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UMA GRANDE ESTRÉIA

Álvaro Lins - Jornal Correio da Manhã, 12/4/1946

PARA AQUELE que tem a obrigação profissional da crítica literária, sentindo muitas vezes
esse gosto morno da rotina que vem do contato com figuras já muito conhecidas ou com
obras de estréia sem qualquer novidade, nenhuma outra sensação - porque ela vale como
um despertar, como um estímulo, como motivo para que se mantenha a fé nas faculdades
criadoras de sua época intelectual - poderá ser comparada a esta de comunicar ao público
a presença de um livro inconfundível na literatura e de um autor de autêntica personalidade
na vida literária. E isto sem qualquer dúvida ou temor de errar, antes com a certeza de que
nos achamos completamente fora do terreno oscilante da mediania e dos mais ou menos,
colocados em face de um excepcional acontecimento. Tudo se processa, aliás, bem
rapidamente. Não se conhece até certo dia um determinado autor, pois que ele nada então
publicou de sua obra; não se espera o seu livro, pois o destino de um livro de estréia, como
de resto o de qualquer livro, nunca pode ser esperado ou previsto. De repente chega-nos o
volume, e é uma grande obra que amplia o território cultural de uma literatura, que lhe
acrescenta alguma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo tempo que um nome de
escritor, até ontem ignorado do público, penetra ruidosamente na vida literária para ocupar
desde logo um dos seus primeiros lugares. O livro é Sagarana e o escritor é o sr. J.
Guimarães Rosa.

O escritor apresenta uma autêntica personalidade de artista e o seu livro tem a verdadeira
estrutura da criação ficcionista. Nada existe aqui a expor vacilações, deficiências, incertezas
ou puerilidades de estreante. Nem o autor é um inquieto adolescente, nem a sua obra é
uma improvisação ou o resultado de algum entusiasmo momentâneo. Estamos diante de
uma vocação de escritor que se experimentou em meditação e aprendizado técnico, de uma
obra intensamente sentida e longamente trabalhada. Pelos assuntos e pelo material da
construção ficcionista, pela abundância documental, pelo estilo de artista, pela riqueza e
pela ciência do vocabulário, pela capacidade descritiva e pela densidade das situações
dramáticas, seria impossível classificar Sagarana como obra de principiante, e do seu autor,
com efeito, ela transmite a impressão de alguém que já se encontra no completo domínio
dos recursos literários e com uma requintada experiência pessoal da arte de ficção.

Não quis o sr. Guimarães Rosa classificar Sagarana como um grupo de novelas ou de
contos. Antes, um conjunto de histórias - formalmente novelas - com uma tal unidade, com
tal ligação subterrânea e substancial entre elas, que logo compreendemos por que preferiu
apresentá-las como um livro apenas dividido em nove capítulos. Cada um deles constitui
sem dúvida uma novela independente, com um enredo particular, mas se articulam em
bloco como se simbolizassem o panorama de uma região. E Sagarana vem a ser
precisamente isto: o retrato físico, psicológico e sociológico de uma região do interior de
Minas Gerais, através de histórias, personagens, costumes e paisagens, vistos ou recriados
sob a forma da arte da ficção. Aliás, não será fundamental saber-se com rigor o que nestas
páginas é realidade objetiva e o que é realidade imaginada. A parte documental encontra-se
nas descrições, no registro dos costumes, na fidelidade à linguagem popular fixada através
dos diálogos; a imaginação, na capacidade poética de animar artisticamente o real, no
poder de criar personagens e crises dramáticas no desenvolvimento do enredo, dando uma
configuração estética ao que era antes tosco e bárbaro. As nove histórias de Sagarana são
como faces distintas, ajuntadas rigorosamente para a composição de uma fisionomia
coletiva, que é a de uma região de Minas Gerais, mas também representativa, em grande
parte de todo o Brasil do interior, tão diferente do litoral e tão desconhecido como se fosse
um país estrangeiro. Sabe-se que o sr. Guimarães Rosa nasceu e viveu durante muitos
anos nessa região, inclusive como médico da roça, e pelo seu livro verificamos com que
intensidade de sentimento e imaginação ele se fundiu com o espírito da sua terra, com que
sensível poder de comunicação ele trouxe para dentro de si mesmo o mundo de gentes, de
bichos, de natureza física, ao qual se ligou profundamente na juventude. Mas o valor dessa
obra provém principalmente da circunstância de não ter o seu autor ficado prisioneiro do
regionalismo, o que o teria conduzido ao convencional regionalismo literário, a estreita
literatura das reproduções fotográficas, ao elementar caipirismo do pitoresco exterior e do
simplesmente descritivo. Ele apresenta o mundo regional com um espírito universal de autor
que tem a experiência da cultura altamente requintada e intelectualizada, transfigurando o
material da memória com as potências criadoras e artísticas da imaginação, trabalhando
com um ágil, seguro, elegante e nobre instrumento de estilo.

Em Sagarana temos assim um regionalismo com o processo da estilização, que se coloca


portanto na linha do que, a meu ver, deveria ser o ideal da literatura brasileira na feição
regionalista: a temática nacional numa expressão universal, o mundo ainda bárbaro e
informe do interior valorizado por uma técnica aristocrática de representação estética.

Não tendo, por outro lado, qualquer preocupação política ou ideológica, o sr. Guimarães
Rosa permaneceu a igual distância do otimismo e do pessimismo, observando as situações
humanas com natural disponibilidade, com uma espécie de virgindade de espírito, que lhe
amplia a visão em profundidade. Visão que não está deformada por nenhum preconceito ou
partipris, nem mesmo por qualquer sentimento apaixonado. A sua participação sentimental
na arte da criação literária só se opera através de uma generalizada simpatia, de uma
indulgente e às vezes irônica compreensão, formada na base do ceticismo e da experiência
humana. E estes movimentos sentimentais do sr. Guimarães Rosa aproveitam ainda mais
aos bichos do que aos homens. São bichos os personagens mais comoventes, mais
simpáticos e mais bem tratados de Sagarana. Há duas novelas especialmente de bichos, "O
burrinho pedrês" e "Conversa de bois", mas também em todas as outras, misturados com as
pessoas e às vezes influindo no destino delas, aparecem bois, cavalos, burros, cachorros e
aves. E nesse dom de tratar os bichos como personagens, de dar-lhes vitalidade e
verossimilhança na representação literária, está uma das faculdades mais originais e
poderosas da arte do sr. Guimarães Rosa. Não vamos dizer que ele transmite humanidade
aos bichos, pois isso seria descaracterizá-los pelo artifício, seria torná-los seres híbridos e
absurdos. Os animais dessas admiráveis histórias de Sagarana, os bois como o burrinho
pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e histórias da
carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da intuição, que eles o fariam se
realmente pensassem e agissem racionalmente. Era como se o autor se transportasse para
dentro dos bichos, não para lhes transmitir a sua própria
personalidade, mas para interpretar e exprimir a imaginada vida interior deles.

História de um bicho, aliás, é a novela da minha preferência neste livro, "O burrinho pedrês",
que me parece uma autêntica obra-prima, não sendo embora a única obra-prima, no sentido
de obra completa e perfeita em si mesma, que se encontra em Sagarana, onde indicaria,
com a mesma categoria, peças como "Duelo", "Conversa de bois", e "A hora e vez de
Augusto Matraga". E o que valoriza "O burrinho pedrês", é menos o enredo do que a
construção literária, a estrutura da concepção e a amplitude da realização. Verifica-se
nestas páginas, como em tantas outras, que o feitio de autor do sr. Guimarães Rosa é ainda
máis o do romancista do que o do contista ou mesmo do novelista. Nesta novela, com que
se abre Sagarana, ele está operando evidentemente com a técnica do romance, ampliando
os quadros e inserindo várias pequenas histórias no desenvolvimento da história geral. Há
aqui páginas de um surpreendente relevo, que se podem destacar para uma leitura
independente, como a marcha da boiada, o episódio do touro que mata inesperadamente o
seu dono, a patética narração da tristeza do negrinho e dos bois transportados do seu solo,
além da descrição das paisagens, dos elementos da natureza, plantas e águas que
parecem ao alcance dos nossos olhos tal o vigor, o colorido, o intenso realismo com que
são apresentados. Com a mão segura e hábil, o sr. Guimarães Rosa propositadamente
retarda o desfecho, opera uma espécie de cruzamento ou desdobramento de linhas, com
alguns episódios isolados a levarem o leitor a ângulos diferentes, e tudo com o fim de
colocá-los de repente em face da grande cena final, a do afogamento dos vaqueiros no rio,
quando a novela encontra o seu desfecho "porque a história de um burrinho, como a história
de um homem, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida". Em "Conversa de bois" -
igualmente perfeito como concepção ficcionista e como arte literária - cruzam-se os bois e
os homens como num contraste que se prolonga até o fim, apresentando o autor
alternadamente os diálogos dos homens e os diálogos dos bois. Revela-se aqui uma
espécie de filosofia dos bois, uma síntese do que pensam da vida e dos homens. Eles não
se movimentam nestas páginas como elementos acessórios ou completivos, mas como
verdadeiros personagens, aos quais o seu criador amplamente concedeu vibração vital e
direção autônoma. "A hora e vez de Augusto Matraga" destaca-se principalmente pela arte
da ficção. Como novela em si mesma, como elaboração e construção novelística,
representa sem dúvida a peça melhor realizada do livro, a que tem uma vida mais completa
e independente em si mesma. Dela, sob este aspecto, só se aproxima "Duelo", em que a
um enredo sugestivo e apaixonante se junta a revelação do caráter de uma região, com a
indicação de costumes e diálogos realmente definidores. E isto acontece apenas no juízo
dos que têm o gosto da análise e da discriminação, pois será difícil e até arbitrário
estabelecer qualquer hierarquia diante da unidade de condições com que se apresentam as
quatro principais histórias de Sagarana, precisamente aquelas que foram acima citadas.

Há outras novelas, porém, que não são da mesma significação, nem estão na mesma
altura. Embora menos afirmativas como ficção por uma certa fragilidade na ação novelística
- "Sarapalha", "Minha gente", "São Marcos" e "Corpo fechado" - ficam valorizadas, no
entanto, através de algumas páginas descritivas, ou caracterizadoras como fixação de
costumes e episódios isolados, ou, em cada uma delas, através de algum aspecto marcante
da vida regional. Em "Sarapalha", por exemplo, é a doença da maleita, com a espantosa
miséria física e psicológica em que ela transforma os seres humanos; em "Corpo fechado" é
a crônica dos valentões do interior, a superioridade bárbara dos que dominam pelo terror,
com absoluta indiferença às autoridades e às leis; em "São Marcos" é o fenômeno primitivo
da feitiçaria, com uma descrição da natureza, tão monumental nas proporções e tão
orquestral no jogo dos vocábulos, que logo faz lembrar, involuntariamente, a maneira
euclidiana. O capítulo mais frágil do livro é "Minha gente", com um caso de amor colocado
em termos de precário e pouco convincente sentimentalismo. Bastante diferente das outras,
com um espírito particular, é a novela "A volta do marido pródigo", construída num tom mais
leve, exprimindo o espírito de malandragem do curioso personagem Lalino Salãthiel, com a
oportunidade para o àutor de empregar alguns dos seus dons de ironia e malícia, que são
tipicamente mineiros.

Contos, novelas, histórias, estes capítulos de Sagarana? Antes de tudo, são rapsódias,
cantos em grande forma que trazem no seu seio a representação poética do espírito e da
realidade de uma região. Os homens e os seus dramas, os bichos e os seus movimentos, a
natureza e as suas cores - é um pequeno mundo que se levanta diante de nós, em todo o
seu esplendor de vida e circulação, depois de recriado pelas forças da memória e da
imaginação de um artista não só generosamente dotado pela inspiração involuntária, mas
igualmente consciente do seu papel. Por isso, ao lado das realizações propriamente
poéticas de criação, Sagarana apresenta um vasto material documentário, folclórico e
sociológico, já agora imprescindível para o conhecimento, mesmo científico, do interior de
Minas Gerais. E isto acontece porque a faculdade de escritor mais aguda e mais
desenvolvida no sr. Guimarães Rosa é a visualidade. Do que viu, ele soube conservar pela
memória e conseguiu transfigurar pela imaginação, não só os aspectos de maior relevo,
mas também os detalhes, as nuanças, os segredos, as pequenas coisas, às vezes mais
definidoras e caracterizadoras do que as grandes, aquelas que escapam em geral aos que
não têm o dom da visão sensível e penetrante, especialmente destinada a um fim estético.
E a arte da ficção se completa em Sagarana com a arte estilística do escritor. O estilo tenso
do sr. Guimarães Rosa, e em certas ocasiões até de sabor arcaico ou pouco brasileiro na
sintaxe, tem, em geral, flexibilidade, elegância e bom gosto, tanto na parte direta do autor
quanto na parte indireta dos diálogos de personagens.
Sinto que, depois de me exprimir dessa maneira tão entusiasta e por mim bem pouco
utilizada, deveria citar alguns trechos como documentação, mas não desejo, por outro lado,
deixar o leitor sem o gosto de percorrer as páginas de Sagarana, da primeira à última, com
uma sensação de surpresa e descobrimento, prazer de leitura que não se compara com
qualquer outro. É possível que mais tarde, com as impressões já revistas e ordenadas, volte
a me ocupar desta obra com mais espírito crítico, isto é: com maiores recursos de análise e
interpretação. Agora, a propósito da estréia do sr. Guimarães Rosa, o que desejo
principalmente é anunciar ao público a presença, na literatura brasileira, de um novo grande
livro, e saudar, no autor de Sagarana, o companheiro que entra na vida literária com o valor
de um mestre na arte de ficção.

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