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RIO DE JANEIRO
2021
1
WILKER DE CARVALHO MARQUES
RIO DE JANEIRO
2021
2
FICHA CATALOGRÁFICA
(no verso da folha de rosto)
3
MARQUES, Wilker de Carvalho.
Utopia, alter mundus e o projeto de uma solidariedade cosmopolita em Richard
Rorty.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, para obtenção do título de
doutor em Filosofia.
Aprovada em ___/___/_________
BANCA EXAMINADORA
4
*
Para minha amada
Kellynha
porque
o maior conforto é, também,
o maior desafio:
a certeza de que só temos
– de verdade –
uns aos outros
nesta vida.
5
AGRADECIMENTOS e DEDICATÓRIA
6
Dedico esse trabalho a João
Marques Ferreira, meu pai,
homem que me ensinou pelo
exemplo a proceder com esmero
em todas as pequenas ações da
vida – in memoriam.
7
RESUMO
8
ABSTRACT
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12
CAPÍTULO I: CONTINGÊNCIA, UTOPIA E ALTER MUNDI ........................... 19
1.1 Se utópico, mãos à obra: as utopias do possível ........................................ 32
1.1.1 A utopia em contraponto à ideologia na Sociologia do Conhecimento de Karl
Mannheim .......................................................................................................... 34
1.2 Se utópico, apenas utopia: as utopias do impossível ................................. 39
1.3 Se utópico, ineficaz ou perigoso: o antiutopismo ....................................... 42
1.4 Um estilo literário de romances sociais ........................................................ 47
1.4.1 Utopia, de Thomas Morus, abre um caminho de possibilidades ilimitadas ....... 54
1.5 O estatuto do discurso pós-moderno: o fim das utopias? ......................... 61
1.6 Novo o homem, novas as utopias.................................................................. 67
1.6.1 A utopia antiespecista ou biosférica .................................................................. 69
1.6.2 A utopia trans-humanista ou pós-humanista ..................................................... 72
10
Cambiar el mundo, amigo Sancho, que no
es locura, ni utopia, sino justicia.
(Miguel de Cervantes,
Dom Quijote de La Mancha)
11
INTRODUÇÃO
De fato, essa tem sido uma questão sintética para o homem: afinal qual
outro problema lhe seria tão relevante quanto este, o que lhe seria mais caro
que sua vida? Assim, a incerteza do viver é-lhe um perturbador e insólito
oponente, segundo o poeta, até mais que outra grande rival, a consciência da
finitude, a certeza da morte. Diante dele, o homem se vê incumbido de dar
respostas: alguns, como se tornou comum, por exemplo, à filosofia helenística
– dos estóicos, epicuristas, cínicos e céticos – escolhem o remédio de assumir
o peso da contingência e conviver com as vicissitudes da vida de maneira o
mais receptiva e resignada possível, cultivando a ataraxia2, escapando à dor e
ao sofrimento associados ao medo do desconhecido3; outros adotam
subterfúgios vários com o fito de mitigar, ao máximo, o fardo sisífico da
imprevisibilidade. Procuram uma espécie qualquer de porto seguro – ou uma
calmaria que seja – para essa navegação temerária que é a vida.
Bauman, arguto observador dos hábitos e ideias associadas à essa
demanda, expressa-o de modo primoroso:
1
DA COSTA E SILVA, Antonio Francisco. Poesias completas. 4. Ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, p. 305.
2
Estas escolas de filosofia helenística e romana, a despeito de cada uma ter as suas
particularidades e recomendarem, cada uma à sua maneira, uma concepção de boa vida ou
uma forma de viver melhor, oferecem possibilidades de segurança, de harmonia, perante a
contingência do mundo e do homem. Nesses contextos, atingir a sabedoria é, também, atingir
a ataraxia. O homem sábio se torna, portanto, cada vez mais imperturbável ante às vicissitudes
da vida, encarando-as com tranquilidade de alma e reagindo com a calma e a serenidade
necessárias para fugir à condição de escravo das paixões.
3
A postura racional e reflexiva de tais correntes de pensamento helenístico as torna a mais
determinada adversária das predições e profecias onipresentes na cultura grega desde os
períodos mais remotos de sua formação. Cf. MINOIS, Georges. História do futuro: dos
profetas à prospectiva. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2016, p. 38.
12
Incerteza significa medo. Não admira que sonhemos,
continuamente, com um mundo sem acidentes, um mundo
regular. Um mundo previsível. Não um mundo de rosto
impenetrável – ainda que alguns filósofos, como Leibniz,
estejam certos ao afirmarem que mesmo um “mundo perfeito”
não seria perfeito se não contivesse alguma dose de aflição, ao
menos que esta aflição seja confinada a recintos
confiavelmente cercados, bem mapeados e estritamente
vigiados e guardados, de modo que se possa saber o que é o
quê, onde as coisas estão e quando deve-se esperar que
alguma coisa aconteça – e estar pronto para enfrentá-la
quando vier. Em suma, sonhamos com um mundo no qual
possamos confiar e acreditar. Um mundo seguro. (BAUMAN,
2007, p. 100)
4
Segundo Minois (2016, p. 10), as predições parecem fazer parte essencial da condição
humana, visto que podemos encontrá-las nas mais remotas manifestações da cultura: “(...)
prova do papel essencial da predição na condição humana: nos primeiros traços escritos
deixados pelas civilizações do Oriente Próximo, a atividade de adivinhação é mencionada e
visivelmente tem um papel social fundamental. Na Mesopotâmia, no mundo caldeu e assírio-
babilônico, as tabuinhas de argila falam desde o III milênio de uma profusão de práticas
divinatórias como a lecanomancia (consulta pelo óleo), a teratomancia (presságios feitos a
partir de deformações), a oniromancia (estudo dos sonhos premonitórios)”
5
Muito embora alguns textos tradicionalmente tidos por utopias se refiram a uma espécie
qualquer de paraíso perdido, de onde o homem saiu ou, por alguma infelicidade, foi expulso,
quando a ele se refere projeta no futuro a possibilidade – reconhecida ou velada – de
reencontrá-lo, de reconquistá-lo ou reconstruí-lo, retirando, assim, do passado possibilidades
para o futuro.
13
esquadrinhar as sociedades reais – pensar a vida real – a partir das quais
encontram subsídios imaginativos para criar os elementos que constituiriam os
seus alter mundi, erguidos utopicamente.
A utopia vê o presente, mas os seus olhos não estão adstritos a ele. Ela
desenvolve uma forma exclusivamente sua de lidar com este fiel inimigo
misterioso, o tempo:
14
Precisamente por considerar o incontornável potencial transformador
que as narrativas desempenham na vida social, muitos foram os pensadores
na história da filosofia política que se valeram da sistemática utopista para
descrever as suas noções de bem, de boa-vida, felicidade e justiça. São eles,
por assim dizer, world makers, arquitetos de mundos, em vista de sua
capacidade de projetar possibilidades, de especular sobre circunstâncias
sociais cujos fundamentos parecem incompreensíveis, improváveis e/ou
inaceitáveis aos seus interlocutores contemporâneos. Tais concepções de
bem, boa-vida, felicidade e justiça, resguardadas as particularidades de cada
uma, recorrentemente estão relacionadas a certos valores como a
humanização do trabalho, a igualdade de tratamento e oportunidades a
homens e mulheres, a justa distribuição da riqueza, a liberdade de consciência
– pensamento e expressão –, a universalização da educação, a liberdade
religiosa, e outros afins.
Esses valores, que se repetem em uma profusão de obras literárias e
filosóficas de caráter utopista, chegam ao nosso tempo ainda como uma galeria
de sonhos ou de ideais a se perseguir. Especialmente para homens e mulheres
que ainda veem na justiça social e na defesa do ser humano ideias pelas quais
vale muito a pena viver ou, até mesmo, valeria a pena morrer, essas ideias são
um horizonte a que objetivamos. E o mais importante não é se conseguimos
conquistá-los, parcialmente, mas que continuemos lutando por eles.
O filósofo estadunidense Richard Rorty (1931 – 2007) encontrou em
valores como esses – a democracia, a solidariedade, a liberdade e a justiça
social – o ideal máximo a defender por meio de sua produção intelectual. Em
sua retórica moral e política, posicionou-se também como um world maker ou
como um poeta forte – alguém capaz de imaginar e apontar um norte para a
construção de um mundo mais justo e melhor.
Mesmo no ocaso do século XX e início do século XXI, tempo em que o
senso comum e até o trabalho de autores consagrados bradam o fim de todas
as esperanças, o descrédito das grandes narrativas ou, como preferem alguns,
a morte de todas as utopias, Rorty encampa uma proposição por demais
desafiadora: a esperança, ou o sonho, de que ainda construiremos um mundo
para o qual sequer existem palavras apropriadas a descrê-lo, uma utopia
cosmopolita liberal-democrática, fundada na solidariedade e no diálogo, onde
15
não haverá mais a banalização da crueldade entre os cidadãos ou de qualquer
atitude de humilhação de um homem por outro homem.
Este trabalho se apresenta como a culminância da pesquisa acerca de
como Rorty foi capaz de defender algo tão aparentemente anacrônico. E se a
retórica rortyana permite concluir que, para o autor, essa utopia não era um
sonho irrealizável, mas uma utopia do possível, uma estrada – difícil de
vislumbrar e descrever pormenorizadamente – que as pessoas e os povos
podem percorrer, criando para si mesmos um mundo inimaginavelmente
melhor. Não a única estrada possível, mas a melhor que somos capazes de
imaginar hoje. Desse modo, objetivamos expor que, para Rorty, mais que um
método, sua utopia seria também uma meta.
O processo de discutir e demonstrar tais ideias parte da assunção de um
objetivo geral e três específicos. A saber, como objetivo geral, pretendemos
reconhecer o pensamento filosófico de Rorty como o projeto de uma utopia
cosmopolita liberal-democrática importante no cenário da reflexão política
contemporânea; já como objetivos específicos pretendemos: 1. Descrever a
utopia, em sentido lato, como um instrumento de reflexão política; 2. Analisar a
utopia rortyana, buscando esclarecer as particularidades dessa proposta
política; 3. Investigar a crítica de importantes autores ao pensamento político
de Rorty, especialmente ao seu conceito de utopia cosmopolita liberal-
democrática.
Em termos estruturais, a organização básica desta Tese se estabelece
em um esquema de tópicos e subtópicos, dividindo-se o texto em três
capítulos, que, a despeito de terem suas especificidades resguardadas,
manterão a unidade e a coesão textual que possibilitarão traçarmos um fio de
Ariadne, uma condução, para a coerência da discussão do tema em tela.
O primeiro capítulo, cujo título é “Contingência, utopia e alter mundi”,
discorrerá sobre aspectos esclarecedores gerais acerca do conceito de utopia,
sobre as características mais recorrentes ao discurso utópico, aspectos da
vastíssima literatura que se estabelece em volta do espírito utópico – tomando
como um marco a obra Utopia, de Thomas Morus, que, no ano de 2016
completou 500 anos de edição, texto que viria a definir os contornos dos
escritos utopistas na Modernidade, e abriria caminhos para um gênero literário
de romances utópicos. Além disso, abordará uma apresentação de três
16
posturas teóricas muito relevantes acerca das utopias: o antiutopismo –
especialmente na retórica de pensadores como Karl Popper e Isaiah Berlim –,
as utopias do possível – representadas, principalmente pelo pensamento
marxista, por Herbert Marcuse e pelo sociólogo Karl Mannheim – e as utopias
do impossível – nos termos, principalmente, de Bronisław Baczko.
Por fim, o capítulo I compreende ainda a acalorada discussão a respeito
do futuro da utopia: se faz sentido afirmar que vivemos, ou que viveremos em
breve, um tempo de ocaso para todas as utopias, como anunciam algumas
vozes altissonantes do cenário político-filosófico e literário.
Evidentemente, não se pretende, nos limites deste primeiro capítulo –
nem mesmo nos limites de todo o trabalho –, fornecer uma classificação
exaustiva ou teorização cerrada suficiente ou, menos ainda, definitiva das (ou
sobre as) utopias, uma vez que os escritos literários não se realizaram
seguindo este ou aquele padrão limitante, mas, como se verá em um de seus
atributos, são marcados pela capacidade de imaginar, livre e criativamente,
desenhos sociais os mais fantásticos e diversos.
O segundo capítulo, A política em Rorty: uma utopia cosmopolita
liberal-democrática, é a seção que mais diretamente empreende a tarefa de
discutir os problemas norteadores da pesquisa, a saber, dois problemas
principais: 1. Fazer uso do recurso da utopia – como método – é ainda uma
opção razoável ao pensamento filosófico-político mesmo no século XXI,
quando muitos bradam o fim das utopias e grandes narrativas? 2. Como se
situa o pensamento político-filosófico de Richard Rorty, que compreende uma
utopia liberal-democrática, no cenário político da contemporaneidade? Apenas
como um método ou também como uma meta?
Responder a essas questões centrais também nos lavará, não apenas
no capítulo II, mas em todo o texto, a confrontar uma grande quantidade de
outras questões secundárias e importantes, tais como: que significados e que
alcance podem ter, na escrita rortyana, expressões como “utopia”,
“cosmopolitismo”, “liberalismo”, “democracia” e “solidariedade”; se há uma
coerência interna à produção intelectual de Rorty aqui analisada quando o
próprio filósofo opta por denominar utópico o seu pensamento político; por fim,
se Rorty encara a sua utopia como um projeto revolucionário ou como uma
projeto reformador.
17
O terceiro e último capítulo – A política rortyana é uma utopia do
impossível? Rorty sob fogo amigo e sob fogo inimigo – é, metodologicamente,
uma expansão do segundo. Nele, a retórica rortyana será colocada sobre o
pano de fundo de outros diversos discursos importantes do pensamento
político contemporâneo. Assim, pensadores com os quais Rorty manteve um
diálogo direto e contínuo relativo à sua posição política ou aqueles cujas obras,
de algum modo, criticam o pensamento rortyano – como, por exemplo, Richard
Bernstein, Roger Scruton, Francis Fukuyama, Chantal Mouffe, Zygmunt
Bauman, Carvalho Filho e Ernesto Laclau – serão acessados para que suas
ideias sejam superpostas ou contrapostas à visão rortyana.
Nas Considerações Finais revisito e amplio os pontos principais da
argumentação, caracterizando a perspectiva rortyana como um pensamento de
esperança, como um ponto de onde partir na tarefa de construir um mundo
melhor, mais solidário, inclusivo, liberal e democrático.
18
CAPÍTULO I
6
Falar-se de algo essencialmente humano pressupõe certa concepção de Homem muito
recorrente na história do pensamento ocidental, a aceitação de que exista uma Natureza
Humana, um complexo de atributos comuns a todos os homens, que os fazem pertencer à
mesma espécie e compartilhar algumas marcas indeléveis. Esta não é, no entanto, uma
questão pacificada, uma ideia acatada indiscriminadamente. A partir, principalmente, da atitude
dos poetas românticos, muitos são os artistas e pensadores que a negaram e propuseram o
abandono de qualquer crença decorrente do pressuposto da uniformidade essencial do
homem. Toda a retórica de Richard Rorty, por exemplo, como se verá adiante, combate esse
ponto de partida, pretende-se liberto desse pressuposto, desenvolvendo um pensamento anti-
essencialista, antifundacionista e, especialmente, antiplatônico, chegando, evidentemente, a
resultados bem diferenciados em termos de Moral e de Política.
7
A respeito disso, Wolff comenta: “da Antiguidade chegou até nós a ideia e que o homem é um
“animal racional”, isto é, um organismo vivo distinto de todos os outros, porque dotado de logos
(linguagem? razão?). Essa ideia, que tem origem na filosofia de Aristóteles, encontrou de que
se alimentar e se desenvolver no Estoicismo, depois atravessou os séculos, passou para os
padres da Igreja, em especial Santo Agostinho, em cuja obra a fórmula assumiu uma feição
claramente dualista – sendo a animalidade o destino do homem depois da queda e a
racionalidade a marca do espírito; foi retomada na filosofia tomista, onde recuperou um sentido
mais aristotélico – sendo a racionalidade entendida como a forma da animalidade; depois foi
criticada por Descartes” (WOLFF, 2012, p. 10). Conceituar o homem como um “ser pensante”
é, pois, uma ideia que se torna muito forte na tradição do pensamento filosófico, desde a
Antiguidade, até a Modernidade e chega a nosso tempo ainda com muito fôlego, servindo de
pressuposto a muitas concepções antropológicas, jurídicas e filosóficas.
19
compondo os mecanismos de enfrentamento da consciência da própria finitude
e atestando o seu status de um ser histórico, autor – ou, no mínimo, co-autor –
da narrativa de si mesmo:
8
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo. Trad. Ana Cláudia Romano Ribeiro. Morus: utopia
e renascimento. Vol. 02. 2005. 123 – 135, p. 128.
9
Essa é, inclusive, uma das características da utopia liberal democrática de Richard Rorty, que
será considerada com mais atenção nos capítulos seguintes. A imaginação como o veículo da
mudança social e do progresso moral.
10
Há textos antigos e medievais que trazem algumas características da literatura utópica
atreladas a uma em especial: a realidade ideal que propugna não deverá ser conquistada pelo
homem através de seus méritos próprios, ou porque está acima da realidade meramente
humana, como em Platão, ou porque é uma fatalidade que independe do arbítrio humano,
sendo imposta ao homem pela superioridade divina. Tais textos, pré-modernos, são tidos por
muitos estudiosos como as raízes do utopismo, mas não, propriamente, como utopias, no
sentido que essa palavra herdará da modernidade.
20
A tradição da filosofia política, mais do que exibir uma
sucessão de sistemas constituídos pelos azares da história e
por contextos particulares, como sustentam os historiadores
das ideias, indica a presença de uma miríade de esforços
continuados de configuração de mundos sociais possíveis. É
como se a pergunta aforismo de Paul Valéry – o que seria de
nós sem o socorro do que não existe? –, por algum efeito
misterioso de retroação, estivesse presente desde a origem – e
durante todos os trajetos – da tradição da filosofia política.
11
Opto por apresentar uma análise etimológica, mais convenientemente, no item 1.4.1 deste
trabalho.
12
Observe-se que se fala em uma postura crítico-propositiva. Não é o papel da utopia fazer tão
somente a leitura jocosa da vida, algo como a sátira social, mas ir além disso, apontando para
as possibilidades de se ter algo diferente – mesmo que, muitas vezes, bem improvável –
daquilo que atualmente há.
21
A utopia se faz necessária quando não se aceita o que é e,
portanto, se faz necessário transcendê-lo. Ao questionar o real
(a sociedade, o poder, seus valores e instituições) e abrir um
espaço ideal, irreal ou futuro, a utopia é subversiva. Subverte o
real e abre uma janela para o possível.
13
LEVY, Nelson. Crítica e utopia. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p. 22.
14
Coelho afirma que Platão expõe tal alegoria, especialmente, em três diálogos principais, a
República, as Leis e, por fim, Crítias. Mas as ideias fundamentais à estruturação e
funcionamento de sua Calípolis são extravagantes, encontrando-se dispersas em todo o
universo de sua obra. Cf. COELHO, Teixeira. O que é utopia? São Paulo: Brasiliense, 1985, p.
20.
15
Cf. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. 2. Ed. Trad. Mário da
Gama. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 181. Apenas uma pequena parte dessa
obra chegou à contemporaneidade. Basicamente, tudo o mais que se sabe sobre ela é oriundo
de citações da época como a de Laêrtios.
16
Zenão de Cício (333 a.C. – 263 a.C.), filósofo fundador da escola estóica.
22
Para Minois17, os gregos encontram na utopia um sucedâneo para os
oráculos e outras formas populares e remotas de predições, quando estas já se
viam em um processo contínuo de perda de credibilidade. Hipodamos de
Mileto, no século V a. C., arquitetou uma cidade ideal, tecendo, com uma
riqueza de detalhes impressionante, a sua estrutura física, a composição e o
funcionamento da sociedade lá estabelecida. Aristófanes, em As aves, ergueu
a sua “Cucolândia nas nuvens”, uma cidade ecológica imaginária, situada entre
o céu e a terra, onde o homem não se encontra à mercê dos caprichos dos
deuses e onde não há mais a necessidade de espécie alguma de predição.
Pode-se afirmar que estas primeiras expressões utópicas seriam, assim, o
resultado da dinâmica cultural em que várias formas de predições, incluindo os
famosos oráculos, se encontravam e mediam as suas forças na credibilidade
dos gregos, traçando panoramas do presente e do futuro e questionando
aspectos da vida moral, política e cultural.
Quando, tempos após, Platão incluía, por exemplo, a necessidade de
que as mulheres tivessem igualdade de acesso à educação na sua Calípolis,
fazia-o certamente contra o pano de fundo de uma Grécia em que a
segregação da mulher era prática social corrente. Quando apregoava a
Sofocracia, fazia-o a partir da constatação dos vícios que, em sua perspectiva,
eram inerentes à democracia de então. E quando reestruturava a noção de
família, fazia-o para que o sentimento de solidariedade social entre os cidadãos
de sua República se estabelece em termos mais abrangentes que o
parentesco, para que houvesse maior coesão social.
E, do mesmo modo, quando Thomas Morus, já no Renascimento,
publicou Utopia, em que limitava a jornada diária de trabalho dos cidadãos ao
total de seis horas, fazia-o contra o pano de fundo de uma Inglaterra em que
havia uma flagrante desumanização do trabalho. Quando bania a ostentação
da vida dos utopianos, fazia-o, certamente, por se deparar com ela na vida
cotidiana dos ingleses de seu tempo.
Precisamente por esta razão – por posicionar-se como um observador e
julgador do aqui e agora – o impulso utópico é tão recorrente às conjunturas
17
MINOIS, Georges. História do futuro: dos profetas à prospectiva, p. 85.
23
sociais estremecidas18, agonísticas, mostrando-se uma opção usual às
circunstâncias de crises, uma espécie de “tábua de salvação” para o naufrágio
que parece se anunciar, e que nem todos são capazes de perceber. Em
relação a tal ideia, Minois, observando a evolução histórica da utopia como
gênero literário e seu impacto no Século das Luzes, que é, para ele, o apogeu
da produção intelectual em torno desse gênero, afirma que:
24
tradição antropológica e filosófica dá ao homem, também, a alcunha de homo
utopicus.
Dessa maneira, uma utopia é um ideal para a coletividade, é a
proposição de um modus vivendi mais equilibrado, justo e harmônico para as
pessoas de uma coletividade e não apenas para um bem-nascido com quem a
fortuna, ou a sorte na loteria da vida19, foram muito benevolentes:
19
John Rawls, eminente pensador contemporâneo, utilizou a expressão loteria da vida, em
“Uma teoria da justiça” para se referir ao fato de que “a vida não é justa”, uma vez que algumas
pessoas nascem em condições econômicas muito privilegiadas, enquanto outras precisam
enfrentar realidades muito adversas desde a mais tenra infância. Sua intenção enquanto
pensador de filosofia política, ao desenvolver a teoria da justiça como equidade, foi a de
encontrar mecanismos teóricos possibilitadores de fair play, isto é, imaginar e descrever os
Princípios de Justiça capazes de corrigir as desigualdades e injustiças sociais advindas não do
mérito das pessoas, mas da pura sorte. Carvalho Filho (2006, p. 27), afirma que o impacto de
Uma teoria da justiça na discussão política foi tamanho que parecia representar o triunfo
inquestionável do liberalismo: “o liberalismo estaria consolidado como o paradigma vencedor
na filosofia política, ao ponto de se chegar a afirmar que parecia então impossível a qualquer
um deixar de ser, efetivamente em algum sentido, liberal”.
25
O aspecto projetual das utopias é, por conseguinte, um atributo de
enorme relevância para a sua caracterização. Um pensamento ou um texto em
que se propugna uma decorrência óbvia das condições ou dos processos
sociais presentes não poderá ser dito uma utopia. Muito embora tenha raízes
fincadas nessas condições sociais reais, a utopia enxerga a possibilidade do
novo, acreditando, mesmo que apenas como um background, na capacidade
da razão humana, e/ou de sua ciência, de intervir nos mecanismos sociais e
melhorar a vida do homem. E, em sua maioria, o impulso utópico – e em
decorrência, a literatura utópica – costuma ser mais revolucionário que
reformista. Evidentemente, em sentido contrário, alguns autores em particular,
cuja vocação parece mais literária que filosófica, traçaram ideais de vida
comunitária tão singularmente extravagantes, em relação ao contexto social em
que estavam inseridos, que, de certo modo, obstaram radicalmente quaisquer
identificações ou reconhecimentos entre o agora e o imaginado alter mundus.
Em relação a esse aspecto propositivo, e ao grau de detalhamento dos
das sociedades idealizadas pelas retóricas utópicas, Jacoby evidencia a
existência de duas tendências no pensamento utopista: a tradição projetista e a
tradição iconoclasta20. Os projetistas são aqueles literatos que em seus textos
prezaram pelo máximo detalhamento das sociedades ideais que descreviam,
concentrando-se em fazer o mapeamento de cada aspecto de seus alter
mundi. Grande parte da literatura utópica respira esse ar – já presente em
Platão, como um gosto pelo detalhismo descritivo, expresso no contar,
enumerar, ordenar muito cuidadosamente –, constituindo-se de narrativas em
que o gênio criativo do autor chega a estabelecer os pormenores do lugar, do
tempo ou da rotina de vida, idealizados. Na Utopia, Morus, segundo Jacoby
(2007, p. 16), faze-o com um preciosismo exemplar, descrevendo a rotina dos
cidadãos utopianos:
20
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época
antiutópica.Trad. Carolina de Melo Bonfim Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p. 15.
26
Morus, na verdade, chegou a mencionar21 os vasos sanitários, feitos de
ouro – desconcertantemente, para os leitores de sua época – que seriam
utilizados pelos cidadãos22.
O monge e filósofo italiano Tommaso Campanella (1568 – 1639), por
sua vez, demonstrando também a intenção de descer aos detalhes cotidianos
da vida na sociedade por ele imaginada-descrita, vaticinou que em sua Cidade
do Sol23, os cidadãos, os solarianos, viveriam em tal qualidade de vida que
seriam imunes a doenças incômodas como a gota e o reumatismo, e até às
inconvenientes e desconcertantes flatulências.
Já Robert Owen (1771 – 1858), em seu Livro do Novo Mundo Moral – de
1836 – com o mesmo ímpeto, descreve uma estruturação arquitetônico-
urbanística minuciosamente planejada, em que as cidades contam com
espaços especiais destinados ao convívio social, como as praças e pomares, e
as casas dispõem de sistema inteligente de aquecimento, com quantidade
padronizada de cômodos.
Para Jacoby24, essa riqueza de detalhes, característica dos textos das
utopias projetistas, de certa forma, condiciona o porvir, uma vez que sempre o
imagina e o descreve com as possibilidades da linguagem presente. Isso tem
um efeito castrador, restringente, da sociedade futura, afastando ou
abstaculizando que se possa conceber um desconhecido absolutamente novo.
Evidentemente, delimitar o futuro oferece leveza ante o peso esmagador da
incerteza e da contingência.
Em contraposição ao detalhismo dos utopistas projetistas, os chamados
utopistas iconoclastas ou antiprojetistas, procuram ser prudentes e comedidos
para com o procedimento descritivo. Eles oferecem a imagem idealizada de
uma sociedade melhor, apresentam as suas retóricas crítico-propositivas, mas
se abstêm de estabelecer contornos muito nítidos, definições muito acabadas,
21
MORE. Thomas. Utopia. Trad. Márcio Meirelles Gouvêa Júnior. Belo Horizonte: Autêntica,
2017, p. 121.
22
A utilização de metais nobres, como o ouro e a prata, para a fabricação de utensílios pelos
utopianos não deve ser interpretada como um sinal de luxo ou ostentação. Ao contrário disso,
pessoas que devessem ser marcadas, estigmatizadas, os apenados, é que eram obrigados,
por força, a utilizar argolas, anéis, correntes ou coroas de ouro.
23
La cittá del sole , obra publicada em 1602, durante o período de 20 anos em que o autor
esteve encarcerado, sob acusação de heresia.
24
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica, p.
65.
27
minuciosas, de como será cada pequeno aspecto da vida cotidiana. De certo
modo, para esses escritores, literatos e/ou filósofos, não há como delimitar e
descrever precisamente o futuro. Ele só pode ser vislumbrado precariamente
por meio de aproximações e estimativas. Como um exemplo de utopista
iconoclasta, por sua vez, Jacoby (2007, p. 17) cita Ernest Bloch (1880 – 1959),
e seu The Spirit of Utopia:
25
Ibid., p. 66.
26
Também chama a atenção para o fato de que muitos dos autores iconoclastas não só tinham
forte influência da cultura judaica como eram mesmo judeus. Jacoby expõe um rol
exemplificativo: Martin Buber, Gustav Landauer, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Herbert
Marcuse, Ernest Bloch, entre muitos outros.
28
Pode-se afirmar que, em termos rortyanos, abster-se de tecer os
detalhes de cada aspecto da vida da nova sociedade a que se pretende chegar
– ou que se está a pensar – é, na verdade, reconhecer e respeitar a
contingência – tanto da linguagem quanto da sociedade – inclusive, da
sociedade futura, idealizada, e ter sempre em mente que a dinâmica social não
expira com as conquistas das transformações sonhadas. Isto é, para Rorty,
cada metáfora literalizada será sempre o melhor ambiente possível para o
surgimento poético de outras metáforas, e cada utopia transformada em
conquista civilizacional será sempre o melhor ambiente possível para que se
tenha uma imaginação poético-criativa de utopias sempre novas e
inesgotáveis. É o que Calder (2006, p. 43) pretende dizer quando afirma que
“as metáforas desencadeiam as redescrições que tomam o rumo do
progresso”. Assim, a utopia rortyana é o lugar da continua e interminável
expansão do espaço lógico moral, nela jamais especula atingir o estágio final, a
realização plena, do que quer que seja. Ela não persegue a perfeição, não
alimenta a esperança da linguagem perfeita, nem do homem perfeito, a
democracia perfeita, ou o liberalismo perfeito.
Essa postura, radicalmente acautelatória, dos utopistas iconoclastas – e
de Rorty em especial – evitaria, portanto, permitir-se cair em ideologias de
ascendência milenarista27, como a ideia de “fim da utopia” ou de “fim da
história”, o que já sucedeu a tantos intelectuais importantes, a exemplo de
Hegel, Marx e, mais recentemente, do filósofo nipo-estadunidense Francis
Fukuyama.
Precisamente pela consciência da necessidade desta postura
acautelatória28, Rorty ousava asseverar que o tipo de homem exigido para
habitar a sociedade por ele sonhada – imaginada utopicamente – era de tal
modo fora do alcance de nosso olhar que ainda não existiam sequer as
27
Referente a milenarismo, pensamento cristão-primitivo segundo o qual existe a promessa do
advento de um tempo de plenitude, felicidade e perfeição que durará mil anos. Esses mil anos,
entretanto, são interpretados – a partir da leitura dos textos bíblicos, especialmente as
profecias de João em Apocalipse – como uma “eternidade de um único dia”, um eterno
presente, uma época interminável de paz e tranquilidade.
28
Todo a escrita rortyana é marcantemente acautelatória. Essa característica, longe de se
resumir a uma mera questão de estilo literário, decorre de sua coerência teórica, uma vez que
Rorty – partindo de um profundo antifundacionismo e anti-essencialismo – assume sempre
uma perspectiva deflacionada em relação a muitas das questões tradicionalmente tomadas
como problemas-chaves da filosofia, como, por exemplo, a questão da Verdade.
29
palavras apropriadas para descrevê-lo29. Em consequência imediata, é
imperioso que a dinâmica do mundo e da vida social seja acompanhada pela
dinâmica da linguagem – a invenção de novas palavras e o uso de palavras
antigas com sentido e alcance inteiramente novos –, em um processo
interminável de retroalimentação:
29
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity. New York: Cambridge University
Press, 1989, xiv.
30
resultado dos melhoramentos motivados por “saltos biológicos” (naturais ou
impostos), a partir do pressuposto evolucionista30.
Conjecturar, pois, sobre esse aspecto da existência humana, tão rico e
instigante, que é a capacidade-necessidade-prerrogativa de imaginar ou sonhar
suscita uma série de questões fundamentais, sobre as quais muitos dos
pensadores até aqui elencados e ainda muitos outros se debruçaram.
Questões tais como: o que de fato representa a utopia para o homem? Pode o
homem prescindir incólume dessa sua capacidade-necessidade? A utopia é o
mobile do espírito romântico, modelando o pensamento e a arte do séc. XVIII e
seguintes? A utopia é necessariamente revolucionária? Utopia e política podem
caminhar juntas? Existe um aspecto perigoso ou nocivo em sonhar? Utopia
pressupõe Totalitarismo? A utopia é compatível com o pensamento acerca do
poder na contemporaneidade, isto é, deve-se levar a sério um pensador que
sustenta uma utopia nos séculos XX e XXI? É admissível estabelecer um ideal
de sociedade justa no ambiente democrático-liberal-capitalista?
Estas questões e outras semelhantes foram objeto da reflexão de
grandes teóricos, desde a Grécia Clássica, que estabeleceram uma profícua e
instigante produção e discussão em torno do conceito de utopia, pensando o
seu alcance, o seu impacto e a relação entre utopia e realidade. Este capítulo
objetiva, pois, discutir alguns dos enfrentamentos a essas questões e alguns
dos diálogos que se estabeleceram a partir das propostas de soluções a elas
apresentadas.
Dentre os problemas acima, a questão possibilidade-impossibilidade
associada à utopia é, sem dúvida, uma das mais instigantes discussões acerca
do conceito aqui discutido, muito provavelmente pelo fato, retomado
pormenorizadamente em sessão posterior deste trabalho, de que a própria
significação do termo e a tradição polissêmica do seu uso, acabaram por
colocá-lo em uma posição muito delicada. Vázquez afirma que “a utopia se
move entre dois extremos, o impossível e o possível” (VÁZQUEZ, 2001, p.
364). Não é, note-se bem, em se tratando de utopia, a realidade o que mais
interessa. É a possibilidade que é relevante. E é imperioso considerar, quando
30
MAFFEY, Aldo. Verbete “Utopia”. In BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. (Orgs.). Dicionário de política. 13 ed. Trad. Carmen C. Varrialle, Gaetano Loiai
Mônaco, João Ferreira, Luis Guerreiro Pinto Cacais, RenzoDini. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2016, p. 1284-1290. 2 vols, p. 1.288.
31
se fala de possibilidade-impossibilidade, que muito daquilo que se tem por
impossível está, na verdade, sob efeito do véu que a realidade – atual,
conjuntural, mas contingente – impõe a nossos olhos31. Precisamente por isso,
muito do que é impossível, só o é até alguém o realizar. E muitas das
conquistas civilizacionais com as quais convivemos hoje são o resultado de um
aguerrido enfrentamento do impossível pelo homem.
A utopia é, em síntese, um método, uma forma importante e
extremamente plural de imaginação e discussão política dos limites e
possibilidades de estruturação social. Entendê-lo, especialmente,
empreendendo uma investigação das suas características discursivas, das
suas espécies, e, enfim, da sua natureza, possibilitará que tenhamos uma
leitura do pensamento político do filósofo Richard Rorty muito mais acurada, e
capaz de suscitar as reflexões mais oportunas a seu respeito.
Como se fala em imaginação e discussão, na temática da possibilidade-
impossibilidade associadas à utopia, bem como de questões transversais a ela
– como se, mesmo que considerada realizáveis, as utopias são salutares ou se
as tentativas de realizá-las causam mais danos que benefícios às sociedades –
autores de relevo se posicionaram de modo plural e dialógico. Podemos falar,
por exemplo, em utopias do possível, utopias do impossível e, também, em
antiutopismo. Vejamos como se caracterizam cada uma dessas atitudes ante a
problemática utopista.
32
autores que expressam confiança na real possibilidade de construção, integral
ou parcial, dos projetos de sociedade que descreviam em seus textos –
romances utópicos ou textos de especulação filosófica. Algumas vezes, esses
autores entendiam a sua própria utopia como a continuidade natural ou como a
decorrência lógica do sistema de coisas precedente, como uma decorrência
inafastável da história.
Um exemplo importante pode ser encontrado no fato de que, ao
posicionar-se em contraposição aos socialistas utópicos, Marx e Engels
pensavam ter descoberto as minúcias dos mecanismos intrínsecos aos
processos históricos, de modo tal que o socialismo, nos termos que eles
apregoavam, não era, em sua perspectiva, apenas uma possibilidade, mas
uma certeza, uma decorrência inevitável de tais processos, gestada nas
relações de produção capitalistas de seu tempo. Exatamente por isso, eles
acreditavam ter a sua produção intelectual um caráter eminentemente
científico, em contraposição às concepções socialistas anteriormente
elaboradas32. Seguindo a mesma lógica, boa parte do pensamento político na
tradição marxista parte da ideia de que os movimentos da engrenagem social
que levarão à chegada – cedo ou tarde – das circunstâncias fatais que
desembocarão no socialismo já são a realidade presente. Isto é, os requisitos –
as forças materiais e intelectuais – que servirão de motor para as
transformações sociais propugnadas, que culminarão com a Revolução
Proletária, já se encontram em pleno exercício na sociedade atual.
Apresentar uma utopia como motivada pelo complexo de transformações
sociais cujo gatilho já foi – ou, inevitavelmente, será acionado – é, de certo
modo, o mesmo que posicioná-la como uma versão melhorada, uma
decorrência, da sociedade já existente. É o mesmo que assumir que não se faz
necessário uma transformação radical, a construção de algo totalmente novo,
mas que se pode imaginar o que se tem no presente em uma nova
configuração mais ou menos desde já delimitada. É, por assim dizer, assumir
uma postura de caráter reformista, em que “a transcendência é sempre
pensada nos limites do imanente” (LEVY, 12, p 45). Para os defensores desta
concepção de utopia, não é exagero tomá-las, entretanto, como as únicas que
são não ficcionais, as únicas que, de fato, podem ser consideradas como motor
32
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 43 e 44.
33
de transformações sociais reais33, como imaginaram os ilustres autores,
fundadores do socialismo científico.
De certo modo, eles partem da ideia de que se existe um modelo
possível de realidade melhorada e, se esta realidade ainda não foi
concretizada, é razoável, e mesmo recomendável, que se pretenda e se
persiga esta concretização. Alguns defendem que mais que a certeza da
factibilidade plena de seus projetos, importa a certeza da viabilidade de
persegui-los. Para quem pensa assim, a conquista já está na busca; o sonho
de erguer um mundo melhor se justifica pela luta em favor de erguê-lo, mesmo
que o sucesso final de tal caminhada não lhes pareça provável, ou mesmo
seja, aparentemente, inalcançável.
Assim, a plausibilidade seria um elemento importante ao conceito de
utopia, diferenciando-a, portanto, de outras formas de imaginar como os
variados devaneios de perfeição ou a ficção científica. Esta plausibilidade é
justamente o elemento capaz de encorajar as transformações sociais reais. Os
autores que assim o consideram não vêem a utopia como “lugar nenhum”. Ela
é o algum lugar. Esse algum lugar é, muitas vezes, descrito nos textos
pretensamente utópicos sob a forma de um lugar que já existiu em algum
momento perdido da história. Outras vezes, um lugar ainda não descoberto,
mas existente. De todo modo, é a sua falta que nos faz querê-lo, sonhá-lo.
Nesta perspectiva, a utopia ocupa um papel mais que importante na
dinâmica das transformações sociais, atuando como uma espécie de
combustível, como aquilo que dá ao homem o afã de seguir buscando,
querendo, sonhando e, na mesma medida, trilhando, abrindo os caminhos e
realizando os quereres.
34
pormenorizadamente a possibilidade e os parâmetros para um método objetivo,
rigoroso e eficiente para a análise das realidades sociais, essencialmente
dinâmicas. Mas também por discutir com sobriedade o pressuposto ideológico
do conhecimento – uma vez que a ciência emerge também da estrutura social,
sendo, portanto, também, uma construção socialmente condicionada – além do
papel e os desafios do ofício intelectual na sociedade. Tais contribuições são,
ainda hoje, importantes aos mais variados ambientes de pesquisa e análise da
dinâmica social, especialmente a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia, a
Economia e a História.
Em Ideologia e utopia, texto publicado originalmente em 1929 na
Alemanha, mas bastante ampliado em adaptado, especialmente em alguns
aspectos de estilo, com a edição inglesa de 1936, Mannheim discute temas de
muita relevância e urgência para a sua própria circunstância histórica, uma vez
que a primeira metade do século XX viu emergir uma marcante valorização do
irracionalismo na política. Uma dessas discussões, apresentada com
veemência já na primeira edição da obra, é justamente em torno da questão da
dimensão social do conhecimento. Rompendo com o pressuposto do
dogmatismo ontológico, que se estabeleceu principalmente no Medievo,
segundo o qual a verdade – e o conhecimento, por conseguinte – é perene,
imutável e inquestionável, ele discute as condições de possibilidade para se
chegar à verdade, trilhando o trajeto que vai de Maquiavel, passando por
Bacon, Descartes e Kant, até Hegel, Marx, Dilthey e Max Weber, inaugurando
a Sociologia do Conhecimento, o que pode ser visto como uma síntese dessas
perspectivas.
Em sua óptica, o conceito de ideologia resulta inteiramente redescrito,
indo muito além da concepção marxista – que o vê como expressão e
instrumento no complexo das lutas de classes – como algo ainda mais
circunstancial e dinâmico. Nessa perspectiva, um conhecimento não pode, em
si, ser tido por ideológico ou utópico, pois o que lhe situa como tal ou qual não
é a sua matéria, mas o papel relacional que ele vem a desempenhar no seu
contexto existencial:
35
Mannheim propõe que está diretamente relacionado à
dimensão existencial – que inclui as relações materiais de
produção, além de diversos outros elementos mais
característicos da superestrutura na teoria marxista.
(MAZUCATO, 2014, p. 70)
36
Observando-se o segundo quesito, algo se revela imediatamente: a
ressignificação, ou redescrição, que Mannheim empreende ao conceito de
utopia afasta-o radicalmente da ideia, resultante, em parte, da própria
etimologia da expressão, que lhe dá o sentido de “desejo irrealizável” ou
“realidade virtuosa apenas teórica”. Um detalhe sobremaneira relevante é que
este significado atribuído à palavra utopia permanece vivo na sociedade, sendo
um instrumento poderoso para a manutenção do status quo, uma vez que, para
os representantes da ordem intelectual e social prevalecente, é muito
importante, ou até essencial, que todos acreditem exatamente nisto: é utópico
tudo aquilo que nos é estranho, diferente e adverso, e é inconcebível e
irrealizável tudo aquilo que é utópico.
Desse modo, na luta de forças que se estabelece na sociedade,
nenhuma ideia ou prática social deve ser vista, a priori, como, essencialmente
ideológica ou utópica. A dialética mannheimiana, em conseguinte, poderia ser
sistematizada nos seguintes termos:
37
Assim, na retórica mannheimiana, toda utopia – bem como toda
ideologia – será sempre a visão de algo possível. Na verdade, o atributo da
possibilidade é elemento sine qua non do conceito de utopia, visto que a mera
existência do pensamento diverso, contraditório, já inicia o papel que ela – a
utopia – exerce no complexo da sociedade. Em decorrência, a utopia, quando
plenamente realizada, deixa de sê-lo, convertendo-se em ideologia. Permanece
utopia apenas enquanto marginal. Vázquez (2001, p. 362) explica-o, ao afirmar
que um dos atributos da utopia é que nela o ideal não se esgota no real:
34
Que o próprio Mannheim escolheu chamar, em Ideologia e Utopia, de “história sociológica
dos modos de pensamento”.
38
sol”35, em que tudo esteja pronto e em que cada momento seja uma mera
repetição do passado poderíamos conceber o fim da querela maior do ser
humano, o fim da dúvida entre ir ou ficar, permanecer ou mudar, desejar ou
fastiar, enfim, a morte da utopia e, portanto, da esperança.
35
Como vaticina o Eclasiastes: “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não
há nada novo debaixo do sol” (Bíblia, Eclesiastes, capítulo 1, verso 9).
36
A rigor, a experiência histórica comumente associada às ideias comunistas – o que se
convencionou chamar “socialismo real” – não poderiam, em nenhuma hipótese, ser tomadas
como parâmetro de medida de sucesso de tais ideias. Isso se dá, evidentemente, pela abissal
dissonância que há entre o que de fato se efetivou nos regimes ditatoriais, especialmente nos
“países comunistas” a partir de 1917, e os princípios elementares do pensamento comunista.
39
Poucos conceitos foram tão estigmatizados ao longo dos dois
últimos séculos quanto o de utopia. A tal ponto que ele
terminou reduzido à condição de simples juízo de valor, que
exprime um preconceito “realista” contra os vislumbres
imaginários de uma vida melhor. (LEVY, 2012, p. 9)
Assim, não seria exagero afirmar que mesmo nas sociedades abertas,
democráticas, marcadas pela liberdade – especialmente a liberdade de
pensamento e a liberdade de expressão – pode-se facilmente perceber uma
cultura de aversão à utopia, uma crise da utopia. Talvez porque, não foram
poucas as vozes enfáticas em associá-la diretamente aos contextos políticos
centralizadores – especialmente aos regimes que se autodenominaram
comunistas –, que costumaram adotar a sistemática mitigação das liberdades e
dos direitos individuais.
Por outro lado, não serão também poucas as vozes, especialmente
durante o século XX, a se levantarem na tentativa de recuperar um sentido
honroso à expressão utopia, buscando demonstrar a sua relevância social. As
obras de Karl Mannheim e Ernest Bloch são exemplos dessa tendência
revigoradora, que vê a utopia como um mecanismo de enriquecimento do
imaginário social, garantido o caráter dinâmico da vida. Trousson37 afirma que
tal perspectiva exige, inclusive, que os sentidos mais tradicionais do termo – ou
37
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo. Trad. Ana Cláudia Romano Ribeiro. Morus:
utopia e renascimento. Vol. 02. 2005. 123 – 135, p. 127.
40
de uma apenas metáfora pseudo-geográfica ou de uma forma literária da
viagem imaginária, ou mesmo de um projeto político idealizado – dão lugar a
uma ampliação marcante, estendendo-se aos planos filosófico, pedagógico,
arquitetural, urbanístico, etc.
O filósofo e historiador das ideias Bronislaw Baczko (1924-2016) é um
nome importante na abordagem antipossibilista da utopia. Para ele, afirmar que
a utopia não trata, nem pretende tratar, de projetos para realização prática não
diminui o valor que a utopia desempenha na sociedade. Para exercer uma
função real na vida das pessoas e das comunidades, a utopia não precisa “falar
a verdade”. Levy (2012, p. 59), explica tal perspectiva baczkoniana nos
seguintes termos:
41
No âmbito da concepção baczkoniana de utopia, o sujeito que imagina,
aquele que é capaz de criar uma utopia, desempenha um papel crítico-
transcendental. Ele projeta o pensamento para os domínios do além-realidade,
criando uma alternativa de vida. Tal pensamento é eminentemente humanista,
pois, retira do homem o status de ser apenas passivo perante as forças
determinantes da sociedade e da história. A imaginação utópica é, por
conseguinte, trans-histórica38.
Baczko desenvolve, portanto, um pensamento eminentemente
revigorante do valor e do papel da utopia na sociedade, afastando a
possibilidade de realização como critério de julgamento para o espírito crítico-
transcendente da imaginação utópica.
38
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 61.
42
Deve-se lembrar que, em termos mannheimianos, os esforços
empreendidos no sentido de desacreditar as potencialidades da utopia são
uma forma velada de afirmar alguma ideologia em voga. São as mais
importantes tarefas de qualquer ideologia, empreender manter-se viva através
do sepultamento da esperança de mudança e promover a aceitação tácita do
sentimento de conformismo, para o qual é senso comum pensar que a “as
coisas são como são” e que elas sempre serão assim, ou acreditar que a
sociedade é naturalmente estática. Vázquez (2001, p. 366) o explica com muita
propriedade:
43
Para ele, portanto, a mecânica utópica é um convite ao totalitarismo.
Precisamente por isso, é necessário livrar-se da sedução da utopia para que se
possa fazer uma defesa efetiva dos valores da democracia e das sociedades
abertas39.
Platão, pela perspectiva popperiana, longe de oferecer um inocente
modelo de alter mundus, e defender ideias morais e políticas concernentes ao
seu tempo, adotando posição crítica do modelo democrático ateniense,
desenvolveu uma elaborada reação contra a sociedade aberta, que acabou por
ter consequências em toda a história da filosofia política e na própria práxis de
sistemas políticos. Para Popper, Platão se alinhava à defesa de um sistema
espartano40, que, por sua vez, antecipava-se, em muitos aspectos, às
tendências políticas verificadas em diversas formas de regimes totalitários na
Modernidade e Contemporaneidade.
A crítica popperiana a Platão assumiu um importante espaço em
Sociedade aberta e seus inimigos, constituindo-se na temática central de todo
o primeiro volume da obra, denominado Plato’s spell41. Nele, Platão é
denunciado como um pensador radical e perigoso, afeito às mudanças
apocalípticas da sociedade em direção a um mundo imaginado de perfeição.
Ele é um esteta, disposto a subverter toda a realidade existente para chegar à
beleza e à ordem plenas. O político-artista ideal de Platão, o seu reformador
social ideal, seria, portanto, alguém capaz de limpar toda a tela antes de
começar a pintar:
39
Popper utiliza a expressão “sociedades abertas” em oposição a “sociedades fechadas”, em
seu The Open Society and its Enemies, publicado originalmente em Londres e em inglês, no
último ano da Segunda Guerra Mundial, tornando-se uma obra indispensável à discussão da
vida política moderna. As sociedades fechadas seriam aquelas em que os indivíduos são
levados a não assumir as responsabilidades sobre suas escolhas ou, em muitos casos, sequer
têm a oportunidade de fazer escolhas importantes de modo livre e consciente, uma vez que a
sociedade opera de forma mágica, tribal ou coletivista, retirando do indivíduo tal liberdade-
direito. Cf. POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton
Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. (Espírito do nosso tempo).
40
Tal sistema espartano pode ser representado pelas concepções de “proteção do tribalismo”,
de “antiuniversalismo”, de “dominação dos estrangeiros”, entre outras, que, de modo expresso
ou velado, estão presentes na obra platônica.
41
Geralmente traduzido como “o feitiço de Platão”, ou como “o fascínio de Platão”.
44
para isso). A afirmativa de Platão é deveras uma autêntica
descrição da intransigente atitude de todas as formas de
extremado radicalismo – da recusa estética em transigir. A
opinião de que a sociedade deva ser bela como uma obra de
arte leva apenas, com demasiada facilidade, a medidas
violentas. Mas todo esse radicalismo e violência são anti-
realistas e fúteis. (POPPER, 1974, p. 182)
42
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 33-34.
45
sociedade aberta – suscita a questão da origem da própria ideia de sociedade
aberta. Os termos popperianos que a definem são, por assim dizer,
essencialmente utópicos, uma vez que, acreditar que possa existir uma
sociedade nos parâmetros da que denomina “aberta” é, também, traçar uma
meta imaginativa extremamente transcendente em relação à realidade das
sociedades, mesmo as mais liberais e democráticas.
Segundo Levy, há ainda um grande exagero em tratar a questão de
modo tão fechado, limitando-a a um dualismo inescapável, que põe as atitudes
de transformação social em apenas dois mecanismos distintos e intransigíveis,
a mecânica utópica e a mecânica gradualista. Nessa perspectiva crítica – a
crítica da crítica –, Levy assegura que não há essa contrariedade absoluta, e
que nem toda utopia exige que os rompimentos sociais capazes de estender os
limites do real sejam abruptos, ou que se dêem pelo uso da força ou da
mitigação das liberdades ou supressão dos direitos. Em contra-exemplo a
Popper, Levy chama a atenção para o fato de que a utopia comunista, um dos
“alvos” preferenciais da crítica popperiana, convive há muito tempo com toda
sorte de adversidades relativas sem esmaecer. E que, empreendendo
pequenas conquistas sociais, em diversas partes do mundo, cumpre uma
agenda de transformações graduais das realidades, contribuindo, em muito,
para a solidificação do espírito democrático.
Em suma, Levy43 considera a retórica popperiana, em Sociedade aberta
e seus inimigos, como a expressão de uma atitude conservadora-reformista. E
a sua oposição à utopia como, para utilizarmo-nos da linguagem
mannheimiana, uma posição ideológica, um discurso – mesmo que essa jamais
tenha sido a intenção do filósofo austríaco – cujas consequências são, em
última instância, o descrédito do espírito utópico e a manutenção das coisas
como são, ainda que passíveis de pequenas reformas pontuais.
Outro intelectual de muito peso na discussão política contemporânea,
considerado um ícone do pensamento liberal, Isaiah Berlin (1909-1997),
desenvolve também uma contundente crítica ao pensamento utópico. Para ele,
em consonância com a abordagem popperiana, as utopias trazem em si,
essencialmente, os germes do totalitarismo. Elas fatalmente desembocam em
centralização, tirania, cerceamento de liberdade e desumanização.
43
Ibid., p. 34-35.
46
Semelhantemente a Popper, Berlin assume que os objetivos distantes
demais são muito cruéis. Assim, uma vez que a vida dos indivíduos se
desenrola nas situações políticas reais e cotidianas, assumir objetivos
generalizantes e transcendentes, se tomados em relação à vida prática, é uma
atitude injustificável. Seria muito mais respeitável a ação de interferir na vida
real a partir da modificação dos problemas que se apresentam à vida prática,
empreendendo as reformas necessárias e suficientes à melhoria da vida,
como, por exemplo, as medidas corretivas das desigualdades sociais44.
Para estes pensadores, pois, que recomendam uma postura
marcantemente acautelatória em relação ao espírito utópico, “contra os
excessos e os males do perfeccionismo metafísico”45, realizar as reformas
pontuais capazes de melhorar a vida das pessoas sem que para isso seja
preciso efetuar reformas das estruturas sociais mais profundas é algo mais
plausível e muito menos arriscado.
Tais receios e críticas, de natureza liberal e anti-autoritária, têm, no
mínimo, uma razão de ser muito palpável historicamente: as tentativas reais de
concretizar e centralizar as planificações utópicas, muitas vezes, resultaram em
sistemas de violência estatal e, até, em totalitarismos. A experiência com o
projeto socialista, efetivado nos países submetidos à cortina de ferro, foram
suficientes para alertar uma geração de pensadores para o risco de sacrificar a
liberdade em função da centralização e da vontade utópica.
Para Vázquez46, entretanto, a generalização desses atributos, típicos à
forma de política totalitária que caracterizaram a realidade histórica da Rússia
e, posteriormente, dos países que se alinharam ao bloco socialista, é um erro.
Portanto, dar a toda utopia o aspecto de uma utopia socialista, aos moldes do
“socialismo real”, não se justifica.
44
Ibid., p. 36.
45
Ibid., p. 39.
46
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre a realidade e a utopia: ensaios sobre política, moral e
socialismo. Trad. Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 637.
47
Muito antes de Thomas Morus publicar a sua Utopia, em 1516, grande
quantidade de escritos já apresentava elementos característicos suficientes
para que essas produções – muito variadas em relação ao estilo, mas
semelhantes em relação ao tema – possam ser agrupadas em uma espécie de
estilo literário de temática social. Evidentemente, não é o escopo deste trabalho
elencar um rol exaustivo, ou qualquer espécie de catalogação ou estatística,
das obras que poderiam compor tal estilo literário. Aliás, a enorme quantidade
de publicações, a que, ao longo dos séculos, a tradição denominou utopias,
obstaculiza sobremaneira a tarefa de se estabelecer parâmetros muito
objetivos de circunscrição de elementos indispensáveis para que uma obra seja
considerada afim e vista como integrante desse gênero.
São muitos os pesquisadores que se dedicaram a essa árdua tarefa,
buscando escapar à tentação de ampliar demasiadamente o conceito – a ponto
de a pluralidade resultante ser tamanha que não haja mais como agrupar todas
as obras em um mesmo conjunto minimamente uniforme, tornando-o, por
assim dizer, mais uma mentalidade que um estilo, ou um gênero literário, ou
até, como jocosamente denomina Firpo, uma espécie de “tudologia” 47 – e, ao
mesmo tempo, fugir à tentação contrária de restringir por demais a sua
abrangência, tornando-a inadmissivelmente diminuta.
Trousson, um dos fundadores do Centro Interdisciplinar de Estudos da
Utopia, na Universidade de Bruxelas, considera essa uma questão imperiosa e
inafastável. Pensar um estatuto do discurso utópico é, para ele, a tentativa de
que haja um mínimo consenso no campo semântico quando se afirma que um
determinado texto é literatura utópica ou que compõe o corpus desse gênero
literário48. Segundo ele, em geral, recorrer às bibliografias e catalogações
existentes – e, algumas, consagradas – apenas acentua o problema, uma vez
que elas tendem a elencar, sob a mesma alcunha de utopias, obras
extremamente dissonantes entre si, o que torna quase impossível o trabalho de
encontrar um ponto de conexão generalizável.
Segundo Trousson, nos séculos XVII e XVIII, a crítica especializada se
refere, reiteradamente, à utopia como uma metáfora geográfica, ou como uma
47
FIRPO, Luigi. Para uma definição da “utopia”. Trad. Carlos Eduardo O.Berriel. In: Morus:
utopia e renascimento. Vol. 02. 2005. 227–237, p. 228.
48
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 124 e seguintes.
48
metáfora pseudo-geográfica49. O texto utópico seria, portanto, marcado pela
imagem simbólica de alter mundi50. Há, em seguida, um deslocamento para a
ideia de que a utopia empreende um plano de governo imaginário, afastando-
se do aspecto meramente geográfico em direção a um sentido mais político e
institucional. A utopia pressupõe, assim, uma projeção política, uma imagem,
ou uma fantasia, de felicidade comunitária.
O século XIX, especialmente, acentua a visão de que o aspecto
fantasioso – o fato de tratar de imagens irrealizáveis – seria o elemento
essencial do texto utópico. Será esse o tempo em que a pejoração do termo se
ampliaria mais marcantemente. Evidentemente, o marxismo foi uma força
descomunal exercida nesse sentido, uma vez que considerava os trabalhos de
autores importantes como Saint-Simon, Fourrier e Owen como mera expressão
de um socialismo utópico, isto é, como devaneios irrealizáveis acerca das
relações de produção, que até apontavam análises da conjuntura sócio-
econômica, mas não resultavam em nenhuma abordagem realmente
esclarecedora em termos científicos, nem eram capazes de oferecer saídas
realmente plausíveis para os dilemas diagnosticados51.
No século XX, os trabalhos de Karl Mannheim, Ernest Bloch e Bronislaw
Baczko, em especial, foram determinantes para uma nova mudança de foco,
uma vez que apreendem a utopia – em contraposição à ideologia – como o
pensamento dinamizante da sociedade. Nessa perspectiva, a utopia é
compreendida como o pensamento responsável, ao mesmo tempo, pelo
diagnóstico do contexto sócio-econômico e pela esperança, pelo fortalecimento
da capacidade imaginativa da sociedade, configurando-se como uma postura
eminentemente progressista. A partir desse ponto, não é mais possível pensá-
la tão restritivamente:
49
Ibid., p. 126.
50
É importante lembrar que a ideia de metáfora geográfica não condiciona a aventura utópica à
imaginação de, necessariamente, outro lugar. O imaginário do alter mundus pode, e é muito
recorrente, estar relacionado à dimensão do outro tempo.
51
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Em: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Obras
escolhidas. São Paulo: Alfa - Omega, s.d., p. 38-43.
49
filosófico, pedagógico, arquitetural, urbanístico, etc.
(TROUSSON, 2005, p. 127)
52
A minúcia de detalhes do alter mundus escrito na utopia será especialmente importante na
garantia desses dois fatores, favorecendo uma espécie de credibilidade do texto e dando ao
discurso utópico um caráter diferenciado em relação ao simples romance de aventura.
53
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 128.
54
Relativo a Robinson Crusoé, romance publicado em 1719 por Daniel Defoe, em que a
personagem principal, em forma de autobiografia, narra suas aventuras durante os 28 anos em
que, náufrago, fica recluso em uma ilha remota até ser resgatado.
50
gênero em tela, Firpo, no discurso de encerramento do Primeiro Congresso
Internacional de Estudos sobre Utopia, realizado em Reggio Calábria, Itália, em
1983, elencava três atributos: uma utopia deve ser global, radical e
prematura55. A globalidade da utopia está na condição de que um texto
verdadeiramente utópico, para seus critérios, terá sempre um caráter
englobante, generalizante. Uma proposta de transformação que, ao cabo,
impacte apenas uma pequena fatia da sociedade, um grupo, uma família ou os
moradores de uma localidade pode ser a realização de um sonho pessoal, a
concretização de um projeto técnico de relevo para aquela comunidade, mas
não se pode dizê-la uma utopia. Para isso, atente-se que a utopia se pretende
uma construção intelectual-imaginativa que impacte o complexo da sociedade.
A sua radicalidade, por sua vez, expressa-se pelo caráter revolucionário
– ou, ao menos, marcantemente reformista – do texto utópico. Não seria, pois,
apropriado denominar utópico um texto apenas descritivo da vida social, ou
uma proposta de revisão pontual que ofereça um esquema de transformação
restrito a alguns aspectos da realidade, sem grandes consequências para a
estrutura social mais geral.
Já a prematuridade do discurso utópico é, para Firpo, o predicativo mais
importante. O utopista é alguém que tem plena consciência do caráter
prematuro de suas ideias. Ao contrário do que sugere o senso comum, quando
compara o utopista a alguém que deseja construir “castelos no ar”, um
sonhador ou um louco, o autor assevera que o utopista é um bom exemplo do
que, na verdade, significa ser realista:
55
Cf. FIRPO, Luigi. Para uma definição da “utopia”, p. 229.
51
Marcuse (1969, p. 15) enfatiza, também, que é justamente pela
prematuridade de uma ideia – ou, como ele qualifica, pela sua imaturidade –
que ela pode perfeitamente vir a ser tomada, sob a perspectiva do presente,
como algo inconcebível, impossível:
52
Frequentemente se atribui a Hesíodo, na Grécia do século VIII a. C.,
com o monumental poema Os trabalhos e os dias56, o papel de ter inaugurado
essa tendência de compor textos com as características que, futuramente,
seriam associadas às utopias. Ao descrever uma sociedade, criada pelos
deuses, habitada por “homens de ouro”, que viviam à semelhança de seus
poderosos criadores – plenamente virtuosos, prescindindo de qualquer
preocupação com a velhice ou com as doenças e resguardados de toda
espécie de dor – situação, aliás, que, para infortúnio dos homens, não
perduraria por muito tempo, Hesíodo a contrapunha à sociedade real, repleta
de vícios e de conflitos. Assim, já na tradição grega, o aspecto crítico-
propositivo dos escritos utópicos desempenhava um papel muito relevante à
vida social, como explica Jacoby (2007, p. 75):
56
Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, escrita no século VIII a. C., é uma obra seminal da
literatura grega antiga. Pioneira em muitos aspectos, é considerada uma preciosidade da
cultura escrita do povo grego, talvez mesmo a primeira obra literária eminentemente grega.
Importante por inaugurar questões que serão desenvolvidas por muitos séculos na filosofia
antiga, como o conceito de justiça, questões de economia e de boa-vida.
57
Cf. JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica,
p. 77.
53
Um outro autor de grande relevo, cujos diálogos satíricos se tornaram
um referencial para muitos escritores de sua época e da posteridade,
contribuindo para firmar o complexo de nuances que dão a tais escritos o
caráter de literatura utópica, Luciano de Samósata (125 d.C – 181), utilizou um
curioso título para a sua utopia, “História verdadeira”58, no qual ridiculariza
alguns dos pilares literários e filosóficos da cultura clássica, como Homero,
Sócrates e Platão.
Escrita no século II, a História verdadeira é tida por muitos críticos como
uma importante precursora da ficção utópica e da ficção científica na literatura.
E são muitos os escritores importantes que tiveram explícita influência de sua
leitura, a exemplo de Voltaire, Júlio Verne, Erasmus de Rotterdam e, em
especial, Rabelais e Thomas Morus, herdeiros diretos de seu utopismo jocoso,
em que se misturam uma ironia finíssima com os elementos sérios de uma
argumentação moral e política.
58
Obra escrita no século II, de caráter eminentemente satirista, a História verdadeira é tida por
muitos críticos como uma importante precursora da ficção utópica e da ficção científica na
literatura. São muitos os autores que tiveram explícita influência de sua leitura, a exemplo de
Voltaire, Júlio Verne, Erasmus de Rotterdam e, em especial, Rabelais e Thomas Morus,
herdeiros diretos de seu utopismo jocoso, que mixa uma ironia finíssima com aspectos sérios
de argumentação política. Em Morus, tal influência chega a ser sutilmente reconhecida quando
a personagem central de Utopia, Rafael Hitlodeu, distribui entre os habitantes da ilha diversos
exemplares de obras literárias gregas especialmente de Aristófanes e Luciano, que, aliás, eles
acham “deliciosamente divertidas”.
59
Levy aponta para o fato de que, muito embora a construção do vocábulo utopia requeira
elementos provenientes da língua grega, e mesmo sabendo que os gregos clássicos já
demonstravam enorme familiaridade e habilidade com o pensamento político-moral acerca da
Vida Boa, coube a Thomas Morus, apenas no Renascimento, cunhar a expressão, que depois
viria a ser extremamente utilizada no linguajar literário-filosófico, inclusive, para se referir a
narrativas e/ou discursos muito anteriores – como os textos clássicos, a exemplo de República,
54
originariamente, um termo composto. Em grego, “tópos” (τόπος) significa
“lugar”. Ao passo que outros dois elementos se intercalam: “eu” é um prefixo
que expressa qualidade positiva60, enquanto que “ou” é prefixo adversativo,
expressa uma contrariedade, uma negação. Assim, temos que “utopia” (eu-
topia e/ou ou-topia) tem sentido plural, abrangente: lugar excelente, lugar feliz,
lugar nenhum61, além de outras tantas possibilidades62. Essa natureza plural e
extremamente polissêmica do termo utopia, para Levy (2012, p. 21), permite
afirmar que Morus provavelmente sequer desconfiava que “para muito além de
uma simples contribuição linguística, acabava de deflagrar uma polêmica
histórico-política que persiste até nossos dias”.
A expressão aparece, originalmente, no extenso título da obra do
renascentista, “Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus de
optimo rei publicae statu, deque nova insula Utopia”, que, escrita em um latim
humanista, sob forte influência das notícias das terras e hábitos de vida das
populações do Novo Mundo63, expressava um otimismo típico de seu tempo,
descrevendo um alter mundus, uma nova insula, de tal maneira detalhada a
ponto de ser possível, a partir da narrativa, conhecer a maneira de viver,
produzir, e pensar de seus habitantes, os utopianos.
Segundo Minois, a Utopia de Morus é o grande marco, no início da
Modernidade, de uma retomada do entusiasmo com a literatura utópica64, que
havia praticamente desaparecido durante a Idade Média65. O livro de Morus
55
tornava-se, pois, uma obra delineadora dos contornos do conceito de utopia,
em sua acepção moderna, cujo marco precípuo é o firme propósito de não
atrelar a ideia de “mundo melhor” a uma transcendência ou à dádiva da
misericórdia divina para com os homens. Pode-se afirmar que, na
Modernidade, o que é utópico é também humano. E isto é uma conquista do
humanismo, razão pela qual Morus, mais que um renascentista, deve ser visto
como um humanista, alguém que, à medida que é capaz de apontar os
desacertos das construções intelectuais e políticas humanas é também capaz
de apontar caminhos, saídas eminentemente humanas. Vázquez (2001, p. 356-
357) o esclarece:
apelo à misericórdia. Na utopia, o homem constrói um mundo melhor para si e para os seus, e,
mesmo que muitas vezes reconheça a importância da religiosidade para a coesão social, não é
um mero apelo à transcendência. Cf. TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 130-131.
56
experimentação e da experiência. O descobrimento do Novo Mundo, e das
formas de vida das gentes que lá habitavam, fez parte desse complexo de
experiências que iriam condicionar todo o pensamento social da Modernidade.
Nesse sentido, Cacciari (2017, p. 105) considera a utopia – elemento típico da
Modernidade – como uma espécie de secularização da escatologia. E sobre
essa qualificação, afirma:
66
É notório tal impacto pelo grau de envolvimento de muitos entusiastas da obra, a exemplo de
Erasmus, e também de críticos que a viam como um texto extremamente nocivo, como foi o
caso de John Ruskin, por associá-lo a uma espécie de comunismo radical. Outro fato
mencionado em correspondências de Morus que o demonstram tal impacto, chegando a ser
muito hilário, é o fato de um certo “homem religioso e teólogo de profissão” ter escrito
formalmente ao Papa, rogando ser nomeado autoridade eclesiástica na ilha documentada por
Morus. Ele almejava ser feito Bispo dos utopianos.
67
Segundo Paquot, as pressões econômicas verificadas na Inglaterra de então, e denunciadas
por Morus na primeira parte de Utopia, são, bascamente, “a concentração de terras e a
pauperização de uma grande parte do campesinato, condenado a emigrar para a cidade, a
vagar sem rumo, a mendigar e a roubar” (PAQUOT, 1999, p. 30).
68
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica, p.
17, 64 e 136.
57
pessoas: ele próprio – narrador –, seu amigo Pieter Gillis69 e um certo viajante
português denominado Rafael Hitlodeu, cujas viagens, em companhia de
Américo Vespúcio, haviam-nos levado a muitos lugares distantes e curiosos.
Tal diálogo é ainda corroborado por outra sistemática muito elaborada. Morus
utiliza uma série de correspondências trocadas com pessoas de seu convívio,
especialmente o amigo Pieter Gillis, a quem se refere tanto à primeira conversa
como ao navegante Hitlodeu como realidades incontestes para criar um
ambiente de maior credibilidade. Em uma delas, chega da rogar a Gillis que o
amigo volte a conversar com o navegante Hitlodeu, para que possam sanar
algumas das dúvidas e lacunas que a sua memória possa ter deixado escapar.
O conhecimento da “existência” da República de Utopia ter-se-ia dado,
portanto, nesta conversa inicial, em que Rafael lhes descrevia tudo aquilo que
vivera durante o período de cinco anos em que permanecera naquela ilha, cuja
localização geográfica exata não é explicitamente exposta70, mas também não
é dada por desconhecida ou indeterminada71. A leitura do texto insinua que a
lacuna desta informação se deve apenas por um descuido ou pelo
esquecimento.
O aspecto descritivo em Utopia é primoroso e fundamental. A sociedade
que se estabelece na ilha, fundada muito tempo antes pelo rei conquistador
Utopos, não é um paraíso, um lugar de perfeição e de virtudes plenamente
desenvolvidas e imutáveis. É, antes, um lugar melhor, um “melhor estado
comunitário”, onde se viveria de um modo mais inteligente e justo que a
Inglaterra dos tempos do autor. Precisamente por esta razão, não fica
exatamente explícita a real e prioritária intenção que tinha o autor, se a de
apontar, pelo contraste, os vícios e problemas de toda a sorte verificáveis no
69
Morus é apresentado a esse amigo, importante na narrativa de Utopia e na repercussão do
texto, através de um amigo que lhes era comum, Erasmus de Rotterdam, que, inclusive,
dedicou a Morus seu principal livro – O elogio da loucura, ou Moriae Encomium sive Stulti tiae
Laus – e viria a supervisionar a primeira edição de Utopia. Depois de concluída a composição
do texto, Morus manteve profícua correspondência e troca de impressões com os dois amigos
acerca do estilo, da escrita e dos “fatos” narrados na história.
70
Morus a localiza, somente, como uma ilha no Oceano Atlântico meridional.
71
Em correspondência de Outubro de 1516 ao amigo Pieter Gillis, que instrui o envio do
original de seu “livrinho” para uma primeira apreciação, Morus se desculpa pelo fato de uma
simples narrativa de um diálogo que eles tiveram com Rafael Hitlodeu tenha demorado tanto –
mais de um ano – a ser concluída, já que o trabalho era essencialmente o de retirar da
memória as informações da conversa que tiveram. Além disso, lamenta não ter tido, à época
do referido diálogo, o cuidado, ou o preciosismo, de estabelecer a localização geográfica exata
da ilha de Utopia.
58
contexto social em que vivia ou de elencar os predicativos, expor em que
termos se constituiria – caso fosse possível existir – uma sociedade melhor.
Ou, ainda, se ele realmente acreditava na factibilidade de tal projeto. É o que
explica Claeys (2013, p. 60-61):
72
QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave. Trad. Helvio Gomes Mores Jr. In:
Morus: utopia e renascimento. Vol. 3. 2006. 35-53, p. 39 e seguintes.
73
Palavra que, segundo Quarta, advém da substantivação de um advérbio latino muito corrente
à época, “nusquam”, o que resultaria em um sentido como “em nenhum lugar”.
59
Prodi (2017, p. 49), referindo-se ao impacto do pensamento de Morus
em Utopia, afirma:
60
o maravilhoso tem lugar de destaque, ao lado do insólito e do
revolucionário.
61
ou soluções de amplo espectro, teorias abrangentes, utopias construtivas de
um mundo melhor. A obra de François Lyotard acerca desta temática que,
aliás, contribuiu sobremaneira para a popularização da expressão “pós-
modernidade”, é tão esclarecedora quanto inquietante74.
Segundo Jacoby75, a carência endêmica de perspectivas paralisa as
esquerdas políticas, que se vêem ante a uma situação em que os intelectuais
não encontram subsídios para pensar em um mundo diferente do que têm.
Para ele, são pouquíssimos os que ainda encontram modos de ver o futuro
como algo mais que uma réplica do presente.
Wolff (2016, p 33) assevera que algo depõe muito marcantemente contra
a utopia no nosso tempo:
74
O livro A condição pós-moderna, de 1979, teve papel fundamental para a compreensão de
que muito do vocabulário utilizado para descrever o mundo àquela época era decorrência
direta da metanarrativa racionalista iluminista já em decadência, em vistas da ascensão de
uma pós-modernidade.
75
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica,
p.17, p. 23 e seguintes.
62
Diagnóstico semelhante é apresentado por Judt, ao tempo em que
analisa as circunstâncias ideológico-políticas de nosso tempo, o início do
século XXI, e a necessidade de uma nova esquerda, repaginada, capaz de
sugerir saídas para as crises que nos afetam hoje e, fatalmente, nos afetarão
amanhã:
63
“acabou”, a cultura popular entrou num circuito de repetição, no
qual a ideia de progresso evaporou. (MASON, 2020, p. 304)
Prodi76, por sua vez, alerta para o fato de que o nosso tempo nos coloca
diante de um avassalador processo de homogeneização. Diante do poder dos
grandes impérios ocidentais e do capitalismo globalizante, parece que não
sobra ocasião para se pensar a existência de outro espaço. Em tal cenário, é
possível se chegar à conclusão de que o que temos é tudo o que é possível ter
em termos de experiência político-social, de que a tipo de vida que os impérios
ocidentais fizeram nascer para seus cidadãos é o único objetivo que qualquer
sociedade poderia sonhar para os seus.
O radical desencanto com o “socialismo real”77, apregoado por muitos
intelectuais de relevo no século XX – a exemplo de Raymond Aron, com o seu
O ópio dos intelectuais, ou de Judith N. Shklar, em Depois da utopia: a
decadência das crenças políticas – deixou no ar a ideia, quase como um senso
comum, de que pode não haver mais opções ao capitalismo.
Judt, de modo provocativo, questiona se, mesmo sem descartar o
capitalismo, estamos sem saída. Tudo está pronto e acabado? Não há mais
como pensar algo novo e a sociedade que temos, com o tipo de mercado que
ela fez emergir, serão as únicas opções de que podemos dispor?
76
PRODI. Paolo. Profecia, utopia, democracia. In: CACCIARI, Massimo e PRODI, Paolo.
Ocidente sem utopias. Trad. Íris Fátima as Silva Uribe, Luis Uribe Miranda, Flávio Quintale.
Belo Horizonte: Âyiné, 2017, p. 79.
77
Vide nota 36.
78
Essa obra foi antecedida por um artigo que ficou muito famoso, O fim da história?, publicado
em 1989 na revista The Nacional Interest, em que o autor já expunha parte essencial de sua
teoria. Três anos após, ele expande a argumentação no livro citado.
64
liberalismo ocidental; não haveria, por conseguinte, qualquer sentido aceitável
em se buscar configurações políticas ideias que sejam melhores que ele. Pode-
se até pensar em como aprimorar o sistema liberal-democrático, mas nada em
relação a substituí-lo por algo novo. A tese de Fukuyama representa, assim, a
ascensão não apenas da circunstância do fim das ideologias, mas do fim da
história.
Nessas circunstâncias, é importante salientar que tal eclipse do espírito
utópico, testemunhado por tantos teóricos importantes, afeta não apenas a
utopia como meta, mas também a compromete enquanto método, como explica
Levy: “este é também o momento crucial do eclipse do espírito utópico, não só
da sua disposição prática, mas também do seu reconhecimento teórico como
porta-voz do futuro” (LEVY, 2012, p. 89). E é precisamente este um dos pontos
em que Rorty se distancia de tais concepções, adotando a utopia não apenas
como método, mas, e principalmente, como meta. Evidentemente, como será
exposto adiante, sua “teoria” não se realizou nos moldes do pensamento
filosófico tradicional, constituindo-se muito mais em uma conversação que em
uma teorização política.
Na qualificação do pós-moderno, Levy associa-o ao “fim da utopia” em
duas diferentes vias, uma relacionada à consciência do tempo presente (a
perda da consciência da tridimencionalidade do tempo humano) e a outra, ao
ocaso das expectativas criadas em torno dos regimes ditatoriais, que
prometiam realizar utopias de perfeição social:
65
A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático
em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos,
então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja,
o do homem que, tendo alçado o mais alto grau de domínio
racional da existência, se vê debaixo de nenhum ideal,
tornando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término
de um longo e tortuoso, mas heróico desenvolvimento, e
justamente no mais elevado estágio de consciência, quando a
história vai deixando de ser um destino cego e se tornando
cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem
perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a
história e, com ela, a capacidade de compreendê-la.
(MANNHEIM, 1982, p. 285)
79
BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
66
sentido desejar e efetivar transformações sociais de melhorias80, ou seja, a
ideia de boa sociedade não se perdeu e o exercício da criatividade social
permanece sendo um valor.
80
Que, para Bauman em consonância com Nancy Fraser, estão relacionadas hoje,
principalmente, à “distribuição equitativa das oportunidades uma a uma, à medida que se
revelam e são trazidas à atenção pública graças à articulação, manifestação e esforço das
sucessivas demandas por reconhecimento” (BAUMAN, 2003, p. 73).
67
irracionais e menos que os deuses. Ele está exatamente na condição de um
ser mortal pensante. A sua mortalidade lhe aproxima dos animais irracionais,
enquanto que a sua capacidade de pensar lhe aproxima dos deuses; ao
mesmo tempo, sua mortalidade lhe afasta dos deuses, e sua racionalidade lhe
afasta dos animais irracionais. É assim que o homem compreendia a si mesmo,
em conformação e oposição com esses dois parâmetros, como um ser
racional-mortal81.
As duas espécies de utopias acima citadas, o antiespecismo e o trans-
humanismo, são, por assim dizer, expressões atuais do desejo humano de não
se situar docilmente neste espaço, espremido entre os deuses e os animais
irracionais, forçando os limites tanto para um lado como para o outro e
transparecendo a inquietude de não saber ao certo quem é o homem. Assim, a
factibilidade de se tornar outra pessoa substitui a ânsia por salvação ou
redenção ao modo antigo:
81
WOLFF, Francis. As três utopias da modernidade. In: NOVAES, Adalto (Org.). O novo
espírito utópico. São Paulo: SESC, 2016. (Mutações), p.37.
68
o individualismo marcantes em nosso tempo. Resultam, portanto, daí as duas
utopias citadas. Vejamos cada uma delas mais detidamente.
69
animais. Noções como a de direito dos animais, por exemplo, são
consideravelmente devedoras de ideias desses intelectuais. O conceito de
especismo83, por exemplo, advém diretamente de seus trabalhos e se tornou
um conceito-chave para os movimentos sociais de libertação animal.
Na lógica do pensamento que fundamenta a utopia antiespecista, nada
justifica qualquer tipo de superioridade do homem em relação às demais
espécies animais, que passa justificar que o homem os trate como meios para
os seus interesses e não como fins em si mesmos. Desse modo, existe um
dever moral do homem para com eles que é correlato ao dever que temos para
com os outros seres humanos. E, indo além, todos os animais, indistintamente,
são titulares dessa condição e dos direitos a ela correlatos. A domesticação de
animais, símbolo do processo de civilização, portanto, pode e deve ser
compreendida como uma expressão da barbárie humana, uma escravização84.
Seguindo a inevitável afetação dos conceitos, expressões como “libertação”,
“exploração” e “extermínio”, usuais na análise política de relações
eminentemente humanas, passam a ser utilizadas de modo inteiramente novo
e despolitizado:
83
O especismo é o ato de promover um tratamento discriminatório a um animal em função de
sua espécie. Para os defensores dos direitos dos animais, um flagelo tão violento e
injustificável quanto o é o racismo e o sexismo.
84
WOLFF, Francis. As três utopias da modernidade, p. 39.
70
de sentir dor. E isso não deveria ser entendido como uma espécie de
humanidade partilhada com os outros animais, e sim, como uma animalidade
que é própria também ao homem. Visto sob a perspectiva de um naturalismo
não hierárquico, a fórmula “todos os homens são iguais” – que deu vazão às
grandes utopias do século XIX – é substituída por “todos os animais são
iguais”.
Deve-se alertar ainda que esta ideologia animalista tem encontrado uma
grande aceitação nos meios intelectuais, filosóficos e jurídicos. Isso porque,
aparentemente, não pode haver nada de errado no pensamento de tratar bem
os animais, além do que há uma série muito grande de fatores, especialmente
de caráter econômico e sociológico, que se somam e contribuem para a
mentalidade afeita ao animalismo ou ao antiespecismo:
71
2012, p. 272). Isto é, não se exigiria de espécie alguma uma atitude ética em
relação a todas as demais espécies. Mas pretendem exigi-lo ao homem. Isso
só pode ocorrer por um motivo, o homem não é “um animal como os outros”, só
ele pode agir eticamente, só ele pode ser especista ou antiespecista com base
em sentimentos e/ou princípios racionais. Mais desconsertantemente ainda:
afirmar que o homem é um animal como os outros, na verdade, só afirma o
contrário disso. Essa é única espécie que pode afirmá-lo, como poderia, então,
ser como todas as outras?
Persson e Savulescu, entretanto, advogam a existência da necessidade
de que essa espécie – o ser humano – tão naturalmente racional como egoísta,
passe por melhoramentos morais a fim de que a possa pensar e agir movido
por ideais que ultrapassem o autointeresse, e sendo cada vez mais capazes de
considerar – e de alargar a sua ética – as futuras gerações e os animais não
humanos85.
85
PERSSON, Ingmar e SAVULESCU, Julian. Inadequado para o futuro: a necessidade de
melhoramentos morais. Trad. Brunello Stancioli. Belo Horizonte: UFMG, 2017, p. 159.
86
A expressão inglesa enhancement é comumente utilizada pelos estudiosos para se referirem
a todas essas formas de melhoramento artificial humano.
72
de uma série de entraves à efetivação de seus supostos potenciais e,
especialmente por meio da Genética e da Informática, ter uma vida longeva,
mas não apenas viver por muito tempo e sim viver bem por muito tempo, com
saúde física e mental. Enfim, viver feliz, produtivo e por muito tempo, e, assim,
“ultrapassar a animalidade humana” (WOLFF, 2016, p. 43).
Assim, no vocabulário pós-humanista, fala-se em imortalidade (em
sentido não espiritual) não mais como um delírio ou como a expressão da
megalomania do homem, mas como uma possibilidade real:
73
Fala-se em humanização da máquina para se referir à previsão de que,
em breve, com a evolução da robótica, as máquinas serão capazes de
empreender algo semelhante à aprendizagem e desenvolvimento humanos.
Utiliza-se, comumente, a expressão singularidade para “designar o momento
em que a máquina será capaz de se reprogramar, ela própria, para aumentar
ao infinito suas capacidades” (WOLFF, 2016, p. 44).
A outra via da relação homem-máquina resultaria na maquinização do
homem. Seria esse um passo decisivo na luta do homem contra as limitações
que lhe são impostas pela natureza. É o homem em busca de superar tais
“imperfeições” características da condição humana, de modo que, em breve,
até a noção de morte seria redescrita. O ápice da utopia trans-humanista é a
ideia de que o humano evoluirá para o trans-humano e este, para o que se
chama pós-humano:
74
impedem, à medida que ele se deixar resignar, de se tornar tudo aquilo que
poderia vir a ser.
Nem de longe, entretanto, esse entusiasmo com o pensamento trasn-
humanista é pacificado. Uma das frentes em que ele é firmemente rechaçado é
o bioconservadorismo. No mundo inteiro, cientistas e profissionais da área
médica propõem, por exemplo, que seja criado algum tipo de tratado
internacional com o desiderato específico de proibir todas as formas de
clonagem de seres humanos. Organismos de direito internacional, como a
própria Organização das Nações Unidas – ONU, empenham-se em constituir
algo assim, ainda sem sucesso. No campo das ideias, Fukuyama (2003, p.
190), por exemplo, destaca-se como uma voz radicalmente contrária às ideias
pós-humanistas, em defesa do humanismo, da noção de natureza humana e
de direitos humanos naturais e invioláveis, denunciando as consequências, a
seu ver, nefastas da revolução da biotecnologia e defendendo a necessidade
de seu controle político:
87
A literatura filosófica é recorrente na utilização do mito de Prometeu – que inclui as
personagens Epimeteu e Pandora – com variados propósitos. Em geral, esta metáfora está
associada à crítica do progresso desenfreado e às possibilidades de que o seu preço seja
extremamente alto para que o ser humano possa com ele arcar. Os frakfurtianos,
75
Esse avanço irrefreável de Prometeu está se tornando seu
contrário: ciência e técnica estão se convertendo em novas
correntes que aprisionam o titã, roubando agora não mais do
Olimpo, mas tirando dos homens a capacidade de estabelecer
e controlar o fluxo do tempo e seus significados. O fogo foi
devolvido aos deuses, e o destino dos homens voltou a ser
atributo dos deuses: as deusas da ciência e da técnica.
especialmente Benjamin, são um exemplo disso, compondo com essa história variadas
maneiras de empreender a sua crítica da Modernidade. Bauman o ilustra primorosamente na
seção introdutória de seu último livro, Retrotopia, lançando mão da imagem do anjo da história
em Angelus Novus, de Paul Klee.
76
apresentando tentativas poéticas e filosóficas de conceituação, evidenciando a
importância do espírito utópico como uma ferramenta de descrição-redescrição
do real e imaginação de alter mundi, apontando muitos exemplos na literatura
que enriquecem a sua tradição, e fazendo uma tipificação dos autores utopistas
em dois grupos, o dos autores utopistas projetistas e o dos autores utopistas
iconoclastas; além disso, preocupamo-nos em apresentar uma possível
classificação das utopias em duas espécies bem abrangentes, as utopias do
possível e as utopias do impossível; tratamos ainda do pensamento
antiutopista de autores importantes; seguimos apresentando a utopia como um
estilo literário de romances sociais, em que um deles se destaca pela
importância histórica que assume, Utopia, de Thomas Morus; no final,
apreciamos a ideia de fim da utopia, muito discutida contemporaneamente,
fechando com duas concepções utópicas bastante evidentes hoje, a utopia
animalista e a utopia trans-humanista.
Assim, após a discussão desses aspectos pertinentes ao ambiente
literário-político das utopias, veremos, no capítulo que segue, várias
aproximações dos conceitos, qualificações e classificações com a obra
filosófico-política de Rorty, autor que assume um discurso de enorme
relevância ao cenário intelectual atual, especialmente por vestir as suas ideias
e proposições políticas com a roupa de uma utopia cosmopolita liberal-
democrática.
77
CAPÍTULO II
A Política em Rorty:
uma utopia cosmopolita liberal-democrática
78
Foi nesta via que o pensamento político de Richard Rorty projetou uma
utopia cosmopolita liberal-democrática. Em Contingência, ironia e
solidariedade89, obra publicada originalmente em 1989, Rorty pretendeu
esmiuçar cada um desses atributos, esclarecendo porque sua maneira de
projetar uma sociedade futura pode, e, na verdade, deve ser encarada como
uma utopia, como cosmopolita, como liberal e, ainda, como uma defesa
aguerrida e intransigente, antifundacionista e anti-essencialista, da democracia
e da solidariedade. E, em última análise, apresentando sua utopia não apenas
como um método de discussão política, mas, principalmente, como uma meta
real a ser perseguida no intento de realizar as defesas, melhorias e ampliações
das conquistas sócio-culturais das instituições democráticas.
Vejamos, nos subtópicos a seguir, cada um desses predicativos,
lançando mão, paulatinamente, de alguns conceitos relevantes e elementos
vocabulares recorrentes à retórica deste autor, considerado uma das vozes
altissonantes na discussão acerca do liberalismo, da democracia e, enfim, da
política na contemporaneidade.
89
Por ser a obra fundamental da produção intelectual de Richard Rorty, especialmente para o
seu pensamento político, optei por, neste trabalho, lançar mão de três edições diferentes deste
livro: a edição em inglês da Cambridge University Press (1989 – 26ª impressão, em 2008); a
tradução para português lusitano, da Editorial Presença (1994); e a tradução para português da
Martins Fontes (2007). Dessas três edições, utilizarei, prioritariamente, as duas primeiras,
fazendo as citações diretas em inglês e fornecendo, como nota de rodapé, a tradução para o
português da edição lusitana.
90
De certo modo, preocupar-se com isso é perceber que as pessoas nascidas em condições
abastadas tiveram, tão somente, uma boa sorte na “loteria da vida”. Mas que não é justo que
79
todos, e já denunciado veementemente em toda a tradição do pensamento de
esquerda – de que uma quantidade inumerável de pessoas jamais em suas
vidas desfrutará desses confortos: muitas pessoas nunca terão acesso a
computadores, saneamento básico ou assistência médico-hospitalar91.
Para Rorty era muito desconfortante perceber que não havia, até a sua
época, projeções que realmente apontassem, de modo minimamente confiável,
para a diminuição do abismo econômico que faz com que as pessoas tenham
oportunidades completamente diferentes em função, por exemplo, do seu local
e época de nascimento ou da família a que pertence.
Rorty tinha, entretanto, um conforto, algo de bom para enumerar na lista
de expectativas para o século XXI. Para ele, muito embora seja irracional
esperar o fim total das desigualdades sociais e regionais no mundo, podemos
esperar que o sonho de um mundo melhor, pelo menos, permaneça vivo, que o
diálogo sobre isso se mantenha aberto:
Desse modo, o pior dos mundos possíveis, para ele, seria, portanto, se
perdêssemos a esperança social e abandonássemos de vez o propósito de
melhorar este mundo em que vivemos. Na verdade, Rorty (1999b, p. 1) conclui:
“a raça humana pode recuperar-se de qualquer desastre, desde que conserve
intactas as suas esperanças”.
É precisamente esta esperança da esperança que pode nos manter
determinados. Só ela pode nos manter capazes de imaginar ser possível
construir um mundo no qual “nenhuma criança será fadada a sentir inveja
impotente da comida, das roupas ou do ensino aos quais outra criança tem
acesso” (Ibid., p. 3).
essa sorte defina e garanta o seu sucesso, logo no início, em detrimento de outras pessoas
que não foram agraciadas com a mesma fortuna.
91
Cf. RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e outros - Escritos Filosóficos, v. II. Trad.
Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999a.
80
A retórica rortyana, em sua dimensão ético-política, não se limita a fazer
uma descrição pormenorizada das circunstâncias sociais existentes hoje na
América ou no mundo, mas indica possibilidades de transformação real e/ou
construção desta América e deste mundo. Sua culminância consiste, pois, na
defesa de uma utopia. Para Rorty, ela é necessária, porque apenas assim,
pensando o futuro e objetivando responder a perguntas como “que tipo de
pessoa eu pretendo ser na vida pública?” ou “que tipo de país eu quero que o
meu país seja?” podemos empreender as transformações necessárias. É
importante mantermo-nos fiéis à pessoa que pretendemos ser no futuro e ao
país que desejamos para nós:
92
Ghiraldelli Jr., um dos mais importantes comentadores de Rorty no Brasil, concentra atenção
na importância de usar a palavra sonho em vez da palavra utopia no que concerne ao projeto
rortyano de sociedade. No presente texto, porém, o vocábulo utopia é suficientemente
investigado, nos capítulos anteriores, a ponto de fazermos o uso que, aliás, o próprio Rorty
também fazia, mesclando com a palavra “sonho”, referindo-nos a uma utopia rortyana.
81
questions about both the will of God and the nature of man and dreams of
creating a hitherto unknown form of society” (RORTY, 1989, p. 3)93.
É exatamente pelo fato de que Rorty se referia à construção de algo
desconhecido, inimaginavelmente melhor94, que seu trabalho não trilhou a via
da descrição pormenorizada de algum mundo idílico ou de uma espécie
qualquer de paraíso na terra. Será possível verificar, com o transcorrer destas
reflexões, que a sociedade projetada na retórica rortyana é apenas esboçada,
imprecisamente delimitada, porque é uma sociedade aberta, sempre
inacabada, continuamente propensa a melhorar, e, em conseguinte, uma
sociedade que jamais poderia atingir um status de perfeição. Para Rorty, essa
maneira de falar do futuro, de desenhar uma utopia de contornos muito
imprecisos, é nada mais do que se poderia esperar de um pragmatista, visto
que:
82
De certo modo, não seria leviano afirmar que o filósofo neopragmatista
assume conscientemente os riscos da imprecisão descritiva e da metaforização
justamente para não abrir mão de concebê-la mais poética e aberta. Segundo
Ghiraldelli Jr. e Rodrigues (2001, p. 33), Rorty “reitera o contingente como
elemento primordial da ação política, em detrimento de toda tentativa de domar
o futuro a partir das certezas que a teoria supostamente escavaria no
passado”.
Todo o pensamento filosófico de Richard Rorty, aliás, enfatiza o papel do
incremento da sensibilidade e da imaginação95, além da consciência da
contingência, em oposição à mera argumentação. Prima pela prioridade da
política para a filosofia. A transformação social sonhada se daria, pois, pela via
da alteração gradual, mas contínua, pela ampliação de nossa comunidade de
conversação, por meio daquilo que Rorty denominou focus imaginarius96.
A partir da ideia de que a solidariedade não é descoberta, mas precisa
ser criada pelos homens, afirmava Rorty que ela:
95
Ao lançar mão do recurso imaginação, Rorty esclarece que: “A imaginação, no sentido em
que estou tentando usar o termo, não é uma capacidade distintivamente humana, ela é, como
já disse antes, uma aptidão para sugerir narrativas socialmente úteis” (RORTY, 2009, p. 195).
96
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 67. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca.
Lisboa: Presença, 1994, p. 99.
97
Na edição lusitana: “É criada com o aumento da nossa sensibilidade aos pormenores
específicos da dor e da humilhação de outros tipos, não familiares, de pessoas. Uma
sensibilidade assim aumentada torna mais difícil marginalizar pessoas diferentes de nós (...)”.
(RORTY, 1994, p. 18 e 19)
83
autocriação privada por cada indivíduo e possibilitando uma vida mais rica e
mais includente para todos.
Uma sociedade assim – consciente de seu historicismo98 e nominalismo
–, aliás, seria o solo mais propício à germinação de novas e novas –
inimagináveis – utopias, pois cada uma, à sua vez, daria sustentação à
seguinte, tornando-a menos absurda, menos inaceitável. Houve um tempo em
que, mesmo nos países que hoje levantam a bandeira da democracia, da
cidadania e da liberdade, não se imaginava que as mulheres, ou os negros ou
os homossexuais desfrutassem de alguma isonomia social no tocante ao
reconhecimento de sua dignidade e cidadania. A princípio, isso era comumente
tido – como em uma espécie de inconsciente coletivo – por apenas um
complexo de absurdos defendidos por alguns poucos indivíduos incautos. Mas
a teimosia, a luta e o sangue de pessoas incautas como elas fizeram com que
se operasse uma interessante mudança linguística e, hoje, alguns daqueles
“absurdos” são chamados, simplesmente, “direitos”. Essa mudança vocabular
reflete, portanto, um conjunto de transformações sociais importantes. Trata-se
da mudança de vida sonhada para uma quantidade inumerável de seres
humanos:
A historicist and nominalist culture of the sort I envisage would
settle instead for narratives which connect the present with the
past, on the one hand, and with utopian futures, on the other.
More important, it would regard the realization of utopias, and
the envisaging of still further utopias, as an endless process -
an endless, proliferating realization of Freedorn, rather than a
convergence toward an already existing Truth. (RORTY, 1989,
XVI)99
98
Entende-se por historicismo, ao modo como Rorty o utiliza, a perspectiva de que toda ideia,
toda realização, toda criação, etc. advém única e exclusivamente do ser humano, e, por
conseguinte, estão sob a influência das condições de espaço e tempo do homem. O próprio
homem, inclusive, está também adstrito às suas condições espaciotemporais. É o que Rorty
pretendia dizer, poeticamente, quando afirmava que: “permaneceremos sendo criaturas finitas,
os filhos de tempos e lugares específicos” (RORTY, 2009, p. 143).
99
Na edição lusitana: “Uma cultura historicista e nominalista do tipo da que tenho em vista
adoptaria (...) narrativas que ligariam o presente ao passado, por um lado, e a utopias futuras,
por outro. E, o que é mais importante, veria a realização de utopias e a concepção de outras
utopias como um processo infindável – uma realização infindável e prolífera da Liberdade, e
não uma convergência para uma Verdade já existente” (RORTY, 1994, p. 19).
84
confortos metafísicos da mera expectativa de uma salvação num além ou numa
“vida futura” pelo esforço utópico100 de realização gradual, mas efetiva, de uma
sociedade melhor aqui mesmo, nesta Terra. Precisamente por vislumbrar tal
experiência de utopia, Rorty via em Whitman e Dewey suas inspirações mais
alentadoras, que permitiam ver a América como disseminadora de uma
esperança valorosa:
Segundo Ghiraldelli Jr., a leitura que Rorty fazia de Dewey tem caráter
educacional, na medida em que associa o pensamento deweyano à esperança
de que os jovens americanos possam ser socializados de modo a olharem para
si mesmos como parte de uma história de muito valor, a história de um país
que logrou – a um custo muitíssimo alto e muito gradualmente – livrar-se de um
jugo estrangeiro, concretizar a libertação dos escravos e o fim do sistema
escravocrata, emancipar as mulheres, criar um ambiente onde os sindicatos
possam lutar livremente pelos direitos dos trabalhadores, garantir a liberdade
religiosa e construir universidades importantes101.
É, pois, esse o sonho mais importante a se sonhar: não apenas a
garantia das conquistas civilizacionais já realizadas, mas a sua ampliação
contínua. E não apenas a sua ampliação, mas o direito de ter esperanças de
que novas conquistas sejam ainda pensadas, desejadas, buscadas e
realizadas. Trata-se de uma meta plausível – uma tarefa e esforço inesgotável
– de criar um mundo desse modo, uma organização política idealmente
cosmopolita, democrática e liberal. E são as vozes altissonantes de autores
como Nietzsche, Proust, Whitman, Dewey, Rawls, Habermas e o próprio Rorty
100
Cf. RORTY, Richard. O futuro da utopia. Trad. Clara Allain. Folha de São Paulo: Caderno
Mais. 04 de Abril de 1999b. Disponível in: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs04049905.
html, p. 74.
101
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Richard Rorty: a filosofia do novo mundo em busca de
mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 78-79.
85
– dentre muitos outros poetas fortes102 – que encarnam a esperança de que, de
fato, possamos contar, a cada dia, a narrativa de nossas vidas – a vida que já
tivemos e a que desejamos ter – de um modo inimaginavelmente mais poético,
solidário e includente.
86
Nesse mesmo sentido, Persson e Savulescu (2017, p. 65), utilizando-se
de uma argumentação essencialista – a partir de uma determinada noção de
natureza humana – expõem sua concepção de moralidade senso comum, e
vêem o altruísmo como afetado por questões de parentesco, proximidade,
intimidade, semelhança:
87
mais amplo – a espécie humana” (RORTY, 2005a, p. 106). E em outra
passagem igualmente elucidativa:
104
Esses autores, entusiastas do conceito de enhancement, acreditam que o homem é
“inadequado para o futuro”, e que, dentre os muitos possíveis melhoramentos físicos que o
homem, por meio da biotecnologia, pode empreender há também a “necessidade de
melhoramentos morais”, que exigem o surgimento de um homem diferenciado, aprimorado, e
mais capaz de realizar as mudanças morais que a sociedade já exige e exigirá mais ainda.
105
Para Rorty, a identidade moral de uma pessoa é determinada pelo grupo ou grupos com os
quais ela se identifica, aqueles a quem ela dedica a sua lealdade.
88
pessoas, aquilo que Wilfrid Sellars chamava we-intenctions (intenções-nós)106.
Nesse sentido, Ghiraldelli Júnior explica que, para Rorty:
106
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 59-60. E na edição lusitana,
cf. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 89-90.
107
Cf. Ibid., p. 141 e Ibid., p. 180.
108
Na edição lusitana: “aquilo que queremos fazer e mudar aquilo que pensamos que somos”
(RORTY, 1994, p. 43).
89
profícuos diálogos, como John Rawls e Habermas – e, por outra via,
aproximando-se de pensadores como Donald Davidson, Michael Walzer e
Daniel Dennett.
A consciência da contingência da linguagem, a certeza de que ela é
inventada e não descoberta, portanto totalmente passível de modulações, é
uma apropriação da ideia de verdade encontrada já em Nietzsche – que seria
desenvolvida na tradição do pragmatismo americano, especialmente com
James e Dewey. Nessa perspectiva nietzschiana, a verdade pode ser
entendida como:
109
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século
XX na América. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr., Alberto Tosi Rodrigues e Leoni Henning.
Rio de Janeiro: DP&A, 1999c, p. 201.
90
acadêmicos. Rorty os vê como grandes inspirações para a solidariedade, para
a igualdade e para a justiça social, deixando de lado as promessas ou
profecias, que os autores estabeleceram. Rorty (1999d, p. 202-203) afirmou ver
essas duas obras como compartilhantes de uma mesma esperança:
Para ele, portanto, ambos são textos que representam símbolos de que
podemos ter a esperança em construir um futuro melhor que o passado. E,
apesar de estar ciente de que essas obras são, em alguns aspectos,
prenúncios de um mundo “além” ou “radicalmente diferente do nosso”, Rorty
considerava que elas podem ser lidas pelos jovens de nosso tempo como a
esperança da esperança, como palavras que ajudarão a manter viva a chama
do sonho de que o futuro humano pode ser melhor que o passado.
Na comunidade idealmente democrática e liberal pensada por Rorty,
marcada pelo historicismo e nominalismo, as personagens provocadoras das
mudanças – os heróis, ou fazedores – são o poeta forte e revolucionário
utópico. Assim, autores como Platão, Nietzsche, Marx, Proust, Nabokov,
Newton, Darwin, Hegel, Heidegger, Milton e Blake110 são parte, em sua
perspectiva, de um estimado rol de filósofos, poetas, cientistas, romancistas,
políticos utópicos e artistas inovadores, pessoas que buscam enfrentar a
esmagadora angústia da obrigação existencial de não ser apenas uma
réplica111:
[...] the srong maker, the person who uses words as they have
never before been used, is best able to appreciate her own
contingency. For she can see, more clearly than the continuity-
seeking historian, critic, or philosopher, that her language is as
110
Rorty extrapola o termo “poeta forte”, cunhado por H. Bloom, utilizando-o não apenas para
os artistas revolucionários, mas para todos, inclusive cientistas e filósofos, que foram – ou que
são – capazes de “inventar novos jogos de linguagem para jogarmos” (RORTY, 2020, p. 1).
111
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 24. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 48. A esta fenômeno se refere com
grande propriedade o crítico literário Harold Bloom, especialmente, em uma obra basilar de sua
produção intelectual, A angústia da influência. Em síntese, trata-se da tese de que a produção
literária se desenvolve quando um autor pretende realizar algo dotado de valor e originalidade
ante a vastidão do que já foi feito de bom antes de dele.
91
contingent as her parents or her historical epoch. (RORTY,
1989, p. 28)112
112
Na edição lusitana: “o fazedor forte, a pessoa que usa as palavras como estas nunca antes
foram usadas, é a mais capaz de apreciar a sua própria contingência, já que esta pessoa pode,
mais claramente do que o historiador, o crítico ou o filósofo em busca da continuidade, ver que
a sua linguagem é tão contingente quanto os seus pais ou a sua época histórica” (RORTY,
1994, 53).
113
O filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco, analisando por volta dos anos de 1970, o
fenômeno contemporâneo da comunicação de massa, diferencia “apocalípticos” de
“integrados”. De certo modo, pela postura encarnada por cada qual, eles exercem forças
opostas na dinâmica social. Enquanto os apocalípticos tendem a uma postura conservadora ou
reacionária ante às transformações, os integrados são receptivos – até ingenuamente, ou
passivamente – às mudanças radicais efetivadas pela mídia.
114
Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
115
Admitir a ideia de um processo interminável de literalização das metáforas e criação de
outras metáforas sempre novas em uma sociedade idealmente liberal-ironista é coerente – e
mesmo necessário – ao mesmo tempo, com dois elementos importantes da retórica rortyana:
primeiramente, sua postura epistemológica anticorrespondentista e anti-essencialista, que via a
verdade, sob influência nietzschiana, como “um exército móvel de metáforas”; e, segundo, com
o reconhecimento, ou a consciência, da contingência da linguagem.
116
Na edição lusitana: “Fracassar como poeta – e, portanto, para Nietzsche, fracassar como
ser humano – é aceitar a descrição que outra pessoa faça de nós, executar um programa
previamente preparado, escrever, quando muito, variações elegantes de poemas anteriormente
escritos” (RORTY, 1994, 53).
92
realizar transformações includentes, de sempre expandir mais e mais o círculo
de seres humanos a quem não é absurdo chamar de “nós”, o incremento
contínuo da capacidade de se sensibilizar com a dor e o sofrimento de seres
humanos que, antes, não nos eram perceptíveis.
Uma tal disposição de ampliação da comunidade de diálogo seria,
também, uma ferramenta de composição para as controvérsias, culturais e
geopolíticas, como por exemplo, as marcadas pela dicotomia Ocidente-Oriente.
O abandono da ideia de que as sociedades ocidentais, ou então as orientais,
possam ser, cada uma à sua perspectiva, as verdadeiras detentoras de uma
racionalidade tipicamente humana levaria a uma gradual capacidade de diálogo
mais aberto e tolerante. Rorty (2005a, p. 121-122) expressou essa ideia
textualmente, em uma passagem muito perspicaz:
93
no tocante à política, as tradições das diversas culturas não devem disputar
com a defesa da democracia:
94
Uma sociedade pode ter a esperança de se tornar uma
sociedade diferente. Em vez de confirmar sua própria
identidade por processos sistemáticos de exclusão, pode
encontrar sua identidade precisamente em sua disposição de
ampliar sua imaginação e de fundir-se com outros grupos,
outras possibilidades humanas, a fim de formar a sociedade
cosmopolita, quase inimaginável, do futuro. (RORTY, 2005b, p.
100)
Não significa, é claro, que Rorty estivesse, de fato, preocupado com uma
política que fosse além dos interesses e das relações humanas reais. Ele se
utiliza deste artifício tão somente para demonstrar que seu sonho da
construção humana de uma comunidade global de confiança – uma realidade
ainda melhor que a até agora realizada – pelas sociedades liberal-
democráticas está apto a sobreviver, serpenteando em meio aos obstáculos
reais da vida social.
95
sobremaneira a habilidade de usar as palavras antigas em um sentido
inteiramente novo. Essa virtude, eminentemente poética, não é apenas uma
opção de estilo. Na verdade, Rorty fazia em sua retórica exatamente aquilo que
admirava em alguns autores que lhe eram referenciais – como Nietzsche e
Proust, por exemplo – e aquilo que deseja em sua utopia: que, cada vez mais,
tenhamos a capacidade imaginativa ampliada a ponto de estarmos abertos a
dar um uso inesperado a palavras antigas e a fazer de nossas vidas –
especialmente nossa vida pública – algo, também, permanentemente
renovado.
Uma expressão importante que assume significado peculiar na retórica
rortyana é liberalismo. Não há, nos textos de Rorty, uma definição de
liberalismo em termos propriamente econômicos ou o embate político centrado
no combate racional ao fascismo – esse combate ao fascismo será,
evidentemente, uma consequência da postural liberal por Rorty adotada –
associados à noção corrente de Liberalismo. Sua percepção para esta palavra
é sempre eminentemente social e pragmática. Rorty denomina “liberais”
aquelas pessoas cuja sensibilidade possibilita-ocasiona a habilidade de
enxergar algo abominável no ato, muitas vezes banalizado, de infligir
sofrimento ao outro, algo que precisa ser combatido. Os liberais são, pois,
pessoas afeitas à ideia de que não devemos tolerar o tratamento indigno e
humilhante por elas mesmas praticado, nem o mesmo tipo de atitude quando
praticada pelos outros, de modo que a banalização da humilhação e o sadismo
social sejam combatidos incessante e intransigentemente.
Tal sentido adotado para o vocábulo liberal, em Rorty, não é usual nas
discussões ideológico-políticas tradicionais. É bastante comum, nessas
discussões, que uma determinada palavra, de tão utilizada, passe a ter um
senso comum, em que seus atributos principais são compreendidos. Mas nem
sempre se tem a certeza do real sentido e alcance da expressão em um
determinado contexto discursivo. Judt faz uma consideração interessante sobre
ele: “Liberal é um vocábulo venerável e respeitável, e deveríamos nos orgulhar
de adotá-lo. Mas, como uma capa bem-feita, esconde mais do que revela”
(JUDT, 2011, p. 18).
A leitura de Rorty nos faz perceber que, para ele, existe um mal social a
que devemos, incessantemente, opor-nos na vida pública: a indiferença em
96
relação à dor das outras pessoas. E que deve ser considerada uma sociedade
liberal aquela que trabalha diuturnamente com o propósito de estender a sua
acuidade visual em relação ao sofrimento e à injustiça. Em outras palavras,
liberal é aquele indivíduo que combate o próprio sadismo e também o sadismo
social.
Essa perspicaz associação – entre combate à crueldade e postura liberal
– foi reconhecidamente tomada de empréstimo a Judith N. Shklar117, cientista
política da Universidade de Harvard: “a definição de „liberal‟ é-me emprestada
por Judith Shklar, que diz que os liberais são as pessoas que pensam que a
crueldade é a pior coisa que podemos praticar” (RORTY, 1997, p. 17).
Exatamente por ter delimitado a postura liberal deste modo, Rorty
considerava a solidariedade, a liberdade e a pluralidade como prioritárias em
relação à verdade de ideias e, também, a consciência da contingência como
um atributo inerente a tal postura liberal. Segundo Grasset (2013, p. 39-40),
isso está diretamente relacionado à pluralidade de valores e à riqueza de
opiniões:
Para Rorty, essa “cultura liberal”, sempre mais aberta e includente, ainda
não está pronta e acabada em parte alguma. Não há nenhum país, por
melhores que sejam as condições de liberdade e comprometimento
comunitário entre os seus cidadãos, que já tenha realizado plenamente a sua
democracia e o seu liberalismo, usando-se esse termo em sentido rortyano.
Pelo contrário, essa postura liberal precisa ser construída a cada dia. Essa é,
117
Shklar é uma voz de relevante contribuição ao pensamento liberal contemporâneo. Sua
escrita teve grande impacto sobre o pensamento rortyano, na medida em que coloca a
crueldade e o medo no centro da discussão política, critica, veementemente, o modelo de
pensamento por ela denominado “liberalismo conservador” (como o representado por Friedrich
Hayek e Ludwig Von Mises) e empreende um combate genuíno à tortura e à crueldade
institucionalizadas na sociedade americana do século XX. Para ela, toda forma de crueldade é
inadmissível a um liberal, uma vez que a crueldade gera o medo, e este destrói a liberdade.
97
precisamente, a utopia que Rorty construiu em suas reflexões políticas: uma
sociedade cosmopolita de conversação livre e democrática.
Trata-se, pois, de um moto contínuo, um estímulo constante ao
progresso moral – a que as sociedades liberais estão mais afeitas que as
demais, justamente por não tentarem encontrar em fundamentações
transcendentes a justificação de suas escolhas, e, em vez disso, permitirem
que a democracia justifique a si mesma –rumo às condições sociais
imaginadas, conforme Grasset evidencia:
118
Rorty qualificava o platonismo a que combatia como o complexo de pares de opostos que
compõe a lógica do sistema filosófico platônico, caracterizado pela oposição entre realidades
transcendentes e materiais, como, por exemplo, os dualismos entre aparência-realidade,
matéria-espírito, fazer-encontrar, sensível-intelectual.
119
Cf. GALVÃO, Artur E. Utopia e anti-utopia liberal: aspectos do projeto ético-político de
Richard Rorty. In: Revista portuguesa de filosofia. n. 59, 2003, 185-200, p. 185.
120
Segundo a leitura que Rorty fazia de Darwin, este autor é fundamental na construção de
uma cultura naturalizada, em que “tornou-se possível aos seres humanos verem a si próprios
como continuidade da natureza” (RORTY, 2005, p. 123).
121
Segundo a leitura que Rorty fazia de Hegel, muito influenciada pela perspectiva de Dewey, a
insistência no historicismo, típica ao pensamento hegeliano, é fundamental para a construção
pelo homem de uma auto-imagem sensível à contingência da linguagem e da própria
identidade.
122
Segundo a leitura que Rorty fazia de Freud, a consciência moral é histórica e socialmente
construída e não um dado imutável resultante, de algum modo, da natureza humana.
98
Esse diálogo livre e aberto seria, portanto, possível apenas a partir do
reconhecimento da contingência da própria identidade e da própria linguagem,
que cada interlocutor precisaria ter acerca de si mesmo, e também da
contingência da própria estrutural social liberal. Esse antidogmatismo é
consequência de algo ainda mais englobante na retórica rortyana, o seu radical
anti-essencialismo, que é a culminância de sua postura frontalmente
discordante da maneira platônica de ver e interpretar o mundo. Alguém que
tenha essa consciência – ou busque permanentemente construí-la – seria,
pois, um cidadão eminentemente apropriado para a utopia rortyana. Seria,
usando-se o seu vocabulário, um liberal-ironista.
Rorty delimitou a abrangência do sentido de afirmar que alguém seja um
ironista. Para ele123, ironismo é a atitude intelectual em que alguém assume e
cultiva, necessária e cumulativamente, algumas convicções: a de que o seu
próprio vocabulário é contingente, que as suas crenças, suas descrições do
mundo, são tão questionáveis quanto as crenças e descrições de qualquer
outra pessoa; a de que nem sempre o vocabulário que tem a seu dispor no
presente é suficientemente capaz de resolver suas dúvidas e suspeitas – sobre
as próprias posições e as posições dos demais –, suprindo todas as suas
necessidades linguísticas, e, por isso mesmo, está sempre aberto a novas
redescrições. Em resumo, o ironista é alguém que acredita que não há nada de
extraordinariamente especial em suas posições a ponto de ele estar mais
próximo da Verdade – ou de qualquer referencial fora da realidade humana –
que outras pessoas, e acredita que o mesmo se aplica a todos.
Tal postura ironista, portanto, estende-se a aspectos da auto-criação
privada bem como a aspectos da vida pública de um indivíduo. Estar ciente de
que sua própria individualidade não é determinada por uma natureza humana
previamente concebida, mas é passível de infinitas redescrições metafóricas124,
e que pode se reinventar e abrir mão de costumes e ideias que considerava
como importantes à sua auto-imagem é a posição coerente a um ironista. Do
mesmo modo, estar aberto às ideias que nascem do pensamento e das
crenças de outras pessoas, estar apto a um diálogo aberto, includente e leal
123
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. XV. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 17.
124
Cf. Ibid., p. 16 e Ibid., p. 39.
99
faz do ironista alguém capaz de revoluções, capaz de verdadeiramente mudar
de ideia, reconsiderar, vendo as coisas a partir de um ponto de vista novo.
Uma sociedade que valoriza a postura ironista é, pois, uma sociedade
capaz de autocrítica, capaz de questionar e debater o valor e o alcance das
suas próprias instituições, em busca de torná-las sempre mais úteis à tarefa de
redescrever o mundo, tornando-o inimaginavelmente melhor e mais justo.
Metaforicamente, Rorty (1989, p. 45) ilustrou o alcance e o uso muito
mais “renovador” do que “agonístico” desta capacidade-habilidade de
redescrição:
125
Na edição lusitana: “mas oferecer uma redescrição das nossas instituições e práticas
correntes não é oferecer uma defesa destas contra seus inimigos: é mais como mobiliar de
novo uma casa do que escorar a casa ou colocar barreiras à volta dela” (RORTY, 1994, p. 72).
126
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 61. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 91.
100
efetivamente de uma sociedade pluralista, capaz de ouvir as vozes dos
diversos segmentos que a compõem, com o intento de considerá-las todas
como igualmente relevantes, e empreender, cada vez mais, a substituição da
força pelo diálogo:
Exatamente por isso, Rorty partia da ideia de que a democracia deve ser
construída prioritariamente em relação a qualquer outra coisa. De certo modo,
cuidando dela – da democracia – as outras coisas que a pressupõem podem
cuidar de si mesmas. Isso provoca uma mudança de paradigma importante,
inclusive no trabalho que pode e precisa ser desempenhado pelos intelectuais.
Não é necessário – nem producente – dedicar-se à fundamentação da
democracia em termos “inquestionavelmente racionais”, por meio de
argumentos mais convincentes do que os dos seus rivais. O intelectual – seja
ele um filósofo, um cientista, um artista, etc. – tem algo mais urgente e mais
especial a fazer, qual seja, contribuir com a tarefa de construir, paulatinamente,
uma sociedade mais democrática. À medida que essa sociedade vai sendo
erguida, sua justificação vai se evidenciando na prática, e, na mesma medida,
deixando de ser requerida em termos de fundamentação teórica.
Durante séculos, o papel da Filosofia tem sido a busca incessante da
Verdade – ou de variantes igualmente absolutas como a Certeza e o
Conhecimento –, em um império da Razão, configurando um assumido
logocentrismo128. Em vez disso, Rorty propunha uma mudança de foco
epistemológico, uma, por assim dizer, revolução copernicana. Partindo de uma
127
Na edição lusitana: “uma sociedade liberal é uma sociedade cujos ideais podem ser
realizados pela persuasão e não pela força, pela reforma e não pela revolução, pelos encontros
livres e abertos de práticas atuais, lingüísticas, e outras sugestões de novas práticas” (RORTY,
1994, p. 90).
128
Tal incômodo em relação ao logocentrismo faz com que Rorty seja considerado por muitos
de seus críticos como um filósofo anti-filósofos ou como um irracionalista. Susan Haack,
filósofa inglesa e professora da Universidade de Miami, por exemplo, é uma das importantes
vozes a criticá-lo veementemente a partir desta problemática.
101
noção pragmática de Verdade129 – e se afastando de toda forma de
correspondentismo, essencialismo e platonismo – fez-se capaz de defender
que a democracia se justifica, antes mostrando os benefícios à humanidade
que é capaz de proporcionar do que encontrando alguma fundamentação
principiológica ou, de algum modo, metafísica ou teológica para si. A
democracia não depende, em sua perspectiva, de nada que esteja fora da
história e da cultura. E é, em decorrência, uma enorme perda de tempo e de
energia, para a Filosofia, a busca por este olhar especial, esta perspectiva do
olho de Deus130, capaz de dizer o modo como as coisas, de fato – ou, no fundo
– são. Assim, para a questão “o que os filósofos podem fazer pela política
democrática?”, Rorty (2005d, p. 111) indicava a seguinte saída:
129
O tema da Verdade na obra de Rorty encontra muita atenção, evidentemente, por que
muitas das suas proposições filosóficas, inclusive políticas, dependem de sua posição acerca
disso. O autor escreveu muitos textos em que explicitou a sua percepção pragmatista e
deflacionada de verdade e estabeleceu um profícuo debate com importantes pensadores a
respeito desse tema. Vide, por exemplo, a obra ENGEL, Pascal e RORTY, Richard. Para que
serve a verdade. São Paulo: Unesp, 2008.
130
Rorty cita essa expressão, associando-a a Hilary Putnam: “(...) a coragem de abandonar a
ideia de que é possível atingir, tanto na ciência quanto na moral, o que Hilary Putnam chamou
de “a visão do olho de Deus” (RORTY, 1999b, p. 70).
131
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marco Antônio Casanova.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. (Escritos filosóficos, v. I), p. 238 e VOPARIL,
Christopher J. Reading Rorty politically. In: Filosofia, n. 66, 2011, 963-970, p. 965.
132
Cf. RORTY, Richard. Pragmatismo e política, p. 124.
102
conhecer o que o futuro deve necessariamente ter em comum com o passado”
(RORTY, 2005a, p. 124).
Esta desnecessidade de uma justificação teórica inquestionável e
definitiva para a democracia, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial,
gerou grande desconforto entre os leitores de qualquer linha essencialista, seja
de tendência platônica, cartesiana ou kantiana. Rorty percebeu que o ambiente
filosófico que viu a sua produção intelectual aflorar era hostil a esse tipo de
descarte: a filosofia não poderia deixar para trás o que tinha de supostamente
mais importante, a possibilidade-missão de provar – a partir de princípios
transcendentes ou quaisquer outras formas de absolutos – que uma coisa era
melhor do que outra. Parecia que
133
Nietzsche se referia a esta possibilidade de recorrer a conceitos anistóricos e
transcendentes – como, por exemplo, recorrer a Deus – como uma espécie de “conforto
metafísico”.
103
em sua leitura de Dewey, “fixando primeiramente a política e costurando uma
filosofia a seguir” (RORTY, 1997, p. 239). Segundo ele, Rawls é um exemplo
de pensador contemporâneo preocupado com os rumos da democracia, cuja
teoria da justiça como equanimidade134 se coaduna ao seu próprio
pensamento, no sentido de considerar que “a democracia liberal pode caminhar
sozinha sem pressuposições filosóficas” (RORTY, 1997, p. 239).
Não faz sentido, neste ambiente construído pela perspectiva Rorty-
Rawls, nenhuma tentativa de absolutização da democracia. Ela não é a única
forma imaginável de configuração política na qual os homens poderiam viver.
Nesta visão pragmática, marcada pela consciência da contingência da
sociedade democrática, a democracia é como uma ferramenta dos homens,
uma ambiente propício à experimentação, um meio para manter vivo e
contínuo o diálogo, e construir a uma vida melhor. Assim, Rorty (2010, p. 34)
afirmava:
(...) creio que seus defensores, como Dewey, diriam que ela
não é, por si só, um absoluto, mas simplesmente o melhor
meio que conseguimos imaginar até o momento para alcançar
a máxima felicidade possível para os seres humanos. No
passado, tínhamos outras ideias do que poderia conduzir à
máxima felicidade humana. Hoje pensamos que é a
democracia, amanhã pode ser qualquer outro meio.
134
No Brasil, o pensamento político rawlsiano costuma ser denominado justiça como equidade.
Mas no referido trecho, o tradutor optou por chamar justiça como equanimidade.
135
Thomas Jefferson é considerado como figura central na história dos EUA – ao lado de
Franklin e Washington – no combate à intolerância religiosa e na defesa da privatização da
religião. Apesar de deístas, eram pragmatistas o suficiente para defender a autonomia da
política em relação à teologia. Importantes conquistas sociais decorrem desse embate,
especialmente, o espírito do “acordo jeffersoniano”, a que Rorty se referia como a consciência
de que a liberdade religiosa – que se encontra eminentemente no âmbito da vida privada – tem
um preço, a laicidade da vida pública: “o acordo jeffersoniano – a troca da garantia de liberdade
religiosa pela disposição dos crentes religiosos de não introduzirem religião na discussão de
questões políticas – tem sido uma parte muito importante da vida nacional norte-americana”
(RORTY, 2005b, p. 91).
104
Em vista de propósitos da teoria social, nós podemos colocar
de lado tópicos tais como uma natureza a-histórica do homem,
a natureza da determinação do si próprio, a motivação do
comportamento moral e o significado da vida humana. Nós
pensamos esses tópicos como tão irrelevantes para a política
quanto Jefferson pensava as questões sobre a Trindade e
sobre transubstanciação. (RORTY, 1997, p. 240)
(...) the aim of a just and free society as letting its citizens be as
privatistic, "irrationalist," and aestheticist as they please so long
as they do it on their own time - causing no harm to others and
136
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade, p. 242.
105
using no resources needed by those less advantaged.
(RORTY, 1989, xiv)137
137
Na edição lusitana: “(...) o objetivo de uma sociedade justa e livre é permitir que os seus
cidadãos sejam, de modo privado, tão “irracionalistas” e esteticistas quanto entendam ser,
desde que o façam na devida altura – sem fazerem mal a outrem e sem utilizarem para tanto
recursos de que necessitem os menos favorecidos” (RORTY, 1994, p. 16).
138
A questão do paradoxo da tolerância – devemos ser tolerantes com a intolerância? – é
muito bem analisada por Karl Popper em Sociedade aberta e seus inimigos. Para ele, a
tolerância precisa ter limite, uma vez que a tolerância ilimitada ameaça o próprio princípio da
tolerância. Assim, a democracia precisa ser vigilante e ter o zeloso cuidado de preservar as
suas próprias instituições e “ela só usará a força contra a consciência individual quando a
consciência conduzir os indivíduos a agir de um modo que coloque em risco as instituições
democráticas” (RORTY, 1997, p. 242).
139
Em Rorty, a expressão etnocentrismo é redescrita, assumindo significação diferenciada
daquela convencional, advinda da tradição antropológica. Na discussão dos antropólogos, a
postura etnocêntrica está associada à pressuposição de superioridade de um determinado
ethnos. Na retórica rortyana, entretanto, está associada ao fato de que é impossível, a qualquer
pessoa, observar e julgar os termos de uma conversação a partir de um ponto neutro. É
impossível “sair da própria pele”. Em outras palavras, “as crenças e desejos de um indivíduo
são tudo o que ele tem” (ARAÚJO, 2016, p. 125).
106
exercício de comparação dos resultados, observando a situação de vida das
pessoas em diversas configurações sócio-politico-econômicas, leva-nos
tranquilamente ao resultado de que as sociedades liberais e democráticas são
aquelas que têm dado a seus cidadãos as melhores oportunidades de viver de
forma digna; 2. o fato de que toda a democracia que já conhecemos não
expressa ainda o que podemos ter. A democracia é um processo em
andamento, uma construção, uma utopia a ser efetivada.
Assim, não há um argumento ótimo, não circular e infalível, para
defender a democracia ante seus opositores. Todorov argumenta que boa
parte das ameaças mais sérias à democracia é, desconcertantemente,
concebida e gestada em seu próprio ventre, e que muitos dos seus inimigos
podem ser chamados “inimigos íntimos”, uma vez que a conhecem e com ela
convivem a ponto de indicar as suas supostas contradições internas, e se valer
das dificuldades a ela inerentes de delimitar o significado e o alcance de
valores que lhe são basilares, como, por exemplo, a liberdade. Neste sentido,
questiona o filósofo e linguista búlgaro:
Para Rorty, a existência dessa inimizade íntima não deve ser suficiente
para se acreditar que tudo está perdido. Pelo contrário, isso é apontado como
maior virtude das sociedades democráticas: a democracia é capaz de ouvir
suas críticas – e todas as demais –, justamente, por alimentar a habilidade de
inquirir-se a si mesma, considerando isso algo não apenas normal mas
imprescindível. Não existe nisso qualquer deificação do regime democrático. A
democracia, nos termos encampados por Rorty, não promete solucionar todos
os seus problemas e nem responder satisfatoriamente a todas as suas
questões. O que ela “promete” é estar sempre afeita ao diálogo a ponto de
buscar saídas e reformas para sanar as suas dificuldades. É a liberdade que
107
alimenta – e é também alimentada a todo instante – a democracia. A livre-
discussão é o seu esteio:
"Free discussion" here does not mean "free from ideology," but
simply the sort which goes on when the press, the judiciary, the
elections, and the universities are free, social mobility is
frequent and rapid, literacy is universal, higher education is
common, and peace and wealth have made possible the leisure
necessary to listen to lots of different people and think about
what they say. (RORTY, 1989, p. 84)140
140
Na edição lusitana: “„livre discussão‟ não significa aqui „livre de ideologia‟, mas apenas o tipo
de discussão que se dá quando a imprensa, o sistema judicial, as eleições e as universidades
são livres, a mobilidade social é frequente e rápida, a alfabetização é universal, os estudos
superiores são comuns e a paz e a riqueza tornam possível o lazer necessário para escutar
muitas pessoas diferentes e pensar sobre o que elas dizem” (RORTY, 1994, p. 116).
108
Infiltrar as próprias práticas sociais na definição de algo presumidamente
universal e inelutável é, isso sim, um etnocentrismo inaceitável. Rorty propunha
outra espécie de etnocentrismo, portanto. Para ele, justifica-se o orgulho de
viver em uma sociedade cujas conquistas sociais transformaram a vida do ser
humano em algo indescritivelmente melhor, mais justo, menos cruel e mais
includente. Isso basta para defender a política liberal-democrática ou, em seus
termos, a cultura liberal. É a prioridade da democracia que tem o efeito de
empreender as reformas necessárias à criação de uma sociedade cada vez
mais responsiva ao sofrimento e à injustiça.
Na perspectiva rortyana, não há, por óbvio, nenhum sentido em dizer
que este ou aquele predicativo dos seres humanos comprova que eles tenham
uma natureza ou que existe algo a se considerar como universal. A despeito
disso, há qualidades construídas na práxis social que com o uso – com a
prática justificatória – passam a compor a auto-imagem das pessoas. Desde a
Grécia, especialmente desde Aristóteles, um atributo recorrentemente citado
como um diferencial do ser humano, em relação a todas as demais espécies, é
a sua capacidade de pensar, a sua racionalidade, sua propensão ao
conhecimento141. Mais uma vez, Rorty, posicionando-se contra o logocentrismo
deste pensamento, propunha a prática ininterrupta de redescrição de si mesmo
no sentido de reconstruir esta auto-imagem. Haveria, para ele, algo melhor do
que se orgulhar:
141
Em Aristóteles esta propensão ao conhecimento é tratada como algo natural, uma coisa
indelével na composição da natureza humana, assim como a sociabilidade: “todos os homens,
por natureza, tendem ao saber”. Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Vicenzo Cocco. São
Paulo: Victor Civita, 1984, 980a21, p11.
109
imagem da sociedade democrática. Na comunidade de diálogo resultante de
uma atitude cada vez mais ironista, marcada pela lealdade liberal entre seus
membros, e pela busca diuturna da ampliação de seus próprios limites de
inclusão, coisa sobremaneira importante é a cuidadosa construção dessa auto-
imagem. Dela dependem a valorização, a manutenção e a ampliação do
alcance das instituições. Neste sentido, contar a história passada é um
instrumento de grande valor. A História precisa, então, ser objeto de uma
atenção especial, não porque desvende a verdade real dos fatos passados,
mas porque o papel que lhe cabe é parte relevante neste processo de
construção da auto-imagem da democracia. As controvérsias acerca do
passado real deixam de ter a maior importância e cedem lugar ao desejo de
construir uma história melhor no futuro, como esclarece Carvalho Filho (2013b,
p. 106): “na sociedade literária, não se está mais interessado no “passado real”,
mas no passado que é útil contar para preparar um futuro melhor”. Assim, a
narrativa histórica é importante, desde que afirmativa, na medida em que se
comprometa com a contribuição para uma sociedade melhor.
A questão da identidade pessoal e/ou “nacional” (comunitária) foi levada
muito a sério nos escritos de Rorty, especialmente nas últimas obras, em que,
de certo modo, ele se incumbiu da tarefa de combater o cansaço, a atitude
expectadora, ou mesmo condescendente, da esquerda americana em relação
à tendência de contar uma história vergonhosa de seu país142. O destaque que
o autor fazia da necessidade de se ter uma postura afirmativa da identidade na
democracia liberal se justifica pelo fato de ser este um importante degrau na
escada que pode nos levar a construir uma sociedade melhor que a atual e
realizar as nossas utopias. Ele o afirmava taxativamente: “levantamos questões
sobre nossa identidade individual ou nacional como parte do processo de
decidir o que tentaremos fazer em seguida, o que tentaremos nos tornar”
(RORTY, 1999c, p. 47).
Importa, entretanto, que não se entenda essa via de argumentação
como a tentativa de negar e/ou encobrir os erros cometidos no passado, como
a defesa da postura de uma total condescendência para com as mazelas
sociais historicamente construídas. Não se trata, é claro, de uma revisão da
142
Para Rorty, “a desesperança tornou-se uma moda na esquerda – desesperança filosófica,
teorizada, fundamentada” (RORTY, 1999b, p. 72).
110
história para que se aproveite somente aquilo que nos é agradável, mas do
firme propósito de transformar os erros do passado em uma oportunidade de
não os cometer no futuro. Para Rorty, “nada que uma nação tenha feito impede
uma democracia constitucional de recobrar a auto-estima” (RORTY, 1999c, p.
68).
Richard Rorty foi, pois, um pensador do hoje e do amanhã, um mediador
de épocas, um fazedor forte, comprometido com as imagens do futuro ao
tempo que se desobrigava de qualquer ânsia de eternidade, esperançoso e
otimista, entusiasta da solidariedade, certo da força e da prioridade do diálogo
sobre a violência, um autor cujo olhar estava contingentemente direcionado aos
acontecimentos da vida social de sua época, mas que se comprometia com a
maravilhosa possibilidade de construir novos modos de existência –
possivelmente sequer imagináveis – para que as pessoas e as comunidades
sejam capazes de ter uma vida melhor do que a que temos hoje, e, a cada dia,
melhor do que a que tinham antes.
111
traçada, um objetivo a ser alcançado por meio da imaginação143. E
precisamente nisso se verifica o papel da utopia.
A tarefa de imaginar, em uma cultura utópica liberal, requer uma
sociedade não mais obcecada com a teoria, o tratado, o sermão, os sistemas
filosóficos, as verdades abrangentes, a objetividade, a racionalidade, mas
afeita ao romance, à peça e à metáfora.
Não é difícil a um crítico habituado ao vocabulário e aos procedimentos
metodológicos da filosofia tradicional tecer ressalvas as mais diversas à
retórica rortyana. Isso se dá, principalmente, porque muitas das questões a que
está habituado são consideradas por Rorty como algo que nem se deveria
tentar responder. De fato, essa é (ou seria) uma redescrição dolorosa para um
pensador: passar a considerar como de somenos importância aquilo que até
então era tido como vital, passar a duvidar da necessidade de muitos e muitos
tratados filosóficos. Observe-se, entretanto, que muitas conquistas sociais
relevantes nas sociedades democráticas se efetivaram a partir de ideias menos
rígidas e mais exequíveis, como afirma McClean:
143
Na retórica rortyana, a sociedade utópica é aquela em que a imaginação – assumindo o
lugar da razão – é o instrumento principal do bem.
144
No original: “Yet much of what we celebrate in and as mature and flourishing democratic
societies may be said to rest on „flimsy‟, „defeasible‟ philosophical and theological supports.
From those supports new dreams were dreamed (are dreamed), and then lived out –
concerning „unalienable rights‟, „the brotherhood of man‟ and the „arc of the moral universe‟.
145
Cf. Ibid, p. 3.
112
tolerar a diferença – de pessoas e ideias – os homens sejam obstinados em
procurar e encontrar arranjos sociais para facilitar a convivência respeitosa e
solidária entre os diferentes, formas respeitosas de comunicação entre
diferentes vocabulários.
Entretanto, Rorty de modo algum poderia ser associado a alguma
espécie de utopismo ingênuo, incitando realidades transformadas sem que se
preocupe com as dinâmicas de transformações reais da sociedade. O
pensamento de Rorty é, desde já, um elemento de mudança, um mobile. É
nesse sentido que McClean (2014, p. 6) afirma que:
146
No original: “It is one thing to call for a planetary love ethic, as did so many religious
and poetic visionaries over the ages, but it is quite another to help clear the ground for
one. Rorty‟s thought helps to do just that”. (McCLEAN, 2014, p. 6)
113
é necessário que se tenha atenção e cuidado para com ele. As conquistas das
instituições sociais, que se tornaram práticas sociais comuns nas sociedades
democrático-liberais, são o resultado de um complexo de eventos históricos
não necessários. Não existe nenhuma espécie de garantia de que a herança
dessa combinação de eventos históricos permanecerá sendo levada a sério em
uma dada comunidade. Desse modo, bastaria, talvez, que ascendesse ao
poder um governante cujos princípios e valores destoassem completamente
daqueles em voga – valores democráticos e de combate à crueldade e ao
sadismo social – para que tais valores se perdessem e o sadismo social
voltasse a ser uma moda.
Expressões como direitos humanos universais ou direitos inalienáveis, e
qualquer outra cujo embasamento seja a noção de natureza humana147,
chegam a ser, nesta perspectiva, perigosas, uma vez que denotam certa
perenidade e garantia a coisas que foram – e precisam ser entendidas assim –
conquistas sociais, resultado de condições históricas contingentes, e que
podem vir a ser mitigadas ou até suprimidas a qualquer tempo, a despeito de
normatizações em contrário.
Precisamente por isso, Rorty chamava a atenção para o fato de que a
consciência da contingência talvez seja a nossa única defesa contra ela. Saber,
de certa forma, que tudo pode ser perdido é a única coisa capaz de fazer com
que permaneçamos atentos em proteger os sentimentos, os valores e os
princípios que justificam, promovem e alimentam as instituições democráticas e
liberais.
147
Para Rorty, o pragmatismo efetua a negação de alguns “confortos metafísicos” com os quais
a tradição cultural ocidental estava muito familiarizada. Dentre eles, “o pensamento de que os
membros de nossa espécie biológica carregam com eles certos „direitos‟”, o que se associa à
ideia de “direitos humanos”, inalienáveis e transmitidos biologicamente. Cf. RORTY, Richard.
Objetivismo, relativismo e verdade, p. 48.
114
solidariedade, houve, de fato, uma excelente sistematização de conceitos e
uma apresentação mais argumentativa das ideias principais que o filósofo
pretendia defender148. Foi, entretanto, em uma obra posterior, Philosophy and
social hope, uma compilação de ensaios sobre política, cultura e crítica literária,
que Rorty publicou o texto, escrito em 1996, que explicitamente ilustraria a sua
utopia: Looking backwards from the year 2096149.
Em um riquíssimo exercício de imaginação, Rorty adotou ficcionalmente
uma perspectiva privilegiada, ao observar o século XX – mais precisamente, o
desenrolar dos acontecimentos políticos ao longo desse século na América – a
partir do ano de 2096, final do século XXI.
No início do enredo de tal investigação prospectiva-retrospectiva, o autor
concentrou o olhar prioritariamente em um determinado recorte temporal,
compreendido entre os anos de 2014 e de 2044, a que chamava Dark Years,
período em que muitos dos valores mais caros a uma democracia-liberal teriam
sido suplantados e, em decorrência, conquistas sociais anteriormente
empreendidas – especialmente no que diz respeito aos sentimentos de
solidariedade e esperança social – teriam sido mitigadas.
Nesse período, dois processos sociais indicativos de tais retrocessos
seriam de fácil detecção: primeiramente, uma marcante transformação em
termos de vocabulário político corrente, e, em segundo lugar, uma mudança
significativa no tocante à relação entre moral e economia. A partir de um ponto
privilegiado, o observador-narrador constrangia-se ao constatar a conivência
dos homens e mulheres do século XX com a desigualdade e com uma moral
capaz de cegar as pessoas para o sofrimento e a dor dos outros. Guiados por
uma moral desse tipo, os indivíduos não poderiam de modo algum considerar,
movidos por um sentimento de solidariedade social, contentar-se com menos
riquezas materiais para que outros dispusessem também de melhores
condições de existência.
Olhando um pouco mais a diante, a partir da perspectiva adotada, o
observador aponta que nos 100 anos que precederam a Revolução Industrial, a
148
Deve-se ressalvar que, mesmo na obra citada, de caráter eminentemente teórico, Rorty
manteve uma escrita leve e ensaística, sendo coerente com o tipo de retórica filosófica que o
próprio texto afirma valorizar. Assim, o autor apresentava poeticamente as argumentações que
julgava pertinentes, flertando, simultaneamente, com diversas formas de arte e com a crítica
literária.
149
Originalmente, esse texto foi publicado no The New York Times, em 1996.
115
América respirava um ar de alguma tolerância e solidariedade, mas que, após
o advento dos tempos industriais, ficou cada vez mais difícil verificar relações
de fraternidade, por exemplo, entre empregador e empregado. O abismo entre
ricos e miseráveis só viria a aumentar. E, além do problema da distribuição de
riquezas, há, relacionado a ele, o da segregação racial, que perduraria ainda
por muito tempo.
Após a Segunda Guerra Mundial, algumas mudanças sociais
importantes já se verificavam, especialmente as implementadas pela
jurisprudência da Suprema Corte americana, acerca dos direitos de grupos
identificados pela raça, etnia ou sexualidade, especificamente relacionadas aos
direitos civis. Tais transformações políticas e morais, inclusive, serviram de
parâmetro para conquistas sociais semelhantes em outras partes do mundo.
Nesse período do pós-guerra, era possível enxergar algum progresso moral em
termos de solidariedade. Americanos brancos, gradativamente, começavam a
considerar os americanos negros como concidadãos.
Houve, entretanto, a partir dos anos de 1980, um marcante retrocesso,
com o processo de banalização do egoísmo e uma explosão de ódio e
segregação. A retórica dos políticos conservadores, pouco a pouco, parecia
fazer mais sentido. Ideias como “é apropriado que a educação das pessoas
seja condizente com sua posição social”; ou “deve-se investir menos e menos
recursos públicos com presidiários”, ou ainda “as pessoas devem ter o direito
ao porte de armas, para que possam defender seu patrimônio e sua vida”
passam a fazer sentido no imaginário das pessoas. E a consequência do
sucesso de ideias como essas foi o fim de qualquer espírito de fraternidade
entre os cidadãos de diferentes raças ou classes sociais. Além disso,
explodiam insurgências em toda parte e a sensação de segurança diminuía
paulatinamente. Concomitantemente, a economia colapsava. Era a ascensão
dos Dark Years.
A partir da descrição distópica desse período, o narrador-observador
direciona o foco para o tempo presente, o final do século XXI. É nessa
descrição imaginativa de como seria a realidade moral e política na América no
final do século XXI que o autor deixa transparecer sua utopia de sociedade
liberal e solidária. Mudanças consideráveis no vocabulário político teriam,
então, ocorrido e expressões como fraternidade e altruísmo teriam voltado a
116
fazer sentido na retórica política. Aos poucos, construíram-se as condições
para que a linguagem da literatura viesse a ser preferível à do direito, e para
que as pessoas passassem a sentir vergonha da desigualdade150. Tornou-se
senso comum a ideia de que podemos estender a nossa solidariedade a um
número cada vez maior de pessoas, uma revolução de perspectiva, do “eu”
para o “nós”.
Neste ambiente de altruísmo, a expressão liberal já não se referiria a
alguém cujo propósito político maior seria a proteção de sua propriedade e da
propriedade de todas as pessoas. Liberal seria aquele cujo maior objetivo a
perseguir é o resgate da dignidade das pessoas através da solidariedade.
Outra mudança vocabular importante, em termos de religião e moral,
agiria no sentido de ensinar às pessoas que nenhuma espécie de salvação,
aprimoramento ou segurança exclusivamente individual, que exclua os outros
cidadãos, deva jamais ser tomada como o que há de prioritário. As igrejas não
deixariam de existir, mas o evangelho que ensinariam seria uma espécie de
“evangelho social”, aperfeiçoando as pessoas para incluir, dividir e participar.
Há ainda outro aspecto importante: na sociedade que se construiu na
América do final do século XXI, as pessoas são permanentemente
conscientizadas de o quanto foi difícil atingir tal nível de conquistas
civilizacionais e de como são frágeis as instituições erguidas. A consciência da
fragilidade e a suscetibilidade à contingência teriam atingido padrões que
Whitman e Dewey jamais poderiam ter imaginado151. Esse é, em conseguinte,
um elemento-chave para se afirmar que uma determinada sociedade está
tomando o caminho da utopia cosmopolita liberal democrática rortyana: se as
pessoas estiverem muito seguras de que aquilo que construíram são
conquistas perenes, realizações acabadas, e que o que importa agora é tão
somente empreender novas melhorias, algo está errado com esse senso de
democracia; por outro lado, se elas estiverem constantemente empenhados na
tarefa de lembrar que as conquistas civilizacionais até então realizadas
precisam ser protegidas e solidificadas, uma vez que não estão assentadas
sobre nenhuma espécie de absolutos, sendo muito frágeis e contingentes e
150
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na
América, p. 248.
151
Cf. Ibid., p. 250.
117
que nunca termina o processo de realizar projetos novos e criar novos direitos
e práticas sociais includentes, até então inimagináveis, aí sim poderemos
afirmar que eles têm tomado o caminho da utopia que Rorty sonhava.
152
Em entrevista concedida a Giovanna Borradori, Rorty (2003, p. 152) elencou alguns autores
americanos e europeus que faram tratados dessa forma depreciativa, a despeito de sua
importância intelectual: “Emerson jamais foi lido como filósofo pelos filósofos. É como o caso
de Nietzsche, que antes de Heidegger não era considerado um filósofo. Só recentemente
filósofos como Stanley Cavell e Cornel West procuraram trazer Emerson para dentro do
„cânone filosófico‟. Emerson e Thoreau eram considerados figuras literárias, na tradição dos
americanos excêntricos”. Em outro momento, Rorty (Ibid., p. 158) afirmou que na Europa uma
continuidade entre filosofia e literatura já é comum ao modo como se lêem os filósofos e que,
“Valéry e Sartre perambulavam de uma para a outra conforme o momento”.
118
Muitos são os filósofos, entretanto, que não se consideram polidores de coisa
alguma, contentando-se com a pretensão de oferecer uma visão útil daquilo
que se propõem discutir, mantendo-se cientes de que tal visão não
necessariamente é mais acurada que todas as outras, e, também, que ela não
precisa ser a visão definitiva daquele objeto de reflexão.
Realidade, visão, polimento, lentes, dioptria e clareza são termos
propositadamente afeitos à ciência óptica. São metáforas oculares, que
evidenciam tanto a maneira de descrever a relação epistemológica entre o
homem e os objetos cognoscíveis que se tornara prioritária –
correspondentismo (verdade como correspondência) e representacionismo
(conhecimento como representação) – como a forma de entender o método de
trabalho da filosofia a ela correlata. O sonho de ter uma linguagem e um
método semelhantes ao das ciências embalou, por séculos, o sono de muitos
filósofos. Ghiraldelli Júnior afirma que, em uma suposta história da filosofia
americana sob a perspectiva de Rorty, um dos momentos importantes seria a
presença dos empiristas lógicos do Círculo de Viena, refugiados nos Estados
Unidos, que assumiram um protagonismo em relação aos problemas filosóficos
discutidos bem como à forma de discuti-los, marcantemente anti-historicista,
buscando “fazer filosofia de maneira científica” (GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 26).
Rorty (2003, p. 151) levantava uma hipótese de motivação para essa postura
dos intelectuais que vieram para a América escapando à barbárie nazista:
119
preocupação com a honestidade intelectual153. Tal intento de dar aspecto de
ciência à filosofia esteve presente, para Haack, nas origens do Pragmatismo
Clássico, desvirtuado, banalizado e vulgarizado hoje por autores da moda
irracionalista, especialmente Rorty:
153
Cf. HAACK, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada: ensaios contra a moda
irracionalista. Trad. Rachel Herdy. Rio de Janeiro: Loyola, 2011, p. 57.
120
A descrição de Borradori acerca da filosofia em uma sociedade pós-
filosófica, ao modelo do entusiasmo de Rorty, é precisa e esclarecedora:
121
Os tijolos dos quais o templo da Verdade é construído têm
como matéria prima os julgamentos individuais. Cada pessoa
os fabrica continuamente. Mas destes, uma grande parte é de
tijolos mal queimados, ou feitos com a forma errada. Por isso,
precisam ser rejeitados. É possível que eles ainda pareçam
subjetivamente “verdadeiros” para os seus produtores, mas são
objetivamente inúteis. Quem quer que, por outro lado, tenha a
habilidade de projetar uma forma de tijolo que seja útil encontra
muitos imitadores. Ele se torna uma autoridade em arquitetura,
e é chamado a modelar ou remodelar os tijolos de outras
pessoas. (SCHILLER, 1908, p.17 – tradução nossa)154
154
No original: “The bricks out of which the temple of Truth is built are the individual judgments
which supply the material. Every one is continually making tham. But of these a large proportion
are half-baked, or broken, or of wrong shaps. So these have to be rejected. They may still seem
to their makers subjectively „true‟, but they are objectively useless. Whoever, on the other hand,
has the skill to devise a form of bricks which is useful finds hosts of imitators. He becomes an
architecyonic authority, and is called in to mould or re-mould the bricks of others”.
155
Rorty adota a perspectiva de que os homens estão sós no mundo, sem poder apelar para
uma segurança ou conforto transcendente, que já era presente na cultura grega – em
Protágoras, por exemplo – e que permeia a obra de outros importantes nomes da reflexão
filosófica, como Emerson e Shelley: “Considero que Shelley confirma o argumento de
Protágoras – ou o que pode ter sido o argumento de Protágoras –, de que não há nada, fora
dos seres humanos, que lhes ofereça orientação. Considero que Protágoras sugeriu que os
seres humanos só contam consigo mesmos” Cf. RORTY, Richard. Filosofia, racionalidade,
democracia: os debates Rorty & Habermas, p. 87.
122
relevante para a vida do homem, as imagens que ele pode traçar do seu
próprio futuro, do futuro de seu país e do futuro forjado para as novas
gerações. Por muito tempo, a filosofia esteve às voltas com a pretensão de
descobrir verdades eternas. Somente no século XIX, isso se modifica de modo
marcante e autoconsciente. Pensadores como Hegel e Darwin foram
essenciais nessa descoberta e na assunção de uma postura eminentemente
historicista e naturalista: “a influência combinada de Hegel e Darwin afastou a
filosofia da questão „o que somos?‟ e a aproximou da questão „em que
podemos nos tornar?‟” (RORTY, 2005a, p. 123-124).
A perspectiva do olho de Deus, isto é, olhar a vida, a história ou a
sociedade humana de fora, é, portanto, uma pretensão que os filósofos, muito
lentamente e a muito custo, foram aprendendo a abandonar e precisam tomar
como uma tarefa constante e sem fim. Esse movimento é crucial para que eles
possam vir a pensar em termos de ação em vez de contemplação. E esse não
é o ocaso ou a desgraça da filosofia, mas os filósofos precisam aprender a
desenvolver uma espécie diferente de pensamento, mais afeito à vida real e
mais propício a ser útil ao engendramento do futuro. O filósofo deve parecer
mais com um engenheiro que com um sacerdote e deve ser menos afeito a
descobrir mundos que a criá-los.
Para Rorty, abandonar o paradigma platônico-kantiano não é abandonar
a filosofia. E ela não deve mesmo ser abandonada, uma vez que tem o
potencial de contribuir de forma criativa para a resolução de problemas e a
criação do novo:
123
estranho, portanto, em vê-la aproximar-se de outras formas de descrição da
vida, como a literatura, por exemplo. Em conseguinte, o papel do filósofo,
assim como o dos engenheiros e advogados, é o de auxiliar na composição de
soluções para os “problemas particulares que emergem em situações
particulares”. Em vez de empreender uma busca infindável pelos os universais,
ou de ansiar por compor uma espécie de vanguarda de movimentos políticos, o
que importa, enfim, é a capacidade de oferecer sugestões alternativas
concretas, propícias a redescrever o que se discute em uma situação
particular. Tais sugestões são uma condição necessária para o progresso
moral. Rorty elenca algumas dessas sugestões alternativas, que, de fato,
tiveram impacto sócio-cultural incomensurável, modificando o mundo em que
vivemos:
124
construamos um mundo em que buscar novas e novas transformações de
ampliação de direitos e de conquistas sociais seja uma disposição permanente,
e, mais ainda, um mundo em que seja possível a invenção de direitos com os
quais ainda nem sonhamos.
Em síntese, não há na construção da retórica rortyana qualquer indício
de que ele estivesse buscado edificar uma Teoria, mas há, e muito claramente,
o propósito de oferecer uma ferramenta capaz de contribuir para uma mudança
real em uma direção política bem definida, a saber, a melhoria e a ampliação
das conquistas civilizacionais da democracia liberal156. Assim, o antiteoricismo
de Rorty se expressa na crítica à precedência da teoria sobre a ação política,
tão defendida pela tradição do pensamento político, especialmente de viés
marxista157. Em vez disso, os que têm ascendência deweyana, tendem a
pensar primeiramente em uma política e somente depois em uma articulação
filosófica para ela158. Rorty é uma das vozes mais importantes na defesa da
democracia contemporânea e da justiça social, mas não move um músculo em
defesa da teoria democrática ou em busca de argumentações fundacionalistas
para o fim da desigualdade, preferindo a atitude pragmatista – e pragmática –
de empreender propostas, sugestões:
156
Evidentemente, essa posição rortyana está muito bem afianda com a maneira pragmatista
de proceder. Segundo Araújo, “São características da perspectiva pragmatista, considerando a
prioridade da interação, 1) a predominância da prática sobre o „puro pensamento‟, 2) da
pesquisa em relação à especulação, 3) em alguns casos, da política em relação à teoria”. Cf.
ARAÚJO, Tiago Medeiros. Pragmatismo romântico e democracia: Roberto Mangabeira
Unger e Richard Rorty. Salvador: Edufba, 2016, p. 30.
157
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. RODRIGUES, Alberto Tosi. Rorty: da filosofia da linguagem à
filosofia política democrática. In: RORTY, Richard. Contra os chefes, contra as oligarquias:
entrevista a Derek Nystrom e Kent Puckett. Trad. João Abreu. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.
35.
158
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade, p. 238.
125
Trata-se, em Rorty, portanto, menos de um esforço de reflexão, e mais
de uma proposição; menos da tentativa de provar algo e mais da tentativa de
provocar algo. Rorty, através de uma filosofia política conversacional e
contextualista, utiliza-se da imaginação de uma utopia de sociedade
democrática e liberal como um método, uma ferramenta que considerava
apropriada para um determinado fim. Em sua retórica, a utopia é um método
para uma meta, em sentido latu, a solidariedade humana, que não está por ser
descoberta, mas, continuamente, criada:
159
Na edição lusitana: “Na minha utopia, a solidariedade humana seria vista não como um
facto que haveria apenas que reconhecer uma vez removidos os “preconceitos” ou alcançadas
as profundezas até então ocultas, mas sim como um objectivo a atingir. Um objectivo a atingir
não pela investigação, mas sim pela imaginação, pela capacidade imaginativa de ver em
pessoas estranhas companheiros de sofrimento. A solidariedade não é descoberta pela
reflexão, mas sim criada” (RORTY, 1994, p. 18).
160
O esforço de Rorty, em relação ao lugar da filosofia, vai, pois, de encontro às ideias de
autonomia e profissionalização da disciplina. Para ele, é muito mais interessante que não
existam contornos muito bem definidos entre questões filosóficas e questões políticas,
religiosas ou estéticas, e que não estejamos muito preocupados em diferenciar os momentos
em que nossos pensamentos são estritamente filosóficos e os momentos em que não o são.
Para ele, “não há nenhuma maneira pela qual possamos isolar a filosofia como ocupando um
lugar distintivo na cultura ou estando interessada num assunto distintivo ou procedendo
segundo um método distintivo” (RORTY, 1982b, p. 153)
126
democracia é um espaço propício, o mais propício que se conhece até hoje, a
que qualquer cidadão o possa fazer:
127
considerar o seu vocabulário final ou o do outro como a forma perfeita de
descrição das coisas como elas verdadeiramente o são.
Não há ferramentas mais apropriadas à tarefa de continuamente
reaprender a ver o mundo que a sensibilidade e a imaginação. Exatamente por
isso, tais ferramentas têm maior valor que, por exemplo, a argumentação
lógico-racional da filosofia tradicional. Pouco importava a Rorty, ser taxado de
um “filósofo anti-filosofia”. Agressivo mesmo – e injustificado – seria chamá-lo
pessimista, derrotista ou tentar relegar a sua literatura à margem da reflexão
política séria contemporânea.
Rorty não se limitou a fazer uma análise da esquerda na América, ou
mesmo da política de hoje no mundo ocidental. Ele se mostra um mediador de
épocas, uma ponte entre o pensamento política do passado e as possibilidades
políticas de amanhã. Rorty foi, em síntese, um fazedor forte, um ironista e um
liberal, e – por que não dizer? – um fazedor de utopias.
No capítulo seguinte, as ideias de Rorty serão retomadas sob o pano de
fundo de outros pensadores, intelectuais importantes à discussão política de
nosso mundo moderno. Evidentemente, nem todos deram, ou dão, a sua
anuência ao discurso rortyano, e nem todos os outros, rejeitam-no
veementemente. Todos eles estabelecem um diálogo profícuo com Rorty, o
que, por óbvio, é o caminho para se chagar – ou, pelo menos, se buscar – ao
novo.
128
CAPÍTULO III
161
Para Bernstein, muitos dos aspectos da escrita rortyana o levaram a ser visto, em alguns
círculos, como um inimigo, alguém que contribuiria mais se não difundisse suas ideias. Isso
ocorria porque Rorty não hesitava em tocar em pontos muito sensíveis a esses grupos. Por
exemplo, ao empreender a defesa do liberalismo burguês, evidentemente, desagradava em
muito os intelectuais marxistas; ao acusar os conservadores de serem gananciosos e egoístas,
deixava-os enfurecidos; e, por fim, ao valorizar o patriotismo americano, incitava a ira de
setores da esquerda que o viam como uma espécie de justificativa para o imperialismo. Cf.
BERNSTEIN, Richard. The dark years. In: Pragmatism Today: The jornal of Central-European
pragmatist forum. n. 1, v. 10, 2019, 09-15.
162
É bastante comum, inclusive, a expressão “Response to...” nos títulos de seus artigos,
demonstrando a abertura do autor ao debate, e, ainda, o respeito ao leitor de seus textos que
se tenha incomodado com algum aspecto ou suscite a explicação de algum ponto.
129
filosófico inclusivo que conseguiu, simultaneamente, ser
relevante a todos esses grupos. É nesse sentido que ele foi
descrito com precisão como „o mais influente filósofo
americano contemporâneo‟.163
163
No original: “Rorty engaged Analytic thinkers, Pragmatists, Critical theorists and Continental
philosophers (amongst others) in an inclusive philosophical dialogue that managed,
simultaneously, to speak to all these groups. It is in this sense that he was accurately described
as „the most influential contemporary American philosopher‟”.
164
Texto em que Rorty responde ao artigo “Private irony and public decency: Richard Rorty‟s
new pragmatism”, de 1990.
130
fazer uso de termos antigos com significados inteiramente novos, e contornar
problemas teóricos considerados fulcrais na tradição filosófica, furtando-se de
resolvê-los e os tratando como completamente desnecessários.
O mesmo pesquisador brasileiro, Carvalho Filho, observa, em outro
momento, que há, em relação à retórica rortyana, um qualitativo incomum ao
ambiente da discussão filosófica tradicional – o que muitas vezes serviu,
injustamente, para que Rorty não fosse levado tão a sério como filósofo. Trata-
se do fato de que muitos aspectos de sua escrita estão simplesmente “fora do
alcance dos criticismos usuais”. O autor explica:
131
interlocutores, os mais socráticos, são os que aprenderam a perceber quando o
debate será melhor servido pela harmonia e quando o será pela discórdia 165.
Um exemplo desse encontro foi descrito por Bernstein, analisando as
circunstâncias e o impacto imediato da obra central de Rorty, Contingência,
ironia e solidariedade, quando fora lançada, em 1989166:
165
Cf. AUXIER, Randall; HAHN, Lewis. (eds). The Philosophy of Richard Rorty. Chicago:
Open Court, 2010, p. 573.
166
Para Bernstein, a concepção política de Rorty ficará muito mais explícita e clara em obras
marcantes da década de 1990, em que Rorty delineou com maior precisão conceitos como o
de “política cultural”. Nesse período, será vicinal o texto Achieving Our Country, em que o
filósofo se dirige de forma muito direta aos pontos que considera fundamentais da política na
América.
167
No original: “(...) But the political implications of Rorty‟s views were not yet fully clear. This is
why Rorty was such an easy target to attack by both political conservatives who accused him of
being “cynical and nihilistic” and political leftists who felt that Rorty was simply defending status
quo bourgeoisie liberal individualism. Rorty was accused of glossing over the racism, sexism,
consumerism, and violence that was so much a part of America”.
132
O ironismo é um elemento de extrema importância na retórica rortyana.
Ele é uma decorrência necessária do reconhecimento da contingência, algo
caro a qualquer pensador antifundacionista e anti-essencialista como Rorty.
Assim, a consciência da contingência – do indivíduo, da linguagem e da própria
sociedade liberal – é um dos fatores que se somam para fazer surgir um
homem diferenciado, dotado de uma capacidade especial – o ironismo –, a que
Rorty (1989, xv) qualificou nos seguintes termos:
168
Na edição lusitana: “Uso o termo ironista para designar o tipo de pessoa que encara
frontalmente a contingência das suas próprias crenças e dos seus próprios desejos mais
centrais – alguém suficientemente historicista e nominalista para ter abandonado a idéia de que
essas crenças e desejos centrais estão relacionados com algo situado para além do tempo e
do acaso” (RORTY, 1994, p. 17).
169
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 73.
133
Há na utopia concebida por Rorty a pressuposição da predominância de
um certo tipo de homem, o cidadão ironista. Mas uma sociedade composta por
indivíduos assim poderia se manter coesa? O que teria força para servir como
elemento de unificação em uma sociedade constituída por indivíduos cujo
intento permanente é o movimento, a redescrição? Ou, em outras palavras,
qual o cimento social na sociedade utopicamente liberal rortyana?
Rorty afirmava que, em uma sociedade idealmente consciente da
contingência, a defesa das instituições liberais burguesas teria dois efeitos
importantes: primeiramente, seria esse engajamento na proteção (e,
possivelmente, ampliação) das conquistas civilizacionais das sociedades
liberais e democráticas que teria o condão de unir, tornar coesa, a sociedade,
funcionando como uma espécie de cimento social; em segundo lugar, em uma
espécie de retroalimentação, somente tais instituições liberais democráticas
são capazes de garantir aos cidadãos a possibilidade de autocriação e a
oportunidade de realizar contínuas redescrições de suas vidas. Perceba-se que
este é, ao mesmo tempo, um importante ponto de encontro e de cisão no
pensamento utópico rortyano: de um lado, a autocriação privada dos indivíduos
ironistas; de outro, as instituições políticas liberal-democráticas, a convergência
entre aspectos privados e públicos da vida social.
Há duas questões que, para Rorty170, devem nortear as discussões
acerca dos aspectos públicos da vida social na sociedade utópica por ele
pensada: 1. Como equilibrar as necessidades de paz, riqueza e liberdade,
quando as condições exigem que um desses objetivos seja sacrificado em
favor dos outros?; 2. Funcionaria bem nivelar oportunidades de autocriação e
depois deixar às pessoas – e só a elas – a decisão de usar ou de recusar
essas oportunidades? A reflexão acerca desses pontos – desse cimento social
que surge do encontro/cisão de aspectos de dimensão pública e outros
pertinentes à vida privada dos indivíduos – poderia vir a suscitar algumas
objeções a que Rorty (1989, p. 85) se antecipou:
The sugestion that this is all the social glue liberal societies
need is subject to two main objections. The first is that as a
practical matter, this glue is just not thick enough - that the
(predominantly) metaphysical rhetoric of public life in the
170
Cf. Ibid., p. 85.
134
democracies is essential to the continuation of free institutions.
The second is that it is psychologically impossible to be a liberal
ironist - to be someone for whom "cruelty is the worst thing we
do," and to have no metaphysical beliefs about what all human
beings have in common.171
171
Na edição lusitana: “A sugestão de que isto é todo o cimento social de que as sociedades
liberais necessitam está sujeita a duas objeções naturais. A primeira é a de que, enquanto
questão prática, este cimento não é suficientemente espesso – que a retórica
(predominantemente) metafísica da vida pública nas democracias é essencial para a
continuação das instituições livres. A segunda é a de que é psicologicamente impossível ser
um ironista liberal – ser alguém para quem a “crueldade é a pior coisa que fazemos” e não ter
crenças metafísicas sobre aquilo que todos os seres humanos têm em comum” (RORTY, 1994,
p. 117).
172
Ideias metafísicas arraigadas, por exemplo, sobre a natureza da moralidade e da
racionalidade dos seres humanos.
173
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 85.
174
Em Os Irmãos Karamazov, a personagem Ivan vaticina que “se Deus não existe, tudo é
permitido”, afirmação muito recorrente para ilustrar a ideia de que a moral necessita de um
fundamento transcendente, não sendo possível uma moral sem fundamentações metafísicas.
Tal concepção, entretanto, está longe de ser uma unanimidade, encontrando em Rorty, e em
sua defesa de uma ética laica, uma forte oposição.
135
esperança social, o desejo de construir um mundo melhor para nossos netos,
supriu o desejo de ser recompensado com o Paraíso175.
Desse modo, para Rorty, o cimento social nas sociedades liberais não
precisa advir da crença partilhada em um Deus fora da história e do tempo,
assim como não deve precisar de qualquer outro atavio metafísico. Um cimento
social suficientemente espesso pode advir das esperanças compartilhadas de
um mundo melhor aqui, agora e no futuro:
175
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 86.
176
Na edição lusitana: “O que liga as sociedades são os vocabulários comuns e esperanças
comuns. Os vocabulários são, tipicamente, parasitas das esperanças – no sentido em que a
função dos vocabulários é contar histórias sobre resultados futuros que compensem sacrifícios
presentes” (RORTY, 1994, p. 118).
136
um mundo melhor, o senso comum seria suficiente para que seja
desnecessário a alguém responder a perguntas como “por que sou liberal?” ou
“por que se importar com o sofrimento de pessoas que nem conheço?”. Tais
perguntas soariam assaz estranhas – até inadmissíveis – ao jogo de linguagem
que todos estariam acostumados a jogar.
Nesse ponto, importa grifar a ressalva que Rorty fazia em relação à
viabilidade de uma cultura pública ironista177: a retórica pública deve ser
historicista e nominalista, mas não ironista. O ironismo é uma qualificação
apropriada para se referir a aspectos da vida privada. Assim, se os cidadãos –
intelectuais ou não – forem suficientemente ironistas em sua vida privada,
serão capazes de aceitar e de contribuir para que se efetive uma cultura
pública marcantemente historicista e nominalista, efetivando aquilo que Rorty
denominava sociedade liberal ideal.
A segunda objeção prevista e investigada por Rorty pode ser enunciada
assim: como seria possível que alguém viesse a ser um ironista – em sua vida
privada – e, ao mesmo tempo, um liberal – em sua vida pública? Seria
suficiente para resolver esse impasse, entretanto, dizer que as dimensões
privada e pública estão separadas na utopia rortyana para que se possa admitir
que isso seja psicologicamente possível para algum indivíduo na prática?
A resposta apresentada por Rorty178 é que não há coisa alguma que
necessariamente impeça a um ironista ser também um liberal. Mas não é o
bastante tratar as preocupações privadas e públicas como apartadas para que
essa tensão esteja resolvida. Suscita-se, pois, uma questão importante: como
se poderia defender uma ética universalista – ou uma solidariedade
cosmopolita – sem admitir que possa haver uma natureza humana comum a
todos, ou sem se valer de alguma espécie de gancho celeste?
Essa tensão está centrada no fato de que parece típico ao ironista – e só
a ele – a prática da redescrição, tanto de si mesmo como das outras pessoas.
E também no fato de que a redescrição carrega consigo um forte potencial de
infligir sofrimento, especialmente àqueles que se sentem seguros de seus
vocabulários e suas crenças. Muitas vezes, o processo de redescrever equivale
a considerar as antigas palavras, as antigas ideias ou as antigas crenças como
177
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 87.
178
Ibid, 88.
137
algo que perdeu, parcial ou completamente, o seu valor e precisa ser deixado
de lado, substituído. Isso é potencialmente muito doloroso. Para um liberal –
cujo objetivo é fugir sempre à prática de provocar sofrimento e humilhação às
outras pessoas – tal prática pode parecer, portanto, pouco recomendável.
Rorty esclareceu179 que há uma falácia nesse argumento. A atividade de
redescrever não é exclusiva do ironista. Ela também é exercida pelo metafísico,
mesmo que com diferentes pressupostos e por meio de método diverso.
Enquanto o metafísico oferece algo que aparenta – ou promete – ter um valor
incomensurável, para que as pessoas redescrevam suas vidas (como, por
exemplo, a salvação para os cristãos), abandonando as antigas crenças e
práticas, e até renegando-as, o ironista não pode oferecer esse tipo de
redenção. Tudo o que ele pode oferecer é a saída de uma posição atual para
uma posição “melhor”, mas esse “melhor” não é a Verdade, o Absoluto, o
Inefável, ou coisa alguma que o valha. Trata-se tão somente de um “melhor”
em sentido deweyano, pragmático: por exemplo, um certo know-how, um
incremento na habilidade de reconhecer as situações de sofrimento e
humilhação de outros seres humanos e de se sentir implicado em cada
situação desse tipo. É precisamente por isso que Rorty não via na Filosofia180
uma aliada especial e muito valiosa, preferindo o potencial de sensibilização e
transformação que a literatura, a etnografia e as artes encampam, uma vez
que: “solidarity has to be constructed out of little pieces, rather than found
already waiting, in the form of an ur-language which all of us recognize when
we hear it” (RORTY, 1989, p. 94)181. Não que para ele os filósofos sejam
desimportantes, mas seu fazer intelectual é mais apropriado para a busca da
perfeição privada que para a persecução do objetivo público da solidariedade.
A retórica rortyana aponta, pois, para uma integração de anseios
utópicos bem definidos: em primeiro lugar, a superação dos problemas da
filosofia tradicional, junto com as necessidades de fundamentação baseada no
tripé racionalidade–objetividade–argumentação; em segundo lugar, a gradual e
179
Ibid., 90 - 91.
180
Quando grafada com inicial maiúscula, Filosofia, em Rorty, refere-se à tradição filosófica
platônico-cartesiano-kantiana e à sua busca infinda pelas verdades últimas e pelas respostas
universalizantes.
181
Na edição lusitana: “A solidariedade tem de ser construída a partir de pequenas peças, e
não encontrada já à nossa espera, na forma de uma ur-linguagem que todos reconheçamos ao
ouvi-la” (RORTY, 1994, p. 128).
138
incessante criação de uma cultura liberal pós-filosófica, centrada na liberdade e
na solidariedade; e, em terceiro lugar, a gradual e incessante poetização da
sociedade, assumindo-se, cada vez mais, os poetas fortes, por sua habilidade
de criar novas metáforas, como os seus novos heróis culturais.
182
Scruton se destacou no cenário cultural inglês, especialmente, escrevendo livros e gravando
documentários sobre História e Teoria da Arte, sobre Religiosidade e sobre Teoria Política,
especialmente, o Conservadorismo.
183
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança.
Trad. Fábio Faria. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 7.
184
Em oposição a esse pensamento de esquerda, Scruton reconhece-se um autor “de direita”,
um pensador que, sendo um otimista escrupuloso, assume a postura de, ao se deparar com
um problema, optar pela consulta do estoque pré-existente de conhecimento e de autoridade
para, só depois, posicionar-se em relação à questão. Em não havendo uma tradição
respeitável acerca da questão, apenas aí, utiliza-se da iniciativa e da inspiração, mas nunca
sem antes se acautelar, mensurando os riscos e calculando os custos de um possível
insucesso, objetivando se assegurar de que seria mesmo capaz de arcar com eles. Para
Scruton, é, pois, “de direita” – como ele próprio – todo aquele que preza por este espírito de
139
ele, é, portanto, necessário e urgente confrontá-lo, denunciá-lo e até mesmo
desmascará-lo.
Esse sentimento de otimismo e esperança estaria inafastavelmente
relacionado à marcante presença de uma figura recorrente na produção
literária e filosófica contemporânea, o intelectual inescrupuloso, ou o otimista
ardiloso:
acautelamento e “nutre suspeitas pelo entusiasmo e pelas novidades, e que é respeitoso para
com a hierarquia, a tradição e os costumes estabelecidos” (SCRUTON, 2015, p. 23).
185
Scruton cita Aldous Huxley como um exemplo de literatura ficcional realizada com um
impressionante grau de presciência, especialmente nos pontos em que trata da evolução na
contracepção e na engenharia genética. Em sua leitura, o que o autor de Admirável mundo
novo intencionou, desde o princípio, foi “proteger o amor e a confiança contra a liberdade
sexual e a engenharia genética” (SCRUTON, 2015, p. 18).
140
satisfeitos – justamente porque seriam fabricados os desejos e suas
satisfações simultaneamente –, como na circunstância descrita por Huxley em
Admirável mundo novo, é conceber um mundo não humano, em que não há
espaço para o homem, em que se põem de lado os valores mais preciosos à
existência humana186:
186
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança, p.
20.
141
Podem muito mais facilmente ajustar a si próprios do que
modificar as limitações sob as quais vivem, e que deveriam
trabalhar nisso continuamente, não apenas pelo bem de sua
própria felicidade e daqueles que amam e que dependem
deles, mas também pelo bem da atitude do “nós” que respeita
as constantes das quais nossos valores dependem, e que faz o
máximo possível para preservá-las. (SCRUTON, 2015, p. 35)
187
Cf. Ibid., p. 41.
142
protege de toda e qualquer forma de oposição, criando uma blindagem a sua
volta, pela qual cada tentativa de crítica a ela direcionada é imediatamente
convertida em um elemento de ratificação. Scruton afirma que a mente utópica
e os devaneios dela emergentes são dotados de uma espécie de imunidade à
refutação188. Tal blindagem ao contraditório é tão marcante e tão poderosa
que, na utopia, “a impossibilidade e a irrefutabilidade andam lado a lado sem
nenhum constrangimento” (SCRUTON, 2015, p. 61). Assim, junto à condição
de que jamais será realizado plenamente, o projeto utópico busca – e, em
geral, consegue – difundir a ideia de que não o querer e não o perseguir é que
seriam posturas absurdamente inaceitáveis. Assim, o que se pretende muitas
vezes transparecer é que o que é ideal não pode ser desmentido pelo real, mas
o que é real pode ser avaliado, diminuído ou até negado pelo ideal:
143
relação à produção intelectual de esquerda, Scruton (2018, p. 14) afirmava
que:
Tal postura de crítica – sem a culpa que Scruton parece lhe atribuir – é,
de fato, recorrente na literatura de esquerda. Rorty, por exemplo, muito embora
não se comprometa com uma transformação completa e minuciosa de todas as
instituições sociais, tem o prefixo “anti”191 comumente associado a suas
tendências ideológicas, por isso considerado, por muitos críticos, um filósofo
iconoclasta. Ele mesmo, entretanto, via-se muito mais como alguém disposto a
contribuir com a realização de mudanças de foco, redirecionamentos, ou
redescrições.
Para Scruton, tal propositura de desconstrução das instituições nem
sempre estaria atrelada a uma atitude revolucionária e radical. Muitas vezes,
ela estaria associada, sutilmente, mas insistentemente, ao espírito reformista –
ou progressista – de alguns intelectuais. E, para ele, esse é, na verdade, o
principal adversário do conservadorismo:
191
Deve-se lembrar, porém, que o prefixo “anti”, quando associado apropriadamente à
perspectiva rortyana, nem sempre indica um discordar ou contrapor – associados ao uso da
argumentação filosófica para demonstrar a verdade em detrimento da tesa antes apresentada
–, mas, muitas vezes, uma superação, um “pós”, ou uma mudança de assunto. Como explica
Laclau (1996, p. 84, tradução nossa), “a argumentação filosófica não acontece por meio da
desconstrução interna de uma tese apresentada em um determinado vocabulário, mas sim pela
apresentação de um vocabulário concorrente”.
144
O risco do reformismo está justamente, na perspectiva de Scruton, no
modo engenhoso como ele se aninha nas instituições para de dentro realizar o
enfrentamento dessas mesmas instituições. Após os insucessos dos regimes
comunistas, e o desgaste da popularidade de várias formas de pensamento
radical, os autores de esquerda passaram a descartar o paradigma
revolucionário, buscando a institucionalização – por meio de legislação, de
comitês ou comissões de representatividade política – de seus interesses. De
certa forma, é como combater os pilares da estrutura social a partir de seu
interior. E, para esta tarefa, um dos instrumentos mais recorrente e eficientes é
a gradual e contínua apropriação e manipulação da linguagem política corrente.
Desse modo, de todas as conquistas empreendidas pela esquerda,
lograr tornar a sua voz, a sua maneira de falar – a descrição que escolhe fazer
do mundo político – a forma prevalecente, especialmente no ambiente
acadêmico, foi, sem dúvida, a maior e mais importante do ponto de vista
prático. Modificando-se o vocabulário político corrente, dá-se a falsa sensação
de que se tem modificado também a própria realidade, em uma espécie de
“triunfo das palavras sobre as coisas”192.
Rorty foi, de fato, um grande entusiasta dessa ideia. Vendo-a pela
perspectiva rortyana, a modificação do modo de se referir a alguma coisa teria
mesmo o condão de provocar transformações no modo como olhamos para ela
e, gradualmente, no modo como nos portamos perante ela. Não se trata,
entretanto, de mero idealismo lingüístico, pois as mudanças de vocabulário são
importantes apenas como ferramentas para as transformações nos modos de
viver.
Judt, em consonância com Rorty no que iz respeito a essa questão,
afirma que “se não houver mudança no jeito de falar, não conseguiremos
mudar o modo de pensar” (JUDT, 2011, p. 159), e instrumentaliza seu
argumento com a seguinte exemplificação:
145
los. Eles vieram da própria linguagem. Jornalistas e
panfletários, juntos com alguns administradores e padres
rebeldes, criaram a partir da antiga linguagem da justiça e dos
direitos populares uma nova retórica de ação pública. (...)
Quando a Revolução explodiu, a nova linguagem da política
encontrara seu lugar: se não fosse assim os próprios
revolucionários não teriam como descrever o que estavam
fazendo. No início foi o verbo. (JUDT, 2011, p. 159)
146
Os críticos da mentalidade utópica193 – e Scruton bem os representa –
consideram o desejo por reformas profundas ou a persecução de soluções
definitivas por parte de intelectuais utopistas, sempre acompanhadas por uma
radical adaptação da linguagem política corrente, o ponto preferencial a ser
contestado, um calcanhar de Aquiles:
193
Scruton elenca Burke, Chateaubriand e Tocqueville entre os autores que realizaram críticas
pertinentes dessa forma de pensamento.
147
Apesar da vasta literatura acerca das utopias compreender um complexo
de utopistas projetistas importantes195, Scruton chama a atenção para alguns
utopistas que, de fato, tornando-se autores de muito impacto no Século XX,
influenciaram muitas das decisões políticas e dos estremecimentos sociais
desse século. Ele cita, por exemplo, o fato de que Karl Marx faz, em A
ideologia alemã, tão somente uma precária descrição196 de como seria a vida
em uma sociedade após a Revolução Proletária e o advento do comunismo197.
E que Jean-Paul Sartre, apontado como intelectual engajado e comprometido
com um utopismo revolucionário, cujo ideal de sociedade compreendia uma
fina integração entre intelectuais e trabalhadores, também jamais esmiuçou o
funcionamento das engrenagens de uma tal sociedade, defendendo-a apenas
em textos muito evasivos e apresentando tão somente vislumbres daquelas
condições que defendia para a sociedade.
Para Scruton, outra marca registrada da utopia, que se evidencia,
especialmente, quando os utopistas chegam de algum modo a assumir
posições de poder político, é o ressentimento e o firme propósito de vingança
para com aqueles que são considerados entraves à realização plena de seus
ideais. Assim, cada situação tem o seu grupo preferencial de culpados que
deverá arcar com os custos de serem estorvos à consecução dos objetivos
preconizados por aquela utopia. Em geral, aqueles que se sentem confortáveis
com o mundo real tal como ele é – ou tal como pode vir a ser por meio das
ações efetivas dos homens – são perseguidos como inimigos da utopia e
entraves à realização de seus propósitos198.
Precisamente por isso, tais incursões dos utopistas pelo mundo da
práxis, da política real, costumam ser marcadas pela reestruturação das forças
de repressão das ideias e de um sistema jurídico eficiente em tornar legal toda
forma de perseguição aos discordantes, muitas vezes reprimidos violentamente
ou até convertidos em lixo humano, por meio da ideologia e da violência
195
Como vimos no Capítulo I deste mesmo texto.
196
Cf. SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda, p. 15.
É como se a inevitabilidade histórica dessa condição o livrasse da necessidade de descrevê-la
pormenorizadamente.
197
No projeto marxista, com a extinção da divisão de trabalho, as pessoas passariam a viver de
acordo com suas necessidades e desejos, o que ele descreve sucintamente, caçando pela
manhã, pescando à tarde, cuidando do gado à noite e fazendo trabalho intelectual – como a
crítica literária – após o jantar.
198
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança, p.
70.
148
legítima do Estado. Em síntese, uma vez no poder, a utopia tende a se
estruturar em um Estado totalitário199.
Essas desconfianças em torno da ideia de utopia, como vimos
anteriormente nesse mesmo texto, não são, de modo algum, uma novidade.
Entretanto, associar algumas dessas propriedades – supostamente inerentes
ao espírito utópico – ao pensamento de Rorty causa interesse. Scruton critica
os pensadores da nova esquerda como autores que estão mais preocupados
em revolucionar ou em desconstruir as ideias consagradas na reflexão política
da tradição filosófica, apresentando perspectivas subversivas, que em
apresentar argumentos válidos acerca de seu pensamento200. A Rorty, em
especial, ele o tinha na conta de um autor cujos escritos haviam contribuído
enormemente para a ascensão de uma cultura fake201. Em detrimento da alta
cultura, emerge uma situação onde nada é necessariamente verdadeiro ou
falso. A literatura rortyana, sob a óptica de Scruton, seria uma importante aliada
dessa transformação, uma vez que a postura do filósofo neopragmatista diante
da questão da Verdade o autorizava a lhe dar pouca relevância.
Segundo a noção de pragmatismo e a leitura de Rorty, tomadas por
Scruton, a Verdade para o filósofo neopragmatista é sempre e tão somente
aquilo que nós concordamos, sempre uma coisa negociável, contextual e
relativa, a despeito de qualquer racionalidade transcultural. E Scruton (2018, p.
207) continua, inquirindo quem seria esse “nós” rortyano:
199
Ibid., p. 73.
200
Cf. SCRUTON, no artigo Richard Rorty’s legacy, publicado na revista Open Democracy, de
12 de junho de 2007, bem como no artigo The great swindle, publicado em 2012 na Aeon
Magazine.
201
Especialmente na Arte e na reflexão filosófica, em virtude de seu desfavor para com as
noções de Verdade Universal e racionalidade transcultural, dentre outras.
149
que pensar, eles se protegem de quem quer que não pense o
mesmo.
202
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Roger Scruton e a denúncia tardia da modernidade ou Scruton
versus Rorty: crítica ao the great swindle. In: Redescrições, n. 2, 2013, p. 9.
203
Como exemplo, cita o caso em que Searle associou o fim da avaliação objetiva nas provas
universitárias e a deterioração do ensino superior americano à influência da atitude intelectual
de autores “pós-modernos”, entre eles, Rorty.
204
Como o próprio título do artigo o sugere, Richard Rorty’s legacy, Scruton se refere ao
suposto legado de Rorty. Ora, o legado de um autor nem sempre é aquilo que ele esperaria ou
gostaria, mas um complexo resultado de como as pessoas o leram e de como decidiram
colocar em prática o conhecimento advindo da interpretação que elas mesmas fizeram de seus
escritos. Exatamente por isso, muitas vezes as decorrências dessas experiências de leitura
fogem gritantemente às intenções que tinha o autor ao escrever.
150
estivesse já de imediato criando caminhos para a entrada da
cultura “fake”. (GHIRALDELLI Jr., 2013, p. 11)
Nem por sua postura ante o problema da verdade nem por qualquer
proposta de progressismo social que tenha enunciado, Rorty poderia ser, com
justiça, acusado de desonestidade intelectual ou tomado apenas como um
militante irresponsável. Somente uma leitura tendenciosa, porém, poderia
sugeri-lo. Para McClean, não causaria estranheza, por exemplo, que Scruton
entendesse o reformismo rortyano como um caso de otimismo inescrupuloso,
pela opção procedimental defendida por Rorty. Mais uma vez, é como se Rorty
se pautasse unicamente na esperança de obter os melhores resultados
possíveis de suas propostas de reformas, independentemente dos riscos e
prejuízos possivelmente resultantes. Ou como se Rorty, ingenuamente,
incorresse sempre na falácia da melhor hipótese:
151
inteligência seja aplicada a fim de obter o melhor resultado com
o menor custo social possível, em vista da gravidade do
resultado desejado.
206
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism. London: Pickering
and Chatto, 2014, p. 72.
207
No original: “While political and social conservatives warn of „unintended consequences‟
concerning the dangers of altering the status quo, they often seem to be less concerned with
the painful and often odious conditions that social reformers are at least trying to address”.
152
pensadores da política contemporânea, encontram-se inertes, priorizando uma
reflexão filosoficamente interessante, demonstrativa de erudição, mas pouco
pragmática, muito afastada da realidade vivida pelas pessoas e das
necessidades sociais de reformas. Rorty empreendeu uma denúncia
contundente desse estado de coisas e do papel da esquerda cultural208 na
construção de uma realidade melhor em seu último livro, Para realizar a
América: o pensamento de esquerda no século XX na América. A justiça social
deve ser defendida com a resolução de problemas sociais específicos – a
fome, o racismo, a distribuição de renda –, gradativa e continuamente, como o
preconizaram tanto Dewey como Rorty209.
Intelectuais que compõem uma esquerda cultural, nos moldes
denunciados por Rorty, poderiam caber na qualificação de otimistas
inescrupulosos, citada por Scruton210. São aqueles que não trazem para a vida
real a reflexão acerca do ideal de sociedade e, precisamente por isso,
alimentam uma espécie de utopia não pragmática, desiderativa e não estão
muito afeitos a especular acerca das possíveis consequências inesperadas e
inapropriadas das proposições que enunciam. Distanciando-se da práxis
política, os utopistas desiderativos escapam à falácia da melhor das hipóteses,
uma vez que não propõem nada efetivamente e, partindo do princípio de que
suas reflexões abstratas são tudo o que podem e precisam dar em contribuição
ao cenário político, não funcionam como um elemento de contraposição real à
crueldade ou à injustiça social:
208
A quem Rorty contrapôs o que denominou “esquerda reformista”, na qual afirma estar ele
mesmo inserido.
209
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism, p. 75.
210
Ibid., 78.
211
No original: “Desiderative utopians, in the context of this discussion, are those who think that
erudite complaint exhausts their responsibilities to their country – the country concerning which
153
Tal postura, evidentemente, é uma das principais responsáveis pela
perda de apreço da expressão utopia na reflexão relevante sobre a política
contemporânea. Passa a ideia de que são utópicos apenas aqueles autores
que descrevem fantasias às quais não se pretende ascender, de fato, jamais,
visto que são de impossível realização. Contribuem assim para que as pessoas
esqueçam que há outra forma de se ser utópico. Pode-se trilhar a via de um
utopismo pragmático, utilizando-se a sua utopia como elemento de integração
das ações contínuas e graduais que realizarão, ao final, grandes
transformações na vida social. Rorty tem precisamente esta concepção e esta
prática, quando assume a defesa de uma utopia e dá a ela exatamente esta
esperança e responsabilidade:
they have articulated aspirations to fi nish the work that is required to transform it into a pluralist
civilization in which the worst sorts of cruelty, including the cruelties of invidious types of social
distance, are eradicated. They tend not to be guilty of „the best case fallacy‟ because they are
not engaged enough with real politics or the workings of real institutions to bring about any
case”.
154
sucesso passado enquanto projeta o avanço em direção a
condições sociais cada vez melhores.212
212
No original: “Rorty worked with in the tensions that exist and will always exist between
Jamesian hope, risk and chance, on the one hand, and the need to embrace and defend the
values of a particular „we‟ that, on Scruton‟s account, must be defended, and which in fact
provides the realism for the venture. The utopian sketch that derives from this tension has a far
better chance of becoming a reality, for what it provides us with is a rooted, historicist vision, a
utopianism that looks to past success as it „muddles‟ forward toward ever-improving social
conditions”.
155
Hegel tivera razão ao dizer que a história terminara em 1806,
uma vez que não ocorrera nenhum progresso político essencial
além dos princípios da Revolução Francesa, que ele vira
consolidados pela vitória de Napoleão na batalha de Iena
naquele ano. A derrocada do comunismo em 1989 assinalou
apenas o desfecho de uma convergência mais ampla rumo à
democracia liberal à volta do globo. (FUKUYAMA, 2003, p. 11)
213
Cf. FUKUYAMA, Francis. The end of history? In: National Interest. n.16, 1989, p. 3.
156
Na retórica de Fukuyama, os eventos que marcaram o início da
derrocada da Guerra Fria, conjuntura histórica cuja culminância dar-se-ia com a
queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, atestaram,
simultaneamente, dois fatos de extrema relevância histórica e política: primeiro,
a incontestável vitória do sistema capitalista sobre o socialista; em segundo
lugar, o advento do estágio mais aprimorado da evolução ideológica da
humanidade. Esses acontecimentos foram tão somente o desenrolar mais
previsível possível da contraposição entre um sistema em que não existiam
condições razoáveis de desenvolvimento e reconhecimento individual das
pessoas – enquanto o Estado era forte e centralizador –, e outro em que tais
condições eram muito valorizadas, consideradas como algo que precisa ser
garantido – enquanto que o Estado precisa ser fraco, mantendo nítidas as
limitações de seu poder perante os direitos e garantias individuais.
Fukuyama considera que um dos aspectos muito relevantes ao
reconhecimento individual dos cidadãos é o direito à participação nas decisões
políticas do Estado. Alguns regimes adotaram postura diametralmente oposta a
essa, como o fizeram o Fascismo e o Comunismo em muitos países.
Precisamente por esta junção de predicativos, o encontro dos vocábulos
“liberal” e “democrático”, compondo a expressão “liberal-democrático”, é tão
recorrente no vocabulário político. Os Estados liberais assumem como um valor
importante pretender intervir o mínimo possível na vida privada de seus
cidadãos, ao tempo em que permitem – e têm por princípio214 – que os
cidadãos participem, direta ou indiretamente, das decisões políticas relevantes
às suas vidas, conforme afirma Fukuyama (1992, p. 70) no seguinte trecho:
157
cada vez maior, de questões ideológicas como a dicotomia capitalismo-
comunismo, que sacudiram o século passado, fazem nascer um tempo de
relações internacionais pautadas, principalmente, pelas regras e dinâmicas do
mercado, em consequência, um estado duradouro de não-guerra. O sentido
original da expressão imperialismo é, de certo modo, substituído, na medida
em que as dominações passam a se pautar em termos não meramente
territoriais, mas de mercado. Fukuyama opta por não justificar ou respaldar, por
exemplo, o uso da força para fins de imposição da democracia ou do
liberalismo pelo mundo. Do mesmo modo, não advoga pela necessidade de
uma exaustiva justificação filosófica da ideia de que a liberal-democracia seja o
sistema mais benéfico possível ao ser humano. Nisso, aproxima-se de Rorty,
considerando bastante um simples exercício de comparação entre as formas
de viver neste contexto ideológico-econômico-políitco e nos demais.
O triunfo da ideia ocidental, concepção que nasceu como apenas uma
hipótese levantada por Fukuyama em um tempo de indefinições geopolíticas
marcante, o final da Guerra Fria215, não parece hoje uma afirmação descabida.
Pensar em alternativas de configuração política diferenciadas da democracia
liberal é possível, mas é cada vez mais difícil imaginar uma contradição
insanável no capitalismo que venha a fazer nascer uma opção completamente
nova, e melhor, capaz de satisfazer, de modo muito mais eficiente, as
necessidades, anseios e valores das pessoas e das comunidades.
Persson e Savulescu questionam um aspecto relevante dessa
discussão, que, aliás, é fulcral ao pensamento de Fukuyama. Muitos filósofos
se dedicaram ao mesmo desafio do pensador nipo-estadunidense, a saber,
uma análise qualitativa das possíveis configurações ideológico-políticas a fim
de decidir qual é a melhor dentre todas elas. Um ponto, entretanto, parece ter
sido negligenciado por muitos deles, inclusive Fukuyama: a melhor das formas
de governo, quando alcançada e efetivada em seus melhores termos, durará
para sempre? É o que eles questionam com muita agudeza de espírito:
215
Deve-se lembrar que Fukuyama lançou esta hipótese ainda em 1989 em um ensaio teórico
publicado na revista National Interest, com o título interrogativo The End of History? A essa
época, alguns dos eventos históricos que hoje são basilares na descrição das mais importantes
transformações sócio-políticas do séc. XX estavam ainda em andamento ou apenas se
anunciavam.
158
É suficiente considerar que a forma moralmente melhor de
governo poderia muito plausivelmente conceder aos seus
cidadãos o direito de determinar a forma de governo à qual
eles são sujeitos. Todavia, então, se eles não se dão conta de
que o melhor governo é, de fato, o melhor governo – e eles
podem falhar em perceber isso, pois a sociedade que possui o
melhor governo não possui necessariamente os melhores
cidadãos –, eles poderiam substituí-lo por outra forma de
governo. (PERSSON e SAVULESCU, 2017, p. 146)
216
É importante lembrar que o verbo questionar tem uma amplitude aberta. De certa forma, os
Estados decidem – ou devem decidir – os limites da amplitude de significados que lhe poderá
ser atribuída. Por exemplo, pode-se questionar a democracia por meio de atos, palavras ou
omissões eminentemente antidemocráticas?
159
a realização em nível superior da racionalidade humana. É o que assevera
Mouffe (2016, p. 14), referindo-se e alinhando-se a essa perspectiva rortyana:
160
ela pode expor, confrontando-se-lhes com os resultados de outras experiências
político-econômicas.
Em conseguinte, Rorty considerava que a ideia de fim de história,
presente na retórica de Fukuyama, não seria um elemento de descrição
positiva para a sociedade utopicamente liberal, podendo agir muito mais como
um estímulo ao espírito estático, como um elemento de inércia, que como um
combustível ao espírito transformador, tão caro e essencial ao surgimento de
novas utopias. Seu efeito seria, pois, desanimador, como Rorty (2005c, p. 284)
afirmou no seguinte trecho em que se refere diretamente ao pensamento de
Fukuyama:
161
importante a compor a tradição do pragmatismo americano. Seus trajetos
profissionais se cruzaram nos corredores de universidades217. Por essa razão,
Bernstein acompanhou de perto o percurso intelectual de Rorty – desde antes
de sua aproximação com a filosofia analítica 218 –, o que culminaria, sob a
óptica do amigo e crítico, com a defesa de sua utopia liberal-democrática e a
construção de um pensamento eminentemente humanista.
Por uma questão de sonoridade no ambiente vocabular rortyano, a
expressão humanismo – utilizada por Bernstein em referência ao colega – pode
parecer deslocada, uma vez que Rorty não costumava utilizar expressões tão
generalizantes como esta, pelo intento de se manter firme no objetivo de
escapar a quaisquer formas de essencialismo. A despeito disso, Bernstein
defende que Rorty tenha desenvolvido um pensamento filosófico
profundamente humanista219.
Qualificar de humanista a expressão intelectual de Rorty, para Bernstein,
justifica-se plenamente pela presença ostensiva de alguns aspectos
eminentemente humanistas em sua obra, especialmente, a partir de
Contingência, ironia e solidariedade, a saber: uma ênfase na contingência
histórica radical, uma rejeição completa de todas as formas de
representacionismo epistêmico e semântico, a primazia da imaginação sobre a
argumentação racionalizante, a preferência pela literatura em detrimento da
linguagem técnico-filosófica, a ênfase na necessidade de ampliação da
simpatia e da empatia, um fortíssimo senso de ironia e de solidariedade, e a
total condenação da crueldade e da humilhação entre as pessoas220.
A constatação de um profundo humanismo na retórica rortyana,
entretanto, não inutiliza a análise de alguns questionamentos feitos
217
Cf. BERNSTEIN, Richard. Richard Rorty‟s deep humanism. In: New Literary History. n. 1,
v. 39, 2008, p. 13.
218
Bernstein chama a atenção para o fato de que alguns comentadores costumam afirmar que
Rorty teria iniciado a sua produção intelectual como um promissor filósofo analítico, associando
A filosofia e o espelho da natureza a uma espécie de estréia. Para ele, essa afirmação não é
precisamente correta, uma vez que, tendo-o conhecido ainda muito jovem, pode acompanhar
suas incursões ainda como um entusiasta da Metafísica – o que, depois, o próprio Rorty
chamaria “platonismo” – e, em muitos escritos, da Metafilosofia. Apenas posteriormente, Rorty
teria se aproximado da filosofia analítica, do materialismo eliminativo, e, somente após, da
tradição do pragmatismo americano.
219
Cf. BERNSTEIN, Richard. Richard Rorty‟s deep humanism. In: New Literary History. n. 1,
v. 39, 2008, p. 13 e seguintes.
220
Cf. Ibid., p. 24-25.
162
anteriormente221 por Bernstein quando, ao analisar uma publicação importante
de Rorty a respeito do pensamento político de John Rawls, A prioridade da
democracia para a filosofia, enumerou uma série de aspectos em que
considerava a perspectiva do colega obscura, imprecisa e, em conseguinte,
arriscada, perigosa.
Para Bernstein, uma das dificuldades evidentes em Rorty à época
estava relacionada ao fato de que, embora ele se pretendesse um pragmatista
deweyano, encontrava-se, desconcertantemente, mais distante de Dewey do
que imaginava, em especial no que diz respeito à política e à vida pública,
porque o tipo de defesa do liberalismo que empreendia, na verdade, era
justamente o tipo de defesa que Dewey queria e recomendava evitar222.
Em seu intento de defender o liberalismo, Rorty faria, por exemplo, uma
leitura reducionista de Rawls, atendo-se tão somente à ideia de que a
democracia liberal não exige uma doutrina abrangente para efeito de
fundamentação filosófica, Rorty passa muito ao largo de elementos
fundamentais da Teoria da Justiça como Equidade, e, em geral, não esclarece
precisamente o sentido da expressão liberalismo em seus textos.
Extremamente polissêmico, essa expressão tende a assumir diferentes
nuances para diferentes contextos. Considerar que a expressão liberalismo não
requer uma precisão de significado, ou tratá-la como se todos soubessem
exatamente do que se está falando, revelaria, para Bernstein, um resquício de
essencialismo por parte de Rorty, justamente aquilo que ele mais desejava
rejeitar.
De acordo com Bernstein223, a principal técnica utilizada por Rorty ante
as questões filosófico-metafíscas que se lhe impõem é assumir a atitude não
de respondê-las ou de apresentar elementos que as neutralizem, mas de
demonstrar a sua desnecessidade ou irrelevância, afirmando estar mais
interessado em questões de “prática política” que em questões de filosofia.
Essa diferenciação, entretanto, não esclarece bem os termos da discussão.
Falar em “práticas políticas”, genericamente, causa mais problemas que
esclarece. Em uma sociedade democrática e liberal, por definição, haverá
221
Antes da publicação de Contingência, ironia e solidariedade.
222
Cf. BERNSTEIN, Richard. One Step Forward, Two Steps Backward: Richard Rorty on
Liberal Democracy and Philosophy. In: Political Theory. n. 4, v. 15, 1987, p. 541.
223
Ibid, 549.
163
conflitos entre os valores democráticos e as escolhas na vida prática política.
Quem definirá os parâmetros de solução para os problemas de conflito
surgidos no âmbito da sociedade liberal democrática? Por exemplo, existe uma
forte ideia liberal que enfatiza a liberdade negativa, do mesmo modo, uma
tradição no republicanismo cívico que destaca a liberdade participativa positiva.
Como a sociedade irá equacionar os diálogos entre essas duas tradições que
representam igualmente a prática política liberal e democrática moderna,
evidenciando ambas o valor da liberdade?
Partir do pressuposto de que uma espécie de “equilíbrio reflexivo” será
sempre suficiente para resolver todas as controvérsias surgidas na sociedade
liberal ideal é, em última análise, negar o aspecto de contingência da própria
sociedade liberal democrática e, contrariando frontalmente a tendência do
próprio pensamento, partir de uma visão essencialista do liberalismo. Um
consenso advindo de um equilíbrio reflexivo como este exigiria a pressuposição
de uma ideia de nós sobremaneira afinado e pacífico. Mas se Rorty afirmava a
consciência de que não faz sentido exigir às pessoas, numa sociedade
democrática, sequer uma noção uniforme de boa vida – o que lhes dá uma
grande liberdade em termos de auto-criação privada –, muito menos se poderia
querer, ou esperar, algum tipo de consenso estável em relação à vida pública,
ao liberalismo e à democracia, por exemplo.
De certo modo, essa noção de nós, em Rorty, não é explicitada de forma
clara e objetiva, transparecendo, por vezes, a impressão de que o autor se
refere tão somente àqueles que com ele concordam. Além do mais, a retórica
rortyana parece ignorar um fato desconcertante e muito relevante acerca do
liberalismo: observa-se facilmente um enorme abismo entre aquilo que se
atribui de qualidades às sociedades liberal-democráticas – especialmente, a
valorização incondicional dos ideias de liberdade e igualdade – e o estado real
das coisas nas sociedades ditas liberais:
164
acidental que os ideais liberais de liberdade universal e
igualdade sejam constantemente traídos nas sociedades
capitalistas burguesas. Existem forças e tendências em ação
(por exemplo, conflito de classes, divisão social, patriarcado,
racismo) que são compatíveis com as práticas políticas liberais,
mas, no entanto, promovem a desigualdade real e limitam a
liberdade política efetiva. (BERNSTEIN, 1987, p. 553 –
tradução nossa)224
224
No original: “Since the nineteenth century when the varieties of liberalism have come under
heavy attack, there have been those (Marxists, socialists, anarchists, radical reformers, and
even Weberans) who have argued that when we examine liberalism as it is embodied in
concrete modern societies (especially in a capitalist economic order) we discover that it is not a
merely accidental contingent fact that liberal ideals of universal freedom and equality are
constantly betrayed in bourgeois capitalist societies. There are forces and tendencies at work
(e.g., class conflict, social division, patriarchy, racism) that are compatible with liberal political
practices but nevertheless foster real inequality and limit effective political freedom”.
225
Cf. Ibid., p. 559.
226
Cf. RORTY, Richard. Thugs and theorists: a replay to Bernstein. In: Political theory, Vol.
15. n. 4, 1987, 564-580.
165
utilidade da teoria. Rorty esclareceu que, contrapondo-se à posição de alguns
pensadores radicais de esquerda227, não atribui à reflexão filosófica o papel
vicinal de traçar os caminhos das ações políticas, mas que há uma relevância
muito respeitável da filosofia – que não é, entretanto, algo exclusivo dela –, a
tarefa de imaginar uma utopia liberal, o papel de pensar a utopia, mantendo
viva a chama do reformismo e melhorismo.
Evidentemente, discordar que a filosofia tenha a obrigação de ser
relevante para as tomadas de decisões práticas da vida política não é o mesmo
que afirmar que ela não tem relevância alguma, que ela não serve para nada.
Assim como na literatura, há livros que nos ajudam a fazer escolhas de caráter
público, mas há livros que não se prestam a isso. Boa parte dos autores
associados à filosofia da subjetividade, por exemplo, Nietzsche, Derrida e
Foucault, não estão preocupados em se dedicar a uma espécie de análise
pormenorizada da situação política dos contextos históricos em que viveram,
mas nem por isso devem ser vistos como irresponsáveis ou desimportantes.
Sua literatura está mais voltada, pois, para o desenvolvimento espiritual
privado, em termos rortyanos, a auto-criação privada.
Em relação ao fato, apontado por Bernstein, de que Rorty passa ao largo
de algumas questões da vida política como se elas lá não estivessem, sem
lhes dá a devida atenção e importância, Rorty considerava que a chave para
entender a sua postura em relação a essas questões é o fato de que os social-
democratas preferem depositar sua confiança naquilo que Rawls denominou
consenso sobreposto. Por isso:
227
Para Rorty, podia-se dizer que a esquerda no Primeiro Mundo se tornara súper-teórica ou
super-filosófica, empenhando-se em empreender críticas infindáveis à estrutura e à suposta
ideologia das democracias sobreviventes.
166
tenhamos aproximado muito mais dessa utopia. (RORTY,
1987, p. 573 – tradução nossa)228
228
No original: “We all are working for a utopia in which equal access to a free press, a free
judiciary, and free universities will permit questions about, for example, negative liberty-versus-
civic republicanism or privatism-versus-commu- nity or ethnocentrism-versus-universality (the
issues that Bernstein rightly says I gloss over with my use of “we”) to get peacefully and
gradually worked out through new, ever-richer, syntheses of theory and practice. Differences in
philosophical taste between us social democrats can easily be deferred until we have come a
good deal closer to that utopia”.
229
Na edição lusitana: “esse tipo de filosofia não trabalha peça por peça, analisando conceitos
atrás de conceitos, ou testando teses atrás de teses. Em vez disso, trabalha de forma holística
e pragmática. Diz coisas como „tente pensar nisto desta maneira‟ ou, mais especificamente,
„tente ignorar as questões tradicionais, que se verifica serem fúteis, substituindo-as pelas
seguintes questões novas e possivelmente interessantes‟”. (RORTY, 1994, p. 30).
230
Cf. BERNSTEIN, Richard. Rorty‟s liberal utopia. In: Social Research. n. 1, v. 57, 1990, p.
55.
167
“vocabulário”. Para Bernstein231, Rorty utiliza esse termo de modo
propositadamente vago, fazendo um uso muito particular da noção de jogos de
linguagem de Wittgenstein e dando a ele uma circunscrição que envolve
significados de descrever, avaliar, julgar e agir.
A essas objeções, em especial, Rorty respondeu de modo incisivo,
afirmando que todo pensamento filosófico independe do consentimento do
autor para que seja utilizado, inclusive, para os fins que ele veementemente
condena. Mas que devemos ter o cuidado de tratar bandidos como bandidos e
teóricos como teóricos, em vez de tomar demasiado a sério a preocupação
estatizante sobre quais bandidos podem fazer uso nefasto de quais textos,
desvirtuando e criminalizando quais teóricos.
Mais recentemente, entretanto, analisando as contribuições de Rorty
para a descrição da sociedade americana do final do século passado e
algumas afirmações impressionantemente prescientes que fizera –
especialmente em sua última obra, Para realizar a América –, Bernstein o toma
em conta de um autor extremamente relevante, combativo e sagaz, capaz de
enxergar, por exemplo, os riscos que rondam a democracia liberal.
Sobre a utopia rortyana hoje, Bernstein questiona se, na atual conjuntura
político-social nos Estados Unidos, ainda faz sentido se alimentar os anseios
rortyanos ou se fazê-lo seria ceder a um espírito de nostalgia de uma época e
de valores que não voltam mais:
231
Ibid, p. 36.
232
No original: “One may have serious doubts whether the type of reformist politics that Rorty
advocates still makes much sense today. (...) But given the paralysis of politics in the United
States today, the sophisticated digital techniques for manipulating “public opinion,” the power of
money in shaping politics, the disarray within the Democratic Party, the persistent failure for left
intellectuals to establish politically effective alliances with blue collar workers, Rorty opens
himself to the criticism that he slips into a nostalgia of a past era that is no longer relevant”.
168
Tal questionamento parece, entretanto, menos uma dúvida ou uma
suspeita real e mais uma maneira de chegar à conclusão acerca da atitude
intelectual de Rorty: não há qualquer ingenuidade em permanecer firme e fiel à
utopia de um mundo melhor, menos cruel e menos sádico. A despeito das
inumeráveis razões para um sério pessimismo em relação ao futuro da
democracia, que Rorty nunca escondeu conhecer, ele, pragmaticamente, opta
por não lavar as mãos, mas seguir impactando os leitores para que se
comprometam em lutar por aquilo que ainda vale a pena: a ideia de que a vida
em sociedade pode ser mais solidária.
233
Cf. MOUFFE, Chantal. Desconstrução, pragmatismo e a política da democracia. In:
CRITCHLEY, Simon... (et all). Org. Chantal Mouffe. Desconstrução e Pragmatismo. Trad.
Victor Dias Maia Soares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 12.
169
Rorty, em seu reformismo234, partia da ideia de que a defesa do ideal
liberal democrático requereria a ampliação da lealdade compartilhada entre as
pessoas e a criação de um ethos democrático. Para Mouffe (2016, p. 16):
234
Rorty sempre saiu em defesa da ideia de que as transformações sociais desejadas para a
construção de um país melhor – ou de um mundo melhor – devem conquistas graduais e
cumulativas. Assim, qualificá-lo como um reformista seria correto. Entretanto, não se pode, de
modo algum, associar sua posição a uma atitude política descansada. As pequenas reformas
sociais, para Rorty, podem ter um gigantesco poder de transformação: “algum dia, talvez,
reformas graduais e cumulativas farão surgir mudanças revolucionárias” (RORTY, 1999c, p.
141).
170
faz dispensar, inclusive, algumas questões que não são, ao cabo, de modo
algum dispensáveis.
171
não estão distantes no que defendem como a melhor opção político-econômica
para os povos, mas estão distantes na fundamentação de tal escolha, nos
mecanismos necessários e eficientes para a consecução de seus objetivos.
Mouffe, em consonância com Laclau, evidencia uma questão importante,
que integra Rorty e Habermas à mesma crítica. Ambos estariam muito
comprometidos com a construção de uma sociedade pautada na comunicação
sem distorções e na lealdade entre as pessoas nos processos sociais. Muito
embora discordassem, como já dito, quanto aos mecanismos de efetivação
desse progresso. Para Mouffe (2016, p. 19), entretanto, “nenhum dos dois é
capaz de compreender o papel crucial do conflito e a função integrativa central
desempenhados em uma democracia pluralista”. Ambos os pensadores,
comprometidos genuinamente com a defesa da democracia liberal, adotam,
cada um a seu modo, um modelo “consensual” – pelo menos em aspiração –
de sociedade democrática.
Castro explica com maestria que, em Rorty, todavia, não se concebe
uma sociedade utópica plenamente consensual. Mas que é correto se pensar
em um sistema de composições – em que ninguém sairia totalmente
insatisfeito – entre os cidadãos na esfera pública. Em relação a suas vidas
privadas, Rorty é afeito à ideia romântica da inexpugnabilidade e autenticidade
do indivíduo, mas no que diz respeito às questões importantes da esfera
pública, conforme a lide de Creonte e Antígona, não apenas Rorty, mas a
tradição do pragmatismo:
172
Ainda assim, considerando uma espécie de consenso da esfera pública,
tanto Rorty quanto Habermas parecem, sob a perspectiva de muitos críticos,
Mouffe e Laclau entre eles, deixar de lado ou negar um dos aspectos mais
próprios à democracia: imaginar ou desejar uma sociedade consensual –
idealmente consensual – é virar as costas para o fato de que o conflito é parte
fundamental do espírito democrático. Desejar a sua superação, torná-lo
ilegítimo, é também esperar algo além da democracia. A noção de lealdade
ampliada de Rorty, por exemplo, se levada às suas últimas consequências,
entre em rota de colisão com o conceito de pluralismo, tão caro ao espírito
democrático. Na democracia o conflito, resultante de seu pluralismo agônico, é,
evidentemente, tão importante quanto o consenso:
235
No original: “the radical democratic „Utopia‟ that I would like to counterpose to Rorty's liberal
one does not preclude antagonisms and social division but, on the contrary, considers them as
constitutive of the social”.
173
verdadeira confrontação democrática entre os direitos e sem
um desafio às relações de poder existentes.
174
herança universalista e essencialista do Iluminismo236 – bem como suas
expressões, como o conceito de “natureza humana” – são, portanto,
completamente desnecessários à defesa de uma democracia radical237. E
nisso, Mouffe caminha ao lado de Rorty e compartilha muitas de suas
pretensões.
Produzir uma reflexão filosófica apurada sobre a natureza do político,
entretanto, faz muito sentido e é, mesmo, necessário. É esse trabalho que
pode nos fazer compreender o caráter agonístico irredutível do político e,
especialmente, da política democrática. Toda utopia que descreva sociedades
em que a perfeição se efetivaria, entre outras coisas, com a superação dos
conflitos rumo a uma comunidade de paz e harmonia são, em conformidade
com essa sua posição, incompatíveis com a esperança de um mundo mais
democrático, mais justo e mais capaz de reconhecer as pessoas, os grupos e
as lutas que compõem o complexo da sociedade. Precisamente por seu caráter
agonístico e conflituoso, por excelência, falar de democracia radical, para
Mouffe, é também falar de uma democracia nunca plenamente realizada.
236
Não se deve, a partir disto, entender o pensamento de Rorty e o de Mouffe como visões
anti-iluministas. Rorty chamava a atenção, especialmente em Justiça como lealdade, para o
fato de que devemos separar o liberalismo iluminista do racionalismo iluminista.
237
É importante frisar que Rorty – bem como os pensadores de tendência pragmatista – não
nega a importância do Iluminismo e de sua herança em sentido lato, estabelecendo um diálogo
importante com a tradição iluminista, mas contrariando-a em alguns aspectos, em especial, a
sua auto-imagem e a centralidade da racionalidade humana como fundamento de todas
realizações relevantes do homem.
238
Provavelmente o mais razoável seja ler Bauman – especialmente os trabalhos que se
estendem a partir de sua fase pós-moderna até seus últimos escritos, como complementar a
175
No início de sua carreira, Bauman exibiu uma marcante tendência à
linha marxista de pensamento sociológico, o que veio a se protrair até o início
da década de 1970. A partir de então, em uma fase conhecida como “pós-
moderna”239, dedicou-se principalmente à crítica da modernidade e enunciou
alguns de seus conceitos-chaves – como o de ambivalência e o de liquidez –,
movimento que o tornaria um autor reconhecido nos círculos intelectuais
contemporâneos e não somente nos departamentos de filosofia e de sociologia
das universidades, mas ante ao público comum, ávido por explicações
racionalizantes da realidade e da dinâmica sociais.
Até esse período, Bauman ainda olhava para o pensamento de Rorty
com reservas. Para ele, Rorty parecia não oferecer nada de novo e tecia, por
fim, um projeto filosófico incompleto. Em Legisladores e intérpretes, de 1987,
Bauman apresenta uma leitura de Rorty como autor que, lamentavelmente, não
conseguia se desvencilhar daquilo que ele mesmo criticava. Essa constatação
o levou a qualificar Rorty como um intelectual legislador, isto é, um pensador
que, em última análise, permanece engajado na tarefa de oferecer respostas
universais a questões perenes da filosofia – mesmo que o negasse
veementemente ou que o fizesse de modo velado.
Em obra mais recente, Modernidade e ambivalência, de 1991, Bauman
mantém ainda essa observação acerca da suposta incompletude das coisas no
pensamento rortyano: é necessário fugir à linguagem da necessidade, da
certeza e da verdade absoluta, que são instrumentos de humilhação do outro –
daqueles que não se enquadram nos padrões estabelecidos por essas
necessidades, certezas e verdades –; deve-se, portanto, assumir a linguagem
da contingência, muito mais propícia à gentileza e generosidade para com esse
outro, como Rorty assevera com veemência; o fato, entretanto, é que a
gentileza não pode ser considerada o final, o ápice, desse processo. Não basta
dividir o espaço e ser gentil com o outro em uma experiência de coexistência
Rorty e não o contrário. Isso porque fica evidente, e, algumas vezes chega a ser textualmente
reconhecida, a grande influência da escrita rortyana sobre o sociólogo polonês-britânico.
239
Bauman foi um escritor muito profícuo. Alguns críticos e comentadores, tomando por base
as temáticas mais discutidas por ele ao longo de sua carreira, agrupam suas obras em três
fases distintas: a) a fase marxista, que se estende até a década de 1970; b) a fase pós-
modernista, a partir da década de 1970, em que ele se dedicou principalmente à análise da
modernidade; c) por fim, a fase mosaica, no final de sua carreira, quando passa a escrever
mais livremente, sobre temas diversos, tornando-se, inclusive, um autor de grande repercussão
editorial.
176
pacífica. O outro precisa ser respeitado em sua alteridade, o outro é objeto de
responsabilidade. E Rorty não chegava, sob a perspectiva baumaniana de
então, a tanto:
240
No original: “Rorty‟s solution is only half-way because he stays by dangerous and ambivalent
tolerance and one must go further, towards (new) solidarity”.
177
itinerário, por assim dizer, uma virada, passando a tangenciar e a compartilhar
cada vez mais da perspectiva rortyana, em detrimento da habermasiana.
A despeito da admiração intelectual declaradamente assumida por
Bauman para com Rorty, a partir de então, essa aproximação teórica
despertou, também, como é natural, uma série de choques e de críticas
importantes. O que se ocorreria a partir desta maior aproximação, por
conseguinte, seria uma espécie de recepção crítica de muitos aspectos do
pensamento rortyano por parte de sociólogo e filósofo polonês.
Assim, alguns aspectos da perspectiva neopragmatista, em especial,
foram decisivos para essa virada rortyana, encenada por Bauman, em desfavor
da linha mais habermasiana: o antiuniversalismo radical e o papel da
consciência da contingência, pontos fulcrais da postura intelectual rortyana,
são, de longe, muito mais coerentes com a escrita baumaniana, se comparado
ao anseio por universalidade, subjacente e necessário à ideia de agir
comunicativo de Habermas.
Além disso, a retórica de Bauman tende a dar uma relevância muito
grande a outras formas de expressão e saber, diferentes da Sociologia
acadêmica e, muitas vezes, separada desta, empreendendo aproximações
importantes com textos advindos de áreas como a Literatura, a Psicologia, a
Antropologia e a Filosofia, fato em que, novamente, aproxima-se da forma
eclética do pensamento rortyano241. Bauman, para quem Rorty se mostra agora
“a mais radical de todas as possíveis respostas à condição da pós-
modernidade” (BAUMAN, 2010, p. 267), identifica-se de forma marcante com o
contextualismo242 rortyano e a ideia de que no mundo-linguagem não pode
haver modelo de comunicação ideal e universalizável, mas podemos
estabelecer comunidades de conversação e estender o diálogo a um número
cada vez mais amplo de pessoas, sem recorrer a quaisquer espécies de
ganchos celestes243, ou sem promessa de validez universal da verdade.
241
Cf. ALMEIDA, Felipe. Bauman entre Habermas e Richard Rorty: interpretações. In: Impulso.
n. 64. v. 25, 2015, p. 54.
242
Expressão utilizada por Habermas para se referir ao pensamento de Rorty. Segundo
Carvalho Filho, o cerne do contextualismo rortyano é tentar “propor a sério a sugestão de que
não há, em qualquer sentido relevante, uma capacidade prévia universalmente compartilhada
capaz de reconhecer normas universais, dar-se normas universais, e nem mesmo discernir leis
universais no território da natureza” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 122).
243
Carvalho Filho, descrevendo as condições de construção de uma cultura pós-filosófica,
afirma que ela dependerá “de uma escolha pela auto-imagem segunda o qual estamos sós,
178
Assim, agora já em desacordo radical com o pensamento neoiluminista
habermasiano244, Bauman defende a ideia de que até mesmo um conceito
unívoco de verdade pode – e deve – ser posto de lado. Não há, portanto,
necessidade alguma de se tomar como ponto de partida uma concepção,
qualquer que seja, de verdade unívoca e universalizante. Para ele, em
consonância com William James – antes de Rorty – podemos apenas adotar
uma ideia deflacionada de verdade, como aquilo que endossamos, ou aquelas
crenças que partilhamos245. A verdade, para uma comunidade, está associada
à atitude adotada por ela em torno de uma crença compartilhada, aceita com
confiança e segurança, e da relação com o complexo de outras crenças
igualmente aceitas. O conceito de comunidade, para Bauman, já indica isso: a
comunidade se estabelece pela mesmidade interna, ou pelo entendimento
compartilhado tácito246.
A disputa sobre a verdade, por conseguinte, para Bauman, é sempre a
expressão de uma disputa de poder, é, em síntese, invariavelmente, o meio de
descobrir quem deverá ter a autoridade de falar enquanto os outros se
calam247, ou quem deverá ter o direito de decidir quais são as ideias e
comportamentos que todos os demais deverão adotar como normais e também
quais aquelas ideias e condutas que deverão ser tidas como desviantes,
imorais, ou inaceitáveis.
Assim, quando Bauman (1998, p. 143) se pergunta para quê se
precisaria de uma teoria da verdade, a resposta surge na seguinte linha de
pensamento:
finitos, não dispomos de Deus, nem da Verdade. (...) Teremos apenas a nós mesmos e nossos
jogos culturais” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 130).
244
O pensamento neoilumista de Habermas objetiva fazer a defesa do esclarecimento, ou da
modernidade – para ele, um projeto inacabado –, que ainda não cessou de gerar todos os
frutos que lhe são potenciais, ao tempo que sofre os ataques daqueles que lhe apregoam sua
decadência, os pensadores pós-modernistas, críticos radicais da racionalidade, dentre eles, o
próprio Rorty.
245
Rorty adota algumas funções para o conceito de verdade além da função de endosso. Para
Bauman, entretanto, a maior dentre todas essas funções é mesmo essa, a qual ele também
chamou função de controvérsia.
246
Cf. BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, p. 15 e
seguintes.
247
Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia
Mertinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 143.
179
supostos ou potenciais do debate são desiguais e sua
desigualdade tem de ser justificada a fim de ser defendida e
preservada, ou a dominação deve ainda ser estabelecida e a
competência de determinados agentes que no momento
afirmam falar com autoridade tem de ser, para esse objetivo,
contestada e desacreditada. (BAUMAN, 1998, p. 143)
180
Desse modo, para Bauman, podemos sim escapar a esse modo de
pensar, que parte de uma determinada teoria da verdade. O contextualismo
seria tudo aquilo de que precisamos. Em decorrência, desprender tempo e
energia na busca de uma estratégia ou um método de construção de verdades
universais – ou mesmo universalizantes – não deve ser o papel do intelectual
em um mundo infinitamente plural e extremamente dinâmico e polifônico, ou,
utilizando o vocabulário baumaniano, um mundo e um tempo líquidos.
Na perspectiva de Bauman249, o entusiasmo pelo consenso (na
comunicação como na vida social em geral) não deveria angariar tantos
adeptos entusiasmados. O consenso não deve jamais ser a meta em uma
sociedade plural, pois ele é, em última análise, excludente e incapacitante. O
dissenso, isso sim, é expressão de liberdade e vida, ao passo que, se formos
capazes de pensar em uma sociedade plenamente consensual, podemos
facilmente imaginá-la imersa em uma paz dos cemitérios.
Tal anseio por consenso seria, também, uma espécie de anseio por
pureza. E tal ideal de pureza, que acompanha o homem desde muito tempo,
tem resultado, ao longo da história, em inumeráveis catástrofes e mazelas das
mais sangrentas e lamentáveis250. Atrelado a este ideal de pureza, o papel do
intelectual na sociedade moderna, especialmente o papel do filósofo, esteve
sempre associado, como se disse há pouco, à purificação dos erros e
ingenuidades do senso comum, em busca da verdade pura. Por esta óptica, a
vida prática, cotidiana, das pessoas comuns parece estar sempre desvinculada
de qualquer significação filosófica, e parece se comportar como um espaço
vazio de significados que espera pela atuação do intelectual para lhe imprimir
um sentido. Bauman (1998, p. 109), assim como Rorty, refutava com
veemência essa visão bifurcada e simplista de separar vida e significado:
249
Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. 1998, p. 249.
250
Para se referir ao perigo do sonho da pureza, Bauman (1998, p. 13), citando a escritora
americana Cynthia Ozick, lembra-nos que a solução final alemã pode ser entendida
exatamente como uma expressão do sonho da pureza. O holocausto teria sido como uma
limpeza, uma solução estética, a eliminação do que não se considerava harmonioso,
adequado. Do mesmo modo que nos lembrou Michel Foucault em relação ao procedimento
adotado para com os loucos no início da Modernidade, lançando-os ao mar, para que não
continuassem representando a desordem, o caos e a doença. Do mesmo modo, a sociedade
contemporânea tende a criar seus mecanismos de proteção em relação ao pária, ao estranho,
ao estrangeiro, ao desempregado, etc.
181
É de trivial evidência, hoje, que a experiência comum não seja
absolutamente como a filosofia moderna (e a sociologia, para
essa questão) a pintava: nem o vazio que espera ser
preenchido com o significado, nem o plasma informe a que
profissionais devem dar configuração, equipados de perícia
hermenêutica. Em vez disso, essa experiência é desde o
princípio significativa, interpretada, compreendida pelos
impregnados dela - essa significação, interpretação e
compreensão é seu modo de ser.
251
Retrotopia foi lançado no final do ano de 2017, mesmo ano do falecimento do autor, que
ocorrera em Janeiro.
182
espírito nostálgico. O século XX, em especial, teria começado como uma utopia
futurista e terminado como nostalgia. A retrotopia é a expressão social desse
espírito nostálgico, que se apresenta sob a forma de “visões instaladas num
passado perdido/roubado/abandonado, mas que não morreu, em vez de se
ligarem a um futuro „ainda todavia por nascer‟ e, por isso, inexistente”
(BAUMAN, 2017, p. 10). Assim, há uma forte tendência à supervalorização de
uma idealizada segurança, estabilidade, pureza ou felicidade – supostamente –
deixada para trás, perdida, em virtude das transformações que foram, gradual
ou radicalmente, introduzidas na sociedade.
Evidentemente, tal entusiasmo pela possibilidade idealizada de retorno
aos valores e às circunstâncias do passado distante só pode tomar como
referência um tempo guardado na memória afetiva, impreciso e sujeito a
diferentes interpretações. Isso porque não vemos o passado de modo
plenamente claro e objetivo, vemo-lo do modo como ele se parece para nós,
em geral, anuviado pela afetividade e pela distância.
Bauman via este apego à nostalgia como uma espécie de segundo grau
de negação da utopia. Assim, a retrotopia nega a negação da utopia. Para
tanto, ela se expressa, em geral, por meio de algumas tendências notáveis de
movimentos sociais simultâneas de retorno a valores antigos. Bauman discutiu
essas tendências, observando seus comportamentos típicos e suas
implicações nas dinâmicas da sociedade líquida. Elas são, a saber, quatro
espécies de tendências, que ocorrem de forma simultânea e integrada, a que
ele denomina: 1. de volta a Hobbes; 2. de volta às tribos; 3. de volta às
desigualdades; 4. de volta ao útero.
Bauman considera ter havido uma importante e decisiva cisão na
sociedade líquida, um radical afastamento entre poder e política. Para ele, o
poder se encontra hoje cada vez mais capilarizado e descentralizado em
relação ao Estado, que se vê diante de grandes transformações da arena
pública. Precisamente por isso, vê-se esvaziado de muitas das suas antigas
prerrogativas e impossibilitado de cumprir boa parte das atribuições que lhe
são tradicionalmente vinculadas. O Leviatã tem se tornado, portanto, objeto de
desconfiança, e tem sido visto, relativamente a várias de suas obrigações,
como insolvente. Desse modo, muitos aspectos da sociedade contemporânea
lembram um cenário pré-hobbesiano, um ambiente de laços humanos
183
enfraquecidos, pessoas afetadas pela ansiedade da impotência, coabitação de
inúmeros pequenos Leviatãs, e a sensação de que todos são dignos de
desconfiança e de que o Estado não é eficiente ou suficiente para arbitrar – ou,
muito menos, evitar ou contornar – uma guerra de todos contra todos.
Em vista disso – como uma reação a essa inépcia do Estado em gerir os
anseios e conflitos com as feições que se lhe apresentam hoje –, percebe-se
um recrudescimento da mentalidade tribal. Imersos nas mais diversas tribos, os
indivíduos se acomodam e buscam criar suas identidades e lealdades.
Definindo a quem (sejam ideias, pessoas ou outras tribos) devem ser
opositores – a quem devem confrontar, se necessário, ao custo da própria vida
– definem-se a si mesmos: dizer quem são “eles” é a única forma de dizer
quem somos “nós”. Desse modo, faz-se extremamente necessário existir uma
posição contrária, um inimigo comum, real ou imaginário. Sentimentos
marcantemente neoconservadores, como o nacionalismo, a xenofobia, o
moralismo, o fundamentalismo religioso e a emocionalidade são combustíveis
eficientes para atitudes de confrontação ideológica, política e, muitas vezes, até
para enfrentamentos pela violência física.
Fato curioso é que, para ser aceito em um “nós”, sentir-se parte de
alguma coisa, irmanado por algum valor ou causa, muitos indivíduos, em
sociedades democráticas, ajudam a eleger candidatos eminentemente
contrários à democracia e que, muitas vezes, apresentam propostas
frontalmente aversas aos seus interesses individuais. Evidentemente, esse
painel descrito por Bauman, é um solo mais que fértil para o surgimento de
líderes políticos carismáticos que representem tais sentimentos e tendências
neoconservadoras. Assim, muitos “políticos do ódio” estão sendo e ainda
serão, por muito tempo, eleitos no mundo inteiro. Rorty tem diagnóstico
semelhante a esse: várias foram as oportunidades em que se referiu
explicitamente à tendência de que os discursos de ódio viessem a assumir um
protagonismo em relação à linguagem dos direitos humanos ou da
solidariedade.
Pari passu, objetivar o combate à miséria e à desigualdade social
parece, cada vez mais, uma ideia totalmente desvinculada do papel do Estado.
Ao tempo que a carência de bens sociais e de condições dignas de vida por
parte de uma quantidade gigantesca de indivíduos se reverte, ainda mais, em
184
combustível para dissensos e embates de todas as formas. E os mais
abastados passam a buscar maneiras de viver separados dos mais pobres, em
uma espécie de “comunidade murada móvel”.
Bauman avaliava, ainda, que faz cada vez mais sentido se falar em fim
das esperanças, desde que se esteja referindo às esperanças sociais, aos
grandes anseios e sonhos coletivos. As esperanças pessoais, por sua vez,
seguem firmes, movidas por um contexto social extremamente – e
crescentemente – individualista. Assim, objetivar ações cujo fim imaginado seja
o de tornar o mundo um lugar mais habitável – livre, igual, democrático, ou
coisa que o valha – parecem, cada vez mais, injustificáveis ou mesmo
inaceitáveis. O aprimoramento do eu, a exacerbação do individualismo – que
transparece em tendências como o “faça você mesmo” – e as relações
meramente virtuais, tornam-se a marca distintiva na contemporaneidade.
Esse apego à individualidade – ou, mais acertadamente, ao
individualismo – , marca indelével da sociedade líquida, pode ser visto também
como um ponto crucial de análise do pensamento rortyano, pretensamente
voltado para a solidariedade ao mesmo tempo que se assenta – às vezes de
modo mais consciente e às vezes de modo mais velado – em pressupostos
individualistas. É o que veremos, com maior detalhamento, na seção a seguir.
185
isso, a questão da autocriação privada tomou uma dimensão enorme no seu
discurso, e, com ela, a perspectiva da individualidade e do individualismo, ante
a política liberal.
Carvalho Filho, considerando que há na sociedade moderna um
paradigma marcante individualista253 e objetivando propor um solidarismo
universal254, vê, em Rorty, uma tentativa frustrada de comunitarismo, em que o
conceito de solidariedade não é suficiente para desbancar o viés individualista
subjacente à sua retórica política – terminando por reforçar e revigorar o
paradigma que pretende combater – e o considera como "a expressão mais
bem acabada de individualismo”. Entretanto, todo vocabulário político assumido
por Rorty – a partir de redescrições, revalorações e apropriações diversas de
termos inusitados – e a defesa de uma utopia marcada pela solidariedade e
justiça social funcionam como uma cortina de fumaça, fazendo parecer que há
em sua retórica um forte e genuíno combate ao individualismo.
Evidentemente, não haveria nenhum problema em construir um
pensamento ético com base no individualismo, como já o fizeram inúmeros
filósofos, consciente e propositadamente ou não. O problema aqui se dá
porque a defesa do individualismo está imiscuída no contexto de uma
concepção utópica de política comprometida com a solidariedade e a justiça
social. Como é de se esperar, um desses aspectos haverá de se impor e
sobressair em relação ao outro: ou o individualismo – e a liberdade da
autocriação privada que lhe é correlata – ou a solidariedade social – que se
afina melhor com uma concepção mais comunitarista que individualista –
assumirá o protagonismo, relegando o outro elemento da retórica rortyana a
um segundo plano.
Para Carvalho Filho, a despeito de Rorty fazer uso corrente de uma
linguagem e de metáforas que se referem a uma utopia de solidariedade,
observando-se com a devida atenção, o que encontraremos, às vezes de forma
sub-reptícia e outras vezes de forma indisfarçada, é mesmo uma contundente e
eficaz defesa do individualismo.
253
O que afeta toda a sua auto-imagem, tornando-se como uma espécie de “senso comum”, ou
um background quase unânime, entre as pessoas que se dedicam a pensá-la.
254
Cf. CARVALHO FILHO, Aldir Araújo. Individualismo solidário: uma redescrição da
filosofia política de Richard Rorty. 2006. 470 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 26.
186
Os compromissos – conscientes ou não – de Rorty para com o
individualismo assumem, em dissonância com sua firmeza anti-essencialista,
aspecto de um fundamento ou de um dogma a que ele segue incontinenti,
advindo da disjunção público-privado, e constituindo um ponto prioritário255 em
seu pensamento político:
255
Para Carvalho Filho, há, de fato, em Rorty – mesmo que ele tente, a todo custo, impedir que
isso seja evidente em sua retórica – uma espécie de precedência política do indivíduo: “do
ponto de vista da hierarquia dos objetivos sociais, a socialização é apenas um meio para o fim
desejado, a saber, a individuação bem-sucedida” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 158-159).
256
Em geral, entende-se, muito graças à cultura cristã e à kantiana, a expressão obrigação
moral pelo viés essencialista e universalista. Em Rorty, por outro lado, ela só pode ser utilizada
em sua configuração contingente e historicista, como algo que é resultante de um
pertencimento a uma comunidade específica. Não faria sentido, pois, atrelar a tal conceito a
ideia de que haja pessoas “desumanas”, por não cumprirem com sua obrigação moral, de
solidariedade, por exemplo, para com outros seres humanos em uma dada situação histórica.
187
apenas convivência de duas dimensões da vida, dois espaços que apenas se
entrecruzam:
257
Cf. CARVALHO FILHO, Aldir Araújo. Auto-edificação idiossincrática como modelo liberal-
burguês de educação. In: Redescrições, n. 1, 2009, p. 10.
258
A ética rortyana gravita em torno à ideia de auto-criação privada. Para Rorty, em
conseguinte – e em total consonância com sua perspectiva do pensamento filosófico de
Nietzsche – não há maior fracasso possível à vida de uma pessoa que ela não lograr “tornar-se
188
social. Ao modo de Rorty, mais ainda, uma vez que a atitude pública das
pessoas deve advir de suas deliberações privadas.
Por essa leitura, a sociedade utopicamente liberal de Rorty se assenta
numa tentativa arrojada de fazer convergir duas vias não convergentes, o
individualismo e o solidarismo. Para tanto, tal utopia desenharia os contornos
de “uma sociedade de individualistas solidários em seu individualismo, isto é,
uma sociedade cujo foco é a manutenção (e até ampliação) do isolamento dos
indivíduos em suas esferas privadas” (CARVALHO FILHO, 2006, p 355).
A despeito de favorecer o individualismo, Rorty apresenta uma maneira
de reorientar a discussão ética e política para um campo antiuniversalista e
uma tentativa de suscitar meios para a melhoria das relações humanas e para
a defesa da solidariedade como um valor construído pelos homens em sua vida
comunitária, ainda que, mais uma vez, tais defesas não alcancem o patamar
mais desejável do combate real a um dos valores mais arraigados na tradição
da cultura ocidental, o individualismo.
Reafirmamos, pois, que Rorty tem o inegável mérito de não suscitar
apenas uma maneira, mas de ter se tornado a voz originalmente oportuna e
contundente de que dispomos hoje para a sustentação ideológica de uma
solidariedade social – mesmo que no viés do individualismo solidário – e que,
inegavelmente, parece ser a via mais promissora ao combate do
individualismo-egoísmo, tão flagrante e nocivo quanto marcante no mundo
contemporâneo.
quem é”, isto é, não pode haver maior erro para consigo mesmo que se tornar apenas a
imitação de outra(s) pessoa(s). No mesmo sentido, a teoria da crítica literária de Bloom,
associa o fracasso à incapacidade de uma criação artística genuína. Fracassar seria “não
criar”, copiar, reduzir-se a dizer apenas aquilo que já fora dito antes.
189
controvérsias: as conclusões a que ele chegou e que definem, em síntese, a
sua utopia são, de fato, uma decorrência lógica dessas premissas
estabelecidas? A sua utopia pode ser apresentada como algo plausível para
cumprir o papel um ideal a se perseguir? Há contradições internas no
pensamento de Rorty que possam minar a sua prescrição de uma sociedade
idealmente liberal? Tais questões foram levantadas e discutidas, como já se
disse ao longo deste capítulo, inclusive por ele mesmo, mas também por vários
de seus interlocutores.
Um ponto fulcral, indicado por muitos dos críticos da filosofia rortyana,
diz respeito ao fato de que Rorty, objetivando ser fiel ao seu antifundacionismo
radical, impõe tanto ao sermão como ao tratado259 um papel de somenos
importância em sua sociedade utópica. Para ele, a Teologia e a Filosofia
representam as bases de sustentação de estruturas de pensamento
predominantes em outros tempos, que não mais satisfazem às necessidades
correntes. Elas são como ferramentas que já foram muito usadas – e que foram
de extrema utilidade em contextos sociais pretéritos –, mas que precisam ser
substituídas por outras mais adequadas aos problemas da contemporaneidade,
com o surgimento de uma cultura pós-filosófica260.
Rorty enuncia, principalmente, o romance261 – como forma
paradigmática de expressão da narrativa, da imaginação e da sensibilidade –
como uma ferramenta muito mais adequada a suscitar as reflexões aptas a
enfrentar os problemas atuais. Nesse sentido, a literatura assumiria um papel
relevantíssimo em uma sociedade idealmente liberal e democrática: ela seria o
principal veio de educação dos sentimentos das pessoas tanto para se
tornarem, cada vez mais ironistas, como para se tornarem, cada vez mais,
259
Na perspectiva rortyana, a partir do século XVII houve um grande redirecionamento em
relação ao que a cultura ocidental chamava divindade: o amor a Deus foi sendo substituído
pelo amor à Verdade, o que ocasionaria uma verdadeira deificação da ciência. Apenas após
isso, e muito lentamente, as pessoas foram percebendo que a verdade é criada e não
descoberta.
260
Explanando as características do fazer filosófico pragmatista, Carvalho Filho assevera que
“os pragmatistas não temem que a perda da filosofia seja um problema, ao contrário. Uma
cultura pós-filosófica será melhor, assim como o é uma cultura pós-teológica” (CARVALHO
FILHO, 2006, p. 127).
261
Em muitos pontos, Rorty transparecia que o romance é o modo maior da imaginação
literária, maior expressão da liberdade criativa no texto literário. Acerca disto, citava Milan
Kundera – inclusive, na epígrafe de Contingência, ironia e solidariedade – e a sua análise da
importância e representatividade do romance na cultura ocidental, para quem a linguagem do
romance é aberta, uma vez que “no território do romance, não se afirma: é o território do jogo e
das hipóteses” (KUNDERA, 1988, p. 72).
190
solidários, uma vez que este é um objetivo possível de se atingir mais pela
imaginação que pela investigação262.
O trabalho do filósofo é revirar as perspectivas, justapor e contrapor os
vocabulários, contribuir para uma modelagem renovada das crenças e desejos
das pessoas e dos grupos sociais. Araújo (2016, p. 58), ilustrando a visão de
Rorty acerca dessa maneira nova de ver o trabalho da filosofia, que utiliza
como matérias primas a metáfora e o vocabulário, afirma que:
191
metáforas possam sempre ser construídas e novas utopias possam sempre ser
gestadas. Nesse sentido, Judt (2011, p. 169) é perspicaz em fazer um
diagnóstico do que necessitamos:
264
Na edição lusitana: “Numa cultura ironista (...) é às disciplinas que se especializam na
descrição densa do privado e do idiossincrático que se atribui essa função. Em particular os
romances e as obras etnográficas, que sensibilizam para a dor dos que não falam a nossa
linguagem, têm de desempenhar a função que se pretendia que as demonstrações de uma
natureza humana comum desempenhassem.” (RORTY, 1994, p. 23).
192
Carvalho Filho (2009b, p. 3), explica essa linha evolutiva, de forma muito
clara e sucinta, nos seguintes termos:
193
Castro assevera265 que, em Rorty, a capacidade de a linguagem intervir
na vida moral, modificando práticas sociais, é decorrência de uma concepção
anti-correspondentista, historicista e de ascendência hegeliana, segundo a qual
a imaginação tem papel central na construção de novos mundos. É essa a
matriz de pensamento que permite associar filosofia e poesia como
instrumentos da imaginação e, em conseguinte, da atividade infinita de
progresso moral.
Kundera, por sua vez, expõe com maestria o que denomina espírito do
romance, como algo que supera as respostas simples e rápidas dadas às
questões
194
Na perspectiva Rortyana, é coerente dizer que se acredita na sabedoria
do romance como algo afeito a exceder e transpor a sabedoria da teoria, e
como algo capaz de instigar a imaginação, indo além das respostas
racionalizantes, dadas pela argumentação lógica, em direção à argumentação
dialética. O que não faria sentido, entretanto, em Rorty, é a afirmação de
qualquer valor como absoluto ou de qualquer prática como infalível para o
objetivo de modificar a maneira de pensar e de viver das pessoas. Rorty não
absolutiza nem a filosofia, nem a literatura. Assim como tudo é contingente,
nada é infalível. Desse modo, apontar para um suposto endeusamento da
literatura na retórica rortyana, ao fim e ao cabo, não faz qualquer sentido e
resulta numa crítica sem qualquer valor.
A grande importância da leitura na vida pessoal de Rorty talvez tenha
sido um elemento decisivo para o seu otimismo e confiança – como se disse,
dentro dos limites traçados pela contingência – em relação ao poder da
literatura. O filósofo teve uma infância na presença dos livros, decidindo
dedicar-se ao estudo acadêmico de filosofia quando contava com apenas
quinze anos. Suas leituras de Platão e de muitas obras de tendência marxista,
simultaneamente, o levaram a uma crise existencial-intelectual profunda, e,
mais uma vez, foram os livros que lhe trouxeram um alento: A fenomenologia
do espírito, de Hegel, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, foram o
fio de Ariadne para Rorty, despertando-lhe a ideia de que é impossível
sintetizar satisfatoriamente, em uma única teoria, os gostos e desejos
idiossincráticos de um indivíduo e uma busca real e genuína por justiça social.
Essa teria sido uma virada pragmatista importante em sua maneira de pensar,
inclusive, a própria filosofia e a literatura, e que culminaria com a escrita de A
filosofia e o espelho da natureza, obra que o faria participar do cenário da
discussão filosófica relevante no mundo.
Em sua maturidade intelectual, alguns autores foram uma presença
decisiva. Rorty citava recorrentemente, com uma espécie de admiração e
carinho especiais, além de Hegel e Proust, nomes como Dewey, Heidegger,
Habermas, Kierkegard, Nietzsche, Baudelaire, Nabokov, Rawls, Orwell,
Dickens, Mill, e muitos outros. Desse modo, a experiência de proximidade com
o discurso literário é bem condizente com o entusiasmo em relação ao poder
195
transformador da literatura e a ascendência de uma cultura literária que Rorty
viria a desejar e promover, na defesa de sua utopia liberal democrática.
A crítica de Laclau segue outra via. Para ele, pode-se afirmar que Rorty
estabelece premissas pragmatistas muito sóbrias e interessantes para o
edifício lógico da sua argumentação, mas que acaba por chegar a conclusões
que, não necessariamente, decorrem daquelas premissas. E isso é muito
marcante no que toca à sua defesa de uma utopia liberal. Considerando o
pragmatismo rortyano e a sua “consequência” política, Laclau (2016, p. 99-100)
afirma que:
266
Cf. LACLAU, Ernesto. Community and Its paradoxes. In: LACLAU, Ernesto.
Emancipation(s). London: Verso, 1996, p. 90.
196
“persuasão” e “força” porque aquela é uma espécie desta267 e não o seu
contraditório ou o seu contrário.
Para Laclau, Rorty trata essa questão de forma simplista, a ponto de não
deixar claro se ele recomendaria, em uma sociedade idealmente liberal, o uso
da persuasão em substituição da força em quaisquer circunstâncias. Por
exemplo, a sociedade idealmente liberal trataria com persuasão o cometimento
de um crime grave como o assassinato ou o estupro? Ela abriria mão do poder-
dever da sociedade de coerção do agressor, ou daquele que, a despeito de
toda a sensibilização a que tivera sido submetido, cometeu um delito bárbaro?
Assim, Laclau argumenta que uma sociedade que prescindisse
plenamente da violência não seria uma ótima opção para se viver, pois as suas
reformas precisariam partir de um “exército de engenheiros sociais” e ter a
aceitação global e pacífica dos demais integrantes da comunidade, sem que
interesses ou direitos já existentes sejam considerados, ou sem que pessoa
alguma possa se sentir desprivilegiado pela não satisfação de seus interesses
particulares. Esse não seria, para Laclau, um mundo bom de se viver. Nele, a
única liberdade possível seria – ao modo de Spinoza – a de se ter a
consciência da necessidade268. O jogo democrático, muito longe disso,
pressupõe a prerrogativa de aceitar uma ideia e descartar inúmeras outras, de
satisfazer o interesse de uns e descartar os de outros, de adotar uma demanda
como prioridade em detrimento de todas as outras, e isso é impossível sem a
violência que lhe é intrínseca. Desse modo, formas pontuais de opressão
podem ser combatidas e eliminadas, mas a opressão é inerradicável 269.
Uma questão semelhante a essa é desenvolvida por Berlin, ao ventilar a
hipótese de uma sociedade em que os valores fossem todos eles compatíveis
entre si. Na vida social, os valores podem e costumam entrar em rota de
colisão uns com os outros. Isso é intrinsecamente social:
197
a traidores e criminosos perigosos? Esses choques de valores
são próprios de sua essência e de nossa essência humana. Se
nos dizem que essas contradições serão resolvidas em um
mundo perfeito no qual todas as coisas boas poderão ser
harmonizadas teoricamente, devemos responder que os
significados que eles atribuem a esses valores não são os
mesmos que os nossos. Devemos dizer que um mundo no qual
valores incompatíveis não estão em conflitos está além de
nossa compreensão. (BERLIN, 2016, p. 40)
198
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A map of the world that does not include Utopia is not worth
even glancing at, for it leaves out the one country at which
Humanity is always landing. And when Humanity lands there,
it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is
the realisation of Utopias. (Oscar Wilde)
199
dos principais o de garantir que as pessoas e os grupos sociais sejam
reconhecidos e tenham o direito a ter direitos.
Mesmo as melhores dessas instituições, entretanto, permanecem – e
permanecerão sempre – na condição de inacabadas, passíveis de
aprimoramento. A perfeição não é sequer uma meta. O melhoramento contínuo
e ininterrupto é a utopia para a sociedade liberal-democrática. Desse modo,
para que uma democracia morra, não seria necessária a mitigação ou mesmo
a denegação de todas as conquistas civilizacionais até aqui realizadas, ou o
desmonte de todas as instituições que foram sendo criadas e se tornaram os
alicerces do regime democrático. Na verdade, bastaria, para tanto, negar-lhe
um de seus atributos típicos, a imperfeição, inculcando aos cidadãos a crença
de que já atingiram o estado último e mais desejável possível de segurança e
felicidade. Isso porque, negar-lha seria inviabilizar o seu potencial de querer
mais, de melhorar sempre, de aprimorar seus mecanismos e, se um dia
perfeita, a “democracia” não necessitaria do conflito e do diálogo, não sendo
mais democrática. O espírito democrático é o ambiente ideal da esperança
social. E precisamente por isso, a utopia é a melhor forma de expressá-lo e
pode ser uma excelente forma de motivar seu aprimoramento. Pela perspectiva
de Rorty, só a aniquilação completa poderia representar para o homem uma
catástrofe maior que perder a sua capacidade de imaginar, seu entusiasmo
para projetar e promover novos mundos. Um tipo de sociedade mais
aterrorizante possível, para efeito de contraste – em que personagens como
O‟Brien270 sejam consideradas o normal da vida – é aquela que se pode
qualificar por dois atributos: em primeiro lugar, ela seria uma sociedade capaz
de tolerar a ideia de que o futuro seja representado pela metáfora de uma bota
a esmagar um rosto humano para sempre; em segundo lugar, seria uma
sociedade em que “os intelectuais terão aceitado o facto de as esperanças
liberais não terem possibilidades de realização” (RORTY, 1994, p. 29).
É perfeitamente aceitável, no âmbito da perspectiva rortyana, que se
duvide da democracia, que se tenha desconfiança de suas instituições. É
270
Rorty dedicou todo o oitavo capítulo de Contingência, ironia e solidariedade a discutir o
impacto da literatura de George Orwell – especialmente em Animal farm e 1984 – na análise da
vida política no século XX. O‟Brien, para Rorty, tornara-se a personagem mais significativa de
1984, alguém “perigoso e possível”. Sua importância está justamente no fato de que Orwell nos
convence de que ele é mesmo possível, em sua absurdidade.
200
também perfeitamente aceitável partir sempre da ideia de que as respostas de
que dispomos hoje para as questões importantes da vida social são respostas
incompletas, soluções parciais. Manter vivas algumas dúvidas e cuidar para
que permaneçam abertas as questões ajuda também a manter viva a chama
do aprimoramento. Rorty enumerou, exemplificativamente, algumas dessas
dúvidas importantes que uma sociedade democrática pode – e, na verdade,
deve – ter acerca de si mesma: “doubt about their own sensitivity to the pain
and humiliation of others, doubt that present institutional arrangements are
adequate to deal with this pain and humiliation, curiosity about possible
alternatives” (RORTY, 1989, p. 198)271. Não se estar convencido de que a
democracia liberal seja suficientemente boa para satisfazer nossas
inquietações e necessidades é totalmente aceitável. A única coisa que
realmente não se pode aceitar, em sua perspectiva, seria desistir da tarefa de
pensar e acreditar na possibilidade de construir amanhã uma sociedade melhor
se comparada àquela que logramos construir até hoje.
Seria, por conseguinte, muito adequado e justo incluir o pensamento
rortyano em qualquer rol de discursos contemporâneos portadores e
transmissores de um bem muitíssimo valioso, a esperança social. Rorty
desejava que continuássemos sempre nos exercitando na atividade de olhar
fatos antigos com novos olhos, de ressignificar as experiências,
redescrevendo-as de modo a tirarmos delas o máximo de esperança social
possível.
A despeito de ser prioritariamente uma mensagem de esperança, o
discurso de Rorty reclamava a atenção para um fato relevantíssimo: a
democracia e o liberalismo (como ele o via) na América no século XXI
poderiam vir a sofrer fortes revezes, precisamente por serem, como tudo mais,
contingentes e extremamente frágeis.
Para que se possa promover-proteger a Democracia, por conseguinte,
faz-se necessária uma atenção permanente para com os seus inimigos íntimos:
muitas das ameaças que o regime democrático sofre não são resultantes da
ação insistente e determinada dos seus inimigos externos, mas provêm do seu
271
Na edição lusitana: “dúvidas quanto à sua própria sensibilidade à dor e à humilhação dos
outros, dúvida de que os entendimentos institucionais actuais sejam adequados para lidar com
a dor e a humilhação, curiosidade sobre alternativas possíveis” (RORTY, 1994, p. 246)
201
próprio interior, como Todorov (2012, p. 14-15) evidenciava com muita
perspicácia:
272
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism, p. 175 e seguintes.
273
McClean cita algumas das teorias de Economia e Política que têm sido determinantes para
decisões importantes em políticas públicas nos EUA, além de influenciarem de forma marcante
o pensamento prioritário dos cidadãos acerca de questões sociais de enorme relevância, por
exemplo, o Realismo Político e a Economia Autista.
202
menos afortunados e a despeito de todo o progresso do conhecimento
humano, talvez estejamos certos em desconfiar que não logramos aprender
uma coisa: não aprendemos ainda a ver o outro como igual. E talvez estejamos
ainda muito distantes de construir um mundo realmente solidário. Citando
Rorty, e seu artigo Fraternity reigns274, McClean alimenta a esperança de que
podemos fazer mais e melhor em direção ao objetivo da solidariedade.
Podemos mudar os nossos hábitos e evitar que o egoísmo e o sadismo social
nos arrastem para os Dark Years prenunciados por Rorty. E podemos, por
exemplo, parar de tolerar a distância abissal que separa as comunidades por
razões de raça e condições econômicas, nos empenhando em construir,
gradual mas incessantemente, uma ordem social informada por um ethos de
fraternidade.
Escapar aos Dark Years – e a todo o complexo de sentimentos, hábitos
e ideias que podem vir a oportunizá-los – exige o compromisso de refletir
seriamente sobre as ações que podemos empreender para forjar e aprofundar
nossos laços comunitários, tanto em casa como no exterior275.
Rorty é um autor exemplar no que concerne à esta preocupação e este
compromisso. Seu grande esforço em “Para realizar a América: o pensamento
de esquerda no século XX na América” estava direcionado justamente ao fito
de fazer ver à esquerda americana que as reformas e melhoramentos por ela
ambicionadas para seu país eram viáveis. Mas para que tenham chance de
realização, exigiam uma postura política mais cuidadosa e pragmática. E que,
se isso não ocorresse, a possibilidade de um grande retrocesso moral e perda
de conquistas sociais angariadas, muitas vezes, ao preço de vidas humanas e
expressadas em igualdade de oportunidades, representatividade de minorias,
direitos civis, trabalhistas e previdenciários, etc. era não apenas real, mas até
iminente.
A partir de 2016, com a ascensão ao poder de um presidente de ultra
direita nos EUA, Donald J. Trump, boa parte das preocupações expressadas
274
Este foi o artigo publicado no The New York Times, em 1996, que daria origem ao texto
Looking backwards from the year 2096, que se tornou um capítulo de Philosophy and social
hope, publicado em 1999.
275
Cf. Ibid., p. 182.
203
por Rorty vieram à tona como ordem do dia276. Seus escritos – especialmente
seu último livro, supracitado – passaram a ser considerados como uma espécie
de profecia daquilo que se vislumbrava cotidianamente na política nacional277.
Não são raros os intelectuais dedicados à análise do regime democrático a
propugnarem, hoje, uma crise da democracia em muitos pontos do globo, com
a ascensão de líderes fortes, ultraconservadores. Alguns desses autores
denunciam a promoção consciente de uma espécie de erosão vagarosa, mas
eficiente, dos valores que definem a democracia, enquanto outros apontam
para a possibilidade iminente de rupturas bruscas e violentas, principalmente
advindas da supervalorização dos aspectos neoliberais na economia.
Singer, Araujo e Belinelli (2021, p. 225), elencando de um lado autores
alinhados à perspectiva gradualista e de outro aqueles que apostam na
iminência de rupturas por choque, afirmam que:
276
Em mais de uma ocasião, Rorty expressou a preocupação com a proteção das conquistas
democráticas e liberais nos EUA e com a fragilidade de tal patrimônio. Em Para realizar a
América: o pensamento de esquerda no século XX na América, ele elencou as condições
sociais reais existentes em sua época e a tendência de agravamento de alguns problemas que
poderiam culminar com a eleição de um “homem forte”, um líder carismático, representativo de
uma parcela da população ressentida com as mudanças progressistas.
277
Essa relação entre os escritos de Rorty e os acontecimentos políticos recentes nos EUA,
inclusive, foram um motivo a mais para o sucesso editorial de Para realizar a América: o
pensamento de esquerda no século XX na América, que passou a ser procurado nas livrarias
com uma frequência muito maior que antes, e para a popularização do nome do autor, como
uma espécie de profeta dos nossos tempos.
204
filósofo permanecia sendo uma ferramenta de muita utilidade em tempos de
Donald Trump278.
Ainda segundo McClean, Rorty não ofereceu somente instrumentos
teóricos úteis de análise da vida político-social na América, mas contribuiu
efetivamente, e de modo decisivo, com a reflexão acerca da posição política
que a esquerda precisa assumir para que seus anseios de uma sociedade mais
justa possam trilhar um caminho de realística esperança e ação. McClean não
compartilha plenamente com a tipificação cerrada em três categorias da
esquerda política nos EUA, feita por Rorty279, e propõe que se chegue a uma
posição de integração – o que chamou de The Bridge Left – para que o
pensamento reformista possa se converter em ações políticas efetivas de
melhorias da sociedade. Em “Para realizar a América: o pensamento de
esquerda no século XX na América”, Rorty leva a sério essa tarefa de propor
alternativas, indicar caminhos, a ponto de sugerir algumas atitudes que, à sua
perspectiva, poderiam ser muito eficientes para que a esquerda americana
possa contribuir de fato para a defesa e o progresso das instituições. Para ele,
os intelectuais de esquerda deveriam abandonar o excesso de apego à
ideologia e à teoria, afastar-se um pouco do gosto pela Filosofia, e procurar
uma postura mais pragmática e reformista. Deveriam também empenhar-se em
mobilizar o que resta de orgulho nacional americano, contribuindo para a
construção de imagens inspiradoras do país e abandonando o seu
“antiamericanismo semiconsciente”280.
Com Rorty, penso que se as esquerdas – nos EUA como em todo o
mundo democrático – quiserem levantar a bandeira do melhoramento das
instituições sociais e contribuir efetivamente para alargar as conquistas em
278
Cf. McCLEAN. David E. Richard M. Rorty and the Trump Years: On the 20th Anniversary of
Achieving Our Country - Leftist Thought in Twentieth-Century America. The New School: Public
Programs end events. 2018.
279
Em Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na América, Rorty
diferencia três tendências no pensamento de esquerda nos EUA: 1. a esquerda reformista; 2. a
nova esquerda; 3. a esquerda cultural. McClean afirma acreditar que tal tipificação seja mais
um recurso metodológico e retórico utilizado – conscientemente – por Rorty que a afirmação de
uma abrupta separação entre os autores e as ideias e posturas políticas associadas a cada
uma dessas tendências. Em relação às duas últimas formas citadas de esquerda, Rorty fazia
críticas severas, especialmente por terem se distanciado das questões políticas mais
relevantes à sociedade americana, concentrando seus esforços em práticas e posições
ideológicas que, muitas vezes, servem mais à denúncia de problemas e vícios da democracia
liberal que à proposição de caminhos a seguir.
280
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na
América, p. 135.
205
termos de igualdade, direitos civis, proteção da democracia e direitos humanos
– além da permanente possibilidade de invenção de novos direitos – precisam
se concentrar na tarefa de apontar caminhos, e não apenas apontar pecados
históricos imperdoáveis, deficiências intrínsecas ao sistema liberal democrático
e culpados por elas. Isto é, a esquerda precisaria se convencer da
necessidade-tarefa de pensar a política real, os problemas reais dos homens e
os meios efetivos de enfrentá-los. É o que Rondel (2018, p. 17 – tradução
nossa) ilustra com precisão:
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No original: “Leftist political struggle should concentrate around attempts to forge
majoritarian consensus on the need for specific reforms, on passing laws and enacting policies,
on mobilizing, petitioning, lobbying, demonstrating, on taking to the streets and exerting
pressure”.
206
julgava necessárias para empreender a reconstrução político-cultural do
presente e a defesa de uma utopia liberal-democrática para o futuro.
Sua utopia é defendida, portanto, como uma possibilidade ótima, um
horizonte realmente possível, mas não como uma necessidade histórco-
teleológica ou como a única opção de salvação para o homem. Com Sartre,
Rorty reconhece que a verdade dos homens será sempre aquela que eles
decidirem para si, e que se as pessoas, algum dia, desistirem da democracia e
optarem por qualquer regime totalitário, avesso aos valores democráticos e aos
direitos humanos, essa será a sua realidade, e, nesse caso, poderemos
lamentá-lo, argumentar em contrário, imaginar e descrever alter mundi
democráticos e livres, mas não podemos evitá-lo:
207
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