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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST
SAGARANA
1. PANORAMA HISTÓRICO DA ÉPOCA – Revolta do Forte de Copacabana.
– Mussolini sobe ao poder na Itália.
1908 – Nascimento de João Guimarães Rosa em – Semana de Arte Moderna em São Paulo.
Cordisburgo, Minas Gerais.
1923 – Revolução Libertadora no Rio Grande do Sul.
– Expansão das plantações de café no Brasil.
1924 – Novas rebeliões tenentistas.
– Primeiro filme de ficção realizado no Brasil
– Coluna Prestes.
(Nhô Anastácio Chegou de Viagem).
– Morte de Lênin.
– Morte de Machado de Assis.
– Manifesto Surrealista de André Breton.
1909 – Manifesto Futurista de F. T. Marinetti.
1926 – Movimento Verde-Amarelo.
– Assassinato de Euclides da Cunha.
1927 – Congresso Regionalista do Recife.
– Hermes da Fonseca candidata-se à Presidência,
1928 – Publicação de Macunaíma e A Bagaceira.
e Rui Barbosa inicia a Campanha Civilista.
1910 – Hermes da Fonseca derrota Rui Barbosa na – Revista de Antropofagia.
eleição para Presidência. 1929 – Quebra da Bolsa de Nova Iorque.
– Proclamação da República Portuguesa. – Crise internacional do café.
1912 – Crise da borracha. – Inauguração do prédio Martinelli em São
– Oswald de Andrade retorna da Europa. Paulo.
– Guerra do Contestado. 1930 – Fim da República Velha.
1913 – Exposição de Lasar Segall. – Revolução de 30.
1914 – Primeira Guerra Mundial. – Getúlio Vargas no poder.
– Anita Malfatti faz sua primeira exposição em – Publicação de Alguma Poesia de Carlos
São Paulo. Drummond de Andrade.
– Governo Venceslau Brás. – Suicídio do poeta russo Maiakóvski.
1915 – Primeiro filme sonoro brasileiro. – Nazistas vencem as eleições na Alemanha.
– Lima Barreto publica Triste Fim de Policarpo 1931 – Guimarães Rosa passa a exercer a função de
Quaresma. oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria,
– Publicação da revista Orpheu, inaugurando o em Barbacena.
Modernismo Português. 1932 – José Lins do Rego publica Menino de Engenho.
1917 – Revolução Socialista Russa. – Revolução Constitucionalista em São Paulo.
– Greve de 150.000 trabalhadores no Brasil. – Vitória das forças do governo.
– Brasil declara guerra à Alemanha. – Crescimento da indústria brasileira em 50%.
– Anita Malfatti expõe cinquenta e três traba- – Salazar no poder em Portugal.
lhos; em reação, Monteiro Lobato escreve a 1933 – Extensão do voto às mulheres.
crítica Paranoia ou Mistificação? – Política da “Boa Vizinhança” de Roosevelt
– Estréia literária de Manuel Bandeira (A Cin- (EUA).
za das Horas). 1934 – Guimarães Rosa presta concurso para o
1918 – Guimarães Rosa passa a residir em Belo Ho- Itamarati.
rizonte. 1935 – Tentativa de golpe dos comunistas, comanda-
– Fim da Primeira Guerra Mundial. da por Luís Carlos Prestes.
– Monteiro Lobato publica Urupês. – Perseguição e prisão de vários escritores e
1920 – Recenseamento revela a aceleração do cresci- intelectuais brasileiros.
mento industrial do País. 1936 – Magma recebe um prêmio da A.B.L.
1921 – Fundação da Siderúrgica Belgo-Mineira. – Prisão de Jorge Amado e Graciliano Ramos.
1922 – Fundação do Partido Comunista Brasileiro. – Início da Guerra Civil Espanhola.
– James Joyce publica Ulisses. 1937 – Congresso Brasileiro é dissolvido.
– Início do Movimento Tenentista. – Estado Novo – ditadura Vargas principia.
–1
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– As aventuras não têm tempo, não têm princípio O Terceiro Tempo Modernista teve por início o ano
nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são mi- de 1945, quando se realizou o Primeiro Congresso Brasi-
nha maior aventura... Escrevendo descubro sempre um leiro de Escritores, marcado pelo repúdio à ditadura do
novo pedaço de infinito. Estado Novo, enquanto no mundo terminava a Segunda
– Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja Guerra Mundial.
um conto contado por mim. A periodização literária desta época é passível de alte-
– A gramática e a chamada filologia, ciência linguís- rações, uma vez que ela ainda está desdobrando-se, po-
tica, foram inventadas pelos inimigos da poesia. rém, reconhecem-se já algumas tendências ou
– A gente é portador. Cada pessoa é apenas o porta- agrupamentos destacados a seguir:
dor de uma mensagem. Todos nós somos mais que um
5.1 A poesia da geração de 45
símbolo para significar algo que nós mesmos sabemos o
A geração de 45 centrou-se na reação contra o des-
que seja.
leixo e o à-vontade dos modernistas de 1922, retomando
– No sertão, o homem é o eu que ainda não encon-
o rigor formal parnasiano, a preocupação estilística, a
trou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a
rima, a métrica e o soneto tradicionais. O respeito ao me-
língua. tro exato e a fuga à temática banal e ao vocabulário piegas
– O real não está nem na saída nem na chegada. Ele já se delineavam com Geir Campos, Ledo Ivo, Péricles
se dispõe para a gente é no meio da travessia. Eugênio da Silva e João Cabral de Melo Neto (este último
– A vida da gente nunca tem termo real. superando depois os traços parnasianos – simbolistas).
– O senhor ... Mire, veja: o mais importante e bonito Os poetas, então, utilizavam-se de uma linguagem
do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, erudita, propondo o sublime, o ideal, o universal, abando-
ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre nando as preferências pelo prosaico, pelo concreto, pelo
mudando. nacionalismo exagerado, que marcaram o Modernismo de
– O sertão é do tamanho do mundo. 1922 a 1930.
– O medo é a extrema ignorância em momento mui-
to agudo. 5.2 A prosa de ficção pós-45
– Se todo animal inspira sempre ternura, que houve, A permanência realista do testemunho humano,
então, com o homem? privilegiando o aspecto social e aproximando-se do neo-
– Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de naturalismo americano e do neorrealismo italiano, marca
repente aprende. alguns autores de 45, assim como a atração pelo transreal,
– Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento a exploração do insólito, do absurdo, o homem projetado
da gente se torna mais forte do que o poder do lugar. Vi- no mundo mítico, fantástico e mágico da arte.
ver é muito perigoso. O grande inovador do período foi Guimarães Rosa,
– O senhor sabe? Já tentou sofrido o ar que é sau- que explorou os segredos da linguagem não-letrada e co-
dade? Dizem que tem saudade de ideia e saudade de co- locou-se a serviço da literatura na qual o mítico, o infantil
e o desconhecido assumem a base de sua obra.
ração...
O experimentalismo, a pesquisa da linguagem, a rein-
– Esperar é reconhecer-se incompleto.
venção do código linguístico, o romance e o conto instru-
– O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo,
mentalista têm como preocupação principal a palavra, a
demais.
linguagem como o elemento que cria o real. Podemos
– Ser forte é parar quieto; permanecer. aproximar por este motivo a obra de Guimarães Rosa e a
– Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: de Clarice Lispector, que buscavam a universalização do
pão ou pães, é questão de opiniães... romance nacional, sendo que o primeiro se preocupava
– Viver é aprender a viver; toda a vida é ensinada. mais com o enredo e o suspense, enquanto a autora mer-
– Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gulhava na consciência das personagens.
gasteja. Alguns escritores preocupavam-se com a vida moder-
– Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo na e procuravam penetrar nos conflitos do homem e da
o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente sociedade, como Lygia Fagundes Telles, José Cândido de
que me rodeava, porque este, em sua essência, era e Carvalho, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Dalton Tre-
continua sendo uma lenda. visan, e os mistérios inconscientes e psicológicos com
– Cada um tem a sua hora e a sua vez. Clarice Lispector e Osman Lins.
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uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do mulher com o ex-militar Cassiano Gomes, e faz planos
Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças de vingança. Todavia, a bala destinada a matar Cassiano
a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, (de costas) não acerta o amante de Silivana, mas sim o
parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que irmão de Cassiano. Este põe-se a perseguir Turíbio para
na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário vingar o assassínio do irmão. Turíbio refugia-se no sertão,
político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Por acossado por Cassiano. Durante meses trava-se uma luta
seu intermédio, reconcilia-se com Maria Rita, que nunca aferrada, em que cada um é ao mesmo tempo perseguidor
o deixara de amar. A narrativa aproxima-se das novelas e perseguido. Algumas vezes os duelistas se desencon-
picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações tram por um fio. Cassiano cai gravemente doente, mas
interesseiras das convicções políticas do interior. antes de morrer, ajuda com generosidade a um capiau que
vive na miséria, chamado Vinte-e-Um. Turíbio, ao saber
7.3 “Sarapalha” da morte do adversário, fica contente e põe-se a caminho
de volta para sua mulher. Vinte-e-Um, porém, o identifica
e mata, cumprindo assim a vingança que prometera a
“Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... Cassiano.
Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...
A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...
Coitado de quem namora!...” 7.5 “Minha Gente”
(O TRECHO MAIS ALEGRE, DA
CANTIGA MAIS ALEGRE, DE UM
CAPIAU BEIRA-RIO.)
“Tira a barca da barreira,
deixa Maria passar:
A) Resumo Maria é feiticeira,
Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos sofrendo ela passa sem molhar.”
de malária, são os únicos habitantes do vau da Sarapalha, (CANTIGA DE TREINAR
lugar dizimado pela epidemia e abandonado pelos demais PAPAGAIOS.)
moradores. Sujeitos a periódicos ataques de febre, cada
vez mais sérios, esperam a morte. Saudosamente, evocam A) Resumo
a lembrança da bela Luísa, mulher de primo Ribeiro que, O conto serve de pretexto para a documentação dos
ao manifestar-se a malária, tinha-o abandonado por causa costumes e dos infortúnios da vida da roça. Estrutura-se
de outro. Argemiro, que deseja morrer de consciência como uma espécie de paródia, meio sentimental e meio
tranquila, confessa ao primo que a sua mudança para a irônica, das estórias de amor com final feliz.
casa de Ribeiro foi motivada pela atração que sentia por O protagonista-narrador, um moço, está de visita na
Luísa. Ribeiro reage amargamente e se mostra implacável: fazenda do tio, empenhado em ganhar as eleições locais.
manda Argemiro embora na hora em que começa a O moço se apaixona por Maria Irma, sua prima, e lhe faz
agonia. uma declaração, a qual ela não corresponde. Um dia, ela
recebe a visita de Ramiro, noivo de outra moça, segundo
7.4 “Duelo” ela diz, e o moço fica com ciúmes. Para atrair o amor de
Maria Irma, ele finge namorar uma moça da fazenda
“E grita a piranha cor de palha, – Exagero... – diz a arraia – vizinha. Porém, o plano falha – tendo como efeito
irritadíssima: eu durmo na areia, secundário, não-calculado, a vitória do tio nas eleições –
– Tenho dentes de navalha, e de ferrão a prumo,
e o moço deixa a fazenda. Na visita seguinte, Maria Irma
com um pulo de ida-e-volta e sempre há um descuidoso
resolvo a questão!... que vem se espetar. apresenta-lhe Armanda. É amor à primeira vista; ele se
– Pois, amigas, – murmura o casa com a moça, e Maria Irma, por sua vez, se casa com
gimnoto, Ramiro Gouveia, “dos Gouveias de Brejaúba, no Todo-
mole, carregando a bateria – Fim-É-Bom”.
nem quero pensar no assunto: Como numa novela, há várias intrigas, episódios e
se eu soltar três pensamentos
elétricos,
personagens secundários. Numa dessas intrigas, Bento
bate-poço, poço em volta, Porfírio comete adultério com a de-Lourdes, casada com
até vocês duas Alexandre, o Xandrão Cabaça, que acaba matando o
boiarão mortas...” rival. Há, de permeio, o episódio da eleição e da vitória
(CONVERSA A DOIS de Emílio do Nascimento, tio do narrador-protagonista,
METROS DE
pelo partido João-de-Barro, e que serve de pretexto para
PROFUNDIDADE.)
a retratação das astúcias e intrigas da política interiorana
A) Resumo de Minas. Outras personagens se entrecruzam na
O capiau Turíbio Todo testemunha a traição de sua narrativa: Santana, o inspetor de ensino e jogador de
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xadrez; José Malvino, guia e mateiro, conhecedor da Em outra ocasião, a caminho-do-mato, onde se
natureza e dos costumes do sertão; o Moleque Nicanor, entretinha na contemplação da natureza, de seus mínimos
menino da fazenda e que, com oito anos, já sabe pegar, movimentos, dos bichos, árvores e flores, encontrou-se
em campo aberto, qualquer montaria, sem cabresto nem com Aurísio Manquitola e se entreteve com os casos dos
milho, só com a esperteza de sua cor e tamanho. Bilica, terríveis efeitos e poderes da oração mágica de São
Agripino e tio Ludovico são outras personagens. A ação Marcos, que o narrador também conhecia. A longa prosa
se passa no Saco-do-Sumidouro, entre fazendas e com Aurísio Manquitola envolveu também outros
pesqueiros: o Pau-Preto, o Touno-Tombo, até as Três circunstantes: o Gestal da Gaita, o Compadre Silivério,
Barras. o Tião Tranjão, o Cypriano, o Felipe Turco, entre
outros, cada qual narrando os seus casos de feitiçaria.
7.6 “São Marcos” José embrenha-se de novo no mato, absorto na
contemplação da natureza, recordando o desafio poético
“Eu vi um homem lá na grimpa do travado com o “Quem-Será”, que se fazia em meio à
[coqueiro, ai-ai, natureza, pois os autores, sem se defrontarem, inscreviam
não era homem, era um coco bem
[maduro, oi-oi,
os seus versos nos colmos (hastes) de belíssimos bambus.
não era coco, era a creca de um Lembra-se ele de que:
[macaco, ai-ai,
não era a creca, era o macaco todo (...) Foi quase logo que eu cheguei no Calango-Frito, foi logo que
[inteiro, oi-oi.” eu me cheguei aos bambus. Os grandes colmos jaldes, envernizados,
(CANTIGA DE ESPANTAR lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta
MALES.) de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
dos animais, consegue se orientar. Irritado com a demora pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-
da luz, profere, com raiva, a reza de São Marcos. chamas; para namorar...”.
Tomado de fúria, avança numa só e precisa direção: a Podemos afirmar, a estas alturas, que a história que se
casa de João Mangolô. Vai em transe. Assim, chega, de conta em “São Marcos” não é a história da vingança de
súbito, na cafua do João Mangolô, e começa a esganá-lo, um feiticeiro desrespeitado, mas a história de um sujeito
furioso. Nisso, volta a enxergar. O negro velho havia que ascende à categoria de herói por ter reagido
amarrado, por brincadeira vingativa, uma tira nos olhos positivamente na prova de qualificação a que sem o saber
de um retrato do narrador, irreverente e zombador, que era submetido:
não acreditava em feitiçaria, ainda que fosse (...) Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam
supersticioso. autógrafos; (...)
Há, no conto, três fábulas: a do feiticeiro e das E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um
feitiçarias, a do passeio e da natureza e a dos poemas. O lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
principal ponto de convergência se manifesta na função
Sargon
criativa da palavra. Nas três fábulas, a palavra é valorizada
Assarhaddon
não pela função referencial, de indicar seres existentes Assurbanipal
fora dela, mas enquanto forma de criação de novas Teglattphalasar, Salmanassar
realidades e de conhecimento, o qual se efetua principal- Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
mente graças ao plano da expressão. Belsazar
Tanto no poema quanto na feitiçaria é quase irrisório Sanekherib.
conhecer o significado das palavras e enunciados. Este Em resumo, conta-se a história da revelação de um
permanece como algo mais intuído que compreendido. A destino, de um destino privilegiado, que se revela por um
reza de São Marcos não interessa enquanto significado, conhecimento estético superior do universo, manifesto na
sentido – “é melhor esquecer as palavras” – mas como imersão sensual/sensorial/mágica na natureza. A cegueira
rito, magia, iniciação transcendentalista. de José (Izé) é o pretexto para que o autor faça anotar
Em todas as fábulas processa-se, assim, uma volta outros sentidos, outras potencialidades do ser, que são, a
às origens: através da reintegração total dos sentidos, seu modo, “a hora e vez” do narrador, a sua “travessia”
da aproximação à natureza, da crença na força da no mundo do mistério e do encantamento.
palavra.
Nisso parece consistir a qualificação da personagem: 7.7 “Corpo Fechado”
ser poeta e amante da natureza. É nesse sentido que se
justificam as longas e pormenorizadas descrições da
natureza e o rico exemplário da manifestação poética da
linguagem na vida cotidiana, retardando o prosseguimento
"A barata diz que tem
da fábula sobre o feiticeiro. O saber que se transmite à
sete saias de filó...
personagem, em seu confronto com o feiticeiro, é o de que É mentira da barata:
o feiticeiro não é um ser dotado de poderes sobre- Ela tem é uma só."
humanos, mas o de que o homem se esqueceu de suas (CANTIGA DE RODA.)
potencialidades, de suas faculdades humanas, ao
distanciar-se das origens.
A pergunta que se coloca – o narrador acredita ou não A) Resumo
em feiticeiros? – tem agora outro sentido. A palavra O narrador, médico em Laginha, vilarejo do interior,
“feiticeiro” ganha a partir de então um novo significado. é convidado por Manuel Fulô para ser padrinho de
O de ser eleito como não queria admitir a personagem; casamento. Manuel detesta qualquer tipo de trabalho e,
não, porém, no sentido por ela dado, mas no de um ser enquanto bebem cerveja, divertem-se, ele contando e o
que, consciente ou não, benéfica ou maleficamente, faz doutor ouvindo as histórias e os casos: do rato que tinha
uso das faculdades humanas primitivas e originais. em casa enjaulado e que estava, por artimanha sua,
E quem seria o destinador? A natureza? O destino? criando amizade a um gato rajado; dos valentões do lugar
Ou quem sabe o próprio homem na bondade de cultivar as – José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo (Adejalma) e
suas inclinações naturais, compondo poema – e com isso Targino, o mais recente, e que teve a insolência de reunir
reconquistando as formas primordiais humanas – ou seu bando e comer carne com cachaça em frente da igreja,
visitando “todos os domingos o mato” e lá passar “o dia numa Sexta-Feira da Paixão; dos ciganos que ele, Manuel
inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí medrar da Fulô, teria trapaceado na venda de cavalos; de sua
terra de dentro de um buraco no tronco de uma camboatã; rivalidade com Antonico das Pedras-Águas, o feiticeiro.
para assistir à carga frontal das formigas-cabeças contra a Manuel possui uma mula, Beija-Fulô, e Antonico é dono
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de uma bela sela mexicana; cada um dos dois gostaria de Ao entardecer, na ladeira do Morro-do-Sabão, Agenor
adquirir o bem do outro. encontra, espatifado, o carro da Estiva, carreado por João
Aparece então Targino, o valentão do lugar, e anuncia, Bala. Havia caído ao tentar subir a ladeira. Agenor consola
cinicamente, que vai passar a noite, antes do casamento, o carreiro e, em seguida, para provar a Tiãozinho que era
com a noiva de Manuel Fulô. Ele fica desesperado; um carreiro de verdade, escala a subida em que João Bala
ninguém pode ajudá-lo, pois Targino domina o lugarejo. fracassara. Sai vitorioso e coloca-se na dianteira do carro,
Aparece então o feiticeiro Antonico das Pedras-Águas e junto aos bois, e cochila. Os bois percebem que o
propõe um trato a Manuel Fulô: “vai fechar-lhe o corpo”; “homem-do-pau-comprido-com-marimbondo-na-ponta”
mas exige em pagamento a mula Beija- Fulô, maior está dormindo. Jogam-se bruscamente para a frente,
orgulho e paixão de Manuel. O trato é aceito. atropelando-se para derrubar Agenor Soronho, que cai. A
De corpo fechado, Manuel Fulô enfrenta o bandido roda do carro passa sobre seu pescoço, sem que se possa
Targino e, para espanto de todos, mata-o com uma saber se morreu dormindo ou se acordou para saber que
faquinha do tamanho de um canivete. O casamento com a morria.
das Dor realiza-se sem problemas e de vez em quando Retomando, sob outro prisma, o conto inicial “O
consegue emprestada sua antiga mulinha Beija-Fulô, para Burrinho Pedrês”, este “Conversa de Bois” é uma alegoria
ostentar, à cavaleiro, sua nova condição de valentão de sobre a justiça dos animais e a crueldade dos homens.
Laginha.
7.9 “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
7.8 “Conversa de Bois”
"Eu sou pobre, pobre, pobre,
vou-me embora, vou-me embora…
........................................................
Eu sou rica, rica, rica,
vou-me embora daqui!…"
"– Lá vai! Lá vai! Lá vai!... (CANTIGA ANTIGA.)
– Queremos ver... Queremos ver...
– Lá vai o boi Cala-a-Boca "Sapo não pula por boniteza,
fazendo a terra tremer!..." mas porém por percisão."
(CORO DO BOI-BUMBÁ.) (PROVÉRBIO CAPIAU.)
A) Resumo A) RESUMO
O narrador da novela ouviu a tragédia, que vai contar Narrado na terceira pessoa, o conto enfatiza duas
ao leitor, de Manuel Timborna, que a ouviu da irara constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo,
Risoleta, testemunha do acontecido. na interminável luta do bem e do mal.
Pelo sertão anda um carro de bois: na frente, Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves,
Tiãozinho, o menino guia; logo atrás as quatro juntas, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido como Nhô
com oito bois, que conversam enquanto puxam a carroça: Augusto e também como Augusto Matraga, é o maior
Buscapé e Namorado, Capitão e Brabagato, Dansador valentão do lugar, briga com todo mundo e maltrata por
e Brilhante, Realejo e Canindé; em cima do carro vai pura perversidade. Debochado, tira as mulheres e
Agenor Soronho. Carregam uma carga de rapadura e, namoradas dos outros. Não se preocupa com sua mulher,
sobre ela, mal-acomodado e sacolejando, o caixão com Dona Dionóra, nem com sua filha, Mimita, nem com sua
um defunto, o pai de Tiãozinho. fazenda, que começa a se arruinar.
Tiãozinho vai chorando: sofre com a morte do pai e Já em descrédito econômico e político, sobrevém o
com a de Didico, sofre também o calor, o cansaço e os castigo: sua mulher, Dona Dionóra, foge com Ovídio
maus-tratos que recebe do carreiro Agenor, que o faz Moura levando a filhinha. Seus bate-paus (capangas),
sofrer, que aguilhoa brutalmente os bois. Por doença e malpagos, põem-se a serviço do seu pior inimigo; o
morte de seu pai, Tiãozinho ficara totalmente dependente Major Consilva. Quim Recadeiro foi quem levou a
do Agenor Soronho, que sustenta a família do menino e já notícia da defecção dos capangas. Nhô Augusto resolve
mantinha relacionamento amoroso com a mãe de ter com eles, antes de perseguir Dionóra e Ovídio, mas
Tiãozinho, antes de ela ficar viúva. no caminho é atacado, numa tocaia, por seus inimigos,
O boi Brilhante vai contando aos demais a estória do que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa.
boi Rodapião, que morreu por assimilar os processos Quase inconsciente, no momento em que vai ser
mentais dos homens. Os bois vão conversando entre si assassinado, reúne as últimas forças e se atira no
sobre a opressão dos bois pelos homens e a possibilidade despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por
de vencerem sua superioridade. Sentem-se solidários com morto. É, contudo, encontrado por um casal de negros
o menino. velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião, que tratam de
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Nhô Augusto, que sara, mas fica com sequelas Epifânio. Matraga hospeda-os com grande dedicação e
deformantes. admira as armas e o bando de Joãozinho Bem-Bem. Mas
Começa então uma nova vida, no povoado do Tom- se recusa a acompanhar o bando, mesmo convidado pelo
bador, para onde levou os pretos, seus protetores. Rege- chefe e não aceita qualquer ajuda dos jagunços. Quer
nera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de mesmo ir para o céu.
trabalho duro, penitência e reza. Arrependido de suas mal- Totalmente recuperado, Matraga despede-se do casal
dades, ajuda a todos, e reza com devoção: quer ir para o céu, e parte, sem destino, num jumento. Chega ao Arraial do
“nem que seja a porrete”, e sonha com um “Deus valentão”. Rala-Coco, onde reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu
Passados seis anos, tem notícias de sua ex-família, bando, prestes a executar uma cruel vingança contra a
através do Tião da Thereza: a esposa, Dona Dionóra, família de um assassino que fugira. Augusto Matraga
vive feliz com Ovídio, e vai-se casar com ele; Mimita, sua intervém em nome da justiça, opõe-se ao chefe do bando,
filha, foi enganada por um cometa (espécie de caixeiro liquida diversos capangas, tomado de verdadeiro furor.
viajante) e caiu na perdição. Matraga sente saudades, Bate-se em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem.
sofre, mas se resigna. Ambos morrem – Joãozinho primeiro. Nessa hora,
Certo dia, aparece o Joãozinho Bem-Bem, jagunço Augusto é reconhecido por João Lomba, que era meio
de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino parente.
Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho e
Exercícios
1. (PUC-adaptada) – Sagarana, coletânea de contos,
escrita por Guimarães Rosa, enfoca o ambiente rural
brasileiro e aponta novos rumos para a prosa literária
modernista. Assim,
a) considerando que o espaço geográfico onde se
desenrolam as narrativas de Guimarães Rosa é o
do norte de Minas Gerais e o do sul da Bahia, que
novo conceito se pode ter de regionalismo na obra
desse autor?
b) que características de linguagem podem ser
percebidas nas narrativas que constituem
Sagarana?
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5. (UEL-PR) – O trabalho com a linguagem por meio 6. (UEPA) – Observe o trecho extraído de “O Burrinho
da recriação de palavras e a descrição minuciosa da Pedrês”, de Guimarães Rosa:
natureza, em especial da fauna e da flora, são uma
constante na obra de João Guimarães Rosa. Esses – Você é meu camarada de confiança, Francolim.
elementos são recursos estéticos importantes que Tem mais responsabilidade de ajudar, também...
contribuem para integrar as personagens aos – Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço do se-
ambientes onde vivem, estabelecendo relações entre nhor, carrego pedras, seu Major. Só peço é ordem
natureza e cultura. Em “Sarapalha”, conto inserido no para o João Manico me dar de novo meu cavalinho,
livro Sagarana, de 1946, referências do mundo na entrada do arraial, para não ficar feio eu, como
natural são usadas para representar o estado febril de ajudante do senhor, o povo me ver amontado neste
Primo Argemiro. burro esmoralizado... sem querer com isso ofender,
Com base nessa afirmação, assinale a alternativa em por ser criação de que o senhor gosta...
que a descrição da natureza mostra o efeito da maleita
sobre a personagem Argemiro. Considerando o seu conteúdo e o conjunto da
a) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma narrativa da qual foi retirada, é correto dizer que
fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de a) no momento em que se trava esse diálogo, o epi-
pedra seca, do tempo de escravos; um rego murcho, sódio do afogamento de alguns vaqueiros no
um moinho parado; um cedro alto, na frente da córrego já havia acontecido.
casa; e, lá dentro uma negra, já velha, que capina e b) a solicitação de Francolim para destrocar a
cozinha o feijão.” montaria não será acatada pelo Major Saulo.
b) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do c) o diálogo evidencia o comportamento de indepen-
colmado dos juncos, se estira o voo da uma garça, dência dos vaqueiros em relação ao dono da
em direção à mata. Também, não pode olhar muito: fazenda.
ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, d) o comentário de Francolim sobre Sete-de-Ouros,
que doem e choram por si sós, longo tempo.” que se assemelha ao dos outros vaqueiros, irá reve-
c) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam as lar-se injusto, ao final, quando o burrico, além de
muriçocas de volta para casa, e quando o carapana salvar Badú, irá salvá-lo, também.
mais o mossorongo cinzento se recolhem, que ele e) a personagem João Manico, referido por
aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata e asas Francolim, é o único vaqueiro a salvar-se na tra-
de xadrez.” vessia do córrego, por ter vindo montado em Sete-
d) “Estava olhando assim esquecido, para os olhos... de-Ouros.
olhos grandes escuros e meio de-quina, como os de
uma suaçuapara... para a boquinha vermelha, como
flor de suinã...”
e) “O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha,
desolha... Não entende. Mas sabe que está acon-
tecendo alguma coisa. Latindo, choramingando,
chorando, quase uivando.”
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Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 13
GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST
SAGARANA
1) a) O regionalismo de João Guimarães Rosa é de “hora e vez” do narrador, a sua “travessia” no
âmbito universal. Esse autor transfigura no mundo do mistério e do encantamento.
sertão brasileiro, norte de Minas Gerais, sul da Resposta: D
Bahia, e também Goiás, mitopoéticos universais.
No conto “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, 4) Sagarana, livro de estreia de Guimarães Rosa,
há a problemática ontológica: a procura da ação configura o que a crítica denomina de narrativa de
que justifique plenamente a existência. Augusto tensão transfigurada. Os heróis rosianos, resolutos
Matraga só se redime ao superar o mani- e inteiriços, na gesta cotidiana do Sertão,
queísmo (Bem x Mal), juntando elementos transmudam a realidade numa suprarrealidade,
aparentemente antagônicos: a violência com o mágica e mítica, projetando no Sertão os grandes
misticismo. temas da literatura universal. O universo
b) Nas narrativas de Sagarana, percebe-se lingua- primitivo e a entrega amorosa à natureza, captada
gem instrumentalizada, valorizando-se o nas suas mínimas vibrações, são expressos numa
significante, o aspecto plástico, carregado de linguagem original, de dimensão eminentemente
conceitos. É a linguagem poética, em que a poética, (re)inventada a partir da pesquisa erudita
mensagem se evidencia por si mesma, devido às das raízes do idioma e da melopeia da fala
aliterações, à cadência rítmica, aos arcaísmos, sertaneja.
aos regionalismos e aos neologismos. O título do Resposta: B
livro é um neologismo que provém do
germânico (saga = feito heroico) misturado com 5) No trecho “Também, não pode olhar muito: ficam-
o tupi (rana = à maneira de). lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que
doem e choram por si sós, longo tempo” é evidente
2) a) Trata-se do conto “Conversa de Bois”, o a alusão ao estado febril de Primo Argemiro, que
penúltimo do livro Sagarana. tem dificuldade de sustentar o olhar, em
b) O animal, tendo presença ativa e simbólica, na decorrência das lágrimas que lhe saem dos olhos,
obra de Guimarães Rosa, aparece no primeiro por causa da febre.
conto de Sagarana, “O Burrinho Pedrês”, e no Resposta: B
conto “Meu tio, o Iauaretê”, publicado em Estas
Estórias. 6) Sete-de-Ouros é um burrinho já idoso e, escolhido
para servir de montaria num transporte de gado,
3) O conto “São Marcos”, o mais difícil de Sagarana, é visto com desdém pelos vaqueiros, como se nota
antecipa algumas constantes da ficção rosiana: a no trecho transcrito. Contudo, na travessia do
viagem, a palavra, a dualidade entre personagens Córrego da Fome, transformado em rio perigoso
comuns e personagens extraordinárias, a presença por causa da cheia, vaqueiros e cavalos se afogam,
infusa de um destinador mítico e a reintegração salvando-se apenas dois vaqueiros, Badú e
natural ou mítica do homem à natureza. Francolim, um montado em Sete-de-Ouros e outro
A cegueira de José (Izé) é o pretexto para que o pendurado no rabo do burrinho.
autor faça aflorar outros sentidos, outras Resposta: D
potencialidades do ser, que são, a seu modo, a
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