Você está na página 1de 15

Sagarana_2016 30/05/16 14:38 Página I

Sagarana_2016 30/05/16 14:38 Página II


Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 1

AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST

SAGARANA
1. PANORAMA HISTÓRICO DA ÉPOCA – Revolta do Forte de Copacabana.
– Mussolini sobe ao poder na Itália.
1908 – Nascimento de João Guimarães Rosa em – Semana de Arte Moderna em São Paulo.
Cordisburgo, Minas Gerais.
1923 – Revolução Libertadora no Rio Grande do Sul.
– Expansão das plantações de café no Brasil.
1924 – Novas rebeliões tenentistas.
– Primeiro filme de ficção realizado no Brasil
– Coluna Prestes.
(Nhô Anastácio Chegou de Viagem).
– Morte de Lênin.
– Morte de Machado de Assis.
– Manifesto Surrealista de André Breton.
1909 – Manifesto Futurista de F. T. Marinetti.
1926 – Movimento Verde-Amarelo.
– Assassinato de Euclides da Cunha.
1927 – Congresso Regionalista do Recife.
– Hermes da Fonseca candidata-se à Presidência,
1928 – Publicação de Macunaíma e A Bagaceira.
e Rui Barbosa inicia a Campanha Civilista.
1910 – Hermes da Fonseca derrota Rui Barbosa na – Revista de Antropofagia.
eleição para Presidência. 1929 – Quebra da Bolsa de Nova Iorque.
– Proclamação da República Portuguesa. – Crise internacional do café.
1912 – Crise da borracha. – Inauguração do prédio Martinelli em São
– Oswald de Andrade retorna da Europa. Paulo.
– Guerra do Contestado. 1930 – Fim da República Velha.
1913 – Exposição de Lasar Segall. – Revolução de 30.
1914 – Primeira Guerra Mundial. – Getúlio Vargas no poder.
– Anita Malfatti faz sua primeira exposição em – Publicação de Alguma Poesia de Carlos
São Paulo. Drummond de Andrade.
– Governo Venceslau Brás. – Suicídio do poeta russo Maiakóvski.
1915 – Primeiro filme sonoro brasileiro. – Nazistas vencem as eleições na Alemanha.
– Lima Barreto publica Triste Fim de Policarpo 1931 – Guimarães Rosa passa a exercer a função de
Quaresma. oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria,
– Publicação da revista Orpheu, inaugurando o em Barbacena.
Modernismo Português. 1932 – José Lins do Rego publica Menino de Engenho.
1917 – Revolução Socialista Russa. – Revolução Constitucionalista em São Paulo.
– Greve de 150.000 trabalhadores no Brasil. – Vitória das forças do governo.
– Brasil declara guerra à Alemanha. – Crescimento da indústria brasileira em 50%.
– Anita Malfatti expõe cinquenta e três traba- – Salazar no poder em Portugal.
lhos; em reação, Monteiro Lobato escreve a 1933 – Extensão do voto às mulheres.
crítica Paranoia ou Mistificação? – Política da “Boa Vizinhança” de Roosevelt
– Estréia literária de Manuel Bandeira (A Cin- (EUA).
za das Horas). 1934 – Guimarães Rosa presta concurso para o
1918 – Guimarães Rosa passa a residir em Belo Ho- Itamarati.
rizonte. 1935 – Tentativa de golpe dos comunistas, comanda-
– Fim da Primeira Guerra Mundial. da por Luís Carlos Prestes.
– Monteiro Lobato publica Urupês. – Perseguição e prisão de vários escritores e
1920 – Recenseamento revela a aceleração do cresci- intelectuais brasileiros.
mento industrial do País. 1936 – Magma recebe um prêmio da A.B.L.
1921 – Fundação da Siderúrgica Belgo-Mineira. – Prisão de Jorge Amado e Graciliano Ramos.
1922 – Fundação do Partido Comunista Brasileiro. – Início da Guerra Civil Espanhola.
– James Joyce publica Ulisses. 1937 – Congresso Brasileiro é dissolvido.
– Início do Movimento Tenentista. – Estado Novo – ditadura Vargas principia.
–1
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 2

– Nova prisão de Jorge Amado e apreensão de – Estados Unidos fabricam a bomba H.


seus livros. – Início da Guerra da Coréia.
1938 – Guimarães Rosa é nomeado cônsul-adjunto 1952 – Primeira novela brasileira vai ao ar: Sua Vida
em Hamburgo. me Pertence.
– Criação do Conselho Nacional do Petróleo. 1953 – Morte de Stálin.
– Formação do grupo “Os Comediantes” dá iní- – Atentado contra Perón.
cio ao Teatro Contemporâneo Brasileiro. – Jânio Quadros eleito prefeito de São Paulo.
– Revolta Integralista. 1954 – Suicídio de Getúlio Vargas.
– Hitler invade a Áustria. – Morte de Oswald de Andrade.
1939 – Publicação de Riacho Doce de José Lins do – Boicote ao café brasileiro em Nova Iorque.
Rego. 1955 – Eleição de José Lins do Rego para a Acade-
– Início da Segunda Guerra Mundial com a mia Brasileira de Letras.
ocupação da Polônia pelas forças do Terceiro – Queda de Perón.
Reich. – Morte de Carmem Miranda.
– Fim da Guerra Civil Espanhola. – Instalação da indústria automobilística no
– Morte de Freud. Brasil.
– Criação da Companhia Siderúrgica Nacional. – Forças conservadoras mobilizam-se para im-
1940 – Início da construção da Usina Siderúrgica de pedir a posse do presidente Juscelino
Volta Redonda.
Kubitschek.
– Batalha da Inglaterra.
1956 – JK assume a Presidência.
1941 – Ataque japonês aos Estados Unidos.
– Israel invade o Egito.
1942 – Alemães arrasam a Tchecoslováquia e dão
– Publicação de Grande Sertão: Veredas.
início à batalha de Stalingrado.
– Difusão da poética concretista.
– Brasil declara guerra à Alemanha.
1957 – José Lins do Rego falece em 12 de dezembro.
– Aliança Inglaterra-Rússia.
1943 – Publicação de Fogo Morto de José Lins do 1958 – Guimarães Rosa é promovido a ministro de
Rego. primeira classe (diplomata).
– Mussolini é preso. 1959 – Fidel Castro toma o poder em Cuba.
1944 – Instituído o voto feminino na França. – Revolta dos oficiais da Aeronáutica Brasileira.
– Os Retirantes, de Portinari. 1960 – Inauguração de Brasília.
– Guimarães Rosa volta ao Brasil. – Apogeu das Ligas Camponesas.
1945 – Término da Segunda Guerra Mundial e do – John Kennedy é eleito presidente dos EUA.
Estado Novo. 1961 – Rompimento entre Estados Unidos e Cuba.
– Morte de Hitler e Mussolini. – Jânio Quadros assume a Presidência e renun-
– Os Estados Unidos lançam duas bombas atô- cia após sete meses.
micas sobre o Japão. – Instituição do Regime Parlamentarista no
– Morte de Mário de Andrade. Brasil.
1946 – Publicação de Sagarana. – João Goulart assume o poder.
– Posse do Marechal Eurico Gaspar Dutra na – Movimentos de cultura popular da UNE.
Presidência da República. – Teatro Arena e Cinema Novo.
– Nova Constituição brasileira. – Yuri Gagarin vai ao espaço.
– Fechamento dos cassinos e proibição do jogo 1962 – Palma de Ouro ao filme brasileiro O Paga-
em território nacional. dor de Promessas.
– Perón é eleito presidente da Argentina. – Morte de Marilyn Monroe.
1947 – Comunistas excluídos do governo francês. – Publicação, em livro, de Primeiras Estórias.
1948 – Rompimento das relações diplomáticas entre 1963 – Revogação do Parlamentarismo no Brasil.
Brasil e URSS. – “Beatle-boom”.
– Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Trans- – Assassinato de Kennedy.
portes e Energia) do Governo Dutra. 1964 – Governo João Goulart é derrubado pelas
1949 – Vitória da Revolução Chinesa. forças conservadoras.
– Proclamação da República Popular da China – Assume a Presidência Castello Branco.
Comunista. – Cassação de mandatos políticos.
1950 – Eleição de Getúlio Vargas para a Presidência – Ato Institucional nº 1.
da República. – Solidificação do Cinema Novo (Glauber
– Inauguração da primeira estação de televisão Rocha).
no Brasil. – Início do Regime Militar.
2–
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 3

– Fundação do Grupo Opinião. sendo, em 1942, internado em Baden-Baden juntamente


– Envolvimento dos Estados Unidos na Guerra com outras pessoas do corpo diplomático, quando o Bra-
do Vietnã. sil declarou guerra à Alemanha. Libertado em troca de
– Morte de Ary Barroso. diplomatas alemães, voltou ao Brasil e seguiu para
– Filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Bogotá como secretário da embaixada brasileira até o ano
Glauber Rocha vence o festival da Itália. de 1944.
1965 – Extinção dos partidos políticos, reduzidos à Em 1946, tornou-se chefe do Gabinete de João Neves
Aliança Renovadora Nacional e ao Movi- Fontoura. Tomou parte na delegação brasileira presente à
mento Democrático Brasileiro. Conferência da Paz, em Paris. No mesmo ano, surgiu a
– Festival de Música Popular da TV Excelsior obra Sagarana (contos), que lhe trouxe renome e
de São Paulo. caracterizou-se por um regionalismo diferente, em que há
– Minissaia revoluciona o mundo da moda. muito de invenção, recriação do falar regional adaptado
1966 – Segundo Festival de Música Popular da TV às exigências artísticas do prosador-poeta. Em 1948, fez
Record. uma incursão ao Mato Grosso, quando coletou dados para
1967 – Publicação do romance Quarup, de Antônio a reportagem O Vaqueiro Mariano. Voltou, dois anos de-
Callado. pois, à França, onde permaneceu até 1950.
– Artur da Costa e Silva assume a Presidência. Guimarães Rosa fez uma viagem pelo sertão de Minas
– Nova Constituição. Gerais em 1952 e dela participou Manuel Narde, vulgo
– Teatro Oficina monta O Rei da Vela, de Os- Manuelzão, protagonista de “Uma Estória de Amor”,
wald de Andrade. incluída no volume Manuelzão e Miguilim.
– Beatles lançam Sgt. Peppers. Em 1958, tendo já sido nomeado chefe da Divisão de
– Tropicalismo explode no Brasil. Orçamento, foi designado embaixador. Apesar de sua vida
– Guimarães Rosa morre de enfarte pouco de- levada em ambientes diplomáticos, Rosa não perdeu o
pois de assumir sua cadeira na Academia Bra- contato com a terra, de que se mostrou profundamente
sileira de Letras.
conhecedor. Um de seus últimos encargos foi a chefia do
Serviço de Demarcação de Fronteira, que o levou a tratar
2. BIOGRAFIA DO AUTOR casos espinhosos, como o do Pico da Neblina e o das Sete
Quedas.
Romancista e contista brasileiro contemporâneo, Da sua carreira de escritor, em grande parte afastado
Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, da vida literária, só obteve o reconhecimento geral a par-
em 27 de junho de 1908. Primeiro filho de um pequeno tir de 1956 com os livros Corpo de Baile e Grande Sertão:
comerciante estabelecido na zona pastoril centro-norte Veredas, obras que o colocaram na primeira linha dos
mineira, aprendeu as primeiras letras em sua cidade, nossos grandes escritores.
mudando-se depois para Belo Horizonte, onde frequentou Foi eleito por unanimidade para a vaga de João Neves
o Colégio Arnaldo, lugar em que também estudou Carlos Fontoura na Academia Brasileira de Letras. Adiou a posse
Drummond de Andrade. por quatro anos e, finalmente, em 16 de novembro de
Desde logo, o autor mostrou grande paixão pela 1967, assumiu sua cadeira na data do aniversário de seu
língua, chegando a dominar o alemão, russo, francês, antecessor. Em 19 de novembro desse ano, Guimarães
inglês, húngaro, grego, latim, italiano e espanhol. Quando Rosa faleceu de enfarte, aos 59 anos, no Rio de Janeiro,
terminou os preparatórios, começou o curso de Medicina três dias depois de admitido solenemente à Academia: “As
em 1925, exercendo a profissão em cidades do interior
pessoas não morrem, ficam encantadas.”
mineiro (Ibiúna e Barbacena). Nesse período, estudou
sozinho alemão e russo.
Através de concursos, Rosa publicou alguns contos 3. OBRAS DO AUTOR
na revista O Cruzeiro. Itaguara foi a primeira cidade que
o recebeu, já doutrinado, até que retornou a Belo – Sagarana, 1946 – Contos
Horizonte. Participou da Revolução de 32, na qual serviu – Corpo de Baile, 1956 – Novelas
como médico voluntário na Força Pública. Em 1934, – Grande Sertão: Veredas, 1956 – Romance
estando em Barcelona, como médico militar, fez concurso – Primeiras Estórias, 1962 – Contos
para o Itamarati. – Tutameia: Terceiras Estórias, 1967 – Contos
Literariamente, Guimarães Rosa surgiu em 1936 com – Estas Estórias, 1969 – Contos
o livro de poesias Magma, com o qual ganhou prêmio da – Ave, Palavra, 1970 – Contos
Academia Brasileira de Letras. Ingressando na carreira
diplomática, serviu de cônsul-adjunto em Hamburgo,
–3
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 4

4. PENSAMENTOS DE GUIMARÃES ROSA 5. CARACTERÍSTICAS DO PERÍODO LITERÁRIO

– As aventuras não têm tempo, não têm princípio O Terceiro Tempo Modernista teve por início o ano
nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são mi- de 1945, quando se realizou o Primeiro Congresso Brasi-
nha maior aventura... Escrevendo descubro sempre um leiro de Escritores, marcado pelo repúdio à ditadura do
novo pedaço de infinito. Estado Novo, enquanto no mundo terminava a Segunda
– Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja Guerra Mundial.
um conto contado por mim. A periodização literária desta época é passível de alte-
– A gramática e a chamada filologia, ciência linguís- rações, uma vez que ela ainda está desdobrando-se, po-
tica, foram inventadas pelos inimigos da poesia. rém, reconhecem-se já algumas tendências ou
– A gente é portador. Cada pessoa é apenas o porta- agrupamentos destacados a seguir:
dor de uma mensagem. Todos nós somos mais que um
5.1 A poesia da geração de 45
símbolo para significar algo que nós mesmos sabemos o
A geração de 45 centrou-se na reação contra o des-
que seja.
leixo e o à-vontade dos modernistas de 1922, retomando
– No sertão, o homem é o eu que ainda não encon-
o rigor formal parnasiano, a preocupação estilística, a
trou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a
rima, a métrica e o soneto tradicionais. O respeito ao me-
língua. tro exato e a fuga à temática banal e ao vocabulário piegas
– O real não está nem na saída nem na chegada. Ele já se delineavam com Geir Campos, Ledo Ivo, Péricles
se dispõe para a gente é no meio da travessia. Eugênio da Silva e João Cabral de Melo Neto (este último
– A vida da gente nunca tem termo real. superando depois os traços parnasianos – simbolistas).
– O senhor ... Mire, veja: o mais importante e bonito Os poetas, então, utilizavam-se de uma linguagem
do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, erudita, propondo o sublime, o ideal, o universal, abando-
ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre nando as preferências pelo prosaico, pelo concreto, pelo
mudando. nacionalismo exagerado, que marcaram o Modernismo de
– O sertão é do tamanho do mundo. 1922 a 1930.
– O medo é a extrema ignorância em momento mui-
to agudo. 5.2 A prosa de ficção pós-45
– Se todo animal inspira sempre ternura, que houve, A permanência realista do testemunho humano,
então, com o homem? privilegiando o aspecto social e aproximando-se do neo-
– Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de naturalismo americano e do neorrealismo italiano, marca
repente aprende. alguns autores de 45, assim como a atração pelo transreal,
– Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento a exploração do insólito, do absurdo, o homem projetado
da gente se torna mais forte do que o poder do lugar. Vi- no mundo mítico, fantástico e mágico da arte.
ver é muito perigoso. O grande inovador do período foi Guimarães Rosa,
– O senhor sabe? Já tentou sofrido o ar que é sau- que explorou os segredos da linguagem não-letrada e co-
dade? Dizem que tem saudade de ideia e saudade de co- locou-se a serviço da literatura na qual o mítico, o infantil
e o desconhecido assumem a base de sua obra.
ração...
O experimentalismo, a pesquisa da linguagem, a rein-
– Esperar é reconhecer-se incompleto.
venção do código linguístico, o romance e o conto instru-
– O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo,
mentalista têm como preocupação principal a palavra, a
demais.
linguagem como o elemento que cria o real. Podemos
– Ser forte é parar quieto; permanecer. aproximar por este motivo a obra de Guimarães Rosa e a
– Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: de Clarice Lispector, que buscavam a universalização do
pão ou pães, é questão de opiniães... romance nacional, sendo que o primeiro se preocupava
– Viver é aprender a viver; toda a vida é ensinada. mais com o enredo e o suspense, enquanto a autora mer-
– Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gulhava na consciência das personagens.
gasteja. Alguns escritores preocupavam-se com a vida moder-
– Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo na e procuravam penetrar nos conflitos do homem e da
o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente sociedade, como Lygia Fagundes Telles, José Cândido de
que me rodeava, porque este, em sua essência, era e Carvalho, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Dalton Tre-
continua sendo uma lenda. visan, e os mistérios inconscientes e psicológicos com
– Cada um tem a sua hora e a sua vez. Clarice Lispector e Osman Lins.

4–
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 5

6. A OBRA DE GUIMARÃES ROSA 7.1 “O Burrinho Pedrês”

Guimarães Rosa foi nosso primeiro escritor que cap-


tou o mundo regional por meio de uma visão universali-
“E, ao meu macho rosado,
zante. Deu ao romance brasileiro uma dimensão carregado de algodão,
metafísica pela sua originalidade criadora, em que as pa- preguntei: p’ra donde ia?
lavras são tratadas como símbolos que reproduzem a P’ra rodar no mutirão.”
relação existente entre a linguagem e o mito. (VELHA CANTIGA, SOLENE, DA
Observador da terra e do homem sertanejo, soube ca- ROÇA.)
racterizar os costumes e ambientes sem violar aspectos e
pormenores. A palavra inventada – aproximando o falar A) Resumo
de gente primitiva ao universo clássico da literatura – ori- Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, é escolhido para
ginou uma sintaxe própria, orientada por um símbolo que servir de montaria num transporte de gado. Um dos vaquei-
descarta seu significado tradicional, assumindo o factual. ros, Silvino, está com ódio de Badú, que anda namorando
As suas histórias aproximam-se da dualidade sagrado a moça de quem Silvino gostava. Corre o boato, entre os
versus profano, criando, por vezes, fábulas em que se vaqueiros, de que Silvino pretende vingar-se do rival. De
unem o bem e o mal, o divino e o demoníaco. fato, Silvino atiça um touro e o faz investir contra Badu,
Guimarães percorria o sertão com seu caderninho de que, porém, consegue dominá-lo. Os vaqueiros continuam
anotações a colecionar a maneira de falar do povo brasi- murmurando que Silvino vai matar Badu. A caminho de
leiro para adaptá-la às suas necessidades posteriores. As volta, este, bêbado, é o último a sair do bar e tem de montar
palavras que colhia eram portadoras de sons e formas que no burro. Anoitece e Silvino revela a seu irmão o plano de
revitalizam recursos da poesia velhos e ultrapassados, ori- morte. Contudo, na travessia do Córrego da Fome, que pela
ginando, repleta de musicalidade, a fala sertaneja. cheia transformara-se em rio perigoso, vaqueiros e cavalos
O espaço é o sertão, e lá é o mundo. Guimarães perp- se afogam. Salvam-se apenas Badú e Francolim, um
etua desta forma os aspectos culturais e existenciais de um montado e outro pendurado no rabo do burrinho.
povo. É o responsável por iniciar, com Sagarana, o caráter Sete-de-Ouros, burro velho e desacreditado, personifi-
experimental na prosa regionalista do Terceiro Tempo ca a cautela, a prudência e a muito mineira noção de que
Modernista. Pouco antes, Mário de Andrade, com Ma- não vale a pena lutar contra a correnteza, se o que se
cunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias Sentimen- pretende é a travessia.
tais de João Miramar, trazem ao Modernismo brasileiro
o romance fragmentário, a inovação e a ruptura com a 7.2 “A Volta do Marido Pródigo”
tradição literária.
Em Guimarães Rosa, o traço marcante é o experimen- "Negra danada, siô, é Maria:
talismo com a linguagem, com a visão regional que ultra- ela dá no coice, ela dá na guia, Negro danado, siô, é Heitô:
passa o mero formalismo, até então veiculado por lavando roupa na ventania. de calça branca, de paletó,
Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, tentando traduzir foi no inferno, mas não entrou!"
a essência íntima da existência humana e dando um (CANTIGA DE BATUQUE, A
GRANDE VELOCIDADE.)
espírito desconcertante ao seu trabalho.
"– Ó seu Bicho-Cabaça!? Viu
uma velhinha passar por aí?...
7. SAGARANA – Não vi velha, nem velhinha,
corre, corre, cabacinha...
Sagarana compõe-se de nove contos, com os Não vi velha nem velhinha!
Corre! corre! cabacinha..."
seguintes títulos: (DE UMA ESTÓRIA.)
1. “O Burrinho Pedrês”
2. “A Volta do Marido Pródigo” A) Resumo
3. “Sarapalha” Neste conto, cujo sobretítulo é “Traços Biográficos
de Lalino Salãthiel”, Lalino, um mulato muito vivo, aju-
4. “Duelo”
dante numa construção de estrada, não gosta do trabalho.
5. “Minha Gente” Abandona sua mulher e o meio rural para procurar na capi-
6. “São Marcos” tal a felicidade com que sonha: bonitas mulheres à vonta-
7. “Corpo Fechado” de, iguais às que vira em revistas. Depois de algum tempo,
8. “Conversa de Bois” cansa-se e fica com saudades: volta. Mas sua mulher,
9. “A Hora e Vez de Augusto Matraga” Maria Rita, agora vive com Ramiro. Lalino quer ganhar
de volta a consideração do povo e a mulher. Oferece-se
–5
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 6

uma oportunidade: cooperar como cabo eleitoral do mulher com o ex-militar Cassiano Gomes, e faz planos
Major, com vistas a ganhar as eleições próximas. Graças de vingança. Todavia, a bala destinada a matar Cassiano
a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, (de costas) não acerta o amante de Silivana, mas sim o
parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que irmão de Cassiano. Este põe-se a perseguir Turíbio para
na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário vingar o assassínio do irmão. Turíbio refugia-se no sertão,
político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Por acossado por Cassiano. Durante meses trava-se uma luta
seu intermédio, reconcilia-se com Maria Rita, que nunca aferrada, em que cada um é ao mesmo tempo perseguidor
o deixara de amar. A narrativa aproxima-se das novelas e perseguido. Algumas vezes os duelistas se desencon-
picarescas e é um retrato bem-humorado das oscilações tram por um fio. Cassiano cai gravemente doente, mas
interesseiras das convicções políticas do interior. antes de morrer, ajuda com generosidade a um capiau que
vive na miséria, chamado Vinte-e-Um. Turíbio, ao saber
7.3 “Sarapalha” da morte do adversário, fica contente e põe-se a caminho
de volta para sua mulher. Vinte-e-Um, porém, o identifica
e mata, cumprindo assim a vingança que prometera a
“Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... Cassiano.
Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...
A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...
Coitado de quem namora!...” 7.5 “Minha Gente”
(O TRECHO MAIS ALEGRE, DA
CANTIGA MAIS ALEGRE, DE UM
CAPIAU BEIRA-RIO.)
“Tira a barca da barreira,
deixa Maria passar:
A) Resumo Maria é feiticeira,
Primo Ribeiro e primo Argemiro, ambos sofrendo ela passa sem molhar.”
de malária, são os únicos habitantes do vau da Sarapalha, (CANTIGA DE TREINAR
lugar dizimado pela epidemia e abandonado pelos demais PAPAGAIOS.)
moradores. Sujeitos a periódicos ataques de febre, cada
vez mais sérios, esperam a morte. Saudosamente, evocam A) Resumo
a lembrança da bela Luísa, mulher de primo Ribeiro que, O conto serve de pretexto para a documentação dos
ao manifestar-se a malária, tinha-o abandonado por causa costumes e dos infortúnios da vida da roça. Estrutura-se
de outro. Argemiro, que deseja morrer de consciência como uma espécie de paródia, meio sentimental e meio
tranquila, confessa ao primo que a sua mudança para a irônica, das estórias de amor com final feliz.
casa de Ribeiro foi motivada pela atração que sentia por O protagonista-narrador, um moço, está de visita na
Luísa. Ribeiro reage amargamente e se mostra implacável: fazenda do tio, empenhado em ganhar as eleições locais.
manda Argemiro embora na hora em que começa a O moço se apaixona por Maria Irma, sua prima, e lhe faz
agonia. uma declaração, a qual ela não corresponde. Um dia, ela
recebe a visita de Ramiro, noivo de outra moça, segundo
7.4 “Duelo” ela diz, e o moço fica com ciúmes. Para atrair o amor de
Maria Irma, ele finge namorar uma moça da fazenda
“E grita a piranha cor de palha, – Exagero... – diz a arraia – vizinha. Porém, o plano falha – tendo como efeito
irritadíssima: eu durmo na areia, secundário, não-calculado, a vitória do tio nas eleições –
– Tenho dentes de navalha, e de ferrão a prumo,
e o moço deixa a fazenda. Na visita seguinte, Maria Irma
com um pulo de ida-e-volta e sempre há um descuidoso
resolvo a questão!... que vem se espetar. apresenta-lhe Armanda. É amor à primeira vista; ele se
– Pois, amigas, – murmura o casa com a moça, e Maria Irma, por sua vez, se casa com
gimnoto, Ramiro Gouveia, “dos Gouveias de Brejaúba, no Todo-
mole, carregando a bateria – Fim-É-Bom”.
nem quero pensar no assunto: Como numa novela, há várias intrigas, episódios e
se eu soltar três pensamentos
elétricos,
personagens secundários. Numa dessas intrigas, Bento
bate-poço, poço em volta, Porfírio comete adultério com a de-Lourdes, casada com
até vocês duas Alexandre, o Xandrão Cabaça, que acaba matando o
boiarão mortas...” rival. Há, de permeio, o episódio da eleição e da vitória
(CONVERSA A DOIS de Emílio do Nascimento, tio do narrador-protagonista,
METROS DE
pelo partido João-de-Barro, e que serve de pretexto para
PROFUNDIDADE.)
a retratação das astúcias e intrigas da política interiorana
A) Resumo de Minas. Outras personagens se entrecruzam na
O capiau Turíbio Todo testemunha a traição de sua narrativa: Santana, o inspetor de ensino e jogador de
6–
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 7

xadrez; José Malvino, guia e mateiro, conhecedor da Em outra ocasião, a caminho-do-mato, onde se
natureza e dos costumes do sertão; o Moleque Nicanor, entretinha na contemplação da natureza, de seus mínimos
menino da fazenda e que, com oito anos, já sabe pegar, movimentos, dos bichos, árvores e flores, encontrou-se
em campo aberto, qualquer montaria, sem cabresto nem com Aurísio Manquitola e se entreteve com os casos dos
milho, só com a esperteza de sua cor e tamanho. Bilica, terríveis efeitos e poderes da oração mágica de São
Agripino e tio Ludovico são outras personagens. A ação Marcos, que o narrador também conhecia. A longa prosa
se passa no Saco-do-Sumidouro, entre fazendas e com Aurísio Manquitola envolveu também outros
pesqueiros: o Pau-Preto, o Touno-Tombo, até as Três circunstantes: o Gestal da Gaita, o Compadre Silivério,
Barras. o Tião Tranjão, o Cypriano, o Felipe Turco, entre
outros, cada qual narrando os seus casos de feitiçaria.
7.6 “São Marcos” José embrenha-se de novo no mato, absorto na
contemplação da natureza, recordando o desafio poético
“Eu vi um homem lá na grimpa do travado com o “Quem-Será”, que se fazia em meio à
[coqueiro, ai-ai, natureza, pois os autores, sem se defrontarem, inscreviam
não era homem, era um coco bem
[maduro, oi-oi,
os seus versos nos colmos (hastes) de belíssimos bambus.
não era coco, era a creca de um Lembra-se ele de que:
[macaco, ai-ai,
não era a creca, era o macaco todo (...) Foi quase logo que eu cheguei no Calango-Frito, foi logo que
[inteiro, oi-oi.” eu me cheguei aos bambus. Os grandes colmos jaldes, envernizados,
(CANTIGA DE ESPANTAR lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta
MALES.) de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:

“Teus olho tão singular


“São Marcos” é o texto menos acessível ou “mais difícil”
Dessas trançinhas tão preta
de Sagarana. Se, de um lado, acompanha a feição geral do Qero morer eim teus braço
livro pelo aspecto “curioso” e “brasileiro”, de outro dele Ái fermosa marieta”.
e nele se destaca pela presença de certos componentes que
provocam no leitor um desassossego que se justificará E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um
mais tarde. Há em “São Marcos” motivos e temas que se lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
tornarão constantes na produção rosiana, embora ainda Sargon
não sejam eles aqui tratados dentro dos parâmetros Assarhaddon
formais ousadamente renovadores do escritor, Assurbanipal
característicos de suas obras posteriores: a viagem, a Teglattphalasar, Salmanassar
palavra, a dualidade personagens comuns x personagens Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
extraordinárias, a presença enigmática de um destinador
Sanekherib.
mítico, a reintegração natural ou mítica do homem à
natureza. Essas características são reencontráveis em “Os E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora
Cimos”, “O Recado do Morro”, “Cara de Bronze”, “As despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. Não pelos
Margens da Alegria”, “Uma Estória de Amor”, cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas, nem
“Miguilim” e em Estas Estórias. pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro. Só, só por causa
dos nomes.
Sim, que, à parte o Sentido prisco, valia o ileso gume do vocábulo
A) Resumo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se
José (Izé), o narrador, homem culto, recém-chegado jamais usado. Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro
no Calango-Frito, embora supersticioso, não acredita em jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao
feitiçaria e vive caçoando de um curandeiro e feiticeiro descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinquenta
local – o João Mangolô, cuja cafua vive repleta de metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo
absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura?
clientes de suas rezas, despachos, mandingas e simpatias.
E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. (...)
Muitos outros no Calango-Frito estavam envolvidos com
todo o tipo de bruxarias: Nhá Tolentina, já muito rica e Embora curioso, deixou para a volta a surpresa dos
considerada por seus despachos; Dona Cesária, que últimos versos de seu anônimo adversário, para envolver-
atuava em calungas de cera, e até o menino Deolindinho se cada vez mais com a poesia da natureza, dos lagos, das
obteve feitiço contra os coques do professor. flores, das árvores, dos pássaros, das aranhas, das
Certo domingo, o narrador José (Izé), a caminho de formigas e tataranas.
suas visitas ao mato das Três Águas, passa rente à cafua de De repente, sem explicação, fica cego. Fica
João Mangolô e, como sempre, zomba do curandeiro e o desesperado. Mas como conhecesse a fundo os ruídos,
insulta sem motivo. cheiros e as mínimas vibrações do mato, dos ventos e
–7
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 8

dos animais, consegue se orientar. Irritado com a demora pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-
da luz, profere, com raiva, a reza de São Marcos. chamas; para namorar...”.
Tomado de fúria, avança numa só e precisa direção: a Podemos afirmar, a estas alturas, que a história que se
casa de João Mangolô. Vai em transe. Assim, chega, de conta em “São Marcos” não é a história da vingança de
súbito, na cafua do João Mangolô, e começa a esganá-lo, um feiticeiro desrespeitado, mas a história de um sujeito
furioso. Nisso, volta a enxergar. O negro velho havia que ascende à categoria de herói por ter reagido
amarrado, por brincadeira vingativa, uma tira nos olhos positivamente na prova de qualificação a que sem o saber
de um retrato do narrador, irreverente e zombador, que era submetido:
não acreditava em feitiçaria, ainda que fosse (...) Os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam
supersticioso. autógrafos; (...)
Há, no conto, três fábulas: a do feiticeiro e das E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um
feitiçarias, a do passeio e da natureza e a dos poemas. O lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
principal ponto de convergência se manifesta na função
Sargon
criativa da palavra. Nas três fábulas, a palavra é valorizada
Assarhaddon
não pela função referencial, de indicar seres existentes Assurbanipal
fora dela, mas enquanto forma de criação de novas Teglattphalasar, Salmanassar
realidades e de conhecimento, o qual se efetua principal- Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
mente graças ao plano da expressão. Belsazar
Tanto no poema quanto na feitiçaria é quase irrisório Sanekherib.
conhecer o significado das palavras e enunciados. Este Em resumo, conta-se a história da revelação de um
permanece como algo mais intuído que compreendido. A destino, de um destino privilegiado, que se revela por um
reza de São Marcos não interessa enquanto significado, conhecimento estético superior do universo, manifesto na
sentido – “é melhor esquecer as palavras” – mas como imersão sensual/sensorial/mágica na natureza. A cegueira
rito, magia, iniciação transcendentalista. de José (Izé) é o pretexto para que o autor faça anotar
Em todas as fábulas processa-se, assim, uma volta outros sentidos, outras potencialidades do ser, que são, a
às origens: através da reintegração total dos sentidos, seu modo, “a hora e vez” do narrador, a sua “travessia”
da aproximação à natureza, da crença na força da no mundo do mistério e do encantamento.
palavra.
Nisso parece consistir a qualificação da personagem: 7.7 “Corpo Fechado”
ser poeta e amante da natureza. É nesse sentido que se
justificam as longas e pormenorizadas descrições da
natureza e o rico exemplário da manifestação poética da
linguagem na vida cotidiana, retardando o prosseguimento
"A barata diz que tem
da fábula sobre o feiticeiro. O saber que se transmite à
sete saias de filó...
personagem, em seu confronto com o feiticeiro, é o de que É mentira da barata:
o feiticeiro não é um ser dotado de poderes sobre- Ela tem é uma só."
humanos, mas o de que o homem se esqueceu de suas (CANTIGA DE RODA.)
potencialidades, de suas faculdades humanas, ao
distanciar-se das origens.
A pergunta que se coloca – o narrador acredita ou não A) Resumo
em feiticeiros? – tem agora outro sentido. A palavra O narrador, médico em Laginha, vilarejo do interior,
“feiticeiro” ganha a partir de então um novo significado. é convidado por Manuel Fulô para ser padrinho de
O de ser eleito como não queria admitir a personagem; casamento. Manuel detesta qualquer tipo de trabalho e,
não, porém, no sentido por ela dado, mas no de um ser enquanto bebem cerveja, divertem-se, ele contando e o
que, consciente ou não, benéfica ou maleficamente, faz doutor ouvindo as histórias e os casos: do rato que tinha
uso das faculdades humanas primitivas e originais. em casa enjaulado e que estava, por artimanha sua,
E quem seria o destinador? A natureza? O destino? criando amizade a um gato rajado; dos valentões do lugar
Ou quem sabe o próprio homem na bondade de cultivar as – José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo (Adejalma) e
suas inclinações naturais, compondo poema – e com isso Targino, o mais recente, e que teve a insolência de reunir
reconquistando as formas primordiais humanas – ou seu bando e comer carne com cachaça em frente da igreja,
visitando “todos os domingos o mato” e lá passar “o dia numa Sexta-Feira da Paixão; dos ciganos que ele, Manuel
inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí medrar da Fulô, teria trapaceado na venda de cavalos; de sua
terra de dentro de um buraco no tronco de uma camboatã; rivalidade com Antonico das Pedras-Águas, o feiticeiro.
para assistir à carga frontal das formigas-cabeças contra a Manuel possui uma mula, Beija-Fulô, e Antonico é dono

8–
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 9

de uma bela sela mexicana; cada um dos dois gostaria de Ao entardecer, na ladeira do Morro-do-Sabão, Agenor
adquirir o bem do outro. encontra, espatifado, o carro da Estiva, carreado por João
Aparece então Targino, o valentão do lugar, e anuncia, Bala. Havia caído ao tentar subir a ladeira. Agenor consola
cinicamente, que vai passar a noite, antes do casamento, o carreiro e, em seguida, para provar a Tiãozinho que era
com a noiva de Manuel Fulô. Ele fica desesperado; um carreiro de verdade, escala a subida em que João Bala
ninguém pode ajudá-lo, pois Targino domina o lugarejo. fracassara. Sai vitorioso e coloca-se na dianteira do carro,
Aparece então o feiticeiro Antonico das Pedras-Águas e junto aos bois, e cochila. Os bois percebem que o
propõe um trato a Manuel Fulô: “vai fechar-lhe o corpo”; “homem-do-pau-comprido-com-marimbondo-na-ponta”
mas exige em pagamento a mula Beija- Fulô, maior está dormindo. Jogam-se bruscamente para a frente,
orgulho e paixão de Manuel. O trato é aceito. atropelando-se para derrubar Agenor Soronho, que cai. A
De corpo fechado, Manuel Fulô enfrenta o bandido roda do carro passa sobre seu pescoço, sem que se possa
Targino e, para espanto de todos, mata-o com uma saber se morreu dormindo ou se acordou para saber que
faquinha do tamanho de um canivete. O casamento com a morria.
das Dor realiza-se sem problemas e de vez em quando Retomando, sob outro prisma, o conto inicial “O
consegue emprestada sua antiga mulinha Beija-Fulô, para Burrinho Pedrês”, este “Conversa de Bois” é uma alegoria
ostentar, à cavaleiro, sua nova condição de valentão de sobre a justiça dos animais e a crueldade dos homens.
Laginha.
7.9 “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
7.8 “Conversa de Bois”
"Eu sou pobre, pobre, pobre,
vou-me embora, vou-me embora…
........................................................
Eu sou rica, rica, rica,
vou-me embora daqui!…"
"– Lá vai! Lá vai! Lá vai!... (CANTIGA ANTIGA.)
– Queremos ver... Queremos ver...
– Lá vai o boi Cala-a-Boca "Sapo não pula por boniteza,
fazendo a terra tremer!..." mas porém por percisão."
(CORO DO BOI-BUMBÁ.) (PROVÉRBIO CAPIAU.)

A) Resumo A) RESUMO
O narrador da novela ouviu a tragédia, que vai contar Narrado na terceira pessoa, o conto enfatiza duas
ao leitor, de Manuel Timborna, que a ouviu da irara constantes da vida do sertão: a violência e o misticismo,
Risoleta, testemunha do acontecido. na interminável luta do bem e do mal.
Pelo sertão anda um carro de bois: na frente, Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves,
Tiãozinho, o menino guia; logo atrás as quatro juntas, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira, conhecido como Nhô
com oito bois, que conversam enquanto puxam a carroça: Augusto e também como Augusto Matraga, é o maior
Buscapé e Namorado, Capitão e Brabagato, Dansador valentão do lugar, briga com todo mundo e maltrata por
e Brilhante, Realejo e Canindé; em cima do carro vai pura perversidade. Debochado, tira as mulheres e
Agenor Soronho. Carregam uma carga de rapadura e, namoradas dos outros. Não se preocupa com sua mulher,
sobre ela, mal-acomodado e sacolejando, o caixão com Dona Dionóra, nem com sua filha, Mimita, nem com sua
um defunto, o pai de Tiãozinho. fazenda, que começa a se arruinar.
Tiãozinho vai chorando: sofre com a morte do pai e Já em descrédito econômico e político, sobrevém o
com a de Didico, sofre também o calor, o cansaço e os castigo: sua mulher, Dona Dionóra, foge com Ovídio
maus-tratos que recebe do carreiro Agenor, que o faz Moura levando a filhinha. Seus bate-paus (capangas),
sofrer, que aguilhoa brutalmente os bois. Por doença e malpagos, põem-se a serviço do seu pior inimigo; o
morte de seu pai, Tiãozinho ficara totalmente dependente Major Consilva. Quim Recadeiro foi quem levou a
do Agenor Soronho, que sustenta a família do menino e já notícia da defecção dos capangas. Nhô Augusto resolve
mantinha relacionamento amoroso com a mãe de ter com eles, antes de perseguir Dionóra e Ovídio, mas
Tiãozinho, antes de ela ficar viúva. no caminho é atacado, numa tocaia, por seus inimigos,
O boi Brilhante vai contando aos demais a estória do que o espancam e o marcam com ferro de gado em brasa.
boi Rodapião, que morreu por assimilar os processos Quase inconsciente, no momento em que vai ser
mentais dos homens. Os bois vão conversando entre si assassinado, reúne as últimas forças e se atira no
sobre a opressão dos bois pelos homens e a possibilidade despenhadeiro do rancho do Barranco. Tomam-no por
de vencerem sua superioridade. Sentem-se solidários com morto. É, contudo, encontrado por um casal de negros
o menino. velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião, que tratam de
–9
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 10

Nhô Augusto, que sara, mas fica com sequelas Epifânio. Matraga hospeda-os com grande dedicação e
deformantes. admira as armas e o bando de Joãozinho Bem-Bem. Mas
Começa então uma nova vida, no povoado do Tom- se recusa a acompanhar o bando, mesmo convidado pelo
bador, para onde levou os pretos, seus protetores. Rege- chefe e não aceita qualquer ajuda dos jagunços. Quer
nera-se e, esperando obter o céu, leva uma vida de mesmo ir para o céu.
trabalho duro, penitência e reza. Arrependido de suas mal- Totalmente recuperado, Matraga despede-se do casal
dades, ajuda a todos, e reza com devoção: quer ir para o céu, e parte, sem destino, num jumento. Chega ao Arraial do
“nem que seja a porrete”, e sonha com um “Deus valentão”. Rala-Coco, onde reencontra Joãozinho Bem-Bem e seu
Passados seis anos, tem notícias de sua ex-família, bando, prestes a executar uma cruel vingança contra a
através do Tião da Thereza: a esposa, Dona Dionóra, família de um assassino que fugira. Augusto Matraga
vive feliz com Ovídio, e vai-se casar com ele; Mimita, sua intervém em nome da justiça, opõe-se ao chefe do bando,
filha, foi enganada por um cometa (espécie de caixeiro liquida diversos capangas, tomado de verdadeiro furor.
viajante) e caiu na perdição. Matraga sente saudades, Bate-se em duelo singular com Joãozinho Bem-Bem.
sofre, mas se resigna. Ambos morrem – Joãozinho primeiro. Nessa hora,
Certo dia, aparece o Joãozinho Bem-Bem, jagunço Augusto é reconhecido por João Lomba, que era meio
de larga fama, acompanhado de seus capangas: Flosino parente.
Capeta, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho e

Exercícios
1. (PUC-adaptada) – Sagarana, coletânea de contos,
escrita por Guimarães Rosa, enfoca o ambiente rural
brasileiro e aponta novos rumos para a prosa literária
modernista. Assim,
a) considerando que o espaço geográfico onde se
desenrolam as narrativas de Guimarães Rosa é o
do norte de Minas Gerais e o do sul da Bahia, que
novo conceito se pode ter de regionalismo na obra
desse autor?
b) que características de linguagem podem ser
percebidas nas narrativas que constituem
Sagarana?

2. (FUVEST) – Há um conto de Guimarães Rosa em


que os bois conversam entre si, fazendo considerações
de vária natureza.
a) De que conto se trata?
b) A presença ativa de animais é frequente em
Guimarães Rosa? Cite outro exemplo.

10 –
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 11

4. (FUVEST) – João Guimarães Rosa, em Sagarana,


permite ao leitor observar que
a) explora o folclórico do sertão.
3. (FUVEST) – Dentre os contos de Sagarana, existe b) em episódios muitas vezes palpitantes surpreende
um em que o narrador sustenta um duelo literário com a realidade nos mais leves pormenores e trabalha a
outro poeta, chamado Quem-Será, e no qual se fazem linguagem com esmero.
várias considerações sobre a natureza da poesia. c) limita-se ao quadro do regionalismo brasileiro.
Numa metáfora do condicionamento do homem, d) é muito sutil na apresentação do cotidiano banal do
resistente à aceitação do novo e diferente, o autor leva jagunço.
a personagem a passar por um período de cegueira. A e) é intimista, hermético.
partir daí a personagem descobre a mutilação dos
sentidos, que agora se abrem a outras vertentes da
realidade.
Em qual dos contos a seguir se discute essa questão?
a) “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
b) “Duelo”
c) “Conversa de Bois”
d) “São Marcos”
e) “Corpo Fechado”

– 11
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 12

5. (UEL-PR) – O trabalho com a linguagem por meio 6. (UEPA) – Observe o trecho extraído de “O Burrinho
da recriação de palavras e a descrição minuciosa da Pedrês”, de Guimarães Rosa:
natureza, em especial da fauna e da flora, são uma
constante na obra de João Guimarães Rosa. Esses – Você é meu camarada de confiança, Francolim.
elementos são recursos estéticos importantes que Tem mais responsabilidade de ajudar, também...
contribuem para integrar as personagens aos – Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço do se-
ambientes onde vivem, estabelecendo relações entre nhor, carrego pedras, seu Major. Só peço é ordem
natureza e cultura. Em “Sarapalha”, conto inserido no para o João Manico me dar de novo meu cavalinho,
livro Sagarana, de 1946, referências do mundo na entrada do arraial, para não ficar feio eu, como
natural são usadas para representar o estado febril de ajudante do senhor, o povo me ver amontado neste
Primo Argemiro. burro esmoralizado... sem querer com isso ofender,
Com base nessa afirmação, assinale a alternativa em por ser criação de que o senhor gosta...
que a descrição da natureza mostra o efeito da maleita
sobre a personagem Argemiro. Considerando o seu conteúdo e o conjunto da
a) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma narrativa da qual foi retirada, é correto dizer que
fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de a) no momento em que se trava esse diálogo, o epi-
pedra seca, do tempo de escravos; um rego murcho, sódio do afogamento de alguns vaqueiros no
um moinho parado; um cedro alto, na frente da córrego já havia acontecido.
casa; e, lá dentro uma negra, já velha, que capina e b) a solicitação de Francolim para destrocar a
cozinha o feijão.” montaria não será acatada pelo Major Saulo.
b) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do c) o diálogo evidencia o comportamento de indepen-
colmado dos juncos, se estira o voo da uma garça, dência dos vaqueiros em relação ao dono da
em direção à mata. Também, não pode olhar muito: fazenda.
ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, d) o comentário de Francolim sobre Sete-de-Ouros,
que doem e choram por si sós, longo tempo.” que se assemelha ao dos outros vaqueiros, irá reve-
c) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam as lar-se injusto, ao final, quando o burrico, além de
muriçocas de volta para casa, e quando o carapana salvar Badú, irá salvá-lo, também.
mais o mossorongo cinzento se recolhem, que ele e) a personagem João Manico, referido por
aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata e asas Francolim, é o único vaqueiro a salvar-se na tra-
de xadrez.” vessia do córrego, por ter vindo montado em Sete-
d) “Estava olhando assim esquecido, para os olhos... de-Ouros.
olhos grandes escuros e meio de-quina, como os de
uma suaçuapara... para a boquinha vermelha, como
flor de suinã...”
e) “O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha,
desolha... Não entende. Mas sabe que está acon-
tecendo alguma coisa. Latindo, choramingando,
chorando, quase uivando.”

12 –
Sagarana_2016 11/04/16 09:25 Página 13

GABARITO
PORTUGUÊS
OBRAS DA FUVEST

SAGARANA
1) a) O regionalismo de João Guimarães Rosa é de “hora e vez” do narrador, a sua “travessia” no
âmbito universal. Esse autor transfigura no mundo do mistério e do encantamento.
sertão brasileiro, norte de Minas Gerais, sul da Resposta: D
Bahia, e também Goiás, mitopoéticos universais.
No conto “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, 4) Sagarana, livro de estreia de Guimarães Rosa,
há a problemática ontológica: a procura da ação configura o que a crítica denomina de narrativa de
que justifique plenamente a existência. Augusto tensão transfigurada. Os heróis rosianos, resolutos
Matraga só se redime ao superar o mani- e inteiriços, na gesta cotidiana do Sertão,
queísmo (Bem x Mal), juntando elementos transmudam a realidade numa suprarrealidade,
aparentemente antagônicos: a violência com o mágica e mítica, projetando no Sertão os grandes
misticismo. temas da literatura universal. O universo
b) Nas narrativas de Sagarana, percebe-se lingua- primitivo e a entrega amorosa à natureza, captada
gem instrumentalizada, valorizando-se o nas suas mínimas vibrações, são expressos numa
significante, o aspecto plástico, carregado de linguagem original, de dimensão eminentemente
conceitos. É a linguagem poética, em que a poética, (re)inventada a partir da pesquisa erudita
mensagem se evidencia por si mesma, devido às das raízes do idioma e da melopeia da fala
aliterações, à cadência rítmica, aos arcaísmos, sertaneja.
aos regionalismos e aos neologismos. O título do Resposta: B
livro é um neologismo que provém do
germânico (saga = feito heroico) misturado com 5) No trecho “Também, não pode olhar muito: ficam-
o tupi (rana = à maneira de). lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que
doem e choram por si sós, longo tempo” é evidente
2) a) Trata-se do conto “Conversa de Bois”, o a alusão ao estado febril de Primo Argemiro, que
penúltimo do livro Sagarana. tem dificuldade de sustentar o olhar, em
b) O animal, tendo presença ativa e simbólica, na decorrência das lágrimas que lhe saem dos olhos,
obra de Guimarães Rosa, aparece no primeiro por causa da febre.
conto de Sagarana, “O Burrinho Pedrês”, e no Resposta: B
conto “Meu tio, o Iauaretê”, publicado em Estas
Estórias. 6) Sete-de-Ouros é um burrinho já idoso e, escolhido
para servir de montaria num transporte de gado,
3) O conto “São Marcos”, o mais difícil de Sagarana, é visto com desdém pelos vaqueiros, como se nota
antecipa algumas constantes da ficção rosiana: a no trecho transcrito. Contudo, na travessia do
viagem, a palavra, a dualidade entre personagens Córrego da Fome, transformado em rio perigoso
comuns e personagens extraordinárias, a presença por causa da cheia, vaqueiros e cavalos se afogam,
infusa de um destinador mítico e a reintegração salvando-se apenas dois vaqueiros, Badú e
natural ou mítica do homem à natureza. Francolim, um montado em Sete-de-Ouros e outro
A cegueira de José (Izé) é o pretexto para que o pendurado no rabo do burrinho.
autor faça aflorar outros sentidos, outras Resposta: D
potencialidades do ser, que são, a seu modo, a

– 13

Você também pode gostar