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AULAS ESPECIAIS

PORTUGUÊS
OBRAS DA UNICAMP

O ESPELHO
VIDA nascida no Porto, filha de um artesão e comerciante
português. O casal, sem filhos, teve um convívio de 35
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de anos marcado por grandes afinidades intelectuais.
junho de 1839, no morro do Livramento, Rio de Janeiro. Aos poucos, as condições de vida de Machado de
Do lado paterno, era neto de homens libertos. Seu pai, Assis se alteraram significativamente. Seu trabalho como
Francisco José de Assis, era agregado de uma família de escritor foi sendo cada vez mais reconhecido e ele passou
posses e trabalhava como pintor de paredes. Do lado a levar uma vida mais confortável. Ao lado da ascensão
materno, era neto de homens livres, provenientes de social de Machado de Assis, ocorreu também uma
humilde família açoriana. Sua mãe, Maria Leopoldina, mudança significativa de sua obra literária.
faleceu quando Machado de Assis contava dez anos, seu Quando faleceu, em setembro de 1908, Machado de
pai se casou de novo, com Maria Inês. Há muitas Assis, um dos fundadores e primeiro presidente da
afirmações inconsistentes em relação ao papel que sua Academia Brasileira de Letras, recebeu muitas
madrasta exerceu em sua vida, sobretudo, quando o pai homenagens que atestaram sua consagração como o
de Machado também veio a falecer. O certo é que maior escritor brasileiro, na opinião quase unânime dos
Machado de Assis teve de vencer muitos obstáculos para estudiosos de literatura brasileira.
migrar de classe social, pois não teve educação formal
CARACTERÍSTICAS DA
regular e enfrentou muitas adversidades por ser mulato
PROSA MACHADIANA
num período em que ainda havia escravidão no Brasil.
Desde cedo, trabalhou e buscou desenvolver sua
Na prosa machadiana, tanto nos romances quanto
carreira literária. Tendo ingressado num ambiente
nos contos, podem ser observados os seguintes aspectos:
jornalístico, um mundo novo de aprendizado literário se
• uma escrita bastante criativa, que não segue um
abriu para ele. Contribuiu muito para sua evolução
esquematismo determinista, ou seja, não busca
artística o fato de ele ter sido leitor bastante assíduo. Já
causas muito explícitas para a explicação das
na juventude, Machado de Assis também se dedicou à
personagens e situações;
prosa, escrevendo artigos sobre arte, poesia, literatura e
• frases simples, desprovidas de enfeites. Os períodos
crônicas e, aos poucos, passou a integrar os círculos
costumam ser curtos e as palavras bem escolhidas;
literários da Corte, apresentando, desde sempre, bom
• focalização das personagens de fora para dentro,
domínio da língua portuguesa literária e do francês.
havendo um trabalho de desmascaramento, daí ele
Machado de Assis mostrou-se sempre uma pessoa ser considerado como um agudo “analista da alma
atualizada com o que se escrevia e se publicava no humana”;
Brasil, por conta de sua constante atividade crítica, • referências constantes a outros textos de grandes
jornalística e literária. Apesar dessa intensa contribuição, autores ocidentais (intertextualidade);
foi um emprego público que lhe garantiu uma situação • uso de ironia, a arma mais corrosiva com que
econômica menos instável até o final de sua vida. Aos Machado critica os comportamentos, os costumes
trinta anos, casou-se com Carolina Xavier de Novais, e as estruturas sociais.
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AMADURECIMENTO ESTILÍSTICO Jacobina, no entanto, atendendo à solicitação de um
DE MACHADO DE ASSIS debatedores, que lhe exige ao menos uma opinião
acerca do referido tema, acaba discorrendo sobre a
O conto “O espelho” foi publicado em 8 de setembro natureza da alma. Segundo sua teoria, cada ser humano é
de 1882, no jornal Gazeta de Notícias e, em outubro do dotado de duas almas: uma, interior, que “olha de dentro
mesmo ano, em Papéis Avulsos, livro composto por doze para fora”, e outra exterior, que “olha de fora para
contos, de extensões variadas, que, junto com Memórias dentro”. Para o protagonista, cada pessoa é portadora de
Póstumas de Brás Cubas, é tido como marco da segunda duas almas complementares, sendo que a ausência de
fase da produção literária machadiana, etapa que uma delas implica a perda de metade da existência.
evidencia significativo salto qualitativo em relação à Jacobina afirma que a característica principal da
prosa artística anterior do autor. Nessa fase, há uma alma exterior é sua natureza mutável, inconstante. Sua
mudança de forma e de conteúdo, com o destaque do uso teoria, portanto, contraria a opinião de que haveria
do humor e da ironia para desmascaramento da realidade. unidade consistente e coerente da alma.
Ao expor sua teoria, o protagonista diz que não
RESUMO COMENTADO aceita contestação. Para demonstrar sua tese, se dispõe a
DO CONTO “O ESPELHO” narrar um episódio decisivo de sua própria vida. Jacobina
é descrito com os seguintes atributos: é maduro,
No conto “O espelho”, é apresentada uma teoria, provinciano, possuidor de recursos financeiros e de certa
emitida no contexto de um encontro de amigos que cultura, pouco sociável, silencioso, reservado, melancó-
debatem acerca de “questões de alta transcendência”. lico e, quando se dispõe a falar, é irônico e autoritário.
No início do conto, o narrador de terceira pessoa, Jacobina refere-se, para ilustrar sua teoria, à época
onisciente, comporta-se como uma espécie de autor em que, aos vinte e cinco anos, tornou-se alferes da
implícito, apresentando o cenário em que acontecem os Guarda Nacional. Antes dessa nomeação, ele era
debates, bem como o grupo de participantes envolvidos conhecido apenas como “Joãozinho”, prenome
nas discussões. designativo de um moço comum, possuidor de interesses
A descrição espacial é funcional, adequada aos temas compatíveis com os demais jovens de sua idade e
dos debates que ali se desenrolam: “questões de alta modesta classe social. Ser alferes da Guarda Nacional
transcendência”. Há ironia na descrição da conversa dos representa, nessa sociedade, prestígio, ascensão social.
cavalheiros reunidos para o debate, pois o narrador, ao Sua nomeação infunde orgulho em sua família (mãe,
mesmo tempo que qualifica com palavras pomposas os primos e tios), incitando muitos elogios dos seus. Seus
assuntos discutidos pelos amigos, oferece ao leitor a amigos, inclusive, oferecem-lhe o fardamento completo.
impressão de uma conversa sem importância real, em Alguns de seus conterrâneos sentem despeito, pois o
que temas complexos e significativos são resolvidos de posto de alferes era aspirado por eles também. A patente
forma amigável. de alferes é valorizada porque em tal sociedade a
O protagonista, Jacobina, destaca-se dos demais ostentação de um determinado status é cultivada. Enfim,
cavalheiros do grupo reunido, pois, ao contrário deles, a sociedade, para quem antes Jacobina era praticamente
permanece quase em um silêncio. Sobre ele, no início da insignificante, passa a reconhecê-lo exclusivamente por
narrativa, recai certo mistério justamente por sua conta de sua nova patente.
participação passiva no debate. Sua tia Marcolina, tão logo Jacobina é nomeado
Um dos debatedores pede a Jacobina que expresse alferes, convida-o para uma temporada em seu sítio
uma opinião sobre a natureza da alma. O protagonista afastado. Ela exige que Jacobina leve consigo a farda de
continua recusando-se a participar da discussão. Para alferes. No sítio, o rapaz é bem recebido por sua anfitriã,
justificar sua abstenção, lança mão de um paradoxo: “a pelo cunhado dela, Peçanha, e pelos escravos que ali
discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz residem. Muito amável, a tia Marcolina coloca, no quarto
no homem, como uma herança bestial”. do seu sobrinho alferes, a peça mais valiosa da

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residência, cuja mobília, exceto o espelho, era singela. que a figura refletida sem contornos definidos é resultado
Trata-se de um espelho, herança familiar, que, verdade de sua perturbação, provocada por sua solidão. Diante
ou tradição, seria proveniente de uma fidalga, vinda em do espelho, Jacobina tenta inutilmente recompor sua
1808 com a corte de D. João VI. imagem integral, mas percebe-se incompleto.
Jacobina sente algum embaraço com os agrados Para escapar dessa agitação emocional, Jacobina tem
excessivos, mas, logo, todos os elogios e privilégios a ideia súbita de vestir sua farda de alferes e acaba
reforçam sua nova identidade, a ponto de “o alferes vestindo-a. Sua imagem especular, agora, recupera a
eliminar o homem”. Sua alma exterior (o posto, a farda) nitidez. Trajando a farda, ele consegue suportar a solidão
acaba, portanto, prevalecendo sobre sua alma interior. e atravessar os dias faltantes para o retorno de sua tia.
A nova identidade de Jacobina é definida a partir dos Vestido com a farda de alferes, o protagonista
louvores recebidos por aqueles que estão a sua volta. consegue ver a si mesmo com nitidez e firmeza, pois a
Jacobina acaba reduzido à farda que veste, representativa imagem da farda de alferes vista no espelho lhe restitui a
da máscara social assumida por ele. Sua alma exterior se alma exterior. Jacobina não se sente mais um autômato.
fortalece cada vez mais. Passa, então, a vestir a farda diariamente e, desse modo,
Quando sua tia Marcolina ausenta-se, com o consegue aguentar mais alguns dias de solidão.
cunhado, para auxiliar uma filha que adoecera grave- Ao final do conto, o narrador onisciente retoma a
mente, a vida do jovem passa por forte transformação. narração, para dizer que Jacobina, tendo terminado sua
Sem os elogios e cortesias dos parentes, Jacobina fica narrativa, sai da casa apressado, deixando os outros
bastante fragilizado. Durante algum tempo, a bajulação cavalheiros atônitos. Para Jacobina, sua concepção
dos escravos conforta-o, no entanto, passados alguns acerca da alma humana tinha sido demonstrada
dias, os escravos fogem. Jacobina, totalmente solitário, cabalmente, os demais cavalheiros podiam refletir sobre
sofre violenta perturbação psíquica, que o faz sentir-se sua teoria sem ele estar presente.
como um sonâmbulo e agir como um autômato. Considerando-se sua trajetória existencial, Jacobina
Apenas durante o sono, Jacobina encontra alívio, demonstra ter aprendido a dura lição de que na sociedade
pois, neles, a vida social continua a ser representada e, o que tem valia é o parecer, não o ser. Pode-se afirmar
nos sonhos, o protagonista ainda veste a farda de alferes. que Jacobina ficou marcado pelo processo de
Ao acordar, contudo, ele se vê novamente solitário e essa desumanização a que sofreu, ao reduzir sua humanidade
solidão leva-o quase à insanidade. ao status de alferes.
Durante alguns dias, Jacobina evita olhar-se no
espelho, com medo de ver refletido seu desamparo. 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Superado esse receio, o protagonista olha-se no espelho,
mas vê refletida uma imagem difusa de si mesmo. Bosi, Alfredo. O duplo espelho em um conto de
Mesmo nessa confusão psíquica, ele é capaz de entender Machado de Assis. Em Três Leituras. São Paulo: Editora
que o espelho está refletindo objetivamente sua figura e 34, 2017.

Exercícios
1. Jacobina, para fugir ao debate, lança mão de um psiquismo de Jacobina durante o momento em que
paradoxo. Comente essa figura de linguagem no ele permanece no sítio da tia Marcolina cercado por
contexto do conto. pessoas que o elogiam e o cobrem de mimos?

4. Como se sente Jacobina vestido de alferes na frente


2. Qual é a concepção de “alma exterior” expressa por
do espelho após ter passado dias de intensa
Jacobina?
perturbação psíquica?

3. Qual é a importância do exterior na constituição do 5. Qual é o tema do conto “O espelho”?


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GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA UNICAMP

O ESPELHO
1. O protagonista afirma que “a discussão é a forma 3. Jacobina passa a ver a si mesmo reduzido a sua
polida do instinto batalhador, que jaz no homem, nova identidade de alferes.
como uma herança bestial”. É paradoxal a
identificação de um instinto selvagem com um 4. Jacobina se sente novamente possuidor de sua
comportamento educado. Também é paradoxal a “alma exterior” e, assim, consegue atravessar
atitude de Jacobina, pois sua recusa em participar mais alguns dias de solidão sem a aflição de antes.
do debate não deixa de ser uma forma de A imagem que o espelho lhe devolve faz o papel da
participação, em que há oposição silenciosa. imagem que os outros (agora ausentes) têm dele,
ao admirá-lo e chamá-lo de “senhor alferes”.
2. A “alma exterior”, para Jacobina, diz respeito ao
papel social de uma pessoa em determinada 5. Machado de Assis, nesse conto, trata do tema ser
sociedade. Trata-se de uma máscara social, que se versus parecer. Nele, evidencia-se que a “alma
torna mais significativa do que qualquer outro exterior” (parecer) possui mais força do que a
aspecto da interioridade de um ser humano. Para “alma interior” (ser) na composição da
o protagonista, cada pessoa praticamente não personalidade do ser humano.
possui autonomia, pois depende quase por
completo da avaliação alheia.

4–

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