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entre sujeitos livres que se governam a si mesmos e são governados por outros sujeitos.
Como filósofo que trabalhou com o olhar de epistemólogo a História, sua contribuição tem
sido explorada em pesquisas que examinam as relações discursivas em seu caráter de
instituidoras de realidades sociais e históricas, bem como as questões sobre o conceito de
autoria. Sem reduzir o autor a uma função, Foucault (1992, p. 46) examinou a função autor
como resultado de uma série de operações específicas e complexas e que caracteriza “o
modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior da
sociedade”.
Por outro lado, adverte Prost (1996, p. 312), “as maneiras de falar não são
inocentes; para além de sua aparente neutralidade, revelam estruturas mentais, maneiras de
perceber e de organizar a realidade denominando-a. A aproximação dos historiadores com
os procedimentos lingüísticos, embora complexa, dada a dificuldade extra colocada no
tratamento histórico dos textos, pode ser de grande interesse para o historiador, na medida
em que o interesse se desloca para o como os textos dizem e não apenas sobre o que.
A metodologia da pesquisa fundamentou-se nesses pressupostos e com o apoio
teórico de uma noção mais ampla de contexto, que sugere haver lugar para um contexto
fora do texto e indica uma tensão texto/contexto. Segundo Moscateli (2003, p. 59), “texto
refere-se ao “objeto” resultante do exercício da escrita de um autor, isto é, como o conjunto
de suas palavras configurado em um dado suporte”, ao passo que o termo discurso refere-se
à “mensagem”, isto é, ao conjunto de enunciados emitidos pelo autor e transmitidos por
meio de seu(s) texto(s).
Este trabalho confere especial atenção aos conceitos que se referem aos atores
coletivos - os intelectuais como professores/autores - e aos processos que emergem das
relações sociais, como circulação de saberes e sociabilidade.
Os professores/autores são investigados a partir de suas trajetórias individuais e
sociais, com especial atenção à formação, carreira docente produção escrita de livros para o
ensino. Nos referenciais da pesquisa interferem, portanto, os estudos sobre o papel do livro
na configuração da cultura escolar e sua inserção na história da cultura letrada em nosso
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país. Nesse período a produção de livros didáticos teve por autores intelectuais de projeção
na vida política e cultural da cidade e que publicavam livros e artigos na imprensa, além de
exercerem o magistério em instituições de ensino secundário e superior.
Burke (2003) em História social do conhecimento observa que na Europa a segunda
metade do século XIX foi momento chave para a consolidação dos intelectuais como grupo.
Escritores, críticos, historiadores, jornalistas, bibliotecários, professores, formavam redes
de sociabilidade através das bibliotecas, livrarias, associações científicas, culturais e
literárias, intercâmbio de idéias na imprensa e por correspondências. Esses letrados, por
suas ações e modos de convivência construíram, em comum, certas características
indissoluvelmente ligadas à identidade do grupo, embora com diferenciações e conflitos no
seu interior, mas que acabaram servindo para reforçar as solidariedades e vínculos sociais.
Além disso, eram estreitamente associados a certa independência na realização das suas
atividades e à noção de liberdade na expressão de suas posições intelectuais e políticas,
como letrados e homens de saber. Na Enciclopédia, um verbete sobre Gens de lettres
afirmava que o grupo dos letrados não era formado por especialistas estritos, mas pessoas
“capazes de abordar diferentes campos ainda que não possam cultivá-los em sua totalidade”
(BURKE, 2003, p. 33). Uma expressão que remonta ao século XV e que passou a ser cada
vez mais utilizada de meados do século XVII em diante para autodefinição dos homens de
saber foi a de “cidadãos da República das Letras”.
Na França, o termo intellectuel, provavelmente em uso em círculos literários e
políticos só teve sua oficialização de nascimento em 1898, no célebre Manifeste des
intellectuels, tendo em vista o caso Dreyfus. Uma característica ligada ao perfil do
intelectual que se fortaleceu daí em diante foi o uso da retórica e seu prestígio social para
tomadas de posição sobre as questões sociais do seu tempo e a defesa de valores universais
como a verdade e a justiça (MARLETTI, 1993).
Nesse período também se tornou visível um grupo que reunia as pessoas cultas da
Corte e da província do Rio de janeiro, formado principalmente bacharéis, jurisconsultos, e
médicos, sendo que muitos deles exerciam o magistério secundário e superior. Além disso,
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esse grupo era atuante na imprensa literária, em jornais e revistas, publicando artigos de
crítica, poesias, ensaios e outros escritos, muitos depois editados em livros. Essas práticas
contribuíam na formação de opinião dos seus contemporâneos letrados, o que fortalece a
importância dessas fontes para iluminar o quadro sociocultural do período
(GASPARELLO; VILLELA, 2004).
José Murilo de Carvalho (2003, p. 34) observou que os traços comuns a uma elite
política e intelectual brasileira do século XIX serviram para garantir sucesso na tarefa de
formação do Estado: “uma elite homogênea possui um projeto comum e age de modo
coeso”. Para o autor, esses traços comuns resultaram de um conjunto de aspectos, não
apenas da origem social. Um papel importante seria exercido pela socialização,
treinamento e carreira. 4
A educação superior foi um elemento poderoso na unificação da elite imperial, uma
vez que quase toda a elite possuía estudos superiores. O abismo entre essa elite e o grosso
da população em termos educacionais era notório, na medida em que era baixíssimo o
índice de população alfabetizada. Segundo Carvalho (2003, p. 65) “era uma ilha de letrados
num mar de analfabetos”: até 1920; os analfabetos representavam 76% da população total. 5
Nesse contexto, a educação era a marca distintiva da elite no Brasil imperial e o
caráter dessa educação era a cultura humanística e de base retórica (GASPARELLO, 2004).
Outro aspecto de uniformização era que a educação superior se concentrava na formação
jurídica, o que caracterizava um grupo homogêneo em conhecimentos e habilidades. Além
disso, essa educação se concentrava, até a Independência, na Universidade de Coimbra e
após essa época, em apenas quatro capitais provinciais, sendo duas as de formação jurídica
(São Paulo e Recife):
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O conceito de sociabilidade
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perspectivas de tal abordagem (MOREL, 2001). O que Agulhon propunha então não era
mais o tratamento quase intuitivo ou impressionista, e sim o conhecimento das
sociabilidades pela densidade da existência de associações constituídas e suas mutações
num quadro geográfico e cronológico delimitado.
Os membros desse grupo tinham como principal afinidade o interesse pelo livro –
que incluía sua leitura, aquisição e possível formação gradual de bibliotecas – eram
“representantes ativos da cidade das letras”, e escolhiam lugares de convivência para
encontros “relativamente informais”, como livrarias, bibliotecas, cafés e jornais, para
conversar e discutir sobre temas de sua preferência (Bessone, 1999, p. 19). Trocavam, entre
si, freqüentes correspondências, que também serviam para fortalecer as relações de amizade
que, como redes de solidariedade, identificavam-se mutuamente e garantiam nomeações e
funções de prestígio. 12
A cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX já contava com um número
significativo de livrarias e bibliotecas, freqüentadas pela população letrada que formava o
círculo de leitores. Bessone (1999, p. 27) indica que a composição desse grupo era bastante
eclético:
A caracterização desse grupo de intelectuais é de interesse para este estudo, que leva
em conta a participação dos atores/autores intelectuais professores no processo de
construção de obras didáticas para o ensino de História no CPII.
A categoria socioprofissional dos professores, não revelada no levantamento de
Bessone (1999), está, no entanto, representada implicitamente, devido à presença de
pessoas dessas profissões na composição do grupo de docentes do Colégio. Numa época em
que não havia instituições formadoras de professores para o ensino secundário, a função
docente foi exercida por pessoas de diversas profissões e interesses, mas que possuíam uma
afinidade – eram pessoas letradas – o mundo que as unia era o mundo dos livros - como
escritores, jornalistas e autores de livros didáticos.
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Neste jornal, entre janeiro de 1861 e fevereiro de 1862, Macedo redigiu inúmeras
crônicas, consolidando a coluna denominada Crônica da Semana.
A publicação de Lições de Historia do Brazil em 1861, inaugurou uma fase da
produção didática de cunho imperial, devido principalmente ao caráter de história oficial e
monarquista, dedicado aos alunos do Imperial Colégio de Pedro II, instituição oficial do
ensino secundário, cujos compêndios indicavam, na capa, o lugar social do autor – o
Colégio -, e o dos destinatários GASPARELLO, 2004). Esse momento da produção de
compêndios de História do Brasil para o ensino secundário caracterizou-se por
corresponder, no ensino, ao projeto de nação legitimado por uma instituição - o Instituto
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Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e identificado a uma obra - a História Geral
do Brasil, de Varnhagen (1854).
Em seus livros didáticos, Macedo (1861) expõe as bases de um método de ensino,
para ser seguido pelos professores e alunos. Resumia esse método em passos necessários à
aprendizagem e eram destacados como explicações, perguntas e quadros sinóticos anexos
às lições. Nesses, eram indicados os personagens, atributos, feitos e acontecimentos.
A preocupação pedagógica resultava da experiência docente. No prefácio, o autor
explicitava sua concepção sobre a necessidade de um ensino que levasse em conta a
compreensão do que estava sendo memorizado. A pedagogia da memória, do saber “de
cor” continua na proposta macediana, mas o autor distingue entre decorar sem nexo e
compreender o que está memorizando:
(...) Um menino que tem decorado uma lição nem por isso sabe a lição;
para que a saiba é indispensável que compreenda o que exprimem, o que
significam as palavras que repete de cor; por esta razão anexamos no
nosso compendio a cada lição algumas explicações, que o professor deve
completar ajuntando a essas tantas outras quantas forem necessárias.
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foram sendo incorporados aos livros didáticos dos professores/autores sensibilizados com
as questões do seu tempo, como Gasparello (2004, p. 133) chamou a atenção:
Considerações finais
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Notas
1
Este trabalho resulta de pesquisa desenvolvida no Grupo de Pesquisa História da Educação e Ensino de
História: Saberes e Práticas (GRUPHESP) da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
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Trata-se da pesquisa “O nascimento de uma pedagogia: professores e intelectuais brasileiros na construção
de uma nova escola” que conta com o importante apoio financeiro da FAPERJ e de Bolsas de Iniciação
Científica. Neste trabalho foi fundamental a participação das alunas Fernanda Nascimento Crespo bolsista
PIBIC/CNPq e Raphaela de Almeida Santos, bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ.
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Para a história dos livros e do livro didático, cf. Chartier (1990), Hallewel (1985); Carvalho (1998); Darnton
(1990), Choppin (1992; 2004), Bittencourt (1993), Munakata (1997); Gasparello (2004).
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“Foi o caso das elites burocráticas que, mesmo se não recrutadas em setores homogêneos da população,
desenvolviam pela educação, treinamento e carreira características que as levavam a agir coesamente”
(CARVALHO, 2003, p. 35).
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Na década de 1870, apenas 18,36% da população livre eram alfabetizados, sendo que 23% homens e 13%
mulheres (CARVALHO, 2003, p. 80).
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Para o autor, “essa transposição de um grupo dirigente teve talvez maior importância que a transposição da
própria Corte portuguesa e foi fenômeno único na América” (CARVALHO, 2003, p. 37).
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Além da Universidade de Coimbra, duas outras instituições de ensino foram importantes na formação da
elite intelectual brasileira: a Real Academia de Marinha e o Colégio dos Nobres. A finalidade do Colégio era
fornecer aos filhos da nobreza uma alternativa para o serviço do Estado que não fossem as carreiras
eclesiástica e judiciária (Cf. CARVALHO, 2003).
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Como é sabido, o governo português seguiu uma política de nunca permitir a instalação de estabelecimentos
de ensino superior nas colônias., em contraste com a política do governo de Espanha, que permitiu desde o
início da colonização a criação de universidades em suas colônias (Cf. dentre outros, CARVALHO, 2003).
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Para a história do Colégio Pedro II e o ensino secundário, cf. Haidar, (1972), Andrade (1999), Gasparello
(2004).
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Ao todo, foram pesquisados 78 sujeitos, sendo 28 da Escola Normal e 50 do Colégio. Foram então obtidos
dados mais completos para este trabalho relativos a 53 docentes (16 da Escola Normal e 37 do Colégio Pedro
II). (Cf. GASPARELLO; VILLELA, 2005).
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Para uma discussão contemporânea do conceito de sociedade civil, cf. Semeraro, 2001.
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Edmundo (1938, p. 708), refere-se aos que frequentavam as livrarias no final do Império e início da
República: “Vários são os grupos que na loja se formam, na hora de maior movimento, aí pelas 4, 5 e 6 da
tarde. Há o grupo de Machado de Assis, com José Veríssimo, Silvio Romero Joaquim Nabuco, Rui (às vezes),
Bilac, Medeiros de albuquerque, Araripe Júnior, Rodrigo Otávio, Mário de Alencar e Clóvis Beviláqua; são
os grossões da Academia que em geral, formam junto à escrivaninha do Jacintho. João Ribeiro que, nesse
tempo, ainda não é acadêmico, forma grupo de Pedro Couto e Fábio Luz, com Rocha Pombo, Gustavo
Santiago, Pantoja... Sabe-se de quem vá ao Garnier, como a uma feira de curiosidades, só para conhecer de
visu os nossos autores”.
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Na época, o termo mais usual no Brasil era compêndio; no século XX, firmou-se o uso da expressão livro
didático, que engloba toda a produção que se destina ao ensino. Sobre livro didático e historiografia didática,
ver dentre outros, Bittencourt, (1993); Choppin (1991; 1992); Munakata, 1997; Johnsen (1996); Gasparello
(2004).
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Nessa Revista, editada entre os anos de 1850 e 1855, apareceu grande parte do seu poema-romance A
Nebulosa, que alguns críticos consideram um dos melhores do Romantismo. A revista contribuiu para a
consolidação do intuito maior do projeto romântico que era o de criar uma identidade nacional brasileira, além
de toda a gama temática da primeira geração de poetas (BLAKE, 1970).
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A contribuição do IHGB aos estudos históricos e geográficos é reconhecida em numerosos estudos, que
analisam como o projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada, articulado ao processo de
consolidação do Estado-nação (GUIMARÃES, M. L. S., 1988; GUIMARÃES, L. M. P., 1995).
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