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Primeiras considerações
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Este texto foi produzido no âmbito do projeto "MANDONAS: memórias, políticas e
feminismos no Cone Sul (1980-2020)", financiado pelo CNPq, Processo nº Processo:
404662/2021-8.
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gráfico seja fonte frequente, levando ao questionamento: História, por que tão séria?2
Em decorrência deste questionamento inicial, proponho um debate sobre o potencial das
fontes humoradas para a História e seu ensino, tendo como enfoque o humor gráfico.
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Esta pesquisa foi realizada no âmbito do Programa de Iniciação Científica Voluntária da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), pela estudante Gabriela Alves Costa
Fernandes Ferreira, entre os anos de 2020 e 2021, sob minha orientação. Um dos resultados da
pesquisa foi publicado nos Anais do XV Encontro de História da ANPUH/MS, realizado em
2021, sob o título “Por que tão séria? Uma reflexão sobre humor e riso na Revista Brasileira de
História (1981-2020)”.
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Ainda que diante de uma clara ampliação da noção de documento, que atravessa
o século XX em direção ao XXI, com novos desafios de ordem digital, e marcada pela
WEB 2.0, os paradigmas do profissionalismo permancem, marcando a identidade
historiadora através de elementos como método, seminários e exame de documentos.
Não há História sem documentos, não se conta a história sem documentos e, embora
façamos algumas discussões em torno da ideia de documento, demonstrando
preocupação com o fato da palavra documento denotar evidência, prova (SALIBA,
2004), seguimos firmes na defesa deles como fundantes do saber histórico, o que inclui
também sua dimensão escolar, uma vez que o trabalho com fontes diversas em sala de
aula garante a predominância de métodos ativos e construtivistas (BITTENCOURT,
2008).
Marcada por esses paradigmas do século XIX, a história afirma-se como
reconstituição do passado e indica o documento escrito como fonte privilegiada na
momento de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Colégio
Pedro II. O primeiro construia a genealogia da nação, alimentando o Colégio com o que
deveria ou não ser ensinado em termos de História e fomentando enorme apreço pelos
documentos nas salas de aula de História (ABUD, 2004).
Os primeiros manuais e livros didáticos, que datam deste século, já lançavam
mão do uso de imagens, trechos de documentos oficiais, mapas e literatura, para
incentivar o amor à pátria e o culto a grandes heróis e feitos, visão que prevaleceu nas
primeiras décadas do século XX, mas com enfoque na construção da identidade
brasileira (CAIMI, 2008).
A renovação historiográfica européia dos anos 1930 foi também um momento de
renovação no tratamento das fontes nas salas de aula do ensino básico por aqui,
acompanhado da profissionalização de historiadores no Brasil, com a criação dos
primeiros cursos de História e a aprendizagem de teoria da história, método e técnicas
de pesquisa (MONTEIRO, 2007).
No Brasil, a História tornou-se científica também baseada na pesquisa
documental (CAIMI, 2008) e, apesar das discussões em torno da ampliação do leque de
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fontes, como séries, blogs, redes sociais, memes, fontes com as quais ainda não
sabemos lidar, mas que demandam reflexões teóricas e metodológicas tanto na pesquisa
quanto no ensino em história. Neste enorme arcabouço, proponho um debate sobre as
fontes humoradas, que enfatizem o embate, a desobediência e a contestação.
As fontes humoradas
De maneira geral, quaisquer das tipologias de fontes antes listadas podem fazer
uso do humor, já que o humor opera como recurso de comunicação que atravessa o
cinema, a literatura, a música. Mesmo a piada, cuja base existencial é o humor, pode ser
pensada como fonte e, portanto, no ensino de história. Aqui, no entanto, proponho uma
reflexão que enfoque num tipo de fonte humorada que marcou a imprensa no século
XIX e XX no Brasil, o humor gráfico, importante fonte, documento muito frequente em
livros didáticos, apostilas e exames nacionais e que desde a difusão da imprensa no
Brasil forjou a boa fama do humor brasileiro. Tal ênfase justifica-se, ainda, pelo fato
desse tipo de produção ter como marca fundamental o desejo do riso, não existindo sem
ele.
Foram as caricaturas, as charges e as tiras cômicas que construiram a conhecida
“jocosidade nacional”, em terra que o prazer e o riso emergiram como meio de
resistência (MARTINS, 2003). O humor gráfico, nesse sentido, afirma-se como fonte
humorada na medida em que não se firma apenas como um documento que usa o
humor, mas que tem sua existência precedida e condicionada pelo humor. Esta
especificidade conceitual combina uma série de desafios para este tipo de fontes: 1.
Integram a imprensa; 2. São uma articulação entre texto e imagem; 3. Operam
subjetividades e sensibilidades difíceis de captar. Seus desafios são, também, síntese de
sua potência para as aulas de história, sedentas por imagens e por uma forma de
comunicação dinâmica.
É fundamental sublinhar que o a produção humorística, de qualquer ordem, tem
como objetivo promover o riso, gesto que não necessariamente articula-se a um
contexto de diversão e alegria. Umberto Eco (2011) fala da tristeza como vetor do riso,
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Terry Eagleton (2020) aponta o riso como expressão de desespero, raiva, estado não
racional. Nesse sentido, caricaturas, charges, cartuns e tiras cômicas produzidas com o
intuito de pensar o Brasil, não necessariamente geram um riso divertido e satisfeito, este
riso, aponta Eco (2011), pode ser um riso de descoberta das injustiças. Trabalhar com
fontes humoradas no ensino de história, portanto, não implica uma forma mais leve de
tratar certas questões consideradas sensíveis ou difíceis, porque isso não
necessariamente acontece. Uma charge que ironiza a naturalidade com que torturadores
atuavam no contexto da ditadura brasileira, por exemplo, não elimina a violência e o
incômodo de tal acontecimento.
As fontes humoradas, para além de serem atrativas e sedutoras, informam,
comunicam e permitem analisar o lugar da subversão e da transgressão na História,
mostrando que a História é feita de embates complexos, que não envolvem dicotomias
simplistas, como a relação dominador e dominado. O humor, como meio de desafiar a
ordem e a autoridade, permite debater sobre a história de maneira complexa, escapando
das reduções e dando ênfase a rupturas e permanências que derivam de disputas, além
de causar identificação muito produtiva com crianças e jovens, ainda
desconhecedores(as) das normas. A emergência de certos tipos de fontes humoradas e
seu caráter sempre contestário, informam sobre com quem elas se comunicavam, sobre
realidades locais, sobre sentimentos e visões de mundo. Não são mera fonte de
informação ou apenas passíveis de interpretação, pois pontuam tensões, críticas,
descontentamentos e, ainda, o que o humor significa em determinado tempo e lugar. As
fontes humoradas, ainda, tem triplo sentido didático. Primeiro porque o uso de recursos
visuais tem a clara intenção de fazer-se entender por todas as pessoas; segundo porque
na combinação entre texto e imagem, no geral muito simples, contribui de maneira
direta para o trabalho com crianças e jovens; terceiro porque carrega consigo uma
característica importante para pensar as fontes históricas, seu caráter de construção. No
uso do exagero, do grostesto, da sátira, da provocação, as fontes humoradas não deixam
dúvida que são produto da imaginação e da criação, questionando de saída o possível
status de verdade que integra as fontes na sala de aula.
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Alberto Manguel (2001) afirma que as imagens, assim como as palavras, são a
matéria com a qual somos feitos. Nesse sentido, para além de olhar as imagens, é
preciso que a gente aprenda a lê-las, entendê-las e relacioná-las com o mundo que as
cerca, exatamente por sua capacidade de marcar nossas memórias. Lemos um texto e o
esquecemos, não lembramos em detalhe, já uma imagem, se muito repetida, fica
cravada em nossa mente. Como leitores(as) de imagens conferimos a ela uma vida
infinita e inesgotável.
[...] vasculhar usos de imagens não como ilustrações, mas como documentos
que, assim como os demais, constroem modelos e concepções. Nao como
reflexo, mas como produção de representações, costumes, percepções, e não
como imagens fixas e presas a determinados temas ou contextos, mas como
elementos que circulam, interpelam, negociam (SCHWARCZ, 2014, p. 393).
Meias considerações
Bibliografia
BARRECA, Regina. They used to call me snow white... but I drifted. Women’s
strategie use of humor. Penguin Book’s: USA, 1991.
DELIGNE, Allan. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo? In:
LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 29-46
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FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, Lda. 1989.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Rio de Janeiro,
Editora Companhia das Letras: 2001.
MARTINS, Ana Luiza. Desenho, letra e humor: tópicos de um percurso. In: MATTAR,
Denise (curadora). Traço, Humor e Cia. São Paulo: Fundação Armando Alvares
Penteado, 2003. p. 29-67.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos
naturais. Sociologia & Antropologia. Rio de janeiro, v. 04.02: p. 391-431, out. de
2014.
SILVA, Cristiani Bereta da. O saber histórico escolar sobre as mulheres e relações de
gênero nos livros didáticos de história. Caderno Espaço feminino. Uberlância, v. 17,
pp. 219-246, 2007.
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