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FONTES HUMORADAS NO ENSINO DE HISTÓRIA1

Cintia Lima Crescêncio


UFABC
cintia.lima@ufabc.edu.br

Primeiras considerações

Este trabalho tem como objetivo apresentar um breve panorama do paradigma


documental na História (SMITH, 2013), e na sala de aula de História, analisando o
potencial das fontes humoradas – caricaturas, charges e tiras cômicas – para o ensino e
aprendizagem em História. Para isso, elabora uma reflexão sobre o lugar das fontes na
ciência histórica e, consequentemente, em seu ensino (BITTENCOURT, 2008; CAIMI,
2008), propondo a não-seriedade das fontes humoradas como potência e o humor como
meio privilegiado de compreensão e orientação no mundo.
Ao pensar as fontes humoradas como: articulação entre texto e imagem
(LIEBEL, 2017); expressão de subjetividades e sensibilidades; essencialmente
didáticas; construção do(a) autor(a), dos(as) leitores(as), da investigação (SALIBA,
1999); manifestação emocional, por seu aspecto sensível; recurso de investigação para
além da superfície; e, finalmente, vinculada ao riso (ECO, 2011; EAGLETON, 2020;
BARRECA, 1991); proponho uma análise sobre as fontes humoradas como meio de
acessar os modos de pensar e sentir (DRIESSEN, 2000), aspecto fundamental às aulas
de História.
O conceito de fontes humoradas foi elaborado a partir de pesquisa anterior, que
teve como objetivo realizar um levantamento da presença de estudos sobre humor e riso
na historiografia brasileira, entre 1981 e 2019, a partir das edições da Revista Brasileira
de História (RBH) e dos anais dos encontros nacionais da Associação Nacional dos
Professores de História (ANPUH). A pesquisa indicou forte resistência da História, e
dos historiadores, em assumir o humor como problemática histórica, embora o humor

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Este texto foi produzido no âmbito do projeto "MANDONAS: memórias, políticas e
feminismos no Cone Sul (1980-2020)", financiado pelo CNPq, Processo nº Processo:
404662/2021-8.
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gráfico seja fonte frequente, levando ao questionamento: História, por que tão séria?2
Em decorrência deste questionamento inicial, proponho um debate sobre o potencial das
fontes humoradas para a História e seu ensino, tendo como enfoque o humor gráfico.

O lugar das fontes na História e na sala de aula de História

A construção da História Ciência no século XIX foi resultado direto de uma


mentalidade histórica moderna que se baseou na confiança em testemunhos e
documentos oficiais (SMITH, 2003). Tal mentalidade, não podemos esquecer, colocou
como prioritários documentos escritos, o que levou a séculos de rejeição de outras
formas de viver e registrar os acontecimentos.
A emergência da História científica, portanto, baseava-se na pesquisa em
arquivos e no exame minucioso de documentos escritos (oficiais e confiáveis!), trabalho
compartilhado nos seminários entre os pares. A verdade universal ancorava-se, nesse
sentido, no exame minucioso destes documentos, atividade que era dominada por
homens de elite (SMITH, 2003).
Cabe o registro que as mulheres não podiam participar deste clube, mas ainda
assim escreviam o que se chamou depois de escrita amadora, em que utilizavam como
fontes cartas, jornais, fontes visuais e orais, dado seu impedimento de acessar arquivos
(SMITH, 2003). Estas fontes foram valorizadas, novamente, apenas nos anos 1930,
quando os Annales defenderam a ampliação da noção de documento histórico.
A História não há dúvida, faz-se com documentos escritos – quando existem.
Mas ela pode fazer-se, deve fazer-se com tudo aquilo que o engenho do
historiador coloca ao seu alcance... Com palavras, portanto. Com sinais.
Paisagens e telhas. Formas campestres e ervas daninhas. Eclipses lunares e
arreiros de animais (FEBVRE, 1989, p. 249).

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Esta pesquisa foi realizada no âmbito do Programa de Iniciação Científica Voluntária da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), pela estudante Gabriela Alves Costa
Fernandes Ferreira, entre os anos de 2020 e 2021, sob minha orientação. Um dos resultados da
pesquisa foi publicado nos Anais do XV Encontro de História da ANPUH/MS, realizado em
2021, sob o título “Por que tão séria? Uma reflexão sobre humor e riso na Revista Brasileira de
História (1981-2020)”.
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Ainda que diante de uma clara ampliação da noção de documento, que atravessa
o século XX em direção ao XXI, com novos desafios de ordem digital, e marcada pela
WEB 2.0, os paradigmas do profissionalismo permancem, marcando a identidade
historiadora através de elementos como método, seminários e exame de documentos.
Não há História sem documentos, não se conta a história sem documentos e, embora
façamos algumas discussões em torno da ideia de documento, demonstrando
preocupação com o fato da palavra documento denotar evidência, prova (SALIBA,
2004), seguimos firmes na defesa deles como fundantes do saber histórico, o que inclui
também sua dimensão escolar, uma vez que o trabalho com fontes diversas em sala de
aula garante a predominância de métodos ativos e construtivistas (BITTENCOURT,
2008).
Marcada por esses paradigmas do século XIX, a história afirma-se como
reconstituição do passado e indica o documento escrito como fonte privilegiada na
momento de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Colégio
Pedro II. O primeiro construia a genealogia da nação, alimentando o Colégio com o que
deveria ou não ser ensinado em termos de História e fomentando enorme apreço pelos
documentos nas salas de aula de História (ABUD, 2004).
Os primeiros manuais e livros didáticos, que datam deste século, já lançavam
mão do uso de imagens, trechos de documentos oficiais, mapas e literatura, para
incentivar o amor à pátria e o culto a grandes heróis e feitos, visão que prevaleceu nas
primeiras décadas do século XX, mas com enfoque na construção da identidade
brasileira (CAIMI, 2008).
A renovação historiográfica européia dos anos 1930 foi também um momento de
renovação no tratamento das fontes nas salas de aula do ensino básico por aqui,
acompanhado da profissionalização de historiadores no Brasil, com a criação dos
primeiros cursos de História e a aprendizagem de teoria da história, método e técnicas
de pesquisa (MONTEIRO, 2007).
No Brasil, a História tornou-se científica também baseada na pesquisa
documental (CAIMI, 2008) e, apesar das discussões em torno da ampliação do leque de
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fontes, mantinha-se o caráter livresco e memórialístico da história escolar, em


permanente relação hierárquica com o saber histórico.
Para Flávia Caimi (2018) a renovação historiográfica é mais ágil em termos de
fontes do que o ensino de história. É preciso considerar, no entanto, que as dinâmicas da
própria sala de aula demandam a construção de saberes que não são despejados na
escola, mas construídos na própria escola. É o que nos mostram as primeiras
experiências com cinema na sala de aula, protagonizadas por Jonatas Serrano, professor
do Colégio Pedro II. É importante pontuar que neste contexto o Brasil ainda não
contava com um ensino público gratuito, universal e sistematizado. Em momento de
valorização das humanidades para formar os grandes homens que guiariam o povo, a
escola servia à formação das elites e os documentos a sua valorização.
Não podemos desconsiderar a permanente relação entre saber acadêmico e saber
escolar expressa por nossas primeiras experiências da história escolar, mas é
fundamental lembrar que a reflexão sobre fontes no ensino de história não pode cair na
armadilha de visar formar “pequenos historiadores”. Ensino de história não é meio de
transmitir saberes externos à escola. Professor(a) de história é autor(a) condutor(a) do
processo de ensino e aprendizagem e para isso os documentos são centrais. É certo que
pautar o trabalho de investigação histórica em sala de aula é extremamente relevante e
mesmo útil para a aprendizagem, daí a importância do uso de documentos nas salas de
aula, mas é preciso atenção ao fato de que o documento não tem a mesma função para
historiadores(as) e estudantes do ensino básico (ANDRADE, 2007).
Além disso, antes de presumirmos que somos capazes de dominar “técnicas” de
análises de documentos no campo da pesquisa, vale pontuar que falhamos com
frequência no trato de fontes, sejam elas escritas ou visuais. São mais que comuns
abordagens que não usam apenas imagens como ilustração ou prova, mas também
documentos escritos (ALVES, ABUD, SILVA, 2010) . Se temos o desafio de pensar
como trabalhar com fontes nas salas de aula de história, temos também o desafio de
aprender a trabalhar com fontes históricas.
Na década de 1970, a Nova História ampliou ainda mais as possibilidades de
fontes para a História, tendo significativo impacto no contexto brasileiro que, nos anos
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seguintes, viu-se tentando (re)construir a história e seu ensino, no contexto de


redemocratização (ANDRADE, 2007).
Na sala de aula o(a) professor(a) atua como pesquisador(a), executor(a),
planejador(a), ele(a) orienta na observação, descrição, comparação e análise do
documento, aliando pesquisa e ensino como face do mesmo fazer – histórico e
pedagógico (ANDRADE, 2007). No compromisso de aprender e ensinar a analisar,
pensar, criticar, comparar, descrever, articular, explicar, o(a) professor(a) encontra nas
fontes recurso fundamental para que alunos(as) pensem historicamente, além de
aprenderem a ler e entender o mundo que os(as) cerca.
As fontes na sala de aula contribuem para desenvolver o pensamento histórico,
possibilitam a orientação no tempo, permitem entender as formas de comunicação e
expressão de determinadas épocas. Circe Bittencourt (2008) defende que os documentos
históricos sejam transformados em materiais didáticos em sala de aula, uma vez que são
resultado do trabalho do(a) professor(a), de reunir e selecionar.
Diante do desafio no trato dos documentos em sala de aula, que pode incorrer
em abordagens equivocadas que levam a acreditar que o documento expressa a verdade
universal, incontestável, estão suas inúmeras potencialidades que extrapolam a ideia que
os documentos em sala de aula podem ilustrar, reforçar uma ideia; ou ser fonte de
informação, mostrar uma situação; ou ainda introduzir um tema (BITTENCOURT,
2008). Documentos contribuem para o desenvolvimento do pensamento histórico,
pautando a investigação e o estudo como elementos centrais no trabalho de leitura do
tempo e do mundo.
Mais do que objetos ilustrativos, as fontes são trabalhadas no sentido de
desenvolver habilidades de observação, problematização, análise,
comparação, formulação de hipóteses, crítica, produção de sínteses,
reconhecimento de diferenças e semelhanças, enfim, capacidades que
favorecem a construção do conhecimento histórico numa perspectiva
autônoma (CAIMI, 2008, p. 141).

Diante de tamanha capacidade, a partir do trabalho de mediação do professor e


da professora, as fontes para o trabalho em sala de aula são inúmeras: documentos
escritos (de uso público e privado), imprensa, literatura, música, cultura material,
fotografia, cinema. O Século XXI tem apresentado, ainda, uma infinidade de novas
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fontes, como séries, blogs, redes sociais, memes, fontes com as quais ainda não
sabemos lidar, mas que demandam reflexões teóricas e metodológicas tanto na pesquisa
quanto no ensino em história. Neste enorme arcabouço, proponho um debate sobre as
fontes humoradas, que enfatizem o embate, a desobediência e a contestação.

As fontes humoradas

De maneira geral, quaisquer das tipologias de fontes antes listadas podem fazer
uso do humor, já que o humor opera como recurso de comunicação que atravessa o
cinema, a literatura, a música. Mesmo a piada, cuja base existencial é o humor, pode ser
pensada como fonte e, portanto, no ensino de história. Aqui, no entanto, proponho uma
reflexão que enfoque num tipo de fonte humorada que marcou a imprensa no século
XIX e XX no Brasil, o humor gráfico, importante fonte, documento muito frequente em
livros didáticos, apostilas e exames nacionais e que desde a difusão da imprensa no
Brasil forjou a boa fama do humor brasileiro. Tal ênfase justifica-se, ainda, pelo fato
desse tipo de produção ter como marca fundamental o desejo do riso, não existindo sem
ele.
Foram as caricaturas, as charges e as tiras cômicas que construiram a conhecida
“jocosidade nacional”, em terra que o prazer e o riso emergiram como meio de
resistência (MARTINS, 2003). O humor gráfico, nesse sentido, afirma-se como fonte
humorada na medida em que não se firma apenas como um documento que usa o
humor, mas que tem sua existência precedida e condicionada pelo humor. Esta
especificidade conceitual combina uma série de desafios para este tipo de fontes: 1.
Integram a imprensa; 2. São uma articulação entre texto e imagem; 3. Operam
subjetividades e sensibilidades difíceis de captar. Seus desafios são, também, síntese de
sua potência para as aulas de história, sedentas por imagens e por uma forma de
comunicação dinâmica.
É fundamental sublinhar que o a produção humorística, de qualquer ordem, tem
como objetivo promover o riso, gesto que não necessariamente articula-se a um
contexto de diversão e alegria. Umberto Eco (2011) fala da tristeza como vetor do riso,
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Terry Eagleton (2020) aponta o riso como expressão de desespero, raiva, estado não
racional. Nesse sentido, caricaturas, charges, cartuns e tiras cômicas produzidas com o
intuito de pensar o Brasil, não necessariamente geram um riso divertido e satisfeito, este
riso, aponta Eco (2011), pode ser um riso de descoberta das injustiças. Trabalhar com
fontes humoradas no ensino de história, portanto, não implica uma forma mais leve de
tratar certas questões consideradas sensíveis ou difíceis, porque isso não
necessariamente acontece. Uma charge que ironiza a naturalidade com que torturadores
atuavam no contexto da ditadura brasileira, por exemplo, não elimina a violência e o
incômodo de tal acontecimento.
As fontes humoradas, para além de serem atrativas e sedutoras, informam,
comunicam e permitem analisar o lugar da subversão e da transgressão na História,
mostrando que a História é feita de embates complexos, que não envolvem dicotomias
simplistas, como a relação dominador e dominado. O humor, como meio de desafiar a
ordem e a autoridade, permite debater sobre a história de maneira complexa, escapando
das reduções e dando ênfase a rupturas e permanências que derivam de disputas, além
de causar identificação muito produtiva com crianças e jovens, ainda
desconhecedores(as) das normas. A emergência de certos tipos de fontes humoradas e
seu caráter sempre contestário, informam sobre com quem elas se comunicavam, sobre
realidades locais, sobre sentimentos e visões de mundo. Não são mera fonte de
informação ou apenas passíveis de interpretação, pois pontuam tensões, críticas,
descontentamentos e, ainda, o que o humor significa em determinado tempo e lugar. As
fontes humoradas, ainda, tem triplo sentido didático. Primeiro porque o uso de recursos
visuais tem a clara intenção de fazer-se entender por todas as pessoas; segundo porque
na combinação entre texto e imagem, no geral muito simples, contribui de maneira
direta para o trabalho com crianças e jovens; terceiro porque carrega consigo uma
característica importante para pensar as fontes históricas, seu caráter de construção. No
uso do exagero, do grostesto, da sátira, da provocação, as fontes humoradas não deixam
dúvida que são produto da imaginação e da criação, questionando de saída o possível
status de verdade que integra as fontes na sala de aula.
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As fontes humoradas são enorme potência no ensino de história e merecem lugar


de destaque. O espaço resguardado às fontes humoradas na pesquisa e no ensino de
história é mais que tímido, apesar da forte relação dos(as) brasileiros(as) com o humor e
do seu sentido questionador. Um(a) leitor(a) atento(a) pode estar pensando: mas há
inúmeras pesquisas que utilizam o humor gráfico como fonte na História! E há, mas são
raras as que problematizam o humor e seus sentidos.
Procurando escapar de um uso raso das fontes humoradas na sala de aula, minha
sugestão é abordarmos uma discussão fundamental ao ensino de história hoje, que é o
uso de imagens nas salas de aula. Flávia Caimi (2008) lembra como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998 faziam inúmeras indicações sobre o uso de
fontes nas salas de aula, privilegiando o papel ativo do estudante na compreensão e
interpretação das fontes. No mesmo sentido caminha o Plano Nacional do Livro
Didático (PNLD), que faz avaliações muito generosas de livros didáticos que usam e
abusam de fontes, em especial recursos visuais. A atual Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) caminha no mesmo sentido (CAIMI, OLIVEIRA, 2021). Os
motivos para essa guinada visual merecem atenção, e indicam certa desvalorização da
leitura de textos, e privilégio de exames nacionais e internacionais que visam avaliar o
ensino de história no Brasil. No entanto, o que nos interessa aqui é pensar sobre o fato
que uma imagem não vale mais do que mil palavras. Essa expressão, pode até parecer
deslocada em tempos de redes sociais, de limites de caracteres nas formas de
comunicação e de privilégio da imagem como meio de informação e comunicação, mas
em se tratando de fonte histórica, a imagem merece atenção e, sendo as fontes
humoradas eminentemente visuais, mesmo que acompanhadas de textos escritos em
muitos momentos, é preciso debater os perigos de aceitar a imagem apenas como
ilustração.
O uso de imagens meramente ilustrativas na História não apenas cristalizam
memórias, como demonstra Circe Bittencourt (2017) ao pensar nas representações
indígenas em livros didáticos de história, ou Cristiani Bereta da Silva (2007), ao mostrar
como livros didáticos constroem imagens submissas e frágeis de mulheres, como
unitiliza a potência do trabalho com fontes em sala de aula.
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Alberto Manguel (2001) afirma que as imagens, assim como as palavras, são a
matéria com a qual somos feitos. Nesse sentido, para além de olhar as imagens, é
preciso que a gente aprenda a lê-las, entendê-las e relacioná-las com o mundo que as
cerca, exatamente por sua capacidade de marcar nossas memórias. Lemos um texto e o
esquecemos, não lembramos em detalhe, já uma imagem, se muito repetida, fica
cravada em nossa mente. Como leitores(as) de imagens conferimos a ela uma vida
infinita e inesgotável.
[...] vasculhar usos de imagens não como ilustrações, mas como documentos
que, assim como os demais, constroem modelos e concepções. Nao como
reflexo, mas como produção de representações, costumes, percepções, e não
como imagens fixas e presas a determinados temas ou contextos, mas como
elementos que circulam, interpelam, negociam (SCHWARCZ, 2014, p. 393).

Na superação da imagem como ilustração, na recusa do imperialismo do


documento escrito, e considerando que as fontes humoradas contribuem para quebrar os
efeitos do real que as imagens costumam produzir, podemos pensar as fontes humoradas
nessa complexa relação entre imagem e humor, em que é possível analisar não apenas a
produção de costumes e percepções através da imagem, como do uso do humor. As
fontes humoradas, nesse sentido, articulam texto e imagem e permitem mais do que
entender um determinado texto e contexto, mas analisar o lugar do humor, dos afetos e
sentimentos, e seu papel em determinado tempo, indicando tensões, rupturas e
permanências na história.
O humor, matéria prima destas fontes, por sua vez, configura-se como meio
privilegiado de compreensão do mundo, desmitificador de ideologias dominantes que
enxergam no exercício de poder uma via de mão única, além de indicar mudanças e
rupturas, já que as atitudes em relação ao humor mudam ao longo do tempo. Tendo
como objetivo o riso, o humor se justifica a partir de sua adequação às circunstâncias,
afirmando sua importância para a compreensão histórica. Allan Deligne (2011) aponta
que podemos rir de tudo, mas não em qualquer lugar, a qualquer hora, nem com
qualquer pessoa. Na história do Brasil as fontes humoradas são excelente expressão
disso.
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A caricatura, que passou a circular no Brasil em meados do século XVIII, surgiu


com forte sentido de crítica social e política, em terra de enorme número de analfabetos.
Feitas de maneira didática, provocavam identificação através do riso, da revolta, da
raiva, do desprezo. O gênero encontrou enorme aceitação. Marcada por significativo
avanço técnico, ao longo do XIX as caricaturas passaram a ser coloridas e
acompanhadas do surgimentos de periódicos humorísticos como a Revista Ilustrada,
fundada por Angelo Agostini, em 1876, e a Semana Ilustrada. Agostini, que dá nome a
prêmios de quadrinhos ainda hoje no Brasil, é considerado um dos grandes gênios de
seu tempo e um dos primeiros autores de histórias em quadrinhos e tiras cômicas no
Brasil. No contexto imperial as caricaturas que compunham tais revistas criticavam a
Igreja, o governo, a escravidão e suas mazelas (MARTINS, 2003).
Durante o período republicano o foco dos caricaturistas era o cotidiano, a
modernidade anacrônica e os cenários recém-modelados, que foram acompanhados da
emergência da charge, menos afeita ao exagero da caricatura, mas também apegada à
crítica política e social e a acontecimentos imediatos (LIEBEL, 2017). A tira cômica,
surgida no mesmo contexto, em fins do XIX, assumiu a possibilidade de contar uma
história, com começo, meio e fim, inclusive contínua, tomando para si, também, o
compromisso de realizar críticas sociais através do humor. Na segunda metade do
século XX a caricatura, a charge e a tira cômica afirmaram-se como importante
mecanismo de comunicação, de crítica e riso.
O conceito e a pluralidade de fontes humoradas não deve nos deixar perder de
vista dois elementos fundamentais no que se refere à preservação e acesso a fontes
humoradas como as citadas. É fundamental lembrar que, embora o humor seja
entendido como uma forma de desestruturar o poder, o seu uso é atravessado por
questões raciais e de gênero inegáveis. Os “gênios” do O Pasquim, um dos jornais mais
citados em livros didáticos de História quando o assunto é ditadura, ao mesmo tempo
que riam da ditadora, de ditadores, de torturadores e do poder, também eram racistas e
misóginos. Além disso, vale pontuar a dificuldade de acessar fontes humoradas
produzidas por mulheres, dada a política de preservação de acervos que as ignora.
Jornais brasileiros produzidos por mulheres como Nós Mulheres, Brasil Mulher e
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Mulherio, que circulavam na mesma época do O Pasquim, não foram preservados e


difundidos como este último. Tais jornais difundiram humor gráfico feminista, assinado
por mulheres (CRESCÊNCIO, 2019), que não é citado por livros didáticos de História.

Meias considerações

As fontes humoradas, o humor que as caracteriza, e mesmo sua preservação,


concedem pistas para compreendermos o que é importante na sociedade e na cultura,
uma vez que fornece as percepções culturais e visões de mundo mais profundas,
permitindo que entendamos modos de pensar e sentir (DRIESSEN, 2000).
Com sua essência organicamente didática, pois eram pensadas para se comunicar
com todas as pessoas, de diferentes idades, regiões e classes sociais, caricaturas, charges
e tiras assumem caráter duplamente didático na sala de aula de história, extrapolando os
aspectos mais básicos de uma fonte histórica, como informar, contextualizar, ilustrar tal
assunto ou tema, e seguindo na direção de ser meio de compreender formas de ser e
estar no mundo em diferentes tempos e contextos.
Fontes humoradas, mesmo quando utilizadas em sala de aula, raramente são
exploradas como elemento de discussão, reflexão e explicação histórica a partir do
humor, o que é uma enorme perda, pois estamos diante de significativo potencial
histórico para debater subjetividades que forjam e são forjadas pela forma de se
relacionar com o humor. Quando rimos? Com quem rimos? Por que rimos? De que e de
quem rimos?
Partindo da ideia que nossa relação com as imagens é emocional, podemos
pensar como nossa relação com o humor, e o humor em si, também o é. Dito isso, é
importante considerar que as “melhores” imagens/fontes visuais para o ensino de
história são as que causam alguma reação emocional, não porque aceitamos ficar na
superfície, mas porque é o passo primeiro para o desejo da investigação histórica útil do
ponto de vista político, histórico e cultural, ação possibilidade pela realidade própria
criada pelo humor (DRIESSEN, 2000). As fontes humoradas são documentos férteis
para o ensino de história e a discussão sobre fontes humoradas é uma proposta
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norteadora para estimular a criatividade e ampliar nossas possibilidades de trabalho com


fontes.

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