partidário comum na altura. 45

Começou por ser um movimento


esquerdista, passando depois à direita
“Em Mensagem, a ordem que estrutura sob forma de ditadura. Esta última forma
o poema e lhe dá sentido é de natureza que assumiu provocou a morte daquele
hermética, mas a expressão dela contém que tinha sido um dos principais apoiantes
e explicita a visão ocultista ou mítica desta conceção política: o rei D. Carlos,
que a alimentam. Assim, a dificuldade e assassinado em 1908. O seu filho, D.
a obscuridade de Mensagem são mais Manuel II, assim que se tornou rei eliminou
acidentais do que intrínsecas e provêm o franquismo e afastou o seu inspirador,
mais dos mitos ou das referências João Franco, dos círculos do poder e de
histórico-culturais a que aludem do que da influência no País.
sua irremediável opacidade.” (LOURENÇO,
2015) Esta ideologia teve uma grande influência
no sidonismo (Sidônio: eleito presidente
em maio de 1918 e assassinado em
dezembro do mesmo ano), movimento
posterior que continuou o franquismo
V. O que foi o Franquismo sob uma nova faceta não só ideológica,
mas essencialmente mais populista e
“Nome dado a dois projetos políticos na granjeadora de simpatias em setores mais
Península Ibérica no século XX. Um foi o variados da sociedade portuguesa, ainda
de João Franco Pinto Castelo-Branco, em que enfrentando resistências”1.
vigor entre 1901 e 1908, em Portugal. Em
Espanha, entre 1947 e 1975, existiu um
outro com idêntica designação, a partir da VI. Divisão da Obra
figura de Franco, general que governou o
país durante esse período de forma férrea. “O meu livro Mensagem chamava-se
primitivamente Portugal. Alterei o título
Esta ideologia, em Portugal, tinha um porque o meu velho amigo Da Cunha Dias
cariz liberal e progressista, mas era anti-
partidária, o que lhe configurava uma
imagem em certa medida ditatorial. Nunca 1 In: https://www.infopedia.pt/$franquismo,
teve, no entanto, uma estruturação efetiva acessado em 13/05/2021 (adaptado)
FERNANDO PESSOA

me fez notar – a observação era por igual II. Os castelos (oito poemas)
patriótica e publicitária – que o nome
da nossa pátria estava hoje prostituído III. As quinas (cinco poemas)
a sapatos (...). Concordei e cedi, como
concordo e cedo sempre que falam com IV. A coroa (um poema)
argumentos. Tenho prazer em ser vencido
quando quem me vence é a Razão, seja V. O timbre (três poemas)
quem for o seu procurador.” (LANCASTRE,
1996) − Na época da publicação de Mensagem,
46 era este o brasão de armas de Portugal,
que está presente na bandeira do país até
a atualidade:
Epígrafe

“Benedictus Dominus Deus Noster qui


dedit nobis signum”: Bendito o Senhor
Nosso Deus que nos deu o sinal.

− O livro contém 44 poemas, agrupados


em três partes: Brasão (19 textos), Mar
Português (12 textos) e O Encoberto (13
textos).

− Cada um desses poemas pode ser lido


isoladamente, mas em conjunto eles vão − Perceba que o escudo é dividido em
adquirindo outros e novos significados. dois campos: um com sete castelos, outro
com cinco escudetes, chamados quinas.

1. Brasão − Os sete castelos representam as


fortalezas que estavam em poder dos
− Epígrafe: “Bellum sine Bello”: guerra árabes no Algarve e que D. Afonso
sem guerra. Henriques conquistou: Albufeira, Aljezur,
Cacela, Castro Marim, Estômbar, Paderne
O Brasão é uma representação e Sagres.
emblemática que se reveste de
símbolos a fim de identificar famílias, − Já as cinco quinas simbolizariam os
indivíduos, regiões ou povos por seus cinco reis mouros derrotados pelo D.
atos de nobreza e heroísmo. Neste Afonso Henriques na Batalha de Ourique,
título, Pessoa procura identificar de enquanto os cinco pontos brancos nas
onde vem a nobreza de Portugal. quinas remeteriam às chagas de Cristo.

− Subdivide-se em cinco partes menores: − Mas o brasão que o autor toma com
referência é o que aparece na Copilaçam
I. Os Campos (dois poemas) de todaslas obras de Gil Vicente, de 1562.
FERNANDO PESSOA
− Nele, além do escudo com os castelos Este diz Inglaterra onde, afastado,
e as quinas, aparecem a coroa e o grifo, A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
animal mitológico com corpo de leão e
cabeça e asas de águia. Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.” (p.35)*

47

− O poema está construído com base


numa personificação da Europa, como
se se tratasse de um corpo humano. Esta
personificação permite uma aproximação
da realidade da geografia física com o
mito que deu origem à designação Europa
e possibilita o realce de algumas partes
− Pensando então nas cinco partes de desse corpo.
“Brasão”, podemos entendê-la como a
interpretação poética do brasão presente
nas obras de Gil Vicente.

− Na primeira parte do livro, representa-se


o início da história de Portugal.

− Os heróis portugueses vão sendo


apresentados, um a um, como que a
construir a própria essência de Portugal.

I. Os Campos (dois poemas)


− A descrição vai-se desenvolvendo do
geral para o particular. O sujeito poético
refere, logo no início do poema, o tema
O dos Castelos gerador da descrição – «A Europa» – e
apresenta os dois traços definidores:
“A Europa jaz, posta nos cotovelos: «jaz, posta nos cotovelos» e «fitando».
De Oriente a Ocidente jaz, fitando, Estes dois traços serão desenvolvidos
E toldam-lhe românticos cabelos nas segunda, terceira e quarta estrofes.
Olhos gregos, lembrando. A segunda estrofe caracteriza os dois
«cotovelos», nomeia-os, indica a sua forma
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado; * Ver referências.
FERNANDO PESSOA

e concretiza a visualização (o direito, Baste a quem baste o que Ihe basta


representando a Inglaterra e o esquerdo, O bastante de Ihe bastar!
a Itália, locais onde se encontram as raízes A vida é breve, a alma é vasta:
culturais que constituem a identidade Ter é tardar.
europeia). A terceira e quarta estrofes
organizam-se em volta do verbo «fitar», Foi com desgraça e com vileza
desvendando a simbologia do olhar no Que Deus ao Cristo definiu:
poema e justificando a importância do Assim o opôs à Natureza
rosto e do olhar. E Filho o ungiu.” (p.36)*
48
− O poema assenta em duas imagens
contraditórias: uma imagem de lassidão,
de dormência transmitida pelo verbo “Esse poema ressalta o valor do
jazer e uma outra de expectativa, de sofrimento, marca de um simulacro de
captação e de compreensão traduzida contrato entre o destinador Deus e um
pelo verbo fitar o qual aponta, igualmente, sujeito tido como eleito. Veja-se que há
para uma renovação. Estas duas imagens uma doação pelo primeiro, que implica
simbolizam a conjugação do passado com um dever para o segundo (“Os deuses
o presente e com o futuro, denunciando vendem quando dão”), sem o qual não
a importância de Portugal na construção se tem direito à retribuição (“Compra-se
desse futuro. a glória com desgraça”). Há, por isso, a
ideia de uma espécie de prova que implica
− A importância de Portugal, rosto da suportar o sofrimento para merecer a
Europa e, portanto, a face visível de tudo aguardada retribuição. Os versos finais,
o que ela representa, é posta em relevo por sua vez, evocam o exemplo prototípico
pelo monóstico final do poema, sendo do Cristo para reafirmar o sistema de
Portugal visto também como cabeça valores do contrato de que Portugal é
(rosto) da Europa. A organização descritiva também partícipe (“Foi com desgraça e
inicial do poema, de maior fôlego, vai-se com vileza / Que deus ao Cristo definiu
condensando, para se apoiar, na parte / Assim o opôs à Natureza / E Filho o
final, no rosto e no olhar. A diminuição ungiu” ). O simulacro de contrato entre o
de versos nesta última parte indicia a destinador-manipulador Deus e o sujeito
valorização crescente que se prenuncia e Portugal perpassa a obra como um
cuja tónica é colocada no último vocábulo todo. Esse é o caso de vários poemas da
do poema – Portugal. primeira parte (“Brasão”) que ressaltam
a atuação divina na constituição e na
consolidação do Império Português, isto é,
a doação divina que estabelece o contrato
O das quinas com esse povo.” (BRITO; LARA, 2019)

“Os Deuses vendem quando dão.


Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são Conclusão: Os dois poemas iniciais
Só o que passa! apresentam o escudo português,
FERNANDO PESSOA
destacando seus campos e estabelecendo − “Ulisses” é, na retomada poética da
um jogo entre materialidade e história da nação portuguesa na obra, uma
espiritualidade, entre a história e o espécie de mito fundador. Trata-se de
misticismo, entre a realidade e o sonho. uma retomada poética da lenda de que o
personagem da Ilíada e da Odisseia teria
II. Os castelos (oito poemas) fundado Lisboa.

1. Ulisses − O poema apresenta, no que seria a


origem mítica de Portugal, uma espécie de
2. Viriato fusão dos planos transcendente (lenda/ 49
mito) e real, o que singulariza a nação
3. O Conde D. Henrique portuguesa (referida como um nós: “nos
bastou”; “nos criou”) em relação a outros
4. D. Tareja povos.

5. D. Afonso Henriques − A fusão entre o plano transcendente


e o real se revela em múltiplos oximoros
6. D. Dinis e outras formas de coexistência de
contrários: nada/tudo; brilhante/mudo
7. (I) D. João, o Primeiro (manifesto/ não manifesto); corpo morto/
vivo; por não ser/existindo (imaginário/
8. (II) D. Filipa de Lencastre real); sem existir/bastou (imaginário/
real); não ter vindo/foi vindo (inércia/
movimento, ação).

Ulisses − É essa origem singular, tanto real


quanto transcendente, que vai, na obra,
“O mito é o nada que é tudo. dar início à retomada messiânica da
O mesmo sol que abre os céus história de Portugal, que passa a ser
É um mito brilhante e mudo? apresentada como uma nação eleita pela
O corpo morto de Deus, instância divina.
Vivo e desnudo.
“Há entretanto na mensagem dois tipos
Este, que aqui aportou, de heroísmo. Normalmente os heróis
Foi por não ser existindo. agem pelo instinto, sem terem a visão
Sem existir nos bastou. de sentido e alcance de seus atos na
Por não ter vindo foi vindo marcha dos tempos: Viriato é portador do
E nos criou. instinto obscuro que vai animar o Conde
D. Henrique. ”Todo começo é involuntário.
Assim a lenda se escorre / Deus é o agente. / O herói a si assiste,
A entrar na realidade, vário / E inconsciente.” (p.21). Já D. Duarte
E a fecundá-la decorre. é um herói voluntário, unidade moral que
Em baixo, a vida, metade se opõe ao mundo, cumprindo o seu dever
De nada, morre.” (p.39)* contra o Destino e gozando a recompensa
apenas na ideia de o ter cumprido.
FERNANDO PESSOA

Subordinado à “regra de ser Rei”, a si como um ritual de sagração. Decorre daí


mesmo se edificou.” (COELHO, 1977) a instauração de um dever fazer por parte
do destinador que o sujeito assume como
querer.

III. As quinas (cinco poemas) − O percurso do sujeito no texto está,


como se vê, ligado a um contrato com
1. D. Duarte, Rei de Portugal. um destinador divino, que implica, ao
mesmo tempo, desgraça e honra. Essa
50 2. D. Fernando, Infante de Portugal. organização narrativa está, assim, na base
da tematização da partida para a batalha
3. D. Pedro, Regente de Portugal. contra os árabes por Fernando, infante
de Portugal, também chamado de Infante
4. D. João, Infante de Portugal. Santo, justamente por ele ter caído em
cativeiro e morrido nas mãos dos inimigos.
5. D. Sebastião, Rei de Portugal.
IV. A Coroa (um poema)

D. Fernando, Infante de Portugal


Nun’Álvares Pereira
“Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra. “Que auréola te cerca?
Sagrou-me seu em honra e em desgraça, É a espada que, volteando,
Às horas em que um frio vento passa Faz que o ar alto perca
Por sobre a fria terra. Seu azul negro e brando.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e Mas que espada é que, erguida,


doirou-me Faz esse halo no céu?
A fronte com o olhar; É Excalibur, a ungida,
E esta febre de Além, que me consome, Que o Rei Artur te deu.
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar. ‘Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá Ergue a luz da tua espada
Em minha face calma. Para a estrada se ver!” (p.57)*
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.” (p.50)*
− A coroa é um símbolo de poder e
autoridade dos governantes desde os
tempos pré-históricos. Mas também
− No poema, observamos, em termos era dada ou posta a indivíduos que não
narrativos, uma doação de competência eram monarcas, caso em que a coroa era
modal ao sujeito, que é concretizada símbolo de grandes feitos heroicos ou
FERNANDO PESSOA
conquistas de coragem. Por uma razão de O limite da terra a dominar
orgulho e nobreza, Pessoa deu a coroa a O mar que possa haver além da terra.
Nuno Álvares e não a um rei ou príncipe.
Seu formidável vulto solitário
− Neste poema, o poeta refere uma Enche de estar presente o mar e o céu
auréola. A auréola que cerca Nuno E parece temer o mundo vário
Álvares Pereira é, ao mesmo tempo, Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.”
uma auréola de santidade (do guerreiro (p. 62)*
tornado monge) e uma auréola de
combate. Quer ele dizer que a santidade 51
que Nuno alcançou, foi à custa dos seus
atos de guerreiro, pois é a sua espada que “São as potências do invisível, o mito
desenha o círculo diáfano por cima da (“nada que é tudo”), a lenda, a chama
sua cabeça, destacando-o – o santo – do que desce a iluminar o herói, são essas
comum dos homens. potências que, fecundando a realidade,
tornam a vida digna de ser vivida, ou
− Conhecendo a origem da auréola que melhor, transformam a existência, mero
cerca Nuno Álvares Pereira – a espada – vegetar, em vida, quer dizer, promessa do
na segunda estrofe, Pessoa fala-nos dessa que não há, perseguição do Impossível,
mesma espada. Diz-nos que a espada não grandeza de alma insatisfeita. “Braços
é uma espada qualquer, não é a espada de cruzados, fita além mar”. Olhar sem alvo
um comum cavaleiro, mas “é Excalibur, a definido, olhar típico de Mensagem.”
ungida”, a espada do “Rei Artur”. (COELHO, 1977)

− Pessoa pede a Nuno Alves Pereira


(a quem chama, por antonomásia, S.
Portugal), nos dois últimos versos, que
erga a luz da sua espada, para mostrar que 2. Mar Português
caminho seguir no futuro.
Não há divisões nesta parte do livro, sendo
V. O timbre (três poemas) composto por doze poemas.

1. A cabeça do grifo: O Infante D. Henrique. 1. O Infante.

2. Uma asa do grifo: D. João, o Segundo. 2. O Horizonte.

3. Outra asa do grifo: Afonso de 3. Padrão


Albuquerque.
4. O mostrengo.

5. Epitáfio de Bartolomeu Dias.


D. João, o Segundo.
6. Os Colombos.
“Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra-- 7. Ocidente.
FERNANDO PESSOA

8. Fernão de Magalhães. Do mar e nós em ti nos deu sinal.


Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
9. Ascensão de Vasco da Gama. Senhor, falta cumprir-se Portugal!” (p.69)*

10. Mar Português.

11. A última nau. − Nesse poema, fica claro o papel de


destinador concretizado pela instância
12. Prece. divina, que, com a finalidade de realizar
52 um plano narrativo, manipula o sujeito
− Epígrafe: “Possessio Maris”: a posse do Portugal (por metonímia, o Infante) e
mar. doa-lhe a competência modal, etapa
concretizada como ritual religioso. A
− Narração épica dos feitos oceânicos manipulação que estabelece o contrato
dos portugueses (o apogeu da pátria). é ainda concretizada em versos como:
Portugal desafia o mar ignoto e triunfa “Quem te sagrou criou-te português/ Do
sobre a Distância que, em sentido literal, é mar e nós em ti nos deu sinal”.
a descoberta dos caminhos marítimos da
Ásia e da América. − As descobertas e a superação dos
limites da navegação, transformação que
− Porém, em sentido figurado representa nessa ótica libera o homem europeu das
o cumprimento de uma missão religiosa amarras da natureza, compreende, assim,
(ou esotérica) simbolizada pela cruz das uma performance que o sujeito realiza
velas das naus. como instrumento divino na Terra e com
vistas a um (pretenso) benefício de toda a
− Esta parte foca personalidades e humanidade.
acontecimentos dos Descobrimentos
como o infante D. Henrique, Bartolomeu
Dias, Vasco da Gama, o Adamastor ou o
sofrimento do povo português. Os Colombos

“Outros haverão de ter


O que houvermos de perder.
O Infante Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Foi achado, ou não achado,
Deus quis que a terra fosse toda uma, Segundo o destino dado.
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma. Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
E a orla branca foi de ilha em continente, O Longe e faz dele história.
Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E por isso a sua glória
E viu-se a terra inteira, de repente, É justa auréola dada
Surgir, redonda, do azul profundo. Por uma luz emprestada.” (p.74)*
Quem te sagrou criou-te português.
FERNANDO PESSOA
− Nesse poema, o simulacro de contrato Quantos filhos em vão rezaram!
que configura a eleição transcendente Quantas noivas ficaram por casar
de Portugal pode ser observado na Para que fosses nosso, ó mar!
distinção entre um nós/portugueses e
um desvalorizado outros: os Colombos, Valeu a pena? Tudo vale a pena
ao mesmo tempo uma referência ao Se a alma não é pequena.
navegador espanhol e uma generalização, Quem quer passar além do Bojador
por metonímia, para navegantes/reinos. Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
− Os demais navegadores são Mas nele é que espelhou o céu.” (p.78)* 53
reconhecidos como anti-sujeito, já que a
performance (descobertas da navegação)
que eventualmente realizam não está
ligada a um contrato com o destinador. − Esse poema relaciona o plano narrativo
de conquistas da navegação portuguesa
− No poema, o narrador promove o ao contrato com a instância divina.
desvelamento de um estado ilusório Tal contrato, que se inicia com uma
(parecer + não ser): no nível do parecer, o presumida eleição dos portugueses
sujeito demonstra ter o favor divino, algo como representante de Deus na Terra, é
concretizado como “glória” e “auréola retomado agora em uma sanção.
dada”; no nível do ser, no entanto, a glória
e a auréola não provêm da instância − Nela o narrador, na condição de
divina, sendo consideradas apenas “justa destinador-julgador, reconhece a
auréola dada /Por uma luz emprestada”. realização da performance (“Para que
Elas não são, portanto, reconhecidas como fosses nosso, ó mar!” ) em conformidade
autênticas, como retribuição da parte de com os valores do contrato estabelecido
um destinador divino. com o destinador-manipulador (Deus),
o que implica um resultado conquistado
− Em última análise, essa sanção negativa com sofrimento (“lágrimas de Portugal”;
do outro reafirma o simulacro de contrato “mães que choraram”; “filhos em vão
entre o sujeito (Portugal) e o destinador rezaram”; “noivas ficaram por casar”.
divino, o que leva aquele a tomar seu
percurso como a expressão da intenção
divina, algo que o tornaria merecedor de
uma retribuição da parte do destinador Prece
Deus.
“Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
Mar Português O mar universal e a saudade.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal Mas a chama, que a vida em nós criou,
São lágrimas de Portugal! Se ainda há vida ainda não é finda.
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, O frio morto em cinzas a ocultou:
FERNANDO PESSOA

A mão do vento pode erguê-la ainda. anunciada por símbolos e profecias,


tornaria Portugal numa grande potência
Dá o sopro, a aragem? ou desgraça ou a nível mundial, quer no plano material
[ânsia?, (como no passado) quer espiritualmente –
Com que a chama do esforço se remoça, o Quinto Império.
E outra vez conquistemos a Distância?
Do mar ou outra, mas que seja nossa!”.(p.80)*

“Chamou-se Quinto Império ao sonho


54 mítico do Padre António Vieira (1608-
− O fazer persuasivo empreendido pelo 1697) segundo o qual Portugal, através
sujeito em relação ao destinador ocorre de D. João IV (1604-1656), consumaria
como súplica que lembra a conquista já a realização do reino universal de
realizada. Cristo. Seria um império espiritual,
construído com esforço pelo homem, que
− É possível notar que o aspecto acabado abandonaria o reino terreno para viver no
da performance significa, paralelamente, divino. A pátria, como símbolo materno,
um ostracismo para o sujeito Portugal, liga-se à terra acolhedora e ao paraíso
que, por isso, solicita uma espécie perdido (Éden) que concentra todas as
de restabelecimento do contrato: possibilidades de satisfação dos desejos
figurativamente reacender a “chama”. humanos. O Quinto Império remete para
a unidade e perfeição: é uma hipótese
− O poema “Prece” ressalta, assim, o de transformação e de purificação da
fazer persuasivo do sujeito em busca Humanidade. Em última análise representa
de retribuição: a retomada de uma a relação harmoniosa entre o Homem e o
proeminência análoga à do passado. Essa mundo, entre este e Deus.
expectativa própria da espera messiânica, O desaparecimento de D. Sebastião
por sua vez, está ancorada na crença em (1554-1578) significou, para o país, a perda
uma condição de nação eleita. da identidade nacional. Reencontrar um
novo império, através de Portugal, seria a
apropriação definitiva da essência do mito
3. O Encoberto sebastianista.

− Epígrafe: “Pax in Excelsis”: paz nas Assim, para Pessoa estavam criadas
alturas. as condições para fazer de Portugal um
Paraíso na Terra – o Quinto Império.”2
− Contém poemas de índole profética e
sebastianista e divide-se em três partes:
“Os Símbolos”, “Os Avisos” e “Os Tempos”.

− Refere-se à nostalgia da grandeza


perdida, ao presente de sofrimento, de
mágoa, que é preciso mudar e ao sonho 2 In: https://sentirportugus.blogspot.com/
de um império espiritual. A mudança, search?q=o+das+quinas
FERNANDO PESSOA
Estrutura da Terceira Parte: Os encobertos

Os Símbolos Os avisos Os Tempos

1. D. Sebastião 1. O Bandarra 1. Noite

2. O Quinto Império 2. Antônio Vieira 2. Tormenta

3. O desejado 3. Sem título 3. Calma


55
4. As Ilhas Afortunadas 4. Antemanhã

5. O Encoberto 5. Nevoeiro

I. Os Símbolos Grécia, Roma, Cristandade,


Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
O Quinto Império Que morreu D. Sebastião?” (p.88)*

“Triste de quem vive em casa,


Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Império Material Império Espiritual
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
1º - Babilônia 1º - Grécia

Triste de quem é feliz! 2º - Medo-Persa 2º - Roma


Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz 3º - Grécia 3º - Cristandade
Mais que a lição da raiz —
4º - Roma 4º - Europa
Ter por vida a sepultura.
5º - Inglaterra 5º - (Portugal)
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem. “Desde o tempo das descobertas, com
Que as forças cegas se domem o conhecimento de novos mundos, que
Pela visão que a alma tem! colocaram Portugal como referência
obrigatória, sempre houve uma crença de
E assim, passados os quatro perenidade e de uma missão civilizadora.
Tempos do ser que sonhou, Daí Fernando Pessoa, como o fizera Vieira,
A terra será teatro procurar atestar a sua grandiosidade e o
Do dia claro, que no atro valor simbólico do seu papel na civilização
Da erma noite começou. ocidental, acreditando no mito do
Quinto Império. Ao longo da Mensagem,
FERNANDO PESSOA

sobretudo da terceira parte, Pessoa que sugere a ressurreição gloriosa do


exprime a sua conceção messiânica Encoberto, como a do Cristo.
da história e sente-se investido no
cargo de anunciador do Quinto Império, − A cruz parece ser utilizada, no poema,
que não precisa de ser material, mas como o símbolo ambíguo que é na
civilizacional.”3 simbologia cristã, indicando a morte
salvadora do Cristo e, ao mesmo tempo,
seu martírio necessário.

56 O Encoberto − Esses símbolos retomam, assim, a


história de sacrifício do Cristo, trazendo
“Que símbolo fecundo do passado o exemplo que faz crer no
Vem na aurora ansiosa? ressurgimento de Portugal pelas mãos
Na Cruz Morta do Mundo do Encoberto. Aqui ecoa o verso-máxima
A Vida, que é a Rosa. do já citado poema “O das Quinas”:
“compra-se a glória com desgraça”. A
Que símbolo divino eleição implica, como no caso do Cristo,
Traz o dia já visto? o necessário sofrimento (o destino) que
Na Cruz, que é o Destino, antecede e assegura a vida gloriosa.
A Rosa, que é o Cristo. Essa lógica é o que permite a geração do
símbolo final (“A Rosa do Encoberto”),
Que símbolo final que já é possível observar no presente
Mostra o sol já desperto? (“mostra o sol já desperto”). Assim
Na Cruz morta e fatal como no caso do Cristo, esse presente é
A Rosa do Encoberto.”(p.91)* marcado por um sofrimento fatalista (“Na
Cruz morta e fatal”).

II. Os Avisos
− Nesse texto, a identificação do
Encoberto com o Cristo se dá graças
à figura da Rosa, que é um símbolo
esotérico para a vida. O Bandarra

− Com efeito, vai-se da “Vida que é Rosa”, “Sonhava, anónimo e disperso,


passa-se pela “Rosa que é o Cristo” e O Império por Deus mesmo visto,
chega-se à “Rosa do Encoberto”, em Confuso como o Universo
uma espécie de transferência (doação do E plebeu como Jesus Cristo.
objeto de valor vida, em termos narrativos)
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
3 In: Quinto Império in Infopédia [em linha]. Este, cujo coração foi
Porto: Porto Editora, 2003-2021. [consult. Não português mas Portugal.” (p. 95)*
2021-05-30 11:16:15]. Disponível na Internet:
https://www.infopedia.pt/$quinto-imperio
FERNANDO PESSOA
“A crença no Quinto Império persegue − Em “Nevoeiro”, pode-se observar
Fernando Pessoa, como se vê pela uma espécie de ápice do ostracismo
entrevista a Alves Martins (1897-1929) português, o que leva a um estado sem
em Revista Portuguesa, nº 23-24, de 13 forma, caracterizado, de modo intenso,
de outubro de 1923, onde à questão sobre em diferentes versos. Esse estado
o que calcula que seja o futuro da raça revela-se análogo ao caos que precede
portuguesa, responde: “O Quinto Império”. a cosmogonia, como bem observa
O futuro de Portugal – que não calculo, Quesado (1999, p. 176), autor que define
mas sei – está escrito já, para quem saiba com propriedade os últimos poemas
lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também dessa obra de Pessoa como voltados 57
nas quadras de Nostradamus. Esse futuro para o desvelamento que faz surgir, de
é sermos tudo.”4 forma mítica, a instância messiânica do
Encoberto. (Quesado, 1999, p.177).

− Dessa forma, tudo se passa como se,


III. Os Tempos tendo havido o contrato e a performance
que ele exige – o que se busca ressaltar,
sobretudo, nas partes 1 e 2 de Mensagem
–, não houvesse o que esperar senão a
Nevoeiro retribuição da parte do destinador divino,
que fez de Portugal seu representante na
“Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Terra. É essa retribuição-redenção que é
Define com perfil e ser anunciada no poema “Nevoeiro”, no verso
Este fulgor baço da terra que fecha a obra: “É a hora!”.
Que é Portugal a entristecer?
Brilho sem luz e sem arder − Concluindo:
Como o que o fogo-fátuo encerra.
“A estrutura mental (a distribuição
Ninguém sabe que coisa quer. arquitetônica dos poemas de Brasão,
Ninguém conhece que alma tem, Mar Português e O Encoberto) e a
Nem o que é mal nem o que é bem. constante lucidez crítica são outros
(Que ânsia distante perto chora?) pontos de contato com a restante poesia
Tudo é incerto e derradeiro. de Fernando Pessoa. Na mensagem, as
Tudo é disperso, nada é inteiro. palavras denunciam uma inteligência que
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... não adere às realidades da fé messiânica:
o mito chama-se objetivamente mito,
É a hora! a lenda, lenda; à febre de grandeza que
Valete, Fratres.” (p.91)* despreza os limites dá-se o nome de
loucura. Mais ainda: a madrugada do
Quinto Império é irreal, D. Sebastião é
4 In: Quinto Império in Infopédia [em linha]. revocado da não existência (“do fundo
Porto: Porto Editora, 2003-2021. [consult. de não seres”). O poet, dormindo, ouve
2021-05-30 11:46:00]. Disponível na Internet: uma voz misteriosa: “Mas, se vamos
https://www.infopedia.pt/$quinto-imperio despertando, / Cala a voz, e há só o mar”.
FERNANDO PESSOA

A linguagem abstrata, laconicamente para transformar Portugal em um grande


afirmativa, como as palavras ambíguas das império, como antigamente.
pitonisas, comprime o pensamento como
se o gravasse em inscrições lapidares.”
(COELHO, 1977)
A Última nau

“Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,


VI. Dom Sebastião E erguendo, como um nome, alto o pendão
58 Do Império,
− D. Sebastião (e o sebastianismo) é Foi-se a ultima nau, ao sol aziago
o mito organizador de toda a obra, no Erma, e entre choros de ancia e de
sentido de que o rei representa o sonho [presago
que ressurgirá do nevoeiro em que o Mistério.
Portugal presente está mergulhado,
impulsionando a construção do Futuro. Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
D. Sebastião Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
“Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá. Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Não coube em mim minha certeza; Mais a minha alma atlântica se exalta
Por isso onde o areal está E entorna,
Ficou meu ser que houve, não o que há. E em mim, num mar que não tem tempo
[ou ´spaço,
Minha loucura, outros que me a tomem Vejo entre a cerração teu vulto baço
Com o que nela ia. Que torna.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia, Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Cadáver adiado que procria?” (p.53)* Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim nevoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
− Situado na primeira parte do livro, O Do Imperio.” (p. 79)*
Brasão (nas quinas).

− Este poema é narrado em 1ª pessoa, no


qual D. Sebastião tenta justificar a loucura − Situado na segunda parte do livro, Mar
de buscar uma vida além da mediocridade, Português, penúltimo poema.
pois ele abominava a ideia de estar morto
em vida. Seu sonho era dominar terras − O desaparecimento de D. Sebastião
é um mistério. Nesta poesia percebe-
FERNANDO PESSOA
se claramente a esperança que o povo seria uma referência a Ulysses (“Brasão,
deposita na volta de um Messias, que fará primeiro castelo).
de Portugal um império.
2. Viriato: considerado o primeiro herói
português, liderou a luta dos lusitanos
contra a ocupação romana no século II a.C.
D. Sebastião (Brasão, segundo castelo).

“`Sperae! Caí no areal e na hora adversa 3. Conde de D. Henrique (1065-1112):


Que Deus concede aos seus nobre francês, alistou-se para lutar 59
Para o intervalo em que esteja a alma contra os árabes na Península Ibérica. Foi
imersa governador do Condado Portucalense
Em sonhos que são Deus. (Brasão, terceiro castelo).

Que importa o areal e a morte e a 4. D. Tareja (1080-1130): assumiu o


desventura governo do Condado de Portucale com
Se com Deus me guardei? a morte do marido, o conde D. Henrique,
É O que eu me sonhei que eterno dura, mas teve que enfrentar resistência
É Esse que regressarei.” (p.87)* da corte e do próprio filho, D. Affonso
Henriques (“Brasão, quarto castelo).

5. D. Affonso Henriques (1109-1185):


− Situado na terceira parte do livro, filho do conde D Henrique e de D. Tareja,
primeiro poema de Os Símbolos. foi o primeiro rei de Portugal. Cristo teria
aparecido a ele numa visão antes da
− O nacionalismo místico e o messianismo Batalha de Ourique quando os cristãos
transformam D. Sebastião na própria derrotaram os mouros. Por causa dessa
divindade, que confirmará a profecia visão, o escudo português passou a fazer
bíblica do Quinto Império. referência às chagas de Cristo, por meio
das quinas. (Brasão, quinto castelo).
− Ele precisou desaparecer para voltar;
ele precisou morrer para ressuscitar. 6. D. Dinis (1261-1325): sexto rei de
Portugal, governou o pais numa época
de grande progresso politico e cultural.
VII. Figuras históricas e míticas Conhecido como “Rei Trovador”, por causa
de suas cantigas, ele fundou a primeira
“Entre figuras históricas e míticas, universidade de Portugal, desde 1307
há 23 personagens que aparecem instalada em Coimbra. (Brasão, sexto
explicitamente em Mensagem. São eles: castelo).

1. Ulysses: o herói da Odisseia, de Homero, 7. D. João I (1357-1433): o mestre de


teria sido o fundador de Lisboa. O nome Avis subiu ao trono em 1385, na Batalha
romano da capital portuguesa. Olisipa, de Aljubarrota, dando origem à segunda
dinastia portuguesa. Durante seu reinado,
FERNANDO PESSOA

Portugal conquistou Ceuta, no noroeste da e “O encoberto”, títulos de poemas de


África, em 1415, dando origem as Grande Mensagem (Brasão, quinta quina; “Mar
Navegações (Brasão, sétimo castelo, I). português, 11º poema; “O encoberto”
primeiro, terceiro e quinto símbolos).
8. D. Filipa de Lencastre (1360-1415):
rainha de Portugal, esposa de D. João I, 14. Nuno Alvares Pereira (1360-1431):
foi mãe da «ínclita geração” -expressão nobre que lutou ao lado de D. João I
que Camões usa em Os Lusíadas para na Batalha de Aljubarrota. Tornou-se
se referir aos filhos de D. João e D. Filipa Condestável de Portugal, o maior grau da
60 (“Brasão, sétimo castelo, II). hierarquia militar da época (Brasão, coroa).

9. D. Duarte (1391-1438): 11º rei de 15. D. Henrique (1394-1460) quinto filho


Portugal, continuou a expansão marítima de D. João e D Filipa, o Navegador, foi
iniciada por seu pai, liderando a travessia Cavaleiro da Ordem de Cristo e fundou
do Cabo Bojador em 1434. Morreu em Sagres uma escola de navegação
precocemente (Brasão, primeira quina). Foi o maior incentivador da expansão
ultramarina de seu tempo (“Brasão,
10. D. Fernando (1402-1443) filho mais cabeça do grifo).
novo de D. João e D. Filipa, assumiu o
titulo de “mestre de Avis”. Acabou preso 16. D. João II (1455-1495): rei de Portugal
depois de uma expedição militar e morreu bisneto de D. João I. Patrocinou diversas
em trágicas condições. (Brasão, segunda campanhas marítimas, com Diogo Cão e
quina). Bartolomeu Dias, e assinou pouco antes
de sua morte o Tratado de Tordesilhas
11. D. Pedro (1392-1449): quarto filho (Brasão, primeira asa do grifo; Mar
de D. João e D. Filipa, o duque de Coimbra português, quarto poema).
participou da tomada de Ceuta e assumiu
como regente com a morte do irmão, 17. Affonso de Albuquerque (1462-1515):
D. Duarte. Comandou o país até 1444, serviu na guarda de D. João Il e participou
quando D. Afonso V subiu ao trono de diversas viagens ao oriente. Em 1509,
(Brasão, terceira quina). torna-se vice-rei da Índia (Brasão, segunda
asa do grifo).
12. D. João (1400-1442): sétimo filho de D.
João e D Filipa, foi um aliado importante de 18. Diogo Cão: célebre navegador da
D Duarte. (Brasão, quarta quina). segunda metade do século XV. Suas
expedições na costa africana foram
13. D. Sebastião (1554-1578): 16º rei importantes para a viagem de Vasco da
de Portugal, último da dinastia de Avis, Gama para as Índias (Mar português,
era conhecido pela fé e pela inclinação terceiro poema).
à guerra. Ele não se casou, não deixou
herdeiros e seu desaparecimento, 19. Bartolomeu Dias (1450-1500):
na Batalha de Alcácer Quibir, gerou capitão da armada que em 1488
um problema de sucessão ao trono. contornou o Cabo das Tormentas pela
Ficou conhecido como “O desejado” primeira vez. Morreu em um naufrágio
FERNANDO PESSOA
durante a expedição de Pedro Alvares A Portugal em desprezo de valores. <http://
Cabral (Mar português, quarto e quinto ideiaspoligraficas.blogspot.com/2014/06/a-
poemas). portugal-em-desprezo-de-valores.html>

20. Fernão de Magalhães (1480-1521): BRITO, C. L. de, & LARA, G. M. P. (2019). Uma
durante o reinado de D. Manuel, realizou a abordagem semiótica da messianidade
primeira viagem de circum-navegação do de Portugal em Mensagem, de Fernando
planeta. (Mar português, oitavo poema). Pessoa. Estudos Semióticos, 15(1), 197-211.
https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.
21. Vasco da Gama (1469-1524): o mais esse.2019.155343. Acesso em 29/05/2021. 61
importante navegador português, realizou
a viagem que descobriu o caminho CALBUCCI, Eduardo. Mensagem/Fernando
marítimo para as Índias (1497-1499). Foi Pessoa; análise de Eduardo Calbucci. – 1ªed.-
imortalizado como herói de Os Lusíadas São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021.
(Mar português, nono poema). p.17-18.

22. Bandarra: sapateiro que escreveu COELHO, Jacinto do Prado. Diversidade e


trovas proféticas no século XVI, que unidade em Fernando Pessoa. SP, Verbo, Ed. da
se tornaram as bases do sentimento Universidade de São Paulo, 1977. p.59-64.
sebastianista. (O encoberto, primeiro
aviso). FERNANDES, Emilene Aparecida e SUTION,
Gian Lucan. Mensagem e o Mito Sebastianista.
23. Antônio Vieira (1608-1697): padre Centro Universitário Católico Salesiano
jesuíta e orador, notabilizou-se pelos seus Auxilium. Curso de Letras. Lins, São Paulo. 2011.
sermões religiosos, ponto alto do barroco
literário da Língua Portuguesa. Escreveu LANCASTRE, Maria José de. Fernando Pessoa:
também textos proféticos, como a História uma fotobiografia. Lisboa: Quetzal, 1996.p.280.
do futuro. (O encoberto, segundo aviso).”
(CALBUCCI, 2021) LOURENÇO, Eduardo. Sonho de Império e
Império de Sonho. Prefácio do livro Mensagem.
Relógio D´Água Editores. Abril de 2015. p.14.

Referências QUESADO, Clécio. Labirintos de um livro


à beira-mágoa: análise de Mensagem de
* Todos os poemas foram retirados da seguinte Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Elo, 1999.
edição: PESSOA, Fernando. Relógio d´Água
Editores. Lisboa, Portugal. Abril de 2015.

Análise do poema “O dos castelos” in


“Mensagem” de Fernando Pessoa. <https://
sentirportugus.blogspot.com/2014/06/analise-
do-poema-o-dos-castelos-in.html>
FERNANDO PESSOA

Exercícios 2. (UFRGS) Leia o poema abaixo,


presente em Mensagem, de Fernando
Pessoa.
1. (UNICAMP) Leia o poema “Mar
Português”, de Fernando Pessoa. Noite

“A nau de um deles tinha-se perdido


MAR PORTUGUÊS No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
62 “Ó mar salgado, quanto do teu sal De, na fé e na lei
São lágrimas de Portugal! Da descoberta, ir em procura
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
EXERCÍCIOS

Quantos filhos em vão rezaram!


Quantas noivas ficaram por casar Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Para que fosses nosso, ó mar Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
Valeu a pena? Tudo vale a pena O enigma que fizera.
Se a alma não é pequena. Então o terceiro a El-Rei rogou
Quem quer passar além do Bojador Licença de os buscar, e El-Rei negou.
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Como a um cativo, o ouvem a passar
Mas nele é que espelhou o céu”. Os servos do solar.
E, quando o veem, veem a figura
(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ Da febre e da amargura,
fpesso03.html.) Com fixos olhos rasos de ânsia
Fitando a proibida azul distância.
No poema, a apóstrofe, uma figura de
linguagem, indica que o enunciador: Senhor, os dois irmãos do nosso Nome
— O Poder e o Renome —
a) convoca o mar a refletir sobre a história Ambos se foram pelo mar da idade
das navegações portuguesas. À tua eternidade;
E com eles de nós se foi
b) apresenta o mar como responsável pelo O que faz a alma poder ser de herói.
sofrimento do povo português.
Queremos ir buscá-los, desta vil
c) revela ao mar sua crítica às ações Nossa prisão servil:
portuguesas no período das navegações. É a busca de quem somos, na distância
De nós; e, em febre de ânsia,
d) projeta no mar sua tristeza com A Deus as mãos alçamos.
as consequências das conquistas de
Portugal.​ Mas Deus não dá licença que partamos”.
FERNANDO PESSOA
Considere as seguintes afirmações sobre 3. (UNICAMP) Referindo-se à expansão
o poema e suas relações com o livro marítima dos séculos XV e XVI, o poeta
Mensagem. português Fernando Pessoa escreveu, em
1922, no poema “Padrão”:
I. As três primeiras estrofes estão
relacionadas a um episódio real: a história “E ao imenso e possível oceano
dos irmãos Gaspar e Miguel Corte Real Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
que desapareceram em expedições Que o mar com fim será grego ou romano:
marítimas, no início do século XVI, para O mar sem fim é português.”
desespero do terceiro irmão, Vasco, que 63
queria procurá-los, mas não obteve a (Fernando Pessoa, Mensagem – poemas
autorização do rei. esotéricos. Madri: ALLCA XX, 1997, p. 49.)

EXERCÍCIOS
II. O sujeito lírico, na quarta e na quinta Nestes versos identificamos uma
estrofes, assume a primeira pessoa do comparação entre dois processos
plural, sugerindo que o drama individual históricos. É válido afirmar que o poema
dos irmãos pode representar um problema compara:
coletivo: a perda de poder e renome de
Portugal, perda esta já associada à difícil a) o sistema de colonização da Idade
situação do país no início do século XX, Moderna aos sistemas de colonização
momento da escritura do poema. da Antiguidade Clássica: a navegação
oceânica tornou possível aos portugueses
III. O diagnóstico das perdas de Portugal o tráfico de escravos para suas colônias,
está ausente em outros poemas de enquanto gregos e romanos utilizavam
Mensagem, por exemplo, Mar português, servos presos à terra.
Autopsicografia e Nevoeiro, que
apresentam a visão eufórica e confiante b) o alcance da expansão marítima
do sujeito lírico em relação ao futuro de portuguesa da Idade Moderna aos
Portugal. processos de colonização da Antiguidade
Clássica: enquanto o domínio grego e
Quais estão corretas? romano se limitava ao mar Mediterrâneo,
o domínio português expandiu-se pelos
a) Apenas I. oceanos Atlântico e Índico.

b) Apenas II. c) a localização geográfica das possessões


coloniais dos impérios antigos e
c) Apenas I e II. modernos: as cidades-estados gregas e
depois o Império Romano se limitaram a
d) Apenas II e III. expandir seus domínios pela Europa, ao
passo que Portugal fundou colônias na
e) I, II e III. costa do norte da África.
FERNANDO PESSOA

d) a duração dos impérios antigos e


modernos: enquanto o domínio de gregos
e romanos sobre os mares teve um fim
com as guerras do Peloponeso e Púnicas,
respectivamente, Portugal figurou
como a maior potência marítima até a
independência de suas colônias.

64 4. (FUVEST) A leitura de “Mensagem”, de


Fernando Pessoa, permite a identificação
de certas linhas de força que guiam e, até
EXERCÍCIOS

certo ponto, singularizam o espírito do


homem português, dando-lhe marca muito
especial.

Dentre as alternativas a seguir, em qual se


enquadraria melhor essa ideia?

a) Preocupação com os destinos de


Portugal do século vinte.

b) Preocupação com a história político-


social de Portugal.

c) Recorrência de certas constantes


culturais portuguesas, como o
messianismo.

d) Reordenação da história portuguesa


desde Dom Sebastião.

e) A marca da religião católica na alma


portuguesa como força determinante.
DRUMMOND
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Alguma Poesia, 1930 65

I. O Autor de interrogações e negações, conduz


ao vazio que espreita o homem e ao
A poesia de Drummond pode ser abordada desencanto.
a partir da dialética “eu x mundo”:

1. Eu maior que o mundo – marcada pela II. A Obra


poesia irônica. O poeta vê os conflitos
de uma posição de equidistância e não − Alguma Poesia é o primeiro livro de
envolvimento: daí o humor, os poemas- Carlos Drummond de Andrade, composto
piada e a ironia. O poeta fotografa a de 49 poemas, reunindo produções do
província, a família. É sarcástico, de autor de 1925 a 1930, e está dedicado ao
uma irreverência incontida, o que vem poeta e amigo Mário de Andrade.
a produzir um texto objetivo, seco,
versos curtos e descarnados, sem − Os aspectos mais evidentes da herança
transbordamento emocional. modernista em Alguma Poesia são:

2. Eu menor que o mundo – marcada a. Versilibrismo: adoção do verso livre


pela poesia social, tomando como temas (sem métrica e sem rima);
a política, a guerra e o sofrimento do
homem. Desabrocha o sentimento b. Oralidade: escrever como se fala,
do mundo, marcado pela solidão, pela coloquialismo;
impotência do homem, diante de um
mundo frio e mecânico, que o reduz a c. Prosaísmo: adoção, na poesia, de
objeto. É o que ocorre em Sentimento do processos típicos da prosa;
Mundo, José e, especialmente, em A Rosa
do Povo. d. Supressão da pontuação convencional:
vírgulas e pontos determinados pelo ritmo
3. Eu igual ao mundo – abrange a poesia interno do poema;
metafísica, de Claro Enigma aonde a
escavação do real, mediante um processo
DRUMMOND

e. Adoção sistemática da Paródia: a necessidade de se determinar de modo


recriação irônica de estruturas mais rigoroso.” (VILLAÇA, 2006)
consagradas pela tradição;

f. Linguagem telegráfica: brevidade e


concisão semântica (poema-minuto); − A particularidade da obra decorre,
sobretudo, de dois traços, ambos
g. Poema piada: brevidade e concisão a suficientes para lhe atribuir personalidade
serviço do humor e da ironia; literária, autonomia artística e
66 independência de concepção:
h. Incorporação do cotidiano: flashes da
cidade grande, da província, e da fazenda; 1. Repetição exaustiva de vocábulos,
associada à visualidade expressiva do
i. Nacionalismo critico: valorização de poema;
símbolos, mitos, lendas, cores e ritmos
brasileiros; 2. Recusa da abstração apriorística e
valorização da experiência particular e
j. Visão prismática da realidade: concreta.
preferência por recortes metonímicos (a
parte pelo todo); 1. Repetição e visualidade

k. Justaposição de frases nominais: − Drummond foi o primeiro poeta


enumeração de orações elípticas, com brasileiro a sistematizar o uso da
ausência de verbo. tautologia ostensiva: empregou como
nenhum outro as reiterações, de modo a
− Todos esses procedimentos estilísticos produzir o efeito de desrazão ou absurdo,
e essas matérias acham-se sistematizados como é o caso dos célebres poemas “No
pelos primeiros modernistas, mas Meio do Caminho”, “Quadrilha”, “Política
constituem também o modo de ser Literária”, “Sinal de Apito” e “Cidadezinha
do livro inaugural de Drummond, cuja Qualquer”.
formação foi marcada pela experiência da
vanguarda dos anos 20. − Além da redundância, o autor aplica a
esses poemas o que se poderia chamar de
disposição gráfica expressiva.

“A dívida se dá em relação às formas do − Embora a redundância e a disposição


novo lirismo que fulminou os ritos da gráfica expressiva, de origem cubo-
convenção conservadora e que tantas futurista, surjam aqui e ali nos primeiros
perspectivas abriu para a apreensão e modernistas, nenhum deles adotou esses
representação da vida; no crédito está procedimentos de maneira tão sistemática
no aprofundamento crítico e poético e explícita quanto Drummond.
dessas perspectivas, de que surge uma
consciência tensa e resistente às cláusulas − Trata-se de um formalismo que vai
programáticas, sofrendo a cada momento além do experimento gráfico ou do
DRUMMOND
jogo de significantes entendidos como significado, que decorre da intenção de
procedimentos autossuficientes, pois acusar o cansaço da tradição.
resulta em investigações da existência,
com implicações metafísicas e sociais. − Além disso, o autor atribui dimensão
alegórica ao vocábulo pedra, que pode ser
− Excedendo os limites do jogo vocabular, entendido como símbolo dos obstáculos
tais poemas mimetizam a incoerência de encontrados na vida, numa tentativa de
certas situações. exploração/interpretação da existência.

− Nesse sentido, a forma (tautologia, − O encontro do gauche com a 67


grafismo) harmoniza-se com a matéria, faz tortuosidade do mundo é frequentemente
parte da própria constituição do poema: tratado por meio do tema do obstáculo e
pertencem à sua ontologia, a seu modo de do desencontro.
ser e de significar.
2. Elogio da experiência
Examine-se o mais famoso dos poemas
tautológicos de Drummond: − Em Alguma Poesia, não há texto
que parta de uma abstração, de um
sentimento geral, de uma sensação difusa,
de um desejo vago ou de uma pretensão
No Meio do Caminho conceitual.

“No meio do caminho tinha uma pedra − O poeta lida com coisas e situações
tinha uma pedra no meio do caminho concretas, extraídas da observação irônica
tinha uma pedra dos fatos.
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse − Trata-se de uma espécie de poética do
[acontecimento empirismo.
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do − Todavia, pouquíssimas vezes os textos
[caminho se esgotam no particular.
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho − Em quase todos, há uma conclusão
no meio do caminho tinha uma pedra.” generalizante, que resulta num conceito
(p.20)* ou numa síntese conclusiva sobre a vida.

− Observe-se o poema “Lagoa”:

− Perceber que o poema se baseia


na reiteração irônica de uma figura da
retórica clássica é já captar parte de seu “Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
Não sei se ele é bravo.
* Ver referências. O mar não me importa.
DRUMMOND

Eu vi a lagoa. mar, o eu-lírico afirma que a promessa


A lagoa, sim. do oceano se tornara calor sufocante,
A lagoa é grande logo atenuado por um vento que vinha de
E calma também. Minas.

Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha “Foi no Rio.
a lagoa se pinta Eu passava na Avenida quase meia-noite.
68 de todas as cores. Bicos de seio batiam nos bicos de luz
Eu não vi o mar. estrelas inumeráveis.
Eu vi a lagoa... “ (p.18)* Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
− Nele, o poeta afirma não se importar
com o mar, porque nunca o viu. Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
− Preocupa-se com a lagoa, que faz parte faziam de mim homem-realejo
de sua experiência. Por isso, a descreve imperturbavelmente
com as tintas sensuais (quase femininas), na Galeria Cruzeiro quente quente
quando o sol evidencia suas cores: e como não conhecia ninguém a não ser o
[doce vento mineiro,
− Qual será o sentido dos vocábulos mar e nenhuma vontade de beber, eu disse:
lagoa no poema? Acabemos com isso.

− Como em Minas não há mar, o vocábulo Mas tremia na cidade uma fascinação
no poema representa uma abstração, um casas compridas
conceito longínquo, assim como a lagoa autos abertos correndo caminho do mar
significa a experiência, o dado vivenciado. voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens
− É desse último que se faz o poema, o [indiferentes,
qual resulta numa generalidade filosófica que meu coração bateu forte, meus olhos
abstraído do concreto. [inúteis choraram.

− Em última análise, esse poema sugere O mar batia em meu peito, já não batia no
que o princípio de que para falar do mundo [cais.
deve-se falar da própria terra. A rua acabou, quede as árvores? a cidade
[sou eu
− Drummond limita-se a Minas. a cidade sou eu
sou eu a cidade
− No o poema “Coração Numeroso”, meu amor.” (p.24)*
estando no Rio de Janeiro, ao longo do
DRUMMOND
− Assim a segunda grande característica V. São João Del-Rei
tipicamente drummondiana no livro é “Quem foi que apitou?
o culto do particular, uma espécie de Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho.
respeito à autenticidade da experiência. Almas antigas que nem casas.
Melancolia das legendas.
− Na série “Lanterna Mágica”, o poeta
compõe pequenos mosaicos sobre As ruas cheias de mulas sem cabeça
algumas cidades de seu convívio: Belo correndo para o Rio das Mortes
Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João e a cidade paralítica
Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro. no sol 69
Observemos: espiando a sombra dos emboabas
no encantamento das alfaias.

Sinos começam a dobrar.


I. Belo Horizonte E todo me envolve
‘Meus olhos têm melancolias, uma sensação fina e grossa.” (p.16-17)*
minha boca tem rugas.
Velha cidade!
As árvores tão repetidas.
No conjunto dos textos agrupados sob o
Debaixo de cada árvore faço minha cama, título de “Lanterna Mágica”, esta unidade,
em cada ramo dependuro meu paletó. a última das imagens que brilham na
Lirismo. memória como os raios de uma lanterna
Pelos jardins versailles mágica (antigo instrumento de projeção),
ingenuidade de velocípedes. funciona também como um elogio à
experiência: isto é, a poesia deve partir da
E o velho fraque relação com as coisas, com os lugares e
na casinha de alpendre com duas janelas com as pessoas, jamais de sentimentos
dolorosas.” (p.14)* indefinidos.

Ao abordar a Bahia, escreve


simplesmente:
IV. Itabira’
“Cada um de nós tem seu pedaço no pico “É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
[do Cauê. Mas eu nunca fui lá.”(p.17)*
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão. Concluímos assim que a experiência
Os ingleses compram a mina. empírica é fundamental e necessária para
a compreensão da existência.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo
[cisma na derrota incomparável.”(p.16)* “(..) O poeta não quer pouco: quer o amor
essencial, o conhecimento essencial,
DRUMMOND

a verdade essencial das experiências. Porém meus olhos


Menos que isso é sempre pouco, sempre não perguntam nada.
insuficiente. Sua personalidade tímida,
autodefinida desde o início como a de O homem atrás do bigode
um gauche, bate-se contra seus limites é sério, simples e forte.
subjetivos e os limites objetivos do Quase não conversa.
mundo; em vez de relações que sente Tem poucos , raros amigos
como necessárias, encontra obstáculos o homem atrás dos óculos e do bigode.
para o afeto e para a consciência, recusas,
70 cifras da matéria insondável, sombras Meu Deus, por que me abandonaste
de sentido, símbolos herméticos: os se sabias que eu não era Deus
enigmas.” (VILLAÇA, 2012) se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo


se eu me chamasse Raimundo,
III. Temas drummondianos seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
1. O indivíduo – “um eu todo retorcido”: mais vasto é meu coração.
seção que investiga a formação do poeta e
sua visão acerca do mundo. Sempre lúcido, Eu não devia te dizer
discorre com amargor, pessimismo, ironia mas essa lua
e humor o que ele, atento observador, mas esse conhaque
capta de si mesmo e das coisas que o botam a gente comovido como o diabo.”
rodeiam. Alguns poemas sintetizam a (p.09-10)*
visão do indivíduo, como o poema de
abertura do livro.

Gauche: termo francês que significa


“esquerdo”; por extensão, designa ainda
Poema de Sete Faces ausência de habilidade, falta de jeito, embaraço
na ação.
“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
“Ao atribuir esse caráter torto a si e ao
As casas espiam os homens anjo que o amaldiçoa, o poeta também
que correm atrás de mulheres. dimensiona uma imagem de retidão,
A tarde talvez fosse azul, obrigando-nos a refletir sobre um correto
não houvesse tantos desejos. modo de ser, uma trilha direta que ele,
pelo ditame do anjo, vê-se impelido de
O bonde passa cheio de pernas: seguir. A consciência que fala nos poemas
pernas brancas pretas amarelas. de Drummond tende sempre a recusar o
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta caminho fácil, direto, preferindo a estrada
meu coração. mais árdua, sinuosa e preenchida por uma
DRUMMOND
matéria que, ao modo das pedras, resiste hesitantes, mas a consciente exploração
á penetração e, consequentemente, não de um impasse fundamental: os valores.
se dá a conhecer de forma completa. A O poeta gauche de Alguma poesia do
maldição define esse espaço no qual o indivíduo e os do mundo são inajustáveis
poeta será um gauche. Afinal, o anjo o de saída [...]” (VILLAÇA, 2006)
destinou à vida.” (LONGO, 2014)

2. A terra natal - “uma província: esta”:


− Diante do impasse homem-mundo, a a província é a terra natal do poeta, que 71
poesia primeiro tende a se concentrar no não é apenas Itabira, é uma “Cidadezinha
homem, sem, entretanto optar pelo lirismo qualquer” de Minas Gerais, incluindo a
escapista, comovido pela “lua” e pelo província de Belo Horizonte.
“conhaque”, parece querer tomar conta do
sujeito poético. − A província é a própria Minas Gerais, de
todas as cidades e regiões, com a calma e
− O poeta reage, lançando mão de suas placidez da vida e da paisagem interiorana,
armas já conhecidas: a ironia sarcástica, o a ausência de pressa, a religião, o crime na
humor que não faz rir. cidadezinha, a história, o espírito mineiro
que visita e impregna o eu lírico quando
− Assim contida, represada, a emoção este abandona Minas.
pode resvalar para o seu alvo maior, o
seu desafio duradouro: “o Mundo vasto
mundo”, cujos obstáculos, impedimentos
e armadilhas não são escamoteados. Cidadezinha qualquer

− Poema com sete estrofes que parecem “Casas entre bananeiras


desconexas, numa montagem como a da mulheres entre laranjeiras
pintura cubista. pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
“O gauchismo funciona desde o início Um burro vai devagar.
como confissão psicológica, dinâmica do
estilo e lugar social (de onde se podem Devagar... as janelas olham.
reconhecer a “vida besta” e o “mundo
torto”). Vale dizer: a desqualificação do Eta vida besta, meu Deus.”(p.26)*
sujeito, por este mesmo promovida,
funciona como índice de uma consciência
mais alta e mais rigorosa, diante de cujo
padrão tampouco o mundo está “direito” − A julgar pelo primarismo a seleção das
[...]. Atribuído, pois, à oscilação mesma coisas observadas nas duas primeiras
o peso de um critério fundamental, não estrofes, o leitor é levado a interpretar
resultará uma simples sucessão de formas o eu lírico tão primário quando o mundo
DRUMMOND

que destaca em seu olhar fotográfico. humildemente te peço uma graça.


Todavia, não é isso que se observa no final Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do texto: daquele conjunto de pormenores do amor que eu tenho e que ninguém me
concretos, ele formula um conceito sobre [tem.
a vida no lugarejo, aplicável a qualquer
comunidade desse tipo. Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,
muito dinheiro para eu comprar
− Poema de tom irônico sobre a sociedade aquilo que é caro mas é gostoso
de pequenas cidades interioranas e, por e na minha terra ninguém não possui.
72 antífrase, apresenta um elogio à cidade
grande, tão em moda na poética futurista, Jesus meu Deus pregado na cruz,
que exaltava a máquina e o dinamismo dos me dá coragem pra eu matar
grandes centros urbanos. um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.


Romaria (A Milton Campos) Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
“Os romeiros sobem a ladeira Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus Os romeiros pedem com os olhos,
e vão deixando culpas no caminho. pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
Os sinos tocam, chamam os romeiros: dorme sonhando com outra humanidade.”
Vinde lavar os vossos pecados. (p.39-40)*
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.

No alto do morro chega a procissão. − A religião, tão cara à tradicional família


Um leproso de opa empunha o estandarte. mineira, revela a mesquinhez dos homens,
As coxas das romeiras brincam no vento. a beleza e o mistério dos ritos e adornos
Os homens cantam, cantam sem parar. e evoca imagens de tempos e lugares
impregnados de espiritualidade.
Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra. − No poema, os fiéis seguem sua
Nos olhos do santo há sangue que escorre. trajetória de purificação, sacrificando-se
Ninguém não percebe, o dia é de festa. para livrar-se dos pecados, numa bela
imagem que funde elementos concretos
No adro da igreja há pinga, café, e abstratos, o concreto tornando-se
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros abstrato e o abstrato tornando-se
e um sol imenso que lambuza de ouro concreto.
o pó das feridas e o pó das muletas.
− A ladeira no plano concreto é a estrada,
Meu Bom Jesus que tudo podeis, que de repente se “desconcretiza”
DRUMMOND
para virar caminho do céu, caminho da Eu sozinho menino entre mangueiras
salvação. Os espinhos e as pedras em lia a história de Robinson Crusoé,
sua caminhada rumo à purificação. As comprida história que não acaba mais.
abstratas e impalpáveis culpas, nessa No meio dia branco de luz uma voz que
jornada, vão-se concretizando e vão [aprendeu
sendo eliminadas por seus portadores, a ninar nos longes da senzala - e nunca se
como pesos indesejáveis que dificultam a [esqueceu
ascensão. chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
− A festa da romaria mistura o café gostoso 73
despercebido milagre de Cristo ao café bom.
comércio do vício e das relíquias, e a
esperança dos fiéis de que o ritual possa Minha mãe ficava sentada cosendo
ajuda-los a alcançar suas graças. olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
− Tantos pedidos cansam a divindidade Para o berço onde pousou um mosquito.
e Jesus dorme sonhando com outra E dava um suspiro... que fundo!
humanidade.
Lá longe meu pai campeava
3. A família – “a família que me dei”: uma no mato sem fim da fazenda.
das constantes temáticas de Drummond,
presente desde Alguma Poesia até seus E eu não sabia que minha história
versos finais, é a família, sua vivência era mais bonita que a de Robinson
interiorana em Minas Gerais, a paisagem [Crusoé.”(p.10-11)*
que marca sua memória. Contrariando
o lugar-comum, ao invés de se referir à
família como algo que lhe foi atribuído por
Deus, o poeta coloca um “que me dei” a O poema pode ser entendido como
analisa suas relações pessoais, consciente manifestação do particularismo do poeta,
de que se assentam na perspectiva que se apropria da tópica da vida passada
pessoal. De modo muito individual, retrata para compor um pequeno retrato familiar,
o escoar do tempo, como é possível animado por forte sopro de memorialismo.
observar em “Infância”, “Família”, “Sesta”, Observe que o eu lírico acha o “mato
alguns dos mais significativos poemas de sem fim na fazenda” mais bonito que as
Alguma Poesia. aventuras Robinson Crusoé.

O mato pertence à vida real; Robinson


Crusoé, ao mundo abstrato da imaginação
Infância literária.

“Meu pai montava a cavalo, ia para o Embora importante para a vida, a literatura
[campo. não deve substituir o contato com a
Minha mãe ficava sentada cosendo. existência.
Meu irmão pequeno dormia.
DRUMMOND

Observe, por fim, que a linguagem do texto Só um mosquito rápido


auxilia a imitação do ambiente primário mostra inquietação.
da infância, pois se baseia na justaposição O filho mais moço
reiterativa de períodos simples, com ergue o braço rude
vocabulário elementar. enxota o importuno.
A família mineira
está dormindo ao sol.” (p.35-36)*

Sesta
74
“A família mineira A procura pelas raízes aparece no poema
está quentando sol, acima, no entanto sem a leveza satisfeita
Sentada no chão encontrada em “Infância”, como lembra
calada e feliz. Alcides Villaça.
O filho mais moço
olha para o céu “Aqui, uma “família mineira” simples e
Para o sol não, modorrenta, engastasse num mundo
Para o cacho de bananas. também rústico e ordenado, mas a
Corta ele, pai! que faltam o traço épico e qualquer
O pai corta o cacho possibilidade lírica [...] A família do poema
e distribui para todos. fica entre o cômico e a crueldade do
A família mineira observador: versos como “A família
está comendo bananas. mineira/ está comendo banana” adotam
uma gravidade incompatível com a
A filha mais velha ruminação dada como prosaica [...] De
coça uma pereba fato, “A família mineira/ olha para dentro”,
bem acima do joelho. sacramentando-se aqui um matutar
A saia não esconde prazeroso e autossuficiente, “calado
a coxa morena e feliz” – quadro [...] que cristaliza, no
sólida construída. livro, um lugar primitivo, ancestral [...].”
mas ninguém repara. (VILLAÇA, 2006)

Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo, 4. O conhecimento amoroso – “amar-
(a cerca da horta). amaro”: Com o jogo de palavras amar-
A família mineira amaro, título emprestado de um poema do
olha para dentro. livro “Lição de Coisas”, o poeta acrescenta
ao substantivo “amar” o adjetivo “amargo”,
O filho mais velho sentimento recorrente em alguns de seus
canta uma cantiga, poemas e livros escritos posteriormente.
Nem triste nem alegre,
uma cantiga apenas − Colocando em foco a experiência
mole que adormece. amorosa do cotidiano, os poemas
DRUMMOND
destacam a repercussão que a incoerência “Em todos os momentos da sua obra
e a arbitrariedade do amor encontram no poética, Drummond lida com um paradoxo
sujeito. implícito na experiência amorosa. Vivido
irregularmente, o amor é portador de
− Nessa resposta subjetiva, insere-se a uma regularidade paralela à fatalidade da
expectativa emocional de um sentimento morte. Os encontros são casuais, mas a
harmonioso. urgência do encontro é certa, fatalidade
inerente à vida; por isso todos dançam na
“Quadrilha”, ainda que nela não se formem
pares”. (LONGO, 2014) 75
Quadrilha

“João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que Quero me casar
amava Lili
que não amava ninguém. “Quero me casar
João foi para o Estados Unidos, Teresa na noite na rua
para o convento, no mar ou no céu
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou quero me casar.
para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Procuro uma noiva
Pinto Fernandes loura morena
que não tinha entrado na história“.(p.28)* preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.
− Poema em prosa, em tom irônico sobre
o amor. Depressa, que o amor
não pode esperar!“. (p.33)*
− Poema em que, por meio da retomada
do balanceio indeciso da dança popular
em que se realiza troca de pares, é
revelado o olhar crítico do sujeito lírico − Negação da ideia platônica do amor
sobre o encontro inesperado de uma das romântico, a concepção apresentada no
damas com o senhor de nome pomposo, poema é a do amor carnal.
de provável boa situação financeira, que
não participara dos balanceios do amor. − O eu-lírico expressa, em tom enfático,
sua necessidade de concretizar o ato
− Nele, o “amor natural” se opõe ao amoroso, sem idealizações.
casamento burguês (o de Lili e J. Pinto
Fernandes, único nomeado pelos − Não há preocupação de selecionar a
sobrenomes). figura feminina, colocando a mulher num
patamar mais humano.
DRUMMOND

Balada do amor através das idades Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
“Eu te gosto, você me gosta eu, herói da Paramount,
desde tempos imemoriais. te abraço, beijo e casamos.”(p.32-33)*
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão. − Balada: poema narrativo, no caso, sobre
Matei, brigamos, morremos. o amor.
76
Virei soldado romano, − Cada estrofe é uma pequena história ou
perseguidor de cristãos. uma aventura dos amantes, com começo,
Na porta da catacumba meio e fim.
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua • 1ª estrofe: Grécia, no tempo mítico da
caída na areia do circo Guerra de Tróia.
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado • 2ª estrofe: Roma, no início da era
e o leão comeu nós dois. Cristã.

Depois fui pirata mouro, • 3ª estrofe: África, Mediterrâneo,


flagelo da Tripolitânia. época da pirataria moura do século
Toquei fogo na fragata XVIII.
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim. • 4ª estrofe: França, final do século
Mas quando ia te pegar XVIII, Revolução Francesa.
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz • 5ª estrofe: século XX.
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também. − Ao final das quatro primeiras estrofes
de ritmo popular, a morte e a não
Depois (tempos mais amenos) realização amorosa entre duas pessoas
fui cortesão de Versailles, de diferentes épocas, o eu-lírico moderno
espirituoso e devasso. “depois de mil peripécias/ [como] herói
Você cismou de ser freira... da Paramount”, dramatiza o final feliz de
Pulei muro de convento filmes americanos.
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno, Sentimental


remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco. “Ponho-me a escrever teu nome
Você é uma loura notável, com letras de macarrão.
boxa, dança, pula, rema. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
DRUMMOND
e debruçados na mesa todos contemplam Poesia
esse romântico trabalho.
“Gastei uma hora pensando um verso
Desgraçadamente falta uma letra, que a pena não quer escrever.
uma letra somente No entanto ele está cá dentro
para acabar teu nome! inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Eu estava sonhando... inunda minha vida inteira.” (p.24)* 77
E há em todas as consciências um cartaz
amarelo:
‘Neste país é proibido sonhar’.”(p.19-20)*
O pacto com o leitor não é rompido, mas
o poema se constrói por meio do anúncio
da dificuldade do poeta de elaborar
O poema retoma o ato sentimental de artisticamente o lirismo, que precede a
se escrever o nome da amada, mas o forma poética.
faz aproximando-o dos fatos cotidianos,
já que escreve com letras de macarrão,
dando assim comicidade à cena,
aumentada pelo exagero do advérbio Poema que aconteceu
“desgraçadamente”.
“Nenhum desejo neste domingo
Conseguimos ver traços modernistas no nenhum problema nesta vida
poema, já que há o rebaixamento do tema o mundo parou de repente
poético e a ironia é construída por meio os homens ficaram calados
do contraste entre o ideal romântico e a domingo sem fim nem começo.
realidade prosaica.
A mão que escreve este poema
5. A própria Poesia – “a poesia não sabe o que está escrevendo
contemplada”: poemas metalinguísticos. mas é possível que se soubesse
nem ligasse“.(p.21)*
“No livro inicial, domina a ideia de que a
poesia vem de fora, é dada sobretudo
pela natureza do objeto poético, segundo
a reconsideração do mundo graças à − Poema metalinguístico, em que o poeta
qual os modernistas romperam com as “narra” em tom descompromissado o
convenções acadêmicas. Drummond surgimento da poesia.
começa por integrar-se nesta orientação,
fazendo o valor da poesia confundir-se “[...] a poesia parece [...] ‘acontecer’ sob o
com o sentimento poético e reduzindo estímulo do assunto, de tal maneira que
em consequência o poema a um simples lhe é coextensiva; faz-se pelo simples
condutor.” (CANDIDO, 1970)
DRUMMOND

registro da emoção ou da percepção.” − Ironia à linguagem fria e mecânica do


(CANDIDO, 1970) jornalismo.

Política literária

6. Outros Poemas e temáticas. “O poeta municipal


discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta
[federal.
78 Cota zero Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz”.(p.30)*
“Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?” (p.31)* O tema desse poema é a política entre
literatos, a competição entre poetas, que é
ironizada pelo autor.

− Poema-piada, que incorpora a concisão


e a não-discursividade propostas pelas
Vanguardas Europeias, em especial, o Sociedade
Futurismo. Ao mesmo tempo faz a crítica
irônica de seus pressupostos ideológicos. “O homem disse para o amigo:
- Breve irei a tua casa
− Em vez da euforia pelo progresso, da e levarei minha mulher.
adesão às máquinas, o texto os coloca
como formas de escravidão humana, num O amigo enfeitou a casa
bom exemplo da postura antropofágica e quando o homem chegou com a mulher,
defendida por Oswald de Andrade. soltou uma dúzia de foguetes.

Poema do jornal O homem comeu e bebeu.


A mulher bebeu e cantou.
“O fato ainda não acabou de acontecer Os dois dançaram.
e já a mão nervosa do repórter O amigo estava muito satisfeito.
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher. Quando foi hora de sair,
A mulher ensanguentada grita. o amigo disse para o homem:
Ladrões arrombam o cofre. - Breve irei a tua casa.
A polícia dissolve o meeting. E apertou a mão dos dois.
A pena escreve.
No caminho o homem resmunga:
Vem da sala de linotipos a doce música - Ora essa, era o que faltava.
mecânica”. (p.22)* E a mulher ajunta: - Que idiota.

- A casa é um ninho de pulgas.


DRUMMOND
- Reparaste o bife queimado? Tambem já fui brasileiro
O piano ruim e a comida pouca.
“Eu também já fui brasileiro
E todas as quintas-feiras Moreno como vocês.
eles voltam à casa do amigo Ponteei viola, guiei forde
que ainda não pôde retribuir a visita”. e aprendi na mesa dos bares
(p.34)* que o nacionalismo é uma virtude
Mas há uma hora em que os bares se
fecham
e todas as virtudes se negam. 79
− Crítico do universo em que se insere, o
poeta vê o mundo com imensa angústia de Eu também já fui poeta.
impotente que em nada pode modificá-lo. Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
− Crítica às relações mecânicas entre os e outros substantivos celestes.
homens, por exemplo, na visita burguesa Mas eram tantas, o céu tamanho,
convencional, episódio de uma rotina sem minha poesia perturbou-se.
alma, de que ninguém gosta, mas da qual
ninguém escapa. Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isto, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Anedota búlgara Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
“Era uma vez um czar naturalista Mas acabei confundindo tudo.
que caçava homens. Hoje não deslizo mais não,
Quando lhe disseram que também se não sou irónico mais não,
caçavam borboletas e andorinhas, não tenho ritmo mais não.” (p.12)*
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.” (p.30)*

− O cepticismo drummondiano limita a


expansão otimista do nacionalismo do
− Tudo o que é comum a nós, é visto como Primeiro Momento do nosso Modernismo.
normal; aquilo que não é comum é visto
como barbárie. − Todo o poema é uma contradição. O
poeta renega a cada verso aquilo que mais
− Para o czar caçar homens era normal, substancialmente é: brasileiro e poeta.
enquanto que caçar borboletas e
andorinhas era anormal. − Ao dizer que não é aquilo que é de
fato, ele pretende se distanciar de certas
− Isso demonstra que cada um de nós tem posturas que lhe causam aversão entre
seu ponto de vista, cada um vê com olhos brasileiros e poetas.
diferentes a mesma coisa.
DRUMMOND

Referências VILLAÇA, Alcides. Poesia de Drummond: Na


trilha dos enigmas. Caderno de leituras. Carlos
* Os trechos foram retirados de: ANDRADE, Drummond de Andrade. Cia.das Letras. 2012.
Carlos Drummond de. Nova Reunião: 23 livros P.107-108)
de poesia/ Carlos Drummond de Andrade. - 1ª
ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

CÂNDIDO, Antônio. Inquietudes na poesia de


Drummond. Vários escritos. São Paulo: Duas
80 Cidades, 1970.

Caderno de leituras. Carlos Drummond de


Andrade. Orientação para o trabalho em sala de
aula. Organização e edição: Murilo Marcondes
Moura. Cia. das Letras. 2012.

BYLAARDT, Cid Ottoni. As palavras e as ideias;


uma leitura de Antologia poética; de Carlos
Drummond de Andrade. – Belo Horizonte:
Editora Universidade, 1999.

LONGO, Mirella Márcia. O estranho sinal: notas


sobre o amor na poesia de Carlos Drummond
de Andrade. No pomar de Drummond: nova
seara crítica / Organizado por: Antônio
Donizeti Pires; Alexandre de Melo Andrade. –
São Paulo : Cultura Acadêmica, 2014. (Estudos
Literários, n.14).

ALGUMA POESIA (Resumo) <https://www.


mundovestibular.com.br/estudos/resumo-de-
livro/alguma-poesia-carlos-drummond-de-
andrade-resumo/>

Analise literária do poema: Também já fui


Brasileiro de Carlos Drummond de Andrade
<http://www.srpersonna.com.br/2012/04/
analise-literaria-do-poema-tambem-ja.html>

VILLAÇA, A. Passos de Drummond. São Paulo:


Cosac Naify,2006. p.18.
DRUMMOND
Exercícios Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus”.
1. (FUVEST) Refere-se corretamente a
Alguma Poesia, de Drummond, a seguinte a) O poema denuncia de forma irônica e
afirmação: com uma linguagem sintética a monotonia
e o tédio que predominam em pequenas
a) A imagem do poeta como gauche revela cidades do interior.
a sua militância na poesia engajada e
participante, de esquerda. b) O poema mostra com sentimento 81
piedoso o desajuste existencial do homem
b) As oposições sujeito-mundo e diante da vida.

EXERCÍCIOS
província-metrópole são fundamentais em
vários poemas. c) O poema retrata de modo triste e
melancólico a desventura amorosa do
c) A filiação modernista do livro liberou poeta na cidade de Itabira, onde nasceu.
o poeta das preocupações com a
elaboração formal dos poemas. d) Predomina no poema um sentimento
de nostalgia do passado, por meio de
d) O livro não contém textos uma linguagem muito simples e pouco
metalinguísticos, o que caracteriza a elaborada esteticamente.
primeira fase do autor.
e) Há no poema uma preocupação de
e) A ironia e o humor evitam que o eu-lírico ordem social e política que sintetiza o
se distancie ou se isole, proporcionando- “sentimento do mundo” do eu lírico.
lhe a comunhão com o mundo exterior.

3. (FUVEST) Pode-se dizer que os poemas


2. (UEL) O poema que segue faz parte de Alguma Poesia filiam-se às propostas
do primeiro livro de Carlos Drummond estéticas da primeira geração modernista
de Andrade, Alguma poesia, publicado porque:
em 1930, e tem como título “Cidadezinha
qualquer”. a) exalta-se o dinamismo da urbanidade,
que possibilita uma vida mais plena e
Leia o poema e assinale a alternativa satisfatória.
correta:
b) demonstram a preocupação do
“Casas entre bananeiras autor em abordar temas relacionados à
Mulheres entre laranjeiras diversidade cultural brasileira, a partir de
Pomar amor cantar. uma ótica ingênua que pode ser chamada
de “primitivista”.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar. c) através do desenvolvimento de temas
Um burro vai devagar. prosaicos, incorporam o cotidiano
DRUMMOND

como matéria de poesia, idealizando-o o tema, o segundo faz uma apologia bem-
como o âmbito dos acontecimentos e humorada do progresso urbano.
sentimentos sublimes.
b) Os textos assemelham-se não apenas
d) caracterizam-se pela brevidade e pelo quanto ao tema (automatização da
espírito de síntese, já que se apresentam vida humana), mas também quanto
na forma de poemas-pílula. à linguagem: ambos apresentam a
brevidade e a descontinuidade sintática
e) apresentam retratos urbanos e características de Alguma Poesia.
82 provincianos em que, normalmente,
prevalece menos uma lógica descritiva c) A crítica à mecanização excessiva que
que uma perspectiva prismática da caracteriza a vida moderna evidencia-se,
EXERCÍCIOS

realidade vivida e observada. no texto I, especialmente no emprego


da antítese no primeiro verso, e, no texto
II, no emprego do estrangeirismo, ou
4. (FUVEST) barbarismo (stop).

I. d) O texto II apresenta, através de uma


“(…) linguagem marcada pela concisão
Há máquinas terrivelmente complicadas telegráfica, a crítica presente no texto
para as necessidades mais simples. I, uma vez que os termos zero, stop e
Se quer fumar um charuto aperte um parou indicam a total dependência da vida
botão. moderna em relação às máquinas.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio. e) A máquina como assunto poético pode
Não precisa estômago para digestão. ser verificada nos dois textos, o que torna
(…)” (O sobrevivente) evidente a influência exercida, sobre o
autor, da vanguarda artística conhecida
II como futurismo.
Cota zero
“Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?”

Sobre esses versos, extraídos de Alguma


Poesia, pode-se dizer que:

a) Os dois textos podem ser aproximados


quanto ao tema (mecanização do
cotidiano); entretanto, enquanto o
primeiro apresenta uma visão crítica sobre
MIA COUTO
Mia Couto
(1955- )
Terra Sonâmbula, 1992
83

I. O Autor amigo me trouxe uma cópia, em xerox,


do livro Primeiras Histórias. Marcou-
Antônio Emílio Leite Couto – Mia Couto- me especialmente (o conto) A Terceira
nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. Margem do Rio. Aquilo foi um abalo
Mesmo ano em que teve fim a Guerra sísmico na minha alma, porque ali estava
Civil em Moçambique. Com 14 anos, Mia o que eu e outros estávamos procurando.
Couto publicou seus primeiros poemas. Em Havia ali não só uma relação com a língua,
1971 deixou sua cidade e foi para a capital mas também com outras coisas que estão
Lourenço Marques, hoje Maputo. Ingressou para além dela, uma tentação de criar na
no curso de Medicina, mas depois de três linguagem um universo próprio, como se
anos abandonou a faculdade. A partir a linguagem se apropriasse da história, da
de 1974 dedicou-se ao jornalismo e à geografia, criando outra realidade. E essa
literatura. Vencedor de vários prêmios, outra realidade também era importante
dentre eles, o Camões, em 2013. para nós, que estávamos vivendo a lógica
de um estado centralizador, que esmagava
as lógicas rurais, esse mundo do sertão,
que não é da ordem da geografia, mas
“Eu publiquei minhas primeiras histórias da soma de várias culturas. A leitura de
sem conhecer Guimarães Rosa, que vim Guimarães Rosa foi para mim como um
a conhecer por meio de Luandino Vieira, rasgão. Grande Sertão: Veredas é aquele
um escritor angolano muito influenciado livro ao qual se regressa constantemente,
pela prosa dele. Eu li uma entrevista na capaz de retratar um mundo inteiro.”1
qual Luandino declarava essa influência.
E havia nessa época, em Angola e
Moçambique, uma procura pela oralidade
na literatura que já havia acontecido no
Brasil, especialmente pelo Guimarães 1 In: https://www.portalraizes.com/1mia-
Rosa. Como estávamos em guerra, não couto-guimaraes-rosa/,acessado em
tínhamos contato com o Brasil, mas um 01/07/2021
MIA COUTO

− O autor possui um estilo próprio que os quatro milhões de migrantes que


busca construir um elo entre a tradição vagavam pelo país.
africana dos griots e a tradição ocidental
da escrita. Ao invés de ter progresso, Moçambique
tornou-se uma das nações mais pobres do
− Griots são pessoas de profundo mundo, vivendo de ajuda da comunidade
conhecimento sobre seu povo e suas internacional.
tradições, considerados sábios, e que
têm o papel fundamental de passar, de O romance, que retrata o último período
84 geração para geração, as tradições e a dessa guerra civil, foi publicado pela
história de seu povo. Por essa função primeira vez em 1992, quando foi assinado
são profundamente respeitados no o Acordo Geral de Paz entre os dois
mundo africano. A eles está ligada a grupos, que hoje disputam pacificamente
imagem da união, da congregação, uma as eleições.
vez que reúnem as pessoas das aldeias
à sua volta sob uma árvore ou em torno O livro é estruturado em onze capítulos
de uma fogueira para transmitir seus intercalados com onze cadernos de um
ensinamentos. diário. Teoricamente, temos o mise en
abyme, expressão utilizada pela primeira
vez pelo escritor francês André Gide para
II. Contexto Histórico e a Obra descrever narrativas que contêm outras
narrativas dentro de si.
O livro traz como pano de fundo a
devastação de Moçambique por Terra Sonâmbula fala da guerra, não
sucessivos confrontos. De 1965 a 1975, através das suas entranhas, mas através
a batalha é contra o domínio português. das suas sombras, dos seus ecos.
Após a independência, em 1975, outro
conflito se sucede. Disputas internas Em seu titulo, o autor nos transporta para
entre os partidos Renamo (Resistência dois universos estruturantes da obra: a
Nacional Moçambicana) e Frelimo terra e o sonho.
(Frente de Libertação de Moçambique)
ocorrem de 1976 a 1992 e fazem vítimas,
indiscriminadamente.
“O que faz andar a estrada? É o sonho.
A independência foi o início não de uma Enquanto a gente sonhar a estrada
era de prosperidade, mas de um conflito permanecerá viva. É para isso que servem
intenso que rapidamente transformou- os caminhos, para nos fazerem parentes
se em uma catástrofe: uma longa guerra do futuro.” (Fala de Tuahir) (Epígrafe)*
civil que fez mais de um milhão de mortes,
destruindo todas as estruturas do país.
As vítimas deste conflito encontram-se
ficcionalizadas em Terra sonâmbula por
meio dos personagens Kindzu, Muidinga e
Tuahir, estes dois últimos representando *Ver referências.
MIA COUTO
− A obra também nos coloca diante da anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é
situação de “margem”, daquilo que é e, ao uma costureira dos sonhos.” (p.182)*
mesmo tempo, não é.

− A terra é sonâmbula, pois nela não


há paz, porque em seu solo homens
caminham errantes, sem saber quem III. O Narrador e a Identidade
são, ao mesmo tempo em que fogem da Nacional
fome, da guerra, da morte. Apesar disso, a
terra e os homens buscam ardentemente − Em Terra sonâmbula, temos que falar 85
sua identidade, abrigando o desejo do em narradores.
fim da guerra, o sonho e a utopia de dias
melhores. − A obra se estrutura em duas narrativas:
a história de Muidinga e a de Kindzu.

Ambas as histórias se passam durante a


“- O que aprendeste debaixo da casca guerra civil moçambicana, versando sobre
desse mundo? a procura e a esperança.

- Eu quero voltar, estou cansado. Eu É importante salientar que, durante o


agora sei quem és, me ajude a voltar... enredo, outros narradores surgirão para
contar suas histórias: Tuahir, Farida,
- O que andas a fazer com um caderno, Siqueleto, entre outros.
escreves o quê?
O leque de narradores é ainda maior se
- Nem sei, pai. Escrevo conforme vou considerarmos que cada uma dessas
sonhando. vozes reproduz contos ancestrais, traduz
lendas populares, transmite a cultura da
- E alguém vai ler isso? terra.

- Talvez. A estrutura encaminha o leitor para um


grande jogo de duplos: escrita/oralidade;
- É bom assim: ensinar alguém a sonhar. tradição/modernidade; velho/novo; local/
universal; real/irreal; guerra/paz.
- Mas pai, o que passa com esta nossa
terra? − A trajetória de Muidinga é narrada em
terceira pessoa, portanto temos uma
- Você não sabe, filho. Mas enquanto os visão de fora, o panorama da necessidade
homens dormem, a terra anda procurar. de reconstruir um país dividido.

- A procurar o quê, pai? − Os Cadernos de Kindzu são narrados


em primeira pessoa, mostrando a visão
- É que a vida não gosta sofrer. A terra de dentro, ou seja, as dificuldades de
anda procurar dentro de cada pessoa, construção de uma identidade nacional
MIA COUTO

quando a própria identidade individual “E as estórias se seguiam, se repetiam,


precisa ser encontrada, descoberta, trocavam e multiplicavam.
elaborada e reconstruída.
- Me estás a ouvir, Kindzu?
“A construção de uma identidade é
um fenômeno que resulta a partir de Na realidade, eu já desistira de escutar.
muitos fatores que interpelam o sujeito. Pensava sobre as semelhanças entre mim
Influem nessa composição fatores e Farida. Entendia o que me unia àquela
culturais, econômicos e regras que mulher: nós dois estávamos divididos
86 regem um determinado território ou uma entre dois mundos. A nossa memória se
coletividade que constrói sua própria povoava de fantasmas da nossa aldeia.
narrativa histórica, sua crença e seus Esses fantasmas nos falavam em nossas
objetivos. (...) línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos
Em Terra sonâmbula, personagens em sonhar em português. E já não havia
crise identitária, os quais transparecem aldeias no desenho do nosso futuro.
uma transgressão em seus sentidos, Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso,
sentimentos e memória, procedentes à de Virgínia, de Surendra. E sobretudo,
guerra, desenham os sonhos construídos culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela
em meio às turbulências que os rasuram.” queria sair para um novo mundo, eu queria
(SANTOS, 2012) desembarcar numa outra vida. Farida
queria sair de África, eu queria encontrar
um outro continente dentro de África. Mas
uma diferença nos marcava: eu não tinha
A narrativa mostra-se muito ligada a força que ela ainda guardava. Não seria
às origens locais, pois apresenta o nunca capaz de me retirar, virar costas.
vocabulário, a cultura, as angústias e as Eu tinha a doença da baleia que morre na
alegrias de Moçambique nesse difícil praia, com olhos postos no mar.” (p.92-93)*
período, além de ilustrar, nas identidades
das personagens, a força que a guerra tem
em desconstruir.
É importante neste momento refletirmos
No desfecho da história, há o encontro acerca da importância do idioma na
do passado desmemoriado e o presente construção da identidade nacional.
a ser (re)construído, a tradição que é
semeada no futuro. Nasce, junto com Um fator relevante diz respeito à questão
Muidinga, a esperança de um tempo, uma da oralidade. A miséria africana e a origem
redescoberta identitária que havia sido tribal de muitos de seus grupos sociais
perdida, o “miúdo” renasce ao descobrir a - como, de resto, os de outras partes do
si mesmo. planeta - leva a supor o predomínio de um
pensamento primitivo, entendido como
O autor mostra que a sabedoria do sinônimo de barbárie.
passado pode ser a semente do futuro
a ser lançada em um terreno fértil, Nesse contexto, a oralidade aparece como
perpetuando uma identidade cultural. recurso natural de estilo, que pretende
MIA COUTO
resgatar a atmosfera pré-letrada que se em cujo seio se originou um complexo
associa ao tribalismo. de inferioridade em decorrência do
sepultamento da originalidade cultural
Esse dado é tanto mais importante quanto local – se confrontado com a linguagem
se percebe sua exploração em Terra da nação civilizadora, quer dizer, da cultura
sonâmbula para tratar quanto se percebe metropolitana. O colonizado tanto mais
das questões de Moçambique: no livro, a se evadirá da própria selva quanto mais
oralidade é igualmente, uma construção adotar os valores culturais da metrópole.”
estética, sem pretender em nenhum (FANON, 2020)
momento ser reprodução fiel de falas 87
reais. Assim, em Moçambique, a literatura
vai além da letra (no sentido da escrita) e
incorpora a fala. Através das estórias dentro da estória,
o autor busca uma aproximação com o
Em Terra sonâmbula, essa situação se centro da realidade cultural moçambicana
complica ainda mais na medida em que a e um reaproveitamento dos modelos
fala do menino Kindzu é vertida em letra ocidentais.
nos cadernos que escreve, e que, por sua
vez, lidos em voz alta reassumem sua Como a escrita, a terra também ocupa
condição de fala. espaço central nesse romance, e
estabelece-se uma relação intima entre
No contexto social do romance a esses dois elementos, como fica evidente
dualidade entre escrita e fala tem mais no final do texto:
que um sentido estético. A guerra de
independência terminou assim como a
Guerra Civil, mas continua a guerrilha
linguística: sem negar a língua do “Me apetece deitar, me anichar na terra
colonizador, trata-se de se apropriar morna. Deixo cair ali a mala onde trago os
dela para dar voz à sua própria, sem cadernos. Uma voz interior me pede para
derramamento de sangue. que não pare. É a voz de meu pai que me
dá força. Venço o torpor e prossigo ao
Assim, na obra, a escrita serve para longo da estrada. Mais adiante segue um
mediar e conservar as tradições e a miúdo com passo lento. Nas suas mãos
oralidade, além de conservar e reinventar estão papéis que me parecem familiares.
a memória em um lugar tomado pela Me aproximo e, com sobressalto,
guerra e deslocamentos humanos e, confirmo: são os meus cadernos. Então,
consequentemente, fragmentado. com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o
menino estremece como se nascesse por
“Falar é ser capaz de empregar uma segunda vez. De sua mão tombam
determinada sintaxe, é se apossar da os cadernos. Movidas por um vento que
morfologia de uma ou outra língua, mas nascia não do ar mas do próprio chão, as
é acima de tudo assumir uma cultura, folhas se espalham pela estrada.
suportar o peso de uma civilização. (...)
Todo povo colonizado – isto é, todo povo
MIA COUTO

Então, as letras, uma por uma, se Lendo os cadernos de Kindzu, eles fazem
vão convertendo em grãos de areia e, descobertas sobre si e sobre o local em
aos poucos, todos meus escritos se vão que vivem. Refletem muito sobre o país
transformando em páginas de terra.” e seus conflitos, mas também sobre
(p.204)* questões mais universais como amor,
medo, guerra, destino.

A ausência de memória de Muidinga e sua


88 perda de identidade, da qual se ressente, “Um velho e um miúdo vão seguindo pela
pode ser motivo de expectativa positiva: estrada. Andam bambolentos como se
se ele não é ninguém, pode ser qualquer caminhar fosse seu único serviço desde
um. Muidinga busca resgatar seu passado, que nasceram. Vão para lá de nenhuma
apanhando-o um tanto aleatoriamente parte, dando o vindo por não ido, à espera
no escrito que trata de outra realidade, do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra
diferente da sua. que contaminara toda a sua terra. Vão na
ilusão de, mais além, haver um refúgio
Sua busca e a de Kindzu é a mesma: tranquilo. Avançam descalços, suas
Kindzu busca Gaspar e Muidinga, por si vestes têm a mesma cor do caminho. O
mesmo – o próprio Gaspar. velho se chama Tuahir. É magro, parece
ter perdido toda a substância. O jovem
Assim, temos duas trajetórias iniciáticas, se chama Muidinga. Caminha à frente
dois ritos de passagem, duas histórias de desde que saíra do campo de refugiados.
formação que se unem em uma só para Se nota nele um leve coxear, uma perna
compor um romance de formação da demorando mais que o passo. Vestígio da
pátria moçambicana. doença que, ainda há pouco, o arrastara
quase até à morte. Quem o recolhera fora
Muidinga reconstitui sua identidade a o velho Tuahir, quando todos outros o
partir dos cadernos de Kindzu, onde haviam abandonado. O menino estava já
também se encontra a cultura de sem estado, os ranhos lhe saíam não do
Moçambique. nariz mas de toda a cabeça. O velho teve
que lhe ensinar todos os inícios: andar,
falar, pensar. Muidinga se meninou outra
IV. Personagens vez. Esta segunda infância, porém, fora
apressada pelos ditados da sobrevivência.
As personagens se encontram em Quando iniciaram a viagem já ele se
situações precárias, o sofrimento e a acostumava de cantar, dando vaga a
dificuldade caminham juntos nas viagens distraídas brincriações. No convívio com a
de Kindzu, Tuahir e Muidinga. solidão, porém, o canto acabou por migrar
de si. Os dois caminheiros condiziam com
1. Muidinga e Tuahir a estrada, murchos e desesperançados.”
(p.9-10)*
Vivem diversas experiências durante sua
estada nos arredores do machimbombo o
qual se tornou abrigo dos dois.
MIA COUTO
Tuahir e Muidinga funcionam como dos iletrados e da transmissão oral do
representações do povo moçambicano, conhecimento.
em busca de uma identidade que só pode
ser encontrada não por um ou por outro, A união entre eles é fundamental: trata-se
mas por ambos, naquilo que mais os de reafirmar a sabedoria, mas conduzi-la
aproxima desse povo: a busca do moderno ao futuro da modernidade.
(figurada no menino) sem perder a visão
na tradição (representada pelo velho). A oralidade não é desprezada como
expressão do conhecimento, tampouco a
A história de Tuahir e Muidinga apresenta- escrita é tida como espaço privilegiado. 89
se como uma história de dor e sofrimento.
As duas pontas da vida, a infância e
a velhice, perambulam por um país
devastado, fugindo da fome e dos bandos “Nessa modificação do ser, percebe-
armados que aterrorizam as pessoas se que a tradição é vista como algo
espalhando morte por onde passam. No necessário para que haja uma perfeita
entanto, essa também é uma história de harmonia entre o indivíduo e o meio em
esperança, não só pelo fato do conforto que vive. É necessário que se conheça o
que encontram com a leitura dos cadernos passado para que se possa interferir no
do jovem morto, mas também pelas presente. Será através da aliança entre
inúmeras vivências que os dois têm depois o passado e o presente que o indivíduo
que deixam o campo de refugiados. poderá construir o seu futuro, sem renegar
suas tradições, sua cultura e a sabedoria
Muidinga representa a inteligência, que foi armazenada em cada pequena
a esperteza, aquele que detém o partícula da tradição de seu povo”. (BACH,
conhecimento do novo, vínculo 2008)
estabelecido com a sociedade moderna
do homem branco e capitalista. Tuahir é
a continuidade da tradição, representa a
sabedoria acumulada através daquela. 2. Kindzu

Na obra, a relação entre velho e criança é − Personagem tem papel importante na


afirmada e subvertida: obra, já que seus cadernos dão voz a um
exímio contador de histórias.
− Afirmada, pela condução que os velhos
dão à narrativa, como por exemplo, a − O pai de Kindzu, Taímo, também fazia o
figura de Taímo que acompanha Kindzu, mesmo, mostrando um ícone marcante da
que ainda conta com a orientação de cultura africana.
outros idosos.

− Subvertida, pelo destaque que os


jovens têm sobre os velhos, pela escrita: “Quero pôr os tempos, em sua mansa
modernidade que vigora sobre a tradição ordem, conforme esperas e sofrências.
Mas as lembranças desobedecem, entre
MIA COUTO

a vontade de serem nada e o gosto de me sombra que passava por Moçambique,


roubarem do presente. Acendo a estória, uma terra em divórcio com os
me apago a mim. No fim destes escritos, antepassados.
serei de novo uma sombra sem voz.

Sou chamado de Kindzu. É o nome que


se dá às palmeiritas mindinhas, essas que “Minha alma era um rio parado, nenhum
se curvam junto às praias. Quem não lhes vento me enluava a vela dos meus sonhos.
conhece, arrependidas de terem crescido, Desde a morte de meu pai me derivo
90 saudosas do rente chão? Meu pai me sozinho, órfão como uma onda, irmão das
escolheu para esse nome, homenagem à coisas sem nome.
sua única preferência: beber sura, o vinho
das palmeiras”. (p.15)* Enquanto me preguiçava sem destino,
ia ouvindo os ditos da gente: esse Kindzu
apanhou doença da baleia. Falavam da
grande baleia cujo suspiro faz o oceano
Toda a narração pelos cadernos de Kindzu encher e minguar. Minhas parecenças
é fantástica, cheia de magia, lendas e com o bicho traziam lembranças do
crenças locais, por exemplo, o trecho antigamente: nós, meninitos, sentados
em que ele conta sobre a morte do Pai, nas dunas. Escutávamos o marmulhar das
criando uma espécie de Mito. ondas, na quebra do horizonte, enquanto
esperávamos ver a baleia. Era ali o lugar
Kindzu passa boa parte da obra dela aparecer, quando o sol se ajoelhava
procurando o que lhe faltava, ele procura na barriga do mundo. De repente, um ruído
se encontrar, procura seu irmão, sua barulhoso nos arrepiava: era o bicharão
amada, seus amigos, procura se tornar começando a chupar a água! Sorvia até
um grande guerreiro naparama e, no meio o mar todo se vazar. Ouvíamos a baleia
disso tudo, procura fugir das cenas de mas não lhe víamos. Até que, certa vez,
violência e terror que o cercam. desaguou na praia um desses mamíferos,
enormão. Vinha morrer na areia. Respirava
Kindzu percebe que seu aos custos, como se puxasse o mundo
país está agonizando. Sente-se desolado nas suas costelas. A baleia moribundava,
e perdido, pois perdeu pai e o irmão, e sua esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar
mãe o rejeita. Ele é movido pelo desejo carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não
de partir/ fugir de sua terra. Além disso, morrera e já seus ossos brilhavam no sol.
o personagem sente-se amaldiçoado Agora, eu via o meu país como uma dessas
por não ter seguido as tradições no baleias que vêm agonizar na praia. A morte
cuidado com seu finado pai (fazendo nem sucedera e já as facas lhe roubavam
oferendas, enterro, comidas). pedaços, cada um tentando o mais para
si. Como se aquele fosse o último animal,
A sombra nefasta desse homem que a derradeira oportunidade de ganhar uma
lhe dava apenas ordens e pouco afeto porção. De vez enquanto, me parecia ouvir
é constante em seus sonhos. Assim ele ainda o suspirar do gigante, engolindo
também enxergava seu país, há uma vaga após vaga, fazendo da esperança
MIA COUTO
uma maré vazando. Afinal, nasci num escrever muito bem e, sobretudo, contar
tempo em que o tempo não acontece. ainda melhor. Eu devia receber esses
A vida, amigos, já não me admite. Estou expedientes para um bom futuro. Pior, era
condenado a uma terra perpétua, como Surendra Valá. Com o indiano minha alma
a baleia que esfalece na praia. Se um dia arriscava se mulatar, em mestiçagem de
me arriscar num outro lugar, hei-de levar baixa qualidade. Era verdadeiro, esse risco.
comigo a estrada que não me deixa sair de Muitas vezes eu me deixava misturar nos
mim”. (p.22-23)* sentimentos de Surendra, aprendiz de
um novo coração. Acontecia no morrer
das tardes quando, sentados na varanda, 91
ficávamos olhando as réstias do poente
Nessa situação, Kindzu procura um refletidas nas águas do Índico.” (p.24-25)*
curandeiro da sua aldeia, ele diz para o
jovem partir da terra para o mar e tentar
fugir do espírito do pai. O jovem decide se
tornar um Naparama (guerreiro justiceiro O conhecimento adquirido e transmitido
da região), então segue nessa busca. Em por Kindzu é o principal fator de seu rito
determinado momento, ele chega à ilha de de passagem. Principalmente por seu
Matimati, onde havia um navio naufragado papel de ponte: entre a obtenção e a
num banco de areia. O povo da ilha fala transmissão desse conhecimento há uma
que Kindzu não é bem-vindo ao local, diferenciação. Filtrado pela inocência da
então ele parte de novo para o mar e criança, o conhecimento se transmite de
acaba indo para o navio naufragado, onde forma mais pura.
encontra Farida.
Desse modo, a cultura que Kindzu recebe
A viagem que Kindzu empreende, saindo não é a mesma que passa adiante: ela
de sua aldeia, funciona como um rito de vai acrescida de novas perspectivas, de
passagem. Ele vai se tornar adulto na possibilidades de misturas, de junções
busca de seu destino. Importante salientar entre conhecimentos díspares, enfim, de
uma característica da personalidade da um Moçambique sem divisões.
personagem: sua curiosidade.
Os escritos dos cadernos são a ponte
entre o velho e o novo. Por isso,
conquistarão o interesse de Tuahir.
“Primeiro, era a escola. Ou antes: minha
amizade com meu mestre, o pastor O conhecimento do velho deveriam
Afonso. Suas lições continuavam mesmo se impor, mas é o poder da leitura que
depois da escola. Com ele aprendia outros subverterá a tradição, fazendo o jovem
saberes, feitiçarias dos brancos como assumir o papel de guia.
chamava meu pai. Com ele ganhara esta
paixão das letras, escrevinhador de papéis Dessa maneira, os cadernos representam
como se neles pudessem despertar os para Muidinga um processo de
tais feitiços que falava o velho Taímo. Mas autoconhecimento.
esse era um mal até desejado. Falar bem,
MIA COUTO

3. Farida Conforme Farida crescia, o pai adotivo


começou a ter grande desejo sexual pela
Farida também é perseguida por tradições garota. Certa vez ela foi levada pela mãe
de maldição, pois nasceu gêmea, o que que ‘delirava’ a uma Missão para um padre
em sua tribo era sinal de grande desgraça. cuidar, ficando afastada do pai. Farida
Assim, sua irmã, que descobriremos ser não aguentou viver no lugar e resolveu
Carolinda, teria que ser morta para afastar partir, mas antes passou na casa dos pais
a maldição, depois de diversos episódios adotivos. A mãe não estava e o marido se
acabou sendo separada da mãe e ainda aproveitou da situação e acabou abusando
92 pequena foi adotada por um casal de de Farida. Desse ocorrido, ela acabou
portugueses: Romão Pinto e Dona Virgínia. ficando grávida e seu filho, Gaspar, sendo
mulato, causaria mais motivos de discórdia
e maldições para as pessoas de sua terra,
então optou por deixá-lo na Missão para
“Farida era filha do Céu, estava condenada os religiosos cuidarem. Depois de muito
a não podei nunca olhar o arco-íris. Não tempo de tê-lo deixado lá, resolveu voltar
lhe apresentaram à lua como fazem com para se reaproximar do filho, mas o menino
todos os nascidos da sua terra. Cumpria acabou fugindo. Quando encontra Kindzu
um castigo ditado pelos milénios: era no barco, ela pede a ele que vá em busca
filha-gémea, tinha nascido de uma morte. de seu filho perdido.
Na crença da sua gente, nascimento de
gémeos é sinal de grande desgraça. No dia A marca da caracterização de Farida é sua
seguinte a ela ter nascido, foi declarado beleza e sensualidade.
chimussi: a todos estava interdito lavrar
o chão. Caso uma enxada, nesse tempo, O significado possível de seu nome é
ferisse a terra, as chuvas deixariam de cair bastante sugestivo: “pérola”, em árabe,
para sempre. ou ainda, único, sem par. Em persa, vai
significar “beleza incomparável”. No
Dias depois, sua irmã morreu. romance, de fato, Farida é pérola, fechada
Deixaram-na morrer com fome. Fizeram na concha de seu navio.
isso por bondade: para aliviar a maldição.
Enterraram a menina no pequeno bosque Solitária, sem lar, sem família, sem posse,
sagrado onde dormem as crianças sem identidade precisa, Farida faz de sua
falecidas. Meteram-lhe numa panela de autossuficiência a condição para criar
barro quebrada. Foi semeada sem quase uma nova vida, sem lastro, sem passado
nenhuma terra lhe cobrir. Destinaram-lhe – e com um destino a cumprir, fora do
um lugar perto do rio, onde o chão nunca demarcado.
seca. Assim as nuvens lembrar-se-iam
sempre da obrigação de molhar a terra”. Por isso, carrega a utopia consigo: ela é
(p.70)* vida e morte. Carrega a morte, por ser
fruto amaldiçoado; mas traz a vida, por ter
o fruto da libertação – Gaspar.
MIA COUTO
4. Siqueleto Era por causa do cansaço que ele
não abria os dois olhos de uma só vez. O
Último sobrevivente de uma aldeia, salva idoso homem tinha, apesar de tudo, seus
Muidinga e Tuahir de uma armadilha, pensamentos futuros. Para ele só havia
mas os mantêm prisioneiros, já que tem uma maneira de ganhar aquela guerra:
a pretensão de plantá-los na terra, para era ficar vivo, teimando no mesmo lugar.
que nasçam mais pessoas e repovoem o Não desejava nenhuma felicidade, nem
vilarejo. sequer se deliciar com doces lembranças.
Lhe bastava sobreviver, restar como um
guarda daquela aldeia em ruínas. Agora 93
ele amaldiçoa os que tinham saído dali”.
“Depois ele se apresenta com sua estória. (p.66)*
Enquanto fala vai sacudindo a lata como
se acompanhasse uma canção. Daquele
lugar todos se tinham ido embora, por
motivo do terror. Os bandos assaltaram, “Essa integração do velho ao novo se
mataram, queimaram. A aldeia foi ficando observa também no capítulo em que
deserta, todos partiram, um após nenhum. é narrada a história de Siqueleto, um
A família lhe chamava o pensamento: ancião que ficara só numa das aldeias
venha conosco, já toda a gente foi embora! abandonadas. Tuahir e Muidinga o
encontram porque caem numa armadilha
Assim lhe rogavam na hora da partida. e são salvos por ele. Siqueleto fala a
Ele respondia: língua local e Muidinga não entende,
Tuahir serve de intérprete. Assim,
- Eu sou como a árvore, morro só de observa-se aqui a dependência do novo
mentira. ao velho. No final, Siqueleto pede que
Muidinga escreva seu nome numa árvore,
E agora perante os dois inesperados mostrando agora a dependência do velho
visitantes ele repete as suas parecenças ao novo. Logo, esses acontecimentos
com as árvores que renascem cada ano. corroboram para reafirmar o que foi dito:
Tuahir acompanha com dificuldade, a o novo anda de mãos dadas com o velho.
ausência de dentes deforma as palavras Em Terra Sonâmbula, mostra-se que o
do solitário aldeão. conhecimento ancestral é necessário
para que se possa construir um novo
- Sou velho, já assisti muita desgraça. paradigma”. (BACH, 2008)
Mas igual como essa nunca eu vi. E abana
a cabeça, pesaroso.

- Estás triste, velho?, pergunta-lhe 5. Romão Pinto e Dona Virgínia


Tuahir.

- Já não fico triste, só cansado.


“Despertou numa casa de cimento,
deitada em colchão de espuma. Lhe
MIA COUTO

tinham levado para a residência de um africano, como “herdeiro”, o que sugere


casal de portugueses. Romão Pinto, uma herança colonial que extravasa a
dono das muitas terras e Dona Virginia, raça. Nele, o poder de Romão transborda,
sua esposa, trataram dela durante anos. perpetuando a dominação.
Lhe ensinaram a escrever e falar, lhe
corrigiram as maneiras que trazia da − Porém, Romão também transbordará
terra. Virigínia, assim lhe chamavam, era em Gaspar, a semente que combaterá a
generosa como já não há. Foi ela que mesma dominação.
teimou em lhe adoptar como se fosse sua
94 filha. Muitas vezes Farida sentiu desejo de − Portugal deixa um rastro de destruição,
a tratar por mãe. Mas ela não aceitou. Tua de corrupção, de miséria, de posses
mãe não haveria de gostar, dizia ela. Suas violentas; mas do sofrimento profundo
mãos trançavam os cabelos de Farida pode nascer a redenção que construa a
e a cabeça dela adormecia longe de si, ponte e reconstrua a identidade nacional.
longe do mundo. Cresceu nessa sombra,
ali lhe despontaram os seios, ali se tornou − Dona Virgínia é a mulher que acolhe e
mulher. Foi nessa casa que, pela primeira cuida de Farida, papel que cumpre até o
vez, sentiu os olhos de um homem momento em que a moça passa a ser alvo
salivando. Romão Pinto lhe perseguia, dos desejos do marido.
suas mãos não paravam de lhe procurar.
Às vezes, de noite, espreitava pela janela − Para proteger Farida do marido, Virgínia
enquanto ela tomava banho. Farida estava retira-a do convívio enviando-a para um
cercada, indefesa. Não podia queixar a convento; para se proteger, entrega-se a
Dona Virgínia, menos podia enfrentar as uma loucura que tem muito de fictícia, de
tentativas de Romão”. (p.74)* instinto de preservação.

− Assim, construirá duas identidades: a


da esposa (que abandona com a morte
− Romão Pinto, o português, é do marido) e a de mulher que cuida de
caracterizado pela posse – de terras e crianças e conta-lhes histórias.
corpos. Sua condição de origem permite
relacioná-lo à imagem do colonizador. − Virgínia é órfã de si mesma, órfã daquela
que foi. Essa circunstância pode ser vista
− Seu nome tem o mesmo significado como a abertura para a possibilidade de
que “romano”. Já que faz referência a um ser quem quiser.
português, pode funcionar como figuração
da “Última flor do Lácio”, poema de Olavo − Por isso, Virgínia também é
Bilac. Nesse sentido, a língua funciona Moçambique. De sua loucura nasce outra
também como instrumento de domínio, de mulher e outra pátria, com novas histórias.
exercício de poder; ela também é sexuada,
também é capaz de possuir.

− Com sua morte, não termina a “Dona Virgínia Pinto. Ali estava ela,
corrupção, já que deixa Estevão Jonas, varandeando no exercício de sua última
MIA COUTO
meninez. Em nenhuma data os carros - Sabe, Muidinga? Nós dois éramos
por ali poeiram. As cidades agora são empregados do mesmo patrão.
muito longe, a guerra rasgou os cantos
da terra. A portuguesa se vai deixando Cada um puxa a sua lembrança, em
em tristonhas vagações. Branca de suave escorrer, rindo mesmo dos mais
nacionalidade, não de raça. O português tristes momentos. O miúdo lhes chama
é sua língua materna e o makwa, sua ao presente. Quer saber o que animava
maternal linguagem. Ela, bidiomática. Nhamataca, covando assim.
Os meninos negros lhe redondam a
existência, se empoleirando, barulhosos, - Estou a fazer um rio, responde o 95
no muro. Ela nem zanga. outro.

E me contam assim: que Dona Virgínia Riem-se, o rapaz e Tuahir. Mas o homem
amealha fantasias, cada vez mais se insiste, no sério. Sim, por aquele leito fundo
infanciando. Suas únicas visitas são essas haveria de cursar um rio, fluviando até ao
crianças que, desde a mais tenra manhã, infinito mar. As águas haveriam de nutrir
enchem o som de muitas cores. Os pais as muitas sedes, confeitar peixes e terras.
dos meninos aplicam bondades na velha, Por ali viajariam esperanças, incumpridos
trazem-lhe comida, bons-cumprimentos. sonhos. E seria o parto da terra, do lugar
A vida finge, a velha faz conta. No final, as onde os homens guardariam, de novo, suas
duas se escapam, fugidias, ela e a vida”. vidas”. (p.85-86)*
(p.158)*

b. Junhito: irmão mais novo de Kindzu,


6. Outras Personagens batizado de Vinticinco de Junho em
homenagem à Independência de
a.Nhamataca: antigo colega de trabalho Moçambique.
de Tuahir. Quando se reencontram revela
que está “fazendo um rio”. Podemos “- É ele. É ele quem vai falecer!
associar a personagem à utopia. Seu nome
significa “corpo de terra”, da junção de Apontou Junhito, nosso Irmão mais
duas palavras: nhama (corpo) + mataka pequeno. Estremecemos todos, meu
(terra). irmanito nem entendeu o que se falava.
Seus ouvidos não trabalhavam bem desde
que ele quase se afogara. A água lhe
entrou fundo nos ouvidos, tanto que nunca
“- Este é Nhamataca. Trabalhámos juntos, mais se limparam.
no tempo colonial.
Sacudiu-se, enxugou-se: nada. A água
Se cumprimentam rodando as mãos lá ficou, a gente ouvia chocalhar na cabeça
sobre os polegares, à maneira da terra. dele. Tive que lhe repetir as palavras de
Os dois velhos amigos se sentam, fiando meu pai. Junho se escondeu entre meus
conversa, recordando os tempos.
MIA COUTO

braços, tremedroso. O velho ergueu a - Foi uma mulher chamada Carolinda.


bengala suspendendo as gerais tristezas.
- A mulher do administrador?
- Calem! Não quero choraminhices.
Este problema já todo eu pensei. Em Admiti com um simples aceno
diante, Junhito vai viver no galinheiro! da cabeça. Euzinha sorri. Ela sempre
desconfiara. Não era tanto as
Fez seguir ordens de seu mandamento: semelhanças entre Carolinda e Farida.
o miúdo devia mudar, alma e corpo, na Havia uma outra coisa que ela não sabia
96 aparência de galinha. Os bandos quando explicar. Tinha encontrado Carolinda
chegassem não lhe iriam levar. Galinha mas de modo fugaz. Em tanto que
era bicho que não despertava brutais esposa do administrador ela visitara
crueldades. Ainda minha mãe teve ideia uma vez o centro. Disse que voltaria. Não
de contrariar: não faltavam notícias de sabia quando, dependia da situação de
capoeiras assaltadas. Meu pai estalou segurança.
uma impaciência na língua e abreviou o
despacho: aquela era a única maneira de - Agora me dá o colar de Carolinda.
salvar Vinticinco de Junho”. (p.18-19)*
Me surpreendi. Por que motivo ela me
c. Tia Euzinha: tia de Farida que revelou queria tirar aquela lembrança?
que sua irmã estava viva. A mãe tinha
cumprido a maldição apenas pela metade, - Você não deve mexer no destino
entregando a filha a um viajante. A tia dessas Irmãs. Nenhuma pode saber nada
explica a Farida que o colar que ela trazia, sobre da outra. Carolinda não pode saber
uma pequena figura de madeira quebrada, eu sou tia dela. Senão, a desgraça lhes vai
tinha outra metade em poder da irmã. escolher.

d. Estêvão Jonas: administrador e marido - Está certo, eu fico calado, disse eu,
de Carolinda. entregando o colar.

e. Carolinda: mulher do administrador, - Mesmo eu penso: há um demónio que


acaba dormindo com Kindzu. está trabalhar na alma de Carolinda.

Um demónio? E como sabia Euzinha


da existência de tal mau espírito? Pela
“- Veja este colar, tia Euzinha. maneira como Carolinda incitava o marido
a tomar medidas contra o barco. Era ela
A velha é como que golpeada pela que queria que Farida fosse morta. Sem
visão. Se recompõe, fingindo não ter sido nenhuma razão concreta, sem motivo
perturbada. entendível. O demónio se vingava de não
ter sido ela a menina escolhida para a vida.
- Quem te deu esse colar? me
pergunta. - Deixe as gêmeas. Se ocupa só de
encontrar Gaspar”. (p.183)*
MIA COUTO
nascendo dele, empurrada pelo seu corpo,
amadurecendo até tombar na terra e ser
f. Assane: antigo secretário do comida pelos vermes. É assim que me
administrador da região de Matimati. sinto.
Aconselha Kindzu a prosseguir sua viagem
quando este chega em Matimati.. Agora, encostada nas cordas do velho
barco aquela mulher desfiava dolorosas
g. Quintino Massua: torna-se guia de lembranças. Seu filho era o nó onde
Kindzu na busca por Gaspar. se enlaçavam todas as suas recuadas
vivências. Houve um tempo que tentou 97
regressar atrás, recuperar esse menino”.
(p.80)*
“Essa noite eu e Antoninho fomos ao bar.
Entrei e me deixei no balcão, escutando
as vozes distantes dos presentes, quase
todos embriagados. Muitos aproveitavam i. Surendra Valá: casado com Assma, é
as duas horas de eletricidade que o um comerciante indiano que se torna
gerador da administração distribuía pelo amigo de Kindzu, embora sua família fosse
povoado. E se agremiavam na cervejaria, contrária à essa aproximação. Surendra
a juntar conversa, amolecendo fraquezas é avesso a qualquer pátria; Kindzu está à
em voz alta. Mais que os outros todos, procura de uma. Os dois despatriados se
dois homens se discutiam. Antoninho identificam mais pela condição que pela
identificou os tais. Um gordo, enormão, terra. Por isso, o que os une não é a terra,
balalaica carecendo de botões. Sendo mas o mar.
chamado de Abacar Ruisonho. O outro,
denominado Quintino Massua, homem
nervoso, tão magro que uma ideia, só de
ter peso, lhe fazia transpirar. Pois este “- Vês, Kindzu? Do outro lado fica a minha
Quintino levantava o copo e celebrava as terra.
boas graças:
E ele me passava um pensamento:
- Vou ficar rico, cheio da mola”. nós, os da costa, éramos habitantes não
(p.127-128)* de um continente mas de um oceano. Eu e
Surendra partilhávamos a mesma pátria: o
Índico.

h. Gaspar: filho de Farida, fruto de uma E era como se naquele imenso mar
violência sexual de seu pai adotivo, o se desenrolassem os fios da história,
português Romão Pinto. novelos antigos onde nossos sangues
se haviam misturado. Eis a razão por
“Essa criança está-me dentro, sobra- que demorávamos na adoração do mar:
me. Assim dizia Farida. E acrescentava: estavam ali nossos comuns antepassados,
Tenho-o dentro como um fruto abriga flutuando sem fronteiras. Essa era a
o caroço. Eu sou a povoa dele, estou
MIA COUTO

raiz daquela paixão de me encaseirar no de noite não sonhávamos. O sonho é o


estabelecimento de Surendra Valá. olho da vida. Nós estávamos cegos.

- Somos da igual raça, Kindzu: somos Aos poucos, eu sentia a nossa família
índicos! quebrar-se como um pote lançado no
chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado
Ele se ria, repetindo: não indianos meu refúgio já não restava nada. Nós
mas índicos. Eu fingia achar graça, rindo estávamos mais pobres que nunca”. (p.17)*
apenas de boa disposição. Enquanto ali
98 estávamos, fazendo o absoluto nada,
eu me sentia promovido. Na troca de
nossos nenhuns assuntos, Surendra se “Apesar de todos os ecos da guerra,
esquecia de atender os fregueses. Eu sempre presentes durante o romance, a
me confortava: nunca ninguém se havia guerra em si nunca chega a ser exposta.
esquecido de nada por causa de mim”. Ela sempre se encontra um passo a
(p.25)* frente dos personagens, deixando seu
rastro. Vemos os muros furados, mas não
os tiros; vemos tanques abandonados,
mas não tropas; vemos a fome, mas não
o saque dos armazéns. Isso nos mostra
V. Linhas Temáticas que na verdade o que age sobre aquele
Moçambique é uma guerra-fantasma,
que assombra o povo mas nunca chega
1. Guerra: Tendo como fundo de sua a mostrar sua verdadeira face, uma
história a guerra, inevitavelmente, o livro guerra que não pode ser enfrentada e
traz consigo a morte. E essa aparece no combatida, apenas está presente, efêmera
texto em vários momentos e de várias e destrutiva”. (OLIVEIRA, 2014)
formas. Os personagens passam por
vários corpos abandonados pelo chão
durante o caminho que eles percorrem e
eles sabem que estão acontecendo uma 2. Desejo de uma Moçambique unida:
guerra e, junto com ela, uma matança em um país dilacerado pela guerra civil,
enorme de jovens que lutam para é natural que o sonho de uma nação
defender os seus direitos. próspera e igualitária percorra os sonhos
das personagens.

“Depois, os tiroteios foram chegando mais


perto e o sangue foi enchendo nossos “O rapaz insiste em explicar seus motivos.
medos. A guerra é uma cobra que usa os As razões deles não eram iguais às
nossos próprios dentes para nos morder. dos que hoje cruzem os matos. Tuahir
Seu veneno circulava agora em todos os interrompe-o pedindo calma. Lento como
rios da nossa alma. De dia já não saímos, um rosário desfia toda a estória, razão
de estarem ali, requerendo tais ousadias.
MIA COUTO
Nem Muidinga sabia de tais dotes em seu Tuahir sorri. E lhe explica com modos
companheiro. Tuahir fala de um mundo paternos. O que aconteceu foi que aquelas
que nem há, engraçando suas visões. Que mulheres estavam em sagrada cerimónia,
a nossa terra se ia aquietar, todos não afastando os gafanhotos que assaltaram
é assim se familiariam, moçambicanos. as plantações. Elas estavam a enxotá-los,
E nos visitaríamos como nos tempos, a esconjurar a maldição. A chegada de
roendo os caminhos sem nunca mais um intruso quebrou os mandamentos da
termos medo. tradição. Nenhum homem pode assistir a
esta cerimónia. Nenhum, nunca.
- Verdade isso?, pergunta o 99
desdentado. - É que esses não são gafanhotos
próprios. São gafanhotos de alguém.
Longe se ouvem tiros, a guerra
continua a infligir seus estrondos. Tuahir Tuahir fala apontando os campos onde
prossegue, arrebatado: diz que ouviu falar cardumes de gafanhotos, em nuventanias,
de países ricos onde a gente já nem tem mastigavam o mundo. Aquele escasso
que cavar a terra: enterra-se a enxada, verde desaparece dentada por dentada.
bem direito no chão. Do cabo brotam
árvores, plantas cheias de verde. - Vamos para o machimbombo.

- Seremos assim também, sentenciou”. Muidinga se deixa levar nos braços do


(p.67)* velho. Lhe sabe bem aquele abandono, as
marcas dos brutais apertos lhe parecem
nem existir. E é assim dorido que Tuahir o
deixa tombar no banco”. (p.101)*
3. Rituais africanos: a obra apresenta uma
variedade de rituais e a forte presença da
cultura tradicional africana. Fato que está
intimamente ligado à busca da identidade 4. Questões raciais: podemos ver a
nacional, como já explicado anteriormente. presença da cultura árabe e da portuguesa
vivendo em conjunto com a africana, essa
convivência aparece aqui como marca
da colonização, da diversidade presente
“O pobre moço nem sabe se perdeu o nesses povos e também aparece em
consenso ou se o mundo rodou mais forma de preconceito vivenciado pelos
rápido que as mulheres endoidadas. Sabe personagens. A todo o momento um
apenas que está saindo de um escuro e dos conhecidos de Kindzu se pergunta:
as luzes pirilampejam, abrindo soluços no como poderia um africano ter um árabe
céu. No recorte da visão está Tuahir, lhe e um português como amigo? Esse tipo
puxando para uma sombra. de amizade não é aceita pelos outros
moradores da região, local onde o
- O que aconteceu?, pergunta diferente é visto como algo perigoso e por
Muidinga. isso, deveria ser aniquilado. Por exemplo,
o local de trabalho de Surendra Valá é
MIA COUTO

saqueado e queimado, para que eles Mas as dúvidas me ocuparam: poderia


possam perceber de quem pertenciam eu fugir daquele lugar maldiçoado?
aquela terra, e assim, pudessem voltar Recordei as palavras de Surendra: fica, tu
para o local de onde saíram. não sabes o que é andar, fugista, por terras
que são de outros. Falava como se ele
“Falo de milhões de pessoas a próprio tivesse sido forçado a abandonar
quem artificiosamente inculcaram o sua terra natal. Nunca soube o certo da
medo, o complexo de inferioridade, sua estória. Nem nunca viria a saber”.
o estremecimento, a genuflexão, o (p.28)*
100 desespero, a subserviência”2

“Quis entender melhor o que dizia. Ele se


“- Não gosto de pretos, Kindzu. esticou na cadeira e me lembrou da oficial
política do governo. Não havia racismo,
- Como? Então gosta de quem? Dos nenhuma discriminação. Até ministros
brancos? indianos havia. Contudo, havia aqueles que
estavam descontentes. Queriam fechar
- Também não. porta aos asiáticos, autorizar os acessos
do comércio apenas aos negros. Assane
- Já sei: gosta de indianos, gosta da sua desfiou politiquices, deixei de lhe escutar.
raça. Surendra já me havia falado desse perigo.
Pagaria por todos de sua raça, pelos erros
- Não. Eu gosto de homens que não e pela ambição dos outros indianos. Seria
tem raça. É por isso que eu gosto de si, preciso esperar séculos para que cada
Kindzu. homem fosse visto sem o peso da sua
raça. Assane prosseguia, lenga-lengando:
Abandonei a loja sombreado pela
angústia. Eu agora estava órfão da família - Não é só o monhé que vai passar mal.
e da amizade. Sem família o que somos? Também você se cuida. Você veio de fora,
Menos que poeira de um grão. Sem família, é um tribal, ninguém conhece seu motivo
sem amigos: o que me restava fazer? A de viagem. Já lhe tinha dito naquele dia
única saída era sozinhar-me, por minha na praia. Você é teimoso, não se queixa
conta, antes que me empurrassem para depois...”. (p.114)*
esse fogo que, lá fora, consumia tudo.

5. Espaço: em todo o livro há referências ao


fato de que é o caminho que conduz o viajante,
2 Aimé Césaire, Discurso sobre o que não são apenas as pernas e desejo dele,
colonialismo. In: FANON, Frantz. Pele negra, mas sim uma questão do destino.
máscaras brancas. Tradução de Sebastião
Nascimento com colaboração de Raquel “Ela se deslocava, seguindo de paisagem
Camargo. Ubu Editora. 2020. p.23. em paisagem. A estrada me descaminhou.
MIA COUTO
O destino o que é senão um embriagado VI. Epígrafes
conduzido por um cego? Fui sendo
levado sem conta nem tempo. Até que “Se dizia daquela terra que era sonâmbula.
meu coração se apertou em sombrio Porque enquanto os homens dormiam, a
sobressalto. Me surgiu um machimbombo terra se movia espaços e tempos afora.
queimado. Estava derreado numa berma, Quando despertavam, os habitantes
a dianteira espalmada de encontro a olhavam o novo rosto da paisagem e
uma árvore. De repente, a cabeça me sabiam que, naquela noite, eles tinham
estala em surdo baque. Parecia que o sido visitados pela fantasia do sonho”.
mundo inteiro rebentava, fios de sangue (Crença dos habitantes de Matimati) 101
se desalinhavam num fundo de luz
muitíssimo branca. Vacilo, vencido por
súbito desfalecimento”. (p.203-204)*
“O que faz andar a estrada? É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva. É para isso que servem
6. Fome: há uma inconteste denúncia os caminhos, para nos fazerem parentes
do autor no que diz respeito ao único e do futuro”. (Fala de Tuahir)
verdadeiro resultado das guerras que
estavam acontecendo em seu país: as
mortes, a destruição, a desolação e a
solidão. “Há três espécies de homens: os vivos, os
mortos e os que andam no mar”. (Platão)

“Carolinda ardia em raiva. Seu marido tinha


dado as expressas ordens: aqueles sacos Nas duas primeiras, a imagem do sonho é
só poderiam ser distribuídos quando ele explicitada.
estivesse presente. Era uma questão
política para os refugiados sentirem o Segundo a “crença” de Matimati, quando
peso de sua importância. No entanto, o os habitantes do lugar acordavam e
administrador há semanas que não ousava percebiam a mudança da paisagem,
arriscar caminho para visitar o centro de tinham certeza de “tinham sido visitados
deslocados. E assim a comida se adiava. pela fantasia do sonho”. A terra que se
desloca, assim, não o se faz exatamente
Quando saí da casinhota doeu-me a luz. sem rumo, mas na direção da utopia.
Tanto sol, para quê? Preferia que sobre o
campo se estendesse a mesma penumbra Tuahir é ainda mais incisivo em sua “fala”.
do armazém. Talvez assim não fossem tão Não se trata apenas de uma “crença”,
visíveis aqueles braços mendigos que, por mas de uma assertiva, uma fala, um
toda a parte, se estendiam: estou pedir, pronunciamento, Por isso, o conceito é
estou pedir! Eu simplesmente abanava a exposto de forma mais direta: a terra é
cabeça a negar. Mas ninguém acreditava sonâmbula porque é movida pelo sonho.
que nada tivesse para dar”. (p.188-189)* Ela deambula em busca de realizá-lo.
MIA COUTO

Por fim, a terceira epigrafe de Platão, Referências


sentencia: “Há três espécies de homens:
os vivos, os mortos e os que andam no * Todos os trechos foram retirados de: COUTO,
mar”. Ora, esse “andar no mar” partilha Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia
da mesma matéria do sonho Não se trata das Letras, 2015. Editora Schwarcz S.A. São
da plenitude da vida, nem tampouco da Paulo- SP.
situação definitiva da morte, mas do lusco-
fusco do sonambulismo permeável ao BACH, Carlos Batista. Sonhos de esperança em
sonho, ao delírio à fantasia. uma Terra Sonâmbula. Revista eletrônica de
102 crítica e teoria de literaturas. Dossiê: literatura,
O sonho está ligado à utopia, ao desejo de oralidade e memória. PPG-LET-UFRGS – Porto
mudar. Alegre – Vol. 04 N. 01 – jan/jun 2008.

“As duas epígrafes são comprovadas logo COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Análise de
em seguida pela abertura do primeiro Fernando Marcílio Lopes Couto. São Paulo:
capítulo que se intitula “A estrada morta” e Somos Sistema de Ensino S.A. 2017.
que na primeira linha se lê: “Naquele lugar,
a guerra tinha morto a estrada.” (COUTO, PASSONI, Célia A.N. Literatura Unicamp 2017:
1993, p. 9). Dessa forma, comprova-se estudo de obras, resumos, análise de textos,
ser o sonho o elemento que faz seguir exercícios / 1ª ed.-São Paulo: Editora Núcleo,
adiante, nele reside a esperança. E a 2016.
guerra, que mata os sonhos, traz consigo
a desesperança e o sentimento de FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.
desencanto. Numa terra assolada por Tradução de Sebastião Nascimento com
esse conflito, seus habitantes já perderam colaboração de Raquel Camargo. São Paulo:
a esperança na vida, por isso deixaram Ubu Editora. 2020.
de sonhar. Esse mundo dos sonhos é
buscado na narrativa, pois, através da OLIVEIRA. Rociele de Lócio. A representação
fantasia, Muidinga cria e recria o universo da guerra em Terra Sonâmbula de Mia
de Kindzu. Vive intensamente cada Couto. II Congresso Nacional Africanidades
aventura narrada nos cadernos, a ponto e Brasilidades. 4 a 6 de Agosto de 2014.
de misturar a realidade e a fantasia; o Universidade Federal do Espírito Santo. GT 01 -
seu mundo e o de Kindzu. Isso é bastante Africanidades e Brasilidades em Literaturas.
evidente, no momento em que Muidinga
propõe a Tuahir brincarem de Kindzu e seu SANTOS, Bruna Daneres dos. Terra sonâmbula
pai: Tuahir faria o papel do velho Taímo, e a construção da identidade. Revista Novas
mas a brincadeira chega ao ponto de se Letras. Centro Universitário Franciscano. V.1, n.9
confundir com o real”. (BACH, 2008) (2012) - Santa Maria: Unifra.
MIA COUTO
Exercícios indicando de modo inequívoco a função
social da literatura.

1. Leia o seguinte trecho da obra Terra b) A narrativa contida nos cadernos


Sonâmbula, de Mia Couto, extraído do de Kindzu, lida por Muidinga e Tuahir,
Sexto caderno de Kindzu, subintitulado O representa o universo onírico e se
regresso a Matimati. contrapõe à realidade objetiva das duas
personagens, razão pela qual ambas as
“Lembrei meu pai, sua palavra sempre narrativas aparecem no livro de modo
azeda: agora, somos um povo de intercalado, sem, necessariamente, haver 103
mendigos, nem temos onde cair vivos. Era uma interseção entre elas.
como se ainda escutasse:

EXERCÍCIOS
c) Segundo a personagem Kindzu, a sua
- Mas você, meu filho, não se meta a terra, sonâmbula como ele, seria um lugar
mudar os destinos. Afinal, eu contrariava da sobreposição entre sonho e realidade,
suas mandanças. Fossem os naparamas, tal como ocorre na narrativa que registra
fosse o filho de Farida: eu não estava a em seus cadernos, em que é impossível
deixar o tempo quieto. Talvez, quem sabe, o estabelecimento de uma delimitação
cumprisse o que sempre fora: sonhador entre o onírico e o real.
de lembranças, inventor de verdades. Um
sonâmbulo passeando entre o fogo. Um d) O sonho, sugerido pelo termo
sonâmbulo como a terra em que nascera. “sonâmbulo”, contrapõe-se à realidade da
Ou como aquelas fogueiras por entre as guerra, sugerida pela palavra “fogo”; terra
quais eu abria caminho no areal”. sonâmbula seria, pois, um lugar em que os
limites entre realidade e sonho aparecem
(Mia Couto, Terra Sonâmbula. São Paulo: bem delimitados e no qual as personagens
Companhia de Bolso, 2015, p. 104.) estão condenadas definitivamente à
miséria da guerra.
Na passagem citada, a personagem
Kindzu recorda os ensinamentos de seu
pai diante do estado desolador em que 2. Leia abaixo dois excertos de Terra
se encontrava sua terra, assolada pela Sonâmbula, de Mia Couto.
guerra, e reflete sobre a coerência de suas
ações em relação a tais ensinamentos. “Muidinga não ganha convencimento.
Levando em consideração o contexto Olha a planície, tudo parece desmaiado.
da narrativa do romance de Mia Couto, é Naquele território, tão despido de brilho,
correto afirmar que: ter razão é algo que já não dá vontade.”

a) A demanda realizada por Kindzu e que é (...)


relatada em seus cadernos funciona como
uma forma de fuga para a personagem “– Sabe, miúdo, o que vamos fazer?
Muidinga, que se aliena da realidade Você me vai ler mais desses escritos.
da guerra pela leitura dos cadernos,
– Mas ler agora, com esse escuro?
MIA COUTO

– Acendes o fogo lá fora. Sobre a elaboração dessa trama narrativa,


assinale a alternativa INCORRETA.
– Mas, com a chuva, a lenha toda se
molhou. a) Mesmo em se tratando de uma guerra,
a obra não apresenta tom épico, pois não
– Então vamos acender o fogo dentro há ênfase nas cenas de batalha, estando o
do machimbombo. Juntamos coisa de foco nos efeitos devastadores da guerra.
arder lá mesmo.
b) O romance se compõe de múltiplas
104 – Podemos, tio? Não há problema? narrativas que se cruzam na obra; o
próprio ato de narrar aparece como
– Problema é deixar este escuro entrar essencial ao ato de permanecer vivo.
EXERCÍCIOS

na cabeça da gente. Não podemos dançar


nem rir. c) A combinação entre a tradição oral
moçambicana e a tradição literária, de
Então vamos para dentro desses origem europeia, ocorre sempre de modo
cadernos. Lá podemos cantar, divertir.” tenso, mostrando a distância entre elas.

(Mia Couto, Terra Sonâmbula. Rio de d) A obra pode ser vista como narrativa
Janeiro: Record, 1993, p.10 e 152.) de viagem, porém, em vários momentos,
o deslocamento experimentado é mais
a) No primeiro excerto, descreve-se a temporal e psicológico do que espacial.
relação da personagem com o espaço
narrativo. Considerando o conjunto
do romance, caracterize a identidade 4. (UFU) O excerto abaixo, retirado da
narrativa de Muidinga em relação a esse obra Terra sonâmbula de Mia Couto, é
espaço e explique por que o território era a reprodução do diálogo entre Kindzu e
“despido de brilho”. Surendra.

b) No segundo excerto, o diálogo das “Antoninho, o ajudante, escutava com


duas personagens principais do romance absurdez. Para ele eu era um traidor da
aborda a questão da leitura e sua raça, negro fugido das tradições africanas.
função para a situação existencial dos Passou por entre nós dois, desdelicado
protagonistas. Explique o que seriam os provocador, só para mostrar seus desdéns.
“escritos” e “cadernos” mencionados e No passeio, gargalhou-se alto e mau
por que neles os protagonistas poderiam som. Me vieram à lembrança as hienas.
“cantar e divertir”. Surendra disse, então:

– Não gosto de pretos, Kindzu.


3. (UFU) O romance Terra Sonâmbula, de
Mia Couto, é uma das mais importantes – Como? Então gosta de quem? Dos
obras da literatura moçambicana após a brancos?
independência do país.
– Também não.
MIA COUTO
– Já sei: gosta de indianos, gosta da sua
raça.

– Não. Eu gosto de homens que não


têm raça. É por isso que eu gosto de si,
Kindzu”.

(COUTO, Mia. Terra sonâmbula, São Paulo:


Companhia das Letras, 2016. p. 15.)
105
Com base no diálogo transcrito e no
enredo do romance, é correto afirmar que:

EXERCÍCIOS
a) a conversa ocorre ainda no início da
guerra quando Kindzu havia impedido a
destruição da loja do indiano por parte de
alguns negros moçambicanos.

b) o romance mostra como o racismo que


atravessa a sociedade moçambicana,
devastada pelas guerras, é consequência
imediata da colonização portuguesa.

c) o romance pretende apresentar os


dilemas que geraram os conflitos entre
negros e indianos, povos de etnias
distintas que lutam pelo território
moçambicano.

d) a fala de Surendra revela um desejo


radical de convívio harmônico entre os
diferentes, capaz de superar noções de
identidade baseadas só na raça.
professor Gilmar
LITERATURA BRASILEIRA E PORTUGUESA

Você também pode gostar