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UNIFAI

CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO

MIGUEL TEIXEIRA MOMBELI

A TEORIA MIMÉTICA E A ANTROPOLOGIA DOS EVANGELHOS:


UMA EXPOSIÇÃO DO PENSAMENTO DE RENÉ GIRARD

São Paulo, SP
2020
2

MIGUEL TEIXEIRA MOMBELI

A TEORIA MIMÉTICA E A ANTROPOLOGIA DOS EVANGELHOS:


UMA EXPOSIÇÃO DO PENSAMENTO DE RENÉ GIRARD

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao curso de Filosofia, da
UNIFAI – Centro Universitário Assunção,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Bacharel em Filosofia.

ORIENTADOR: Profº Ms. Ivanir Signorini

São Paulo, SP
2020
3

MIGUEL TEIXEIRA MOMBELI

A TEORIA MIMÉTICA E A ANTROPOLOGIA DOS EVANGELHOS:


UMA EXPOSIÇÃO DO PENSAMENTO DE RENÉ GIRARD

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao curso de Filosofia, da
UNIFAI – Centro Universitário Assunção,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Bacharel em Filosofia.

Aprovado em: ______ /______/______

Profº. Ms. Ivanir Signorini


Orientador
Centro Universitário Assunção – UNIFAI

São Paulo, novembro de 2020


4

De maneira especial dedico este trabalho


à minha família e a Deus. De forma
particular, à minha comunidade
neocatecumenal que rezou por mim
durante o decorrer do presente trabalho.
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, pelo dom da vida e por me proporcionar


chegar à conclusão da presente monografia.
Ao Professor Ms. Ivanir Signorini pela dedicação e atenção nas orientações e
pela cooperação no desenvolvimento deste trabalho conclusivo, fornecendo
conselhos e dando todo o amparo necessário para findar o presente estudo.
Ao meu reitor Pe. José Francisco Vitta, por todo o apoio e encorajamento
constantes durante o decurso deste trabalho. De igual maneira sou grato ao meu
Diretor Espiritual, Pe. León Enrique Vicedo, que me acompanhou nos momentos de
dificuldade.
A todos os meus companheiros seminaristas que me auxiliaram na
elaboração do trabalho.
A toda minha família e, de modo especial, à minha querida comunidade
neocatecumenal, que por meio das suas orações, possibilitaram chegar ao final
deste projeto.
6

MOMBELI, Miguel Teixeira. A TEORIA MIMÉTICA E A ANTROPOLOGIA


DOS EVANGELHOS: UMA EXPOSIÇÃO DO PENSAMENTO DO RENÉ
GIRARD [Trabalho de conclusão de curso]. São Paulo: UNIFAI – Centro
Universitário Assunção; 2020.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo, discorrer acerca da filosofia do contemporâneo


René Girard. Fundando sua teoria na crítica literária encontra aí uma sólida teoria
filosófica, uma vez que a literatura (para ele especialmente a romântica) é um retrato
da vida humana. O homem é um ser mimético por natureza, deste modo sempre
imita a alguém. E em certo momento passa a imitar os desejos daquele indivíduo,
criando uma rivalidade mimética. Toda esta tensão precisa ser expurgada de algum
modo, desta forma a sociedade elege um bode expiatório para ser sacrificado e
reestabelecer o bem estar social. Isso gera um ciclo vicioso de violência que
permeia o ser humano deste os tempos mais antigos. Neste contexto surge a
Revelação cristã que abrolha como novo horizonte para a vida do homem e
escancara o mecanismo violento.

Palavras-chave: Mimesis. Antropologia. Rivalidade. Violência. Revelação.


Evangelho.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 7
CAPÍTULO 1 – A TEORIA MIMÉTICA ....................................................................... 9
1.1 A ciência explica a literatura e a literatura explica a vida ............................ 9

1.2 O desejo mimético ......................................................................................... 13

1.3 Do desejo à violência..................................................................................... 16

CAPÍTULO 2 – O MECANISMO VITIMÁRIO E A ORIGEM DA CULTURA ............. 18


2.1 Contexto histórico do conceito “Bode Expiatório” .................................... 18

2.2 O mecanismo vitimário.................................................................................. 20

2.3 Os mitos e os ritos ......................................................................................... 22

2.4 O sacrifício ..................................................................................................... 25

CAPÍTULO 3 – A NOVIDADE EVANGÉLICA NA ANTROPOLOGIA GIRARDIANA


.................................................................................................................................. 28
3.1 O termo “violência” na narrativa bíblica ...................................................... 28

3.2 A paixão e a Revelação como chaves hermenêuticas................................ 31

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 36
7

INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso tem como principal objetivo


apresentar os principais aspectos do pensamento filosófico do franco-americano
René Girard (1923-2015). René Noël Théophile Girard foi historiador, crítico literário,
antropólogo, filósofo, teólogo, sociólogo e filólogo francês. Um pensador bastante
completo, que bebendo da fonte dos clássicos, funda sua teoria baseando-se no
conceito de homem mimético e na Revelação cristã.
A filosofia clássica buscava entender o mundo, a origem de tudo, de onde
viemos e para onde vamos a partir de uma verdade determinada, que se torna um
modelo de configuração do homem como um todo.
Futuramente no período medieval e cercado de um contexto teocêntrico, onde
Deus é o centro e a verdade de todas as coisas, e é transmitido pela herança dos
santos padres da igreja, o homem buscou dar respostas sobre sua contingência,
fundamentando a fé cristã na Tradição da Igreja, no Magistério e na Revelação.
Na Idade Moderna, com fenômenos como o iluminismo e a Revolução
francesa, Deus sai do centro do pensamento e dando lugar ao homem, o transforma
no centro de seu horizonte, teorizando o antropocentrismo, onde os princípios do
conhecimento se fundam na própria experiência interna deixando de lado as
verdades externas a ele. Neste momento foram criados movimentos como o
empirismo, racionalismo, idealismo, entre outros; onde o progresso toma seu lugar
importante a partir do conhecimento do próprio homem.
Já na época contemporânea a partir dos pais da suspeita, Nietzsche, Freud e
Marx, vão colocar as bases de toda a tradição clássica e a época medieval em
“xeque”, colocando como pressupostos a projeção do pai, o humanismo capitalista e
a destruição da ideia de Deus por completo.
Finalmente René Girard, que se cubica no contexto da época contemporânea,
vai analisar esse período da contemporaneidade com um olhar crítico e
desenvolverá sua filosofia no campo da crítica literária, da sociologia e da
antropologia.
Desta maneira o primeiro capítulo tratará de “pincelar” as principais bases do
pensamento girardiano, as influências dos grandes clássicos que ajudaram a
8

teorizar o conceito de mimesis e aplicá-lo à antropologia. O homem é mimético, por


conseguinte, o desejo sendo próprio do ser humano, também é mimético. Neste
conjunto, a inveja torna-se latente. Isso gera uma grande tensão que tem como
resultado a violência.
Em tempos de crise fica nítida a chamada crise mimética, então o homem usa
de mecanismos para recuperar a paz. O segundo capítulo há de trazer quais são
estes mecanismos e de que forma o homem criou bodes expiatórios, que se uniram
com o sagrado, sendo origem da religião e da cultura. Desta maneira, para Girard, o
mundo jaz na violência, a crise pede um sacrifício, num ciclo vicioso que prende a
humanidade a séculos.
Por último, torna-se necessário falar sobre a visão de Girard do cristianismo.
O terceiro capítulo tratará de mostrar as ideias girardianas acerca da Revelação
cristã como fenômeno que escancara esse mecanismo sangrento.
Em suma, o presente trabalho tem como objetivo central apresentar aspectos
da filosofia de René Girard, que é um grande tesouro escondido para os estudos filo-
teológicos, antropológicos e sociológicos; uma vez que o pensamento
contemporâneo exalta certas filosofias e ofusca outras, deixando de lado muitas
vezes pensamentos fundamentais para o desenvolvimento intelectual e humano.
Tornando-se essencial apresentar o mecanismo vitimário decorrente do desejo
mimético e como os textos cristãos trabalham esse mecanismo.
9

CAPÍTULO 1 – A TEORIA MIMÉTICA

A teoria mimética é a pedra angular do pensamento girardiano. René Girard


dedicou-se a entronizá-la na antropologia, após encaixá-la na literatura romântica e
romanesca. Devido a isso, é de suma importância discorrer neste primeiro capítulo
sobre as origens do pensamento girardiano, a começar pelos clássicos, aos quais o
pensador muito retoma para a fundamentação desta teoria. Também analisar o
conceito de desejo e como toma um novo sentido na visão de Girard.
É fundamental discutir os conceitos de desejo interno e externo, e em que
passo se torna mimético. Fundindo o conceito de “mimesis” e de desejo, foi
nomeado pelo seu filósofo conterrâneo Michael Serres como o “Darwin das Ciências
Humanas” (1994, pp. 219-220) e fundará sua teoria mimética, que desemboca na
violência entre os desejantes, causando uma tensão na sociedade.

1.1 A ciência explica a literatura e a literatura explica a vida

Para iniciar a discussão sobre a teoria girardiana, é preciso, primeiramente,


discorrer sobre as bases e as ferramentas tidas por ele como fundamentos e chaves
para a ideia do desejo mimético. Na sua empreitada filosófica, René Girard começou
pelo ramo da crítica literária.
Sua primeira obra, Mentira Romântica e Verdade Romanesca, é certamente
um livro de crítica literária. Portanto, para melhor explicitação dos alicerces do
pensamento filosófico de Girard, explicaremos brevemente o conceito de crítica
literária e a importância deste gênero para a formação de teorias.
O termo “crítica” deriva do grego Κρινéιν, que é a ação de julgar algo, criticar.
A crítica literária é, desta forma, a ação de julgar as artes da literatura. As origens
deste tipo de obra se encontram na Grécia antiga e tem seu berço na filosofia,
particularmente em nomes como Platão e Aristóteles. Platão faz no Íon uma crítica
da poesia na pessoa de Sócrates.
No diálogo a seguir, Sócrates debate com o rapsodo Íon a poesia grega,
especialmente a Homérica. No final do diálogo, Íon chega à conclusão de que a
poesia e a arte poética são fruto de um dom divino:
10

Escolhe, então, se desejas ser reconhecido por nós como homem


injusto ou divino. A diferença é grande, Sócrates: e é muito mais belo
ser reconhecido como divino. Pois bem, de nossa parte o mais belo
pertence a ti, Íon, ser divino e não um técnico panegirista de Homero.
(PLATÃO, 1973, 542b)

É interessante que a conferência platônica não termina em aporia, ou seja,


sem solução, como grande parte das suas obras. Vemos o caráter crítico no que diz
respeito à poesia de Homero, querendo dizer que a poesia não é arte (τεχνη), e que
os poetas não sabem o que dizem quando escrevem suas obras, mas são de certa
forma inspirados por alguma divindade. Certamente a obra foi bastante polêmica 1 e
gerou muita discussão acerca de sua procedência.
A obra “Arte Poética” aristotélica também representa os primórdios da crítica
literária e já se aproxima mais do enquadramento girardiano, ao passo que lança por
meio da literatura um primeiro panorama daquilo que é a mimesis, conceito que será
tratado mais à frente.
Na Grécia antiga a literatura, em especial a poesia, era muito levada em
consideração pela sociedade. Daí surgiram as famosas tragédias e comédias
gregas. Se no Íon Platão dá enfoque na poesia épica de Homero, Aristóteles, na
Poética, abrangerá muitas outras áreas da poesia (ARISTÓTELES, 2000). A
comédia, a tragédia, o drama e a lírica são temas abordados nesta obra, contudo
comentários sobre a epopeia e a poesia homérica não são deixados de lado.
Aristóteles chega inclusive a dizer, no início do capítulo XXV de sua obra “Arte
Poética”, que Homero é o único entre os poetas que faz as coisas da forma correta.
A tragédia grega é de extrema importância para a filosofia de René Girard,
uma vez que traz à tona o essencial do ser humano, o pior e o melhor. Usando a
crítica literária Girard articula o conceito de “mimesis”.
De maneira especial o termo “mimesis”, mimese, ou mimésis (em grego:
μίμησις, mímesis), é um termo crítico e filosófico que abarca uma variedade de
significados, incluindo a imitação, representação, mímica, imitatio, a receptividade, o
ato de se assemelhar, o ato de expressão e a apresentação do eu. Este é um termo
antigo na história da filosofia. A começar por Platão que vê o mundo natural como
uma imitação do mundo das ideias. No livro X da República, o desfecho do diálogo

1O autor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), por exemplo, defendeu que na verdade
a obra foi escrita por um dos discípulos de Platão e atribuída a ele com o passar dos anos.
11

socrático sobre a república perfeita, Sócrates argumenta com Glauco de que os


poetas deveriam ser expulsos desta república, pois com sua arte mentem para as
pessoas, forjando ideias irreais sobre a vida e sobre a sociedade. A arte poética
seria então uma imitação de segunda mão, olhando para o mundo como uma
imitação do mundo inteligível. Desta forma, argumenta Sócrates:

E se afirmo que a nossa cidade foi fundada da maneira mais correta


possível, é, sobretudo, pensando no nosso regulamento sobre a
poesia que o digo [...] O de não admitir em nenhum caso a poesia
imitativa. Parece-me mais do que evidente que seja absolutamente
necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma
distinção clara entre os diversos elementos da alma [...] Digo,
sabendo que não ireis denunciar-me aos poetas trágicos e aos
outros imitadores, que, segundo creio, todas as obras deste gênero
arruínam o espírito dos que as escutam, quando não têm o antídoto,
isto é, o conhecimento do que elas são realmente (PLATÃO, 2001,
595a-b).

A ideia de “mimesis” é, para Platão, um conceito negativo, que afasta o


homem da verdade. Já para seu sucessor, Aristóteles, a imitação dos fenômenos
sensíveis pela poesia épica serve para enriquecê-los. Sendo assim, para este, ao
invés de a “mimesis” ser algo atrelado ao falso e ao mentiroso, a imitação da
natureza por parte da arte, em especial da poesia, não é um retratar (realizar uma
simples cópia do real), mas um fazer como, produzir à maneira de (copiar um
processo). Imitação como reprodução. A diferença estaria no caso de que a
natureza teria um princípio interno, enquanto a arte um princípio externo e acidental.
Através de uma significativa parte de sua obra, Aristóteles contemplou a
mimese, particularmente na Poética, analisando nela os mais diversos aspectos,
chegando a refletir sobre a possibilidade de a imitação não só reproduzir coisas que
são produzidas na natureza, mas também permitir ao homem se ajudar e completar
para si aquilo que a natureza não lhe proporciona. A mimese é aplicada como
techné, capacita o homem a alcançar pontos que antes ele não poderia alcançar.
Isso se nota na passagem da Física aristotélica: “Mas, de uma maneira geral, a arte
em certos casos completa (epitelei) o que a natureza não é capaz de realizar, em
outros casos ela imita a natureza” (ARISTÓTELES, 199a 15 – 20, 2000, tradução
nossa).
12

Depois dos clássicos gregos, o conceito praticamente se perdeu através do


tempo, retornando no século XX com o filósofo franco-americano René Girard.
Mantendo a tradição clássica, a filosofia girardiana começa pela crítica literária.
Na primeira obra de Girard, Mentira romântica e verdade romanesca, é feita
uma crítica à literatura romântica e romanesca, dando as devidas diferenças a estes
termos e explorando estes gêneros a fundo, encontrando um ponto comum em
obras absurdamente diferentes em termos de contexto e técnica de escrita: o desejo
triangular (futuramente chamado de desejo mimético). A partir disso procede a
passagem da introdução do livro escrita por João Cezar de Castro Rocha, intitulada
“A primeira pedra de uma catedral”:

A teoria mimética ganhou corpo quando Girard enunciou a pergunta-


chave: Como é possível que tal mecanismo esteja presente em obras
tão diversas como Dom Quixote e Em busca do templo perdido? De
nossa parte, acrescentamos O Primo Basílio e Dom Casmurro – sem
dúvida, o leitor deste livro pensará em muitos outros exemplos.
Retornemos à questão girardiana: Como é possível que tal
mecanismo tenha atravessado a modernidade ocidental como uma
sombra, sem a qual o contorno dos grandes romances empalidece e
deixa de revelar sua vocação propriamente antropológica? (ROCHA,
in. GIRARD, 2009, p. 17).

Desta forma, revela-se não somente o caráter literário da coisa, mas também
antropológico. A resposta de Girard, comentada por Rocha, vem a seguir e é um
tesouro para os estudos antropológicos deste século: “A resposta de René Girard
abriu as portas para o futuro desenvolvimento da sua teoria: o desejo humano é fruto
da presença de um mediador, vale dizer, o desejo é sempre mimético” (ROCHA,
2009, p. 17).
Partindo dessa explicação, fica mais fácil diferenciar as obras românticas das
romanescas e vice-versa. Ainda que ambas coloquem um mediador, um objeto e um
sujeito desejante, elas se diferem pelo fato de que em obras românticas se oculta o
mimetismo mediante a supressão do mediador. Em contrapartida, as obras
romanescas refletem sobre o desejo mimético através de um mediador protagonista
ou através de consequências geradas por esta mediação (ROCHA, 2009).
13

1.2 O desejo mimético

De modo introdutório, retornando à origem, já se nota a polêmica em que está


envolta a palavra “desejo”. Desde Platão, passando pelo estoicismo, a patrística, a
fenomenologia e finalmente chegando à psicanálise, o desejo foi visto como um
mover-se em direção a alguma coisa. O desejo então seria a metade do caminho
entre o que é e aquilo que se almeja ser. Este movimento imita as distantes estrelas
que são perfeitas e imóveis. O desejo é uma busca do bem e da perfeição.
O desejo é algo próprio do ser humano. A concepção clássica deste termo
dirá que o desejo é uma tensão em direção a um fim, que o sujeito desejante
considera satisfatório. Geralmente, o desejo pode ser representado por uma linha
reta: sujeito – objeto. Apesar disso, Girard vai explorar o conceito de desejo
triangular. Ou seja, há a presença de um terceiro elemento, um mediador (GIRARD,
2009)
O doutor em filosofia, Márcio Meruje 2, da Universidade Beira Interior de
Portugal, em sua tese de doutoramento afirma:

Presente já nos mitos e nas obras filosóficas da Grécia Antiga, o


desejo é, como referimos, um tema vasto, muito vasto para o nosso
passo. Além disso, como vimos, é a riqueza de pontos de vista que o
torna inesgotável e tema sempre atual em todos os campos de
estudo. Por isso, para a questão “De onde vem o desejo?”,
celebrizada ao longo de toda a história do pensamento, o homem
não teve — poderia ou poderá alguma vez ter? — a resposta
definitiva. Contudo, mapear a odisseia da magna quaestio sobre o
desejo capacita-nos com uma chave hermenêutica que
progressivamente nos aproximará da teoria mimética, ao mesmo
tempo que vamos olhando com atenção as possíveis âncoras desta
teoria para chegarmos ao desejo «mimético triunfante», inovação
que René Girard anunciava e celebrava na sua obra (2016, p. 35).

Partindo novamente da filosofia clássica, Girard vai abranger este assunto de


uma maneira totalmente nova, no âmbito da antropologia e das ciências sociais.
Destarte dirá que o desejo e a imitação têm uma origem conjunta: se o desejo
é sempre mimético, como já contemplamos anteriormente, o mesmo só pode ter sua
origem em conjunto com a “mimese”.

2Márcio Meruje, Universidade da Beira Interior (UBI/FCT). Bolsista da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT) desde 2012; doutor e pesquisador integrado do Instituto de Filosofia Prática da
Universidade da Beira Interior (UBI), Covilhã – Portugal.
14

Sobre isso Meruje diz que a “mimese” e o desejo são cooriginários e se


pertencem entre si, não podendo se distanciar um do outro, há um vínculo próprio
entre o desejo e a imitação. (MERUJE, 2016).
Para que se possa compreender melhor o desejo mimético de maneira
sintética, pode-se utilizar a citação de James Alison e Wolfgang Palaver:

Girard percebeu, por meio de sua própria interação com a literatura,


que desejamos de acordo com o desejo do outro. Os humanos não
desejam de acordo consigo mesmos, mas outros induzem neles,
desde a primeira infância, os gestos, sons e desejos que permitirão
que eles se tornem quem eles devem ser. São nossos modelos que
induzem em nós os desejos dos objetos. Quem somos e o que
queremos ser não é mais simplesmente determinado pelo instinto,
mas é emprestado de diferentes elementos do “outro” social que nos
rodeia. Este “outro” social se reproduz efetivamente em nós como
participantes altamente maleáveis. Nossa liberdade (que é real)
depende tanto de dependermos pacificamente do que é diferente de
nós e nos precede, e num certo esquecimento daquilo que nos fez
ser. Isto torna possível para o "outro" social se reproduzir em nós e
como nós e é a capacidade imitativa enormemente mais eficaz que
este símio em particular tem desenvolvido ao longo dos milênios em
comparação com nossos parentes símios mais próximos 3 (ALISON;
PALAVER, 2017, p. 2, tradução nossa).

Então se revela uma novidade nos estudos sobre o desejo: se o desejo é


mimético, o desejo é sempre do outro. O sujeito possui um modelo, aquele que
serve de molde para as ações do sujeito e serve como mediador. Passando pelo
mediador, o desejo torna-se triangular. Na presença deste mediador, abrem-se as
portas para uma discussão muito mais ampla acerca do desejo.
O objeto do desejo é designado por esse mediador. Usando novamente Dom
Quixote, Girard argumenta que as vontades e desejos de Sancho Pança, fiel
escudeiro de Dom Quixote, são designados por ele. O próprio protagonista do livro é
a vítima mais exemplar do desejo triangular, uma vez que seu objeto de desejo é o

3 Girard became aware, through his own interaction with literature, that we desire according to the
desire of the other. Humans do not desire starting from themselves, but others induce in them, starting
from earliest infancy, the gestures, sounds, and desires which will allow them to become who they are
to be. It is our models who induce in us the desirability of objects. Who we are and what we want is no
longer simply determined by instinct but is borrowed from the different elements of the social “other”
that surrounds us. This social “other” reproduces itself effectively in us as highly malleable
participants. Our freedom (which is real) depends both on our depending peacefully on what is other
than us and precedes us, and on a certain forgetfulness of what has made us to be. That which makes
it possible for the social “other” to reproduce itself in and as us is the enormously more effective
imitative capacity which this particular ape has developed over the millennia by comparison with our
nearest simian relatives.
15

mesmo do cavaleiro Amadis, modelo para suas ações e tutor para seus
pensamentos (GIRARD, 2009).
O problema é que do desejo triangular, ao mesmo tempo em que pode partir
uma relação saudável, de mestre-discípulo, também pode surgir uma rivalidade.
Evidentemente, em diversos casos, quando um sujeito tem os mesmos desejos de
um outro, a inveja, a vaidade e a ganância, sentimentos próprios do ser humano
podem se sobressair, gerando o que Girard chama de rivalidade mimética.
Dado este fator se vê que para que um objeto seja desejado por um vaidoso,
só é preciso que ele se convença de que este é desejado por um terceiro, a quem é
agregado certo prestígio (GIRARD, 2009). Pela mediação, é gerado um novo desejo
idêntico. Em suma, é por causa do desejo do mediador modelo que o sujeito
desejante reflete o mesmo objeto. O mediador modelo é de certa maneira também
um obstáculo para o desejante.
Desta maneira conclui-se que

A imitação entre símios contribui claramente para a coesão do grupo


e certamente torna possível um aprendizado muito mais rápido. Mas
esta mesma dimensão positiva a qualquer momento pode se tornar
negativa: a imitação pode, muito facilmente, gerar rivalidade. Assim,
quando um grupo se torna melhor e melhor na imitação, também
cresce o risco potencial da rivalidade implícita na imitação e é cada
vez mais capaz de superar quaisquer mecanismos instintivos de
frenagem e padrões de autodomínio do grupo. E isso pode ameaçar
rapidamente a sobrevivência da comunidade. Surge então a questão:
o que foi, ou o que é, que impede a o crescimento igualitário e
eficiente entre os imitadores, levando-os a destruir uns aos outros?
Entre o “todos juntos” da imitação e o “todos contra todos” da
rivalidade um mero nada pode ser suficiente para colocar tudo a
perder 4 (ALISON; PALAVER, 2017, p. 2, tradução nossa).

Isso revela um constante estado de tensão na sociedade, onde um mínimo


detalhe pode gerar consequências catastróficas.

4
(Tradução nossa) Imitation among simians clearly contributes to group cohesion and certainly makes
much faster learning possible. But this very same positive dimension of imitation is always poised to
turn into a negative one: Imitation can, and very easily does, flip into rivalry. Thus, as a group
becomes better and better at imitation, so also does the risk grow that the potential for rivalry implicit in
ever-better imitation is able to overcome whatever instinctual braking mechanisms and dominance
patterns the group has. And, this can quickly threaten the group’s survival. The question then arises:
What was it, or is it, that prevents the growing equality among ever more efficient imitators from
leading them to destroy one other? Between the “all together” of imitation and the “all against all” of
rivalry, the merest nothing can suffice to flick the switch.
16

1.3 Do desejo à violência

A mediação está intrinsecamente ligada à violência que é gerada pelo desejo.


Se tratando disso, pode-se dividir a mediação em dois tipos: mediação externa e
mediação interna.
A mediação externa é uma mediação pacífica, na qual o mediador é admirado
pelo sujeito desejante e torna-se um modelo. Aqui não há rivalidade, pois há uma
certa distância intelectual e social entre o sujeito e o mediador. Na realidade pode
até ser chamada como devoção. Para ilustrar a mediação externa, Girard comenta
usando mais uma vez o romance de Cervantes:

Dom Quixote e Sancho estão sempre fisicamente próximos um do


outro, mas a distância social e intelectual que os separa permanece
intransponível. Nunca o criado deseja o que deseja o amo. Sancho
cobiça os víveres abandonados pelos monges, a bolsa de ouro
encontrada no caminho e outros objetos mais que Dom Quixote lhe
cede sem qualquer pesar. Quanto à ilha fabulosa, é do próprio Dom
Quixote que Sancho calcula recebê-la, na qualidade de fiel vassalo
que tudo possui em nome de seu senhor. A mediação de Sancho é
assim uma mediação externa. Nenhuma rivalidade com o mediador é
viável. A harmonia nunca fica seriamente afetada entre os dois
companheiros (2009, p. 33).

Assim sendo, o mediador é um exemplo a ser seguido e não uma pedra no


caminho. Neste caso o objeto a ser alcançado é um ideal.
O outro tipo de mediação possível é a mediação interna, que é aquela que
gera a rivalidade dos desejantes, a inveja e a violência. Isso ocorre porque o objeto
desejado só pode ser adquirido por uma das partes; então este objeto pode ser
desde um objeto físico até outra pessoa. Segundo Richard Golsan 5, esse tipo de
mediação “envolve um modelo ou mediador que não foi separado do sujeito pelo
tempo, pelo espaço ou por outros fatores, tornando-se rival e obstáculo na busca do
objeto por parte do sujeito” (2015, p. 26).

5 Richard J. Golsan, Distinguished professor de Francês e diretor do Centro para Pesquisa em


Humanidades da Texas A&M University, recebeu a Palmes Academiques do governo da França e a
Ordina Della Stella Della Solidarieta Italiana do governo da Itália. Foi professor visitante na
Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle. É especialista em história e memória da Segunda
Guerra Mundial na França e Europa e em envolvimentos políticos de escritores e intelectuais
franceses e europeus com políticas antidemocráticas e extremistas nos séculos 20 e 21. Também
dirige o Centre Pluridisciplinaire, fundado pelo governo francês na TA&M University. É um entusiasta
da teoria mimética de René Girard. (Richard Golsan, É Realizações. Disponível em:
<https://www.erealizacoes.com.br/colaborador/richard-j-golsan> Acesso em: 25 de agosto de 2020.)
17

Uma passagem que ilustra muito bem esse pensamento é o famoso mito de
Édipo do dramaturgo grego Sófocles. Em resumo, Édipo busca respostas sobre sua
origem e é atingido por uma terrível profecia, onde deve matar seu pai e se casar
com sua própria mãe. Baseado neste mito, o pai da psicanálise Sigmund Freud
fundamenta o Complexo de Édipo. É um termo basicamente usado para descrever
os sentimentos que um menino possui por sua mãe. Seu desejo pela mãe e o
consequente ciúme que ele sente do pai.
Com esta questão, Freud dirá que o desejo do infante pela mãe é um desejo
autônomo, intrínseco a todo homem e que se desenvolve de forma mais aparente
em um do que em outros. Enquanto isso, pela ótica de Girard, é justamente o
oposto, vendo claramente a presença da mediação interna por parte do pai. A
criança imita o desejo do pai pela mãe, algo completamente natural uma vez que
todo homem é mimético, longe da conotação sexual pretendida por Freud
(GIRARD,1990).
Esse exemplo ilustra de forma bastante próxima a mediação interna e o
desejo triangular proposto pela teoria girardiana, também mostra uma crítica
contundente à psicanálise de Freud.
Conclui-se, então, que por causa desta mediação interna a sociedade está
em constante estado de tensão e a qualquer momento pode implodir. O desejo pode
ser nocivo ao bem estar social. As guerras, conflitos, lutas e querelas são gerados
pelo desejo. Deste modo,

Quando dois indivíduos desejam a mesma coisa, virá juntar-se a isso


um terceiro; quando há três, logo chegará um quarto, e a partir desse
momento, já se pode prever, as sociedades primitivas tendem todas
a se mobilizar em lutas insanas. Passam então a ser ameaçadas
pela destruição total (GIRARD, 2011, p. 65).

Para concluir este capítulo, há que se perguntar: como é possível viver em um


mundo com tamanha tensão? Como a humanidade pode dissipar a violência? Quais
mecanismos são possíveis para retomar o bem estar social? Buscaremos responder
estas perguntas no capítulo seguinte.
18

CAPÍTULO 2 – O MECANISMO VITIMÁRIO E A ORIGEM DA


CULTURA

Visto que o ser humano padece de uma tensão constante na sociedade, uma
vez que também a violência é mimética e que um grande conflito pode eclodir a
qualquer momento, o homem criou maneiras para expurgar a violência sempre que
esta se instaura em tempos de crise. Em um ambiente de todos contra todos, torna-
se necessário encontrar um culpado pela situação caótica. Este culpado será o bode
expiatório e seu sacrifício deverá trazer de volta a paz uma vez perdida.
O presente capítulo tratará do mecanismo vitimário e do bode expiatório,
sistema que originou a cultura, os mitos e os ritos. Então, torna-se necessária a
compreensão desses conceitos para dar prosseguimento no entendimento da
filosofia de Girard.

2.1 Contexto histórico do conceito “Bode Expiatório”

O conceito “bode expiatório” é usado quando um indivíduo ou grupo é


declarado culpado por um delito que não cometeu. O seu uso é apropriado da Bíblia
por Girard. Sendo assim, explicar o contexto histórico desse termo significa ir à
Bíblia e analisar certos textos nos quais a violência aparece, expondo, de maneira
sintética, os aspectos da história do povo de Israel.
No livro do Gênesis, aparece um importante personagem que marca o início
da promessa divina: Abraão, ao qual é prometida uma terra e uma descendência.
Ele gera Isaac, filho dessa promessa, e Isaac gera Jacó, que depois se chamará
Israel. Então, Deus escolhe o povo advindo de Israel para fazer sua história de
salvação.
O povo de Israel sofreu durante muito tempo feito escravo no Egito. É
suscitado então um grande libertador, chamado Moisés, que, guiado por Iahweh,
liberta o povo do cativeiro egípcio e o conduz durante 40 anos no deserto até a terra
prometida por Deus a Abraão, a terra de Canaã (atual estado de Israel).
Levando o povo ao deserto, o Deus de Israel conhece o coração dos israelitas
e dá a eles as conhecidas tábuas da Lei, contendo os dez mandamentos. Neste
19

momento criam-se uma série de leis e de preceitos que irão ditar o modo de vida
dos israelitas e que serão seguidos pelos judeus até os dias de hoje.
Neste contexto de caminhada pelo deserto, surge um dos dias mais
importantes para a tradição judaica, o Yom Kippur 6, dia do perdão. É nesse dia que
todos os pecados do povo eram expurgados e a paz e a pureza se reestabeleciam
na sociedade israelita. Assim diz a narração bíblica:

Receberá da comunidade dos filhos de Israel dois bodes destinados


ao sacrifício pelo pecado, e um carneiro para o holocausto. Depois
de haver oferecido o novilho do sacrifício pelo seu próprio pecado e
de ter feito o rito de expiação por si mesmo e pela sua casa, Aarão
tomará os dois bodes e os colocará diante de Iahweh na entrada de
Tenda da Reunião lançará a sorte sobre os dois bodes, atribuindo
uma sorte a Iahweh e outra a Azazel. Aarão oferecerá o bode sobre
o qual caiu a sorte "Para Iahweh" e fará com ele um sacrifício pelo
pecado. Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte "Para Azazel",
será colocado vivo diante de Iahweh, para se fazer com ele o rito de
expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto. Aarão oferecerá
o novilho do sacrifício pelo seu próprio pecado, e em seguida fará o
rito de expiação por si mesmo e pela sua casa e imolará o novilho
(...). Imolará então o bode destinado ao sacrifício pelo pecado do
povo e levará o seu sangue para detrás do véu. Fará com esse
sangue o mesmo que fez com o sangue do novilho, aspergindo-o
sobre o propiciatório e diante deste. Fará assim o rito de expiação
pelo santuário, pelas impurezas dos filhos de Israel, pelas suas
transgressões e por todos os seus pecados. Assim procederá para
com a Tenda da Reunião que permanece com eles, no meio das
suas impurezas (Lv 16, 5-11.15-16).

Esse ritual de purificação realizado pelo sacerdote lavava o povo dos seus
pecados.
Tal conceito é reinterpretado na visão de Girard, que o adapta à sua teoria
mimética. Na sua obra “O bode expiatório”, na qual explora o fenômeno em questão,
o autor deixa explícito o mecanismo embasado naquilo que ele chama de textos
persecutórios. Assim, o primeiro exemplo que se pode ressaltar é o episódio da
pandemia da peste negra 7.

6 Dia do perdão, a data mais importante do judaísmo, entre setembro e outubro, dedicado às orações
e ao jejum, como demonstração de arrependimento pelas más ações e pecados, solicitando-se
perdão divino e felicidade para o novo ano. Cf. Dicionário Michaelis, in:
<https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/yom%20kippur/> Acesso
em 12 de outubro de 2020.
7 A Peste Negra foi um dos maiores surtos epidêmicos da história da humanidade. A doença era

contraída a partir do contato humano com pulgas infectadas pela bactéria Yersinia pestis que
estavam presentes em ratos. Cf. SILVA, Daniel Neves. "O que foi a Peste Negra?"; Brasil Escola.
20

O exemplo a seguir demonstra um fragmento de texto onde Guillaume de


Machaut 8 expressa seu asco pelo povo judaico, que ele acreditava ter sido
causador da peste:

Depois disso veio, veio uma merda falsa, traidora e renegada: foi a
Judeia, a odiada, a perversa, a desleal, que odeia e ama todo mal,
que tanto ouro e prata deu e a cristã gente prometeu, que depois,
rios e fontes, que eram claros e limpos, em muitos lugares
envenenaram, e muitos suas vidas terminaram, pois aqueles que
deles usavam logo repentinamente faleciam 9 (apud GIRARD, 2004,
p. 7).

Claramente antissemita, Guillaume viu-se obstinado a fazer justiça por meio


deste texto persecutório e tinha dentro de si a certeza de que os judeus estavam
envenenando os rios, causando, desta maneira, todo o caos da peste negra. Pode-
se concluir que quem persegue, em geral, tem a cega certeza de que está
perseguindo o culpado. E assim, muitos judeus foram mortos na Idade Média, como
culpados pela epidemia e como bodes expiatórios para a recuperação da ordem.
Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, os judeus serão culpados pela crise
na Alemanha e milhões sofrerão e padecerão nos campos de concentração nazista.

2.2 O mecanismo vitimário

Toda a violência é gerada como fruto de um mecanismo oculto, conhecido por


mecanismo vitimário (termo técnico usado por Girard). Aqui, vale lembrar que, para
Girard, a hominização se dá por meio deste mecanismo, por um ato de violência
coletiva cometido nos primórdios da humanidade, tendo como causa principal um
desejo comum: o desejo mimético. Por meio do desejo de recobrar a paz em tempos
de crise, a humanidade enxerga a necessidade de achar um culpado pelo tempo
infortúnio. A culpa sempre é do outro (cf. Gn 3,11-13) 10.

Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-foi-a-peste-negra.htm. Acesso


em 04 de setembro de 2020.
8 Compositor e poeta francês, nascido em 1300 e falecido provavelmente em 1377, foi o "último dos

trovadores" e um dos expoentes da ars nova codificada por Philippe de Vitry. Cf. Guillaume de
Machaut in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. Disponível
em: <https://www.infopedia.pt/$guillaume-de-machaut>. Acesso em 04 de setembro de 2020.
9 Cf. Obras de Guillaume de Machaut, publicadas por Ernest Hoeppfner, I, Le Jugement du Roy de

Navarre, Societé des anciens textes français, 1908, pp. 144-145.


10 Alusão ao episódio do pecado original, onde a culpa do pecado sempre passa para o outro.
21

Este processo se dá quando a crise mimética atinge seu auge. Quando a


violência se torna mimética é destruída a ordem da cultura. Os conflitantes passam a
imitar a violência uns dos outros. Essa destruição cria um processo mimético
acusatório, onde um acusa o outro, buscando o responsável pela violência comum.
Na realidade, não há uma origem para a violência, nem alguém que precisamente a
inicie, mas qualquer motivo é suficiente para que a violência se encarne na
sociedade. Esse processo de acusação não passa de uma camuflagem para o
verdadeiro caráter da violência (GIRARD, 1990)
Em uma de suas obras chave sobre o tema do “bode expiatório”, A violência e
o sagrado, Girard comenta:

Como a unidade da comunidade, inteiramente destruída pela crise


sacrifical, pode ser subitamente refeita? Estamos no paroxismo da
crise; as circunstâncias parecem ser as mais desfavoráveis possíveis
para que ocorra esta súbita inversão. Não se encontram dois homens
que concordem com o que quer que seja. Todos tentam se livrar do
fardo coletivo, descarregando nas costas do seu irmão inimigo. Na
comunidade inteiramente incendiada parece reinar um caos
indescritível. Nenhum fio condutor parece ligar os conflitos, os ódios,
as fascinações particulares (1990, p. 104).

Nesse contexto, é clara a necessidade de expiação dessa violência pela


comunidade. Como eleger um culpado, se entre mil acusadores podem existir mil
culpados? A resposta para essa questão está no fato de que pode existir uma
mínima diferença entre os indivíduos. Apesar de todos os indivíduos pensarem ser
diferentes, tornam-se iguais em meio ao funcionamento do mecanismo, todas as
diferenças desaparecem pouco a pouco (GIRARD, 1990).
É interessante notar que dos indivíduos que se acreditavam como diferentes,
nesse passo tornam-se iguais. O grupo tensionado lança-se sobre uma vítima e,
considerando-a culpada, a torna um bode expiatório. Lembrando que o motivo é
inexistente; uma mínima diferença é necessária para que a vítima seja eleita.

Ali onde, alguns instantes antes havia mil conflitos particulares, mil
pares de irmãos inimigos isolados uns dos outros, novamente existe
uma comunidade, completamente uma no ódio que lhe é inspirado
por um só de seus membros. Todos os rancores disseminados em
mil indivíduos diferentes e todos os ódios divergentes vão convergir,
de agora em diante, para um indivíduo, a vítima expiatória (GIRARD,
1990, p. 105).
22

Pode-se dizer que é quase por acaso que a vítima é escolhida. O mecanismo
vitimário é, portanto, todo este processo: desde a designação de um culpado pelos
perseguidores (dominados pela violência mimética) até o consequente assassinato
coletivo desse, como bode expiatório.
É nesse mecanismo que o ser humano está imerso. Também deve ser dado
um certo destaque aos estereótipos da perseguição:

A cada vez que um testemunho oral ou escrito relata a violência


direta ou indiretamente coletivas, nós nos perguntamos se ele
igualmente relata: 1) a descrição de uma crise social e cultural, ou
seja, de uma indiferenciação generalizada – primeiro estereótipo, 2)
crimes indiferenciadores – segundo estereótipo, 3) se os autores
mencionados desses crimes possuem marcas de seleção vitimaria,
marcas paradoxais de indiferenciação – terceiro estereótipo. Há um
quarto estereótipo, que é a própria violência [...] (GIRARD, 2004, p.
37).

Assim sendo, o que ocorre é uma junção dos estereótipos, que causam o
estado de crise mimética e, consequentemente, permeiam o mecanismo vitimário.
Esse mecanismo é o que faz com que a humanidade exista até hoje. A
expiação dos pecados afastava os tempos de crise, e é nesse passo que a violência
se encontra com o sagrado e que a teoria de Girard se apronta para explicar a
origem das religiões, dos mitos e das idolatrias.

2.3 Os mitos e os ritos

Para discorrer sobre o tema dos mitos 11, cabe, antes de tudo, uma breve
explicação do conceito, apontando a origem e a função desse sistema.
O mito é um termo advindo do grego, mythos, que retrata uma narrativa de
teor fantástico, em que certos personagens misturam as suas características
humanas com poderes e habilidades divinos. A mitologia grega, por exemplo, surgiu
da curiosidade que os povos helênicos possuíam de explicar a gênese da vida e as

11 O mito (em grego clássico: μυθος; romaniz.: mithós) História fantástica de transmissão oral, cujos
protagonistas são deuses, semideuses, seres sobrenaturais e heróis que representam
simbolicamente fenômenos da natureza, fatos históricos ou aspectos da condição humana; fábula,
lenda, mitologia. Interpretação ingênua e simplificada do mundo e de sua origem. Relato que, sob
forma alegórica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico. Cf. Dicionário Michaelis, in:
<https://michaelis.uol.com.br/modernoportugues/busca/portuguesbrasileiro/mito/#:~:text=1%20Hist%C
3%B3ria%20fant%C3%A1stica%20de%20transmiss%C3%A3o,mundo%20e%20de%20sua%20orige
m.> Acesso em 12 de outubro de 2020.
23

dificuldades da existência. Desse modo, criaram deuses imortais à semelhança do


ser humano. Os antigos gregos viviam em uma sociedade politeísta, ou seja, tinham
uma crença baseada na extistência de vários deuses, cada qual com uma função
predeterminada. Havia diversos deuses: a deusa do amor (Afrodite), o deus da
guerra (Ares), o deus do vinho e do prazer (Dionísio) etc. E dessa necessidade de
explicar o mundo pelos mitos, surge a dúvida, e, assim, a filosofia. Não é à toa que
Jean-Pierre Vernant 12 dirá, posteriormente, que tudo vem dos gregos (1990).
Por existir o mito, surge a crítica, concluindo-se que o mito gera também uma
ordem ética e moral embrionária que se aperfeiçoou ao longo do tempo. O mito
fomenta então o nascimento de toda cultura.
Com o passar do tempo, o povo grego passa a duvidar e gerar questões
acerca do mito, como acena Vernant:

Se as realidades naturais apresentam uma ordem regular não pode


ser porque, um belo dia, o deus soberano, ao fim dos seus
combates, impôs-se às outras divindades como um monarca que
reparte em seu reino os encargos, as funções, os domínios. Para ser
inteligível, a ordem deve ser pensada como uma lei imanente à
natureza e presidindo, desde a origem, à sua ordenação. O mito
narrava a gênese do mundo ao cantar a glória do príncipe cujo reino
fundamenta e mantém uma ordem hierárquica entre forças sagradas.
Os milésios buscam, por detrás do fluxo aparente das coisas, os
princípios permanentes sobre os quais repousa o justo equilíbrio dos
diversos elementos de que é composto o universo (1990, p. 8).

Os milésimos, guiados por Tales passam a indagar-se sobre o papel e a


verdadeira presença dos deuses. Segue desse modo:

Mesmo se eles conservam certos termos fundamentais dos velhos


mitos, como o de um estado primordial de indistinção a partir do qual
se desenvolve o mundo, mesmo que eles continuem a afirmar, com
Tales, que “tudo está pleno de deuses”, os milésios não deixam
nenhum ser sobrenatural intervir em seus esquemas explicativos.
Com eles, em sua positividade, a natureza invadiu todo o campo do
real; nada existe, nada se produziu e nunca se produzirá que não
encontre na physis, tal como podemos observá-la a cada dia, seu
fundamento e sua razão. É a força da physis, em sua permanência e

12Nasceu em Provins, na França, em 1914. Formado em filosofia, foi dirigente da Resistência durante
a Segunda Guerra e membro do partido comunista até 1970. Em 1958, tornou-se professor da École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Publicou mais de quinze livros, como a trilogia Mito e
pensamento entre os gregos, Mito e sociedade na Grécia antiga e Mito e religião na Grécia antiga. É
professor honorário do Collège de France. Morreu no ano de 2007 na cidade de Sèvres. Cf.
Companhia das Letras, in: <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=01177>
Acesso em 9 de outubro de 2020.
24

na diversidade de suas manifestações, que toma o lugar dos antigos


deuses; pelo poder de vida e princípio de ordem que encobre, ela
própria assume todos os caracteres do divino (VERNANT, 1990, p.
8).

A partir disso surge toda a querela filosófica e, porventura, a ordem cultural do


mundo. Uma vez dado um parecer histórico da origem dos mitos, torna-se
necessário enquadrar o contexto mitológico na filosofia girardiana.
Ao tratar os mitos, Girard refere-se ao início deles através de uma passagem
muito profunda:

Frequentemente o início dos mitos se reduz o a um único traço. O dia


e a noite se confundem. O céu e a terra se comunicam: os deuses
circulam entre os homens e os homens entre os deuses. Entre o
deus, o homem e o animal não há nítida distinção. O sol e a lua são
irmãos gêmeos; lutam entre si perpetuamente não conseguimos
distingui-los O sol está demasiadamente próximo da Terra; a secura
e o calor tornam a existência insuportável (2004, p. 48).

Desse modo, se vê que o mito nasce em uma situação um tanto quanto


caótica, um transtorno de identidade que ronda não somente as esferas da
civilização, bem como os seres vivos no geral. O autor explica na sequência que o
início dos textos míticos esconde atrás de todo esse caos o estereótipo persecutório
da indiferença. Seguido da indiferenciação seguem os outros estereótipos, e não é
difícil perceber a sua presença na narrativa mitológica (GIRARD, 2004).
Desta forma surge a grande descoberta de Girard: se os estereótipos
persecutórios revelam a violência coletiva incipiente, esta é geradora dos mitos.
Conclui, então, dizendo:

Começamos a ver que as representações persecutórias já decifradas


constituem um verdadeiro fio de Ariadne para nos orientarmos no
labirinto da mitologia. Elas irão nos permitir referir a violência coletiva
à sua verdadeira origem, mesmo no caso de mitos que não contém
nenhum estereótipo de perseguição (GIRARD, 2004, p. 51).

Aqui está o ponto chave para a conclusão girardiana acerca do mito: a


narrativa mitológica é um texto de perseguição. Geralmente o perseguido é o
estrangeiro, que é a vítima coletivamente assassinada ou expulsa do meio social
(GIRARD, 2004). Existe aqui a crença de que os males que a sociedade padece são
originados por um único culpado, e quando este é expulso, ou morto e a paz retorna
25

ao meio social, este é divinizado. Esse processo “maquia” o mecanismo vitimário, o


escondendo.
Exposto o significado de mito para a concepção girardiana, torna-se claro o
papel do rito. O rito, que pede um bode expiatório para ter realização plena, é o
exercício contínuo deste jogo violento. Existe a crise, existe o desejo mimético que
em união com a crise resulta em um desequilíbrio entre os desejantes e deste
desequilíbrio surge a necessidade de encontrar um culpado pela crise. Este culpado
sofre o linchamento coletivo pela multidão violenta, e este bode expiatório traz de
volta a paz à sociedade. Rememorar este conjunto é o rito, e, com o passar dos
séculos, esta constante rememoração fundará toda a cultura, religião e até mesmo a
racionalidade (GIRARD, 1990).
Não é nada mais do que a repetição desse mecanismo violento ao longo dos
séculos até chegar-se ao resultado desejado:

Enquanto as causas exteriores persistem, uma epidemia de peste,


por exemplo, os bodes expiatórios não terão eficácia. Em
contrapartida, quando estas causas deixam de atuar, o primeiro bode
expiatório que atuar porá fim à crise, liquidando suas sequelas
interpessoais pela projeção de todo maleficio sobre a vítima
(GIRARD, 2004, p. 68).

O mito revela assim um valor sacrifical ao bode expiatório, no qual se


encontram a violência e o sagrado.

2.4 O sacrifício

A cultura do sacrifício está presente no mundo desde os tempos mais antigos.


Aliás, Girard dirá que é a ritualização do sacrifício que dará gênese a tudo o que se
conhece (GIRARD, 1990). Nas sociedades remotas, este fazer sagrado era a
expressão da proximidade do humano com as divindades e, aqui, se confundia a
violência ritual e o sagrado. O comentário de Meruje ilustra de forma sublime o
processo sacrifical:

Existem pelo menos cinco pontos fundamentais em variadíssimos


registos mitológicos que apontam para a necessidade da morte ritual
de um bode expiatório: 1. Caos, falta de ordem, falta de
diferenciação, diluição das barreiras entre os membros da
26

comunidade. 2. Acusação unânime de um bode expiatório. 3. O bode


expiatório é declarado culpado (provas que evidenciam a situação).
4. O bode expiatório é convencido, morto ou banido. 5. A ordem é
reestabelecida (2016, p. 58).

O bode expiatório assume um lugar quase que onipotente, como o único


processo que pode apaziguar a crise. Quando aparece em conjunto com o mito,
torna-se sagrado. Esse “fazer sagrado” é o sacrifício.
Em grande parte das religiões, os ritos sacrificais impunham que o culpado
pela crise ou pelo mal estar social fosse o bode expiatório. Girard dá como exemplo
os Brahmanas, que são comentários anexados aos Vedas, cânones literários
próprios da religião hindu, e que, por vezes, são feitos comentários sobre o sacrifício
e sobre como a eficácia dele traz de volta a proximidade do homem com a
divindade:

Entre a concepção dos Brahmanas e minha teoria, as coincidências


são numerosas e impressionantes demais para serem resultado do
acaso. Ao lado das convergências indiscutíveis existem divergências
mas, longe de contradizer a teoria mimética, correspondem ao
mínimo de ilusão sem a qual o sacrifício se torna impossível. Para
para que o sacrifício seja possível, é necessário acreditar que a
vítima original é responsável pelo distúrbio mimético antes e
posteriormente, por meio da mediação da violência unânime, de
retorno ao pedido. A referência é feita a um deus, acredita-se que,
depois de ter feito mal à comunidade, teve pena dela e ensinou-lhe o
sacrifício 13 (GIRARD, 2012, p. 22, tradução nossa).

O sacrifício pelos Brahmanas é uma forma de expurgar o mal e recuperar a


ligação com Deus, assim seguem uma série de outras religiões, nas quais, como
uma forma de troca, o homem sacrifica algo para que a divindade realize algum bem
para a sociedade.
O cristianismo não manifesta nada contra a corrente das demais religiões e
Girard apontará a principal diferença olhando o ponto de vista literário, que é a base
de toda a sua filosofia.

13 Entre la concepción de los Bráhmanas y mi teoría, las coincidencias son demasiado numerosas e
impresionantes como para que sean fruto del azar. Al lado de las indiscutibles convergencias hay
divergencias pero lejos de contradecir la teoría mimética, corresponden al mínimo de ilusión sin el
cual el sacrificio se hace imposible. Para que el sacrificio sea posible, es necesario creer que la
víctima original es responsable del desorden mimético antes y después, por la intermediación de la
violencia unánime, del retorno al orden. Se hace referencia a un dios, se cree, que, después de haber
perjudicado a la comunidad, ha tenido piedad de ella y le ha enseñado el sacrificio.
27

A diferença primordial entre o sacrifício bíblico e o sacrifício das demais


religiões é que, na narrativa cristã, o perseguidor é que é considerado culpado. “No
lugar de elaborar mitos, portanto, a Bíblia e os Evangelhos dizem a verdade”
(GIRARD, 2012, p. 22).
Como, portanto, o cristianismo revelará todo esse mecanismo violento que
acompanhou a história do homem? De que forma o fermento evangélico revelou a
gênese sangrenta de toda a idolatria? Essas são as questões a serem respondidas
por Girard nesse momento.
28

CAPÍTULO 3 – A NOVIDADE EVANGÉLICA NA ANTROPOLOGIA


GIRARDIANA

De fato, a paixão e morte de Cristo abalaram a História. Este episódio mudou


o mundo e formou o modelo de sociedade que conhecemos hoje. Os Evangelhos
giram em torno da paixão, bem como as mitologias, a grande diferença é que a
vítima rejeita as ilusões persecutórias. Cai por terra o ciclo da violência e do
sagrado.
A perseguição e o mecanismo violento do bode expiatório representam uma
grande hipocrisia do fenômeno religioso ao longo dos séculos, porque se pretende
expurgar a violência por meio da violência.
O Evangelho, segundo a análise de Girard, abala as estruturas das
sociedades onde penetra, pois dá o peso da culpa de perseguidor infame a quem a
merece. Desta forma se denuncia e se revela este processo violento.
Neste capítulo veremos como René Girard compreende os textos bíblicos e
sobre como estes se diferenciam das demais manifestações religiosas, diante de
todo este contexto de mecanismo vitimário, crise sacrifical e bode expiatório já
trabalhados. Vale lembrar que Girard não entra no terreno da Teologia, mas faz
como uma ciência dos evangelhos, mesmo que, de fato, tenha contribuído
largamente para o avanço de muitos estudos e pensamentos teológicos.

3.1 O termo “violência” na narrativa bíblica

Desde muito cedo na narrativa bíblica existiram os conflitos. Caim mata seu
irmão Abel num clássico exemplo da violência mimética:

Passado o tempo, Caim apresentou produtos do solo em oferenda a


Iahweh; Abel, por sua vez, também ofereceu as primícias e a gordura
de seu rebanho. Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda.
Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda, e Caim ficou muito
irritado e com o rosto abatido. Iahweh disse a Caim: "Por que estás
irritado e por que teu rosto está abatido? Se estivesses bem
disposto, não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto
não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita;
podes acaso dominá-lo?" Entretanto Caim disse a seu irmão Abel:
"Saiamos." E, como estavam no campo, Caim se lançou sobre seu
irmão Abel e o matou (Gn 4, 3-8).
29

O fratricídio de Caim demonstra um claro exemplo da violência explicitada por


Girard. O objeto do desejo de ambos é a aprovação divina; enquanto o sacrifício de
Abel é aceito, o de Caim é rejeitado e, ao ver que o objeto não seria alcançado,
Caim é tomado pela inveja e assassina o seu próprio irmão.
Para começar a trabalhar sobre o Evangelho no contexto da teoria de Girard,
devemos tratar primeiro sobre o sentido do termo “violência”. Tal palavra encontra
seu antônimo na palavra paz e que perdeu seu verdadeiro sentido, uma vez que
pode ser usada desde quando um filho apanha do pai, até para um atentado
terrorista (BARAHONA, 2012). O próprio Ángel Barahona 14, grande estudioso do
trabalho de Girard, propõe a mudança deste paradigma no seu artigo El Evangelio:
una ciencia de la violencia dizendo: “proponho que nos adentremos em um maior
nível de complexidade, pondo em comparação a violência com uma nova antítese: o
amor 15” (2012, p. 9, tradução nossa).
Assim como a palavra violência, o amor sofreu “um uso abusivo e onímodo
fez com que se confunda com um afeto, mais forte que uma mera amizade, com
uma paixão momentânea 16” (BARAHONA, 2012, p. 9, tradução nossa). Então essa
perda nos conceitos pode ter tornado nebulosa tal discussão, e grande parte dos
estudos sobre a religião em geral são fracassados. O autor espanhol tratando disto,
comenta:

Os intelectuais e cientistas, em sua cegueira e prepotência, seguem


sem entender a violência e, portanto, suas armas para controlá-la
resultam sempre ridículas e perigosas porque a potenciam de
maneira exponencial cada vez que tentam impedi-la. Não se deram
conta de que as religiões são as primeiras tentativas infrutíferas de
controlar esta força natural 17 (BARAHONA, 2012, p. 9, tradução
nossa).

14 Ángel Jorge Barahona Plaza nasceu em 1957 em uma cidade de Salamanca onde seu pai era
professor. A sua vida universitária desenvolveu-se em Valência e continuou em Madrid, onde reside
atualmente. É doutorado em Filosofia pela Universidade Complutense. Ele é casado e tem quatro
filhos. Atualmente trabalha como Diretor de Ciências Humanas da Universidade Francisco de Vitoria.
Ele também é professor da Faculdade de Filosofia da Universidade San Dámaso e da Universidade
CEU San Pablo. É também professor itinerante da Faculdade de Teologia «R.M. Juan Pablo II »de
Callao (Peru), do Centro Católico de Estudos Teológicos Diego Luis San Vitores de Guam (EUA) e
dos seminários Redemptoris Mater de Takamatsu (Japão), Sydney (Austrália), Manágua (Nicarágua)
e Brasília (Brasil) (tradução nossa). Cf. Ediciones Encuentro, in:
<https://www.edicionesencuentro.com/autor/angel-barahona/> Acesso em 15 de outubro de 2020.
15 Propongo que nos adentremos em um mayor nível de complejidad, poniendo em comparación a la

violência con uma antíteses nueva: el amor.


16 Un uso abusivo y omnímodo há hecho que se confunda com um afecto, más flerte que uma mera

amistad, com uma pasión momentânea.


17 Los intelectuales y científicos, em su cegueira y prepotência, siguen sin entender la violência y, por

tanto, sus armas para controlarla resultan siempre ridículas y peligrosas porque la potencian de
30

Esta denúncia que o comentador faz aos intelectuais reflete uma escassez de
estudos sobre a violência. A cegueira destes se deve a ver “a Paixão de Cristo como
um mito a mais entre os outros 18” (BARAHONA, 2012, p. 9, tradução nossa) e assim
não conseguem ver o antidoto para a violência. A lógica sacrifical dos mitos é de tal
forma inconsequente que vai pouco a pouco dissimulando o homem.
Para dar prosseguimento no estudo deste termo devemos retomar o episódio
de Caim e Abel e fazer a comparação com um novo exemplo, o de Romulo e Remo:

Que se observe a diferença entre Caim e Abel por um lado e Romulo


e Remo por outro. Remo é culpável, sua morte é justa, ao passo que
Romulo é o fundador glorificado de Roma. Ao contrário, na Bíblia
irrompe uma escandalosa diferença – nova – Deus pergunta a Caim:
“Onde está Abel, teu irmão? O que fizeste?” Deus aceita, de fato,
fundar o gênero humano sobre esta base do assassinato, mas se
preocupa pela sorte de Abel, vítima inocente 19 (BARAHONA, 2012,
pp. 10-11, tradução nossa).

Este é o rompimento que a Bíblia realiza para com os mitos. “Somente a


Bíblia ‘desviolentiza’ o sagrado. O cristianismo contradiz o golpe dos mitos 20”

(BARAHONA, 2012, p. 11, tradução nossa).


Todo esse processo revelador tem o cume na paixão de Jesus Cristo, onde a
vítima expiatória se torna o cordeiro de Deus. Neste contexto surge também uma
chave de análise girardiana: a multidão violenta.
Jesus é preso e é levado a Pilatos, procônsul romano, para ser julgado:

Pilatos é o verdadeiro detentor do poder, mas, acima dele, temos a


multidão. Uma vez mobilizada, ela o arrebata de modo absoluto,
arrasta as instituições atrás de si e as obriga e nela se dissolverem.
Aqui temos, portanto, a unanimidade do assassínio coletivo, gerador
de mitologia (GIRARD, 2004, p. 161).

manera exponencial cada vez que intentan atajarla. No se han dado cuenta de que las religiones son
intentos infructuosos de controlar esa fuerza natural.
18 La Pasión de Cristo como um mito más entre otros.
19 Obsérvese la diferencia entre Caín y Abel por um lado y Rómulo y Remo por outro. Remo es

culpable, su muerte es justa, puesto que Rómulo es el fundador glorificado em Roma. En cambio, en
la Biblia irrumpe uma escandalosa diferencia – por inédita – Dios pregunta a Caín: “¿Dónde está
Abel, tu hermano? ¿Qué has hecho?”. Dios acepta, es certo, fundar el género humano sobre esta
base del asesinato, pero se preocupa por la suerte de Abel, víctima inocente.
20 Sólo la Biblia “desviolentiza” lo sagrado. El cristianismo contradisse de golpe los mitos.
31

É interessante que a autoridade de Pilatos é totalmente destruída e por mais


que ele fosse a favor da soltura de Jesus, a decisão dele é totalmente engolida pela
multidão, no auge da crise mimética. Disto se segue:

Eles, porém, vociferaram todos juntos: "Morra esse homem! Solta-


nos Barrabás!" Este último havia sido preso por um motim na cidade
e por homicídio. Pilatos, querendo soltar Jesus, dirigiu-lhes de novo a
palavra. Mas eles gritavam: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Pela terceira
vez, disse-lhes: "Que mal fez este homem? Nenhum motivo de morte
encontrei nele! Por isso vou soltá-lo depois de o castigar". Eles,
porém, insistiam com grandes gritos, pedindo que fosse crucificado;
e seus clamores aumentavam. Então Pilatos sentenciou que se
atendesse ao pedido deles. Soltou aquele que fora posto na prisão
por motim e homicídio, e que eles reclamavam. Quanto a Jesus,
entregou-o ao arbítrio deles (Jo, 18-25)

Destarte, a multidão torna-se “tão poderosa que não tem necessidade de


reunir toda a comunidade para obter os resultados mais surpreendentes” (GIRARD,
2004, p. 175).
A chamada “histeria coletiva” por parte da multidão é algo tão presente e
latente nos discursos da paixão que “as autoridades constituídas se inclinam diante
dela e lhe cedem as vítimas que seu capricho reclama, assim como Pilatos cede
Jesus ou Herodes cede João Batista 21” (GIRARD, 2004, p. 175).
A violência é revelada como irracional. E mais que isso, mimética. A saída
cristã passa pela paixão.

3.2 A paixão e a Revelação como chaves hermenêuticas

O cristianismo rompe também com o judaísmo e o islamismo. Parece que


retorna aos mitos, mas é um engano dizer isso:

De que maneira o cristianismo retoma a pedra rejeitada pelos


construtores, para fazer dela uma pedra fundadora, angular? O
arcaico, a sacralização dos bodes expiatórios vem dessacralizado
pelo judaísmo que “desdiviniza” as vítimas e “desvitimiza” a Deus; é
a separação e a transcendência absoluta. No cristianismo, Deus é
novamente a vítima. É vítima divina. É, deste modo, normal que para
o judaísmo, e para o Islã, o cristianismo apareça como uma

21
Os evangelhos retratam o episódio da degolação de São João Batista, da qual Herodes é o
responsável. Cf. Mt 14 1-12; Mc 6,14-29; Lc 9,7-9.
32

regressão mitológica. Na realidade, não é de forma alguma, já que a


vítima segue sendo inocente. Enquanto, no mito, a vítima é sempre,
de uma maneira ou outra, culpada 22 (BARAHONA, 2012, p. 29,
tradução nossa).

Este mecanismo é completamente exposto pela cruz de Jesus Cristo. Cristo é


a vítima inocente. De tal maneira que o cristianismo rompe completamente com o
judaísmo (que ainda espera o messias) e com o islamismo (que enxerga Jesus
como um profeta, precursor de Maomé), uma vez que esta novidade compreende a
morte e a ressurreição na pessoa de Jesus, Deus feito carne que se entrega por
todo ser humano. O logos 23 feito carne habita entre os homens. Entra em questão o
mistério da encarnação. A linha tênue entre fé e razão. Para o Papa São João Paulo
II na Carta Encíclica Fides et Ratio:

Em auxílio da razão, que procura a compreensão do mistério, vêm


também os sinais presentes na Revelação. Estes servem para
conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente
possa autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De
qualquer modo, se, por um lado, esses sinais dão maior força à
razão, porque lhe permitem pesquisar dentro do mistério com os
seus próprios meios, de que ela justamente se sente ciosa, por outro
lado, impelem-na a transcender a sua realidade de sinais para
apreender o significado ulterior de que eles são portadores. Portanto,
já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a
mente e da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal
que lhe foi proposto (1998, p. 21).

Aqui temos uma diferença basilar entre a fé e o conhecimento filosófico, pois


a filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural (percepção dos
sentidos, move-se pelo intelecto); enquanto isso a fé, iluminada pelo Espírito Santo,

22
¿De qué manera el cristianismo retoma la piedra rechazada por los constructores, para hacer uma
piedra fundadora, angular? Lo arcaico, la sacralización de los chivos expiatórios viene desacralizado
por el judaísmo que “desdiviniza” as víctimas y “desvictimiza” a Dios; es la separación y la
transcendencia absoluta. En el cristianismo, Dios es la víctima de nuevo. Es víctima divina. Es pues
normal que para el judaísmo, y para el Islam, el cristianismo aparezca como na regresión mitológica.
Em realidade, no lo es em absoluto, ya que la víctima sigue siendo inocente. Mientras que, em el
mito, la víctima es siempre, de una o outra manera, culpable.
23 Conceito central da filosofia grega que possui inúmeras acepções em diferentes correntes

filosóficas, variando às vezes no pensamento de um mesmo filósofo. Na língua grega clássica


equivale a “palavra, “verbo”, “sentença”, “discurso”, “pensamento”, “inteligência”, “razão”, “definição”
etc. Supõe-se que em seu sentido etimológico originário de “reunir”, “recolher”, estaria contido o
caráter de combinação, associação e ordenação do logos, que daria assim sentido às coisas.
Na doutrina cristã, influenciada pelo estoicismo e pelo neoplatonismo, o logos (verbum) é a segunda
pessoa da Santíssima Trindade – o Filho – palavra ou verbo através do qual Deus cria o mundo, tal
como encontramos no Evangelho de São João (I, 1, 14) “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
junto de Deus e o verbo era Deus... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.” (Cf. JAPIASSÚ;
MARCONDES, 1996, p. 167).
33

concentra-se em Deus que se manifesta na história, na revelação por meio de seu


Filho Jesus, que é ao mesmo tempo mediador e plenitude dessa revelação. A fé não
nega a razão, mas chega aonde esta não consegue (JOÃO PAULO II, 1998).
O mistério da encarnação atesta a paixão de Cristo como um fenômeno de
absoluta novidade, com o desfecho na ressurreição, dogma de fé do cristianismo,
introduz uma ruptura na história, na filosofia e na antropologia. Deste modo:

A fé na ressurreição condiciona o conhecimento de uma verdade


puramente antropológica. A conversão é uma condição prévia ao
conhecimento. Não se pode entender nada se um não está
predisposto a entender uma verdade que não é sua 24 (BARAHONA,
2012, p. 30, tradução nossa).

Tocado pela paixão de Cristo, o homem deve sofrer uma abrupta mudança de
mentalidade. O homem que sofre o processo de conversão não deve ver mais o
cristianismo como uma “nova religião em continuidade com os sacrifícios antigos 25”

(BARAHONA, 2012, p. 30, tradução nossa), mas como via de revelação da verdade.
Desta forma, Girard defende que existe uma necessidade de conversão para
que se enxerguem os bodes expiatórios; visualizando-se desta maneira todo o
mecanismo de violência:

Conhecer à vítima expiatória necessita uma espécie de conversão,


porque significa conhecer-se a si mesmo como perseguidor [...]. As
duas grandes conversões que estão ao final dos Evangelhos, uma
antes da morte de Jesus – a segunda conversão de Pedro, depois da
sua negação – e a outra – a de Paulo – que vem depois da morte de
Jesus: se trata nos dois casos de um conhecimento de si enquanto
perseguidor. Pedro renega a Cristo e Paulo persegue aos primeiros
cristãos 26 (GIRARD, 2002, p. 99, tradução nossa).

É interessante como no caso destes dois santos, tidos como pilares da igreja,
a história data tempos em que eles foram perseguidores. Pedro nega a Jesus Cristo
por três vezes, em episódio comentado por Girard como um exemplo de estrutura
24 La fe en la resurrección condiciona el conocimiento de uma verdad puramente antropológica. La
conversión es uma condición previa al conocimiento. No se puede entender nada si uno no está
predispuesto a entender y a abrirse a uma verdad que no es la suya.
25 Una nueva religión em continuidade com los sacrifícios antigos.
26 Conocer a la víctima expiatória necessita uma espécie de conversión, porque significa conocerse a

sí mismo como perseguidor [...]. Las dos grandes conversiones que están al final de los Evangelios,
uma antes de la muerte de Jesús – la segunda conversión de Pedro, después de su negación – y la
otra – la de Pablo – que viene detrás de la muerte de Jesús: se trata en los dos casos de un
conocimiento de sí en tanto que perseguidor. Pedro reniega de Cristo y Pablo persigue a los
primeiros cristianos.
34

persecutória: “o espantoso é a estrutura persecutória e sacrifical que se encontra


intacta na cena de negação e que é totalmente transcrita de novo, tão fielmente
quanto o assassínio de João Batista e o relato da paixão” (GIRARD, 2004, p. 233).
No caso de São Paulo, foi um dos grandes perseguidores do cristianismo
nascente e considerado o mandatário do martírio de Santo Estêvão.

Estêvão, porém, repleto do Espírito Santo, fitou os olhos no céu e viu


a glória de Deus, e Jesus, de pé, à direita de Deus. E disse: "Eu vejo
os céus abertos, e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus".
Eles, porém, dando grandes gritos, taparam os ouvidos e
precipitaram-se à uma sobre ele. E, arrastando-o para fora da
cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram seus
mantos aos pés de um jovem chamado Saulo. E apedrejaram a
Estêvão, enquanto este invocava e dizia: "Senhor Jesus, recebe meu
espírito". Depois, caindo de joelhos, gritou em voz alta: "Senhor, não
lhes leves em conta este pecado". E, dizendo isto, adormeceu (At 7,
55-60).

Podem ser vistas muitas semelhanças entre o martírio de Estêvão e a paixão


de Cristo. As frases do mártir enquanto este perecia pela mão dos algozes são muito
similares às de Cristo na cruz, revelando novamente a multidão violenta e a crise
sacrifical mimética. E Girard, relembrando Dom Quixote também atesta a
possibilidade desta imitação ilustrando e retomando o desejo mimético: “A existência
cavalheiresca é a imitação de Amadis no sentido em que a existência do cristão é a
imitação de Jesus Cristo” (GIRARD, 2009, p. 26).
Em contraponto à “mimese” violenta pode ser colocada a imitação de Cristo.
Assim como Estêvão, Paulo passa de perseguidor a perseguido, e daí se segue uma
nova multidão: a dos mártires. Além de revelar o mecanismo violento que prende o
homem desde o começo dos tempos, a paixão de Cristo dá um novo horizonte, um
novo modelo de vida.
Para concluir o decorrente capítulo cabe uma citação do próprio René Girard
que sintetiza como a paixão pode ser um novo fundamento para a vida do homem:

O essencial da revelação sob o aspecto antropológico é a crise de


toda representação persecutória que ela provoca. Na própria paixão,
não há nada de único sob o aspecto da perseguição. Não há nada de
único na coalizão de todos os poderes deste mundo. Esta mesma
coalizão está na origem de todos os mitos. O espantoso é que os
evangelhos salientam sua unanimidade não para se inclinar diante
dela, para se submeter a seu veredicto, como fariam os textos
mitológicos, todos os textos políticos, e até todos os textos
35

filosóficos, mas para denunciar nela um erro completo, a não


verdade por excelência (GIRARD, 2009, p. 175).

A verdade revelada contrasta com a não verdade dos mitos. A paixão de


Cristo passa pelo ser humano. Girard marca desta forma, uma nova forma de
enxergar os acontecimentos da história, denunciando as inverdades que são
contadas aos povos desde a fundação dos tempos.
36

CONCLUSÃO

Diante de toda a empreitada filosófica de René Girard ficam ensinamentos


valiosos. Girard buscou ir ao cerne de um problema muito antigo na história da
filosofia e estudou a origem da violência na sociedade e muito acrescentou com
seus estudos antropológicos.
Estruturalmente, no primeiro capítulo vimos como Girard bebe da fonte dos
clássicos para fundar sua teoria na crítica literária, em especial Platão e Aristóteles.
Com um olhar clínico para as obras românticas, o francês faz da sua análise literária
uma análise do desejo humano. Defende que um desejo sempre é almejado por
mais de um sujeito desejante. Tomando como máxima que todo desejo é mimético,
cria o conceito de desejo triangular, que será nomeado depois como desejo
mimético. Do desejo surgem duas possíveis relações, uma pacífica, nos moldes de
tutor-discípulo e a outra catastrófica, de inveja que toma forma em tempos de crise
social. Entre o desejo e a violência existe uma linha muito tênue, e facilmente pode
ser ultrapassada.
Visto isso, no segundo capítulo exploramos casos em que essa linha foi
ultrapassada, como por exemplo, na época da peste negra. Nesses momentos
acontece a chamada “crise mimética”, onde cada um imita o desejo do outro de
encontrar um culpado. Vimos que este fenômeno é chamado de mecanismo
vitimário, onde uma mínima diferença entre os indivíduos pode ser o essencial para
a eleição de um bode expiatório. Concluímos este capítulo unindo a violência e o
sagrado, analisando textos de Girard sobre o sacrifício, que é para ele, fundador e
fundamento de todos os mitos e ídolos, e que se mantém na sociedade de maneira
oculta até os dias de hoje.
Por fim no terceiro capítulo coube ver com a ótica de René Girard a novidade
evangélica, a paixão de Cristo e a Revelação. Depois de estudar tais textos bíblicos
à luz da filosofia girardiana fica claro como o cristianismo vai contra a corrente das
outras religiões, e ao invés de dar subsídio ao sacrifício, o escracha a partir da
paixão de Jesus Cristo, filho de Deus que se faz homem e se torna bode expiatório
por vontade própria. Abriu, desta maneira, uma nova maneira de enxergar as
relações humanas.
37

Em suma, decorrido todo o presente trabalho, atingimos nosso principal


objetivo, o de analisar os principais conceitos da filosofia de René Girard, um filósofo
com ideias muito ricas e que muito acrescentou nos estudos antropológicos, mas
que acabou ficando um tanto quanto esquecido no contexto contemporâneo.
38

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