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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP
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Em 1946, contraiu meningite e sobreviveu, mas em 1961 para, com mais uma parceria de Carlos Cachaça,
precisou usar muletas e levou um ano para se recuperar, concorrer à escolha do samba que representaria a escola
contando com a habitual dedicação de Deolinda, que não no carnaval seguinte. Novamente, sua composição foi
andava bem do coração e faleceu assim que a saúde dele preterida, seu estilo considerado ultrapassado e perdeu.
se restabeleceu. Sentido por não ter retribuído, na mesma Desistiu de compor samba-enredo agitado, batucado,
medida, o amor que ela lhe dedicara, ele compôs a música quadrado, no qual a forte percussão convida à dança,
Sim para, de alguma forma, pedir perdão. muitas vezes considerada obscena e, na época, restrita às
Em 1948, começou a ser excluído na escola de camadas mais pobres da população.
samba, pois a composição o “Vale do São Francisco”, em Agenor gostava mesmo de compor samba-canção —
parceria com Carlos Cachaça, não lhes rendeu o uma evolução do samba tradicional, por incorporar
campeonato naquele ano. Diziam que Cartola estava instrumentos musicais de corda, como o violão, e de
ultrapassado. Aborrecido por seu samba não ter sido sopro, como a flauta transversal e o saxofone, recursos
escolhido para o desfile carnavalesco do ano seguinte, o correntes na música erudita europeia e no jazz. De ritmo
compositor resolveu sair do Morro da Mangueira e mais lento, melodias mais elaboradas e letras que tendem
abandonar tudo. As filhas, já adultas, não necessitavam à tristeza, ao lirismo e, por vezes, ao Romantismo — o
mais de sua presença e foi morar longe. Além disso, tinha objetivo dessa poética parece ser provocar emoções no
sérias desavenças com o presidente da Mangueira, ouvinte. Não obstante, a música possa ser também
Hermes Rodrigues, por diversos motivos, inclusive por dançante, os espectadores são convidados a ouvir a letra,
sentir-se desrespeitado ao ser chamado de leproso, quando absortos.
se manifestou rosácea em seu rosto – doença caracterizada Trata-se de um estilo mais sofisticado que o samba
por erupções e manchas cutâneas, em geral, no nariz e na tradicional, tornou-se familiar nos anos 20, praticado por
parte central da face. Bem mais tarde, foi necessária uma compositores e arranjadores mais preparados no âmbito
cirurgia que lhe recuperou o formato, mas não a cor da musical. De um lado, alguns deles, nas décadas de 30 e
pele: o nariz ficou com a tez mais escura que o restante do 40, provinham de classe socioeconômica mais elevada,
rosto, tornando-se a marca característica do compositor, como Noel Rosa, Ari Barroso e Lamartine Babo; de outro,
junto com os óculos escuros que foi obrigado a usar, Cartola, Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, e
devido à fotofobia adquirida no olho esquerdo. outros, representam o lirismo popular, proveniente de
Com novo amor, Donária, Agenor quase se destruiu classe social desfavorecida e negra no samba-canção.
em 6 anos de relacionamento: abandonou a música, ficou Em música, a letra, a melodia e a interpretação
mais magro, perdeu os dentes. Foi quando a rosácea completam-se, mas, levando-se em consideração, apenas,
agravou-se deformando-lhe o nariz com inúmeras a poesia desses cancionistas de classe social baixa, o
erupções enegrecidas. No Morro da Mangueira, sua refinamento é alcançado com linguagem simples e,
enorme ausência transformou-o, de fato, em passado. embora às vezes eles empreguem palavras raras, as figuras
Acreditavam que já tivesse morrido. de linguagem com expressões cotidianas atingem tamanha
Após o término do relacionamento com Donária, riqueza de imagens poéticas que chegam a ser sublimes
Zica, cunhada de Carlos Cachaça, entrou na vida do — característica marcante na produção artística de
compositor e iniciou uma busca persistente por Cartola.
oportunidades de retorno do companheiro ao circuito do Apesar de tantos desastres, Cartola era sempre muito
rádio, no mundo da música. A ajuda veio de diversas elegante, gentil, agradável e, extremamente, querido por
partes, menos do próprio Cartola... O sambista continuava todos. Sérgio Cabral, jornalista que fazia matérias sobre
bebendo, às vezes não comparecia a entrevistas nem a samba no Jornal do Brasil, passou a ser chamado para
encontros. Sérgio Porto (mais conhecido pelo pseudônimo palestrar nas universidades e levava consigo alguns dos
Stanislaw Ponte Preta) o encontrou lavando carros, em um mestres do samba como Cartola. Sérgio Porto e Jota
lugar muito simples e o abraçou, sem acreditar no Efegê eram alguns daqueles que subiam o morro para
esquecimento em que se encontrava o grande compositor. frequentar-lhe a casa, onde, além de o ouvirem cantando
Publicou uma nota em sua coluna no Diário Carioca e ao violão, bebiam cerveja e degustavam os quitutes que
Cartola começou a reaparecer, aos poucos, no cenário Zica preparava.
musical. A partir desses encontros, surgiu a primeira casa de
Agenor de Oliveira já estava afastado da Mangueira samba do Brasil: o Zicartola. O local foi mais do que
havia, aproximadamente, 20 anos, quando resolveu voltar moradia de Agenor e Zica, foi restaurante, casa de shows
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e local de protestos estudantis na época do governo em São Paulo, onde houve uma tentativa malsucedida de
militar. Divulgou e valorizou a música popular brasileira; reviver o Zicartola, na Vila Formosa.
foi palco de encontros que deram origem ao espetáculo Diversas gravações vieram após a primeira:
Opinião, dirigido por Augusto Boal, estrelado por Zé Kéti, – 1976, ainda pela Marcus Pereira, com outro disco
João do Valle e Nara Leão (posteriormente substituída por intitulado Cartola, o sucesso foi ainda maior: O Mundo
Maria Bethânia). Também germinou ali o musical Rosa é um Moinho, parceria de Cartola e Carlinhos Vergueiro;
de Ouro, criado por Hermínio Bello de Carvalho, com As Rosas não Falam, Cartola; Sala de Recepção, Cartola;
Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, entre outros. Cordas de Aço, Cartola.
Devido à má administração, apesar do sucesso, o Zicartola – 1977, pela gravadora RCA Victor, gravou o LP
fechou as portas em 1965 com o casal endividado, Verde que te quero Rosa, contendo o sucesso Que é feito
entretanto, o samba ganhou espaço não só entre os jovens, de Você?, Cartola e Carlos Cachaça. No mesmo ano,
mas entre classes sociais mais altas. Cartola desfilou na comissão de frente da sua Escola de
Felizmente, nem tudo estava perdido. No mesmo ano Samba Mangueira e, em setembro, descobriu um caroço
de 1965, Elizeth Cardoso, influenciada pelo espetáculo no pescoço.
Rosa de Ouro, gravou o Long Play Elizeth Sobe o Morro, – 1978, A comemoração dos 70 anos de Cartola
acompanhada pelo violão de Paulinho da Viola, contou com grandes amigos e missa no outeiro da Glória,
interpretando diversos sambistas. De Cartola, ela gravou ao som de As rosas não falam, cantada pela soprano Maria
o samba Sim — feito em homenagem a Deolinda. Lúcia Godoy, acompanhada por Wagner Tiso (Maestro e
Em 1967, Agenor gravou um dueto com ela em seu compositor) ao piano. O coral da Universidade Gama
novo LP, A Enluarada, cantando uma composição de Filho abrilhantou a celebração, que serviu para medir o
Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: Pranto de sucesso do compositor e o valor atribuído a ele pela
Poeta, tratava-se de uma seleção de sambas em intelectualidade brasileira.
homenagem à Mangueira. –1979, pela gravadora RCA Victor, gravou o LP
Em1968, conquistou o quinto lugar na I Bienal do Cartola 70 Anos, contendo os sucessos Inverno do Meu
Samba, realizada pela TV Record e a voz dos sambistas Tempo, Cartola e Roberto Nascimento, e Silêncio de um
veio a público, novamente, no LP Fala Mangueira, da Cipreste, Cartola e Carlos Cachaça.
gravadora Odeon. De Cartola, o disco tinha cinco Em 1980, faleceu de câncer.
composições, entre as quais “Alvorada”, parceria com Entre as diversas homenagens que Cartola vem
Carlos Cachaça. recebendo, desde antes de seu falecimento, encontram-se
Em 1970, Agenor apresentou os shows Cartola coletâneas, CDs, biografias e a escolha das seguintes
Convida e Noitadas de Samba. O público era jovem e canções, como conhecimento obrigatório, para o
prestigiava, cada vez mais, o compositor como um astro vestibular da Unicamp:
popular da velha guarda da Mangueira. A editora Abril 1. Sim – Cartola
lançou, no mesmo ano, a série intitulada História da 2. Alvorada – Cartola e Carlos Cachaça
música popular brasileira, reunindo grandes nomes da 3. Disfarça e Chora – Cartola e Dalmo Castello
MPB. Um dos volumes foi dedicado a Cartola. 4. As Rosas não Falam – Cartola
Paulinho da Viola, Clara Nunes, Elza Soares 5 O Mundo é um Moinho – Cartola e Carlinhos
gravavam músicas do grande sambista. No entanto, entre Vergueiro
gravações aqui e ali, participações em shows e programas 6. Cordas de Aço – Cartola
de rádio, mesmo com vários anos de carreira, o 7. Sala de Recepção – Cartola
compositor ainda não tinha tido oportunidade de gravar 8. Que é feito de você? – Cartola e Carlos Cachaça
seu próprio LP. 9. O inverno do Meu Tempo – Cartola e Roberto
Em 1974, seu próprio LP, Cartola, veio a público Nascimento
lançado pela Discos Marcus Pereira, após várias negativas 10. Silêncio de um Cipreste – Cartola e Carlos Cachaça
das demais gravadoras. A música inicial era Disfarça e
Chora — parceria de Cartola e Dalmo Castello, mas havia Sim
também outros sucessos como Alvorada – parceria de
Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho. Sim
Em cinco meses, foram vendidas 20 mil cópias do álbum Deve haver o perdão
premiado e aclamado pela crítica. A gravação foi realizada Para mim
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Senão nem sei qual será íntimas, flexibilizando-se o limite entre o público e o privado.
O meu fim Alvorada
Para ter uma companheira
Até promessas fiz Alvorada
Consegui um grande amor Lá no morro, que beleza
Mas eu não fui feliz Ninguém chora, não há tristeza
E com raiva para os céus Ninguém sente dissabor
Os braços levantei O sol colorindo é tão lindo,
Blasfemei1 É tão lindo
Hoje todos são contra mim E a natureza sorrindo
Tingindo, tingindo
Todos erram neste mundo
Não há exceção Você também me lembra a alvorada
Quando voltam à realidade Quando chega iluminando
Conseguem perdão Meus caminhos tão sem vida
Por que é que eu Senhor E o que me resta é bem pouco
Que errei pela vez primeira Quase nada
Passo tantos dissabores De que ir assim vagando
E luto contra a humanidade inteira? Numa estrada perdida
(Cartola) (Cartola e Carlos Cachaça)
1. Blasfemei, insultei o divino.
Comentário
Comentário Neste samba, embora a palavra “felicidade” não apareça, o clima
O samba apresenta versos que, em linguagem simples e tom feliz está presente na negação do sofrimento: “Ninguém chora, não há
confessional, expressam a complexidade sentimental de quem recebeu tristeza / Ninguém sente dissabor”.
amor e cometeu o grave pecado de não o retribuir. A primeira estrofe A natureza é fonte de alegria, tendo papel fundamental na
revela a consciência do delito e a suposição de que deve haver perdão, construção imagética que enriquece o poema: “O sol colorindo é tão
pois, se não o houver, o eu lírico estará em situação muito difícil: “Deve lindo, / É tão lindo / E a natureza sorrindo / Tingindo, tingindo”. É
haver o perdão / Para mim / Senão nem sei qual será / O meu fim”. como se a natureza, especialmente a luz, tivesse o poder de
Na segunda estrofe, percebe-se a gravidade da situação, pois ressignificar a vida como um remédio contra a tristeza “Tingindo,
aquele amor fora uma dádiva divina em resposta a um pedido do tingindo”.
indivíduo: “Para ter uma companheira / Até promessas fiz / Consegui Como no Romantismo, nesta canção, a natureza também é o
um grande amor / Mas eu não fui feliz”. O sujeito não foi feliz porque reflexo da emoção — a primeira estrofe serve de comparação para o
rejeitou a companheira que Deus lhe deu: “E com raiva para os céus / estado de espírito do eu lírico, na segunda estrofe, quando vê a pessoa
Os braços levantei / Blasfemei (roguei praga, amaldiçoei)”. amada. Apesar de sua vida triste e vazia, quando ele a vê, é como a
A consciência de seu erro é reforçada pela reprovação de todos: alvorada chegando no morro. Através de figuras de linguagem, o
“Hoje todos são contra mim”. indivíduo transfere para a pessoa que ele ama as características da
A última estrofe apresenta forte argumentação dirigida a Deus para alvorada, a princípio, através de uma comparação: “Você também me
conseguir o perdão: “Todos erram neste mundo”. Mas, quando tomam lembra a alvorada”. Em seguida faz uma metáfora: “Quando [você]
consciência dos seus erros ou “Quando voltam à realidade / Conseguem chega iluminando”.
perdão”. Como o indivíduo já adquiriu consciência de seu erro, ele, O texto apresenta dois ambientes: de um lado, o externo, objetivo,
através de questionamento argumentativo, continua tentando mostrar-se vivência coletiva e positiva do amanhecer; de outro, o subjetivo, o
merecedor de perdão dirigindo-se diretamente a Deus: “Por que é que estado de espírito do indivíduo, onde se expressam as tensões de uma
eu Senhor / Que errei pela vez primeira / Passo tantos dissabores / E vida vazia, perdida, sem rumo: “... ir assim vagando / Numa estrada
luto contra a humanidade inteira?” (devido a estarem todos contra ele). perdida” que a pessoa amada ilumina.
Cartola apresentou essa canção à comunidade da Mangueira
alguns dias após o falecimento de Deolinda, durante um ensaio. Isso Disfarça e Chora
mostra que, em uma comunidade, o ambiente favorece a troca e a
socialização de experiências através do samba. O indivíduo necessita Chora
de estar inserido socialmente e, para isso, compartilha suas vivências Disfarça e chora
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Em pouco tempo não serás mais o que és Aquela mulher até hoje
Ouça-me bem, amor Está nos esperando
Preste atenção, o mundo é um moinho Solte o teu som da madeira
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos Eu, você e a companheira
Vai reduzir as ilusões a pó A madrugada iremos pra casa cantando.
(Cartola)
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo 1 – Madeira com a qual se fabrica o violão.
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés Comentário
(Cartola e Carlinhos Vergueiro) A canção estabelece um diálogo, rico em imagens fascinantes,
entre o sujeito e seu violão. Em primeira pessoa, o indivíduo exprime
Comentário seus sentimentos, estabelecendo entre si e o instrumento musical um
Esta canção mostra um diálogo, em tom de conselho, com vínculo de dependência mútua. A existência de um concretiza-se em
linguagem cotidiana, repleta de afetividade. O compositor emprega a relação ao outro, estando ambos profundamente ligados. A princípio,
função conativa ou apelativa, isto é, chama a atenção da interlocutora a interjeição “Ah!”, como um suspiro, introduz expressões de
através de vocativos, “amor”, “querida”, e verbos no imperativo, admiração pelo violão: suas “cordas de aço”, “o braço”. Em seguida,
“Preste atenção”, “Ouça-me”. O eu lírico tenta convencer a pessoa à associa-se o ato de tocar uma melodia a um gesto de carinho, ao apertar,
qual se dirige de que ainda é cedo para partir e que essa decisão, se delicadamente, as cordas junto ao braço do instrumento.
levada a termo, terá consequências: “Em cada esquina cai um pouco a O “bojo”, ou corpo do violão, que lembra o formato de um corpo
tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és”. feminino acinturado, é caracterizado como “perfeito”. Trata-se da parte
O texto evolui através de termos que lembram a travessia “hora de do instrumento que o eu poético aproxima, fisicamente, do próprio
partida”, “Sem saber mesmo o rumo que irás tomar”, “Em cada peito no ato de tocar. Entretanto, tal intimidade pode ser entendida,
esquina”. metaforicamente: o violão não é um simples confidente, é, através da
Em seguida, o poeta cria a seguinte imagem: “o mundo é um música tocada com o violão, que o indivíduo expressa sua
moinho” — metáfora que se expande para outras metáforas, subjetividade, daí a sintonia do instrumento musical com o peito —
constituindo uma alegoria: “Vai triturar teus sonhos”, “Vai reduzir as entendido como sede das emoções— por isso, o eu lírico afirma “Só
ilusões a pó”. Há aqui uma forte oposição entre o eu amoroso, que você, violão, / Compreende por que / Perdi toda a alegria”.
aconselha, e o mundo triturador de sonhos, destruidor de ilusões, para O indivíduo continua conversando com seu interlocutor
onde a moça deseja ir. personificado (prosopopeia) e o chama de “meu pinho”, metonímia
Se a interlocutora pretende partir por algum amor, o sujeito que troca a matéria pelo produto, no caso, pinho por violão.
poético, dotado de sabedoria, declara: “De cada amor tu herdarás só o Certamente, “aquela mulher”, à qual o poema se refere, fez algo
cinismo”. E, em seguida, retoma a ideia de travessia, caminho sendo que causou a perda de toda a alegria do indivíduo. No entanto, aquele
percorrido: “Quando notares estás à beira do abismo”. modo carinhoso de tocar o violão pode ser associado ao jeito como o
O final do texto alerta a respeito da responsabilidade pela escolha enunciador tocava o corpo da amada, o que o deixa confiante de que
do caminho a seguir: “Abismo que cavaste com teus pés”. ela não o esqueceu. Por isso, ele afirma adivinhar ou supor que “Aquela
mulher até hoje / Está nos esperando”. Note-se o pronome oblíquo na
Cordas de Aço. primeira pessoa do plural “nos”, mantendo a simbiose entre o eu e seu
violão.
Ah! Essas cordas de aço Por fim, ele exorta o violão a soltar seu som da madeira para irem
Esse minúsculo braço juntos para casa cantando e tendo por companheira a madrugada.
Do violão Quanto à forma, os versos são livres e nem todos são rimados. As
que os dedos meus acariciam rimas não obedecem a um esquema constante, embora a maioria
Ah! Esse bojo perfeito apareça em versos seguidos “aço/braço”, “perfeito/peito”,
Que trago junto ao meu peito “pinho/adivinho”, “madeira/companheira”. O par “esperando /
Só você, violão, cantando” não aparece em versos seguidos.
Compreende por que A linguagem é simples, coloquial “pra”, com fortes marcas de
Perdi toda a alegria oralidade como “Pode crer”. O eu lírico dirige-se diretamente ao
E, no entanto, meu pinho1 interlocutor tratando-o por “você”.
Pode crer, eu adivinho
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não sabem quem ele foi: — a “gurizada” se assusta ao vê-lo caminhar O início da letra deste samba revela o amanhecer do dia — uma
cambaleante: “E hoje quando eu passo / A gurizada pasma / alvorada de outono/inverno, com folhas a voar: “Surge a alvorada
Horrorizada como quem / Vê um fantasma / E um esqueleto humano / Folhas a voar”. Imediatamente, o eu lírico faz uma analogia com o
assim vai / Cambaleando quase cai, não cai”. momento da vida em que está — a velhice, vista como o fim de um
Fisicamente, resta a decrepitude: “Pés inchados, passos em falso / ciclo, momento que antecede a morte, fria como o inverno e que já
O olhar embaçado”. O sujeito torna-se desinteressante para os outros, começa a brotar, arruinando sua existência: “E o inverno do meu tempo
já não possui amigos, nem quem tenha compaixão dele, somente a começa /A brotar, a minar”.
ingratidão dos outros resiste: “Nenhum amigo ao meu lado / Não há por A vida já não faz mais jus aos sonhos, estes ficaram no passado:
mim compaixão /A tudo vou assistindo /A ingratidão resistindo” “E os sonhos do passado / No passado estão presentes”.
Mais do que viver, o eu lírico passa a assistir à vida e a recordar O sujeito poético apresenta, de um lado, uma visão romântica do
o que ficou no passado: seus “versos”, a “mocidade” e o “violão”. amor “que não envelhece jamais” e, de outro, uma perspectiva mais
realista, pois, já sem as ilusões da juventude, o casal encontra paz: “Eu
Inverno do Meu Tempo tenho paz / E ela tem paz”.
A vida fora repleta de sofrimento em meio a algumas situações
Surge a alvorada agradáveis: “Nossas vidas / Muito sofridas / Caminhos tortuosos / Entre
Folhas a voar flores e espinhos demais”.
E o inverno do meu tempo começa O eu lírico, construído, ao longo do tempo, através de
A brotar, a minar experiências difíceis, que lhe trouxeram sabedoria, sente-se feliz e
E os sonhos do passado confortável, no momento da existência em que se encontra, sem sentir
No passado estão presentes falta daquilo que já passou: “Já não sinto saudades / Saudades de nada
No amor que não envelhece jamais que fiz / No inverno do tempo da vida / Oh! Deus! Eu me sinto feliz”.
Eu tenho paz O mesmo tempo que leva consigo os dias de juventude e coloca a
E ela tem paz fragilidade humana em evidência traz também a experiência.
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Comentário
O cipreste é considerado uma árvore sagrada para diversos povos.
Graças à sua longa durabilidade e à sua verdura (verdor) persistente. Na
mitologia grega, Ciparisso, que significa cipreste, príncipe de Chipre,
matou, acidentalmente, um veado de estimação. Atingido por enorme
tristeza devido ao que fez, nunca se recuperou e foi transformado por
Apolo nessa árvore, assim tornada a materialização do luto e, ao
mesmo tempo, do conforto para essa dor. Frequentemente, é
denominado árvore da espiritualidade por seu aroma, que não pode ser
visto, mas sentido, e por seu formato, que se estende para o alto. Além
de ser habitualmente empregada na fabricação de caixões, essa conífera
é, comumente, plantada em cemitérios. Por isso, em textos literários é
muito associada à morte.
O samba “Silêncio de um Cipreste” inicia-se com a alegação de
que todo mundo tem o direito de se expressar, o que, simbolicamente,
é comparado a “viver cantando”. Entretanto, o eu lírico afirma que seu
“único defeito” é “viver pensando”, o que equivale a se calar a respeito
daquilo que, de fato, o magoa: aquilo que não realizou — “O meu
único defeito / É viver pensando / Em que não realizei / E é difícil
realizar”.
Se o indivíduo pudesse resolver sua frustração, seria mais fácil
mudar seu pensamento, para não sofrer, do que tentar concretizar
aquilo que não realizou: “Se eu pudesse dar um jeito / Mudaria o meu
pensar”. Isso porque o pensamento não é fixo, é leve: “O pensamento
é uma folha desprendida / Do galho de nossas vidas/ Que o vento leva
e conduz /É uma luz vacilante e incerta”.
Mas, o pretérito do subjuntivo “Se eu pudesse...” está no plano
do desejo, do irreal, e joga por terra a possibilidade de resolver o
problema.
Não se trata de um simples pensamento, mas de reflexão
acompanhada por sofrimento. Aquilo que é silêncio não é, apenas,
ausência de som, mas é a experiência solitária daquilo que ficou calado
no ser e diz respeito ao que está mais profundo, resguardado no íntimo,
onde existe o sofrimento. A simbologia do cipreste amplia o drama do
sujeito por associação com a provável proximidade da morte e a,
consequente, falta de tempo para solucionar a questão. Daí o final do
texto afirmar que o pensamento “É o silêncio do cipreste” “escoltado”
ou conduzido pela dor, pelo martírio, simbolizado na “cruz”.
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Exercícios
Texto para os exercícios 1 e 2. Troquei-os sem sentir
Por um simples bastão
Sala de Recepção E hoje quando eu passo
A gurizada pasma
Habitada por gente simples e tão pobre Horrorizada como quem
Que só tem o sol que a todos cobre Vê um fantasma
Como podes Mangueira cantar? E um esqueleto humano assim vai
Cambaleando quase cai, não cai
À noite a lua prateada
Silenciosa ouve as nossas canções Pés inchados, passos em falso
E tem lá no alto um cruzeiro onde fazemos nossas orações O olhar embaçado
E temos orgulho de ser os primeiros campeões Nenhum amigo ao meu lado
Eu digo e afirmo que a felicidade aqui mora Não há por mim compaixão
E as outras escolas até choram invejando a tua posição A tudo vou assistindo
Minha Mangueira és a sala de recepção A ingratidão resistindo
Aqui se abraça o inimigo como se fosse irmão Só sinto falta dos meus versos
(Cartola) Da mocidade e do meu violão
(Cartola e Carlos Cachaça)
1. O samba inicia-se com uma pequena caracterização
da comunidade no Morro da Mangueira. 3. O compositor aborda o envelhecimento sob o ponto
a) Mesmo sendo um lugar tão pobre, é denominado Sala de vista da
de Recepção. Explique o significado dessa metáfora. a) aceitação da fragilidade da existência.
b) A riqueza dos habitantes do morro é de ordem b) saudade dos amores da juventude.
individual, privada. Está correta essa afirmação? c) indignação pela decrepitude e pelo abandono.
Justifique sua resposta com elementos do texto e d) desvalorização de sua produção artística.
responda como se constrói a subjetividade dos
habitantes do morro. Texto para o exercício 4.
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ANOTAÇÕES
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