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ZINCO, UM BAMBA QUASE ESQUECIDO

José Vaz de Souza Filho

Uma discreta nota de um jornal, publicada em 1951, anunciava o “batismo simbólico” da


escola de samba “Unidos da Barão”, com sede no Engenho de Dentro. Duas escolas
veteranas haviam sido escolhidas para serem as “madrinhas” de batismo: Mangueira e
Filhos do Deserto. Elas levariam para a festa os seus maiores bambas. Dizia ainda a
notícia: “Lá estarão Cartola e Zinco, com as suas melodias que na certa farão os
batuqueiros se extasiarem”.

A escola batizada teve vida curta, enrolando a bandeira em 1956. A Mangueira se


consolidou como uma potência no mundo do samba. A Filhos do Deserto deixou o seu
legado de herança para a sucessora Lins Imperial, nascida em 1963 da fusão com a Flor
do Lins. Cartola, todos sabemos, teve o nome eternizado na história da música e da cultura
popular. Porém Zinco, apelido pelo qual era conhecido o compositor Jones da Silva, é
quase um desconhecido para as novas gerações.

Ser esquecido é uma sina cruel. Não foi à toa que Paulo da Portela, após as desavenças
que o afastaram da escola que ajudou a fundar e que lhe deu o sobrenome artístico,
compôs um samba de uma melancolia transbordante. Em versos carregados de amargura,
o compositor expressou a dor de não ser mais lembrado pela comunidade na qual foi a
principal liderança: “O meu nome já caiu no esquecimento, o meu nome não interessa a
mais ninguém”, cantou.

Se engana quem pensa que Paulo estava somente remoendo mágoas, destilando o
ressentimento que tinha dos velhos camaradas que lhe viraram as costas. Como escreveu
em outro verso da mesma composição, lhe doía ver a sua existência se dissipando na
“saudade do passado que se vai lá no além”. Frequentador dos terreiros, o sambista
compreendia bem o significado do esquecimento para as culturas de matriz africana,
fundadas no culto aos ancestrais. Através dos rituais que os reverenciam, as realizações
dos antepassados perpetuam-se e eles permanecem vivos na memória da comunidade. Se
esquecidos, eles serão vítimas de uma segunda morte, esta sim implacável e definitiva.

No samba, que nasceu desta mesma cultura, ocorre uma espécie de apropriação profana
das práticas religiosas. Ao bamba que se vai é oferecido um rito de passagem, o gurufim.
E as rodas de samba são, em boa medida, rituais que invocam os mestres do passado. E
isto talvez seja uma das principais razões da vitalidade e permanência do samba.

O bamba portelense não foi esquecido. Pelo contrário, se tornou um reconhecido ícone
da cultura popular e é lembrado como uma das mais notáveis lideranças afrodescendentes
que já tivemos. Porém Zinco não teve a mesma sorte. Um sambista cuja história se
confunde com a da Escola de Samba da qual foi o principal compositor, a hoje também
quase esquecida Filhos do Deserto.

Zinco era morador do Morro da Cachoeira Grande, que integra a Serra dos Pretos Forros,
parte do Maciço da Tijuca que forma uma barreira natural entre os bairros de Água Santa
(em Jacarepaguá) e Lins de Vasconcelos (no “grande Méier”). No passado esta serra foi
um refúgio para ex-cativos, fato que lhe deu o nome. Estabelecidos a uma distância segura
do centro da cidade, alforriados ou não, ali se protegiam do risco de serem novamente
escravizados e dos alistamentos forçados, no Exército e na Marinha. Foi lá que, em 1933,
foi fundada a Escola de Samba Filhos do Deserto. Não por acaso, o nome escolhido para
a agremiação remete aos versos do poema Navio Negreiro, de Castro Alves.

No tempo em que Zinco lá viveu, o morro ainda tinha muita área verde em sua encosta,
várias nascentes naturais e muitos pássaros, compondo uma imagem bucólica
frequentemente associada às referências ao sambista. Daí Zinco ser também chamado de
“o Poeta da Cachoeirinha”, em razão da localidade em que residia, assim denominada por
ser próxima a uma pequena nascente, em oposição a “cachoeira grande” que dava o nome
à comunidade. Quanto a origem do apelido, só nos resta especular se teria alguma relação
com o tão cantado metal usado na construção dos barracos nos morros cariocas.

O Morro da Cachoeira Grande também foi um “celeiro de bambas”. E Zinco brilhou como
um dos principais compositores da Filhos do Deserto, ao lado de seu parceiro mais
frequente Caxambu (Darcy Knuth Machado) e do compositor Jaguarão (José da Silva).
Zinco deixou o seu nome em quase todos os sambas-enredo conhecidos da escola.

Abençoada pela Mangueira, a Filhos do Deserto adotou as cores verde e rosa e seus
bambas se diziam “filhos do Jequitibá”. A escola também era chamada de “A Favorita da
Marinha”, e seus integrantes de “desertinos”. O laço afetivo com a Marinha veio após a
construção do Hospital Naval Marcilio Dias, bem no meio da comunidade, entre a
Cachoeira Grande e a Cachoeirinha. Além de atrair os marinheiros para as rodas de
samba, conta-se que a escola fazia desfiles na frente do hospital para amenizar o
sofrimento dos enfermos lá internados. Assim, os bambas da Filhos do Deserto foram os
“doutores da alegria” da ocasião, conquistando o carinho da marujada. Este afeto deve ter
inspirado o enredo de 1949, Homenagem à Marinha.

Zinco foi muito admirado pelos seus pares enquanto viveu. Nos anos 50 do século
passado, o portelense Walter Rosa o exaltou no samba Confraternização, que
homenageava os bambas da época. Os primeiros versos são dedicados a ele, para só então
reverenciar Cartola, Padeirinho, Silas de Oliveira, Manaceia, Monarco, Candeia, Chatim
e outros mais. O samba teria sido um sucesso nas rodas.

O Poeta da Cachoeirinha influenciou uma geração de sambistas. Antônio Candeia o


citou como um dos compositores que mais admirava. Martinho da Vila, quando integrava
a ala de compositores de outra escola da região, a Aprendizes da Boca do Mato, também
o conheceu. E afirmou que Zinco era mesmo idolatrado pelos outros sambistas daquele
período. João Nogueira, criado no Méier, disse que ele foi o primeiro sambista de morro
com quem conviveu, que o seguia para todo lado. Impressionava pelo timbre da voz,
marcante tal qual a do Jamelão, e pela quantidade de sambas que ele compunha com
extrema facilidade, fosse para a escola Filhos do Deserto ou para os blocos carnavalescos
da região. Sambas que nunca eram boi-com-abóbora e que caiam na boca do povo do
bairro, mesmo sem tocar no rádio.

De vida boêmia, Zinco morreu pouco tempo após a fusão que deu origem a Lins Imperial.
Desempregado, tuberculoso e pobre.

O admirado sambista não teve nenhuma obra gravada enquanto viveu. Foi somente em
1975 que, passados mais de dez anos da morte do compositor, Nadinho da Ilha gravou
Apoteose ao Samba1, composto pela dupla Zico/Caxambu para o carnaval de 1951. Este
samba ainda ganharia outras interpretações. João Nogueira também o incluiu no clássico
álbum Espelho. Nesta gravação, o cantor reproduz uma prática que dizia ser comum ao
Zinco, a de declamar versos improvisados enquanto cantava. João insere uma narração
emotiva, em que reverencia o mestre: “tu que embalaste com teus sambas os meus sonhos

1
N.A.: Este samba, não deve ser confundido com o homônimo de autoria de Silas de Oliveira e Mano
Décio da Viola, gravado primeiramente em 1957 por Jamelão; nem com o samba-enredo “Apoteose do
Samba”, de Toco e Cléber, que embalou o desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel em 1958.
de criança”. O samba teve mais duas interpretações: uma da pouco conhecida cantora
Neusa e outra de Beth Carvalho que, em show comemorativo dos 40 anos de carreira,
cantou o samba de Zinco no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Martinho da Vila, no seu primeiro álbum de antologia de sambas-enredo, gravou


Amazônia - inferno verde, que a Filhos do Deserto levou à avenida em 1956. No total,
apenas cinco sambas da dupla Zinco/Caxambu foram gravados.

Estas poucas gravações são um fragmento de uma vasta obra que, ao que tudo indica, se
perdeu. Todos os relatos apontam que Zinco era um compositor fértil, que compunha em
quantidade sambas cadenciados, de linhas melódicas originais e com versos de fina
poesia. Caxambu dizia ter mais de uma centena de sambas com o parceiro. Vasculhando
velhos jornais encontram-se referências a cerca de duas dúzias de criações do Zinco.
Algumas letras foram reproduzidas integralmente na imprensa, como o samba
carnavalesco Valsa, composto para o bloco Mocidade do Meier. Também sobreviveram
os versos completos de algumas parcerias, como Não somos pai Pereira
(Zinco/Jaguarão), Mãe preta, Meu sofrer e Sinfonia Divina (estes da dupla
Zinco/Caxambu).

A trajetória de Zinco em muito se assemelha a do sambista Espírito da Luz Soares


personagem do filme Rio Zona Norte, de 1957, dirigido por Nélson Pereira dos Santos.
Grande Otelo interpretou brilhantemente o compositor do morro, talentoso, de uma escola
de samba do subúrbio, cujas músicas eram muito populares na comunidade em que vivia,
apesar de nunca terem sido gravadas ou executadas nas rádios. E nem mesmo o nome do
sambista, que sugere um “espírito de luz” a ser cultuado, o salvou de um destino trágico
e do esquecimento. O personagem morre em razão de uma queda do trem, deixando de
espólio um maço de folhas de papel amarfanhadas com as letras de seus sambas, sem
registro de melodia. O samba que não foi gravado morre com o criador e, com o passar
do tempo, desaparece junto com os seus contemporâneos que o guardavam na lembrança.

Graças ao grande apreço que a comunidade do samba tinha por Zinco, o nome dele se
manteve em evidência por alguns anos. Em 1970, a Associação das Escolas de Samba da
Guanabara criou um Conselho Superior do Samba, inspirado nos moldes da Academia
Brasileira de Letras. Zinco foi escolhido para ser o patrono de uma das cadeiras dos
“imortais” do samba. Em 1984, um vereador propôs que cada setor do sambódromo
tivesse uma placa que homenageasse uma personalidade notória das escolas de samba.
Zinco estava lá, ao lado de Cartola, Silas de Oliveira e Natal. Porém estas iniciativas
tiveram vida curta. Com o passar dos anos, as referências ao Zinco praticamente
desapareceram. O sambista só continuou a ser lembrado na Lins Imperial que, no carnaval
de 1988, desfilou com o enredo “Primavera é tempo de saudade, tributo a Zinco e
Caxambu”. Uma homenagem aos compositores do poético samba Brasil Primaveril, que
embalou o desfile da Filhos do Deserto em 1954.

De forma um tanto fugaz, o nome do Zinco ainda ecoa nas rodas de samba. Não pelos
sambas que compôs, mas por ter o nome citado nos versos da parceria de Paulo César
Pinheiro e Wilson das Neves, gravada em 1996, que rapidamente se tornou antológica: O
samba é meu dom. Zinco, ao lado de Jaguarão, outro bamba da Filhos do Deserto, é
lembrado entre os grandes mestres que ensinaram a como se fazer um “samba bom”.

Talvez alguns sambas do Zinco ainda vivam na memória dos remanescentes da época em
que ele brilhou. Ou quem sabe alguma partitura tenha sobrevivido com herdeiros, em
registros de autoria ou na gaveta de algum editor musical. Talvez, num derradeiro esforço,
seja possível recuperar algo mais da obra musical deste bamba. Como cantou João
Nogueira em Súplica, é a música que “na vida é sempre a luz mais forte, ilumina a gente
além da morte”.

Zinco não merece que o seu nome caia na escuridão do esquecimento.


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