Você está na página 1de 6

Endereço da página:

https://novaescola.org.br/conteudo/21596/saiba-como-usar-o-
samba-enredo-nas-aulas-de-historia
Publicado em NOVA ESCOLA 14 de Fevereiro | 2023

Datas comemorativas

Saiba como usar os


sambas-enredo nas aulas
de História
As composições podem ser uma boa ferramenta para
ilustrar e provocar reflexões críticas sobre momentos
históricos – para além da formalidade dos livros didáticos
Rachel Bonino

Desfile da Estação Primeira de Mangueira, no Rio de Janeiro, em 2019. Com o


enredo História para ninar gente grande, a escola exaltou personagens que
fazem parte da História do Brasil e são pouco lembrados nos livros didáticos.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Resgatar e olhar criticamente para momentos e a vida de figuras que foram
determinantes para os rumos da História brasileira. Trazer temáticas ligadas à
historiografia nacional dessa forma é uma tradição das composições de
sambas-enredo apresentadas pelas agremiações carnavalescas do país – das
mais conhecidas, inclusive internacionalmente, como as do Rio de Janeiro, até
as menores, espalhadas pelas pequenas cidades do país.
Pode reparar: “Que a Lei Áurea tão sonhada/ Há tanto tempo assinada/ Não foi
o fim da escravidão/ Hoje dentro da realidade/ Onde está a liberdade/ Onde
está que ninguém viu”. Também: “Hoje vou colorir toda a cidade/ De alma
pintada eu vou/ Sou da Corte a fantasia/ Trago o ‘novo mundo’ de esplendor”.
Ou então: “Índios, brancos, negros/ Iniciaram a evolução/ E seus nomes e seus
feitos/ A nossa história contarão/ Diogo Álvares Correia Caramuru/ Entregou
seu coração/ À jovem índia Paraguaçu”. E ainda: “Era o sangue na mata, a
revolta crescia/ Contestado em guerra, uma voz resistia/ A bela ‘rosa’ guia cada
sonhador/ Visões de amor”.
A lista de sambas-enredo que já apostaram nesses assuntos é imensa e vai
muito além dos destacados acima – respectivamente, trechos do samba da
Mangueira (RJ, de 1988), Imperatriz Leopoldinense (RJ, de 1994), Rosas de Ouro
(SP, de 1973) e Protegidos da Princesa (SC, de 2012).
Essa grande oferta de materiais ligados à uma festa popular – que une
elementos de história, cultura, música, dança e artes visuais – é uma ferramenta
e tanto para ilustrar, engajar e discutir a História para além da formalidade dos
livros didáticos. Com o adicional de que esses fatos são contados com
linguagem mais simples, coloquial e de forma tão diferente do rigor ao qual os
alunos estão habituados que os tornam marcantes no ensino, avalia Helena
Cancela Cattani, historiadora, arquivista e pesquisadora do Carnaval de Porto
Alegre, que lecionou na rede estadual gaúcha até 2019.
Ela conta que passou a usar com mais frequência os sambas-enredo como
ferramenta didática auxiliar no ensino de História a partir de 2000, quando os
desfiles das agremiações daquele ano foram o pontapé para as celebrações dos
500 anos do Brasil. Cada escola do grupo especial do Rio de Janeiro foi
convidada a contar momentos relevantes da historiografia.
“Percebi que as escolas estavam contando [esses fatos] de uma forma muito
interessante e até trazendo passagens históricas que tradicionalmente não são
contadas nos livros e sempre ficaram à margem da ‘História oficial’. Reconheci
nos sambas um material muito potente que pode inclusive despertar fora do
ambiente da sala de aula essa curiosidade do aluno de ir atrás e fazer conexões
não convencionais”, diz.
A escola de samba como fonte histórica
Para entender melhor essa construção tão potente, é bom voltar no tempo. Foi
a partir da década de 1970, com a entrada e a consolidação da figura do
carnavalesco, associadas à profissionalização e ao crescimento comercial dos
desfiles, especialmente no eixo Rio-São Paulo, que as escolas de samba
passaram a ampliar as pesquisas ligadas aos temas escolhidos para o enredo,
passando a combinar as percepções das comunidades aos estudos com
fundamentação histórica trazidos pela academia, ou seja, por especialistas e
estudiosos.
É por isso que, além de ser um recurso lúdico para apoiar e ilustrar passagens
históricas em sala de aula, os sambas-enredo também oferecem muitas
possibilidades de reflexão e discussão entre estudantes justamente pelo modo
como tratam, enxergam e revisitam esses momentos.
Em sua dissertação de mestrado apresentada em 2012, a professora de História
Fabiolla Falconi Vieira, que também é integrante da bateria da escola Os
Protegidos da Princesa, de Florianópolis (SC), propôs discutir com os estudantes
o samba-enredo como mais uma fonte a ser considerada, o que surpreendeu
os alunos quando colocou em prática algumas das atividades sugeridas, antes
da publicação do estudo.
“A ideia que a gente tem de passado é de um tempo estagnado. Só que, ao
olhar para trás, é possível perceber outras nuances sob a ótica do presente.
Trazer um samba-enredo atual que está falando ali na letra de algo que
aconteceu coloca-o como uma fonte que representa também o presente, o
momento em que foi criado. E isso às vezes 'dá uma embolada' na cabeça dos
estudantes”, conta Fabiolla, que atualmente leciona para turmas dos Anos
Finais do Fundamental e do Ensino Médio na EEB Professora Laura Lima, em
Florianópolis.
Segundo ela, a discussão estimula os alunos a pensar sobre o que foi
considerado pela agremiação no momento de materializar o samba-enredo, ou
seja, o recorte escolhido para contar determinada passagem histórica. “Estimulo
os alunos a analisar a letra, o uso que a escola faz das palavras, o momento em
que foi construído o enredo, quais opções foram feitas. Tudo para que eles
possam compreender um pouco que a escola de samba, enquanto instituição,
também é um sujeito histórico, que está ali marcado pelo tempo, pelo
momento, por questões comerciais. Então, a produção é feita por escolhas –
como as outras fontes históricas também são, aliás”, explica.
Para Fabiolla, considerar uma fonte histórica tão atual e que se apoia na música
ajuda a quebrar a lógica do ensino de História calcado apenas na cronologia dos
fatos.
Em sala de aula: perspectivas local e nacional
Em sua dissertação O samba pede passagem: o uso de sambas-enredo no
ensino de História, Fabiolla chama a atenção para a possibilidade de buscar
conexões entre contextos históricos e a realidade dos alunos por meio das
criações carnavalescas locais. Uma atividade realizada por ela usou dois
sambas-enredo de agremiações sediadas em Florianópolis, apresentados na
avenida no ano de 2012: o da escola Os Protegidos da Princesa, que destacou
os cem anos da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, e o da Escola de
Samba Embaixada Copa Lord, que trouxe aspectos históricos da Rua Felipe
Schmidt e sua relação com o centro da capital catarinense.
Na sequência didática, ela propõe a análise em sala de aula de fontes históricas
escritas, orais, iconográficas e musicais, incluindo os sambas-enredo, para
comparar como cada uma delas destaca um mesmo momento histórico. “Um
ponto central foi colocar em discussão que, ao analisar uma fonte, mesmo
sendo diferente daquelas presentes no ensino tradicional, os alunos também
estão aprendendo”, diz.
Além disso, Fabiolla conta que, a partir da atividade, também foi possível fazer
conexões e contextualizações entre perspectivas local e nacional, como os
impactos regionais da Guerra do Contestado com o início da República e a
relação entre a questão da sociabilidade na Rua Felipe Schmidt com a ideia de
modernidade e crescimento das cidades brasileiras.
Antes da apresentação do estudo, a professora já havia aplicado as atividades
com estudantes do 9° ano, mas afirma que ela também pode ser adaptada para
outros anos e com outros sambas-enredos ou até outras fontes. “A ideia
principal é que os estudantes compreendam como se produz uma narrativa
histórica e percebam que somos confrontados com essas narrativas o tempo
inteiro. Usei o samba-enredo, mas poderia ser usada uma telenovela, um filme,
um videogame”, lista. “Estamos imersos em uma série de narrativas que
retratam o passado de uma forma que nem sempre a historiografia retrata.”
Samba-enredo e o recorte étnico-racial
Os sambas-enredo também podem ser uma ferramenta interessante para
abordar questões ligadas à memória e à construção das identidades negras
brasileiras – temáticas que inclusive são obrigatórias desde 2003, com a
aprovação da Lei 10.639, que determinou a inclusão nos currículos oficiais do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira.
O contato com o samba desde a infância, passada no bairro de Padre Miguel,
no Rio de Janeiro (RJ), comunidade que mantém laços fortes com o Carnaval,
inspirou o professor de História Fabrício Castilho a unir samba e temática racial
como fio condutor para algumas aulas e para sua dissertação de mestrado,
Samba de escola: o uso dos conceitos de memória e identidade para a educação
das relações étnico-raciais”, que também virou livro. O objetivo era analisar em
sala de aula sambas-enredo produzidos por agremiações do Rio de Janeiro em
várias décadas.
“Pensando as escolas de samba como entidades que historicamente expressam
os saberes e as formas de ser, de se enxergar e de se comportar das
comunidades negras, os sambas-enredo seriam, então, fontes relevantes e
particularmente úteis na recuperação da memória da negritude”, analisa o
docente, que atualmente leciona na EE Irineu José Ferreira e no CIEP 223
Olímpio Marques, ambos localizados no bairro de Campo Grande, no Rio de
Janeiro.
Dividida em três eixos, Fabricio sugere uma sequência pedagógica que prevê a
análise de quatro sambas-enredo selecionados, complementados por outras
fontes, como fotografias e recortes de jornais para destacar um período
histórico:
No Continente africano
A jornada começa com A visita de Ony de Ijé ao Obá de Oió, da Unidos do
Cabuçu, de 1983, para falar da África pré-colonial, antes dos movimentos
escravagistas.
Tráfico negreiro
A atividade segue com Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?, da
Mangueira, de 1988, que apresenta a vinda de negros escravizados para o
Brasil.
Identidade negra
A proposta é concluída com A grande constelação das estrelas negras, da Beija-
Flor, de 1983, e Ganga-Zumbi, expressão de uma raça, da Unidos da Tijuca, de
1996, com o intuito de discutir a construção de uma identidade negra brasileira.
Outros desdobramentos
Para Fabricio, o uso de sambas-enredo rende muitos outros desdobramentos
que podem ser expandidos em sala de aula para amplificar as reflexões ligadas
ao Carnaval e à História, como as revisões de termos aplicados às letras, por
exemplo. Os sambas-enredo, afirma ele, têm a capacidade de mostrar como o
discurso histórico está sendo apropriado pelas massas. “Hoje, na academia, não
se fala mais ‘escravos’, mas ‘escravizados’. Mas será que lá na comunidade, na
favela ou na quebrada, estão falando desse jeito? É uma questão conceitual,
mas como é que essa História produzida aqui está sendo vivida nas
comunidades? Como é que ela está sendo tratada pelas escolas de samba, que
são instituições que, em certo grau, representam essa memória coletiva da
comunidade?”, reflete.
Outra sugestão interessante, citada por Fabricio, é avaliar em sala de aula o
quanto, de enredo em enredo, as escolas vão mudando a visão sobre
personagens e a luta dos negros. Para ilustrar: enquanto a composição da
Imperatriz Leopoldinense (RJ) de 1989 exaltou a figura da Princesa Isabel (“Pra
Isabel, a heroína/ Que assinou a lei divina”), anos depois, o samba-enredo da
Mangueira (RJ), de 2019, já tirava os holofotes dessa figura histórica para exaltar
outra (“Brasil, o teu nome é Dandara/ E a tua cara é de cariri/ Não veio do céu/
Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati”).
“Até a mesma escola de samba, de um ano para o outro, pode mudar seu
discurso, sua visão histórica, digamos assim. Uma série de questões podem
influenciar – de patrocínio ou mesmo direcionamentos políticos. As escolas de
samba são órgãos marcados pela negociação”, avalia o professor.
Blocos, bate-bola e muita festa

Outras manifestações carnavalescas, como os cortejos de Olinda (PE), podem


ser exploradas nas aulas. Foto: Sumaia Villela/Agência Brasil
Como espetáculo multifacetado que é, toda a festa dos desfiles de Carnaval, e
não apenas os sambas-enredo, pode colaborar para levar mais discussões ao
ensino de História. O professor João Gonzalez Moreira quis trazer o tema da
intolerância religiosa para a sala de aula para explorar o conceito de
interculturalidade. Para isso, colocou lupa sobre o enredo Só com a ajuda do
santo, da Mangueira (RJ), de 2017, assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira.
“Me interessava mais a pesquisa por trás do samba, e não apenas o samba-
enredo em si”, conta.
O caminho pedagógico proposto consta da sua dissertação de mestrado Só com
a ajuda do santo. O enredo como aliado para uma proposta de ensino
intercultural de História. Além de ampla análise, que passa pelas fichas técnicas
da letra, das fantasias e das alas, a proposta também recomenda a avaliação
das páginas do Abre-Alas apresentado pela agremiação, que é o livro com
registro e justificativa de todas as opções feitas pelo carnavalesco para explorar
o tema escolhido naquele ano, e entregue pelas escolas à Liga Independente
das Escolas de Samba (Liesa).
“Ao acessar todo esse material, é possível entender um pouco mais sobre a
religiosidade do brasileiro e até mesmo justificar esse DNA religioso como fruto
do encontro de culturas”, explica João.
Para o educador, usar o Carnaval como mote de atividades na escola também
aproxima os estudantes das especificidades dessa manifestação cultural, até
para preservar a memória. Aliás, João reforça que o leque de possibilidades
pode ser ainda maior se o professor optar por associar o ensino de História às
manifestações carnavalescas que não necessariamente estão ligadas aos
desfiles das escolas, mas também aos blocos de rua, ao Carnaval de bate-bola e
outras manifestações espalhadas país afora.
“É gratificante quando a gente consegue mostrar ao aluno que,
independentemente da festa e da possibilidade de se divertir, uma escola de
samba [ e o Carnaval] pode oferecer essa oportunidade de aprender.”

Você também pode gostar