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São Paulo, 2017

Realização
EXPEDIENTE
_

coordenação editorial Carlos Costa

edição Thiago Rosenberg

conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Andreia Schinasi, Edson Natale, Elaine Lino,

Glaucy Tudda, Letícia Santos, Moisés Mendoza Baião, Tânia Rodrigues e Vinícius Murilo

consultoria Alexandre Pavan e Aloisio Milani

coordenação de design Jader Rosa

projeto gráfico e diagramação Estúdio Claraboia

digitalização de imagens Laerte Fernandes

produção editorial Bruna Guerreiro e Luciana Araripe

supervisão de revisão Polyana Lima

revisão Rachel Reis (terceirizada)

colaboradores Alexandre Pavan, Aloisio Milani, Badi Assad e Nico Prado


Nos últimos 35 anos de sua vida – quase o mesmo tempo em que da, as páginas a seguir trazem textos assinados por Nico Prado, último
esteve à frente do Viola, Minha Viola, o mais longevo programa mu- diretor do Viola, Minha Viola; pela cantora, instrumentista e composi-
sical da televisão brasileira –, Inezita Barroso (1925-2015) morou em tora Badi Assad; e pelos jornalistas Aloisio Milani e Alexandre Pavan,
um apartamento localizado na Rua Gabriel dos Santos, no bairro de criadores do projeto No Gravador de Inezita (inezita.com.br) – rea-
Santa Cecília, em São Paulo. lizada com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural, a iniciativa foi
responsável pela recuperação e pela digitalização de 39 fitas de rolo,
Paulistana, nutria, desde pequena, profundo afeto pela cultura cai- também encontradas no arquivo pessoal da cantora, contendo grava-
pira. Em sua morada, dividia o espaço com uma porção de passari- ções feitas sobretudo nas décadas de 1950 e 1960.
nhos – tinha azulão, galo-da-campina, sabiá, periquito – e com Co-
risco e Virgulino, os pinschers que, como os outros cães já criados A Ocupação Inezita Barroso integra um ciclo que o Ocupação Itaú
pela artista, ganharam nome de cangaceiro. Objetos como um cocar Cultural dedica a mulheres fundamentais da arte e da cultura brasilei-
emoldurado na parede e imagens de santos católicos e de orixás ras. Em 2017, o programa já abordou a trajetória da atriz Laura Cardo-
do candomblé faziam referência à diversidade cultural brasileira. E so, da escritora Conceição Evaristo e da pesquisadora Aracy Amaral.
o relógio de pêndulo, os retratos de ancestrais em branco e preto, a
canastra herdada do avô, a máquina de escrever que nunca chegou a
ser substituída por um computador e a réplica de um lampião a gás – Itaú Cultural
aquele que Zica Bergami transformou em música e que Inezita tanto
cantou – davam ao local o ar de uma São Paulo “calma e serena, que
era pequena mas grande demais”.

Em meio a tudo isso, a “dama da música caipira” ainda arranjou es-


paço para guardar boa parte da sua própria história, materializada
nos mais de 80 discos que gravou, nos bilhetes e nos presentes de
fãs, nos inúmeros prêmios que recebeu e em quase 30 álbuns reple-
tos de fotos pessoais e recortes de jornais e revistas – pelo menos
um milhar de páginas amareladas que contam a trajetória da artista,
desde os 6 até perto dos 90 anos.

Agora, a 36ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural divulga par-


te desse material por meio de uma exposição – em cartaz entre se-
tembro e novembro de 2017 –, de um site – que pode ser acessado em
itaucultural.org.br/ocupacao – e desta publicação impressa. Além da
reprodução de documentos que compõem o acervo da homenagea-
M ES TI - Nos discos e nos
filmes, no rádio
e na televisão,

Ç AG EM ,
Inezita Barroso
nunca deixou de
lado sua paixão
pela música e
pelo povo

CA IP I-
do Brasil

R IC ES ,
T RA JE - inezita em quadro do programa vamos falar de brasil, comandado por
ela e transmitido pela tv record entre 1954 e 1962

TÓ RI AS por
Aloisio Milani
e Alexandre Pavan
Ignez era o nome da mãe e da filha. Ignez Magdalena Aranha de Lima – a A menina fez aulas de violão e piano com a afamada professora Mary
filha, que acabou ganhando o apelido Inezita – nasceu no dia 4 de março Buarque e recebeu ensinamentos do folclorista e professor de edu-
de 1925, num sobrado da Rua Lopes de Oliveira, na Barra Funda, em São cação física Alceu Maynard de Araújo. Aprendeu a tocar viola de
Paulo, a poucos metros da casa do escritor Mário de Andrade. Por parte ouvido nas fazendas. Jovem, passou a cantar frequentemente entre
de mãe, descendia de uma família de ricos cafeicultores paulistas, os Sousa amigos, ao mesmo tempo que se dedicava aos estudos de bibliote-
Aranha, cuja árvore genealógica tem raízes em Cunha Gago e no cacique conomia, novo curso da Universidade de São Paulo (USP).
Piquerobi. Por parte de pai, dava continuidade a um clã que se espalhara
entre Belém e Ubatuba, os Ayres de Lima. Dizia Inezita que guardava na Praticante de natação, foi nas piscinas do Club Athletico Paulistano
alma um pouco de “terra e mar”. que ela conheceu Adolfo Barroso, estudante de direito da Faculda-
de do Largo São Francisco, com quem se casaria em 1947 e teria
Ela adorava uma história da sua avó paterna, que, como a neta, tinha voz sua única filha, Marta. A família cearense do marido contribuiu para
contralto e tocava piano. O avô, professor de grego e latim, ciumento e aproximá-la ainda mais das artes. Foi por intermédio do irmão de
impositivo, certa vez proibiu a esposa de cantar num recital para um or- Adolfo, Maurício Barroso – integrante do Teatro Brasileiro de Co-
fanato. O motivo: ela estaria muito bonita para se apresentar. A avó então média (TBC) e locutor de rádio –, que ela se tornou amiga dos ato-
trancou o piano, jogou a chave fora e calou seu canto enquanto viveu o res Paulo Autran e Renato Consorte, do radialista Vicente Leporace,
marido. Se ela não poderia se apresentar, ele também nunca mais a ouvi- do pianista Tullio Tavares, do escritor José Mauro Vasconcelos e do
ria. “Foi a vingança dela”, dizia Inezita. “Uma história da família muito forte compositor e zoólogo Paulo Vanzolini.
e que eu adorava.”

Uma estrela no meio do povo


Dizia Inezita que guardava na alma um Apesar de cantar semanalmente nos saraus que ela e Adolfo orga-
nizavam em casa para os amigos e nos recitais que fazia em teatros
pouco de “terra e mar”. paulistanos, Inezita encontrou no cinema sua primeira oportunidade
para realizar um trabalho artístico remunerado. Em 1951, fez parte
do elenco de Angela, produção da Companhia Cinematográfica Vera
A sensibilidade da menina Ignez para a música se desenvolveu sobretudo Cruz na qual interpretava a cantora Vanju, personagem que rivaliza-
nas fazendas dos tios maternos, onde colonos violeiros e caipiras entoavam va com a protagonista que dá nome ao filme, papel da atriz Eliane
aos montes folias de reis, catiras e modas de viola. Foi nesse contexto que, Lage. Na obra, Inezita apresentava dois números musicais: “Quem É”,
entre canecas de leite com gotas de conhaque, ela aprendeu “Boi Amare- de autoria de Marcelo Tupinambá, compositor que a artista adorava,
linho”, uma das composições que deram início ao seu vasto repertório de e “Enquanto Houver”, de Evaldo Ruy.
apaixonada por folclore. Na família, quase todos estudavam música. Só que
os tempos eram outros, e profissionalizar-se como artista era malvisto na Naquele mesmo ano também aconteceu sua estreia em disco. Após
alta sociedade paulistana. Inclusive na família de Inezita. vê-la cantar na prestigiada boate Vogue, no Rio de Janeiro, o dono
do selo Sinter a convidou para um teste no estúdio de gravação. O
resultado foi um 78 rotações no qual a cantora interpretava, em voz
e violão, “Funeral de um Rei Nagô” (Hekel Tavares/Murilo Araújo) e
“Curupira” (Waldemar Henrique). Com pouca divulgação comercial,
o disco passou despercebido ao público e à crítica quando chegou
às lojas, em outubro. No entanto, ainda naquele mês a artista realiza-
ria uma temporada de recitais para a Rádio Clube do Recife, em Per-
nambuco – recebendo, pela primeira vez, cachê para se apresentar.

O impulso definitivo para sua carreira veio logo em seguida, em 1952,


ao ser contratada para integrar o casting da recém-inaugurada Rá-
dio Nacional de São Paulo. Ao mesmo tempo que participava de va-
riados programas, cantando acompanhada pela orquestra da emis-
sora sob a regência dos maestros Gaó e Spartaco Rossi, Inezita se
fazia presente em disco, cinema e televisão. Entre 1953 e 1954, ela
participou de quatro filmes – Destino em Apuros, O Craque, Mulher
de Verdade (no qual era a protagonista) e É Proibido Beijar –, lan-
çou um novo disco de 78 rotações, com duas músicas que se torna-
riam clássicos de seu repertório – “Moda da Pinga” (domínio público,
mas inicialmente registrada por Ochelsis Laureano) e “Ronda” (Paulo
Vanzolini) –, e ainda estreou na telinha com o programa Afro, espe-
cial da TV Tupi com músicas e danças afro-brasileiras.

A desenvoltura da artista à frente das câmeras e do microfone logo


chamou atenção da Record, que pagou a multa pela rescisão do con-
trato com a Rádio Nacional e a levou para cantar em seus canais de
rádio e TV. Vamos Falar de Brasil, sob o comando de Inezita e pro-
duzido pelo inovador Eduardo Moreira, foi o primeiro programa da
televisão brasileira dedicado exclusivamente à música. Durante os
oito anos em que foi a grande estrela da emissora, a artista divulgou
a cultura popular em toda a sua magnitude, interpretando de modi-
nhas a modas de viola, de sambas a toadas, de cocos e maracatus a
por sua atuação no longa-metragem mulher de verdade (filmado em 1954 e lançado em 1955),
acalantos e pontos de candomblé. de alberto cavalcanti, inezita ganhou os prêmios saci e governador do estado de melhor atriz
vamos falar de brasil
foi o primeiro programa
da televisão brasileira
dedicado exclusivamente
à música; na atração,
exibida semanalmente,
inezita interpretava
canções do folclore de
diversas regiões do país
Essa diversidade ela também levou para seus discos. Trabalhando habitué de festivais de folclore e de folguedos brasileiros e ainda
em colaboração com os principais arranjadores e maestros da épo- respirou o sonho de ser dona de um restaurante: localizado no bairro
ca – César Guerra-Peixe, Radamés Gnattali, Gabriel Migliori, Elcio paulistano de Santo Amaro, o Casa da Inezita misturava dentro do
Alvarez e, principalmente, Hervé Cordovil –, Inezita desenhou seu mesmo tacho música e gastronomia regional.
mapa musical a partir das cantigas nordestinas de Zé do Norte, Luiz
Vieira e Nelson Ferreira, das lendas amazônicas de Waldemar Hen-
rique, dos sambas urbanos de Billy Blanco e Paulo Vanzolini e das Para a pesquisadora Inezita, mais do que
danças gaúchas recolhidas por Barbosa Lessa e Paixão Cortes. Tudo preservar o folclore em discos, em livros ou
isso somado às canções de inspiração afro-brasileira de autoria de
Hekel Tavares e à rica coleção de temas e ritmos populares garimpa- nas universidades, era preciso fazer com
dos pela própria cantora. Para a pesquisadora Inezita, mais do que que ele sobrevivesse em seu ambiente de
preservar o folclore em discos, em livros ou nas universidades, era
preciso fazer com que ele sobrevivesse em seu ambiente de origem, origem, isto é, no meio do povo.
isto é, no meio do povo.
Mas a década de 1980 traria Inezita de volta à janela da televisão. A
TV Cultura, que presenciava a renovação da música rural no embalo
Imensurável legado dos sucessos de Leo Canhoto e Robertinho e Milionário e José Rico,
Durante as décadas de 1960 e 1970, com as transformações no mer- decidiu criar um programa só de música de raiz. Buscava o sucesso
cado musical brasileiro decorrentes do aparecimento da bossa nova, do famoso Linha Sertaneja Classe A, de Zé Russo e Zé Béttio, trans-
da jovem guarda e dos festivais televisivos, Inezita perdeu espaço no mitido pela Rádio Record. Para apresentar a nova atração, foram
rádio, na TV e nas gravadoras. Mas permaneceu fiel ao seu trabalho. convidados o radialista Moraes Sarmento e o compositor Nonô Basí-
Foi nesse período que ela lançou quatro pérolas de sua discografia: lio. O Viola, Minha Viola – programa batizado por Eduardo Moreira, o
Clássicos da Música Caipira (1962), Clássicos da Música Caipira Nº 2 mesmo produtor de Inezita na TV Record – estreou em 1980.
(1972), Joia da Música Sertaneja (1978) e Joia da Música Sertaneja Nº
2 (1980), antologias que reúnem obras dos compositores Anacleto Quando Basílio se mudou para Minas Gerais, a atriz Nídia Lícia, então
Rosas Jr., Raul Torres, Angelino de Oliveira, João Pacífico, Tonico, gestora da TV Cultura, convidou a amiga Inezita para apresentar a
Teddy Vieira e outros mestres. atração ao lado de Sarmento. A ideia foi certeira. O Viola se tornou
o programa de música mais longevo da história da televisão brasi-
Afastada da mídia, batalhou o pão como professora de violão para leira, completando quase 35 anos de sucesso. O bordão criado por
crianças. Chegou a dar aulas das 8 da manhã às 9 da noite – ironica- Sarmento marcaria gerações de fãs: “Eta programa que eu gosto!”.
mente, ensinando a molecada a tocar muitos dos sucessos da jovem
guarda, a moda musical do momento. Também aproveitou para dar Concomitantemente, Inezita virou radialista: primeiro na Rádio USP,
continuidade às suas pesquisas sobre culturas populares. Tornou-se entrevistando expoentes da música caipira no seu Mutirão, e depois
na Rádio Cultura – então dirigida pela pesquisadora Maria Luiza
Kfouri –, com o programa Estrela da Manhã. Ali, a cantora e apresen-
tadora ampliou o contato com o público de todo o país, recebendo
centenas de cartas e pedidos de música. Seu programa tornou-se
uma espécie de cozinha onde os ouvintes se encontravam para con-
versar com a artista. E ela era feliz com isso.

Em 2014, apesar da saúde frágil, Inezita gravou 43 edições do Viola,


Minha Viola. Também tinha planos de gravar um novo disco e de via-
jar, queria revisitar suas pesquisas escritas e pretendia tomar posse
na Academia Paulista de Letras. Não houve tempo. No ano seguinte,
aos 90, faleceu de insuficiência respiratória aguda. Maior do que sua
extensa musicografia e seu rico acervo de pesquisas, o legado de
Inezita é do tamanho de sua legião de fãs. Um sem-número de aman-
tes espalhados por esse Brasil profundo. •


Aloisio Milani é jornalista e produtor cultural. Atuou na TV Cultura como roteirista

e produtor do Viola, Minha Viola e integrou a curadoria colegiada da Virada Cultural

de 2015, que homenageou Inezita Barroso. Em parceria com a filha de Inezita, Marta,

trabalha para organizar e difundir o acervo da cantora.

Alexandre Pavan é jornalista e autor dos livros Timoneiro – Perfil Biográfico de Her-

mínio Bello de Carvalho (2006) e, em parceria com Irineu Franco Perpetuo, Popu-

lares & Eruditos (2001). Foi roteirista da TV Cultura e atualmente integra a equipe

do projeto No Gravador de Inezita (www.inezita.com.br) – realizada com o apoio

do programa Rumos Itaú Cultural, a iniciativa visa organizar e digitalizar áudios do

acervo pessoal de Inezita Barroso.


inezita com sua mãe – também chamada ignez – e sua filha, marta, na praça da
república, em são paulo
inezita ganhou seis troféus roquete pinto ao longo dos anos 1950
– e, em 1960, levou o roquete pinto de ouro, prêmio oferecido aos
poucos que atingiam a marca alcançada pela cantora
R A -
No início da década de 1980,
Inezita Barroso realizou uma
apresentação para comemorar
seus 30 anos de carreira. As
páginas a seguir trazem o
roteiro que a artista preparou
para o recital, no qual ela

Í ZE S
comenta algumas das canções
que marcaram sua vida

DE INE
ZI TA Na abertura do texto – e em várias outras
ocasiões –, Inezita diz ter nascido num
domingo de Carnaval. O dia 4 de março de
1925, no entanto, caiu numa quarta-feira.
ao lado inezita aos ainda criança, inezita fez uma série de
2 anos de idade, em apresentações com outras alunas da professora
1927 abaixo inezita mary buarque; a foto abaixo é de 1933
(indicada pela seta),
em 1933, com sua turma
do 2o ano primário da
tradicional escola
caetano de campos –
inaugurada em 1894, na
praça da república,
em são paulo
boletim escolar de
inezita – então com 16
anos de idade
acima inezita em 1950, em teste de fotografia para o filme angela (1951),
da companhia cinematográfica vera cruz
ao lado revista do rádio, 1956
revista intervalo, 1963
O CARIS- inezita no comando do programa viola, minha viola, da tv cultura
foto: cleones ribeiro de novais | cedoc tv cultura

MA DA
S U Ç U - Ao longo dos quase
35 anos em que
comandou o Viola,
Minha Viola, Inezita
Barroso fez a tela da

AR AN A
TV brilhar como o
luar do sertão

por Nico Prado


Quando estreou na TV Cultura, em 1980, o Viola, Minha Viola ainda Voltei a dirigir a série em 2009 – permanecendo até o final, em 2015
era um programa de estúdio, sem plateia. Inezita Barroso participou – e, ao lado de uma equipe fantástica, notei que sua popularidade
do quarto episódio e, desde então, virou figura carimbada na telinha. havia crescido ainda mais. Recebíamos dezenas de CDs toda sema-
na. Quantos talentos foram revelados ou resgatados em 34 anos e
A atração logo se tornou um sucesso – e, assim, passou a ser gravada quase 1.600 programas! Vimos lágrimas nos olhos de Chitãozinho e
no Teatro Franco Zampari, no bairro paulistano do Bom Retiro, agora Xororó, César Menotti e Fabiano, Renato Teixeira. Emoção cristalina
como um programa de auditório. Até a última gravação, em 2014, fez também quando perdemos Tinoco, dois dias após sua última parti-
com que milhares de fãs se acotovelassem nas filas para garantir um cipação no Viola.
lugar na plateia.
O lampião de gás então se apagou, mas a luz de Inezita seguiu bri-
E era sobretudo esse público fiel que movia Inezita a se dedicar de lhando em cada casa de caboclo como o luar do sertão. Minha amiga
corpo e alma ao Viola. Percebi isso claramente em 1988, quando fui e conselheira nos deixou com a garra da suçuarana, altiva como o
convidado para dirigir o projeto Cultura Paulista – série de atrações urutau, suave como a flor do cafezal.
registradas em espaços públicos de diferentes cidades do interior do
estado de São Paulo e exibidas aos domingos pela manhã. O circo Salve, Inezita Barroso. Salve, Viola, Minha Viola. Eta programa que
eletrônico invadia o “Largo da Matriz” dos municípios e ali graváva- eu gosto! •
mos o Viola e A Cidade Faz o Show, um minidocumentário sobre a
cidade visitada. Foi quando senti a dimensão do carisma de Inezi-
ta. Chegavam caravanas de povoados vizinhos, gente que vinha da
roça, a pé ou em lombo de burro, para assaltar a praça com seu cari-
nho. Era notável a emoção daquelas pessoas, de todas as idades, que
ocupavam cada cantinho de chão ou galho de árvore para assistir e
prestar reverência à sua rainha Inezita e aos outros grandes artistas
que desfilavam por aquele palco sagrado. Tonico e Tinoco, Tião Car-
reiro e Pardinho, Vieira e Vieirinha e tantos – ou todos os – outros
ícones da música caipira.

O Viola retornou ao Franco Zampari em 1990, mantendo intacto o


seu objetivo inicial – a valorização da música de raiz. Os artistas eram _
escolhidos a dedo, sempre com o aval de Inezita. Não havia espaço Nico Prado é jornalista e radialista. Diretor de séries musicais desde 1976, atuou em

para modernismos, modismos, guitarras ou teclados. Os que lá se produtoras e emissoras como Abril Vídeo, TV Bandeirantes e TV Cultura. Para essa

apresentavam faziam uma música simples, genuinamente caipira – última, criou e dirigiu os programas Micro Macro, Mosaicos e Manos e Minas, entre

como a direção do programa, sem grandes invenções. outros. Foi o último diretor do Viola, Minha Viola.
UMA PIO- Ao mesmo tempo que

N E I R A
defendia os valores
ligados à música de
raiz, Inezita Barroso
viveu como uma
mulher à frente do
seu tempo

APAIXO-
N A D A
PELA TRA-
D I Ç Ã O por Badi Assad
É graças a Inezita Barroso que os valores da música de raiz ainda se aulas de música e de folclore... E, em álbuns como Inezita Apresenta,
mantêm preservados. Sem ela, talvez o novo sertanejo e suas ramifi- fez questão de interpretar e promover o trabalho de outros talentos
cações que invadiram rádios e rodeios brasileiros com temas roman- femininos – lançada em 1958, a coletânea reúne composições de Babi
tizados e guitarras elétricas tivessem nos feito perder boa parte do de Oliveira, Edvina de Andrade, Juraci Silveira, Leyde Olivé e Zica
nosso rico folclore. Inezita lutou para – e conseguiu – resguardar a Bergami, nomes que não estavam inseridos no mercado fonográfico.
música simples, feita pelas autênticas duplas de violeiros, pelos can-
tores e compositores do amor puro e da prosa interiorana. Inezita era uma mulher que não se deixava conduzir. Ela conduzia. Em
1956, rodou com um jipe por diversas regiões do país, coletando can-
Isso não é pouco. No entanto, Inezita é tão mais do que isso... ções e outras manifestações da cultura popular brasileira. Com a via-
gem, ou pesquisa de campo, Inezita também tinha o objetivo de se pre-
Em 2012 a revista Rolling Stone Brasil publicou uma lista com os 70 parar para as filmagens de um longa-metragem sobre Jovita Feitosa,
maiores mestres do violão no país. Entre eles, somente três mulhe- uma moça cearense que, na década de 1860, se disfarçou de homem
res: Inezita Barroso, a eterna Rosinha de Valença e esta que vos es- para tentar lutar na Guerra do Paraguai. O jipe, por sinal, foi apelidado
creve. Eu só conhecia o lado caipira de Inezita. Fiquei curiosíssima e com o nome da heroína do filme – que acabou não sendo produzido.
fui ler a biografia que Arley Pereira fez da artista, Inezita Barroso – a
História de uma Brasileira (2013). E me deparei com o exemplo de Inezita gravou todos os estilos que a interessaram. Do cancioneiro
uma pioneira. Não imaginava, por exemplo, que ela tinha sido uma caipira aos sambas de Noel Rosa, de canções de Ary Barroso a músi-
das primeiras mulheres a subir ao palco com um violão. cas afro-brasileiras... Seria ela a precursora do ecletismo?

Obrigada, Inezita. Certo é que, quando cantava, sua voz altiva e seu sorriso largo – de
sábias profundezas e de uma alegria contagiante – sempre nos ins-
Quando menina, embora tenha nascido em berço de ouro, a pequena piravam a reverência.
Ignez preferia ficar em meio aos peões e suas violas a assistir em si-
lêncio aos concertos promovidos pelos donos dos casarões que sua Aos 90 anos de idade, em 8 de março de 2015 – Dia Internacional da
família frequentava. Em vez de usar saias comportadas, optava por li- Mulher –, Inezita faleceu. E aqui ficamos.
derar a turma de moleques da rua. Imagine uma garota naquela épo-
ca – os anos 1920, 1930 – subindo em árvores, caçando passarinhos Quanta saudade você nos traz... •
com estilingue e jogando futebol. Pois foi com esse espírito livre que
ela resolveu viver não somente sua infância, mas toda a sua vida. _
Badi Assad é cantautora, violonista e escritora. Lançou, entre outros, os CDs Rhy-

Inezita nunca se deixou domar pela sociedade, sempre se recusou a thms (1995) – eleito o melhor álbum do ano na categoria Violão Acústico pela revista

seguir os padrões de comportamento impostos às mulheres de sua norte-americana Guitar Player –, Wonderland (2006) – um dos cem melhores discos

época. Dessa forma, ela talvez possa ser considerada também uma do ano de acordo com a BBC de Londres – e Amor e Outras Manias Crônicas (2012)

das nossas primeiras feministas. Gravou mais de 80 discos, atuou no – pelo qual ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) de

cinema, foi apresentadora de programas de rádio e de televisão, deu Melhor Compositora.


ao lado nota publicada em 1956 na revista 7 dias na tv
em 1980, no programa os sons da memória, da tv cultura
foto: danilo pavani | cedoc tv cultura

foto: cedoc tv cultura


acima inezita em 1990, no programa ensaio, da tv cultura
fotos: jair bertolucci | cedoc tv cultura
ao lado em 1980, inezita deu aulas sobre o folclore brasileiro
no conservatório de pouso alegre, no sul de minas gerais
OCUPAÇÃO INEZITA BARROSO
_

concepção e realização Itaú Cultural

curadoria Itaú Cultural e Paulo Freire

consultoria Aloisio Milani e Alexandre Pavan

expografia Aby Cohen

projeto executivo expográfico Aby Cohen e Flávio Marconato

instalação sonora Ian Evans (consultoria)

pesquisa Itaú Cultural

ITAÚ CULTURAL

presidente Milú Villela

diretor-superintendente Eduardo Saron

superintendente administrativo Sérgio M. Miyazaki

NÚCLEO DE MÚSICA

gerência Edson Natale

coordenação Andréia Schinasi

pesquisa e produção-executiva Vinícius Murilo

NÚCLEO DE ENCICLOPÉDIA

gerência Tânia Rodrigues

coordenação Glaucy Tudda

pesquisa e produção-executiva Elaine Lino, Letícia Santos (estagiária) e Moisés

Mendoza Baião (estagiário)

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA

gerência Claudiney Ferreira

coordenação de conteúdo audiovisual Kety Fernandes Nassar

produção audiovisual Paula Bertola

captação de imagens, roteiro e edição Richner Allan

captação de imagens Bela Baderna (terceirizada), Lucas Bassoto (estagiário)

e Sacisamba (terceirizada)

foto: josé luis da conceição | estadão conteúdo som direto Rafael Bonifácio (terceirizado) e Tomás Franco (terceirizado)
NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO educadores Carla Léllis, Claudia Malaco, Edinho Santos, Josiane Cavalcanti, Lucas

gerência Ana de Fátima Sousa Takahaschi, Luisa Saavedra, Malu Ramirez, Raphael Giannini, Thiago Borazanian e

coordenação de conteúdo Carlos Costa Viny Rodrigues

produção e edição de conteúdo Fernanda Castello Branco, Jullyanna Salles (estagiária)

e Thiago Rosenberg NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS

redes sociais Renato Corch gerência Henrique Idoeta Soares

supervisão de revisão Polyana Lima coordenação Vinícius Ramos

revisão Rachel Reis (terceirizada) produção Carmen Fajardo, Érica Pedrosa, Isabela Bevilacqua (terceirizada), Wanderley

coordenação de design Jader Rosa Bispo e Wellington Rodrigues (estagiário)

comunicação visual Estúdio Claraboia

edição de imagens André Seiti e Marcos Ribeiro (terceirizado)

produção editorial Bruna Guerreiro e Luciana Araripe

coordenação de eventos e comunicação estratégica Melissa Contessoto _

produção e relacionamento Simoni Barbiellini e Vanessa Golau Olvera AGRADECIMENTOS

Alexandre Pavan, Aloisio Milani, As Galvão, Fábio Maleronka (projeto Produção Cul-

CENTRO DE MEMÓRIA, DOCUMENTAÇÃO E REFERÊNCIA tural no Brasil), Hernani Aparecido Matias, Jornal do Brasil, Marcel Fracassi, Marta

gerência Fernando Araujo Barroso Macedo Leme, Renato Teixeira e Roberto Corrêa

coordenação Eneida Labaki

digitalização de documentos, pesquisa e produção-executiva Laerte Fernandes

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO

gerência Valéria Toloi

coordenação de atendimento educativo Tatiana Prado

equipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Sidnei Santos, Thays Heleno, Victor Soriano

e Vinicius Magnun

estagiários Alexandre Santos, Aline Rocha, Bianca Melo, Bruna Caroline Ferreira,

Bruna Matsuoka, Caique Soares, Danielle de Oliveira, Edson Bismark, Elissa Sanitá,

Fernanda Oliveira, Gabriela Lima, Guilherme Wichert, Juliana Cristina do Nascimen- _

to, Juliana Ozeranski, Juliane Lima, Kaliane Miranda, Kim Mansano, Lívia Moraes, O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos

Lucas Rosalin, Luene Mantovani, Mariane Souza, Mario Rezende, Pamela Camargo, autorais incidentes sobre as imagens/obras fotográficas aqui publicadas, além das

Pamela Mezadi, Patricya Maciel, Rayssa Muniz, Renan Jordan dos Santos, Thiago pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua

Rodrigues, Vinicius Escócia, Vitor Augusto da Cruz e Walquíria Amancio autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br. As ima-

coordenação de programas de formação Samara Ferreira gens não creditadas pertencem ao acervo pessoal de Inezita Barroso.
Centro de Memória, Documentação e Referência Itaú Cultural

Ocupação Inezita Barroso /


organização Itaú Cultural. – São Paulo: Itaú Cultural, 2017.
84 p. : il. ; 25 x 19 cm.

ISBN 978-85-7979-098-0

1. Barroso, Inezita. 2. Música brasileira. 3. Música caipira. 4. Cantora brasileira.


5. Televisão brasileira. 6. Folclore. 7. Exposição de arte – catálogo I. Instituto
Itaú Cultural. II. Título.

CDD 780.981

quarta 27 setembro a domingo 5 novembro 2017


terça a sexta 9h às 20h [permanência até as 20h30]
sábado, domingo e feriado 11h às 20h

entrada gratuita
Realização

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