Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Obras Literárias
USP 2023
Guimarães Rosa
Bernardo Carvalho
Fernando Pessoa
Drummond
Mia Couto
APOSTILA II
professor Gilmar
LITERATURA BRASILEIRA
E PORTUGUESA
Sumário
Exercícios 18
Exercícios 41
Exercícios 62
Exercícios 81
Exercícios 103
2022
Material organizado pelo Professor Gilmar Ramos.
Contato: gilmarliteratura@gmail.com
Apresentação
Boa leitura!
Professor Gilmar
2022
GUIMARÃES ROSA
Guimarães Rosa
1908-1967
Campo geral, 1964
4
Nesse sentido, muita coisa que chamamos − O espaço primitivo da infância, cheio
de romance não passa de novela. de ingenuidades, de sonhos e de mitos
é substituído pelo espaço urbano, que
Naturalmente a novela moderna, como simbolizará uma visão amadurecida, crítica
tudo que é moderno, evoluiu e não se e intelectualizada do mundo, ampliando-
sujeita a regras preestabelecidas. lhe os horizontes.
* Ver referências.
GUIMARÃES ROSA
− Quanto à cultura, quando ele vai sendo “Era o Dito, tirando-o por um braço. O Dito
moldado para a vida de acordo com o era menor, mas sabia o sério, pensava
meio social e familiar de camponeses ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele
pobres, ignorantes e supersticiosos, em todo juízo. E gostava, muito, de Miguilim.
que a brutalidade física é comumente Quando foi a estória da Cuca, o Dito um dia
empregada como suposta forma de perguntou: - “Quem sabe é pecado a gente
educação. ter saudade de cachorro?...” O Dito queria
que ele não chorasse mais por Pingo-de-
3. Singularidade: personagem esférica, Ouro, porque sempre que ele chorava o
8 de personalidade ímpar, ricamente Dito também pegava vontade de chorar
caracterizada em sua vida exterior e junto.” (p. 19)*
interior, uma vida complexa, contraditória,
que vai mudando de acordo com as
circunstâncias.
Regionalismo Universal: Dito e Miguilim
Três traços marcantes na personalidade:
A visão objetiva e adulta nos é dada
− Sua fome de saber, que o leva a através do Dito, enquanto Miguilim nos
perguntar às pessoas e a querer guardar traz o olhar subjetivo, em busca da beleza
na memória tudo o que há de essencial; no Sertão.
perante a efemeridade das coisas naturais tudo de ruim que acontecesse, alegre nas
e a dor. A partir dessa constatação, incita profundas. Podia? Alegre era a gente viver
o homem a viver com lucidez e moderação devagarinho, miudinho, não se importando
no mundo e a construir a própria vida demais com coisa nenhuma.” (p. 129)*
buscando a felicidade possível aos
mortais, posto que ela é sempre relativa.
Dito, na hora da morte, tem uma última c) Nhanina: Mulher que se casou jovem,
conversa com Miguilim: vivia melancólica, insatisfeita com sua
10 condição e com o lugar onde morava.
“E o Dito também não conseguia mais
falar direito, os dentes dele teimavam − Sonhava em conhecer o mundo, além do
em ficar encostados, a boca mal abria, território limitado do Mutum.
mas mesmo assim ele forcejou e disse
tudo: — “Miguilim, Miguilim, vou ensinar − Ao que parece, casou por imposição da
o que agorinha eu sei, demais: é que a família.
gente pode ficar sempre alegre, alegre,
mesmo com toda coisa ruim que acontece
acontecendo. A gente deve de poder
ficar então mais alegre, mais alegre, por “Mas sua mãe, que era linda e com
dentro!...” E o Dito quis rir para Miguilim. cabelos pretos e compridos, se doía de
Mas Miguilim chorava aos gritos, sufocava, tristeza de ter de viver ali. Queixava-se,
os outros vieram, puxaram Miguilim de lá.” principalmente nos demorados meses
(p. 100)* chuvosos, quando carregava o tempo,
tudo tão sozinho, tão escuro, o ar ali era
mais escuro; ou, mesmo na estiagem,
qualquer dia, de tardinha, na hora do sol
Miguilim, após a morte do Dito, sente certa entrar. — “Oê, ah, o triste recanto...” — ela
indiferença por tudo e todos, achando exclamava”. (p. 11-12)*
bobas as pessoas e bobagens as suas
preocupações, acaba concluindo:
“— “Se daqui a uns meses sua mãe se − Carinhosa, de personalidade fraca, era
casar com o Tio Terêz, Miguilim, isso é de incapaz de defender os filhos contra a
teu gosto?” — Mãe indagava. Miguilim não brutalidade do pai.
se importava, aquilo tudo era bobagens.
Todo mundo era meio um pouco bôbo. − Adúltera, tem um caso com o cunhado
Quando ele ficasse forte são de todo, ia Tio Terez e acaba se envolvendo também
ter de trabalhar com Tio Terêz na roça? com Luisaltino.
Gostava mais de ofício de vaqueiro. Se
o Dito em casa ainda estivesse, o que d) Nhô Bero: pai, homem dedicado ao
era que o Dito achava? O Dito dizia que trabalho, mas de temperamento irascível,
o certo era a gente estar sempre brabo que se manifestava em explosões de
de alegre, alegre por dentro, mesmo com violência física.
GUIMARÃES ROSA
− Seu comportamento provoca e) Tio Terêz: oposto do irmão.
ressentimento em Miguilim. Compreensivo e afetuoso liga-se
carinhosamente ao sobrinho.
eram ruivados. Só Miguilim e a Chica é que pegava a almofada, ia fazer crivo, rezava e
tinham cabelo preto, igual ao da mãe. O resmungava, no quarto dela, que era o pior,
Dito se parecia muito com o pai, Miguilim sempre escuro, lá tinha tanta coisa, que a
era o retrato da mãe. Mas havia ainda um gente não pensava; Vovó Izidra quase vez
irmão, o mais velho de todos, Liovaldo, nenhuma abria a janela, ela enxergava no
que não morava no Mutúm. Ninguém se escuro.” (p. 20)*
lembrava mais de que ele fosse, de que
feições.” (p. 17)*
Grande era a amizade que unia os dois. sentou no chão, num canto, chorava, não
Boa parte da novela concentra-se nessa queria esbarrar de chorar, nem podia. —
amizade e nas conversas de ambos. ‘Dito! Dito!...’” (p. 101)*
“Voltou para junto. Agora, ele se aliviava 4. O relacionamento com o pai, a princípio,
qualqual, feliz no acomodamento, bom e cordial, vai-se deteriorando e
espairecia. Era capaz de brincar com chega ao clímax, quando, numa briga com
14 o Dito a vida inteira, o Ditinho era a um parente que os visitava, Miguilim é
melhor pessoa, de repente, sempre sem surrado violentamente por ele. Liovaldo
desassossego. O Dito como que ajudava. bate sem motivo nenhum em Grivo, amigo
Ele Miguilim ainda carecia de sinalar os de Miguilim, que passava perto da casa.
dias todos, para aquela espera, fazia a Miguilim resolve defender seu amigo.
conta nos dedos.” (p. 48)*
“Quando Miguilim tornou a acordar, era Alegre era a gente viver devagarinho,
de noite, a lamparina acendida, e Vovó miudinho, não se importando demais com
Izidra estava sempre lá, no mesmo coisa nenhuma.” (p. 129)*
lugar, rezando. Ela dava água, dava caldo
quente, dava remédio. Miguilim tinha de
ter os olhos encostados nos dela. E de
repente ela disse: — ‘Escuta, Miguilim, 6. A novela se encerra com uma cena
sem assustar: seu Pai também está morto. altamente simbólica: a descoberta de que
Ele perdeu a cabeça depois do que fez, era míope e a possibilidade de uma nova
16 foi achado morto no meio do cerrado, se vida em outro lugar. Foi assim:
enforcou com um cipó, ficou pendurado
numa moita grande de miroró... Mas Deus “De repente lá vinha um homem a cavalo.
não morre, Miguilim, e Nosso Senhor Jesus Eram dois. Um senhor de fora, o claro da
Cristo também não morre mais, que está roupa. Miguilim saudou, pedindo a benção.
no Céu, assentado à mão direita!... Reza, O homem trouxe o cavalo cá bem junto.
Miguilim. Reza e dorme!’” (p. 127)* Ele era de óculos, corado, alto, com um
chapéu diferente, mesmo.
“Tio Terêz agora estava trabalhando por — Não, meu senhor. O Ditinho está em
demais, fez ajuste com mais um enxadeiro, glória.
e ia se agenciar de garroteiro, também.
Ele tinha uma roupa inteira de couro, mais O homem esbarrava o avanço do
bonita do que a do vaqueiro Salúz; dava cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso
até inveja. — “Se daqui a uns meses sua como nenhum outro. Redizia:
mãe se casar com o Tio Terêz, Miguilim,
isso é de teu gosto?” — Mãe indagava. — Ah, não sabia, não. Deus o tenha em
Miguilim não se importava, aquilo tudo sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?
era bobagens. Todo mundo era meio um
pouco bôbo. Quando ele ficasse forte Miguilim queria ver se o homem estava
são de todo, ia ter de trabalhar com Tio mesmo sorrindo para ele, por isso é que o
Terêz na roça? Gostava mais de ofício encarava.
de vaqueiro. Se o Dito em casa ainda
estivesse, o que era que o Dito achava? — Por que você aperta os olhos assim?
O Dito dizia que o certo era a gente estar Você não é limpo de vista? Vamos até lá.
sempre brabo de alegre, alegre por Quem é que está em tua casa?
dentro, mesmo com tudo de ruim que
acontecesse, alegre nas profundas. Podia? — É Mãe, e os meninos...
GUIMARÃES ROSA
Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam você é piticego...” E ele respondeu: —
todos. O senhor alto e claro se apeou. ‘Donazinha...’” (p. 130-131)*
O outro, que vinha com ele, era um
camarada. O senhor perguntava à Mãe
muitas coisas do Miguilim.
Referências
Depois perguntava a ele mesmo: —
“Miguilim, espia daí: quantos dedos da * Todos os fragmentos foram retirados de:
minha mão você está enxergando? E ROSA, Guimarães. Corpo de Baile. Guimarães
agora?” Rosa. Vol 1. Edição comemorativa 50 anos. Ed. 17
Nova Fronteira. Rio de Janeiro, RJ. 2006.
Miguilim espremia os olhos. Drelina
e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se BORBA, J. C. HISTÓRIAS DE ITAGUARA E
esconder. CORDISBURGO. CORREIO DA MANHÃ, RIO DE
JANEIRO, 19 MAIO 1946. IEB. JGR-R2, 214.
— Este nosso rapazinho tem a vista
curta. Espera aí, Miguilim... BRAIT, Beth. Literatura Comentada. Guimarães
Rosa. Editora Abril Educação. São Paulo, SP.
E o senhor tirava os óculos e punha-os 1982.
em Miguilim, com todo o jeito.
JR, Walther Castelli. Resumos Fuvest 1996,
— Olha, agora! Vários Autores, Editora Companhia da Escola.
Campinas, SP. 1995.
Miguilim olhou. Nem não podia
acreditar! Tudo era uma claridade, tudo Manuelzão e Miguilim. <https://www.algosobre.
novo e lindo e diferente, as coisas, as com.br/resumos-literarios/manuelzao-e-
árvores, as caras das pessoas. Via os miguelim.html>
grãozinhos de areia, a pele da terra, as
pedrinhas menores, as formiguinhas MEDEIROS, Manuela Quadra de. A infância
passeando no chão de uma distância. míope de Miguilim em Campo Geral. Mafuá,
E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, n. 19, 2013.
coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele
os óculos, e Miguilim ainda apontava, PLATÃO, Ménon. Diálogos. 8ªed. Rio de Janeiro:
falava, contava tudo como era, como Ediouro, p. 85. n/d.
tinha visto. Mãe esteve assim assustada;
mas o senhor dizia que aquilo era do SOARES, Cláudia Campos. O olhar de Miguilim.
modo mesmo, só que Miguilim também Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira.
carecia de usar óculos, dali por diante. O UFMG. Belo Horizonte, MG. 2007.
senhor bebia café com eles. Era o doutor
José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia.
Coração de Miguilim batia descompasso,
ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa,
à Maria Pretinha, a Mãitina. A Chica veio
correndo atrás, mexeu: — “Miguilim,
GUIMARÃES ROSA
Miguilim queria ver se o homem estava d) “Miguilim queria ver se o homem estava
mesmo sorrindo para ele, por isso é que o mesmo sorrindo para ele, (...)”.
encarava.
e) “Estava Mãe, estava tio Terez, estavam
— Por que você aperta os olhos assim? todos”.
Você não é limpo de vista? Vamos até lá.
Quem é que está em tua casa?
2. Figuras de Linguagem são recursos
— É Mãe, e os meninos... literários utilizados para garantir uma
maior expressividade ao texto. Nos
Estava Mãe, estava tio Terez, estavam trechos destacados abaixo, Guimarães
todos. O senhor alto e claro se apeou. Rosa fez uso de uma ou mais figura(s).
O outro, que vinha com ele, era um Assinale a alternativa em que há uma
camarada. relação incorreta entre o excerto e
uma respectiva figura de linguagem
encontrada nele:
GUIMARÃES ROSA
a) “Choveu muitos dias juntos. Chuva, condição de menino ainda menor, de forma
chuvisco, faísca – raio não se embaraçada, misturando tudo por sua
ótica desordenada, não sabendo discernir
podia falar (...)” – gradação. o vivido do imaginado.” (RESENDE, Vânia
Maria. O menino na literatura brasileira. São
b) “- Não meu senhor. O Ditinho está em Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p.31.)
glória.” – eufemismo.
Assinale a alternativa que traz a passagem
c) “O mato do morro do Mutum em branco da narrativa que confirma a opinião da
morava.” – hipérbole. ensaísta. 19
EXERCÍCIOS
porção de coisas, e estava no mesmo lembranças que ainda hoje o assustavam.
lugar.” – paradoxo. [...] Naquele quintal estava um peru, que
gruziava brabo e abria roda, se passeando,
pufo-pufo – o peru era a coisa mais vistosa
3. Assinale a alternativa INCORRETA em do mundo, importante de repente, como
relação à narrativa de Guimarães Rosa. uma estória.[...] Do Pau-Roxo conservava
outras recordações, tão fugidas, tão
a) A dimensão mítica da estória é afastadas, que até formavam sonho.”
acentuada pela presença de seu Aristeu,
figura solar, que reconhece Miguilim b) “O gato Sossõe, certa hora, entrava.
como sujeito virtual da aquisição de sua Ele vinha sutil para o paiol, para a tulha,
sabedoria. censeando os ratos, com o ar. Mas, daí,
rodeando como quem não quer, o gato
b) A partir da morte de Dito, Miguilim Sossõe principiava a se esfregar em
tem motivação para inventar estórias, Miguilim, depois deitava perto, se prazia
evadindo-se, assim, da triste realidade de de ser, com aquela ronqueirinha que era a
pobreza e de perda. alegria dele, e olhava, olhava, engrossava
o ronco, os olhos de um verde tão menos
c) O desejo de saber o certo, de separar vazio – era uma luz dentrode outra, dentro
o bom do mau é um aspecto que pontua doutra, dentro outra, até não ter fim.”
a trajetória psicológica do protagonista
Miguilim. c) “Traziam o tatu, que guinchava, e com
a faca matavam o tatu, para o sangue
d) Os conflitos entre os pais de Miguilim escorrer por cima do orpo dele para
remetem a aspectos bíblicos e trágicos, dentro da bacia [...] e a mãe confirmava:
intensificando o caráter universalista da dizia que ele tinha estado muito fraco,
narrativa. saído de doença, e que o banho no sangue
vivo do tatu fora para ele poder vingar.”
4. “Voltando mais ao início da narrativa, d) “[...] – ‘Que é que você está pensando,
é interessante notar que Miguilim se Miguilim?’ – Tio Terêz perguntava. [...]
lembra de algumas passagens, na Relembrável era o Bispo – creio para ser
GUIMARÃES ROSA
Está(ão) correta(s)
a) apenas I.
b) apenas I e II.
c) apenas II.
d) apenas III.
e) todas.
BERNARDO CARVALHO
Bernardo Carvalho
(1960-)
Nove Noites, 2002
21
tê-lo levado a alguma coisa muito próxima No decorrer da história, o narrador supõe a
dessa conclusão.” (p.12)* existência de uma oitava carta, que teria
ficado nas mãos de Manoel Perna e cujo
destinatário seria o misterioso “você” a
quem o engenheiro se dirige em seu relato
Antes de dar fim a sua própria vida, Quain das nove noites partilhadas de conversas
redigiu sete cartas, em que, além de e revelações junto ao antropólogo, durante
enfatizar a inocência dos indígenas na sua a sua passagem por Carolina.
decisão fatídica, dá orientações sobre a
22 distribuição de seus bens.
Essas cartas foram endereçadas para: “Isto é para quando você vier. É preciso
estar preparado. Alguém terá que preveni-
1. a sua orientadora, Ruth Benedict, da lo. Vai entrar numa terra em que a verdade
Universidade Columbia (N.Y.); e a mentira não têm mais os sentidos
que o trouxeram até aqui. Pergunte aos
2. a dona Heloísa Alberto Torres, diretora índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe
do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar,
responsável pelo etnólogo, no Brasil; faça de novo a mesma pergunta. E depois
de amanhã, mais uma vez. Sempre a
3. ao engenheiro Manoel Perna, de quem mesma pergunta. E a cada dia receberá
o etnólogo se tornara amigo na cidade uma resposta diferente. A verdade está
de Carolina, onde havia se instalado perdida entre todas as contradições e os
durante as suas pesquisas sobre os disparates. Quando vier à procura do que
Krahô; o passado enterrou, é preciso saber que
estará às portas de uma terra em que a
4. ao capitão Ângelo Sampaio, delegado memória não pode ser exumada, pois o
de polícia de Carolina; segredo, sendo o único bem que se leva
para o túmulo, é também a única herança
5. ao pai, Eric R. Quain; que se deixa aos que ficam, como você e
eu, à espera de um sentido, nem que seja
6. ao reverendo Thomas Young, pela suposição do mistério, para acabar
missionário americano instalado com morrendo de curiosidade. Virá escorado
a mulher em Taunay, no Mato Grosso, em fatos que até então terão lhe parecido
que Quain conhecera durante uma incontestáveis.” (p.06)*
expedição à aldeia dos índios Trumai;
1. Manoel Perna sobre as noites que − Os relatos deixados por Manoel Perna,
BuelI Quain passou ao seu lado; assim como os do Autor sobre suas
aventuras ao lado do pai, em viagens à
2. A investigação do narrador (Autor), selva assustadora em pequenos aviões
que, 62 anos após a morte do — ainda que exista o registro de uma foto
etnólogo, está disposto a descobrir sua com um índio, no livro — não podemos
em cartas perdidas, depoimentos de dar tanto crédito assim.
contemporâneos, jornais e outros
documentos, as razões desconhecidas − Desse modo, ao lado da narrativa do
que levaram o antropólogo ao seu fim que seria a busca pelo mais verídico, mais
trágico. real, mais fidedigno, vai-se construindo
a ficção, que se desdobra em tempos
− Na sua obsessiva pesquisa, o narrador diferentes, como salienta Alcir Pécora o
vai ao Xingu, onde já estivera na infância
e se mistura aos índios em busca de
informações. 2 NOVE Noites. In: ENCICLOPÉDIA Itaú
Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
− Boa parte do livro constitui-se do relato Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
sobre sua angustiante e malfadada estada <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
entre os Krahô e das suas memórias, obra67426/nove-noites>. Acesso em: 28 de
Out. 2020. Verbete da Enciclopédia.
BERNARDO CARVALHO
mais atual, em que o narrador empreende Com efeito, em Nove noites, as ameaças
a sua pesquisa, marcado pelo ambiente de uma guerra, o arbítrio da ditadura de
de desconfiança generalizada que se Vargas e a intranquilidade dos tempos
seguiu à queda do World Trade Center; em que a narrativa é construída, após o
o mais recuado, que se situa no final dos atentado de 11 de setembro, propiciam
anos 1960, quando o narrador (Autor) uma atmosfera de medo e opressão que
“é ainda uma criança e viaja com o pai paira sobre o texto:
fazendeiro pelo alto Xingu, (...)”; e um
tempo intermediário, situado no início dos “A situação dos estrangeiros no Brasil do
24 anos 1990, quando o narrador, em virtude Estado Novo era delicada. A impressão era
de uma doença degenerativa do cérebro que estavam sob vigilância permanente.
sofrida pelo pai, passa com ele alguns dias Dos jovens antropólogos de Columbia
em um quarto de hospital, “interessando- que trabalhavam no país no final dos anos
se simultaneamente por outro paciente 30, Ruth Landes foi provavelmente a que
em estado terminal, norte-americano mais sentiu na pele o clima de ignorância
como Quain, que parece esperar, há anos, e o horror, uma vez que estava envolvida
um antigo amigo, cujo nome, pronunciado pessoal e profissionalmente como os
em delírio, soa como “Bill Cohen”“. intelectuais baianos perseguidos, presos
e intimidados pelo regime sob a acusação
− Nessa perspectiva, Alcir Pécora analisa de serem comunistas. Foram eles que
que se percebe: facilitaram o seu acesso aos rituais de
candomblé, objeto da sua pesquisa. A
“(...) em algum instante súbito da correspondência dela com Ruth Benedict
leitura, que os três tempos da narração é reveladora. Numa carta de maio de
do jornalista absorvem ou ecoam as 1938, Landes menciona à orientadora
principais situações e acontecimentos ter recebido “notícias pesarosas” de
assinalados pelo enigma de Quain, de Quain — que estava retido em Cuiabá com
modo que o objeto de sua investigação uma infecção no ouvido — mas que ele
se confunde com a memória mais próprio revelaria mais detalhes a Benedict
irreparavelmente dolorosa de quem o em carta a ser remetida pela Bolívia por
investiga. Esse é o ponto sem retorno razões de segurança. Landes se desculpa
da investigação: aquele em que a pela linguagem “um tanto canhestra”,
causa do suicídio, sem se esclarecer explicando que é obrigada a escrever
pela explicação, volta a pulsar no cerne dessa maneira também por razões de
da narração. A eventual loucura da segurança”. (p.38)*
aniquilação do corpo no passado remoto
se reinstala como vírus da linguagem no
presente”.3
− Na construção desse romance de
fatos e histórias reais, vão circulando os
mistérios da vida e da morte, a ideia de
que “viver é muito perigoso”, como diria
3 Trecho de https://www1.folha.uol.com.br/ Guimarães Rosa.
fsp/resenha/rs0803200312.htm. Segredos e
Distorções, Alcir Pécora. 08/11/2003.
BERNARDO CARVALHO
− A narrativa, sobretudo, propõe múltiplos tivesse poupado esforços para tanto, e
graus de compreensão, oferecendo que essa descoberta fosse ainda pior do
ao leitor várias camadas de leitura, que tudo o que o pudesse levar à morte.
“convidando-o”, sugestivamente, a O certo é que, ao deixar a aldeia pela
completar o texto, a preencher seus última vez, ele estava fugindo. E isso eu
vazios, seus cantos e suas arestas. já lhe disse, mas repito, porque quero
que guarde bem. Quando muito, haverá
− Ao lado da tenaz ansiedade e do um lugar para uma única causa e uma
eminente suspense que a narrativa única imagem na sua cabeça. Terá que
provoca, o leitor vai acumulando uma série aprender a se lembrar dele como um 25
de reflexões sobre temores e culpas, vida homem fora do seu campo de visão, se é
e, principalmente, morte: que pretende vê-lo como eu o vi. Também
demorei a entender o que ele queria dizer
“O importante”, ele me disse ainda na com aquilo, o que havia de mais terrível
primeira noite em Carolina, sem que eu nas suas palavras: que, ao contrário dos
pudesse entender do que realmente outros, vivia fora de si. Via-se como um
falava, “é que os Trumai veem na morte estrangeiro e, ao viajar, procurava apenas
uma saída e uma libertação dos seus voltar para dentro de si, de onde não
temores e sofrimentos.” Uma vez em que estaria mais condenado a se ver. Sua fuga
havia caído doente, um de seus amigos foi resultado do seu fracasso. De certo
índios se ofereceu para esfaqueá-lo com modo, ele se matou para sumir do seu
o intuito beneficente de livrá-lo da dor campo de visão, para deixar de se ver.”
da doença. Não era à toa que matavam (p.100)*
os recém-nascidos. Pior era nascer. Ele
me disse: “Uma cultura está morrendo”.
Agora, quando penso nas suas palavras
cheias de entusiasmo e tristeza, me
parece que ele tinha encontrado um A Busca da Verdade e o
povo cuja cultura era a representação suspense
coletiva do desespero que ele próprio
vivia como um traço de personalidade. E “E já esse leitor está cheio de suspeitas,
compreendo por que quisesse tanto voltar porque o leitor de contos policiais
aos Trumai e ao inferno que me relatou. é alguém que lê com incredulidade,
Como se estivesse cego por algum com desconfiança, uma desconfiança
tipo de obstinação. Queria impedir que especial”. (BORGES, apud NUNES, 2014)
desaparecessem para sempre. O livro que
escreveria sobre eles seria uma forma de
mantê-los vivos, e a si mesmo.” (p.50)*
− Essa “desconfiança especial” de que
fala Borges provém do fato de que a
narrativa policial se desenvolve de modo
“Também temia que a morte fosse, ao a que, aos olhos do leitor, o enigma, o
contrário, a descoberta do que até então mistério, o crime pareça ser resolvido
não tinha conseguido ver, embora não
BERNARDO CARVALHO
por uma operação puramente lógica e algumas viagens, alguns contatos, e aos
intelectual. poucos fui montando um quebra-cabeça e
criando a imagem de quem eu procurava.
− O detetive (ou aquele que busca Muita gente me ajudou. Nada dependeu
resolver o mistério) é dotado de um de mim, mas de uma combinação de
impressionante (quase sempre até mesmo acasos e esforços que teve início no dia
fantástico) raciocínio hipotético-dedutivo, em que li, para o meu espanto, o artigo
ele é uma máquina de raciocinar. da antropóloga no jornal e, ao pronunciar
aquele nome em voz alta, ouvi-o pela
26 − Essa é a grande herança de Edgar AlIan primeira vez na minha própria voz.” (p.12)*
Poe.
considerar seu amigo, oferecendo sua − D’As mil e uma noites, o autor subtrai
escuta como um consolo à imensa solidão essa outra noção de tempo, cuja unidade
do etnólogo. não é a hora, mas a noite, e que não se
confunde com a noite linear e cronológica.
− As cartas escritas antes do suicídio “Se faço as contas, vejo que foram apenas
serão confiadas a Manoel Perna, assim nove noites. Mas foram como a vida toda.”
como será ele quem os índios irão (p.41)*, confessa Manoel Perna.
procurar primeiro para comunicar o
suicídio e entregar os objetos pessoais de − Assim, as fugazes nove noites ganham
32 Quain. uma extensão inesperada, a duração de
toda uma vida.
− Tudo isso faz do engenheiro uma
peça-chave da história, o que o torna − É necessário relembrar os três tempos
(saberemos com certeza apenas no que formam a narrativa.
bloco onze) o primeiro narrador, aquele
que escreve o testamento e espera por − Mas, além dessa partição em três
um interlocutor misterioso com uma das tempos, podemos pensar ainda no próprio
cartas de Quain. presente da narração, o momento em
que ela escoa e que articula os outros
− Assim, temos aí uma relação que deve tempos, o presente que implica a escrita
ser explicitada: as noites estão ligadas do suposto romance do narrador-jornalista
à produção de um discurso, à fala, às (afinal o leitor tem em mãos um livro, um
confissões e às histórias contadas por romance).
Quain ao seu amigo.
− Sem falar que há também a narração
− Posteriormente (uma vez que ficamos de Manoel Perna, que se passa em 1945,
sabendo dessas noites e dessas histórias como vimos, mas que evoca o passado de
pelo testamento de Manoel Perna, ou seja, Quain e também tempos depois de sua
de segunda mão), as noites ligam-se à morte.
produção do próprio texto do engenheiro:
se contarmos apenas os blocos referentes − Esses desdobramentos temporais
ao seu testamento, eles totalizam em nove. podem parecer por demais complicados,
se tentarmos estabelecer uma hierarquia
− Assim, talvez possamos dizer que entre eles, saber o que vem antes e o que
cada bloco é uma noite, embora eles vem depois.
não correspondam cronologicamente às
noites vividas. − Na verdade, essa tentativa vale pouco,
pois o que importa aqui é justamente o
− E que as noites são noites do discurso, efeito de uma outra temporalidade.
são o próprio texto.
− Esse efeito é conseguido, em parte, pela
− Para melhor entendermos essa ideia, intercalação das duas vozes narrativas
é necessário evocar aqui uma referência (elas se repetem e se complementam),
importante para o livro: As mil e uma noites.
BERNARDO CARVALHO
que são constantemente interrompidas A minúcia contribui, contudo, para um
uma pela outra. sentimento de inquietação, uma vez
que as datas e dados se proliferam
− A interrupção revela uma “variação exageradamente, sendo rara a página que
rítmica” à maneira de Sheherazade não apresenta (ou reapresenta, porque
(lembrando que cada voz narrativa elas se repetem) referências temporais e
comporta vários tempos, assim como geográficas.
cada história de Sheherazade levava a
outras histórias) e uma noção de tempo Esse excesso de informações, portanto,
abismado, vertiginoso, como se o leitor alimenta a experiência de um tempo 33
fosse jogado incessantemente em outro confuso e inexato, em que o leitor
tempo, num vai e vem que o faz perder a se depara constantemente com a
referência temporal. necessidade de se situar, e os seus
parâmetros porque são muitos — pouco
− Assim, o número que qualifica as lhe servem de amparo.
noites bem como a numeração dos
blocos narrativos vem apenas iludir Pensar a questão do tempo em Nove
o leitor, fazendo-o acreditar que uma noites envolve também pensar o recurso
quantificação é possível (na verdade, do suspense, da hesitação e da ansiedade.
trata-se do que não pode ser quantificado
— as nove noites são “como a vida O suspense que caracteriza Nove noites
toda”), que uma ordenação é possível (na aproxima-se mais da arte de narrar de
verdade, o que há é um emaranhado de Sheherazade do que do romance policial,
fatos, que nunca acabam de se esclarecer, embora o livro de Bernardo Carvalho se
de se ordenar). filie também, evidentemente, às boas
histórias de investigação.
− Alcir Pécora observa:
Mas o suspense em Nove noites tem a ver
“Isso posto, pode-se dizer que o livro de com o sentido de “cessar, interromper”
Bernardo Carvalho se apresenta como (o tempo, as vozes narrativas), não
um misto de romance-reportagem e de para revelar pouco a pouco a solução
romance policial, selado pela obsessão do mistério, mas para manter o leitor
investigativa do narrador-jornalista continuamente “suspenso no ar”, como
e pelo suspense do andamento das indica a origem latina do verbo suspender.
descobertas, que é, em parte, sustentado
pelo minucioso balizamento das datas e
circunstâncias da investigação.”4 Cronologia da Obra
Norte, nos Estados Unidos; os pais, Eric e acusam os indígenas de terem roubado o
Fannie, já tinham uma filha, Marion. gado.
1926-1930 - Buell Quain faz varias Andrew Parsons viaja ao Brasil ele nunca
viagens: Europa, Canadá, Oriente Médio e mais voltaria aos Estados Unidos (cf. p.
Rússia. 151).
1931 - Março: para comemorar a 1945 - Manoel Perna escreve sua carta;
aprovação nos exames universitários, ele morreria no ano seguinte,
Buell Quain viaja com alguns amigos; 1960 - Nascimento do narrador
nessa viagem, conhece o fotógrafo que se 1967 - Julho: primeira visita do narrador à
34 tornaria seu amigo íntimo; no mesmo ano, região do Xingu, onde o pai buscava terras
viaja para Xangai, como marinheiro, em um para comprar.
vapor. 1970 - O pai do narrador funda uma
1936 - Quain passa dez meses nas ilhas Fiji fazenda no Xingu.
1938 - Fevereiro: Quain chega ao Brasil, 1972 - Nova viagem do narrador ao Xingu,
em pleno carnaval, hospedando-se em com o pai.
uma pensão barata, no bairro da Lapa, no 2001 - 12 de maio: o narrador lê um artigo
Rio de Janeiro. que cita o suicídio de Quain.
Agosto-novembro: Quain passa um tempo 02 de agosto: o narrador visita a aldeia
com os Trumai, no Xingu. Krahô em companhia de um antropólogo
07 de novembro: Quain volta do Xingu e (trata-se da mesma data do suicídio de
se dirige ao Rio de Janeiro, chamado pelas Buell Quain)
autoridades locais. 2002 - 19 de fevereiro: o narrador vai aos
1939 - Março: Quain chega a Carolina Estados Unidos para tentar se encontrar
08 de março: Quain põe a com o filho do fotógrafo que teria sido
correspondência em dia, enquanto amigo de Buell Quain.” (COUTO, 2020)
espera mantimentos e montarias a fim de
seguir para a aldeia de Cabeceira Grossa;
no mesmo dia, assiste a homenagens
ao escritor maranhense Humberto de As Pistas deixadas através da
Campos. Intertextualidade
Separação dos pais de Quain, pouco antes
de seu suicídio. As referências devem ser percebidas pelo
05 de junho: carta de Quain a Dona Heloísa leitor tanto como indícios do autor — pois
Alberto Torres, comunicando a necessidade alimentam sua escrita, seu estilo e sua
de retornar aos Estados Unidos devido a visão de mundo — como também pistas
“questões familiares” (p.21). literárias, que nos fornecem, através de
31 de julho: Quain sai da aldeia indígena de outros textos, caminhos que iluminam a
Cabeceira Grossa, em direção a Carolina. trajetória da nossa leitura.
02 de agosto: suicídio de Quain.
09 de agosto: comitiva de índios chega a Vejamos algumas das referências mais
Carolina para comunicar a morte de Quain. explícitas:
1940 - 25 de agosto: a aldeia em que Buell
Quain tinha passado seus últimos dias 1. O clássico livro Triste trópicos, de
sofre ataque a mando de fazendeiros, que 1955, do etnólogo Claude Lévi-
BERNARDO CARVALHO
Strauss, que levou o estruturalismo 2. O filme Fitzcarraldo, do diretor Werner
para a etnologia e para a análise dos Herzog, produção alemã de 1982,
mitos. que conta a história de um homem
obstinado a encontrar um caminho
Ecos: a condição de BuelI como através do Amazonas para construir na
pesquisador estrangeiro no Brasil, as região um teatro de ópera.
dificuldades no contato entre a civilização
branca e os povos indígenas, a violência Ecos: o Xingu como cenário de um mundo
traduzida na relação “eu” x “outro”; selvagem e inóspito, o retrato de homens
conduzidos por miragens e obsessões 35
“Duas vezes entrevistei Lévi-Strauss (Quain e o jornalista);
em Paris, muito antes de me passar pela
cabeça que um dia viria a me interessar 3. As peças de Nelson Rodrigues,
pela vida e pela morte de um antropólogo conhecido por sua obra e vida
americano que ele conhecera em sua trágicas, em que abundam suicídios,
breve passagem por Cuiabá, em 1938. assassinatos, relações incestuosas,
Muito antes de eu ouvir falar em Buell prostituição, etc.
Quain. Numa das entrevistas, a propósito
de uma polêmica sobre o racismo e a Ecos: a hipótese de uma possível relação
xenofobia na França, em que tinha sido incestuosa entre BuelI Quain e sua irmã,
mal interpretado, Lévi-Strauss reafirmou sua possível homossexualidade; as
a sua posição: “Quanto mais as culturas “perversões” e a vida promíscua do pai do
se comunicam, mais elas tendem a se jornalista;
uniformizar, menos elas têm a comunicar.
O problema para a humanidade é que haja “Em 1947, em nova passagem pelo Rio,
comunicação suficiente entre as culturas, Métraux jantou com Bernard Mishkin,
mas não excessiva. Quando eu estava no jovem antropólogo da Universidade
Brasil, há mais de cinquenta anos, fiquei Columbia, que ele considerava rancoroso,
profundamente emocionado, é claro, com pretensioso e fofoqueiro. Mishkin
o destino daquelas pequenas culturas aproveitou a ocasião para lhe contar
ameaçadas de extinção. Cinquenta anos sobre a juventude de Wagley: “Mãe
depois, faço uma constatação que me divorciada, infância pobre e negligente”.
surpreende: também a minha própria Em seguida, deu a ficha completa de
cultura está ameaçada”. Dizia que toda Quain, morto havia oito anos: “Filho
cultura tenta defender a sua identidade e de pai alcoólatra, mas rico, e de mãe
originalidade por resistência e oposição neurótica e dominadora. Obriga-se à
ao outro, e que havia chegado a hora de homossexualidade com negros, dos quais
defender a originalidade ameaçada da ele tem horror. Garoto de talento, poeta”.
sua própria cultura. Falava da ameaça do Métraux não se conteve em suas notas:
islã, mas podia estar falando igualmente “Como caluniador, não há ninguém melhor
dos americanos e do imperialismo cultural do que Mishkin”.(p.116)*
anglo-saxão.” (p.46)*
BERNARDO CARVALHO
Assim, depois de passarmos por todas estada entre os Trumai. O curioso é que,
essas referências, podemos concluir que ao ser obrigado a interromper o trabalho,
o autor, no caso de Nove noites, não se tivesse se esquecido de lhes fazer justo
situa nem fora nem exatamente dentro do essa pergunta: se houvera alguma vez
espaço da ficção, mas, entre um e outro, um suicídio entre eles. Em todo caso,
ele compactua com o jogo de duplicação ficou com o sentimento de que tinham o
proposto pelo livro, levando-nos, por fim, a temperamento suicida e estavam prontos
investigar aquele que parece ser o centro para se matar. “O importante”, ele me
de irradiação (ou o ponto de confluência) disse ainda na primeira noite em Carolina,
38 dos duplos: a personagem BuelI Quain. sem que eu pudesse entender do que
realmente falava, “é que os Trumai veem
na morte uma saída euma libertação dos
A Linguagem e o Gênero seus temores e sofrimentos.”(p.50)*
Conclusão
Entretanto, a narrativa não deixa de expor
também os diversos problemas por que Embora a narrativa de Nove noites retrate
passam os índios, causados pelo contato épocas distintas, estas são marcadas pelo
com a civilização: medo, pela insegurança e pela opressão.
Referências
EXERCÍCIOS
escrita fidedigna com relação aos b) Manifesta-se através de tempos que
depoimentos do antropólogo americano. coexistem, num ritmo quebrado e não
linear.
c) O engenheiro sertanejo escreve em
meados dos anos 40, quando pressente c) Apresenta-se em diversas passagens
a iminência da própria morte e relembra como descritiva e objetiva.
as “nove noites” em que estivera com o
etnólogo. d) Afirma-se na teatralidade que veicula o
comportamento das personagens.
d) O jornalista que escreve em 2002 não é
o único a ocupar a posição de narrador.
4. A partir da leitura da obra Nove noites,
de Bernardo Carvalho, é INCORRETO
2. Todas as alternativas apresentam afirmar que:
características de Nove noites, de
Bernardo Carvalho, EXCETO: a) O suicídio de Buell Quain trata-se do
ponto de partida dessa narrativa: um caso
a) Virtualmente, o “você” a quem a carta trágico, perdido nos anos e na memória.
se dirige inclui não apenas o esperado
amante de Quain, como também qualquer b) O autor insere fotos e personagens da
um que esteja em posição de lê-la. década de 30 na história, como pessoas
reais e de um fato real e registrado.
b) Nessa narrativa tudo é ou se torna
suspeito; todas as personagens c) Buell Quain é personagem do mundo
aparentam saber mais do que dizem e real, etnólogo reconhecido que deixou
toda a investigação parece estar fadada a estudos antropológicos e documentação
não descobrir e sim e encobrir. importante sobre a língua Krahô, falada
por indígenas brasileiros.
c) O narrador-jornalista é o único
personagem que apresenta um discurso d) Buell Quain conviveu com os mais
verossímil, isento de suspeitas e de ilustres antropólogos que lhe foram
motivos secretos.
BERNARDO CARVALHO
a) Choque cultural.
b) Memorialismo.
c) Nacionalismo xenófobo.
d) Verdade e mentira.
FERNANDO PESSOA
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mensagem, 1934
43
Mais do que uma revista, Orpheu foi Essa ruptura causou grande
um marco: símbolo do nascimento de estranhamento entre a crítica literária e
uma geração de escritores que trouxe chocou a burguesia portuguesa, habituada
para Portugal a essência do movimento ao estilo passadista de sua literatura.
modernista, além de grandes revelações
literárias, entre elas, Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. II. O Autor
Embora a revista contasse com outros Sua poesia é marcada pelo ceticismo, pela
colaboradores, foram esses três escritores sensação do tédio, pela ideia de que o
que, com suas obras, delinearam os novos poeta é um desajustado, marcado para a
rumos a serem seguidos pelos autores solidão e o desamparo.
portugueses e deram início a um processo
de reflexão. Pessoa ele - mesmo apresenta duas
tendências:
crítica sobre as causas da decadência e da
estagnação intelectual de Portugal.
FERNANDO PESSOA
me fez notar – a observação era por igual II. Os castelos (oito poemas)
patriótica e publicitária – que o nome
da nossa pátria estava hoje prostituído III. As quinas (cinco poemas)
a sapatos (...). Concordei e cedi, como
concordo e cedo sempre que falam com IV. A coroa (um poema)
argumentos. Tenho prazer em ser vencido
quando quem me vence é a Razão, seja V. O timbre (três poemas)
quem for o seu procurador.” (LANCASTRE,
1996) − Na época da publicação de Mensagem,
46 era este o brasão de armas de Portugal,
que está presente na bandeira do país até
a atualidade:
Epígrafe
− Subdivide-se em cinco partes menores: − Mas o brasão que o autor toma com
referência é o que aparece na Copilaçam
I. Os Campos (dois poemas) de todaslas obras de Gil Vicente, de 1562.
FERNANDO PESSOA
− Nele, além do escudo com os castelos Este diz Inglaterra onde, afastado,
e as quinas, aparecem a coroa e o grifo, A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
animal mitológico com corpo de leão e
cabeça e asas de águia. Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
47
“Ó mar salgado, quanto do teu sal Mas a chama, que a vida em nós criou,
São lágrimas de Portugal! Se ainda há vida ainda não é finda.
Por te cruzarmos, quantas mães choraram, O frio morto em cinzas a ocultou:
FERNANDO PESSOA
− Epígrafe: “Pax in Excelsis”: paz nas Assim, para Pessoa estavam criadas
alturas. as condições para fazer de Portugal um
Paraíso na Terra – o Quinto Império.”2
− Contém poemas de índole profética e
sebastianista e divide-se em três partes:
“Os Símbolos”, “Os Avisos” e “Os Tempos”.
5. O Encoberto 5. Nevoeiro
II. Os Avisos
− Nesse texto, a identificação do
Encoberto com o Cristo se dá graças
à figura da Rosa, que é um símbolo
esotérico para a vida. O Bandarra
20. Fernão de Magalhães (1480-1521): BRITO, C. L. de, & LARA, G. M. P. (2019). Uma
durante o reinado de D. Manuel, realizou a abordagem semiótica da messianidade
primeira viagem de circum-navegação do de Portugal em Mensagem, de Fernando
planeta. (Mar português, oitavo poema). Pessoa. Estudos Semióticos, 15(1), 197-211.
https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.
21. Vasco da Gama (1469-1524): o mais esse.2019.155343. Acesso em 29/05/2021. 61
importante navegador português, realizou
a viagem que descobriu o caminho CALBUCCI, Eduardo. Mensagem/Fernando
marítimo para as Índias (1497-1499). Foi Pessoa; análise de Eduardo Calbucci. – 1ªed.-
imortalizado como herói de Os Lusíadas São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021.
(Mar português, nono poema). p.17-18.
EXERCÍCIOS
II. O sujeito lírico, na quarta e na quinta Nestes versos identificamos uma
estrofes, assume a primeira pessoa do comparação entre dois processos
plural, sugerindo que o drama individual históricos. É válido afirmar que o poema
dos irmãos pode representar um problema compara:
coletivo: a perda de poder e renome de
Portugal, perda esta já associada à difícil a) o sistema de colonização da Idade
situação do país no início do século XX, Moderna aos sistemas de colonização
momento da escritura do poema. da Antiguidade Clássica: a navegação
oceânica tornou possível aos portugueses
III. O diagnóstico das perdas de Portugal o tráfico de escravos para suas colônias,
está ausente em outros poemas de enquanto gregos e romanos utilizavam
Mensagem, por exemplo, Mar português, servos presos à terra.
Autopsicografia e Nevoeiro, que
apresentam a visão eufórica e confiante b) o alcance da expansão marítima
do sujeito lírico em relação ao futuro de portuguesa da Idade Moderna aos
Portugal. processos de colonização da Antiguidade
Clássica: enquanto o domínio grego e
Quais estão corretas? romano se limitava ao mar Mediterrâneo,
o domínio português expandiu-se pelos
a) Apenas I. oceanos Atlântico e Índico.
“No meio do caminho tinha uma pedra − O poeta lida com coisas e situações
tinha uma pedra no meio do caminho concretas, extraídas da observação irônica
tinha uma pedra dos fatos.
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse − Trata-se de uma espécie de poética do
[acontecimento empirismo.
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do − Todavia, pouquíssimas vezes os textos
[caminho se esgotam no particular.
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho − Em quase todos, há uma conclusão
no meio do caminho tinha uma pedra.” generalizante, que resulta num conceito
(p.20)* ou numa síntese conclusiva sobre a vida.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha “Foi no Rio.
a lagoa se pinta Eu passava na Avenida quase meia-noite.
68 de todas as cores. Bicos de seio batiam nos bicos de luz
Eu não vi o mar. estrelas inumeráveis.
Eu vi a lagoa... “ (p.18)* Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.
− Nele, o poeta afirma não se importar
com o mar, porque nunca o viu. Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
− Preocupa-se com a lagoa, que faz parte faziam de mim homem-realejo
de sua experiência. Por isso, a descreve imperturbavelmente
com as tintas sensuais (quase femininas), na Galeria Cruzeiro quente quente
quando o sol evidencia suas cores: e como não conhecia ninguém a não ser o
[doce vento mineiro,
− Qual será o sentido dos vocábulos mar e nenhuma vontade de beber, eu disse:
lagoa no poema? Acabemos com isso.
− Como em Minas não há mar, o vocábulo Mas tremia na cidade uma fascinação
no poema representa uma abstração, um casas compridas
conceito longínquo, assim como a lagoa autos abertos correndo caminho do mar
significa a experiência, o dado vivenciado. voluptuosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens
− É desse último que se faz o poema, o [indiferentes,
qual resulta numa generalidade filosófica que meu coração bateu forte, meus olhos
abstraído do concreto. [inúteis choraram.
− Em última análise, esse poema sugere O mar batia em meu peito, já não batia no
que o princípio de que para falar do mundo [cais.
deve-se falar da própria terra. A rua acabou, quede as árvores? a cidade
[sou eu
− Drummond limita-se a Minas. a cidade sou eu
sou eu a cidade
− No o poema “Coração Numeroso”, meu amor.” (p.24)*
estando no Rio de Janeiro, ao longo do
DRUMMOND
− Assim a segunda grande característica V. São João Del-Rei
tipicamente drummondiana no livro é “Quem foi que apitou?
o culto do particular, uma espécie de Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho.
respeito à autenticidade da experiência. Almas antigas que nem casas.
Melancolia das legendas.
− Na série “Lanterna Mágica”, o poeta
compõe pequenos mosaicos sobre As ruas cheias de mulas sem cabeça
algumas cidades de seu convívio: Belo correndo para o Rio das Mortes
Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João e a cidade paralítica
Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro. no sol 69
Observemos: espiando a sombra dos emboabas
no encantamento das alfaias.
“Meu pai montava a cavalo, ia para o Embora importante para a vida, a literatura
[campo. não deve substituir o contato com a
Minha mãe ficava sentada cosendo. existência.
Meu irmão pequeno dormia.
DRUMMOND
Sesta
74
“A família mineira A procura pelas raízes aparece no poema
está quentando sol, acima, no entanto sem a leveza satisfeita
Sentada no chão encontrada em “Infância”, como lembra
calada e feliz. Alcides Villaça.
O filho mais moço
olha para o céu “Aqui, uma “família mineira” simples e
Para o sol não, modorrenta, engastasse num mundo
Para o cacho de bananas. também rústico e ordenado, mas a
Corta ele, pai! que faltam o traço épico e qualquer
O pai corta o cacho possibilidade lírica [...] A família do poema
e distribui para todos. fica entre o cômico e a crueldade do
A família mineira observador: versos como “A família
está comendo bananas. mineira/ está comendo banana” adotam
uma gravidade incompatível com a
A filha mais velha ruminação dada como prosaica [...] De
coça uma pereba fato, “A família mineira/ olha para dentro”,
bem acima do joelho. sacramentando-se aqui um matutar
A saia não esconde prazeroso e autossuficiente, “calado
a coxa morena e feliz” – quadro [...] que cristaliza, no
sólida construída. livro, um lugar primitivo, ancestral [...].”
mas ninguém repara. (VILLAÇA, 2006)
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo, 4. O conhecimento amoroso – “amar-
(a cerca da horta). amaro”: Com o jogo de palavras amar-
A família mineira amaro, título emprestado de um poema do
olha para dentro. livro “Lição de Coisas”, o poeta acrescenta
ao substantivo “amar” o adjetivo “amargo”,
O filho mais velho sentimento recorrente em alguns de seus
canta uma cantiga, poemas e livros escritos posteriormente.
Nem triste nem alegre,
uma cantiga apenas − Colocando em foco a experiência
mole que adormece. amorosa do cotidiano, os poemas
DRUMMOND
destacam a repercussão que a incoerência “Em todos os momentos da sua obra
e a arbitrariedade do amor encontram no poética, Drummond lida com um paradoxo
sujeito. implícito na experiência amorosa. Vivido
irregularmente, o amor é portador de
− Nessa resposta subjetiva, insere-se a uma regularidade paralela à fatalidade da
expectativa emocional de um sentimento morte. Os encontros são casuais, mas a
harmonioso. urgência do encontro é certa, fatalidade
inerente à vida; por isso todos dançam na
“Quadrilha”, ainda que nela não se formem
pares”. (LONGO, 2014) 75
Quadrilha
Balada do amor através das idades Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
“Eu te gosto, você me gosta eu, herói da Paramount,
desde tempos imemoriais. te abraço, beijo e casamos.”(p.32-33)*
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão. − Balada: poema narrativo, no caso, sobre
Matei, brigamos, morremos. o amor.
76
Virei soldado romano, − Cada estrofe é uma pequena história ou
perseguidor de cristãos. uma aventura dos amantes, com começo,
Na porta da catacumba meio e fim.
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua • 1ª estrofe: Grécia, no tempo mítico da
caída na areia do circo Guerra de Tróia.
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado • 2ª estrofe: Roma, no início da era
e o leão comeu nós dois. Cristã.
Política literária
EXERCÍCIOS
província-metrópole são fundamentais em
vários poemas. c) O poema retrata de modo triste e
melancólico a desventura amorosa do
c) A filiação modernista do livro liberou poeta na cidade de Itabira, onde nasceu.
o poeta das preocupações com a
elaboração formal dos poemas. d) Predomina no poema um sentimento
de nostalgia do passado, por meio de
d) O livro não contém textos uma linguagem muito simples e pouco
metalinguísticos, o que caracteriza a elaborada esteticamente.
primeira fase do autor.
e) Há no poema uma preocupação de
e) A ironia e o humor evitam que o eu-lírico ordem social e política que sintetiza o
se distancie ou se isole, proporcionando- “sentimento do mundo” do eu lírico.
lhe a comunhão com o mundo exterior.
como matéria de poesia, idealizando-o o tema, o segundo faz uma apologia bem-
como o âmbito dos acontecimentos e humorada do progresso urbano.
sentimentos sublimes.
b) Os textos assemelham-se não apenas
d) caracterizam-se pela brevidade e pelo quanto ao tema (automatização da
espírito de síntese, já que se apresentam vida humana), mas também quanto
na forma de poemas-pílula. à linguagem: ambos apresentam a
brevidade e a descontinuidade sintática
e) apresentam retratos urbanos e características de Alguma Poesia.
82 provincianos em que, normalmente,
prevalece menos uma lógica descritiva c) A crítica à mecanização excessiva que
que uma perspectiva prismática da caracteriza a vida moderna evidencia-se,
EXERCÍCIOS
Então, as letras, uma por uma, se Lendo os cadernos de Kindzu, eles fazem
vão convertendo em grãos de areia e, descobertas sobre si e sobre o local em
aos poucos, todos meus escritos se vão que vivem. Refletem muito sobre o país
transformando em páginas de terra.” e seus conflitos, mas também sobre
(p.204)* questões mais universais como amor,
medo, guerra, destino.
− Com sua morte, não termina a “Dona Virgínia Pinto. Ali estava ela,
corrupção, já que deixa Estevão Jonas, varandeando no exercício de sua última
MIA COUTO
meninez. Em nenhuma data os carros - Sabe, Muidinga? Nós dois éramos
por ali poeiram. As cidades agora são empregados do mesmo patrão.
muito longe, a guerra rasgou os cantos
da terra. A portuguesa se vai deixando Cada um puxa a sua lembrança, em
em tristonhas vagações. Branca de suave escorrer, rindo mesmo dos mais
nacionalidade, não de raça. O português tristes momentos. O miúdo lhes chama
é sua língua materna e o makwa, sua ao presente. Quer saber o que animava
maternal linguagem. Ela, bidiomática. Nhamataca, covando assim.
Os meninos negros lhe redondam a
existência, se empoleirando, barulhosos, - Estou a fazer um rio, responde o 95
no muro. Ela nem zanga. outro.
E me contam assim: que Dona Virgínia Riem-se, o rapaz e Tuahir. Mas o homem
amealha fantasias, cada vez mais se insiste, no sério. Sim, por aquele leito fundo
infanciando. Suas únicas visitas são essas haveria de cursar um rio, fluviando até ao
crianças que, desde a mais tenra manhã, infinito mar. As águas haveriam de nutrir
enchem o som de muitas cores. Os pais as muitas sedes, confeitar peixes e terras.
dos meninos aplicam bondades na velha, Por ali viajariam esperanças, incumpridos
trazem-lhe comida, bons-cumprimentos. sonhos. E seria o parto da terra, do lugar
A vida finge, a velha faz conta. No final, as onde os homens guardariam, de novo, suas
duas se escapam, fugidias, ela e a vida”. vidas”. (p.85-86)*
(p.158)*
d. Estêvão Jonas: administrador e marido - Está certo, eu fico calado, disse eu,
de Carolinda. entregando o colar.
h. Gaspar: filho de Farida, fruto de uma E era como se naquele imenso mar
violência sexual de seu pai adotivo, o se desenrolassem os fios da história,
português Romão Pinto. novelos antigos onde nossos sangues
se haviam misturado. Eis a razão por
“Essa criança está-me dentro, sobra- que demorávamos na adoração do mar:
me. Assim dizia Farida. E acrescentava: estavam ali nossos comuns antepassados,
Tenho-o dentro como um fruto abriga flutuando sem fronteiras. Essa era a
o caroço. Eu sou a povoa dele, estou
MIA COUTO
- Somos da igual raça, Kindzu: somos Aos poucos, eu sentia a nossa família
índicos! quebrar-se como um pote lançado no
chão. Ali onde eu sempre tinha encontrado
Ele se ria, repetindo: não indianos meu refúgio já não restava nada. Nós
mas índicos. Eu fingia achar graça, rindo estávamos mais pobres que nunca”. (p.17)*
apenas de boa disposição. Enquanto ali
98 estávamos, fazendo o absoluto nada,
eu me sentia promovido. Na troca de
nossos nenhuns assuntos, Surendra se “Apesar de todos os ecos da guerra,
esquecia de atender os fregueses. Eu sempre presentes durante o romance, a
me confortava: nunca ninguém se havia guerra em si nunca chega a ser exposta.
esquecido de nada por causa de mim”. Ela sempre se encontra um passo a
(p.25)* frente dos personagens, deixando seu
rastro. Vemos os muros furados, mas não
os tiros; vemos tanques abandonados,
mas não tropas; vemos a fome, mas não
o saque dos armazéns. Isso nos mostra
V. Linhas Temáticas que na verdade o que age sobre aquele
Moçambique é uma guerra-fantasma,
que assombra o povo mas nunca chega
1. Guerra: Tendo como fundo de sua a mostrar sua verdadeira face, uma
história a guerra, inevitavelmente, o livro guerra que não pode ser enfrentada e
traz consigo a morte. E essa aparece no combatida, apenas está presente, efêmera
texto em vários momentos e de várias e destrutiva”. (OLIVEIRA, 2014)
formas. Os personagens passam por
vários corpos abandonados pelo chão
durante o caminho que eles percorrem e
eles sabem que estão acontecendo uma 2. Desejo de uma Moçambique unida:
guerra e, junto com ela, uma matança em um país dilacerado pela guerra civil,
enorme de jovens que lutam para é natural que o sonho de uma nação
defender os seus direitos. próspera e igualitária percorra os sonhos
das personagens.
“As duas epígrafes são comprovadas logo COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Análise de
em seguida pela abertura do primeiro Fernando Marcílio Lopes Couto. São Paulo:
capítulo que se intitula “A estrada morta” e Somos Sistema de Ensino S.A. 2017.
que na primeira linha se lê: “Naquele lugar,
a guerra tinha morto a estrada.” (COUTO, PASSONI, Célia A.N. Literatura Unicamp 2017:
1993, p. 9). Dessa forma, comprova-se estudo de obras, resumos, análise de textos,
ser o sonho o elemento que faz seguir exercícios / 1ª ed.-São Paulo: Editora Núcleo,
adiante, nele reside a esperança. E a 2016.
guerra, que mata os sonhos, traz consigo
a desesperança e o sentimento de FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.
desencanto. Numa terra assolada por Tradução de Sebastião Nascimento com
esse conflito, seus habitantes já perderam colaboração de Raquel Camargo. São Paulo:
a esperança na vida, por isso deixaram Ubu Editora. 2020.
de sonhar. Esse mundo dos sonhos é
buscado na narrativa, pois, através da OLIVEIRA. Rociele de Lócio. A representação
fantasia, Muidinga cria e recria o universo da guerra em Terra Sonâmbula de Mia
de Kindzu. Vive intensamente cada Couto. II Congresso Nacional Africanidades
aventura narrada nos cadernos, a ponto e Brasilidades. 4 a 6 de Agosto de 2014.
de misturar a realidade e a fantasia; o Universidade Federal do Espírito Santo. GT 01 -
seu mundo e o de Kindzu. Isso é bastante Africanidades e Brasilidades em Literaturas.
evidente, no momento em que Muidinga
propõe a Tuahir brincarem de Kindzu e seu SANTOS, Bruna Daneres dos. Terra sonâmbula
pai: Tuahir faria o papel do velho Taímo, e a construção da identidade. Revista Novas
mas a brincadeira chega ao ponto de se Letras. Centro Universitário Franciscano. V.1, n.9
confundir com o real”. (BACH, 2008) (2012) - Santa Maria: Unifra.
MIA COUTO
Exercícios indicando de modo inequívoco a função
social da literatura.
EXERCÍCIOS
c) Segundo a personagem Kindzu, a sua
- Mas você, meu filho, não se meta a terra, sonâmbula como ele, seria um lugar
mudar os destinos. Afinal, eu contrariava da sobreposição entre sonho e realidade,
suas mandanças. Fossem os naparamas, tal como ocorre na narrativa que registra
fosse o filho de Farida: eu não estava a em seus cadernos, em que é impossível
deixar o tempo quieto. Talvez, quem sabe, o estabelecimento de uma delimitação
cumprisse o que sempre fora: sonhador entre o onírico e o real.
de lembranças, inventor de verdades. Um
sonâmbulo passeando entre o fogo. Um d) O sonho, sugerido pelo termo
sonâmbulo como a terra em que nascera. “sonâmbulo”, contrapõe-se à realidade da
Ou como aquelas fogueiras por entre as guerra, sugerida pela palavra “fogo”; terra
quais eu abria caminho no areal”. sonâmbula seria, pois, um lugar em que os
limites entre realidade e sonho aparecem
(Mia Couto, Terra Sonâmbula. São Paulo: bem delimitados e no qual as personagens
Companhia de Bolso, 2015, p. 104.) estão condenadas definitivamente à
miséria da guerra.
Na passagem citada, a personagem
Kindzu recorda os ensinamentos de seu
pai diante do estado desolador em que 2. Leia abaixo dois excertos de Terra
se encontrava sua terra, assolada pela Sonâmbula, de Mia Couto.
guerra, e reflete sobre a coerência de suas
ações em relação a tais ensinamentos. “Muidinga não ganha convencimento.
Levando em consideração o contexto Olha a planície, tudo parece desmaiado.
da narrativa do romance de Mia Couto, é Naquele território, tão despido de brilho,
correto afirmar que: ter razão é algo que já não dá vontade.”
(Mia Couto, Terra Sonâmbula. Rio de d) A obra pode ser vista como narrativa
Janeiro: Record, 1993, p.10 e 152.) de viagem, porém, em vários momentos,
o deslocamento experimentado é mais
a) No primeiro excerto, descreve-se a temporal e psicológico do que espacial.
relação da personagem com o espaço
narrativo. Considerando o conjunto
do romance, caracterize a identidade 4. (UFU) O excerto abaixo, retirado da
narrativa de Muidinga em relação a esse obra Terra sonâmbula de Mia Couto, é
espaço e explique por que o território era a reprodução do diálogo entre Kindzu e
“despido de brilho”. Surendra.
EXERCÍCIOS
a) a conversa ocorre ainda no início da
guerra quando Kindzu havia impedido a
destruição da loja do indiano por parte de
alguns negros moçambicanos.