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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – IFCS


DOUTORADO EM FILOSOFIA

WILKER DE CARVALHO MARQUES

UTOPIA, ALTER MUNDUS E O PROJETO DE UMA SOLIDARIEDADE


COSMOPOLITA EM RICHARD RORTY

RIO DE JANEIRO
2021

1
WILKER DE CARVALHO MARQUES

UTOPIA, ALTER MUNDUS E O PROJETO DE UMA SOLIDARIEDADE


COSMOPOLITA EM RICHARD RORTY

Tese de doutoramento apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – PPGF-UFRJ, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutor
em Filosofia na linha de pesquisa „Filosofia
Política‟, sob a orientação da Profa. Dra.
Susana de Castro Amaral Vieira.

RIO DE JANEIRO
2021

2
FICHA CATALOGRÁFICA
(no verso da folha de rosto)

Gerar ficha catalográfica conforme as regras da UFRJ.

3
MARQUES, Wilker de Carvalho.
Utopia, alter mundus e o projeto de uma solidariedade cosmopolita em Richard
Rorty.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, para obtenção do título de
doutor em Filosofia.

Aprovada em ___/___/_________

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Susana de Castro Amaral Vieira


Orientadora – UFRJ.

Prof. Dr. Rodrigo Azevedo dos Santos Gouvêa


Professor convidado interno – UFRJ.

Aldir Araújo Carvalho Filho


Professor convidado externo – UFMA.

Profa. Dra. Edna Maria Magalhães do Nascimento


Professora convidada – UFPI

Prof. Dr. Heraldo Aparecido Silva


Professor convidado – UFPI

4
*
Para minha amada

Kellynha

porque
o maior conforto é, também,
o maior desafio:
a certeza de que só temos
– de verdade –
uns aos outros
nesta vida.

5
AGRADECIMENTOS e DEDICATÓRIA

Agradeço imensamente à Vida pela oportunidade de, em meio à


turbulência do existir, empreender esta pesquisa, ler textos tão inspiradores,
conversar com tantos seres humanos ilustrados, e, sobretudo, realizar tantos
sonhos. Sei bem que a cada utopia concretizada, a cada metáfora literalizada,
Ela me faz prenhe de outras utopias e de metáforas renovadas nessa aventura
interminável de descrever-redescrever a existência.

Agradeço, igualmente, a algumas pessoas muito especiais:

 A professora Susana de Castro Amaral Vieira, que, com muita


sabedoria e solidariedade, é minha orientadora nessa pesquisa,
sempre sensível às necessidades implícitas ao trabalho de
doutoramento, e prezando sempre pela Liberdade e
Responsabilidade no processo de orientação.
 O professor-querido Aldir Araújo Carvalho Filho, grande amigo que
informalmente, por pura cordialidade e solidariedade, fez o trabalho
de co-orientação, pessoa a quem dedico uma admiração e um
carinho desmedidos.
 O professor Eduardo Ribeiro Moreira e a professora Maria Clara
Dias, por espalharem conhecimento e gentileza pelo mundo.
 Minha mãe, Maria Marques, minha fortaleza.
 A Cristhyan Kelly Rodrigues de Sousa – Kellynha – minha amiga,
companheira e meu amor.
 João Wilker F. Marques, meu Ulisses – o filho mais amado deste
mundo.
 A Isabela Rodrigues Marques, minha filhinha, minha utopia.

 Marcos Fernandes Lima, amigo de todas as horas, um Quixote cujo


combate pela vida e pela justiça é, para mim, uma grande inspiração.
 Os amigos Cineas Santos, Raoni Huapaya, Rafael Sousa, Kelson
Silva e Domingos Dias, amigos generosos e visionários, mentes
iluminadas.

 A minha revisora e amiga Alexandrina Paiva, com a gratidão de


sempre.
 Os colegas músicos de Teresina – Piauí.

6
Dedico esse trabalho a João
Marques Ferreira, meu pai,
homem que me ensinou pelo
exemplo a proceder com esmero
em todas as pequenas ações da
vida – in memoriam.

7
RESUMO

A utopia tem sido uma importante ferramenta imagética, uma


destacada forma de expressão literária e um precioso recurso de
reflexão filosófica e sociológica ao longo dos séculos. Vocábulo
polissêmico, utopia assumiu, especialmente a partir do século XX,
um de seus sentidos mais correntes, o de sonho irrealizável,
passando a ser vista por vezes apenas como uma forma de
escapismo. Intelectuais de relevo chegaram a proclamar o ocaso
do espírito utópico, o fim da utopia, como o fim das grandes
narrativas, culminando com a ideia de fim da história. É essa a
moldura em que o filósofo neopragmatista estadunidense Richard
Rorty desenvolveu uma utopia cosmopolita liberal-democrática.
Para Rorty, manter viva a utopia, preservar a esperança social, é
o melhor que podemos esperar para o século XXI, é garantir que
o homem mantenha o sonho de construir, por meio de reformas
das instituições liberais-democráticas e do incessante incremento
da sensibilidade e da imaginação, uma sociedade em que o
sofrimento e a humilhação sejam combatidos e mitigados
maximamente, uma sociedade inimaginavelmente melhor, para a
qual ainda sequer dispomos de vocabulário apropriado a
descrevê-la. Em Rorty, portanto, a utopia de construir uma
sociedade idealmente liberal, além de uma eficiente ferramenta
para a reflexão política – um método –, é um projeto centrado na
solidariedade – uma meta.

Palavras-chave: utopia, política, liberalismo, democracia,


ironismo, solidariedade.

8
ABSTRACT

Utopia has been an important imaging tool, an outstanding form of


literary expression and a precious resource for philosophical and
sociological reflection over the centuries. A polysemic word, utopia
assumed, especially from the twentieth century, one of its most
common meanings, that of an unrealizable dream, coming to be
seen sometimes only as a form of escapism. Relevant intellectuals
came to proclaim the decline of the utopian spirit, the end of
utopia, as the end of great narratives, culminating in the idea of
the end of history. This is the framework in which the American
neopragmatist philosopher Richard Rorty developed a liberal-
democratic cosmopolitan utopia. For Rorty, keeping utopia alive,
preserving social hope, is the best we can hope for the 21st
century, it is ensuring that man keeps the dream of building,
through reforms of liberal-democratic institutions and the incessant
increase in sensitivity and imagination, a society in which suffering
and humiliation are combated and mitigated to the maximum
extent, an unimaginably better society, for which we still do not
even have the appropriate vocabulary to describe it. In Rorty,
therefore, the utopia of building an ideally liberal society, in
addition to being an efficient tool for political reflection - a method -
, is a project centered on solidarity - a goal.

Palavras-chave: utopia, politics, liberalism, democracy, ironism,


solidarity.

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12
CAPÍTULO I: CONTINGÊNCIA, UTOPIA E ALTER MUNDI ........................... 19
1.1 Se utópico, mãos à obra: as utopias do possível ........................................ 32
1.1.1 A utopia em contraponto à ideologia na Sociologia do Conhecimento de Karl
Mannheim .......................................................................................................... 34
1.2 Se utópico, apenas utopia: as utopias do impossível ................................. 39
1.3 Se utópico, ineficaz ou perigoso: o antiutopismo ....................................... 42
1.4 Um estilo literário de romances sociais ........................................................ 47
1.4.1 Utopia, de Thomas Morus, abre um caminho de possibilidades ilimitadas ....... 54
1.5 O estatuto do discurso pós-moderno: o fim das utopias? ......................... 61
1.6 Novo o homem, novas as utopias.................................................................. 67
1.6.1 A utopia antiespecista ou biosférica .................................................................. 69
1.6.2 A utopia trans-humanista ou pós-humanista ..................................................... 72

CAPÍTULO II: A POLÍTICA EM RORTY: UMA UTOPIA COSMOPOLITA


LIBERAL-DEMOCRÁTICA ............................................................................... 78
2.1 A política em Rorty: focus imaginarius para uma utopia hoje ................... 79
2.2 O cosmopolitismo da utopiarortyana ............................................................ 86
2.3 Rorty e um liberalismo redescrito.................................................................. 95
2.4 Rorty e a defesa antifundacionista da democracia .................................... 100
2.5 Uma utopia centrada na solidariedade ........................................................ 111
2.6 Um profeta com os olhos voltados para trás ............................................. 114
2.7 Mais que um método, uma meta .................................................................. 118

CAPÍTULO III: A POLÍTICA RORTYANA, UMA UTOPIA DO POSSÍVEL OU


DOIMPOSSÍVEL? RORTY SOB FOGO AMIGO E SOB FOGO INIMIGO .... 129
3.1 Ironismo e cimento social na sociedade liberal ideal ................................ 132
3.2 Roger Scruton e a falácia utópica ................................................................ 139
3.3 Contingência da sociedade liberal ou fim da história? ............................. 155
3.4 A crítica de Richard J. Bernstein ................................................................. 161
3.5 A democracia radical e pluralista em Chantal Mouffe ............................... 169
3.6 Utopia e retrotopia: Rorty e Bauman, pensar o século XXI ...................... 175
3.7 Individualismo e solidariedade na retórica rortyana ................................ 185
3.8 Literatura, força e persuasão na sociedade pós-filosófica ...................... 189

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 199

REFERÊNCIAS ............................................................................................... 208

10
Cambiar el mundo, amigo Sancho, que no
es locura, ni utopia, sino justicia.

(Miguel de Cervantes,
Dom Quijote de La Mancha)

Que serions-nous sans le secours de ce qui


n'existe pas?
(Paul Valéry)

What matters is our loyalty to other human


beings clinging together against the dark.

(Richard Rorty, 1982, p. 166)

11
INTRODUÇÃO

O poeta piauiense Da Costa e Silva, em um texto de pequeníssimas


dimensões, mas de uma precisão cirúrgica, levantou uma questão filosófico-
antropológica inquietante. Suscita-a no poema Síntese1:

O que perturba e intimida


O meu espírito forte
Não é a certeza da morte,
Mas a incerteza da vida.

De fato, essa tem sido uma questão sintética para o homem: afinal qual
outro problema lhe seria tão relevante quanto este, o que lhe seria mais caro
que sua vida? Assim, a incerteza do viver é-lhe um perturbador e insólito
oponente, segundo o poeta, até mais que outra grande rival, a consciência da
finitude, a certeza da morte. Diante dele, o homem se vê incumbido de dar
respostas: alguns, como se tornou comum, por exemplo, à filosofia helenística
– dos estóicos, epicuristas, cínicos e céticos – escolhem o remédio de assumir
o peso da contingência e conviver com as vicissitudes da vida de maneira o
mais receptiva e resignada possível, cultivando a ataraxia2, escapando à dor e
ao sofrimento associados ao medo do desconhecido3; outros adotam
subterfúgios vários com o fito de mitigar, ao máximo, o fardo sisífico da
imprevisibilidade. Procuram uma espécie qualquer de porto seguro – ou uma
calmaria que seja – para essa navegação temerária que é a vida.
Bauman, arguto observador dos hábitos e ideias associadas à essa
demanda, expressa-o de modo primoroso:

1
DA COSTA E SILVA, Antonio Francisco. Poesias completas. 4. Ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, p. 305.
2
Estas escolas de filosofia helenística e romana, a despeito de cada uma ter as suas
particularidades e recomendarem, cada uma à sua maneira, uma concepção de boa vida ou
uma forma de viver melhor, oferecem possibilidades de segurança, de harmonia, perante a
contingência do mundo e do homem. Nesses contextos, atingir a sabedoria é, também, atingir
a ataraxia. O homem sábio se torna, portanto, cada vez mais imperturbável ante às vicissitudes
da vida, encarando-as com tranquilidade de alma e reagindo com a calma e a serenidade
necessárias para fugir à condição de escravo das paixões.
3
A postura racional e reflexiva de tais correntes de pensamento helenístico as torna a mais
determinada adversária das predições e profecias onipresentes na cultura grega desde os
períodos mais remotos de sua formação. Cf. MINOIS, Georges. História do futuro: dos
profetas à prospectiva. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Unesp, 2016, p. 38.

12
Incerteza significa medo. Não admira que sonhemos,
continuamente, com um mundo sem acidentes, um mundo
regular. Um mundo previsível. Não um mundo de rosto
impenetrável – ainda que alguns filósofos, como Leibniz,
estejam certos ao afirmarem que mesmo um “mundo perfeito”
não seria perfeito se não contivesse alguma dose de aflição, ao
menos que esta aflição seja confinada a recintos
confiavelmente cercados, bem mapeados e estritamente
vigiados e guardados, de modo que se possa saber o que é o
quê, onde as coisas estão e quando deve-se esperar que
alguma coisa aconteça – e estar pronto para enfrentá-la
quando vier. Em suma, sonhamos com um mundo no qual
possamos confiar e acreditar. Um mundo seguro. (BAUMAN,
2007, p. 100)

Este embate agonístico – que por vezes é chamado simplesmente a


condição humana – fez com que o homem lançasse mão de toda sorte de
artifícios. Assim, enfrentar face a face essa hostil e insaciável esfinge – que, de
todo modo, o devorará – tem sido a força propulsora de procedimentos
alucinatórios, esforços preditivos e exercícios ficcionais como os oráculos, as
profecias, as adivinhações, a astrologia, as futurologias, a ficção científica e, é
claro, as mais variadas, encantadoras e elaboradas formas de utopia. E todas
essas formas antiquíssimas e recentes de predição4 são, em síntese, tentativas
humanas de domar o indomável futuro, colonizar o lugar das incertezas. Elas
são estratégias no combate, artifícios para contrapor a insegurança do porvir,
formas de interpretá-lo, de conhecê-lo, de prevê-lo, de delimitar os seus
contornos, e até de obliterá-lo, estabelecendo os parâmetros de possibilidades
de sua genesis.
As utopias, em especial, além da propensão – implícita ou explícita,
consciente ou inconsciente – de lidar com o tempo (especialmente com o
futuro, até quando aparentemente se refere ao passado5) têm o corolário de

4
Segundo Minois (2016, p. 10), as predições parecem fazer parte essencial da condição
humana, visto que podemos encontrá-las nas mais remotas manifestações da cultura: “(...)
prova do papel essencial da predição na condição humana: nos primeiros traços escritos
deixados pelas civilizações do Oriente Próximo, a atividade de adivinhação é mencionada e
visivelmente tem um papel social fundamental. Na Mesopotâmia, no mundo caldeu e assírio-
babilônico, as tabuinhas de argila falam desde o III milênio de uma profusão de práticas
divinatórias como a lecanomancia (consulta pelo óleo), a teratomancia (presságios feitos a
partir de deformações), a oniromancia (estudo dos sonhos premonitórios)”
5
Muito embora alguns textos tradicionalmente tidos por utopias se refiram a uma espécie
qualquer de paraíso perdido, de onde o homem saiu ou, por alguma infelicidade, foi expulso,
quando a ele se refere projeta no futuro a possibilidade – reconhecida ou velada – de
reencontrá-lo, de reconquistá-lo ou reconstruí-lo, retirando, assim, do passado possibilidades
para o futuro.

13
esquadrinhar as sociedades reais – pensar a vida real – a partir das quais
encontram subsídios imaginativos para criar os elementos que constituiriam os
seus alter mundi, erguidos utopicamente.
A utopia vê o presente, mas os seus olhos não estão adstritos a ele. Ela
desenvolve uma forma exclusivamente sua de lidar com este fiel inimigo
misterioso, o tempo:

A utopia se opõe ao presente, já que sua principal razão de ser


é criticá-lo, contrapondo-lhe uma situação ideal. A utopia não
está no passado, ainda que às vezes empreste deste último os
traços da era de ouro. Nem no presente nem no passado, ela
também não está claramente no futuro; está fora do tempo, que
é seu principal inimigo. Mas na medida em que não é
concebida exclusivamente como um sonho, sua única
localização possível é o futuro. Um futuro mal definido, situado
nesse espaço de liberdade que se encontra entre o impossível
e o inevitável. (MINOIS, 2016, p. 85)

A prematuridade é-lhe, pois, um atributo importantíssimo. Não faz


sentido, desse modo, considerar-se utópico um discurso que não apresenta um
tempo novo ao tempo presente. Exatamente por isso, diz-se que há uma marca
recorrente às utopias, que compreende dois aspectos, duas maneiras de lidar
com o tempo: o espírito utópico é um espírito crítico-criativo. Assim, explícita ou
implicitamente, consciente ou inconscientemente, ele é responsável pelo
trabalho de contrapor o que é ao que julgamos que deva ser, o hoje a um
imaginado amanhã, e/ou o aqui a um idealizado alhures.
Resultados do espanto de pensar a vida, o mundo e o si mesmo, e de tal
espírito crítico-propositivo, um sem-número de obras – ficcionais ou não –
foram compostas em torno do afã imaginativo de descrever um lugar e/ou um
tempo, uma circunstância do bom-viver, da justeza, da inteireza, da virtude, ou
até mesmo, no caso de algumas dessas tentativas, da perfeição moral e
política. E o mais interessante é que, assumindo a ideia caríssima a Richard
Rorty bem como a outros autores contemporâneos, de que “modificando o que
falamos modificamos quem somos”, essas histórias tiveram, têm e terão
implicações civilizatórias cujos sentidos e alcances são insondáveis,
especialmente no que tange à vida política e moral nas sociedades reais
presentes e futuras.

14
Precisamente por considerar o incontornável potencial transformador
que as narrativas desempenham na vida social, muitos foram os pensadores
na história da filosofia política que se valeram da sistemática utopista para
descrever as suas noções de bem, de boa-vida, felicidade e justiça. São eles,
por assim dizer, world makers, arquitetos de mundos, em vista de sua
capacidade de projetar possibilidades, de especular sobre circunstâncias
sociais cujos fundamentos parecem incompreensíveis, improváveis e/ou
inaceitáveis aos seus interlocutores contemporâneos. Tais concepções de
bem, boa-vida, felicidade e justiça, resguardadas as particularidades de cada
uma, recorrentemente estão relacionadas a certos valores como a
humanização do trabalho, a igualdade de tratamento e oportunidades a
homens e mulheres, a justa distribuição da riqueza, a liberdade de consciência
– pensamento e expressão –, a universalização da educação, a liberdade
religiosa, e outros afins.
Esses valores, que se repetem em uma profusão de obras literárias e
filosóficas de caráter utopista, chegam ao nosso tempo ainda como uma galeria
de sonhos ou de ideais a se perseguir. Especialmente para homens e mulheres
que ainda veem na justiça social e na defesa do ser humano ideias pelas quais
vale muito a pena viver ou, até mesmo, valeria a pena morrer, essas ideias são
um horizonte a que objetivamos. E o mais importante não é se conseguimos
conquistá-los, parcialmente, mas que continuemos lutando por eles.
O filósofo estadunidense Richard Rorty (1931 – 2007) encontrou em
valores como esses – a democracia, a solidariedade, a liberdade e a justiça
social – o ideal máximo a defender por meio de sua produção intelectual. Em
sua retórica moral e política, posicionou-se também como um world maker ou
como um poeta forte – alguém capaz de imaginar e apontar um norte para a
construção de um mundo mais justo e melhor.
Mesmo no ocaso do século XX e início do século XXI, tempo em que o
senso comum e até o trabalho de autores consagrados bradam o fim de todas
as esperanças, o descrédito das grandes narrativas ou, como preferem alguns,
a morte de todas as utopias, Rorty encampa uma proposição por demais
desafiadora: a esperança, ou o sonho, de que ainda construiremos um mundo
para o qual sequer existem palavras apropriadas a descrê-lo, uma utopia
cosmopolita liberal-democrática, fundada na solidariedade e no diálogo, onde

15
não haverá mais a banalização da crueldade entre os cidadãos ou de qualquer
atitude de humilhação de um homem por outro homem.
Este trabalho se apresenta como a culminância da pesquisa acerca de
como Rorty foi capaz de defender algo tão aparentemente anacrônico. E se a
retórica rortyana permite concluir que, para o autor, essa utopia não era um
sonho irrealizável, mas uma utopia do possível, uma estrada – difícil de
vislumbrar e descrever pormenorizadamente – que as pessoas e os povos
podem percorrer, criando para si mesmos um mundo inimaginavelmente
melhor. Não a única estrada possível, mas a melhor que somos capazes de
imaginar hoje. Desse modo, objetivamos expor que, para Rorty, mais que um
método, sua utopia seria também uma meta.
O processo de discutir e demonstrar tais ideias parte da assunção de um
objetivo geral e três específicos. A saber, como objetivo geral, pretendemos
reconhecer o pensamento filosófico de Rorty como o projeto de uma utopia
cosmopolita liberal-democrática importante no cenário da reflexão política
contemporânea; já como objetivos específicos pretendemos: 1. Descrever a
utopia, em sentido lato, como um instrumento de reflexão política; 2. Analisar a
utopia rortyana, buscando esclarecer as particularidades dessa proposta
política; 3. Investigar a crítica de importantes autores ao pensamento político
de Rorty, especialmente ao seu conceito de utopia cosmopolita liberal-
democrática.
Em termos estruturais, a organização básica desta Tese se estabelece
em um esquema de tópicos e subtópicos, dividindo-se o texto em três
capítulos, que, a despeito de terem suas especificidades resguardadas,
manterão a unidade e a coesão textual que possibilitarão traçarmos um fio de
Ariadne, uma condução, para a coerência da discussão do tema em tela.
O primeiro capítulo, cujo título é “Contingência, utopia e alter mundi”,
discorrerá sobre aspectos esclarecedores gerais acerca do conceito de utopia,
sobre as características mais recorrentes ao discurso utópico, aspectos da
vastíssima literatura que se estabelece em volta do espírito utópico – tomando
como um marco a obra Utopia, de Thomas Morus, que, no ano de 2016
completou 500 anos de edição, texto que viria a definir os contornos dos
escritos utopistas na Modernidade, e abriria caminhos para um gênero literário
de romances utópicos. Além disso, abordará uma apresentação de três

16
posturas teóricas muito relevantes acerca das utopias: o antiutopismo –
especialmente na retórica de pensadores como Karl Popper e Isaiah Berlim –,
as utopias do possível – representadas, principalmente pelo pensamento
marxista, por Herbert Marcuse e pelo sociólogo Karl Mannheim – e as utopias
do impossível – nos termos, principalmente, de Bronisław Baczko.
Por fim, o capítulo I compreende ainda a acalorada discussão a respeito
do futuro da utopia: se faz sentido afirmar que vivemos, ou que viveremos em
breve, um tempo de ocaso para todas as utopias, como anunciam algumas
vozes altissonantes do cenário político-filosófico e literário.
Evidentemente, não se pretende, nos limites deste primeiro capítulo –
nem mesmo nos limites de todo o trabalho –, fornecer uma classificação
exaustiva ou teorização cerrada suficiente ou, menos ainda, definitiva das (ou
sobre as) utopias, uma vez que os escritos literários não se realizaram
seguindo este ou aquele padrão limitante, mas, como se verá em um de seus
atributos, são marcados pela capacidade de imaginar, livre e criativamente,
desenhos sociais os mais fantásticos e diversos.
O segundo capítulo, A política em Rorty: uma utopia cosmopolita
liberal-democrática, é a seção que mais diretamente empreende a tarefa de
discutir os problemas norteadores da pesquisa, a saber, dois problemas
principais: 1. Fazer uso do recurso da utopia – como método – é ainda uma
opção razoável ao pensamento filosófico-político mesmo no século XXI,
quando muitos bradam o fim das utopias e grandes narrativas? 2. Como se
situa o pensamento político-filosófico de Richard Rorty, que compreende uma
utopia liberal-democrática, no cenário político da contemporaneidade? Apenas
como um método ou também como uma meta?
Responder a essas questões centrais também nos lavará, não apenas
no capítulo II, mas em todo o texto, a confrontar uma grande quantidade de
outras questões secundárias e importantes, tais como: que significados e que
alcance podem ter, na escrita rortyana, expressões como “utopia”,
“cosmopolitismo”, “liberalismo”, “democracia” e “solidariedade”; se há uma
coerência interna à produção intelectual de Rorty aqui analisada quando o
próprio filósofo opta por denominar utópico o seu pensamento político; por fim,
se Rorty encara a sua utopia como um projeto revolucionário ou como uma
projeto reformador.

17
O terceiro e último capítulo – A política rortyana é uma utopia do
impossível? Rorty sob fogo amigo e sob fogo inimigo – é, metodologicamente,
uma expansão do segundo. Nele, a retórica rortyana será colocada sobre o
pano de fundo de outros diversos discursos importantes do pensamento
político contemporâneo. Assim, pensadores com os quais Rorty manteve um
diálogo direto e contínuo relativo à sua posição política ou aqueles cujas obras,
de algum modo, criticam o pensamento rortyano – como, por exemplo, Richard
Bernstein, Roger Scruton, Francis Fukuyama, Chantal Mouffe, Zygmunt
Bauman, Carvalho Filho e Ernesto Laclau – serão acessados para que suas
ideias sejam superpostas ou contrapostas à visão rortyana.
Nas Considerações Finais revisito e amplio os pontos principais da
argumentação, caracterizando a perspectiva rortyana como um pensamento de
esperança, como um ponto de onde partir na tarefa de construir um mundo
melhor, mais solidário, inclusivo, liberal e democrático.

18
CAPÍTULO I

Contingência, utopia e alter mundi

You may say I'm a dreamer


But I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one.

(Imagine, John Lennon)

Fala-se costumeiramente no homem como “aquele que pensa”, um ser


essencialmente6 “sapiens”, pensante7. Muitos, ao longo de toda a tradição
filosófica, consideram que exista uma essência comum a todos os homens,
algo que mereça ser dito “natureza humana” e, dentre estes, há os que
defendem não ser despropositado incluir na abrangência de tal conceito uma
qualificação especial: o homem seria também “aquele que sonha”.
A capacidade de imaginar, projetar realidades que escapam àquelas
vividas cotidianamente, foi, sem dúvida, um dos motores de sua existência,

6
Falar-se de algo essencialmente humano pressupõe certa concepção de Homem muito
recorrente na história do pensamento ocidental, a aceitação de que exista uma Natureza
Humana, um complexo de atributos comuns a todos os homens, que os fazem pertencer à
mesma espécie e compartilhar algumas marcas indeléveis. Esta não é, no entanto, uma
questão pacificada, uma ideia acatada indiscriminadamente. A partir, principalmente, da atitude
dos poetas românticos, muitos são os artistas e pensadores que a negaram e propuseram o
abandono de qualquer crença decorrente do pressuposto da uniformidade essencial do
homem. Toda a retórica de Richard Rorty, por exemplo, como se verá adiante, combate esse
ponto de partida, pretende-se liberto desse pressuposto, desenvolvendo um pensamento anti-
essencialista, antifundacionista e, especialmente, antiplatônico, chegando, evidentemente, a
resultados bem diferenciados em termos de Moral e de Política.
7
A respeito disso, Wolff comenta: “da Antiguidade chegou até nós a ideia e que o homem é um
“animal racional”, isto é, um organismo vivo distinto de todos os outros, porque dotado de logos
(linguagem? razão?). Essa ideia, que tem origem na filosofia de Aristóteles, encontrou de que
se alimentar e se desenvolver no Estoicismo, depois atravessou os séculos, passou para os
padres da Igreja, em especial Santo Agostinho, em cuja obra a fórmula assumiu uma feição
claramente dualista – sendo a animalidade o destino do homem depois da queda e a
racionalidade a marca do espírito; foi retomada na filosofia tomista, onde recuperou um sentido
mais aristotélico – sendo a racionalidade entendida como a forma da animalidade; depois foi
criticada por Descartes” (WOLFF, 2012, p. 10). Conceituar o homem como um “ser pensante”
é, pois, uma ideia que se torna muito forte na tradição do pensamento filosófico, desde a
Antiguidade, até a Modernidade e chega a nosso tempo ainda com muito fôlego, servindo de
pressuposto a muitas concepções antropológicas, jurídicas e filosóficas.

19
compondo os mecanismos de enfrentamento da consciência da própria finitude
e atestando o seu status de um ser histórico, autor – ou, no mínimo, co-autor –
da narrativa de si mesmo:

Pela maior parte da história de nossa espécie, estivemos


enraizados em mundos que ultrapassam o domínio do “normal”
ou da consciência cotidiana, encontrando significados na vida a
partir de uma compreensão da morte e do além. Para prover
maior continuidade a nossas breves vidas, imaginamos
passados e futuros que se ajustam na narrativa do presente
que consideramos mais confortante. (CLAEYS, 2013, p. 8)

Essas projeções – desenhos de realidades capazes de proporcionar


algum sentimento de proteção, segurança e alguma sensação de estabilidade
frente à constante instabilidade e hostilidade da sociedade real, e à expectativa
de um futuro ainda pior – acompanham, pois, o homem pari passu, por toda a
sua história, moldando-a e por ela também sendo modelada. Nesse sentido, a
utopia revela um caráter eminentemente antropocêntrico8, uma vez que se trata
de uma busca por construir – mesmo que imageticamente – uma circunstância
de maior segurança e de melhoria de vida do homem para o homem. A utopia
não é o apelo à misericórdia divina. Ela não é o homem se reconhecendo
pequeno ante a grandiosidade de um ser transcendente, mas o homem
reconhecendo que pode construir – novamente, ainda que por meio da ilusão,
do sonho ou da imaginação9 – um mundo melhor. Trata-se, pois, de uma
redenção do homem pelo homem, e não de uma espécie qualquer de
salvação10.
Desse modo, suas reflexões sociológicas e filosóficas – política e moral,
em especial –, inevitavelmente, estariam diante destas projeções utópicas.
Lessa (2017, p. 113) esclarece que:

8
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo. Trad. Ana Cláudia Romano Ribeiro. Morus: utopia
e renascimento. Vol. 02. 2005. 123 – 135, p. 128.
9
Essa é, inclusive, uma das características da utopia liberal democrática de Richard Rorty, que
será considerada com mais atenção nos capítulos seguintes. A imaginação como o veículo da
mudança social e do progresso moral.
10
Há textos antigos e medievais que trazem algumas características da literatura utópica
atreladas a uma em especial: a realidade ideal que propugna não deverá ser conquistada pelo
homem através de seus méritos próprios, ou porque está acima da realidade meramente
humana, como em Platão, ou porque é uma fatalidade que independe do arbítrio humano,
sendo imposta ao homem pela superioridade divina. Tais textos, pré-modernos, são tidos por
muitos estudiosos como as raízes do utopismo, mas não, propriamente, como utopias, no
sentido que essa palavra herdará da modernidade.

20
A tradição da filosofia política, mais do que exibir uma
sucessão de sistemas constituídos pelos azares da história e
por contextos particulares, como sustentam os historiadores
das ideias, indica a presença de uma miríade de esforços
continuados de configuração de mundos sociais possíveis. É
como se a pergunta aforismo de Paul Valéry – o que seria de
nós sem o socorro do que não existe? –, por algum efeito
misterioso de retroação, estivesse presente desde a origem – e
durante todos os trajetos – da tradição da filosofia política.

O próprio sentido etimológico da palavra utopia11 aproxima,


curiosamente, duas facetas, duas possibilidades de significação: por um lado,
um não-lugar, um lugar algum, um lugar que não existe; por outro, um algum
lugar, um lugar incontornável, mas existente, e, além disso, um lugar melhor.
Perpassando essa aproximação, Maffey explica que chegar a uma definição
pacífica do verbete “utopia”, e das expressões a ele correlatas, seria tarefa
extremamente complexa, uma vez que a utilização do termo em diversos
domínios acabou por lhe emprestar uma multiplicidade de sentidos: “utopia,
utopista, utopismo, utopístico e utópico não têm o mesmo significado para
todos” (MAFFEY, 2016, p. 1283). Precisamente por isso é comum encontrar-se
o vocábulo modificado por alguma palavra que ou restringe ou amplia seu
sentido usual, tais como em “utopia revolucionária”, “utopia radical” ou “utopia
total”.
Circundando o conceito, a despeito da maleabilidade de seus contornos,
há alguns traços que podem ser considerados recorrentes à postura e ao
discurso utópicos. As utopias têm como ponto de partida o real, o aqui e o
agora. A capacidade de observar a realidade é que proporciona as condições
necessárias à imaginação de um alter mundi, como realidade ideal. Há,
portanto, inerente ao pensamento utópico, um elemento de crítica – apreciação
do que é – e uma proposição – sugestão do que poderia ser –, mesmo que
velada12. A postura utópica é uma postura crítico-criativa13. Vázquez (2001, p.
317) evidencia seu caráter crítico e subversivo:

11
Opto por apresentar uma análise etimológica, mais convenientemente, no item 1.4.1 deste
trabalho.
12
Observe-se que se fala em uma postura crítico-propositiva. Não é o papel da utopia fazer tão
somente a leitura jocosa da vida, algo como a sátira social, mas ir além disso, apontando para
as possibilidades de se ter algo diferente – mesmo que, muitas vezes, bem improvável –
daquilo que atualmente há.

21
A utopia se faz necessária quando não se aceita o que é e,
portanto, se faz necessário transcendê-lo. Ao questionar o real
(a sociedade, o poder, seus valores e instituições) e abrir um
espaço ideal, irreal ou futuro, a utopia é subversiva. Subverte o
real e abre uma janela para o possível.

Tal atitude, simultaneamente subversiva, crítica e propositiva, tem


tamanha recorrência e importância para a caracterização das utopias que
Mannheim o considerava como algo essencial. Para ele, a mentalidade utópica
– em contraposição às ideologias conservadoras – só é verificável se o
conjunto de ideias propostas está em posição de confronto com a realidade
presente e, por conseguinte, orienta a ação das pessoas para posturas que a
sociedade atual – ainda – não admite.
Platão, com uma das alegorias mais famosas da história do
pensamento14, construiu a sua Calípolis, terra de virtude, lugar de eudaimonia.
E ele não foi o único autor grego a fazê-lo, como contraposição à pólis.
Diôgenes Laêrtios15 descreve uma outra República, menos conhecida do
grande público de hoje, de autoria de Zenão de Cício16, obra eminentemente
crítica da sociedade e dos costumes helenísticos em que o autor se utiliza de
um modelo de organização política extremamente aristocrática – em que o
governo seria exercido pelos sábios, únicos indivíduos considerados cidadãos,
a quem tudo seria permitido em detrimento dos demais elementos:

Mais do que um projeto político-jurídico realista, a república


zenoniana era uma provocação à decadente pólis grega, que
se pavoneava de maneira vaidosa e falsa de uma glória que já
não mais possuía desde a submissão a Alexandre e,
posteriormente, a Roma. (MATOS, 2017, p. 231)

13
LEVY, Nelson. Crítica e utopia. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p. 22.
14
Coelho afirma que Platão expõe tal alegoria, especialmente, em três diálogos principais, a
República, as Leis e, por fim, Crítias. Mas as ideias fundamentais à estruturação e
funcionamento de sua Calípolis são extravagantes, encontrando-se dispersas em todo o
universo de sua obra. Cf. COELHO, Teixeira. O que é utopia? São Paulo: Brasiliense, 1985, p.
20.
15
Cf. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. 2. Ed. Trad. Mário da
Gama. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 181. Apenas uma pequena parte dessa
obra chegou à contemporaneidade. Basicamente, tudo o mais que se sabe sobre ela é oriundo
de citações da época como a de Laêrtios.
16
Zenão de Cício (333 a.C. – 263 a.C.), filósofo fundador da escola estóica.

22
Para Minois17, os gregos encontram na utopia um sucedâneo para os
oráculos e outras formas populares e remotas de predições, quando estas já se
viam em um processo contínuo de perda de credibilidade. Hipodamos de
Mileto, no século V a. C., arquitetou uma cidade ideal, tecendo, com uma
riqueza de detalhes impressionante, a sua estrutura física, a composição e o
funcionamento da sociedade lá estabelecida. Aristófanes, em As aves, ergueu
a sua “Cucolândia nas nuvens”, uma cidade ecológica imaginária, situada entre
o céu e a terra, onde o homem não se encontra à mercê dos caprichos dos
deuses e onde não há mais a necessidade de espécie alguma de predição.
Pode-se afirmar que estas primeiras expressões utópicas seriam, assim, o
resultado da dinâmica cultural em que várias formas de predições, incluindo os
famosos oráculos, se encontravam e mediam as suas forças na credibilidade
dos gregos, traçando panoramas do presente e do futuro e questionando
aspectos da vida moral, política e cultural.
Quando, tempos após, Platão incluía, por exemplo, a necessidade de
que as mulheres tivessem igualdade de acesso à educação na sua Calípolis,
fazia-o certamente contra o pano de fundo de uma Grécia em que a
segregação da mulher era prática social corrente. Quando apregoava a
Sofocracia, fazia-o a partir da constatação dos vícios que, em sua perspectiva,
eram inerentes à democracia de então. E quando reestruturava a noção de
família, fazia-o para que o sentimento de solidariedade social entre os cidadãos
de sua República se estabelece em termos mais abrangentes que o
parentesco, para que houvesse maior coesão social.
E, do mesmo modo, quando Thomas Morus, já no Renascimento,
publicou Utopia, em que limitava a jornada diária de trabalho dos cidadãos ao
total de seis horas, fazia-o contra o pano de fundo de uma Inglaterra em que
havia uma flagrante desumanização do trabalho. Quando bania a ostentação
da vida dos utopianos, fazia-o, certamente, por se deparar com ela na vida
cotidiana dos ingleses de seu tempo.
Precisamente por esta razão – por posicionar-se como um observador e
julgador do aqui e agora – o impulso utópico é tão recorrente às conjunturas

17
MINOIS, Georges. História do futuro: dos profetas à prospectiva, p. 85.

23
sociais estremecidas18, agonísticas, mostrando-se uma opção usual às
circunstâncias de crises, uma espécie de “tábua de salvação” para o naufrágio
que parece se anunciar, e que nem todos são capazes de perceber. Em
relação a tal ideia, Minois, observando a evolução histórica da utopia como
gênero literário e seu impacto no Século das Luzes, que é, para ele, o apogeu
da produção intelectual em torno desse gênero, afirma que:

Se a utopia é a marca de uma insatisfação com o presente, o


século XVIII é uma época de crise profunda. Que os
intelectuais tenham sentido tamanha necessidade de imaginar
mundos melhores indica uma grave insatisfação, o que
concorda com a impressão que se tem da análise das obras
históricas. (MINOIS, 2016, p. 487)

Apesar de partir da realidade dada e de se apresentar como uma luz


distante, no fim do túnel, a se seguir, não é exigível à utopia que ela idealize
invariavelmente uma total reestruturação social. Muitas vezes, ela aponta para
a direção da melhoria de alguns aspectos que já se mostram meritosos no
contexto presente, mas que podem ser melhorados, além do abandono das
estruturas já em decadência, desde que estas melhorias institucionais não se
limitem a aspectos de somenos relevância, modificando a vida das pessoas de
uma forma marcante.
No percurso de criar e pensar sobre mudar a vida e o mundo, as
pessoas enfrentaram os seus problemas e suas limitações individuais e
também estiveram diante de desafios e limitações coletivas. Exatamente por
isso, sonharam estritamente para si – em seus projetos de auto-realização
individuais – e sonharam também para nós, para a coletividade, imaginando
estruturas sociais diferenciadas daquelas que lhe estão postas. Nesse caso,
em que as transformações sociais imaginadas são estendidas à satisfação das
necessidades e desejos abrangentes, comunitários, pode-se falar em uma
imaginação utópica. E é a partir desta capacidade-necessidade de imaginar
utopicamente – quer defrontando-se com a alteridade e projetando um alter
mundus, quer imaginando a reformulação do mundo que já se tem – que a
18
Retomando o exemplo da utopia platônica, foi justamente em uma situação de profundo
desgosto e desconfiança em relação ao presente que o já velho Platão escreveu alguns de
seus diálogos importantes em que essa ideia toma corpo. É o caso, por exemplo, de As leis.
Segundo Minois (2016, p. 87), ele se encontrava já “decepcionado pelos homens, abatido pelo
desastre da Guerra do Peloponeso” e sem mais nenhuma confiança nas predições do futuro.

24
tradição antropológica e filosófica dá ao homem, também, a alcunha de homo
utopicus.
Dessa maneira, uma utopia é um ideal para a coletividade, é a
proposição de um modus vivendi mais equilibrado, justo e harmônico para as
pessoas de uma coletividade e não apenas para um bem-nascido com quem a
fortuna, ou a sorte na loteria da vida19, foram muito benevolentes:

O sonho pode ser compensação, tanto em nível espiritual,


como em nível material, e tanto num caso como no outro não
assume relevo de Utopia política, se o ideal a ser realizado não
nasce de uma organização comunitária que ofereça uma
solução definitiva aos problemas de ordem econômica e social.
(MAFFEY, 2016, p. 1285 - 1286)

É imperioso, portanto, que se diferencie utopia dos desejos, sonhos e/ou


projetos de auto-realização individuais, mesmo aqueles que tenham também
um caráter radicalmente subversivo e progressista, capazes de transformar
sobremaneira a vida de uma pessoa.
Uma utopia não se resume a um simples plano de governo. Ela se
concentra em imaginar e construir imageticamente um mundo
significativamente melhor, uma sociedade harmônica, distante – no tempo e/ou
no espaço – daquele que se tem na realidade, e não em descrever, como se
faz em um plano de governo, quais são os caminhos que se deve trilhar, e os
preços que se deve pagar, para que este mundo melhor seja, de fato,
implantado em um dado espaço de tempo. Isso, entretanto, de modo algum
implica que os ideais de uma utopia não possam servir de faróis, sendo
mirados, objetivados, perseguidos, característica, aliás, que será mais bem
discutida a diante.

19
John Rawls, eminente pensador contemporâneo, utilizou a expressão loteria da vida, em
“Uma teoria da justiça” para se referir ao fato de que “a vida não é justa”, uma vez que algumas
pessoas nascem em condições econômicas muito privilegiadas, enquanto outras precisam
enfrentar realidades muito adversas desde a mais tenra infância. Sua intenção enquanto
pensador de filosofia política, ao desenvolver a teoria da justiça como equidade, foi a de
encontrar mecanismos teóricos possibilitadores de fair play, isto é, imaginar e descrever os
Princípios de Justiça capazes de corrigir as desigualdades e injustiças sociais advindas não do
mérito das pessoas, mas da pura sorte. Carvalho Filho (2006, p. 27), afirma que o impacto de
Uma teoria da justiça na discussão política foi tamanho que parecia representar o triunfo
inquestionável do liberalismo: “o liberalismo estaria consolidado como o paradigma vencedor
na filosofia política, ao ponto de se chegar a afirmar que parecia então impossível a qualquer
um deixar de ser, efetivamente em algum sentido, liberal”.

25
O aspecto projetual das utopias é, por conseguinte, um atributo de
enorme relevância para a sua caracterização. Um pensamento ou um texto em
que se propugna uma decorrência óbvia das condições ou dos processos
sociais presentes não poderá ser dito uma utopia. Muito embora tenha raízes
fincadas nessas condições sociais reais, a utopia enxerga a possibilidade do
novo, acreditando, mesmo que apenas como um background, na capacidade
da razão humana, e/ou de sua ciência, de intervir nos mecanismos sociais e
melhorar a vida do homem. E, em sua maioria, o impulso utópico – e em
decorrência, a literatura utópica – costuma ser mais revolucionário que
reformista. Evidentemente, em sentido contrário, alguns autores em particular,
cuja vocação parece mais literária que filosófica, traçaram ideais de vida
comunitária tão singularmente extravagantes, em relação ao contexto social em
que estavam inseridos, que, de certo modo, obstaram radicalmente quaisquer
identificações ou reconhecimentos entre o agora e o imaginado alter mundus.
Em relação a esse aspecto propositivo, e ao grau de detalhamento dos
das sociedades idealizadas pelas retóricas utópicas, Jacoby evidencia a
existência de duas tendências no pensamento utopista: a tradição projetista e a
tradição iconoclasta20. Os projetistas são aqueles literatos que em seus textos
prezaram pelo máximo detalhamento das sociedades ideais que descreviam,
concentrando-se em fazer o mapeamento de cada aspecto de seus alter
mundi. Grande parte da literatura utópica respira esse ar – já presente em
Platão, como um gosto pelo detalhismo descritivo, expresso no contar,
enumerar, ordenar muito cuidadosamente –, constituindo-se de narrativas em
que o gênio criativo do autor chega a estabelecer os pormenores do lugar, do
tempo ou da rotina de vida, idealizados. Na Utopia, Morus, segundo Jacoby
(2007, p. 16), faze-o com um preciosismo exemplar, descrevendo a rotina dos
cidadãos utopianos:

Para solucionar a segregação etária na utopia de More, por


exemplo, velhos e jovens sentam-se em grupos alternados de
quatro pessoas. O jantar começa com “uma peça de literatura
educativa lida em voz alta (...). A seguir, os mais velhos
começam a discutir problemas sérios”.

20
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época
antiutópica.Trad. Carolina de Melo Bonfim Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007,
p. 15.

26
Morus, na verdade, chegou a mencionar21 os vasos sanitários, feitos de
ouro – desconcertantemente, para os leitores de sua época – que seriam
utilizados pelos cidadãos22.
O monge e filósofo italiano Tommaso Campanella (1568 – 1639), por
sua vez, demonstrando também a intenção de descer aos detalhes cotidianos
da vida na sociedade por ele imaginada-descrita, vaticinou que em sua Cidade
do Sol23, os cidadãos, os solarianos, viveriam em tal qualidade de vida que
seriam imunes a doenças incômodas como a gota e o reumatismo, e até às
inconvenientes e desconcertantes flatulências.
Já Robert Owen (1771 – 1858), em seu Livro do Novo Mundo Moral – de
1836 – com o mesmo ímpeto, descreve uma estruturação arquitetônico-
urbanística minuciosamente planejada, em que as cidades contam com
espaços especiais destinados ao convívio social, como as praças e pomares, e
as casas dispõem de sistema inteligente de aquecimento, com quantidade
padronizada de cômodos.
Para Jacoby24, essa riqueza de detalhes, característica dos textos das
utopias projetistas, de certa forma, condiciona o porvir, uma vez que sempre o
imagina e o descreve com as possibilidades da linguagem presente. Isso tem
um efeito castrador, restringente, da sociedade futura, afastando ou
abstaculizando que se possa conceber um desconhecido absolutamente novo.
Evidentemente, delimitar o futuro oferece leveza ante o peso esmagador da
incerteza e da contingência.
Em contraposição ao detalhismo dos utopistas projetistas, os chamados
utopistas iconoclastas ou antiprojetistas, procuram ser prudentes e comedidos
para com o procedimento descritivo. Eles oferecem a imagem idealizada de
uma sociedade melhor, apresentam as suas retóricas crítico-propositivas, mas
se abstêm de estabelecer contornos muito nítidos, definições muito acabadas,
21
MORE. Thomas. Utopia. Trad. Márcio Meirelles Gouvêa Júnior. Belo Horizonte: Autêntica,
2017, p. 121.
22
A utilização de metais nobres, como o ouro e a prata, para a fabricação de utensílios pelos
utopianos não deve ser interpretada como um sinal de luxo ou ostentação. Ao contrário disso,
pessoas que devessem ser marcadas, estigmatizadas, os apenados, é que eram obrigados,
por força, a utilizar argolas, anéis, correntes ou coroas de ouro.
23
La cittá del sole , obra publicada em 1602, durante o período de 20 anos em que o autor
esteve encarcerado, sob acusação de heresia.
24
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica, p.
65.

27
minuciosas, de como será cada pequeno aspecto da vida cotidiana. De certo
modo, para esses escritores, literatos e/ou filósofos, não há como delimitar e
descrever precisamente o futuro. Ele só pode ser vislumbrado precariamente
por meio de aproximações e estimativas. Como um exemplo de utopista
iconoclasta, por sua vez, Jacoby (2007, p. 17) cita Ernest Bloch (1880 – 1959),
e seu The Spirit of Utopia:

O Spirit of Utopia, de Ernest Bloch, obra clássica do gênero, de


1918, não oferece qualquer detalhe concreto sobre o futuro.
Ele invoca um espírito utópico puramente por meio de suas
reflexões sobre a música, a poesia e a literatura.

Jacoby considera25 duas ascendências profundamente importantes para


este cuidado em não cerrar os limites do futuro utópico. Primeiramente, uma
marcante influência da cultura e da religião judaicas sobre uma enorme
quantidade de utopistas iconoclastas26. Assim como quando se trata da
inefabilidade de Deus – que resulta em um sentimento e em uma atitude de
respeito tal a ponto de se proibir representações ou quaisquer espécies de
imagens da divindade e de se considerar inconcebível tentar nominá-lo ou
sequer qualificá-lo – o futuro, a sociedade idealizada, é também algo de
contornos indefiníveis. Tentar descrever todos os espaços de sua trama –
desenhar a forma do futuro – seria algo como tentar enxergar o fim do infinito.
Em segundo lugar, a postura iconoclasta, ou antiprojetista, é também
ressonância do espírito do romantismo, especialmente no século XIX, mais
especificamente, da tradição romântica alemã:

O utopismo iconoclasta teve sua origem não apenas em fontes


judaicas, mas também no idioma romântico da Alemanha fin de
siècle. Ideias de “Geist”, “sociedade”, “experiência”, “unidade” e
“vida” permearam os românticos do início do século XX,
aqueles românticos especializados na transcendência
espiritual. (JACOBY, 2007, p. 66)

25
Ibid., p. 66.
26
Também chama a atenção para o fato de que muitos dos autores iconoclastas não só tinham
forte influência da cultura judaica como eram mesmo judeus. Jacoby expõe um rol
exemplificativo: Martin Buber, Gustav Landauer, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Herbert
Marcuse, Ernest Bloch, entre muitos outros.

28
Pode-se afirmar que, em termos rortyanos, abster-se de tecer os
detalhes de cada aspecto da vida da nova sociedade a que se pretende chegar
– ou que se está a pensar – é, na verdade, reconhecer e respeitar a
contingência – tanto da linguagem quanto da sociedade – inclusive, da
sociedade futura, idealizada, e ter sempre em mente que a dinâmica social não
expira com as conquistas das transformações sonhadas. Isto é, para Rorty,
cada metáfora literalizada será sempre o melhor ambiente possível para o
surgimento poético de outras metáforas, e cada utopia transformada em
conquista civilizacional será sempre o melhor ambiente possível para que se
tenha uma imaginação poético-criativa de utopias sempre novas e
inesgotáveis. É o que Calder (2006, p. 43) pretende dizer quando afirma que
“as metáforas desencadeiam as redescrições que tomam o rumo do
progresso”. Assim, a utopia rortyana é o lugar da continua e interminável
expansão do espaço lógico moral, nela jamais especula atingir o estágio final, a
realização plena, do que quer que seja. Ela não persegue a perfeição, não
alimenta a esperança da linguagem perfeita, nem do homem perfeito, a
democracia perfeita, ou o liberalismo perfeito.
Essa postura, radicalmente acautelatória, dos utopistas iconoclastas – e
de Rorty em especial – evitaria, portanto, permitir-se cair em ideologias de
ascendência milenarista27, como a ideia de “fim da utopia” ou de “fim da
história”, o que já sucedeu a tantos intelectuais importantes, a exemplo de
Hegel, Marx e, mais recentemente, do filósofo nipo-estadunidense Francis
Fukuyama.
Precisamente pela consciência da necessidade desta postura
acautelatória28, Rorty ousava asseverar que o tipo de homem exigido para
habitar a sociedade por ele sonhada – imaginada utopicamente – era de tal
modo fora do alcance de nosso olhar que ainda não existiam sequer as

27
Referente a milenarismo, pensamento cristão-primitivo segundo o qual existe a promessa do
advento de um tempo de plenitude, felicidade e perfeição que durará mil anos. Esses mil anos,
entretanto, são interpretados – a partir da leitura dos textos bíblicos, especialmente as
profecias de João em Apocalipse – como uma “eternidade de um único dia”, um eterno
presente, uma época interminável de paz e tranquilidade.
28
Todo a escrita rortyana é marcantemente acautelatória. Essa característica, longe de se
resumir a uma mera questão de estilo literário, decorre de sua coerência teórica, uma vez que
Rorty – partindo de um profundo antifundacionismo e anti-essencialismo – assume sempre
uma perspectiva deflacionada em relação a muitas das questões tradicionalmente tomadas
como problemas-chaves da filosofia, como, por exemplo, a questão da Verdade.

29
palavras apropriadas para descrevê-lo29. Em consequência imediata, é
imperioso que a dinâmica do mundo e da vida social seja acompanhada pela
dinâmica da linguagem – a invenção de novas palavras e o uso de palavras
antigas com sentido e alcance inteiramente novos –, em um processo
interminável de retroalimentação:

O reino das possibilidades não é alguma coisa com limites


fixos; ao contrário, ele se expande continuamente, na medida
em que o engendramento de novas redescrições sugere ainda
mais o engendramento de re-redescrições. Todo suposto
vislumbre de fronteiras deste reino é de fato uma expansão
dessas fronteiras. (RORTY, 1999d, p. 108)

Tal constatação corrobora com a ideia de que é indispensável que, na


análise da vida social, leve-se sempre em consideração, contiguamente, a
contingência da linguagem, bem como do indivíduo e da própria sociedade.
Podemos afirmar, portanto, que, no contexto dessa utopia rortyana, o
que mais importa não é uma capacidade imaginativa dedicada a descrever
pormenorizadamente um mundo ideal para os parâmetros de hoje, excelente
para o homem atual. Em vez disso, importa construir uma sensibilidade
imaginativa dedicada a pensar tanto uma sociedade como um homem muito
diferentes daqueles que se conhece na atualidade. Por certo, a linguagem atual
não pode mesmo expressar algo que esteja assim tão desmesuradamente fora
de seu campo visual: trata-se de uma sociedade diferente para o homem, e um
homem diferente para a sociedade, o que exige uma linguagem inteiramente
nova e recorrentemente renovável.
A ideia de novo homem, pode ir além, entretanto, das pretensões
utópicas de Richard Rorty, que preconiza o melhoramento do homem a partir
do incremento da sensibilidade para a solidariedade. Não são poucos os
teóricos em nosso tempo a discutirem a ideia de uma revolução biológica do
homem. Para o zoólogo, etólogo e ornitólogo austríaco Konrad Lorenz (1903 –
1989), o homem que habitará o mundo melhor de que tanto se fala desde a
Antiguidade será também um homem melhor, não somente melhorado em sua
consciência moral e política, mas melhorado em seu aspecto biológico,

29
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity. New York: Cambridge University
Press, 1989, xiv.

30
resultado dos melhoramentos motivados por “saltos biológicos” (naturais ou
impostos), a partir do pressuposto evolucionista30.
Conjecturar, pois, sobre esse aspecto da existência humana, tão rico e
instigante, que é a capacidade-necessidade-prerrogativa de imaginar ou sonhar
suscita uma série de questões fundamentais, sobre as quais muitos dos
pensadores até aqui elencados e ainda muitos outros se debruçaram.
Questões tais como: o que de fato representa a utopia para o homem? Pode o
homem prescindir incólume dessa sua capacidade-necessidade? A utopia é o
mobile do espírito romântico, modelando o pensamento e a arte do séc. XVIII e
seguintes? A utopia é necessariamente revolucionária? Utopia e política podem
caminhar juntas? Existe um aspecto perigoso ou nocivo em sonhar? Utopia
pressupõe Totalitarismo? A utopia é compatível com o pensamento acerca do
poder na contemporaneidade, isto é, deve-se levar a sério um pensador que
sustenta uma utopia nos séculos XX e XXI? É admissível estabelecer um ideal
de sociedade justa no ambiente democrático-liberal-capitalista?
Estas questões e outras semelhantes foram objeto da reflexão de
grandes teóricos, desde a Grécia Clássica, que estabeleceram uma profícua e
instigante produção e discussão em torno do conceito de utopia, pensando o
seu alcance, o seu impacto e a relação entre utopia e realidade. Este capítulo
objetiva, pois, discutir alguns dos enfrentamentos a essas questões e alguns
dos diálogos que se estabeleceram a partir das propostas de soluções a elas
apresentadas.
Dentre os problemas acima, a questão possibilidade-impossibilidade
associada à utopia é, sem dúvida, uma das mais instigantes discussões acerca
do conceito aqui discutido, muito provavelmente pelo fato, retomado
pormenorizadamente em sessão posterior deste trabalho, de que a própria
significação do termo e a tradição polissêmica do seu uso, acabaram por
colocá-lo em uma posição muito delicada. Vázquez afirma que “a utopia se
move entre dois extremos, o impossível e o possível” (VÁZQUEZ, 2001, p.
364). Não é, note-se bem, em se tratando de utopia, a realidade o que mais
interessa. É a possibilidade que é relevante. E é imperioso considerar, quando

30
MAFFEY, Aldo. Verbete “Utopia”. In BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco. (Orgs.). Dicionário de política. 13 ed. Trad. Carmen C. Varrialle, Gaetano Loiai
Mônaco, João Ferreira, Luis Guerreiro Pinto Cacais, RenzoDini. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2016, p. 1284-1290. 2 vols, p. 1.288.

31
se fala de possibilidade-impossibilidade, que muito daquilo que se tem por
impossível está, na verdade, sob efeito do véu que a realidade – atual,
conjuntural, mas contingente – impõe a nossos olhos31. Precisamente por isso,
muito do que é impossível, só o é até alguém o realizar. E muitas das
conquistas civilizacionais com as quais convivemos hoje são o resultado de um
aguerrido enfrentamento do impossível pelo homem.
A utopia é, em síntese, um método, uma forma importante e
extremamente plural de imaginação e discussão política dos limites e
possibilidades de estruturação social. Entendê-lo, especialmente,
empreendendo uma investigação das suas características discursivas, das
suas espécies, e, enfim, da sua natureza, possibilitará que tenhamos uma
leitura do pensamento político do filósofo Richard Rorty muito mais acurada, e
capaz de suscitar as reflexões mais oportunas a seu respeito.
Como se fala em imaginação e discussão, na temática da possibilidade-
impossibilidade associadas à utopia, bem como de questões transversais a ela
– como se, mesmo que considerada realizáveis, as utopias são salutares ou se
as tentativas de realizá-las causam mais danos que benefícios às sociedades –
autores de relevo se posicionaram de modo plural e dialógico. Podemos falar,
por exemplo, em utopias do possível, utopias do impossível e, também, em
antiutopismo. Vejamos como se caracterizam cada uma dessas atitudes ante a
problemática utopista.

1.1 Se utópico, mãos à obra: as utopias do possível

Imaginamos as vantagens da vida doméstica e inventamos a


casa. (Baruch de Espinosa, Ética)

A pluralidade de sentidos suscitada pela própria etimologia da palavra


utopia – que permite tomá-la por sinônimo de lugar nenhum, mas também
sinônimo de lugar da boa vida – faz incluir no âmbito da produção utopista
31
Vázquez se refere, nesse caso, ao conceito de “impossibilidade relativa”, diferenciando-lhe
da “impossibilidade absoluta”, que, na verdade, não deixará de ser impossibilidade nem
amanhã nem jamais. Para o autor, o ambiente da impossibilidade absoluta não é o mesmo
ambiente da utopia.

32
autores que expressam confiança na real possibilidade de construção, integral
ou parcial, dos projetos de sociedade que descreviam em seus textos –
romances utópicos ou textos de especulação filosófica. Algumas vezes, esses
autores entendiam a sua própria utopia como a continuidade natural ou como a
decorrência lógica do sistema de coisas precedente, como uma decorrência
inafastável da história.
Um exemplo importante pode ser encontrado no fato de que, ao
posicionar-se em contraposição aos socialistas utópicos, Marx e Engels
pensavam ter descoberto as minúcias dos mecanismos intrínsecos aos
processos históricos, de modo tal que o socialismo, nos termos que eles
apregoavam, não era, em sua perspectiva, apenas uma possibilidade, mas
uma certeza, uma decorrência inevitável de tais processos, gestada nas
relações de produção capitalistas de seu tempo. Exatamente por isso, eles
acreditavam ter a sua produção intelectual um caráter eminentemente
científico, em contraposição às concepções socialistas anteriormente
elaboradas32. Seguindo a mesma lógica, boa parte do pensamento político na
tradição marxista parte da ideia de que os movimentos da engrenagem social
que levarão à chegada – cedo ou tarde – das circunstâncias fatais que
desembocarão no socialismo já são a realidade presente. Isto é, os requisitos –
as forças materiais e intelectuais – que servirão de motor para as
transformações sociais propugnadas, que culminarão com a Revolução
Proletária, já se encontram em pleno exercício na sociedade atual.
Apresentar uma utopia como motivada pelo complexo de transformações
sociais cujo gatilho já foi – ou, inevitavelmente, será acionado – é, de certo
modo, o mesmo que posicioná-la como uma versão melhorada, uma
decorrência, da sociedade já existente. É o mesmo que assumir que não se faz
necessário uma transformação radical, a construção de algo totalmente novo,
mas que se pode imaginar o que se tem no presente em uma nova
configuração mais ou menos desde já delimitada. É, por assim dizer, assumir
uma postura de caráter reformista, em que “a transcendência é sempre
pensada nos limites do imanente” (LEVY, 12, p 45). Para os defensores desta
concepção de utopia, não é exagero tomá-las, entretanto, como as únicas que
são não ficcionais, as únicas que, de fato, podem ser consideradas como motor
32
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 43 e 44.

33
de transformações sociais reais33, como imaginaram os ilustres autores,
fundadores do socialismo científico.
De certo modo, eles partem da ideia de que se existe um modelo
possível de realidade melhorada e, se esta realidade ainda não foi
concretizada, é razoável, e mesmo recomendável, que se pretenda e se
persiga esta concretização. Alguns defendem que mais que a certeza da
factibilidade plena de seus projetos, importa a certeza da viabilidade de
persegui-los. Para quem pensa assim, a conquista já está na busca; o sonho
de erguer um mundo melhor se justifica pela luta em favor de erguê-lo, mesmo
que o sucesso final de tal caminhada não lhes pareça provável, ou mesmo
seja, aparentemente, inalcançável.
Assim, a plausibilidade seria um elemento importante ao conceito de
utopia, diferenciando-a, portanto, de outras formas de imaginar como os
variados devaneios de perfeição ou a ficção científica. Esta plausibilidade é
justamente o elemento capaz de encorajar as transformações sociais reais. Os
autores que assim o consideram não vêem a utopia como “lugar nenhum”. Ela
é o algum lugar. Esse algum lugar é, muitas vezes, descrito nos textos
pretensamente utópicos sob a forma de um lugar que já existiu em algum
momento perdido da história. Outras vezes, um lugar ainda não descoberto,
mas existente. De todo modo, é a sua falta que nos faz querê-lo, sonhá-lo.
Nesta perspectiva, a utopia ocupa um papel mais que importante na
dinâmica das transformações sociais, atuando como uma espécie de
combustível, como aquilo que dá ao homem o afã de seguir buscando,
querendo, sonhando e, na mesma medida, trilhando, abrindo os caminhos e
realizando os quereres.

1.1.1 A utopia em contraponto à ideologia na Sociologia do


Conhecimento de Karl Mannheim

Karl Mannheim (1893 – 1947) é autor fundamental para as bases do


pensamento social moderno. Não apenas por ter dedicado considerável
parcela de sua produção intelectual à questão do método, discutindo
33
Ibid., p. 48.

34
pormenorizadamente a possibilidade e os parâmetros para um método objetivo,
rigoroso e eficiente para a análise das realidades sociais, essencialmente
dinâmicas. Mas também por discutir com sobriedade o pressuposto ideológico
do conhecimento – uma vez que a ciência emerge também da estrutura social,
sendo, portanto, também, uma construção socialmente condicionada – além do
papel e os desafios do ofício intelectual na sociedade. Tais contribuições são,
ainda hoje, importantes aos mais variados ambientes de pesquisa e análise da
dinâmica social, especialmente a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia, a
Economia e a História.
Em Ideologia e utopia, texto publicado originalmente em 1929 na
Alemanha, mas bastante ampliado em adaptado, especialmente em alguns
aspectos de estilo, com a edição inglesa de 1936, Mannheim discute temas de
muita relevância e urgência para a sua própria circunstância histórica, uma vez
que a primeira metade do século XX viu emergir uma marcante valorização do
irracionalismo na política. Uma dessas discussões, apresentada com
veemência já na primeira edição da obra, é justamente em torno da questão da
dimensão social do conhecimento. Rompendo com o pressuposto do
dogmatismo ontológico, que se estabeleceu principalmente no Medievo,
segundo o qual a verdade – e o conhecimento, por conseguinte – é perene,
imutável e inquestionável, ele discute as condições de possibilidade para se
chegar à verdade, trilhando o trajeto que vai de Maquiavel, passando por
Bacon, Descartes e Kant, até Hegel, Marx, Dilthey e Max Weber, inaugurando
a Sociologia do Conhecimento, o que pode ser visto como uma síntese dessas
perspectivas.
Em sua óptica, o conceito de ideologia resulta inteiramente redescrito,
indo muito além da concepção marxista – que o vê como expressão e
instrumento no complexo das lutas de classes – como algo ainda mais
circunstancial e dinâmico. Nessa perspectiva, um conhecimento não pode, em
si, ser tido por ideológico ou utópico, pois o que lhe situa como tal ou qual não
é a sua matéria, mas o papel relacional que ele vem a desempenhar no seu
contexto existencial:

Dilatando a natureza da vinculação social do conhecimento


que, na teoria marxista estava relacionada às classes sociais,

35
Mannheim propõe que está diretamente relacionado à
dimensão existencial – que inclui as relações materiais de
produção, além de diversos outros elementos mais
característicos da superestrutura na teoria marxista.
(MAZUCATO, 2014, p. 70)

A ideologia, como algo situado e decorrente da conjuntura existencial,


sofre influência das condições de classe, mas estas, em Mannheim, não são os
seus condicionantes exclusivos, nem sequer prioritários. Os grupos sociais, de
onde advêm as verdades parciais, ideias candidatas à legitimação como
verdade geral, não se diferenciam prioritariamente pelo aspecto material, mas
por um complexo muito mais abrangente de demais aspectos identitários,
como, por exemplo, os aspectos étnicos, culturais e linguísticos. O
estabelecimento da verdade é, portanto, o resultado de uma trama de disputas,
em que cada grupo reconhece ou rechaça – concedendo ou negando
legitimidade – as proposições levantadas por cada um daqueles grupos.
Os grupos sociais detentores das verdades gerais situacionais, aqueles
que ditaram e conseguiram legitimar as suas verdades particulares –
provisoriamente –, impondo-as sobre as demais, tendem, por óbvio, a trabalhar
pela manutenção das coisas no estado em que estão. São, normalmente,
instrumentos de permanência, adotando postura conservadora ou até
reacionária. Eles representam, por conseguinte, a ideologia.
Assim, uma proposição, um discurso, ou uma prática social só podem
ser ditos ideológicos perspectivamente. Seu caráter relacional é inafastável. É,
portanto, a posição que ocupam na atualidade que os fazem ser tidos – a partir
do ponto de vista dos grupos que não os defendem – como expressões da
ideologia. Evidentemente, há muitas outras vozes contrárias ao discurso
ideológico, vozes cujo desiderato é permanecer em oposição a tais posturas
conservadoras, posicionar-se em resistência, oferecendo, assim, o
contraditório. Tais vozes são, portanto, o que Mannheim denominava a
mentalidade utópica.
Mazucato (2014, p. 75) afirma que, no contexto do pensamento
mannheimiano, pode-se esquematizar o conceito de utopia em dois quesitos:
“a) estar em incongruência com a realidade da qual emerge; e b) estar voltada
para a transformação dessa realidade, tentando construir possibilidades para
convertê-la em ação”.

36
Observando-se o segundo quesito, algo se revela imediatamente: a
ressignificação, ou redescrição, que Mannheim empreende ao conceito de
utopia afasta-o radicalmente da ideia, resultante, em parte, da própria
etimologia da expressão, que lhe dá o sentido de “desejo irrealizável” ou
“realidade virtuosa apenas teórica”. Um detalhe sobremaneira relevante é que
este significado atribuído à palavra utopia permanece vivo na sociedade, sendo
um instrumento poderoso para a manutenção do status quo, uma vez que, para
os representantes da ordem intelectual e social prevalecente, é muito
importante, ou até essencial, que todos acreditem exatamente nisto: é utópico
tudo aquilo que nos é estranho, diferente e adverso, e é inconcebível e
irrealizável tudo aquilo que é utópico.
Desse modo, na luta de forças que se estabelece na sociedade,
nenhuma ideia ou prática social deve ser vista, a priori, como, essencialmente
ideológica ou utópica. A dialética mannheimiana, em conseguinte, poderia ser
sistematizada nos seguintes termos:

Cada utopia possui uma natureza revolucionária no momento


em que surge, vindo a transformar-se em conservadora a partir
do instante em que consegue se efetivar (torna-se, então, uma
ideologia). (...) Quanto mais pacífico for o processo de
transformação de uma utopia em ideologia, mais conservador
tenderá a ser a mentalidade predominante dele decorrente.
(MAZUCATO, 2014, p. 78-79)

Assim, a mentalidade utópica, em Mannheim, é o motor da história.


Longe de se limitar a anseios distantes ou improváveis de boa-vida, ela é um
requisito inafastável para a transformação social, e, portanto, importantíssima à
esfera política do pensamento. A utopia é, nos termos do próprio Mannheim
(1952, p. 185), o material explosivo da sociedade:

(...) Toda época permite que surjam (em grupos sociais


diferentemente situados) as ideias e valores que contém, em
forma condensada, as tendências não realizadas que
representam as necessidades de cada época. Esses
elementos intelectuais convertem-se, então, em materiais
explosivos capazes de destruir a ordem vigente.

37
Assim, na retórica mannheimiana, toda utopia – bem como toda
ideologia – será sempre a visão de algo possível. Na verdade, o atributo da
possibilidade é elemento sine qua non do conceito de utopia, visto que a mera
existência do pensamento diverso, contraditório, já inicia o papel que ela – a
utopia – exerce no complexo da sociedade. Em decorrência, a utopia, quando
plenamente realizada, deixa de sê-lo, convertendo-se em ideologia. Permanece
utopia apenas enquanto marginal. Vázquez (2001, p. 362) explica-o, ao afirmar
que um dos atributos da utopia é que nela o ideal não se esgota no real:

A distância ou o contraste entre a utopia e a realidade, como


processo de realização da primeira na segunda, podem ser
encurtados ou suavizados, mas não abolidos. Quer dizer, a
utopia – como projeto ou ideal – é irredutível à realidade. Sua
redução significaria irrevogavelmente o fim da utopia.

Mannheim se destaca, pois, como um grande pensador da utopia. E


expressa, ante à questão fundamentadora de qualquer espírito utópico – o que
o futuro nos guarda? –, uma resignação exemplar aliada à esperança de que o
homem seja capaz de manter viva a capacidade de empreender utopias: “A
única forma em que o futuro se nos apresenta é a da possibilidade, ao passo
que o imperativo, o “deveria”, nos diz qual destas possibilidades devemos
escolher” (MANNHEIM, 1982, p. 283).
A predição não é, para o sociólogo alemão, propriamente a tarefa do
cientista, mas do profeta. A observação, porém, é atribuição essencial ao
espírito científico, e Mannheim encerrou sua minuciosa qualificação da utopia e
da ideologia34 alertando para o inevitável fato de que, se observarmos as duas
principais tendências que se debatem e se enfrentam no mundo moderno – “as
correntes utópicas em luta contra uma tendência complacente a aceitar o
presente” – é muito difícil antever qual a que se expressa com a maior chance
de vitória. O que se pode afirmar, contudo, sem sombra de dúvidas, é que toda
transformação de relevo que a modernidade venha a registrar deverá ser
resultado desse embate essencial. Em sua perspectiva, posso afirmar que
somente em mundo plenamente estático, em que “não há nada de novo sob o

34
Que o próprio Mannheim escolheu chamar, em Ideologia e Utopia, de “história sociológica
dos modos de pensamento”.

38
sol”35, em que tudo esteja pronto e em que cada momento seja uma mera
repetição do passado poderíamos conceber o fim da querela maior do ser
humano, o fim da dúvida entre ir ou ficar, permanecer ou mudar, desejar ou
fastiar, enfim, a morte da utopia e, portanto, da esperança.

1.2 Se utópico, apenas utopia: as utopias do impossível

Nossa mais importante tarefa nesse momento é construir


castelos no céu. (Story of Utopias, Lewis Mumford)

Muito embora o impulso utópico tenha acompanhado o homem no


percurso de toda a sua história, e ainda que isso lhe seja tão marcante a ponto
de ser apropriado chamá-lo homo utopicus, como efetivamente o faz parte da
tradição antropológico-filosófica, uma série de acontecimentos históricos e de
desilusões para com a as tentativas de criar alter mundi, especialmente o mal-
estar advindo da “experiência com o regime comunista”36 – cujo símbolo do
desmantelamento é até hoje a estrondosa queda do Muro de Berlim –, levou
parte considerável dos teóricos da política e da sociedade contemporâneas a
alimentar uma verdadeira antipatia, ou até mesmo uma ojeriza, à palavra
“utopia”.
Com o tempo e com o uso indiscriminado ou incorreto, utopia passou a
ser mesmo sinônimo de “irrealizável”. E como os limites do irrealizável são
turvos, pensar utopicamente passaria a significar algo como “construir castelos
no ar”, atividade daqueles que, irresponsáveis e inconsequentes, não têm
compromisso algum com a realidade da vida. De tão esvaziada do seu sentido
original, a expressão passou a ser utilizada depreciativamente: diz-se “utópico”
daquilo que deve ser deixado de lado, abandonado e substituído por alguma
coisa real ou, ao menos, realizável. A palavra torna-se tão somente uma
expressão de juízo de valor:

35
Como vaticina o Eclasiastes: “o que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não
há nada novo debaixo do sol” (Bíblia, Eclesiastes, capítulo 1, verso 9).
36
A rigor, a experiência histórica comumente associada às ideias comunistas – o que se
convencionou chamar “socialismo real” – não poderiam, em nenhuma hipótese, ser tomadas
como parâmetro de medida de sucesso de tais ideias. Isso se dá, evidentemente, pela abissal
dissonância que há entre o que de fato se efetivou nos regimes ditatoriais, especialmente nos
“países comunistas” a partir de 1917, e os princípios elementares do pensamento comunista.

39
Poucos conceitos foram tão estigmatizados ao longo dos dois
últimos séculos quanto o de utopia. A tal ponto que ele
terminou reduzido à condição de simples juízo de valor, que
exprime um preconceito “realista” contra os vislumbres
imaginários de uma vida melhor. (LEVY, 2012, p. 9)

Trousson (2005, p. 126) o explica, também, de modo muito elucidativo:

A pejoração do termo se confirma no século XIX na polêmica


entre a burguesia e a escola política liberal por um lado, e, por
outro, as diferentes escolas do socialismo anterior a 1848. É
dizer que de agora em diante o sentido da palavra “utopia”
dependerá do ponto de vista ideológico do locutor. No primeiro
terço do século, o termo se aplica aos diversos socialismos
com uma coloração claramente pejorativa. Depois da revolução
de fevereiro e da insurreição de junho de 1848, ele chega a se
tornar uma injúria explícita com respeito ao socialismo e ao
comunismo, enquanto que o espectro da Comuna de Paris, em
1871 contribuirá para fazer da utopia uma quimera não
somente absurda e irrealizável, mas perigosa, porque
compromete a ordem estabelecida. (TROUSSON, 2005, p.
126)

Assim, não seria exagero afirmar que mesmo nas sociedades abertas,
democráticas, marcadas pela liberdade – especialmente a liberdade de
pensamento e a liberdade de expressão – pode-se facilmente perceber uma
cultura de aversão à utopia, uma crise da utopia. Talvez porque, não foram
poucas as vozes enfáticas em associá-la diretamente aos contextos políticos
centralizadores – especialmente aos regimes que se autodenominaram
comunistas –, que costumaram adotar a sistemática mitigação das liberdades e
dos direitos individuais.
Por outro lado, não serão também poucas as vozes, especialmente
durante o século XX, a se levantarem na tentativa de recuperar um sentido
honroso à expressão utopia, buscando demonstrar a sua relevância social. As
obras de Karl Mannheim e Ernest Bloch são exemplos dessa tendência
revigoradora, que vê a utopia como um mecanismo de enriquecimento do
imaginário social, garantido o caráter dinâmico da vida. Trousson37 afirma que
tal perspectiva exige, inclusive, que os sentidos mais tradicionais do termo – ou

37
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo. Trad. Ana Cláudia Romano Ribeiro. Morus:
utopia e renascimento. Vol. 02. 2005. 123 – 135, p. 127.

40
de uma apenas metáfora pseudo-geográfica ou de uma forma literária da
viagem imaginária, ou mesmo de um projeto político idealizado – dão lugar a
uma ampliação marcante, estendendo-se aos planos filosófico, pedagógico,
arquitetural, urbanístico, etc.
O filósofo e historiador das ideias Bronislaw Baczko (1924-2016) é um
nome importante na abordagem antipossibilista da utopia. Para ele, afirmar que
a utopia não trata, nem pretende tratar, de projetos para realização prática não
diminui o valor que a utopia desempenha na sociedade. Para exercer uma
função real na vida das pessoas e das comunidades, a utopia não precisa “falar
a verdade”. Levy (2012, p. 59), explica tal perspectiva baczkoniana nos
seguintes termos:

Uma vez produzidas, as imagens utópicas penetram no circuito


das representações simbólicas e é isso que lhes dá as chances
historicamente variáveis de intervir nos conflitos de uma
determinada época.

O mister do utopista, em conseguinte, não é apenas servir como um


intérprete das condições sociais presentes que, fatalmente, conduzirão ao
advento de uma nova era que ele descreve. O utopista, nesta perspectiva,
força os limites do possível, amplia-o, e pode, inclusive, ir além do possível em
sua capacidade imaginativa, transcendendo-o. Assim concebido, o habitat
natural da utopia é o implausível, o impossível e até o inimaginável.
Para Baczko, a utopia escapa à história, ela não é historicamente
determinada – como asseveram os possibilistas –, apesar de nascer em um
dado momento histórico, uma vez que transcende os limites da lógica e da
razoabilidade da época em que foi gestada. A utopia é a oposição atemporal ao
presente, como Levy (2012, p. 60) ilustra com maestria:

A historicidade da utopia encontra-se balizada pela sua


emergência num determinado “aqui e agora” ao qual ela se
opõe enquanto atemporalidade. Nessas condições, o futuro
não pode derivar de um simples desdobramento processual do
presente, pois entre a realidade dada e a utopia encontra-se,
como se tem notado, um sujeito que se manifesta em oposição
subjetiva ao seu próprio ser histórico e aos valores que o
constituem.

41
No âmbito da concepção baczkoniana de utopia, o sujeito que imagina,
aquele que é capaz de criar uma utopia, desempenha um papel crítico-
transcendental. Ele projeta o pensamento para os domínios do além-realidade,
criando uma alternativa de vida. Tal pensamento é eminentemente humanista,
pois, retira do homem o status de ser apenas passivo perante as forças
determinantes da sociedade e da história. A imaginação utópica é, por
conseguinte, trans-histórica38.
Baczko desenvolve, portanto, um pensamento eminentemente
revigorante do valor e do papel da utopia na sociedade, afastando a
possibilidade de realização como critério de julgamento para o espírito crítico-
transcendente da imaginação utópica.

1.3 Se utópico, ineficaz ou perigoso: o antiutopismo

“As utopias têm o mérito de estimular a imaginação, mas


como guia da conduta podem ser fatais”. (Isaiah Berlin)

O entusiasmo para com a utopia, como meio de expressão e de defesa


das ideias, em sua dimensão crítica, e como modelo de realidade, em sua
dimensão propositiva, não foi, obviamente, adotado pacificamente por todos.
Muitos intelectuais rebateram-na em termos de possibilidade de realização,
apontando os porquês de as propostas veiculadas pelo discurso utópico serem,
em última análise, inúteis, já que irrealizáveis. Escrever utopias, sob essa
óptica, seria, no mínimo, uma atividade ineficaz, contraproducente, e, até
mesmo, insensata. Outros não atacaram este aspecto, mas apontaram para o
quanto as tentativas de realizações de ideias utópicas, ao longo da história,
levaram a experiências nocivas, decorrendo, muitas vezes, em regimes
centralizados e fechados, em planificações políticas, em que o preço das
promessas de vida melhor, alto demais, foi sempre um grande cerceamento de
liberdades e direitos.

38
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 61.

42
Deve-se lembrar que, em termos mannheimianos, os esforços
empreendidos no sentido de desacreditar as potencialidades da utopia são
uma forma velada de afirmar alguma ideologia em voga. São as mais
importantes tarefas de qualquer ideologia, empreender manter-se viva através
do sepultamento da esperança de mudança e promover a aceitação tácita do
sentimento de conformismo, para o qual é senso comum pensar que a “as
coisas são como são” e que elas sempre serão assim, ou acreditar que a
sociedade é naturalmente estática. Vázquez (2001, p. 366) o explica com muita
propriedade:

O argumento fundamental para conformar-se com a realidade e


repelir as tentativas de transformá-la é que as mudanças
radicais são ineficazes, já que se chocam irremediavelmente
com o muro de uma “natureza humana” inquebrantável. Assim,
pois, partindo do pressuposto de uma natureza humana
imutável, abstrata, condena-se toda a utopia por sua ineficácia
e impotência.

Assim, a negação da contingência é um poderoso instrumento de


afirmação da ideologia e de manutenção do status quo. Karl Popper (1902 –
1994), um dos pensadores mais importantes no século XX dentre os que se
engajaram no debate acerca da utopia, preconiza que entre sacrificar a
liberdade dos indivíduos em nome de uma planificação geral – o que, em si, já
é um ato de extrema violência – e abandonar as esperanças de transformações
radicais da sociedade, ele prefere esta última opção, adotando uma espécie de
“reformismo conservador” em detrimento da atitude revolucionária.
Para ele, a ânsia de construir “sociedades perfeitas”, desde a
Antiguidade, revela, em todos os casos, a tendência a estabelecer estruturas
sociais centralizadas e ditatoriais. Por óbvio, não se trata de uma negação das
forças transformadoras da utopia, em vez disso, trata-se do receio associado a
essas forças dinamizadoras, que podem desembocar em planificações estatais
aversas ao espírito democrático. É o que afirma Levy (2012, p. 29):

Popper não nega a potência transformadora da utopia, pelo


contrário, mostra-se até temeroso diante do seu magnetismo,
pois julga que ela anuncia sempre um novo fechamento da
história e uma inevitável falência da democracia.

43
Para ele, portanto, a mecânica utópica é um convite ao totalitarismo.
Precisamente por isso, é necessário livrar-se da sedução da utopia para que se
possa fazer uma defesa efetiva dos valores da democracia e das sociedades
abertas39.
Platão, pela perspectiva popperiana, longe de oferecer um inocente
modelo de alter mundus, e defender ideias morais e políticas concernentes ao
seu tempo, adotando posição crítica do modelo democrático ateniense,
desenvolveu uma elaborada reação contra a sociedade aberta, que acabou por
ter consequências em toda a história da filosofia política e na própria práxis de
sistemas políticos. Para Popper, Platão se alinhava à defesa de um sistema
espartano40, que, por sua vez, antecipava-se, em muitos aspectos, às
tendências políticas verificadas em diversas formas de regimes totalitários na
Modernidade e Contemporaneidade.
A crítica popperiana a Platão assumiu um importante espaço em
Sociedade aberta e seus inimigos, constituindo-se na temática central de todo
o primeiro volume da obra, denominado Plato’s spell41. Nele, Platão é
denunciado como um pensador radical e perigoso, afeito às mudanças
apocalípticas da sociedade em direção a um mundo imaginado de perfeição.
Ele é um esteta, disposto a subverter toda a realidade existente para chegar à
beleza e à ordem plenas. O político-artista ideal de Platão, o seu reformador
social ideal, seria, portanto, alguém capaz de limpar toda a tela antes de
começar a pintar:

Esse é o modo por que deve proceder o político-artista. Isto é o


que significa a limpeza da tela. Deve ele erradicar as
instituições e tradições existentes. Deve purificar, expurgar,
expelir, deportar, matar. (“Liquidar” é a terrível palavra moderna

39
Popper utiliza a expressão “sociedades abertas” em oposição a “sociedades fechadas”, em
seu The Open Society and its Enemies, publicado originalmente em Londres e em inglês, no
último ano da Segunda Guerra Mundial, tornando-se uma obra indispensável à discussão da
vida política moderna. As sociedades fechadas seriam aquelas em que os indivíduos são
levados a não assumir as responsabilidades sobre suas escolhas ou, em muitos casos, sequer
têm a oportunidade de fazer escolhas importantes de modo livre e consciente, uma vez que a
sociedade opera de forma mágica, tribal ou coletivista, retirando do indivíduo tal liberdade-
direito. Cf. POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton
Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. (Espírito do nosso tempo).
40
Tal sistema espartano pode ser representado pelas concepções de “proteção do tribalismo”,
de “antiuniversalismo”, de “dominação dos estrangeiros”, entre outras, que, de modo expresso
ou velado, estão presentes na obra platônica.
41
Geralmente traduzido como “o feitiço de Platão”, ou como “o fascínio de Platão”.

44
para isso). A afirmativa de Platão é deveras uma autêntica
descrição da intransigente atitude de todas as formas de
extremado radicalismo – da recusa estética em transigir. A
opinião de que a sociedade deva ser bela como uma obra de
arte leva apenas, com demasiada facilidade, a medidas
violentas. Mas todo esse radicalismo e violência são anti-
realistas e fúteis. (POPPER, 1974, p. 182)

Opondo-se a toda espécie de radicalismo utópico-revolucionário, Popper


advogava pela ideia de que as transformações sociais verdadeiramente
importantes são factíveis, na medida em que sendo realizadas gradualmente
empreendem melhoramentos reais, e não meramente imaginários, às vidas das
pessoas. Mas nenhum desses melhoramentos deve ser efetuado radicalmente
ou apressadamente. Em contraposição à mecânica utópica, Popper defende a
mecânica gradual.
Objetivando corrigir sofrimentos vividos cotidianamente e participando de
modo ativo e responsável da vida política da sociedade – no sentido de lutar
para que se empreendam reformas praticáveis, como, por exemplo, as que
intencionam resolver problemas de seguro de saúde, desemprego, economia,
etc. –, e não traçando metas distantes e implausíveis, “castelos no ar”, o
homem realiza muito mais para o seu bem. Assim, melhor resultado se tem de
uma postura realista e reformista, que de uma postura radical e revolucionária,
pela perspectiva popperiana.
Em consonância com a perspectiva popperiana, Judt (2011, p. 209)
representa bem o sentimento de reforma, e de rejeição à mudança total, ao
sustentar que nós “devemos a nossos filhos um mundo melhor, mas também
devemos algo aos que vieram antes de nós”. Ambicionar, pois, a construção de
um mundo perfeito a partir da tabula rasa de toda a nossa realidade já
concretizada é, no mínimo, uma postura de desrespeito para com aqueles que
nos antecederam e investiram suor e sangue para que o mundo se tornasse o
que ele é.
Levy42, por sua vez, aponta algumas inconsistências da perspectiva
popperiana, iniciando por uma constatação, de certa forma, desconcertante: a
abordagem levada a efeito por Popper acerca da utopia – tratando-a como uma
posição que sempre estará em rota de colisão frontal com os princípios de uma

42
LEVY, Nelson. Crítica e utopia, p. 33-34.

45
sociedade aberta – suscita a questão da origem da própria ideia de sociedade
aberta. Os termos popperianos que a definem são, por assim dizer,
essencialmente utópicos, uma vez que, acreditar que possa existir uma
sociedade nos parâmetros da que denomina “aberta” é, também, traçar uma
meta imaginativa extremamente transcendente em relação à realidade das
sociedades, mesmo as mais liberais e democráticas.
Segundo Levy, há ainda um grande exagero em tratar a questão de
modo tão fechado, limitando-a a um dualismo inescapável, que põe as atitudes
de transformação social em apenas dois mecanismos distintos e intransigíveis,
a mecânica utópica e a mecânica gradualista. Nessa perspectiva crítica – a
crítica da crítica –, Levy assegura que não há essa contrariedade absoluta, e
que nem toda utopia exige que os rompimentos sociais capazes de estender os
limites do real sejam abruptos, ou que se dêem pelo uso da força ou da
mitigação das liberdades ou supressão dos direitos. Em contra-exemplo a
Popper, Levy chama a atenção para o fato de que a utopia comunista, um dos
“alvos” preferenciais da crítica popperiana, convive há muito tempo com toda
sorte de adversidades relativas sem esmaecer. E que, empreendendo
pequenas conquistas sociais, em diversas partes do mundo, cumpre uma
agenda de transformações graduais das realidades, contribuindo, em muito,
para a solidificação do espírito democrático.
Em suma, Levy43 considera a retórica popperiana, em Sociedade aberta
e seus inimigos, como a expressão de uma atitude conservadora-reformista. E
a sua oposição à utopia como, para utilizarmo-nos da linguagem
mannheimiana, uma posição ideológica, um discurso – mesmo que essa jamais
tenha sido a intenção do filósofo austríaco – cujas consequências são, em
última instância, o descrédito do espírito utópico e a manutenção das coisas
como são, ainda que passíveis de pequenas reformas pontuais.
Outro intelectual de muito peso na discussão política contemporânea,
considerado um ícone do pensamento liberal, Isaiah Berlin (1909-1997),
desenvolve também uma contundente crítica ao pensamento utópico. Para ele,
em consonância com a abordagem popperiana, as utopias trazem em si,
essencialmente, os germes do totalitarismo. Elas fatalmente desembocam em
centralização, tirania, cerceamento de liberdade e desumanização.
43
Ibid., p. 34-35.

46
Semelhantemente a Popper, Berlin assume que os objetivos distantes
demais são muito cruéis. Assim, uma vez que a vida dos indivíduos se
desenrola nas situações políticas reais e cotidianas, assumir objetivos
generalizantes e transcendentes, se tomados em relação à vida prática, é uma
atitude injustificável. Seria muito mais respeitável a ação de interferir na vida
real a partir da modificação dos problemas que se apresentam à vida prática,
empreendendo as reformas necessárias e suficientes à melhoria da vida,
como, por exemplo, as medidas corretivas das desigualdades sociais44.
Para estes pensadores, pois, que recomendam uma postura
marcantemente acautelatória em relação ao espírito utópico, “contra os
excessos e os males do perfeccionismo metafísico”45, realizar as reformas
pontuais capazes de melhorar a vida das pessoas sem que para isso seja
preciso efetuar reformas das estruturas sociais mais profundas é algo mais
plausível e muito menos arriscado.
Tais receios e críticas, de natureza liberal e anti-autoritária, têm, no
mínimo, uma razão de ser muito palpável historicamente: as tentativas reais de
concretizar e centralizar as planificações utópicas, muitas vezes, resultaram em
sistemas de violência estatal e, até, em totalitarismos. A experiência com o
projeto socialista, efetivado nos países submetidos à cortina de ferro, foram
suficientes para alertar uma geração de pensadores para o risco de sacrificar a
liberdade em função da centralização e da vontade utópica.
Para Vázquez46, entretanto, a generalização desses atributos, típicos à
forma de política totalitária que caracterizaram a realidade histórica da Rússia
e, posteriormente, dos países que se alinharam ao bloco socialista, é um erro.
Portanto, dar a toda utopia o aspecto de uma utopia socialista, aos moldes do
“socialismo real”, não se justifica.

1.4 Um estilo literário de romances sociais

44
Ibid., p. 36.
45
Ibid., p. 39.
46
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre a realidade e a utopia: ensaios sobre política, moral e
socialismo. Trad. Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 637.

47
Muito antes de Thomas Morus publicar a sua Utopia, em 1516, grande
quantidade de escritos já apresentava elementos característicos suficientes
para que essas produções – muito variadas em relação ao estilo, mas
semelhantes em relação ao tema – possam ser agrupadas em uma espécie de
estilo literário de temática social. Evidentemente, não é o escopo deste trabalho
elencar um rol exaustivo, ou qualquer espécie de catalogação ou estatística,
das obras que poderiam compor tal estilo literário. Aliás, a enorme quantidade
de publicações, a que, ao longo dos séculos, a tradição denominou utopias,
obstaculiza sobremaneira a tarefa de se estabelecer parâmetros muito
objetivos de circunscrição de elementos indispensáveis para que uma obra seja
considerada afim e vista como integrante desse gênero.
São muitos os pesquisadores que se dedicaram a essa árdua tarefa,
buscando escapar à tentação de ampliar demasiadamente o conceito – a ponto
de a pluralidade resultante ser tamanha que não haja mais como agrupar todas
as obras em um mesmo conjunto minimamente uniforme, tornando-o, por
assim dizer, mais uma mentalidade que um estilo, ou um gênero literário, ou
até, como jocosamente denomina Firpo, uma espécie de “tudologia” 47 – e, ao
mesmo tempo, fugir à tentação contrária de restringir por demais a sua
abrangência, tornando-a inadmissivelmente diminuta.
Trousson, um dos fundadores do Centro Interdisciplinar de Estudos da
Utopia, na Universidade de Bruxelas, considera essa uma questão imperiosa e
inafastável. Pensar um estatuto do discurso utópico é, para ele, a tentativa de
que haja um mínimo consenso no campo semântico quando se afirma que um
determinado texto é literatura utópica ou que compõe o corpus desse gênero
literário48. Segundo ele, em geral, recorrer às bibliografias e catalogações
existentes – e, algumas, consagradas – apenas acentua o problema, uma vez
que elas tendem a elencar, sob a mesma alcunha de utopias, obras
extremamente dissonantes entre si, o que torna quase impossível o trabalho de
encontrar um ponto de conexão generalizável.
Segundo Trousson, nos séculos XVII e XVIII, a crítica especializada se
refere, reiteradamente, à utopia como uma metáfora geográfica, ou como uma

47
FIRPO, Luigi. Para uma definição da “utopia”. Trad. Carlos Eduardo O.Berriel. In: Morus:
utopia e renascimento. Vol. 02. 2005. 227–237, p. 228.
48
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 124 e seguintes.

48
metáfora pseudo-geográfica49. O texto utópico seria, portanto, marcado pela
imagem simbólica de alter mundi50. Há, em seguida, um deslocamento para a
ideia de que a utopia empreende um plano de governo imaginário, afastando-
se do aspecto meramente geográfico em direção a um sentido mais político e
institucional. A utopia pressupõe, assim, uma projeção política, uma imagem,
ou uma fantasia, de felicidade comunitária.
O século XIX, especialmente, acentua a visão de que o aspecto
fantasioso – o fato de tratar de imagens irrealizáveis – seria o elemento
essencial do texto utópico. Será esse o tempo em que a pejoração do termo se
ampliaria mais marcantemente. Evidentemente, o marxismo foi uma força
descomunal exercida nesse sentido, uma vez que considerava os trabalhos de
autores importantes como Saint-Simon, Fourrier e Owen como mera expressão
de um socialismo utópico, isto é, como devaneios irrealizáveis acerca das
relações de produção, que até apontavam análises da conjuntura sócio-
econômica, mas não resultavam em nenhuma abordagem realmente
esclarecedora em termos científicos, nem eram capazes de oferecer saídas
realmente plausíveis para os dilemas diagnosticados51.
No século XX, os trabalhos de Karl Mannheim, Ernest Bloch e Bronislaw
Baczko, em especial, foram determinantes para uma nova mudança de foco,
uma vez que apreendem a utopia – em contraposição à ideologia – como o
pensamento dinamizante da sociedade. Nessa perspectiva, a utopia é
compreendida como o pensamento responsável, ao mesmo tempo, pelo
diagnóstico do contexto sócio-econômico e pela esperança, pelo fortalecimento
da capacidade imaginativa da sociedade, configurando-se como uma postura
eminentemente progressista. A partir desse ponto, não é mais possível pensá-
la tão restritivamente:

Compreendemos porque, nesta perspectiva, ela deve


entender-se, não somente enquanto forma literária da viagem
imaginária ou mesmo projeto político, mas também no plano

49
Ibid., p. 126.
50
É importante lembrar que a ideia de metáfora geográfica não condiciona a aventura utópica à
imaginação de, necessariamente, outro lugar. O imaginário do alter mundus pode, e é muito
recorrente, estar relacionado à dimensão do outro tempo.
51
MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Em: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Obras
escolhidas. São Paulo: Alfa - Omega, s.d., p. 38-43.

49
filosófico, pedagógico, arquitetural, urbanístico, etc.
(TROUSSON, 2005, p. 127)

Ainda para Trousson, um traço distintivo da utopia enquanto gênero


literário é a sua intenção construtiva. Longe de se restringir ao nível do
imediatamente possível, plausível ou provável, a utopia não pode prescindir,
entretanto, aos imperativos de credibilidade e verossimilhança52. São
precisamente estes imperativos que lhe dão um caráter de realismo narrativo53.
Além disso, a utopia também deve ser diferenciada da “robinsonada 54”, uma
tradição de histórias em que se narram as dificuldades da sobrevivência de um
indivíduo isolado, perdido, ou, quando muito, de um pequeno grupo familiar.
Nessas histórias, normalmente, o maior sonho das personagens se resume a
se evadir daquele lugar em que, contra a sua vontade, foram obrigados a
permanecer, e retornar à vida em sociedade que haviam perdido. Resulta
evidente que se diferem da utopia, em que o desejo maior não é partir, mas
construir, permanecer ou organizar.
A evocação da era de ouro, tão associada pelo senso comum ao
espírito utópico, também está fora dos contornos da literatura utópica, para o
critério avençado por Trousson. Em geral, tais histórias são narrativas em que
o homem encontra-se sob os caprichos do sobrenatural. Elas costumam ser a
nostalgia da perda de um tempo maravilhoso – em que o homem desfrutava do
convívio pacífico e harmonioso com a natureza, consigo mesmo e até, algumas
vezes, com a divindade – ocasionada pela decadência ou a queda. A utopia,
em vez disso, é uma profecia. Ela olha para a frente, para o que virá – não
apenas ara o que virá, mas para o que os homens faremos vir . Seu motor não
é a saudade ou a nostalgia de algo dado por um deus, mas a esperança, o
sonho e a fé na possibilidade da mudança da vida construída pelo próprio ser
humano.
Neste mesmo intento de discutir os contornos da escrita literária utópica,
os predicativos necessários e suficientes para que um texto possa integrar o

52
A minúcia de detalhes do alter mundus escrito na utopia será especialmente importante na
garantia desses dois fatores, favorecendo uma espécie de credibilidade do texto e dando ao
discurso utópico um caráter diferenciado em relação ao simples romance de aventura.
53
TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 128.
54
Relativo a Robinson Crusoé, romance publicado em 1719 por Daniel Defoe, em que a
personagem principal, em forma de autobiografia, narra suas aventuras durante os 28 anos em
que, náufrago, fica recluso em uma ilha remota até ser resgatado.

50
gênero em tela, Firpo, no discurso de encerramento do Primeiro Congresso
Internacional de Estudos sobre Utopia, realizado em Reggio Calábria, Itália, em
1983, elencava três atributos: uma utopia deve ser global, radical e
prematura55. A globalidade da utopia está na condição de que um texto
verdadeiramente utópico, para seus critérios, terá sempre um caráter
englobante, generalizante. Uma proposta de transformação que, ao cabo,
impacte apenas uma pequena fatia da sociedade, um grupo, uma família ou os
moradores de uma localidade pode ser a realização de um sonho pessoal, a
concretização de um projeto técnico de relevo para aquela comunidade, mas
não se pode dizê-la uma utopia. Para isso, atente-se que a utopia se pretende
uma construção intelectual-imaginativa que impacte o complexo da sociedade.
A sua radicalidade, por sua vez, expressa-se pelo caráter revolucionário
– ou, ao menos, marcantemente reformista – do texto utópico. Não seria, pois,
apropriado denominar utópico um texto apenas descritivo da vida social, ou
uma proposta de revisão pontual que ofereça um esquema de transformação
restrito a alguns aspectos da realidade, sem grandes consequências para a
estrutura social mais geral.
Já a prematuridade do discurso utópico é, para Firpo, o predicativo mais
importante. O utopista é alguém que tem plena consciência do caráter
prematuro de suas ideias. Ao contrário do que sugere o senso comum, quando
compara o utopista a alguém que deseja construir “castelos no ar”, um
sonhador ou um louco, o autor assevera que o utopista é um bom exemplo do
que, na verdade, significa ser realista:

Trata-se de uma pessoa que possui uma tão lúcida consciência


da imaturidade da própria proposta, do fato de que ela não
encontraria nenhum sucesso prático, e que certamente o
poderia arrastar para a reação violenta da parte daqueles que
não desejam ouvir falar de seu projeto, uma reação que o
reduziria ao silêncio ou indubitavelmente colocaria em risco a
sua integridade física. E então, visto que seus contemporâneos
não estão ainda em condições de compreendê-lo, ele fala aos
pósteros, salta sobre um longo arco de tempo e de gerações, e
lança de fato uma mensagem, que será então decifrada,
utilizada, revista apenas mais tarde. (FIRPO, 2005, p. 229 -
230)

55
Cf. FIRPO, Luigi. Para uma definição da “utopia”, p. 229.

51
Marcuse (1969, p. 15) enfatiza, também, que é justamente pela
prematuridade de uma ideia – ou, como ele qualifica, pela sua imaturidade –
que ela pode perfeitamente vir a ser tomada, sob a perspectiva do presente,
como algo inconcebível, impossível:

O conceito de utopia é um conceito histórico e se refere a


projetos de transformação social cuja realização é considerada
impossível. Mas por quais razões são tais projetos
considerados como irrealizáveis? Geralmente, quando se
discute sobre o conceito de utopia, fala-se de irrealizabilidade
como impossibilidade de traduzir em fatos concretos o projeto
de uma nova sociedade, na medida em que os fatores
subjetivos e objetivos de uma dada situação social de opõem à
sua transformação. Trata-se da chamada imaturidade das
condições sociais, que obstaculiza a realização de um
determinado fim. Exemplo: os projetos comunistas durante a
Revolução Francesa; ou, para nos referirmos a um caso talvez
atual: o socialismo nos países capitalistas altamente
desenvolvidos.

É, pois, pelo fato de apresentar uma ideia global, radical e,


principalmente, prematura que o utopista muitas vezes precisa disfarçá-la,
normalmente, entregando-a como uma “mensagem cifrada”, emprestando-lhe o
aspecto de texto literário irrealista e despretensioso – cercando-se sempre do
cuidado de não a revelar em linguagem direta e programática – sob pena de ter
que arcar com as consequências de alçar bandeiras tão incompreensíveis
quanto inaceitáveis. Ainda assim, muitos autores utopistas tiveram que encarar
a fúria de seu tempo, sendo perseguidos politicamente ou até, por vezes,
encarcerados sob acusação de heresia.
Apesar do avençado acima, sobe a desnecessidade e mesmo a
impossibilidade de estabelecer nos limites deste trabalho uma listagem
exaustiva de obras de caráter utópico, algumas delas, entretanto, serão
recorrentemente citados – e, na verdade, isso aconteceria em qualquer texto
acerca desta temática, em virtude da representatividade e relevância que estes
escritos adquiriram na história das ideias – mesmo que não apresentem, todos
eles indistintamente, a plenitude dos atributos associados à literatura utópica.

52
Frequentemente se atribui a Hesíodo, na Grécia do século VIII a. C.,
com o monumental poema Os trabalhos e os dias56, o papel de ter inaugurado
essa tendência de compor textos com as características que, futuramente,
seriam associadas às utopias. Ao descrever uma sociedade, criada pelos
deuses, habitada por “homens de ouro”, que viviam à semelhança de seus
poderosos criadores – plenamente virtuosos, prescindindo de qualquer
preocupação com a velhice ou com as doenças e resguardados de toda
espécie de dor – situação, aliás, que, para infortúnio dos homens, não
perduraria por muito tempo, Hesíodo a contrapunha à sociedade real, repleta
de vícios e de conflitos. Assim, já na tradição grega, o aspecto crítico-
propositivo dos escritos utópicos desempenhava um papel muito relevante à
vida social, como explica Jacoby (2007, p. 75):

Mesmo em sua encarnação grega, as utopias literárias não se


limitam a conclamar os cidadãos a levar uma vida correta. Ao
preverem um outro mundo, as utopias gregas implicitamente
criticam o estado da sociedade.

Outros autores gregos trabalharam com este mesmo intento de


contrapor sistematicamente a aqui e o alhures. Aristófanes, combatente
incansável das diversas formas de predição que pululavam à sua volta,
compôs, em 414 a.C, As aves, texto de caráter satírico em que
simultaneamente exerce uma virulenta crítica à sociedade ateniense e
descreve um alter mundus etéreo, sua Nefelococigia – ou Cucolândia nas
Nuvens – em que a vida transcorre em acordo com a liberdade, a paz e a
felicidade. Esse alter mundus, entretanto, não é apresentado como algo
factível. Ainda segundo Jacoby57, Aristófanes, por meio de sua Cucolândia,
zomba tanto da sociedade grega real como do esforço de criar algo
inteiramente novo, deixando transparecer “um caráter polêmico e político”
(JACOBY, 2007, p. 77).

56
Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, escrita no século VIII a. C., é uma obra seminal da
literatura grega antiga. Pioneira em muitos aspectos, é considerada uma preciosidade da
cultura escrita do povo grego, talvez mesmo a primeira obra literária eminentemente grega.
Importante por inaugurar questões que serão desenvolvidas por muitos séculos na filosofia
antiga, como o conceito de justiça, questões de economia e de boa-vida.
57
Cf. JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica,
p. 77.

53
Um outro autor de grande relevo, cujos diálogos satíricos se tornaram
um referencial para muitos escritores de sua época e da posteridade,
contribuindo para firmar o complexo de nuances que dão a tais escritos o
caráter de literatura utópica, Luciano de Samósata (125 d.C – 181), utilizou um
curioso título para a sua utopia, “História verdadeira”58, no qual ridiculariza
alguns dos pilares literários e filosóficos da cultura clássica, como Homero,
Sócrates e Platão.
Escrita no século II, a História verdadeira é tida por muitos críticos como
uma importante precursora da ficção utópica e da ficção científica na literatura.
E são muitos os escritores importantes que tiveram explícita influência de sua
leitura, a exemplo de Voltaire, Júlio Verne, Erasmus de Rotterdam e, em
especial, Rabelais e Thomas Morus, herdeiros diretos de seu utopismo jocoso,
em que se misturam uma ironia finíssima com os elementos sérios de uma
argumentação moral e política.

1.4.1 Utopia, de Thomas Morus, abre um caminho de possibilidades


ilimitadas

Muito me envergonha não saber em que mar se acha a ilha


sobre a qual eu tanto escrevi. (Thomas Morus, carta a
Pieter Gillis)

O vocábulo “utopia”, criado por Thomas Morus59 (1478 – 1535) para


título de sua obra referencial, publicada em Louvain, Bélgica em 1516, é,

58
Obra escrita no século II, de caráter eminentemente satirista, a História verdadeira é tida por
muitos críticos como uma importante precursora da ficção utópica e da ficção científica na
literatura. São muitos os autores que tiveram explícita influência de sua leitura, a exemplo de
Voltaire, Júlio Verne, Erasmus de Rotterdam e, em especial, Rabelais e Thomas Morus,
herdeiros diretos de seu utopismo jocoso, que mixa uma ironia finíssima com aspectos sérios
de argumentação política. Em Morus, tal influência chega a ser sutilmente reconhecida quando
a personagem central de Utopia, Rafael Hitlodeu, distribui entre os habitantes da ilha diversos
exemplares de obras literárias gregas especialmente de Aristófanes e Luciano, que, aliás, eles
acham “deliciosamente divertidas”.
59
Levy aponta para o fato de que, muito embora a construção do vocábulo utopia requeira
elementos provenientes da língua grega, e mesmo sabendo que os gregos clássicos já
demonstravam enorme familiaridade e habilidade com o pensamento político-moral acerca da
Vida Boa, coube a Thomas Morus, apenas no Renascimento, cunhar a expressão, que depois
viria a ser extremamente utilizada no linguajar literário-filosófico, inclusive, para se referir a
narrativas e/ou discursos muito anteriores – como os textos clássicos, a exemplo de República,

54
originariamente, um termo composto. Em grego, “tópos” (τόπος) significa
“lugar”. Ao passo que outros dois elementos se intercalam: “eu” é um prefixo
que expressa qualidade positiva60, enquanto que “ou” é prefixo adversativo,
expressa uma contrariedade, uma negação. Assim, temos que “utopia” (eu-
topia e/ou ou-topia) tem sentido plural, abrangente: lugar excelente, lugar feliz,
lugar nenhum61, além de outras tantas possibilidades62. Essa natureza plural e
extremamente polissêmica do termo utopia, para Levy (2012, p. 21), permite
afirmar que Morus provavelmente sequer desconfiava que “para muito além de
uma simples contribuição linguística, acabava de deflagrar uma polêmica
histórico-política que persiste até nossos dias”.
A expressão aparece, originalmente, no extenso título da obra do
renascentista, “Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus de
optimo rei publicae statu, deque nova insula Utopia”, que, escrita em um latim
humanista, sob forte influência das notícias das terras e hábitos de vida das
populações do Novo Mundo63, expressava um otimismo típico de seu tempo,
descrevendo um alter mundus, uma nova insula, de tal maneira detalhada a
ponto de ser possível, a partir da narrativa, conhecer a maneira de viver,
produzir, e pensar de seus habitantes, os utopianos.
Segundo Minois, a Utopia de Morus é o grande marco, no início da
Modernidade, de uma retomada do entusiasmo com a literatura utópica64, que
havia praticamente desaparecido durante a Idade Média65. O livro de Morus

de Platão, e As aves, de Aristófanes – acerca da ideia de sociedade exemplar. Cf. LEVY,


Nelson. Crítica e utopia, p. 21 e seguintes.
60
A primeira edição italiana da obra foi chamada Eutopia. Sobre isso Trousson afirma: “Em
Thomas Morus, como se sabe, Utopia é homófono ao mesmo tempo de ou-topia (país de lugar
nenhum) e de eu-topia (país da felicidade), desta forma a palavra contém simultaneamente, no
plano semântico, o caráter de irrealidade e a descrição da felicidade do Estado modelo”.
(TROUSSON, 2005, p. 125).
61
Cf. PAQUOT, Thierry. A utopia: ensaio acerca do ideal. Trad. Maria Helena Kuhner. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1999, p. 8.
62
Quarta chama a atenção para o fato de que a polissemia do termo tem sido “fonte de muitos
e graves equívocos no plano conceitual” (QUARTA, 2006, p. 36) e que, com o passar do
tempo, a palavra foi forçosamente carregada de incontáveis significados que, na verdade, não
são seus.
63
Difundidas, especialmente, nos, já muito populares, relatos de viagens de Américo Vespúcio.
64
O Renascimento é associado à retomada de muitos valores e de muitas práticas correntes
na Antiguidade que foram postos em segundo plano durante o Medievo, com a ascensão de
uma cultura marcantemente cristã. A revalorização de formas antigas de predição, bem como
de temáticas recorrentes na literatura clássica, como a utopia, é uma importante característica
deste período.
65
Tal condição de desprivilégio, na cultura medieval, segundo Trousson, tem uma explicação
simples, relacionada a uma característica fundamental da utopia: sendo esta uma manifestação
do gênio humano, eminentemente antropocêntrica e, mesmo, humanista, nunca poderá ser um

55
tornava-se, pois, uma obra delineadora dos contornos do conceito de utopia,
em sua acepção moderna, cujo marco precípuo é o firme propósito de não
atrelar a ideia de “mundo melhor” a uma transcendência ou à dádiva da
misericórdia divina para com os homens. Pode-se afirmar que, na
Modernidade, o que é utópico é também humano. E isto é uma conquista do
humanismo, razão pela qual Morus, mais que um renascentista, deve ser visto
como um humanista, alguém que, à medida que é capaz de apontar os
desacertos das construções intelectuais e políticas humanas é também capaz
de apontar caminhos, saídas eminentemente humanas. Vázquez (2001, p. 356-
357) o esclarece:

As utopias modernas não só se aferram ao real e criticam o


presente, como também se internam imaginativamente no
futuro e exploram o possível. Com isso antecipam uma
realidade que não é, mas que pode e deve ser. A utopia aqui
não só faz ver uma inadequação entre o ideal e o real e
expressa uma desconformidade com a realidade presente,
como também propõe um modelo de sociedade que, ao
contrário do platônico, não está fora do tempo e do possível.
Existe igualmente, ao contrário das utopias platônica ou cristã
medieval, uma vontade de realização do utópico, embora não
se desdobre no terreno da ação, do esforço prático para
transformar o existente.

Posta assim, a Utopia de Morus abre um caminho de possibilidades


ilimitadas, tornando a utopia uma das principais formas de predição moderna,
que passaria a ser considerada como um gênero literário autônomo, como
afirma Minois (2016, p. 324):

A obra de Thomas More é o protótipo, o precursor de um


gênero que vai realmente se desenvolver a partir do início do
século XVII, isto é, quando a verdadeira profecia inspirada tiver
recuado definitivamente e o espírito científico tiver surgido.

Assim, o século de Cristóvão Colombo e de Alexandre de Humboldt,


marcado pela lenta e gradual substituição dos valores do Medievo pelos da
Modernidade, marcantemente cientificista, veria amainar o entusiasmo em
torno da profecia e crescer a confiança em informações adquiridas por meio da

apelo à misericórdia. Na utopia, o homem constrói um mundo melhor para si e para os seus, e,
mesmo que muitas vezes reconheça a importância da religiosidade para a coesão social, não é
um mero apelo à transcendência. Cf. TROUSSON, Raymond. Utopia e utopismo, p. 130-131.

56
experimentação e da experiência. O descobrimento do Novo Mundo, e das
formas de vida das gentes que lá habitavam, fez parte desse complexo de
experiências que iriam condicionar todo o pensamento social da Modernidade.
Nesse sentido, Cacciari (2017, p. 105) considera a utopia – elemento típico da
Modernidade – como uma espécie de secularização da escatologia. E sobre
essa qualificação, afirma:

A figura de Colombo paira sempre nas utopias: a nova Terra


não seria nunca alcançável se não nos movesse o ímpeto
escatológico, a mania também religiosa que animou as
empreitadas dos grandes navegadores; o possível não se
realiza se não se tenta aquilo que no passado parecia
impossível. (CACCIARI, 2017, p. 105)

O nível de detalhamento dos aspectos da vida cotidiana – aspecto


característico das cartas de descoberta e narrativas dos hábitos dos moradores
das terras recém-achadas – encontrado no texto de Utopia, artifício, aliás, para
que ele pudesse ser recebido com o aspecto de uma experiência real vivida por
alguém – Rafael Hitlodeu – desempenha (e com muito sucesso, dado o
impacto de sua publicação66) o papel de contrapor uma sociedade bem
ordenada – lugar da sabedoria –, idealizada, à sociedade real e, em muitos
aspectos, desordenada e hostil (especialmente em relação a questões como a
liberdade religiosa e a opressão econômica67) em que escreve o autor,
posicionando-o como um dos mais representativos utopistas projetistas de toda
a história do pensamento68.
Como dito anteriormente, para dar um efeito mais poderoso ao texto,
Morus o escreveu como a narrativa de um fato real, um diálogo entre três

66
É notório tal impacto pelo grau de envolvimento de muitos entusiastas da obra, a exemplo de
Erasmus, e também de críticos que a viam como um texto extremamente nocivo, como foi o
caso de John Ruskin, por associá-lo a uma espécie de comunismo radical. Outro fato
mencionado em correspondências de Morus que o demonstram tal impacto, chegando a ser
muito hilário, é o fato de um certo “homem religioso e teólogo de profissão” ter escrito
formalmente ao Papa, rogando ser nomeado autoridade eclesiástica na ilha documentada por
Morus. Ele almejava ser feito Bispo dos utopianos.
67
Segundo Paquot, as pressões econômicas verificadas na Inglaterra de então, e denunciadas
por Morus na primeira parte de Utopia, são, bascamente, “a concentração de terras e a
pauperização de uma grande parte do campesinato, condenado a emigrar para a cidade, a
vagar sem rumo, a mendigar e a roubar” (PAQUOT, 1999, p. 30).
68
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica, p.
17, 64 e 136.

57
pessoas: ele próprio – narrador –, seu amigo Pieter Gillis69 e um certo viajante
português denominado Rafael Hitlodeu, cujas viagens, em companhia de
Américo Vespúcio, haviam-nos levado a muitos lugares distantes e curiosos.
Tal diálogo é ainda corroborado por outra sistemática muito elaborada. Morus
utiliza uma série de correspondências trocadas com pessoas de seu convívio,
especialmente o amigo Pieter Gillis, a quem se refere tanto à primeira conversa
como ao navegante Hitlodeu como realidades incontestes para criar um
ambiente de maior credibilidade. Em uma delas, chega da rogar a Gillis que o
amigo volte a conversar com o navegante Hitlodeu, para que possam sanar
algumas das dúvidas e lacunas que a sua memória possa ter deixado escapar.
O conhecimento da “existência” da República de Utopia ter-se-ia dado,
portanto, nesta conversa inicial, em que Rafael lhes descrevia tudo aquilo que
vivera durante o período de cinco anos em que permanecera naquela ilha, cuja
localização geográfica exata não é explicitamente exposta70, mas também não
é dada por desconhecida ou indeterminada71. A leitura do texto insinua que a
lacuna desta informação se deve apenas por um descuido ou pelo
esquecimento.
O aspecto descritivo em Utopia é primoroso e fundamental. A sociedade
que se estabelece na ilha, fundada muito tempo antes pelo rei conquistador
Utopos, não é um paraíso, um lugar de perfeição e de virtudes plenamente
desenvolvidas e imutáveis. É, antes, um lugar melhor, um “melhor estado
comunitário”, onde se viveria de um modo mais inteligente e justo que a
Inglaterra dos tempos do autor. Precisamente por esta razão, não fica
exatamente explícita a real e prioritária intenção que tinha o autor, se a de
apontar, pelo contraste, os vícios e problemas de toda a sorte verificáveis no

69
Morus é apresentado a esse amigo, importante na narrativa de Utopia e na repercussão do
texto, através de um amigo que lhes era comum, Erasmus de Rotterdam, que, inclusive,
dedicou a Morus seu principal livro – O elogio da loucura, ou Moriae Encomium sive Stulti tiae
Laus – e viria a supervisionar a primeira edição de Utopia. Depois de concluída a composição
do texto, Morus manteve profícua correspondência e troca de impressões com os dois amigos
acerca do estilo, da escrita e dos “fatos” narrados na história.
70
Morus a localiza, somente, como uma ilha no Oceano Atlântico meridional.
71
Em correspondência de Outubro de 1516 ao amigo Pieter Gillis, que instrui o envio do
original de seu “livrinho” para uma primeira apreciação, Morus se desculpa pelo fato de uma
simples narrativa de um diálogo que eles tiveram com Rafael Hitlodeu tenha demorado tanto –
mais de um ano – a ser concluída, já que o trabalho era essencialmente o de retirar da
memória as informações da conversa que tiveram. Além disso, lamenta não ter tido, à época
do referido diálogo, o cuidado, ou o preciosismo, de estabelecer a localização geográfica exata
da ilha de Utopia.

58
contexto social em que vivia ou de elencar os predicativos, expor em que
termos se constituiria – caso fosse possível existir – uma sociedade melhor.
Ou, ainda, se ele realmente acreditava na factibilidade de tal projeto. É o que
explica Claeys (2013, p. 60-61):

A questão é: ele realmente pretendia que a estrutura social e


política descrita no texto fosse uma solução realista para o
problema, ou a considerava inalcançável e até via os males da
Inglaterra como irremediáveis? A ambiguidade presente nessas
alternativas atormentou gerações de leitores.

De todo modo, a escolha criativa do vocábulo “utopia” 72 – que


anteriormente, tanto nas versões iniciais do manuscrito como nas
correspondências trocadas com Erasmus e Gillis em setembro de 1516,
recebia o nome de “Nusquama”73 – bem como pela escolha dos termos que
seriam utilizados para nomear pessoas e lugares no enredo da obra,
neologismos que são, em sua maioria, antífrases – como Hitlodeu
(personagem principal, em português o equivalente a “sem sentido”), Amaurota
(capital, cidade nevoeiro), Anidra (rio, um rio sem água) – sinaliza no sentido de
que o autor não espera que suas palavras sejam tomadas de modo
plenamente denotativo.
O texto de Utopia, freneticamente republicado e traduzido para muitos
idiomas logo em seus primeiros anos de existência, tornou-se fonte de
pesquisa e de influência para um sem-número de escritores de literatura de
caráter político, de juristas, de ativistas políticos, de autores de outras utopias e
de ficção científica. A razão principal é que estão imersos na narrativa uma
série de valores que serão basilares para a construção das sociedades
modernas, como, por exemplo, o valor do trabalho, tido como a principal
ocupação do utopiano, essencial tanto para a sociabilidade como para a
autocriação privada. Segundo Paquot, “esse lugar privilegiado dado ao trabalho
– o que é algo realmente novo – será retomado por um industrial utopista,
Robert Owen” (PAQUOT, 1999, p. 33).

72
QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave. Trad. Helvio Gomes Mores Jr. In:
Morus: utopia e renascimento. Vol. 3. 2006. 35-53, p. 39 e seguintes.
73
Palavra que, segundo Quarta, advém da substantivação de um advérbio latino muito corrente
à época, “nusquam”, o que resultaria em um sentido como “em nenhum lugar”.

59
Prodi (2017, p. 49), referindo-se ao impacto do pensamento de Morus
em Utopia, afirma:

Seu pensamento é um divisor de águas entre duas épocas e


dois mundos, não apenas por seu conteúdo (a nova ética
pública e privada, a abolição da propriedade privada e a
comunhão dos bens etc.), mas também por sua proposição
distinta de todo o messianismo milenarista: é a visão de uma
modernidade sem lugar e sem tempo, antípoda da descrito ou
proposta por Maquiavel.

Assim, Utopia representou bem mais que mais um romance de viagem,


ambientado em uma ilha desconhecida, transformando-se em uma obra de
relevância inegável pela maneira nova como dispõe os aspectos político-
literários que serão tão recorrentes à Modernidade.
Servindo, pois, como uma espécie de protótipo, Morus acabou por
desenvolver uma tendência, uma forma de escrever, que se manteve viva e
pulsante até os nossos dias, evidentemente, com picos de popularidade e
períodos de menor impacto. Minois (2016, p. 480), fazendo uma contagem
despretensiosa, afirma que o século XVII é um dos principais picos de
popularidade da literatura utópica:

Contamos mais de trinta entre A Cidade do Sol, de Campanella


(1602) e Telêmaco, de Fénelon (1699). Todas testemunham
um desejo de fuga diante do mundo sufocante do classicismo e
do absolutismo de Estado, mas os meios diferem conforme a
época e o país.

Quarta, analisando o aspecto literário do texto, afirma que Morus é


responsável por disparar um processo que “dá início não somente ao
renascimento do pensamento utópico, mas também a um novo gênero literário:
o romance utópico, que tanta fortuna teve ao longo de toda a Idade Moderna,
até os nossos dias” (QUARTA, 2006, p. 45).
E, ainda, segundo Paquot (1999, p. 34):

O gênero literário utópico não sofrerá muitas mudanças e


respeitará um modelo típico, que preconiza viagens
longínquas, ilhas desconhecidas e encontros com “sábios”
anciãos que narram uma espécie de “sonho desperto”, em que

60
o maravilhoso tem lugar de destaque, ao lado do insólito e do
revolucionário.

De certo modo, o que há de encantador e extraordinário em cada uma


dessas histórias utópicas é, essencialmente, o que as contrapõe aos contextos
sociais em que foram gestadas, mesmo quando os autores não deixam isso
muito explícito ou até quando não parecem perceber que o estão fazendo. Tal
contraposição costuma levar os autores à defesa (velada ou explícita) de
valores tais como a liberdade, o progresso, a importância de idealizar o mundo,
a confiança no potencial da ciência e a tolerância religiosa.

1.5 O estatuto do discurso pós-moderno: o fim das utopias?

Não posso deixar de temer que os homens cheguem a um


ponto em que vejam todas as novas teorias como perigosas,
todas as inovações como aborrecimentos cansativos, todos os
progressos sociais como um passo inicial para a revolução, e
que por isso se recusem absolutamente a realizar qualquer
movimento. (Alexis de Tocqueville)

A partir da segunda metade do século XX a dialética das ideias tornou-


se desconcertantemente enfastiosa a ponto de uma curiosa ideia se
estabelecer: “proliferam as tendências para decretar o fim das doutrinas,
movimentos ou comportamentos humanos” (VÁZQUEZ, 2001, p. 353).
Ironicamente, pode-se dizer que surgiu uma tendência a “passar atestados de
óbito”. Apregoar o surgimento de um novo tempo, não necessariamente mais
afeito à esperança de melhorismos sociais, e o nascimento de uma
circunstância nova em que os valores antigos ficaram para trás, tornou-se, por
assim dizer, uma moda intelectual entre muitos literatos e até entre filósofos e
cientistas sociais: “E assim, sucessiva ou simultaneamente, foi-se anunciando
o fim do marxismo, da história, da modernidade, do socialismo, e, por último,
este fim dos fins que viria a ser “o fim da utopia” (VÁZQUEZ, 2001, p. 353).
Fala-se, recorrentemente, na sociedade pós-moderna como uma
espécie de ponto final para as grandes narrativas. Ela seria, pois, o tempo do
desencantamento, da desconfiança e desesperança para com as explicações

61
ou soluções de amplo espectro, teorias abrangentes, utopias construtivas de
um mundo melhor. A obra de François Lyotard acerca desta temática que,
aliás, contribuiu sobremaneira para a popularização da expressão “pós-
modernidade”, é tão esclarecedora quanto inquietante74.
Segundo Jacoby75, a carência endêmica de perspectivas paralisa as
esquerdas políticas, que se vêem ante a uma situação em que os intelectuais
não encontram subsídios para pensar em um mundo diferente do que têm.
Para ele, são pouquíssimos os que ainda encontram modos de ver o futuro
como algo mais que uma réplica do presente.
Wolff (2016, p 33) assevera que algo depõe muito marcantemente contra
a utopia no nosso tempo:

A utopia é política, mas nossa época parece ter perdido a fé na


política. E isso, em primeiro lugar, porque as grandes utopias
libertárias do século XIX foram esmagadas sob o muro da
realidade. (WOLFF, 2016, p. 33)

Em sequência, o século XX seria, por assim dizer, o ocaso de todas as


certezas. Tudo o que se alega com pretensão de verdade – ou de estar mais
próximo do que é realmente real – tornou-se objeto de suspeita. Minois (2014,
p. 637) o ilustra brilhantemente:

Dificilmente nos enganaremos se afirmarmos que o século XX


permanecerá na história como o século do naufrágio de todas
as certezas. Começou com o alarido das certezas nacionais,
que se esgotaram na lama das trincheiras; foi pautado, em
seguida, pelas certezas ideológicas e raciais de direita, que se
afogaram nos holocaustos e no cogumelo atômico, pela
certeza comunista de uma nova aurora da humanidade, que se
perdeu nos gulags e nas prateleiras vazias dos armazéns do
Estado, pelas certezas liberais capitalistas, esmagadas pelas
multidões de desempregados, pelas certezas democráticas,
asfixiadas pelo mau cheiro da corrupção, pelas certezas
científicas, confrontadas aos problemas éticos, e pelas
certezas humanistas, que morreram na miséria de metade da
humanidade; esse século interminável acaba enfim com
celebrações cuja justificação parece difícil compreender.

74
O livro A condição pós-moderna, de 1979, teve papel fundamental para a compreensão de
que muito do vocabulário utilizado para descrever o mundo àquela época era decorrência
direta da metanarrativa racionalista iluminista já em decadência, em vistas da ascensão de
uma pós-modernidade.
75
JACOBY, Russel. Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica,
p.17, p. 23 e seguintes.

62
Diagnóstico semelhante é apresentado por Judt, ao tempo em que
analisa as circunstâncias ideológico-políticas de nosso tempo, o início do
século XXI, e a necessidade de uma nova esquerda, repaginada, capaz de
sugerir saídas para as crises que nos afetam hoje e, fatalmente, nos afetarão
amanhã:

Entramos numa era de insegurança – insegurança econômica,


insegurança física, insegurança política. O fato de não nos
darmos conta disso pouco reconforta: poucos em 1914 previam
o completo colapso de seu mundo, com as catástrofes
econômicas e políticas que seguiram. A insegurança alimenta o
medo. E o medo – da mudança, do declínio, dos
desconhecidos e de um mundo estranho – está corroendo a
confiança e a interdependência nas quais se apoiam as
sociedades civis. (JUDT, 2011, p. 21)

Acompanhar, em conseguinte, a discussão política hoje, especialmente


em ambientes não acadêmicos, é se deparar, muitas vezes, com uma
tendência: aparentemente, vivemos o tempo da aquiescência, uma época em
que muitas pessoas acreditam ser mais correto e mais produtivo não discutir
coisa alguma. O silêncio parece ser, muitas vezes, providencial. Ou pela
ausência mesmo de propósitos radicais ou pela suposta indefensabilidade do
ato de ter propósitos radicais em meio à apatia e à indiferença, circunstância
que parece gritar a todos os ouvidos que “não há mais cura para as síndromes
decorrentes da modernidade. Dentre elas, a mesmice crônica (mais do
mesmo), a auto-suficiência (podemos e temos tudo e mais um pouco), e a
auto-referência (é assim que se faz)” (SOUSA, 2016, p. 14).
Evidentemente, esse fenômeno se reflete em todas as instâncias da vida
social, escapando à dimensão política. Mason, citando o filósofo italiano Franco
Berardi, analisa uma tendência muito viva em termos de cultura popular e de
mercado, a tendência da reutilização de símbolos e valores antigos para se
referir àquilo que é atual. Trata-se, nos termos do pensador italiano, de um
“lento cancelamento do futuro”:

Uma vez que as pessoas compraram a ideia de que o


neoliberalismo era a forma final do capitalismo e que a história

63
“acabou”, a cultura popular entrou num circuito de repetição, no
qual a ideia de progresso evaporou. (MASON, 2020, p. 304)

Prodi76, por sua vez, alerta para o fato de que o nosso tempo nos coloca
diante de um avassalador processo de homogeneização. Diante do poder dos
grandes impérios ocidentais e do capitalismo globalizante, parece que não
sobra ocasião para se pensar a existência de outro espaço. Em tal cenário, é
possível se chegar à conclusão de que o que temos é tudo o que é possível ter
em termos de experiência político-social, de que a tipo de vida que os impérios
ocidentais fizeram nascer para seus cidadãos é o único objetivo que qualquer
sociedade poderia sonhar para os seus.
O radical desencanto com o “socialismo real”77, apregoado por muitos
intelectuais de relevo no século XX – a exemplo de Raymond Aron, com o seu
O ópio dos intelectuais, ou de Judith N. Shklar, em Depois da utopia: a
decadência das crenças políticas – deixou no ar a ideia, quase como um senso
comum, de que pode não haver mais opções ao capitalismo.
Judt, de modo provocativo, questiona se, mesmo sem descartar o
capitalismo, estamos sem saída. Tudo está pronto e acabado? Não há mais
como pensar algo novo e a sociedade que temos, com o tipo de mercado que
ela fez emergir, serão as únicas opções de que podemos dispor?

Por que encontramos tanta dificuldade até para imaginar um


tipo diferente de sociedade? Por que está além de nossa
capacidade conceber um conjunto diferente de disposições
para o benefício comum? Estamos eternamente condenados a
oscilar entre um “mercado aberto” disfuncional e os tão
propalados horrores do “socialismo”? Nossa deficiência é
discursiva: simplesmente não sabemos mais como tratar
desses assuntos. (JUDT, 2011, p. 43)

Uma resposta impactante foi dada em O fim da história e o último


homem78, obra de 1992, pelo cientista político e economista nipo-americano
Francis Fukuyama, e apregoa precisamente isso: não há opções viáveis ao

76
PRODI. Paolo. Profecia, utopia, democracia. In: CACCIARI, Massimo e PRODI, Paolo.
Ocidente sem utopias. Trad. Íris Fátima as Silva Uribe, Luis Uribe Miranda, Flávio Quintale.
Belo Horizonte: Âyiné, 2017, p. 79.
77
Vide nota 36.
78
Essa obra foi antecedida por um artigo que ficou muito famoso, O fim da história?, publicado
em 1989 na revista The Nacional Interest, em que o autor já expunha parte essencial de sua
teoria. Três anos após, ele expande a argumentação no livro citado.

64
liberalismo ocidental; não haveria, por conseguinte, qualquer sentido aceitável
em se buscar configurações políticas ideias que sejam melhores que ele. Pode-
se até pensar em como aprimorar o sistema liberal-democrático, mas nada em
relação a substituí-lo por algo novo. A tese de Fukuyama representa, assim, a
ascensão não apenas da circunstância do fim das ideologias, mas do fim da
história.
Nessas circunstâncias, é importante salientar que tal eclipse do espírito
utópico, testemunhado por tantos teóricos importantes, afeta não apenas a
utopia como meta, mas também a compromete enquanto método, como explica
Levy: “este é também o momento crucial do eclipse do espírito utópico, não só
da sua disposição prática, mas também do seu reconhecimento teórico como
porta-voz do futuro” (LEVY, 2012, p. 89). E é precisamente este um dos pontos
em que Rorty se distancia de tais concepções, adotando a utopia não apenas
como método, mas, e principalmente, como meta. Evidentemente, como será
exposto adiante, sua “teoria” não se realizou nos moldes do pensamento
filosófico tradicional, constituindo-se muito mais em uma conversação que em
uma teorização política.
Na qualificação do pós-moderno, Levy associa-o ao “fim da utopia” em
duas diferentes vias, uma relacionada à consciência do tempo presente (a
perda da consciência da tridimencionalidade do tempo humano) e a outra, ao
ocaso das expectativas criadas em torno dos regimes ditatoriais, que
prometiam realizar utopias de perfeição social:

O “fim da utopia” atinge o seu auge no quadro contemporâneo,


quando a consciência do presente debruça-se sobre si mesma
numa abstração atemporal que apaga do olhar humano as
luzes do passado e do futuro e revela enganosamente o dado
como uma pesada fatalidade. Mas isso explica apenas
parcialmente o silêncio do espírito utópico, pois ele também
resulta de um luto profundo do sujeito ético pela falência das
experiências totalitárias que prometiam, indevidamente, atingir
o absoluto da perfeição humana. (LEVY, 2012, p. 91-92)

Enfim, é importante lembrar o que Mannheim, que já apontava para um


desfalescimento do espírito utópico e um crescimento da mentalidade científica
no início do século XX, afirmou categoricamente como última proposição de
seu Ideologia e utopia:

65
A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático
em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos,
então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja,
o do homem que, tendo alçado o mais alto grau de domínio
racional da existência, se vê debaixo de nenhum ideal,
tornando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término
de um longo e tortuoso, mas heróico desenvolvimento, e
justamente no mais elevado estágio de consciência, quando a
história vai deixando de ser um destino cego e se tornando
cada vez mais uma criação do próprio homem, o homem
perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a
história e, com ela, a capacidade de compreendê-la.
(MANNHEIM, 1982, p. 285)

Partindo da retórica mannheimiana, parece ser muito coerente observar


que o triunfo final e absoluto da ideologia seria lograr relegar à utopia um papel
de somenos importância, a pejoração da palavra, o descrédito do conceito. A
vitória final da ideologia seria o pior que nos poderia acontecer, o descrédito na
possibilidade da mudança, o fim das esperanças, a desesperança. E em
qualquer contexto histórico, as forças da manutenção e da permanência
trabalharão, evidentemente, em empreender a desesperança da mudança.
Bauman, argutamente, vê o nosso tempo não como o fim da utopia, ou
como qualquer espécie de término das possibilidades de mudança social
relevante. Pelo contrário, a liquidez característica da pós-modernidade
apresenta uma característica interessante: em meio às incessantes lutas por
mudança social – por exemplo, as intermináveis reivindicações coletivas por
reconhecimento de direitos individuais e coletivos – perdeu-se a ideia de visão
a priori de um estado final79. A pós-modernidade é o lugar da mudança, mas
não se pode saber de antemão aonde essa mudança nos conduzirá. De certo
modo, a utopia maior de boa parte dos agentes da transformação nas
sociedades modernas é nunca parar de mudar e permanecer no firme
propósito de mudar para melhor, mesmo que não haja uma visão clara de
destino último. A sociedade pós-moderna não admite um sonho de perfeição.
Assim, não faz sentido desejar ou lutar para se efetive hoje uma “erradicação
completa e radical da miséria humana seguida de uma condição humana livre
de conflitos e de sofrimentos” (BAUMAN, 2003, p. 73). Mas continua fazendo

79
BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

66
sentido desejar e efetivar transformações sociais de melhorias80, ou seja, a
ideia de boa sociedade não se perdeu e o exercício da criatividade social
permanece sendo um valor.

1.6 Novo o homem, novas as utopias

A contemporaneidade – ou a Pós-Modernidade, para alguns um conceito


mais apropriado –, por ser uma circunstância de desconstrução de muitas
certezas aparentemente perenes, dispõe-nos diante de uma questão
sobremaneira incômoda, a autodefinição. Dizer “o que é o homem” ou “quem é
o homem” sempre foi uma questão filosófica central, entretanto, no contexto da
contemporaneidade, definir-se se torna ainda mais difícil, uma vez que boa
parte dos critérios anteriormente adotados pela tradição do pensamento como
ferramentas conceituais – raça, classe social, gênero, pertencimento a uma
comunidade, etc. – tornam-se ineficazes ou inapropriados. Houve, por
exemplo, uma época em que uma resposta para a pergunta “quem somos
nós?” seria simples e imediata, como Wolff (2016, p. 37) percebe:

Nas grandes épocas portadoras de utopias humanistas, no


Renascimento ou nas Luzes, à questão “quem somos nós?”
teríamos respondido: somos todos seres humanos, livres e
iguais.

Hoje, entretanto, a expressão “seres humanos” permanece controversa


e problemática, vestida com roupas inteiramente novas. E duas das suas
possibilidades de significação se encontram no ponto exato de bifurcação para
respectivas duas espécies de utopias, típicas à contemporaneidade e que se
diferenciam, justamente, pelo alcance atribuído à noção de seres humanos, a
saber, a utopia antiespecista, ou biosférica, e a utopia trans-humanista, ou pós-
humanista.
A Filosofia Antiga, especialmente Aristóteles, qualificava o ser humano
em relação a dois extremos basilares: o homem é mais que os animais

80
Que, para Bauman em consonância com Nancy Fraser, estão relacionadas hoje,
principalmente, à “distribuição equitativa das oportunidades uma a uma, à medida que se
revelam e são trazidas à atenção pública graças à articulação, manifestação e esforço das
sucessivas demandas por reconhecimento” (BAUMAN, 2003, p. 73).

67
irracionais e menos que os deuses. Ele está exatamente na condição de um
ser mortal pensante. A sua mortalidade lhe aproxima dos animais irracionais,
enquanto que a sua capacidade de pensar lhe aproxima dos deuses; ao
mesmo tempo, sua mortalidade lhe afasta dos deuses, e sua racionalidade lhe
afasta dos animais irracionais. É assim que o homem compreendia a si mesmo,
em conformação e oposição com esses dois parâmetros, como um ser
racional-mortal81.
As duas espécies de utopias acima citadas, o antiespecismo e o trans-
humanismo, são, por assim dizer, expressões atuais do desejo humano de não
se situar docilmente neste espaço, espremido entre os deuses e os animais
irracionais, forçando os limites tanto para um lado como para o outro e
transparecendo a inquietude de não saber ao certo quem é o homem. Assim, a
factibilidade de se tornar outra pessoa substitui a ânsia por salvação ou
redenção ao modo antigo:

Querer se elevar até o céu dos deuses era, como diziam os


gregos, pecar por húbris, por desmedida de quem quer
ultrapassar seus limites naturais. Inversamente, rebaixar-se até
o nível dos animais, abandonar sua faculdade racional, era cair
na bestialidade vergonhosa. Mas como hoje não sabemos mais
quem somos, nós, homens, nos identificamos ora a animais,
ora a deuses. Tais são as duas utopias da nossa modernidade.
Não uma utopia no sentido de imaginar estar em outro lugar.
Mas uma utopia no sentido de imaginar ser um outro.
(WOLFF, 2016, p. 38)

Com o desenvolvimento da Ciência, especialmente a teoria evolucionista


e as revoluções conceituais a ela correlatas, e com o advento de inúmeras
concepções filosóficas modernas e contemporâneas em relação à natureza
humana – ou à inexistência dela – parte considerável dos indivíduos vive hoje
em um mundo muito mais naturalizado e muito menos encantado. É, pois,
natural que surjam problemas inteiramente novos, relacionados, por exemplo, à
aproximação dos seres humanos a todos os outros elementos da biosfera, bem
como à secularização do pensamento, o antropocentrismo, o comunitarismo e

81
WOLFF, Francis. As três utopias da modernidade. In: NOVAES, Adalto (Org.). O novo
espírito utópico. São Paulo: SESC, 2016. (Mutações), p.37.

68
o individualismo marcantes em nosso tempo. Resultam, portanto, daí as duas
utopias citadas. Vejamos cada uma delas mais detidamente.

1.6.1 A utopia antiespecista ou biosférica

Para Wolff, uma série de novas ideologias e movimentos sociais em


ascensão, principalmente, a partir da segunda metade do século XX e início do
século XXI, provocou uma marcante transformação na maneira como o homem
busca se relacionar com outras espécies animais. Expressões como vida
vegana, direito dos animais, libertação animal, e até genocídio animal, que
causariam grande estranheza há bem pouco tempo, são hoje parte efetiva do
vocabulário ético-político de uma parcela cada vez mais expressiva da
população mundial. Ao que parece, um grande desapontamento e uma grande
desesperança em relação às utopias de libertação do homem82, resultaram em
uma maior atenção para com outra possível vítima da sanha do próprio
homem, os animais:

Os conceitos políticos forjados, não faz muito tempo, para


pensar a subjugação dos homens, tomaram outro rumo: fala-se
de libertação animal como se falava ontem de libertação de
certos povos ou de certas classes (embora continue havendo
tantos homens no mundo que vivem realmente subjugados!).
Fala-se da exploração dos animais como se falava ontem da
exploração do homem pelo homem (a qual, no entanto,
realmente não diminuiu). Qualifica-se mesmo de genocídio
animal certas formas de abate. Aos olhos desses combatentes
da causa animal, é como se os animais fossem os novos
proletários do capitalismo produtivista, os últimos mártires, as
únicas incontestáveis vítimas. (WOLFF, 2016, p. 39)

Os trabalhos de alguns pensadores importantes, reunidos sob a


qualificação de “Ética Animal” – especialmente os do utilitarista australiano
Peter Singer, com destaque para Libertação animal, de 1975 e os de Tom
Regan, com destaque para Animal rights, human wrongs, de 2003 – foram de
extrema importância para a popularização de ideias acerca da dignidade da
vida animal, e do combate à banalização do sofrimento de todas as espécieis
82
Tal descrença quase generalizada em relação aos ideais de libertação política ou social ou
aos projetos coletivos de libertação é precisamente o que configura o diagnóstico, preconizado
por muitos estudiosos, do fim da utopia. Na verdade, o que ocorre é tão somente uma
mudança de foco.

69
animais. Noções como a de direito dos animais, por exemplo, são
consideravelmente devedoras de ideias desses intelectuais. O conceito de
especismo83, por exemplo, advém diretamente de seus trabalhos e se tornou
um conceito-chave para os movimentos sociais de libertação animal.
Na lógica do pensamento que fundamenta a utopia antiespecista, nada
justifica qualquer tipo de superioridade do homem em relação às demais
espécies animais, que passa justificar que o homem os trate como meios para
os seus interesses e não como fins em si mesmos. Desse modo, existe um
dever moral do homem para com eles que é correlato ao dever que temos para
com os outros seres humanos. E, indo além, todos os animais, indistintamente,
são titulares dessa condição e dos direitos a ela correlatos. A domesticação de
animais, símbolo do processo de civilização, portanto, pode e deve ser
compreendida como uma expressão da barbárie humana, uma escravização84.
Seguindo a inevitável afetação dos conceitos, expressões como “libertação”,
“exploração” e “extermínio”, usuais na análise política de relações
eminentemente humanas, passam a ser utilizadas de modo inteiramente novo
e despolitizado:

A figura naturalizada do homem, embora determine uma nova


atenção dada aos animais, tanto ao bem-estar como aos
sofrimentos deles, também tem como efeito despolitizar os
conceitos inventados para pensar as relações de dominação
entre os homens: “libertação”, “exploração” ou até “extermínio”.
Estas palavras são usadas com frequência cada vez maior
para caracterizar as relações dos homens com os bichos, como
se nada fosse “político” sem ser de ponta a ponta “ético”.
(WOLFF, 2012, p. 285)

Para os entusiastas da utopia antiespecista, pois, o homem compõe – ou


deve compor – um novo nós, uma comunidade cujos membros são livres e
iguais, formada por todos os animais indistintamente. A justificativa para tal
unidade seja possível é a de que o homem não está acima das outras espécies
animais como por muito tempo se pensou. Muitos são os aspectos em que eles
formam conosco uma unidade, como, por exemplo, na capacidade de sofrer,

83
O especismo é o ato de promover um tratamento discriminatório a um animal em função de
sua espécie. Para os defensores dos direitos dos animais, um flagelo tão violento e
injustificável quanto o é o racismo e o sexismo.
84
WOLFF, Francis. As três utopias da modernidade, p. 39.

70
de sentir dor. E isso não deveria ser entendido como uma espécie de
humanidade partilhada com os outros animais, e sim, como uma animalidade
que é própria também ao homem. Visto sob a perspectiva de um naturalismo
não hierárquico, a fórmula “todos os homens são iguais” – que deu vazão às
grandes utopias do século XIX – é substituída por “todos os animais são
iguais”.
Deve-se alertar ainda que esta ideologia animalista tem encontrado uma
grande aceitação nos meios intelectuais, filosóficos e jurídicos. Isso porque,
aparentemente, não pode haver nada de errado no pensamento de tratar bem
os animais, além do que há uma série muito grande de fatores, especialmente
de caráter econômico e sociológico, que se somam e contribuem para a
mentalidade afeita ao animalismo ou ao antiespecismo:

A tomada de consciência da deterioração, devida ao


produtivismo, das condições de criação, transporte e abate de
animais destinados à alimentação; perda de contato das
populações urbanas com a natureza selvagem; ignorância da
vida real dos animais em seu ambiente natural; esquecimento
da luta ancestral dos homens contra as espécies nocivas (luta
que continuam a travar nos países menos desenvolvidos);
crescimento exponencial do número de animais de estimação,
cada vez mais fetichizados, por meio dos quais é visto todo o
reino animal; idealização da Natureza, o que provoca uma
representação do homem como algoz universal e do Animal
como sua vítima por excelência. (WOLFF, 2012, p. 272)

Em termos básicos, a utopia animalista poderia ser assim vaticinada:

A humanidade do futuro não utilizará mais os animais ou os


produtos derivados deles para satisfazer suas necessidades,
desejos ou caprichos. Um dia, não haverá mais animais de
estimação ou animais domésticos. Um dia, o homem romperá
com seu passado predador. Libertando outras espécies, ele
libertará a si mesmo. (WOLFF, 2018, p. 43)

A profusão de ideias antiespecistas, de certo modo, exige pouca


sagacidade para que se lhe conteste. Há incontáveis contradições em seus
princípios básicos e uma considerável quantidade de analogias e
generalizações perigosas nas suas formulações teóricas. Wolff aponta a maior
delas com muita clareza, ao afirmar que “a atitude que pretende denunciar
radicalmente o antropocentrismo é radicalmente antropocêntrica” (WOLFF,

71
2012, p. 272). Isto é, não se exigiria de espécie alguma uma atitude ética em
relação a todas as demais espécies. Mas pretendem exigi-lo ao homem. Isso
só pode ocorrer por um motivo, o homem não é “um animal como os outros”, só
ele pode agir eticamente, só ele pode ser especista ou antiespecista com base
em sentimentos e/ou princípios racionais. Mais desconsertantemente ainda:
afirmar que o homem é um animal como os outros, na verdade, só afirma o
contrário disso. Essa é única espécie que pode afirmá-lo, como poderia, então,
ser como todas as outras?
Persson e Savulescu, entretanto, advogam a existência da necessidade
de que essa espécie – o ser humano – tão naturalmente racional como egoísta,
passe por melhoramentos morais a fim de que a possa pensar e agir movido
por ideais que ultrapassem o autointeresse, e sendo cada vez mais capazes de
considerar – e de alargar a sua ética – as futuras gerações e os animais não
humanos85.

1.6.2 A utopia trans-humanista ou pós-humanista

Tanto a utopia antiespecista quanto a utopia trans-humanista expressam


inquietações e esperanças do homem em relação à sua autodefinição e à visão
do que o futuro lhe reserva. Enquanto na primeira, o homem se vê aproximado
de todas as outras espécies animais, equiparado a elas em dignidade e
compondo com elas uma comunidade biosférica, nesta segunda modalidade de
utopia, os progressos da ciência e da técnica levam-no a se imaginar como o
resultado de incontáveis aprimoramentos86 físicos, mentais, psicológicos e
morais.
Para os entusiastas da utopia trans-humanista, o homem será amanhã o
resultado de todas as espécies de melhoramentos imagináveis, logrando
vencer assim muitas limitações, doenças, e até mesmo o envelhecimento, e a
morte, o que é muito bem evidenciado na sua idéia-chave: “living longer,
healthier, smarter and happier”. Trata-se do sonho humano de se desvencilhar

85
PERSSON, Ingmar e SAVULESCU, Julian. Inadequado para o futuro: a necessidade de
melhoramentos morais. Trad. Brunello Stancioli. Belo Horizonte: UFMG, 2017, p. 159.
86
A expressão inglesa enhancement é comumente utilizada pelos estudiosos para se referirem
a todas essas formas de melhoramento artificial humano.

72
de uma série de entraves à efetivação de seus supostos potenciais e,
especialmente por meio da Genética e da Informática, ter uma vida longeva,
mas não apenas viver por muito tempo e sim viver bem por muito tempo, com
saúde física e mental. Enfim, viver feliz, produtivo e por muito tempo, e, assim,
“ultrapassar a animalidade humana” (WOLFF, 2016, p. 43).
Assim, no vocabulário pós-humanista, fala-se em imortalidade (em
sentido não espiritual) não mais como um delírio ou como a expressão da
megalomania do homem, mas como uma possibilidade real:

Não é mais despropositado imaginar uma vida eterna,


mediante a mudança contínua das peças do nosso corpo e da
artificialização de nossos órgãos, ou mediante o teletransporte
de nossa consciência para materiais inalteráveis. A única morte
a considerar estaria ligada à escolha de desconectar-se e de
recusar recorrer aos milagres da tecnologia. A única morte
natural seria acidental. (BESNIER, 2016, p. 323)

A revolução preconizada pela utopia trans-humanista é libertária, mas


em um sentido muito diferente daquele imaginado pelas lutas de revolução
libertárias da coletividade, características, especialmente, do século XIX. Nesse
caso, a libertação do homem não se concentrará nos aspectos econômico ou
político, mas terá um caráter eminentemente técnico. Além disso, nem se
considera a idéia de que seja algo destinado a uma coletividade, não se trata
de um sonho de justiça social. Trata-se de uma revolução libertariana que
“permitirá aos que desejarem, e sobretudo aos que puderem, libertar-se dos
limites naturais da humanidade” (WOLFF, 2018, p.35). É, portanto, um desejo
relacionado à oportunidade de poucos se tornarem indivíduos especiais – mais
especiais do que já são por disporem de recursos para tanto –, a utopia de um
mundo em que os super-humanos estarão frente a frente aos sub-humanos,
uma vez que de modo algum se objetiva a diminuição da concentração de
riqueza ou de poder.
Na retórica da utopia trans-humanista, a relação existente há muito
tempo entre homem e máquina se modificará ainda marcantemente,
orientando-se para duas vias principais de possibilidade: ocorrerá a
humanização da máquina, bem como ocorrerá a maquinização do homem.

73
Fala-se em humanização da máquina para se referir à previsão de que,
em breve, com a evolução da robótica, as máquinas serão capazes de
empreender algo semelhante à aprendizagem e desenvolvimento humanos.
Utiliza-se, comumente, a expressão singularidade para “designar o momento
em que a máquina será capaz de se reprogramar, ela própria, para aumentar
ao infinito suas capacidades” (WOLFF, 2016, p. 44).
A outra via da relação homem-máquina resultaria na maquinização do
homem. Seria esse um passo decisivo na luta do homem contra as limitações
que lhe são impostas pela natureza. É o homem em busca de superar tais
“imperfeições” características da condição humana, de modo que, em breve,
até a noção de morte seria redescrita. O ápice da utopia trans-humanista é a
ideia de que o humano evoluirá para o trans-humano e este, para o que se
chama pós-humano:

Com efeito, um pós-humano será uma espécie de humano no


qual nenhuma das funções vitais, sensoriais, intelectuais será
assegurada por simples e rudimentares órgãos naturais, mas
sim por próteses que, conforme o caso, suprirão a falência dos
precedentes, aumentarão suas capacidades, farão crescer seu
rendimento e até mesmo permitirão adquirir novas aptidões –
estendendo assim o campo da liberdade de ação individual
sem as limitações naturais que são o envelhecimento, a curta
duração da vida, o pequeno número dos sentidos e seu
reduzido poder. (WOLFF, 2016, p. 45)

Besnier (2016, p. 328) elenca algumas das possibilidades de intervenção


da tecnologia nos corpos humanos, que farão surgir esse homem aumentado:

Aumento da memória, visão noturna, exoesqueleto, orelhas e


retinas artificiais, psicoestimulantes para reforçar a atenção ou
impedir de dormir, ou ainda implantes intracerebrais para
exercer ações a distância. (...) todo esse arsenal nos prepara,
segundo os trans-humanistas radicais, para acolher o pós-
humano.

Muitos dos trans-humanistas partem da ideia de que não existe uma


natureza humana, a que o homem deva ficar adstrito, mas apenas uma
aparente e provisória condição humana, expressada em uma grande
quantidade de aparentes imposições da natureza sobre o homem, que o

74
impedem, à medida que ele se deixar resignar, de se tornar tudo aquilo que
poderia vir a ser.
Nem de longe, entretanto, esse entusiasmo com o pensamento trasn-
humanista é pacificado. Uma das frentes em que ele é firmemente rechaçado é
o bioconservadorismo. No mundo inteiro, cientistas e profissionais da área
médica propõem, por exemplo, que seja criado algum tipo de tratado
internacional com o desiderato específico de proibir todas as formas de
clonagem de seres humanos. Organismos de direito internacional, como a
própria Organização das Nações Unidas – ONU, empenham-se em constituir
algo assim, ainda sem sucesso. No campo das ideias, Fukuyama (2003, p.
190), por exemplo, destaca-se como uma voz radicalmente contrária às ideias
pós-humanistas, em defesa do humanismo, da noção de natureza humana e
de direitos humanos naturais e invioláveis, denunciando as consequências, a
seu ver, nefastas da revolução da biotecnologia e defendendo a necessidade
de seu controle político:

Os países devem regular politicamente o desenvolvimento e o


uso da tecnologia, criando instituições que discriminem entre
aqueles avanços tecnológicos que promovem o florecimento
humano e aqueles que representam uma ameaça à dignidade
e ao bem-estar humanos. Essas instituições reguladoras
devem primeiro ser autorizadas a impor essas discriminações
num nível nacional e, por fim, estender seu alcance
internacionalmente.

Evidentemente aquilo que os representantes do pensamento trans-


humanista chamam utopia, muitos chamariam distopia. Interferências tão
importantes nos processos naturais que acompanham o homem há muito
tempo gerariam, como muitas vezes geraram, grande impacto e desconforto –
mais ou menos justificável – a muitas pessoas. De modo que o sonho humano
de se desvencilhar de amarras que a natureza lhe impõe pode resultar em
grilhões ainda mais escravizadores. É precisamente o receio que Oliveira
(2010, p. 409) expõe, lançando mão da metáfora grega sobre o conhecimento
e a técnica87:

87
A literatura filosófica é recorrente na utilização do mito de Prometeu – que inclui as
personagens Epimeteu e Pandora – com variados propósitos. Em geral, esta metáfora está
associada à crítica do progresso desenfreado e às possibilidades de que o seu preço seja
extremamente alto para que o ser humano possa com ele arcar. Os frakfurtianos,

75
Esse avanço irrefreável de Prometeu está se tornando seu
contrário: ciência e técnica estão se convertendo em novas
correntes que aprisionam o titã, roubando agora não mais do
Olimpo, mas tirando dos homens a capacidade de estabelecer
e controlar o fluxo do tempo e seus significados. O fogo foi
devolvido aos deuses, e o destino dos homens voltou a ser
atributo dos deuses: as deusas da ciência e da técnica.

Um dos pesadelos advindos dessa intervenção da ciência e da técnica


como ferramentas de adiar indefinidamente a morte é o de que imaginar que a
vida de um determinado indivíduo se estenderá por um lapso de tempo fora
dos padrões é também aceitar que este indivíduo precisará pagar o preço de
assistir ao transcorrer desse tempo, e vê-lo modificar o mundo radicalmente,
inclusive, subtraindo dele muitas coisas que lhe são valiosas e muitas pessoas
amadas.
Em síntese, as duas principais formas de utopia contemporâneas se
posicionam em relação aos mesmos pontos de referência, o conceito de
homem e o humanismo: a utopia trans-humanista – ou pós-humanista – está
para além do humanismo; a utopia animalista – ou antiespecista – está para
aquém do humanismo. Na primeira, retomando a metáfora clássica que
relaciona a vida humana à dos animais irracionais, por um lado, e à dos
deuses, por outro, deseja-se um super-homem, um homem convertido em um
deus e livre do medo da morte. Na segunda, deseja-se um homem que tenha a
consciência de que é apenas um animal como os outros animais.
Encaminhando-nos para o fechamento desse capítulo, importa, antes de
seguirmos com a aproximação entre o pensamento político contemporâneo de
Richard Rorty e o conceito de utopia, retomar os pontos mais marcantes desta
apreciação aqui realizada. Inicialmente nos preocupamos em estabelecer os
contornos da ideia de utopia, atentando-nos para o fato de que, mesmo
tecnicamente, tal vocábulo é extremamente polissêmico, compreendendo uma
quantidade expressiva de conceitos. Desse modo, preocupamo-nos mais em
descrevê-la que em defini-la, enumerando características recorrentes,

especialmente Benjamin, são um exemplo disso, compondo com essa história variadas
maneiras de empreender a sua crítica da Modernidade. Bauman o ilustra primorosamente na
seção introdutória de seu último livro, Retrotopia, lançando mão da imagem do anjo da história
em Angelus Novus, de Paul Klee.

76
apresentando tentativas poéticas e filosóficas de conceituação, evidenciando a
importância do espírito utópico como uma ferramenta de descrição-redescrição
do real e imaginação de alter mundi, apontando muitos exemplos na literatura
que enriquecem a sua tradição, e fazendo uma tipificação dos autores utopistas
em dois grupos, o dos autores utopistas projetistas e o dos autores utopistas
iconoclastas; além disso, preocupamo-nos em apresentar uma possível
classificação das utopias em duas espécies bem abrangentes, as utopias do
possível e as utopias do impossível; tratamos ainda do pensamento
antiutopista de autores importantes; seguimos apresentando a utopia como um
estilo literário de romances sociais, em que um deles se destaca pela
importância histórica que assume, Utopia, de Thomas Morus; no final,
apreciamos a ideia de fim da utopia, muito discutida contemporaneamente,
fechando com duas concepções utópicas bastante evidentes hoje, a utopia
animalista e a utopia trans-humanista.
Assim, após a discussão desses aspectos pertinentes ao ambiente
literário-político das utopias, veremos, no capítulo que segue, várias
aproximações dos conceitos, qualificações e classificações com a obra
filosófico-política de Rorty, autor que assume um discurso de enorme
relevância ao cenário intelectual atual, especialmente por vestir as suas ideias
e proposições políticas com a roupa de uma utopia cosmopolita liberal-
democrática.

77
CAPÍTULO II

A Política em Rorty:
uma utopia cosmopolita liberal-democrática

A variedade, a riqueza e as especificidades das formas de fazer e de


pensar as utopias – ou o que é por vezes denominado espírito utópico – enseja
concluir que não há uma regra cerrada, inafastável, que estabeleça a
necessidade de que as utopias se posicionem em rota de colisão, ou em
dissonância direta, com a realidade social dada, com as circunstâncias
históricas que envolvem todo o processo de sua concepção. É verdade que
parcela considerável da produção literária utópica parte do pressuposto da
necessidade de uma mudança radical, uma espécie qualquer de revolução, ou
de, no mínimo, uma reforma social. Enfim, seu ponto de partida costuma ser
um anseio por ruptura. Muitas utopias, conforme visto no capítulo primeiro,
perseguem a construção – ou descoberta – de qualquer espécie de alter
mundus, de um lugar ou de um tempo essencialmente diferentes daqueles que
conhecemos, daqueles cuja falibilidade e os vícios já são por demais
perceptíveis. Tais vícios, aparentemente inerentes à própria condição das
estruturas sociais observadas, são, aliás, para essas perspectivas utopistas, o
germe oculto de sua decadência – presente sub-repticiamente desde há muito
tempo – ou até mesmo de sua destruição.
Nada obsta, entretanto, como se pode inferir da discussão anterior sobre
as características do espírito utópico, que aquilo que se projeta88, que nasce
como uma utopia, seja um aprimoramento, uma modificação daquilo que já se
tem, mantendo-se aspectos do atualmente existente e transformando-o em
algo ainda melhor, mais ajustado e harmônico. Evidentemente, para que se
tenha uma utopia nesses moldes, importa que o seu(s) proponente(s)
enxergue(m) o mundo presente como já dotado de um complexo de atributos
inegavelmente relevantes que ensejam modificações e aperfeiçoamentos.
88
O vocábulo projeto não é, como já discutido anteriormente nesse mesmo texto, abrangente a
todas as formas e espécies de utopia. Algumas delas não se estruturam como um projeto, mas
tão somente como uma descrição do que seria bom, ou do que seria perfeito, mas que,
justamente por estar afetado pela ânsia de perfeição, encontra-se fora da esfera da
possibilidade real.

78
Foi nesta via que o pensamento político de Richard Rorty projetou uma
utopia cosmopolita liberal-democrática. Em Contingência, ironia e
solidariedade89, obra publicada originalmente em 1989, Rorty pretendeu
esmiuçar cada um desses atributos, esclarecendo porque sua maneira de
projetar uma sociedade futura pode, e, na verdade, deve ser encarada como
uma utopia, como cosmopolita, como liberal e, ainda, como uma defesa
aguerrida e intransigente, antifundacionista e anti-essencialista, da democracia
e da solidariedade. E, em última análise, apresentando sua utopia não apenas
como um método de discussão política, mas, principalmente, como uma meta
real a ser perseguida no intento de realizar as defesas, melhorias e ampliações
das conquistas sócio-culturais das instituições democráticas.
Vejamos, nos subtópicos a seguir, cada um desses predicativos,
lançando mão, paulatinamente, de alguns conceitos relevantes e elementos
vocabulares recorrentes à retórica deste autor, considerado uma das vozes
altissonantes na discussão acerca do liberalismo, da democracia e, enfim, da
política na contemporaneidade.

2.1 A política em Rorty: focus imaginarius para uma utopia hoje

Richard Rorty foi um autor cujo olhar estava atento às desigualdades e


às mazelas sociais. Ele observava que defender as conquistas de qualidade de
vida, empreendidas pelas sociedades mais ricas do Ocidente – as sociedades
burguesas liberais e democráticas, como o seu próprio país – era algo
indispensável e urgente. Mas via também que não faz sentido defender tais
construções sociais em benefício de apenas algumas pessoas cuja sorte
presenteou com o privilégio de nascer, por exemplo, em New York no século
XX90. Em vez disso, preocupava-lhe o fato – comprovado e conhecido por

89
Por ser a obra fundamental da produção intelectual de Richard Rorty, especialmente para o
seu pensamento político, optei por, neste trabalho, lançar mão de três edições diferentes deste
livro: a edição em inglês da Cambridge University Press (1989 – 26ª impressão, em 2008); a
tradução para português lusitano, da Editorial Presença (1994); e a tradução para português da
Martins Fontes (2007). Dessas três edições, utilizarei, prioritariamente, as duas primeiras,
fazendo as citações diretas em inglês e fornecendo, como nota de rodapé, a tradução para o
português da edição lusitana.
90
De certo modo, preocupar-se com isso é perceber que as pessoas nascidas em condições
abastadas tiveram, tão somente, uma boa sorte na “loteria da vida”. Mas que não é justo que

79
todos, e já denunciado veementemente em toda a tradição do pensamento de
esquerda – de que uma quantidade inumerável de pessoas jamais em suas
vidas desfrutará desses confortos: muitas pessoas nunca terão acesso a
computadores, saneamento básico ou assistência médico-hospitalar91.
Para Rorty era muito desconfortante perceber que não havia, até a sua
época, projeções que realmente apontassem, de modo minimamente confiável,
para a diminuição do abismo econômico que faz com que as pessoas tenham
oportunidades completamente diferentes em função, por exemplo, do seu local
e época de nascimento ou da família a que pertence.
Rorty tinha, entretanto, um conforto, algo de bom para enumerar na lista
de expectativas para o século XXI. Para ele, muito embora seja irracional
esperar o fim total das desigualdades sociais e regionais no mundo, podemos
esperar que o sonho de um mundo melhor, pelo menos, permaneça vivo, que o
diálogo sobre isso se mantenha aberto:

O melhor que podemos esperar do próximo século, com algum


nível de expectativa de que se realize, é que esses sonhos
continuem a existir. O máximo que podemos esperar é que
esses sonhos motivem nossos bisnetos a buscar algum tipo de
ação política, tanto quanto motivam a nós, hoje. O pior futuro
que eu consigo imaginar para a raça humana é um futuro
destituído de tais sonhos. Excluindo a extinção total, nada pior
do que isso poderia nos acontecer. (RORTY, 1999b, p. 2).

Desse modo, o pior dos mundos possíveis, para ele, seria, portanto, se
perdêssemos a esperança social e abandonássemos de vez o propósito de
melhorar este mundo em que vivemos. Na verdade, Rorty (1999b, p. 1) conclui:
“a raça humana pode recuperar-se de qualquer desastre, desde que conserve
intactas as suas esperanças”.
É precisamente esta esperança da esperança que pode nos manter
determinados. Só ela pode nos manter capazes de imaginar ser possível
construir um mundo no qual “nenhuma criança será fadada a sentir inveja
impotente da comida, das roupas ou do ensino aos quais outra criança tem
acesso” (Ibid., p. 3).

essa sorte defina e garanta o seu sucesso, logo no início, em detrimento de outras pessoas
que não foram agraciadas com a mesma fortuna.
91
Cf. RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e outros - Escritos Filosóficos, v. II. Trad.
Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999a.

80
A retórica rortyana, em sua dimensão ético-política, não se limita a fazer
uma descrição pormenorizada das circunstâncias sociais existentes hoje na
América ou no mundo, mas indica possibilidades de transformação real e/ou
construção desta América e deste mundo. Sua culminância consiste, pois, na
defesa de uma utopia. Para Rorty, ela é necessária, porque apenas assim,
pensando o futuro e objetivando responder a perguntas como “que tipo de
pessoa eu pretendo ser na vida pública?” ou “que tipo de país eu quero que o
meu país seja?” podemos empreender as transformações necessárias. É
importante mantermo-nos fiéis à pessoa que pretendemos ser no futuro e ao
país que desejamos para nós:

Você tem que descrever o país em termos do que você


passionalmente espera que ele possa se tornar, como também
em termos do que você conhece que ele seja agora. Você tem
que ser fiel a um país de sonho, ao invés de ser fiel ao país no
qual você acorda todas as manhãs. Ao menos que esta
fidelidade exista, o ideal não tem nenhuma chance de se tornar
real. (RORTY, 1999c, p. 138).

Tal dimensão utópica da retórica rortyana é evidenciada na


preconização do seu projeto político mais abrangente: o sonho92da construção
de uma sociedade em que a vida seja melhor do que a até aqui realizada. Não
a ânsia de destruir por inteiro as bases de sustentação da sociedade e
construir algo inteiramente novo, que venha a lhe substituir, mas a esperança
de que a política utópica, exercida pelas pessoas reais, utilizando-se das
conquistas sociais das instituições reais, possa, pragmaticamente, empreender
as transformações necessárias à construção de uma vida melhor: “o país do
sonho de cada um deve ser o país que se possa imaginar construído, ao longo
do tempo, por mãos humanas” (RORTY, 1999c, p. 138).
Tal política utópica, capaz de ocupar-se das questões que são
verdadeiramente importantes à tarefa de erguer um mundo melhor, busca
substituir “a busca da validade universal pela esperança social utópica”
(RORTY, 2005b, p.88). Na perspectiva rortyana, “utopian politics sets aside

92
Ghiraldelli Jr., um dos mais importantes comentadores de Rorty no Brasil, concentra atenção
na importância de usar a palavra sonho em vez da palavra utopia no que concerne ao projeto
rortyano de sociedade. No presente texto, porém, o vocábulo utopia é suficientemente
investigado, nos capítulos anteriores, a ponto de fazermos o uso que, aliás, o próprio Rorty
também fazia, mesclando com a palavra “sonho”, referindo-nos a uma utopia rortyana.

81
questions about both the will of God and the nature of man and dreams of
creating a hitherto unknown form of society” (RORTY, 1989, p. 3)93.
É exatamente pelo fato de que Rorty se referia à construção de algo
desconhecido, inimaginavelmente melhor94, que seu trabalho não trilhou a via
da descrição pormenorizada de algum mundo idílico ou de uma espécie
qualquer de paraíso na terra. Será possível verificar, com o transcorrer destas
reflexões, que a sociedade projetada na retórica rortyana é apenas esboçada,
imprecisamente delimitada, porque é uma sociedade aberta, sempre
inacabada, continuamente propensa a melhorar, e, em conseguinte, uma
sociedade que jamais poderia atingir um status de perfeição. Para Rorty, essa
maneira de falar do futuro, de desenhar uma utopia de contornos muito
imprecisos, é nada mais do que se poderia esperar de um pragmatista, visto
que:

Os pragmatistas limitam-se a oferecer respostas tão vagas e


imprecisas porque o que eles esperam não é que o futuro
conforme-se a um plano ou satisfaça uma teleologia imanente,
mas sim que o futuro nos surpreenda e estimule. (RORTY,
2000, p. 28)

Desse modo, utilizando-se do vocabulário adotado pelo historiador e


crítico social americano Russel Jacoby, a utopia política rortyana pode ser
alinhada àquelas utopias que seguem a tradição iconoclasta, imaginadas por
autores “que sonharam com uma sociedade superior, mas que se recusaram a
apresentar suas medidas precisas” (JACOBY, 2007, p. 16). No caso de Rorty,
isso ocorre precisamente porque a sociedade utópica cosmopolita liberal-
democrática é uma sociedade aberta. Nesse caso, seus contornos são,
inevitavelmente, intangíveis, indelimitáveis, o que obriga a todos os intelectuais
interessados em descrevê-la (e aqueles interessados em redescrevê-la) à
tarefa de esquadrinhá-la incessantemente, pensando cada aspecto novo que
se lhe apresenta, a todo o momento, na dialética do espaço público aberto.
93
Na edição lusitana: “a política utópica põe de parte questões, quer sobre a vontade de Deus
quer sobre a natureza do Homem, e sonha criar uma forma de sociedade até agora
desconhecida” (RORTY, 1994, p. 23).
94
A ideia romântica de um mundo “inimaginavelmente diferente, inimaginavelmente mais rico”
é associada à filosofia hegeliana, que, deflacionada do seu idealismo mas valorizada em seu
historicismo, tornou-se uma das grandes influências para a retórica de Rorty. Cf. RORTY,
Richard. Filosofia como política cultural. Trad. João Carlos Pijnappel. São Paulo: Martins
Fontes, 2009. (Coleção Dialética), p. 139.

82
De certo modo, não seria leviano afirmar que o filósofo neopragmatista
assume conscientemente os riscos da imprecisão descritiva e da metaforização
justamente para não abrir mão de concebê-la mais poética e aberta. Segundo
Ghiraldelli Jr. e Rodrigues (2001, p. 33), Rorty “reitera o contingente como
elemento primordial da ação política, em detrimento de toda tentativa de domar
o futuro a partir das certezas que a teoria supostamente escavaria no
passado”.
Todo o pensamento filosófico de Richard Rorty, aliás, enfatiza o papel do
incremento da sensibilidade e da imaginação95, além da consciência da
contingência, em oposição à mera argumentação. Prima pela prioridade da
política para a filosofia. A transformação social sonhada se daria, pois, pela via
da alteração gradual, mas contínua, pela ampliação de nossa comunidade de
conversação, por meio daquilo que Rorty denominou focus imaginarius96.
A partir da ideia de que a solidariedade não é descoberta, mas precisa
ser criada pelos homens, afirmava Rorty que ela:

It is created by increasing our sensitivity to the particular details


of the pain and humiliation of other, unfamiliar sorts of people.
Such increased sensitivity makes it more difficult to marginatze
people different from ourselves (...)" (RORTY, 1989, p. XVI)97

Na fluidez da descrição de seu projeto, entretanto, há alguns atributos


importantes, que podem ser identificados e defendidos com a devida
veemência. Rorty preconizava uma sociedade que enseje permanentemente
uma vida mais livre, marcada pelo combate ao sofrimento e à crueldade de uns
seres humanos para com outros. Uma comunidade historicista a ponto de
cultivar a consciência da própria contingência, permitindo o incremento da
solidariedade e da lealdade entre as pessoas, além da liberdade de

95
Ao lançar mão do recurso imaginação, Rorty esclarece que: “A imaginação, no sentido em
que estou tentando usar o termo, não é uma capacidade distintivamente humana, ela é, como
já disse antes, uma aptidão para sugerir narrativas socialmente úteis” (RORTY, 2009, p. 195).
96
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 67. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca.
Lisboa: Presença, 1994, p. 99.
97
Na edição lusitana: “É criada com o aumento da nossa sensibilidade aos pormenores
específicos da dor e da humilhação de outros tipos, não familiares, de pessoas. Uma
sensibilidade assim aumentada torna mais difícil marginalizar pessoas diferentes de nós (...)”.
(RORTY, 1994, p. 18 e 19)

83
autocriação privada por cada indivíduo e possibilitando uma vida mais rica e
mais includente para todos.
Uma sociedade assim – consciente de seu historicismo98 e nominalismo
–, aliás, seria o solo mais propício à germinação de novas e novas –
inimagináveis – utopias, pois cada uma, à sua vez, daria sustentação à
seguinte, tornando-a menos absurda, menos inaceitável. Houve um tempo em
que, mesmo nos países que hoje levantam a bandeira da democracia, da
cidadania e da liberdade, não se imaginava que as mulheres, ou os negros ou
os homossexuais desfrutassem de alguma isonomia social no tocante ao
reconhecimento de sua dignidade e cidadania. A princípio, isso era comumente
tido – como em uma espécie de inconsciente coletivo – por apenas um
complexo de absurdos defendidos por alguns poucos indivíduos incautos. Mas
a teimosia, a luta e o sangue de pessoas incautas como elas fizeram com que
se operasse uma interessante mudança linguística e, hoje, alguns daqueles
“absurdos” são chamados, simplesmente, “direitos”. Essa mudança vocabular
reflete, portanto, um conjunto de transformações sociais importantes. Trata-se
da mudança de vida sonhada para uma quantidade inumerável de seres
humanos:
A historicist and nominalist culture of the sort I envisage would
settle instead for narratives which connect the present with the
past, on the one hand, and with utopian futures, on the other.
More important, it would regard the realization of utopias, and
the envisaging of still further utopias, as an endless process -
an endless, proliferating realization of Freedorn, rather than a
convergence toward an already existing Truth. (RORTY, 1989,
XVI)99

Para Rorty, a esperança social precisa ocupar um espaço antes tomado


pela fé em Deus e, mais tarde, pela fé na Razão e no Conhecimento. Uma
utopia assim, uma religião da esperança, uma religião cívica, trocaria os

98
Entende-se por historicismo, ao modo como Rorty o utiliza, a perspectiva de que toda ideia,
toda realização, toda criação, etc. advém única e exclusivamente do ser humano, e, por
conseguinte, estão sob a influência das condições de espaço e tempo do homem. O próprio
homem, inclusive, está também adstrito às suas condições espaciotemporais. É o que Rorty
pretendia dizer, poeticamente, quando afirmava que: “permaneceremos sendo criaturas finitas,
os filhos de tempos e lugares específicos” (RORTY, 2009, p. 143).
99
Na edição lusitana: “Uma cultura historicista e nominalista do tipo da que tenho em vista
adoptaria (...) narrativas que ligariam o presente ao passado, por um lado, e a utopias futuras,
por outro. E, o que é mais importante, veria a realização de utopias e a concepção de outras
utopias como um processo infindável – uma realização infindável e prolífera da Liberdade, e
não uma convergência para uma Verdade já existente” (RORTY, 1994, p. 19).

84
confortos metafísicos da mera expectativa de uma salvação num além ou numa
“vida futura” pelo esforço utópico100 de realização gradual, mas efetiva, de uma
sociedade melhor aqui mesmo, nesta Terra. Precisamente por vislumbrar tal
experiência de utopia, Rorty via em Whitman e Dewey suas inspirações mais
alentadoras, que permitiam ver a América como disseminadora de uma
esperança valorosa:

Na América utópica sonhada por eles, não haveria castas ou


classes e Deus seria substituído, como objeto de desejo, pela
justiça social. Um lugar em que floresceria plenamente o ideal
democrático, o que significa substituir toda e qualquer
autoridade existente – seja ela “meramente” humana, fundada
no “conhecimento do real”, seja “não-humana”, revelada aos
“eleitos” ou por eles interpretada – pela única autoridade
aceitável: o livre consenso alcançado entre os seres humanos.
(CARVALHO FILHO, 2006, p. 236)

Segundo Ghiraldelli Jr., a leitura que Rorty fazia de Dewey tem caráter
educacional, na medida em que associa o pensamento deweyano à esperança
de que os jovens americanos possam ser socializados de modo a olharem para
si mesmos como parte de uma história de muito valor, a história de um país
que logrou – a um custo muitíssimo alto e muito gradualmente – livrar-se de um
jugo estrangeiro, concretizar a libertação dos escravos e o fim do sistema
escravocrata, emancipar as mulheres, criar um ambiente onde os sindicatos
possam lutar livremente pelos direitos dos trabalhadores, garantir a liberdade
religiosa e construir universidades importantes101.
É, pois, esse o sonho mais importante a se sonhar: não apenas a
garantia das conquistas civilizacionais já realizadas, mas a sua ampliação
contínua. E não apenas a sua ampliação, mas o direito de ter esperanças de
que novas conquistas sejam ainda pensadas, desejadas, buscadas e
realizadas. Trata-se de uma meta plausível – uma tarefa e esforço inesgotável
– de criar um mundo desse modo, uma organização política idealmente
cosmopolita, democrática e liberal. E são as vozes altissonantes de autores
como Nietzsche, Proust, Whitman, Dewey, Rawls, Habermas e o próprio Rorty
100
Cf. RORTY, Richard. O futuro da utopia. Trad. Clara Allain. Folha de São Paulo: Caderno
Mais. 04 de Abril de 1999b. Disponível in: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs04049905.
html, p. 74.
101
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Richard Rorty: a filosofia do novo mundo em busca de
mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 78-79.

85
– dentre muitos outros poetas fortes102 – que encarnam a esperança de que, de
fato, possamos contar, a cada dia, a narrativa de nossas vidas – a vida que já
tivemos e a que desejamos ter – de um modo inimaginavelmente mais poético,
solidário e includente.

2.2 O cosmopolitismo da utopia rortyana

Falar-se na utopia rortyana em sua dimensão cosmopolita é seguir um


dos muitos fios que compõem a trama metafórica de sua retórica política. Em
sua noção de justiça como lealdade ampliada103, Rorty enunciava que existe
uma força poderosa de coesão, um cimento social, chamada lealdade. Esta
lealdade, cuja sustentação é eminentemente comunitária, e não metafísica,
parte da ideia de que guardamos para com alguns seres humanos um
compromisso muito forte. Evidentemente, este sentimento, e a atitude a ele
correlata, só podemos endereçar a alguns seres humanos que nos são
especiais, que são como “parte de nós”, isto é, pessoas a quem poderíamos
nos referir, simplesmente, como “uma de nós”. A título de ilustração,
poderíamos dizer: “nós músicos”, “nós servidores públicos”, “nós brasileiros”,
“nós ocidentais” ou “nós mulçumanos”. Assim, não é demais afirmar que
participamos, por exemplo, de uma “lealdade de classe”, ou uma “lealdade de
clã”, ou ainda de uma “lealdade de nacionalidade” e que, enfim, estamos
mergulhados em comunidades de diálogo, vivemos em comunidades de
lealdade.
102
Rorty toma de empréstimo do professor e crítico literário estadunidense Harold Bloom o
termo poeta forte, que, em sua escrita, passa a ter um significado muito importante, referindo-
se à pessoa – poeta, artista, cientista, filósofo, etc. – cuja postura revolucionária faz com que a
sua produção intelectual não se restrinja a repetir, mesmo que em novos termos, o que já foi
apresentado por outras pessoas antes dele. Em uma organização política idealmente liberal, o
poeta forte é um elemento social de extrema importância, uma vez que ele encarna a tarefa de
protestar contra os aspectos da sociedade que são destoantes da auto-imagem desta mesma
sociedade.
103
Contrariando o cânone kantiano de que a justiça e a lealdade se situam em dimensões
diferentes da vida moral e política, uma vez que a justiça estaria associada à razão enquanto
que a lealdade, ao sentimento, Rorty desenvolveu a noção de justiça como lealdade ampliada,
segundo a qual podemos desenvolver a sensibilidade para estender a nossa lealdade a ponto
de incluir, cada vez mais, pessoas e grupos que antes estavam muito distantes de nós. Embora
esta ideia esteja pulverizada em inúmeros textos do autor, há, em Pragmatismo e política, um
importante artigo denominado “Justiça como lealdade ampliada”, em que ele analisou a
questão pormenorizadamente. Cf. RORTY, Richard. Pragmatismo e política. Trad. Paulo
Ghiraldelli Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

86
Nesse mesmo sentido, Persson e Savulescu (2017, p. 65), utilizando-se
de uma argumentação essencialista – a partir de uma determinada noção de
natureza humana – expõem sua concepção de moralidade senso comum, e
vêem o altruísmo como afetado por questões de parentesco, proximidade,
intimidade, semelhança:

O nosso altruísmo está naturalmente limitado a indivíduos que


são próximos ou são semelhantes a nós em aspectos
salientes. Indivíduos que nos são próximos são frequentemente
pessoas na nossa vizinhança, com os quais desenvolvemos
uma relação de apreço e confiança.

Sabemos que esse “nós” costumeiramente constitui-se em algo


dinâmico, histórico, uma vez que algumas pessoas podem deixar de ser “um de
nós”, enquanto outras podem passar a sê-lo, o que dá vazão a um contínuo
processo de “expansão e contração de lealdades” (RORTY, 2005a, p. 102).
Para Rorty, tal maleabilidade suscita uma necessária indagação quanto à
postura adotada pelas nações mais abastadas do mundo em relação àquelas
que são menos favorecidas que elas e, ainda, às mais empobrecidas:

[...] O que as democracias ricas podem fazer de correto?


Serem leais a si mesmas e umas com as outras? Manter as
sociedades livres para um terço da humanidade a custa dos
outros dois terços? Ou sacrificar a benção da liberdade política
por causa de justiça econômica igualitária? (RORTY, 2005a,
103-104).

Em outros termos, “deveríamos contrair o círculo por razões de lealdade


ou expandi-lo por razões de justiça?” (RORTY, 2005a, p. 104). Na verdade,
concluía Rorty, o aparente descompasso entre lealdade e justiça, suscitado por
essas indagações, pode ser pensado também como uma questão de lealdades
para com pequenos grupos e lealdades para com grupos maiores. Podemos
ampliar a nossa lealdade, por exemplo, deixando de nos comprometermos
apenas com as pessoas de nossas famílias, ou com as pessoas de nossas
profissões, para, paulatinamente, endereçar esse comprometimento a toda a
espécie humana. À medida que abandonamos o modo kantiano de observar as
coisas, “a ideia de uma obrigação moral universal de respeito à dignidade
humana é substituída pela ideia de lealdade para com o grupo completamente

87
mais amplo – a espécie humana” (RORTY, 2005a, p. 106). E em outra
passagem igualmente elucidativa:

Vejo o progresso moral como a habilidade imaginativa das


pessoas para identificarem-se com pessoas com as quais seus
ancestrais não foram capazes de se identificar – pessoas de
religiões diferentes, pessoas no outro lado do mundo, pessoas
que parecem de início perturbadoramente diferentes de “nós
próprios”. (RORTY, 2005b, p. 92-93)

Essa capacidade ampliativa é também considerada por Persson e


Savulescu, que, porém, advogam mais especificamente pela necessidade de
melhoramentos morais104 – o que é bem diferente do progresso moral
preconizado por Rorty – para o homem contemporâneo.

Nós também poderíamos deliberadamente treinar a nós


mesmos na arte de ter empatia e simpatia por estranhos, ao
imaginar como seria estar na pele deles, e ao repetidamente
lembrar a nós mesmos da superficialidade e irrelevância moral
dos sinais conspícuos de que alguém é estrangeiro, por
exemplo, a cor de pele, a língua, as vestimentas, entre outros
sinais diferentes dos nossos. Entretanto, seria irrealista esperar
resultados rápidos e radicias por esses meios. (PERSSON e
SAVULESCU, 2017, p. 67)

Como recurso argumentativo – para alguns, desconcertantemente –


Rorty afirmava que seria possível imaginar ir ainda muito além, ampliando a
nossa identidade moral105até incluir outras espécies ou todas as criaturas vivas.
Assim, a utopia rortyana é mais afeita à sensibilização que à
argumentação. O tipo de história que contamos sobre nós terá um impacto
enorme na maneira como olhamos para nós mesmos e na circunscrição
daqueles que entendemos como “parte de nós”. Mudando a maneira como
contamos nossa história, mudamos quem somos e, mais ainda, mudamos
quem somos capazes de respeitar e amar. Somos capazes de modificar, em
nós, o conjunto de práticas que identificam nossas relações com as outras

104
Esses autores, entusiastas do conceito de enhancement, acreditam que o homem é
“inadequado para o futuro”, e que, dentre os muitos possíveis melhoramentos físicos que o
homem, por meio da biotecnologia, pode empreender há também a “necessidade de
melhoramentos morais”, que exigem o surgimento de um homem diferenciado, aprimorado, e
mais capaz de realizar as mudanças morais que a sociedade já exige e exigirá mais ainda.
105
Para Rorty, a identidade moral de uma pessoa é determinada pelo grupo ou grupos com os
quais ela se identifica, aqueles a quem ela dedica a sua lealdade.

88
pessoas, aquilo que Wilfrid Sellars chamava we-intenctions (intenções-nós)106.
Nesse sentido, Ghiraldelli Júnior explica que, para Rorty:

(...) se alterarmos nossas crenças e desejos a respeito de nós,


dos outros e do mundo, estamos certamente alterando nosso
comportamento linguístico e, sendo assim, mudando nosso
comportamento em geral. (GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 61)

De certo modo, somos nós mesmos os responsáveis por combater


continuamente a nossa cegueira em relação ao outro, e abandonar aquilo que
nos torna incapazes de enxergar “a dor de outro tipo de pessoa” ou, pior ainda,
incapazes de enxergar a dor e a humilhação que nós próprios causamos aos
outros107.
Dessa forma, a capacidade-habilidade de redescrição, a disposição-
habilidade inventar novos artefatos linguísticos e usar palavras antigas com
sentidos inteiramente novos, torna-se, por excelência, um poderoso
instrumento para a mudança cultural, a solidariedade e, enfim, o progresso
moral. É ela a melhor ferramenta das transformações possíveis em nosso feixe
de crenças e desejos idiossincráticos, capazes de mudar “what we want to do
and what we think we are” (RORTY, 1989, p. 20)108. Em outra passagem, Rorty
(1999a, p. 60) é igualmente enfático ao afirmar que

Físicos, políticos e filósofos revolucionários sempre tomaram


palavras e cunharam nelas novas formas. Por conseguinte,
eles deram a seus oponentes aborrecidos e conservadores
razões para acusá-los de introduzir novos sentidos estranhos
para expressões familiares, de fazer trocadilhos frivolamente,
de não jogar mais segundo as regras, de usar retórica ao invés
de lógica, imagens ao invés de argumentos.

Ao evidenciar essa noção de transformação lingüística, Rorty


empreendeu um deslocamento importante, afastando-se, cada vez mais, do
parâmetro da moral deontológica de inspiração kantiana – o que inclui, além de
Kant, importantes teóricos contemporâneos com os quais estabeleceu

106
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 59-60. E na edição lusitana,
cf. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 89-90.
107
Cf. Ibid., p. 141 e Ibid., p. 180.
108
Na edição lusitana: “aquilo que queremos fazer e mudar aquilo que pensamos que somos”
(RORTY, 1994, p. 43).

89
profícuos diálogos, como John Rawls e Habermas – e, por outra via,
aproximando-se de pensadores como Donald Davidson, Michael Walzer e
Daniel Dennett.
A consciência da contingência da linguagem, a certeza de que ela é
inventada e não descoberta, portanto totalmente passível de modulações, é
uma apropriação da ideia de verdade encontrada já em Nietzsche – que seria
desenvolvida na tradição do pragmatismo americano, especialmente com
James e Dewey. Nessa perspectiva nietzschiana, a verdade pode ser
entendida como:

[...] um exército de metáforas, metonímias, antropomorfismos,


numa palavra, uma soma de relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e
que, após uma longa utilização, parecem a um povo
consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são
ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas
que se tornaram desgastadas e sem força sensível.
(NIETZSCHE, 2007, p. 36-37)

Decorre desta perspectiva de verdade que a utopia rortyana pressupõe a


realização de uma vida social cada vez mais marcada pela cultura literária.
Constituir-se-ia, pois, algo de gigantesca importância a criteriosa escolha de
que livros (bem como os filmes, as peças de teatro, os quadrinhos e as
músicas) deveriam fazer parte do imaginário das pessoas e de como as
histórias contadas por estes livros devem ser consideradas como verdadeiras
ferramentas na construção de sentimentos relevantes ao espírito liberal-
democrático. Rorty não se furtou, inclusive, à tarefa de enumerar alguns
autores e algumas obras que, em sua perspectiva, seriam excelentes para a
construção de um espírito de solidariedade e para o combate à crueldade.
Em um artigo de 1988, intitulado Failed profhecies, glorious hopes, Rorty
apresentou uma exemplificação excelente dessa ideia. Para ele109, dois livros
foram e permanecem sendo elementos de grande importância na formação
intelectual e espiritual das pessoas: o Novo testamento e o Manifesto do
partido comunista. A leitura que faz dessa relevância, entretanto, pode ser
muito diferente daquela que ambos os textos têm em ambientes cristãos ou

109
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século
XX na América. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr., Alberto Tosi Rodrigues e Leoni Henning.
Rio de Janeiro: DP&A, 1999c, p. 201.

90
acadêmicos. Rorty os vê como grandes inspirações para a solidariedade, para
a igualdade e para a justiça social, deixando de lado as promessas ou
profecias, que os autores estabeleceram. Rorty (1999d, p. 202-203) afirmou ver
essas duas obras como compartilhantes de uma mesma esperança:

[...] Both documents are expressions of the same hope: that


some day we shall be willing and able to treat the needs of all
human beings with the respect and consideration with which we
treat the needs of those closest to us, those whom we love.
(RORTY, 1999d, p. 202-203)

Para ele, portanto, ambos são textos que representam símbolos de que
podemos ter a esperança em construir um futuro melhor que o passado. E,
apesar de estar ciente de que essas obras são, em alguns aspectos,
prenúncios de um mundo “além” ou “radicalmente diferente do nosso”, Rorty
considerava que elas podem ser lidas pelos jovens de nosso tempo como a
esperança da esperança, como palavras que ajudarão a manter viva a chama
do sonho de que o futuro humano pode ser melhor que o passado.
Na comunidade idealmente democrática e liberal pensada por Rorty,
marcada pelo historicismo e nominalismo, as personagens provocadoras das
mudanças – os heróis, ou fazedores – são o poeta forte e revolucionário
utópico. Assim, autores como Platão, Nietzsche, Marx, Proust, Nabokov,
Newton, Darwin, Hegel, Heidegger, Milton e Blake110 são parte, em sua
perspectiva, de um estimado rol de filósofos, poetas, cientistas, romancistas,
políticos utópicos e artistas inovadores, pessoas que buscam enfrentar a
esmagadora angústia da obrigação existencial de não ser apenas uma
réplica111:

[...] the srong maker, the person who uses words as they have
never before been used, is best able to appreciate her own
contingency. For she can see, more clearly than the continuity-
seeking historian, critic, or philosopher, that her language is as

110
Rorty extrapola o termo “poeta forte”, cunhado por H. Bloom, utilizando-o não apenas para
os artistas revolucionários, mas para todos, inclusive cientistas e filósofos, que foram – ou que
são – capazes de “inventar novos jogos de linguagem para jogarmos” (RORTY, 2020, p. 1).
111
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 24. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 48. A esta fenômeno se refere com
grande propriedade o crítico literário Harold Bloom, especialmente, em uma obra basilar de sua
produção intelectual, A angústia da influência. Em síntese, trata-se da tese de que a produção
literária se desenvolve quando um autor pretende realizar algo dotado de valor e originalidade
ante a vastidão do que já foi feito de bom antes de dele.

91
contingent as her parents or her historical epoch. (RORTY,
1989, p. 28)112

Nos processos graduais de transformações sociais, o fazedor forte –


igualmente distante quer de “apocalípticos” quer de “integrados”113, nos termos
utilizados por Eco114 – estará, evidentemente, sempre em rota de colisão frontal
com aqueles que permanecem fiéis à luta pela estabilidade, pela permanência
e pela literalização das metáforas115. Assim, quando estamos dizendo as
coisas de um modo inimaginavelmente diferente de como sempre foram ditas,
estamos transformando o mundo ao nosso redor, as outras pessoas e nós
mesmos. Fracassar na vida, fracassar como poeta, é limitar-se a repetir, é
satisfazer-se em reproduzir. Permitir que as descrições já existentes do mundo
sejam o nosso mundo. Aceitar que a nossa história seja contada sempre do
mesmo modo é fracassar como poeta, é assumir-se incapaz de realizar uma
auto-superação nietzschiana:

To fail as a poet - and thus, for Nietzsche, to fail as a human


being - is to accept somebody else's description of oneself, to
execute a previously prepared program, to write, at most,
elegant variations on previously written poems. (RORTY, 1989,
p. 28)116

A lealdade que afeta o revolucionário utópico, liberal-ironista, na


comunidade utópica cosmopolita rortyana, é o firme propósito de sempre

112
Na edição lusitana: “o fazedor forte, a pessoa que usa as palavras como estas nunca antes
foram usadas, é a mais capaz de apreciar a sua própria contingência, já que esta pessoa pode,
mais claramente do que o historiador, o crítico ou o filósofo em busca da continuidade, ver que
a sua linguagem é tão contingente quanto os seus pais ou a sua época histórica” (RORTY,
1994, 53).
113
O filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco, analisando por volta dos anos de 1970, o
fenômeno contemporâneo da comunicação de massa, diferencia “apocalípticos” de
“integrados”. De certo modo, pela postura encarnada por cada qual, eles exercem forças
opostas na dinâmica social. Enquanto os apocalípticos tendem a uma postura conservadora ou
reacionária ante às transformações, os integrados são receptivos – até ingenuamente, ou
passivamente – às mudanças radicais efetivadas pela mídia.
114
Cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
115
Admitir a ideia de um processo interminável de literalização das metáforas e criação de
outras metáforas sempre novas em uma sociedade idealmente liberal-ironista é coerente – e
mesmo necessário – ao mesmo tempo, com dois elementos importantes da retórica rortyana:
primeiramente, sua postura epistemológica anticorrespondentista e anti-essencialista, que via a
verdade, sob influência nietzschiana, como “um exército móvel de metáforas”; e, segundo, com
o reconhecimento, ou a consciência, da contingência da linguagem.
116
Na edição lusitana: “Fracassar como poeta – e, portanto, para Nietzsche, fracassar como
ser humano – é aceitar a descrição que outra pessoa faça de nós, executar um programa
previamente preparado, escrever, quando muito, variações elegantes de poemas anteriormente
escritos” (RORTY, 1994, 53).

92
realizar transformações includentes, de sempre expandir mais e mais o círculo
de seres humanos a quem não é absurdo chamar de “nós”, o incremento
contínuo da capacidade de se sensibilizar com a dor e o sofrimento de seres
humanos que, antes, não nos eram perceptíveis.
Uma tal disposição de ampliação da comunidade de diálogo seria,
também, uma ferramenta de composição para as controvérsias, culturais e
geopolíticas, como por exemplo, as marcadas pela dicotomia Ocidente-Oriente.
O abandono da ideia de que as sociedades ocidentais, ou então as orientais,
possam ser, cada uma à sua perspectiva, as verdadeiras detentoras de uma
racionalidade tipicamente humana levaria a uma gradual capacidade de diálogo
mais aberto e tolerante. Rorty (2005a, p. 121-122) expressou essa ideia
textualmente, em uma passagem muito perspicaz:

Penso que descartar o racionalismo residual do que herdamos


do iluminismo é conveniente por muitas razões. […] Se livrar da
retórica racionalista permitiria ao Ocidente aproximar-se do
não-Ocidente no papel de alguém com uma história instrutiva
para contar, mais do que no papel de alguém que se considera
fazendo melhor uso de uma capacidade humana universal.

Do mesmo modo, é necessário um cosmopolitismo não condescendente


com o desrespeito aos direitos humanos em nome das identidades de culturais.
Para Rorty (2005a, p. 132), essa “espúria e decepcionante espécie de
cosmopolitismo” – que considera que os direitos humanos são ótimos para a
Europa e sociedades eurocêntricas, mas que podem não ser tão necessários
para outras culturas – deve ser superada pela ideia de uma utopia cosmopolita
nos seguintes termos:

A imagem de uma democracia que se amplia em escala


planetária, uma sociedade na qual a tortura ou o fechamento
de uma universidade ou de um jornal do outro lado do mundo é
o mesmo que em nossa casa.

Deste modo, o cosmopolitismo rortyano não se mostrava etnocêntrico no


sentido de impor as formas de vida, as crenças e hábitos de uma sociedade a
todas as outras. Mas Rorty se admitia francamente etnocêntrico no sentido de
apregoar que, “nesse futuro utópico, as tradições culturais terão cessado de
influenciar as decisões políticas” (RORTY, 2005a, p. 132). Assim, para Rorty,

93
no tocante à política, as tradições das diversas culturas não devem disputar
com a defesa da democracia:

Na política haverá somente uma tradição: aquela da constante


vigilância contra as previsíveis tentativas dos ricos e fortes de
tirar vantagem dos pobres e fracos. A tradição cultural nunca
permitirá desconsiderar o “princípio de diferença” de Rawls,
nunca permitirá qualquer desculpa pela desigualdade de
oportunidades. (RORTY, 2005a, p 132)

No ápice de seu cosmopolitismo, Rorty se aproxima da ideia kantiana da


possibilidade da criação de uma espécie de “governo mundial”, de uma
federação de nações, advinda da ampliação da solidariedade e das conquistas
liberais para a melhoria da vida humana. Para Rorty (1999, p.3), tal
solidariedade seria o equivalente laico da caridade cristã, devendo ser,
utopicamente, coextensiva a todas as pessoas:

É a versão secularizada da esperança cristã de que todos os


homens podem viver como irmãos: de que nossa comunidade
moral - as pessoas para quem nos dispomos a fazer sacrifícios
- se torne coextensiva à nossa espécie biológica.

Segundo Souza, seria essa, inclusive, uma marca de semelhança, um


background filosófico comum, entre seu pensamento e a produção intelectual
de Jürgen Habermas, outro teórico de importância gigantesca no pensamento
político contemporâneo, cuja obra é marcada por uma aguerrida luta em prol do
ideal democrático:

[...] o horizonte ético e político de Rorty, como o de Habermas,


“é trabalhar por um governo mundial democrático”, ou coisa
parecida. Ambos, portanto, convergem para algo próximo do
ideal cosmopolita, kantiano, de uma federação mundial de
nações, baseada numa solidariedade planetária. (SOUZA,
2005, p. 51)

A grande virtude moral da sociedade utópica sonhada por Rorty, é, para


ele, precisamente esta: nunca desistir de ampliar a democracia, nunca se
satisfazer com a própria identidade moral enquanto houver a crueldade, o
sofrimento e a exclusão a combater. A esperança é o grande diferencial desta
sociedade idealmente liberal-ironista:

94
Uma sociedade pode ter a esperança de se tornar uma
sociedade diferente. Em vez de confirmar sua própria
identidade por processos sistemáticos de exclusão, pode
encontrar sua identidade precisamente em sua disposição de
ampliar sua imaginação e de fundir-se com outros grupos,
outras possibilidades humanas, a fim de formar a sociedade
cosmopolita, quase inimaginável, do futuro. (RORTY, 2005b, p.
100)

Rorty ilustrou enfaticamente a sua ideia de ampliação do alcance das


conquistas sociais – do combate ao sadismo e da defesa de uma vida mais
livre e solidária – considerando, inclusive, a possibilidade de um dia virmos a
estendê-las para muito além dos limites hoje imaginados, engendrando uma
comunidade includente planetária:

Nós olhamos para a frente, em um caminho vago, em direção a


um tempo em que os cashinahuas, os chineses e (se houver)
os planetas que formam o império galático serão todos parte da
mesma comunidade democrática social cosmopolita.Essa
comunidade terá sem dúvida instituições diferentes daquelas
com as quais nós estamos presentemente acostumados, mas
nós supomos que essas instituições futuras incorporarão e
ampliarão os tipos de reformas que nós aplaudimos nossos
ancestrais por terem feito. (RORTY, 1997, p. 282 - 283)

Não significa, é claro, que Rorty estivesse, de fato, preocupado com uma
política que fosse além dos interesses e das relações humanas reais. Ele se
utiliza deste artifício tão somente para demonstrar que seu sonho da
construção humana de uma comunidade global de confiança – uma realidade
ainda melhor que a até agora realizada – pelas sociedades liberal-
democráticas está apto a sobreviver, serpenteando em meio aos obstáculos
reais da vida social.

2.3 Rorty e um liberalismo redescrito

O vocabulário rortyano, não raro, é objeto de interpretações imprecisas e


causa de discussões acaloradas. É possível que, desconcertantemente, alguns
críticos tenham discordado dele, inclusive, em ideias que ele não defendeu.
Boa parte desses problemas se deve a um fato em especial: Rorty valorizava

95
sobremaneira a habilidade de usar as palavras antigas em um sentido
inteiramente novo. Essa virtude, eminentemente poética, não é apenas uma
opção de estilo. Na verdade, Rorty fazia em sua retórica exatamente aquilo que
admirava em alguns autores que lhe eram referenciais – como Nietzsche e
Proust, por exemplo – e aquilo que deseja em sua utopia: que, cada vez mais,
tenhamos a capacidade imaginativa ampliada a ponto de estarmos abertos a
dar um uso inesperado a palavras antigas e a fazer de nossas vidas –
especialmente nossa vida pública – algo, também, permanentemente
renovado.
Uma expressão importante que assume significado peculiar na retórica
rortyana é liberalismo. Não há, nos textos de Rorty, uma definição de
liberalismo em termos propriamente econômicos ou o embate político centrado
no combate racional ao fascismo – esse combate ao fascismo será,
evidentemente, uma consequência da postural liberal por Rorty adotada –
associados à noção corrente de Liberalismo. Sua percepção para esta palavra
é sempre eminentemente social e pragmática. Rorty denomina “liberais”
aquelas pessoas cuja sensibilidade possibilita-ocasiona a habilidade de
enxergar algo abominável no ato, muitas vezes banalizado, de infligir
sofrimento ao outro, algo que precisa ser combatido. Os liberais são, pois,
pessoas afeitas à ideia de que não devemos tolerar o tratamento indigno e
humilhante por elas mesmas praticado, nem o mesmo tipo de atitude quando
praticada pelos outros, de modo que a banalização da humilhação e o sadismo
social sejam combatidos incessante e intransigentemente.
Tal sentido adotado para o vocábulo liberal, em Rorty, não é usual nas
discussões ideológico-políticas tradicionais. É bastante comum, nessas
discussões, que uma determinada palavra, de tão utilizada, passe a ter um
senso comum, em que seus atributos principais são compreendidos. Mas nem
sempre se tem a certeza do real sentido e alcance da expressão em um
determinado contexto discursivo. Judt faz uma consideração interessante sobre
ele: “Liberal é um vocábulo venerável e respeitável, e deveríamos nos orgulhar
de adotá-lo. Mas, como uma capa bem-feita, esconde mais do que revela”
(JUDT, 2011, p. 18).
A leitura de Rorty nos faz perceber que, para ele, existe um mal social a
que devemos, incessantemente, opor-nos na vida pública: a indiferença em

96
relação à dor das outras pessoas. E que deve ser considerada uma sociedade
liberal aquela que trabalha diuturnamente com o propósito de estender a sua
acuidade visual em relação ao sofrimento e à injustiça. Em outras palavras,
liberal é aquele indivíduo que combate o próprio sadismo e também o sadismo
social.
Essa perspicaz associação – entre combate à crueldade e postura liberal
– foi reconhecidamente tomada de empréstimo a Judith N. Shklar117, cientista
política da Universidade de Harvard: “a definição de „liberal‟ é-me emprestada
por Judith Shklar, que diz que os liberais são as pessoas que pensam que a
crueldade é a pior coisa que podemos praticar” (RORTY, 1997, p. 17).
Exatamente por ter delimitado a postura liberal deste modo, Rorty
considerava a solidariedade, a liberdade e a pluralidade como prioritárias em
relação à verdade de ideias e, também, a consciência da contingência como
um atributo inerente a tal postura liberal. Segundo Grasset (2013, p. 39-40),
isso está diretamente relacionado à pluralidade de valores e à riqueza de
opiniões:

A capacidade de proceder a tal tipo de reconhecimento da


contingência é justamente aquilo que caracteriza a cultura
liberal bem entendida; inclusive, é essa aptidão ao
reconhecimento da contingência que destaca as práticas
culturais parciais das sociedades liberais, por estas serem mais
pacíficas e abertas em relação à pluralidade, e mais propensas
à variedade e à riqueza de opiniões.

Para Rorty, essa “cultura liberal”, sempre mais aberta e includente, ainda
não está pronta e acabada em parte alguma. Não há nenhum país, por
melhores que sejam as condições de liberdade e comprometimento
comunitário entre os seus cidadãos, que já tenha realizado plenamente a sua
democracia e o seu liberalismo, usando-se esse termo em sentido rortyano.
Pelo contrário, essa postura liberal precisa ser construída a cada dia. Essa é,

117
Shklar é uma voz de relevante contribuição ao pensamento liberal contemporâneo. Sua
escrita teve grande impacto sobre o pensamento rortyano, na medida em que coloca a
crueldade e o medo no centro da discussão política, critica, veementemente, o modelo de
pensamento por ela denominado “liberalismo conservador” (como o representado por Friedrich
Hayek e Ludwig Von Mises) e empreende um combate genuíno à tortura e à crueldade
institucionalizadas na sociedade americana do século XX. Para ela, toda forma de crueldade é
inadmissível a um liberal, uma vez que a crueldade gera o medo, e este destrói a liberdade.

97
precisamente, a utopia que Rorty construiu em suas reflexões políticas: uma
sociedade cosmopolita de conversação livre e democrática.
Trata-se, pois, de um moto contínuo, um estímulo constante ao
progresso moral – a que as sociedades liberais estão mais afeitas que as
demais, justamente por não tentarem encontrar em fundamentações
transcendentes a justificação de suas escolhas, e, em vez disso, permitirem
que a democracia justifique a si mesma –rumo às condições sociais
imaginadas, conforme Grasset evidencia:

O que advém da noção de progresso na sociedade liberal


contemporânea? O progresso há de ser identificado com a
proliferação de uma conversação livre, democrática,
enriquecida por redescrições cuja inventividade deve ser
garantida pela ausência de normas, apreciações e proibições
transcendentes. (GRASSET, 2013, p. 42)

Escapar à tradição metafísica – que Rorty associa, em última análise, a


uma visão platonista-dualista do mundo118 –, deixando para trás a busca por
fundamentação em algum elemento transcendental, modifica a estrutura básica
de pensamento que relaciona a questão ética e a antropológica: antes, era
necessário subordinar a pergunta “o que devo fazer?” a uma outra, “que é o
homem?” 119. Os princípios morais, essenciais à compreensão deontológica de
moral, desse modo, deveriam ser decorrência de elementos como a natureza
humana ou a razão. Rorty empreendeu um movimento no sentido da
naturalização da ética e da política, valorizando sobremaneira os trabalhos, e a
linguagem profundamente temporalizada de autores como Darwin120, Hegel121
e Freud122.

118
Rorty qualificava o platonismo a que combatia como o complexo de pares de opostos que
compõe a lógica do sistema filosófico platônico, caracterizado pela oposição entre realidades
transcendentes e materiais, como, por exemplo, os dualismos entre aparência-realidade,
matéria-espírito, fazer-encontrar, sensível-intelectual.
119
Cf. GALVÃO, Artur E. Utopia e anti-utopia liberal: aspectos do projeto ético-político de
Richard Rorty. In: Revista portuguesa de filosofia. n. 59, 2003, 185-200, p. 185.
120
Segundo a leitura que Rorty fazia de Darwin, este autor é fundamental na construção de
uma cultura naturalizada, em que “tornou-se possível aos seres humanos verem a si próprios
como continuidade da natureza” (RORTY, 2005, p. 123).
121
Segundo a leitura que Rorty fazia de Hegel, muito influenciada pela perspectiva de Dewey, a
insistência no historicismo, típica ao pensamento hegeliano, é fundamental para a construção
pelo homem de uma auto-imagem sensível à contingência da linguagem e da própria
identidade.
122
Segundo a leitura que Rorty fazia de Freud, a consciência moral é histórica e socialmente
construída e não um dado imutável resultante, de algum modo, da natureza humana.

98
Esse diálogo livre e aberto seria, portanto, possível apenas a partir do
reconhecimento da contingência da própria identidade e da própria linguagem,
que cada interlocutor precisaria ter acerca de si mesmo, e também da
contingência da própria estrutural social liberal. Esse antidogmatismo é
consequência de algo ainda mais englobante na retórica rortyana, o seu radical
anti-essencialismo, que é a culminância de sua postura frontalmente
discordante da maneira platônica de ver e interpretar o mundo. Alguém que
tenha essa consciência – ou busque permanentemente construí-la – seria,
pois, um cidadão eminentemente apropriado para a utopia rortyana. Seria,
usando-se o seu vocabulário, um liberal-ironista.
Rorty delimitou a abrangência do sentido de afirmar que alguém seja um
ironista. Para ele123, ironismo é a atitude intelectual em que alguém assume e
cultiva, necessária e cumulativamente, algumas convicções: a de que o seu
próprio vocabulário é contingente, que as suas crenças, suas descrições do
mundo, são tão questionáveis quanto as crenças e descrições de qualquer
outra pessoa; a de que nem sempre o vocabulário que tem a seu dispor no
presente é suficientemente capaz de resolver suas dúvidas e suspeitas – sobre
as próprias posições e as posições dos demais –, suprindo todas as suas
necessidades linguísticas, e, por isso mesmo, está sempre aberto a novas
redescrições. Em resumo, o ironista é alguém que acredita que não há nada de
extraordinariamente especial em suas posições a ponto de ele estar mais
próximo da Verdade – ou de qualquer referencial fora da realidade humana –
que outras pessoas, e acredita que o mesmo se aplica a todos.
Tal postura ironista, portanto, estende-se a aspectos da auto-criação
privada bem como a aspectos da vida pública de um indivíduo. Estar ciente de
que sua própria individualidade não é determinada por uma natureza humana
previamente concebida, mas é passível de infinitas redescrições metafóricas124,
e que pode se reinventar e abrir mão de costumes e ideias que considerava
como importantes à sua auto-imagem é a posição coerente a um ironista. Do
mesmo modo, estar aberto às ideias que nascem do pensamento e das
crenças de outras pessoas, estar apto a um diálogo aberto, includente e leal

123
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. XV. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 17.
124
Cf. Ibid., p. 16 e Ibid., p. 39.

99
faz do ironista alguém capaz de revoluções, capaz de verdadeiramente mudar
de ideia, reconsiderar, vendo as coisas a partir de um ponto de vista novo.
Uma sociedade que valoriza a postura ironista é, pois, uma sociedade
capaz de autocrítica, capaz de questionar e debater o valor e o alcance das
suas próprias instituições, em busca de torná-las sempre mais úteis à tarefa de
redescrever o mundo, tornando-o inimaginavelmente melhor e mais justo.
Metaforicamente, Rorty (1989, p. 45) ilustrou o alcance e o uso muito
mais “renovador” do que “agonístico” desta capacidade-habilidade de
redescrição:

But to offer a redescription of our current institutions and


practices is not to offer a defense of them against their
enemies; it is more like refurnishing a house than like propping
it up or placing barricades around it.125

São essas pessoas, capazes de remobiliar a casa tantas vezes quantas


forem possíveis – ironistas –, e capazes de combater a crueldade e o
sofrimento provocado por uns seres humanos a outros – liberais – que Rorty
considerava126 os cidadãos habitantes ideais de sua utopia.

2.4 Rorty e a defesa antifundacionista da democracia

A palavra “democracia” é uma grande palavra, cuja história


permanece não escrita, porque essa história ainda tem de ser
encenada. (Democratic vistas, Walt Whitman)

A democracia é o melhor ambiente político e social entre os até hoje


conhecidos para a realização da utopia liberal rortyana. Em vista disso, Rorty
estabelecia uma estreita relação entre democracia e liberalismo, uma vez que o
combate a todas as formas de sadismo social, evidentemente, encontra, sob a
perspectiva democrática, as melhores condições na medida em que se trate

125
Na edição lusitana: “mas oferecer uma redescrição das nossas instituições e práticas
correntes não é oferecer uma defesa destas contra seus inimigos: é mais como mobiliar de
novo uma casa do que escorar a casa ou colocar barreiras à volta dela” (RORTY, 1994, p. 72).
126
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 61. E na edição lusitana, cf.
RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 91.

100
efetivamente de uma sociedade pluralista, capaz de ouvir as vozes dos
diversos segmentos que a compõem, com o intento de considerá-las todas
como igualmente relevantes, e empreender, cada vez mais, a substituição da
força pelo diálogo:

A liberal society is one whose ideals can be fulfilled by


persuasion rather than force, by reform rather than revolution,
by the free and open encounters of present linguistic and other
practices with suggestions for new practices. (RORTY, 1989, p.
60)127

Exatamente por isso, Rorty partia da ideia de que a democracia deve ser
construída prioritariamente em relação a qualquer outra coisa. De certo modo,
cuidando dela – da democracia – as outras coisas que a pressupõem podem
cuidar de si mesmas. Isso provoca uma mudança de paradigma importante,
inclusive no trabalho que pode e precisa ser desempenhado pelos intelectuais.
Não é necessário – nem producente – dedicar-se à fundamentação da
democracia em termos “inquestionavelmente racionais”, por meio de
argumentos mais convincentes do que os dos seus rivais. O intelectual – seja
ele um filósofo, um cientista, um artista, etc. – tem algo mais urgente e mais
especial a fazer, qual seja, contribuir com a tarefa de construir, paulatinamente,
uma sociedade mais democrática. À medida que essa sociedade vai sendo
erguida, sua justificação vai se evidenciando na prática, e, na mesma medida,
deixando de ser requerida em termos de fundamentação teórica.
Durante séculos, o papel da Filosofia tem sido a busca incessante da
Verdade – ou de variantes igualmente absolutas como a Certeza e o
Conhecimento –, em um império da Razão, configurando um assumido
logocentrismo128. Em vez disso, Rorty propunha uma mudança de foco
epistemológico, uma, por assim dizer, revolução copernicana. Partindo de uma

127
Na edição lusitana: “uma sociedade liberal é uma sociedade cujos ideais podem ser
realizados pela persuasão e não pela força, pela reforma e não pela revolução, pelos encontros
livres e abertos de práticas atuais, lingüísticas, e outras sugestões de novas práticas” (RORTY,
1994, p. 90).
128
Tal incômodo em relação ao logocentrismo faz com que Rorty seja considerado por muitos
de seus críticos como um filósofo anti-filósofos ou como um irracionalista. Susan Haack,
filósofa inglesa e professora da Universidade de Miami, por exemplo, é uma das importantes
vozes a criticá-lo veementemente a partir desta problemática.

101
noção pragmática de Verdade129 – e se afastando de toda forma de
correspondentismo, essencialismo e platonismo – fez-se capaz de defender
que a democracia se justifica, antes mostrando os benefícios à humanidade
que é capaz de proporcionar do que encontrando alguma fundamentação
principiológica ou, de algum modo, metafísica ou teológica para si. A
democracia não depende, em sua perspectiva, de nada que esteja fora da
história e da cultura. E é, em decorrência, uma enorme perda de tempo e de
energia, para a Filosofia, a busca por este olhar especial, esta perspectiva do
olho de Deus130, capaz de dizer o modo como as coisas, de fato – ou, no fundo
– são. Assim, para a questão “o que os filósofos podem fazer pela política
democrática?”, Rorty (2005d, p. 111) indicava a seguinte saída:

Eles podem começar a trabalhar substituindo conhecimento por


esperança, propondo a ideia de que a capacidade de sermos
cidadãos de uma democracia plena, que ainda se deve
alcançar, em vez da capacidade de apreender a verdade, é o
que importa para se ser humano.

Em consonância com a perspectiva deweyana, Rorty concluiu que a


democracia pode, eventualmente, vir a precisar de uma articulação filosófica,
mas prescinde completamente de qualquer justificação filosófica131. Desse
modo, a filosofia edificante assume um papel eminentemente pragmático,
respondendo à demanda de Marx em suas Thesen über Feuerbach, na medida
em que troca a contemplação pela ação132 e trabalha pela gradual e
ininterrupta construção de um mundo, não se contentando com a mera
explicação do mundo dado, conforme afirmou, referindo-se ao que entende que
deva ser a postura dos filósofos: “Temos de concordar com Marx que nosso
trabalho é ajudar a fazer o futuro diferente do passado, em vez de alegar

129
O tema da Verdade na obra de Rorty encontra muita atenção, evidentemente, por que
muitas das suas proposições filosóficas, inclusive políticas, dependem de sua posição acerca
disso. O autor escreveu muitos textos em que explicitou a sua percepção pragmatista e
deflacionada de verdade e estabeleceu um profícuo debate com importantes pensadores a
respeito desse tema. Vide, por exemplo, a obra ENGEL, Pascal e RORTY, Richard. Para que
serve a verdade. São Paulo: Unesp, 2008.
130
Rorty cita essa expressão, associando-a a Hilary Putnam: “(...) a coragem de abandonar a
ideia de que é possível atingir, tanto na ciência quanto na moral, o que Hilary Putnam chamou
de “a visão do olho de Deus” (RORTY, 1999b, p. 70).
131
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marco Antônio Casanova.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. (Escritos filosóficos, v. I), p. 238 e VOPARIL,
Christopher J. Reading Rorty politically. In: Filosofia, n. 66, 2011, 963-970, p. 965.
132
Cf. RORTY, Richard. Pragmatismo e política, p. 124.

102
conhecer o que o futuro deve necessariamente ter em comum com o passado”
(RORTY, 2005a, p. 124).
Esta desnecessidade de uma justificação teórica inquestionável e
definitiva para a democracia, especialmente no pós-Segunda Guerra Mundial,
gerou grande desconforto entre os leitores de qualquer linha essencialista, seja
de tendência platônica, cartesiana ou kantiana. Rorty percebeu que o ambiente
filosófico que viu a sua produção intelectual aflorar era hostil a esse tipo de
descarte: a filosofia não poderia deixar para trás o que tinha de supostamente
mais importante, a possibilidade-missão de provar – a partir de princípios
transcendentes ou quaisquer outras formas de absolutos – que uma coisa era
melhor do que outra. Parecia que

[...] Somente um apelo a algo eterno, absoluto e bom – como o


Deus de Santo Tomás, ou a “natureza dos seres humanos”
descrita por Aristóteles – permitiria refutar os nazistas, justificar
a escolha da social-democracia e não do fascismo. (RORTY,
2005, p. 36)

Sob essa mesma óptica, em outra passagem igualmente elucidativa


acerca da tradição metafísica, Rorty afirmava que a Filosofia tradicional:
“presuppose the existence of something nonrelational, something exempt from
the vicissitudes of time and history, something unaffected by changing human
interests and needs” (RORTY, 1999d, p. 82).
Entretanto, Rorty observava esta questão pelo seguinte viés: não existe
um ponto de partida neutro, sem pressuposições, ao qual possamos recorrer
para provar que a democracia é a melhor opção política. Qualquer justificação
racional, argumentativa, será sempre circular e etnocêntrica. Não há nenhuma
autoridade acima da realidade humana – algo como a Verdade, a Razão, ou a
Natureza Humana – à qual possamos recorrer133 na tarefa de ponderar nossas
escolhas políticas. Nós só temos uns aos outros.
Para Rorty, pois, os teóricos que desejam advogar pela sociedade
liberal-democrática precisam ordenar as coisas na sequência correta –
abstendo-se de ganchos celestes ou confortos metafísicos –, atentando para a
prioridade da política para a democracia, ou, nas palavras do autor, inspiradas

133
Nietzsche se referia a esta possibilidade de recorrer a conceitos anistóricos e
transcendentes – como, por exemplo, recorrer a Deus – como uma espécie de “conforto
metafísico”.

103
em sua leitura de Dewey, “fixando primeiramente a política e costurando uma
filosofia a seguir” (RORTY, 1997, p. 239). Segundo ele, Rawls é um exemplo
de pensador contemporâneo preocupado com os rumos da democracia, cuja
teoria da justiça como equanimidade134 se coaduna ao seu próprio
pensamento, no sentido de considerar que “a democracia liberal pode caminhar
sozinha sem pressuposições filosóficas” (RORTY, 1997, p. 239).
Não faz sentido, neste ambiente construído pela perspectiva Rorty-
Rawls, nenhuma tentativa de absolutização da democracia. Ela não é a única
forma imaginável de configuração política na qual os homens poderiam viver.
Nesta visão pragmática, marcada pela consciência da contingência da
sociedade democrática, a democracia é como uma ferramenta dos homens,
uma ambiente propício à experimentação, um meio para manter vivo e
contínuo o diálogo, e construir a uma vida melhor. Assim, Rorty (2010, p. 34)
afirmava:

(...) creio que seus defensores, como Dewey, diriam que ela
não é, por si só, um absoluto, mas simplesmente o melhor
meio que conseguimos imaginar até o momento para alcançar
a máxima felicidade possível para os seres humanos. No
passado, tínhamos outras ideias do que poderia conduzir à
máxima felicidade humana. Hoje pensamos que é a
democracia, amanhã pode ser qualquer outro meio.

Assim, tanto na proposta rortyana como na rawlsiana, faz-se coerente


afirmar que há uma gama de questões – que outrora foram relevantes ao
trabalho dos filósofos, inclusive os que se dedicaram a pensar a vida pública –
que podem e precisam ser abandonadas, tarefa que Jefferson135 encampara
com determinação em sua luta pela secularização dos assuntos políticos:

134
No Brasil, o pensamento político rawlsiano costuma ser denominado justiça como equidade.
Mas no referido trecho, o tradutor optou por chamar justiça como equanimidade.
135
Thomas Jefferson é considerado como figura central na história dos EUA – ao lado de
Franklin e Washington – no combate à intolerância religiosa e na defesa da privatização da
religião. Apesar de deístas, eram pragmatistas o suficiente para defender a autonomia da
política em relação à teologia. Importantes conquistas sociais decorrem desse embate,
especialmente, o espírito do “acordo jeffersoniano”, a que Rorty se referia como a consciência
de que a liberdade religiosa – que se encontra eminentemente no âmbito da vida privada – tem
um preço, a laicidade da vida pública: “o acordo jeffersoniano – a troca da garantia de liberdade
religiosa pela disposição dos crentes religiosos de não introduzirem religião na discussão de
questões políticas – tem sido uma parte muito importante da vida nacional norte-americana”
(RORTY, 2005b, p. 91).

104
Em vista de propósitos da teoria social, nós podemos colocar
de lado tópicos tais como uma natureza a-histórica do homem,
a natureza da determinação do si próprio, a motivação do
comportamento moral e o significado da vida humana. Nós
pensamos esses tópicos como tão irrelevantes para a política
quanto Jefferson pensava as questões sobre a Trindade e
sobre transubstanciação. (RORTY, 1997, p. 240)

Tal perspectiva se harmoniza com a leitura rortyana de Dewey, segundo


a qual “o desencantamento comunal e público é o preço que pagamos pela
liberação espiritual privada” (RORTY, 1997, p. 252 e 253). Para Rorty,
Jefferson e Dewey têm mais em comum e mais a contribuir, uma vez que “tanto
Jefferson quanto Dewey descreveram a América como um „experimento‟”
(RORTY, 1997, p. 254). Nesses dois autores Rorty encontrava uma leitura
pragmática da democracia, que a viam como algo por ser realizado, como um
ambiente de tolerância a ser edificado e protegido.
Evidentemente, quando autores como Rawls e o próprio Rorty se
referem à tolerância, há uma abrangência maior que a mera tolerância
religiosa. Ambos os autores relacionam o espírito democrático à tolerância
filosófica, à liberdade de pensamento e à pluralidade de ideias. Além disso,
esperam que os termos “religião” e “filosofia” tenham, um dia, significados
muito mais abrangentes que têm hoje, sendo capazes de incluir muito mais
pessoas e muito mais ideias136.
Uma sociedade democrática, pluralista, conforme o modelo rawlsiano,
em consonância à esperança social rortyana, respeitará, portanto, a rede de
crenças e desejos individuais, abstendo-se de se imiscuir, por meio de
quaisquer mecanismos de controle, nesta dimensão privada da vida das
pessoas. Para Rorty, na dimensão privada de suas vidas, as pessoas devem
ter o total direito de fazer suas escolhas e tornar-se o que quiserem ser,
guardando apenas alguns cuidados, adequados a uma sociedade pluralista–
democrática:

(...) the aim of a just and free society as letting its citizens be as
privatistic, "irrationalist," and aestheticist as they please so long
as they do it on their own time - causing no harm to others and

136
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade, p. 242.

105
using no resources needed by those less advantaged.
(RORTY, 1989, xiv)137

A ressalva feita por ele é cuidadosa, oportuna e apropriada. Nenhuma


sociedade poderia ser, de fato, considerada democrática ou liberal se a sua
virtude maior fosse a absoluta ausência de regras, constrangimentos ou
limitações para os seus cidadãos, deixando-os absolutamente livres em toda e
qualquer circunstância. Há situações em que a consciência individual poderia
“conduzir os indivíduos a agir de um modo que coloque em risco as instituições
democráticas” (RORTY, 2007, p. 242). Evidentemente, a tolerância à
intolerância138 não se justifica no modelo de sociedade esperada pela utopia
rortyana, uma vez que tal postura entraria em rota de colisão direta com aquilo
que se deseja, desde o início, proteger e ampliar: a liberdade e a justiça, em
outros termos, as instituições democráticas.
Rorty assume o etnocentrismo139 da sua própria posição – o
etnocentrismo das sociedades liberal-democráticas – justamente por partir de
um anti-essencialismo radical. De certo modo, desejar que outras sociedades
venham a se tornar democráticas pode ser a expressão de uma visão centrada
em si mesmo, no mau sentido, se, para tanto, partíssemos da ideia de que
exista uma justificação natural, ou, pior ainda, uma justificação sobrenatural,
para essa escolha. Seria algo como dizer que, no fundo, elas precisam ser
assim porque, na situação natural das coisas, é assim que elas são. Para ele,
entretanto, o que justifica – e justifica muito bem – a escolha pela democracia,
a ponto de torná-la sua utopia são duas razões: 1. o fato de que um simples

137
Na edição lusitana: “(...) o objetivo de uma sociedade justa e livre é permitir que os seus
cidadãos sejam, de modo privado, tão “irracionalistas” e esteticistas quanto entendam ser,
desde que o façam na devida altura – sem fazerem mal a outrem e sem utilizarem para tanto
recursos de que necessitem os menos favorecidos” (RORTY, 1994, p. 16).
138
A questão do paradoxo da tolerância – devemos ser tolerantes com a intolerância? – é
muito bem analisada por Karl Popper em Sociedade aberta e seus inimigos. Para ele, a
tolerância precisa ter limite, uma vez que a tolerância ilimitada ameaça o próprio princípio da
tolerância. Assim, a democracia precisa ser vigilante e ter o zeloso cuidado de preservar as
suas próprias instituições e “ela só usará a força contra a consciência individual quando a
consciência conduzir os indivíduos a agir de um modo que coloque em risco as instituições
democráticas” (RORTY, 1997, p. 242).
139
Em Rorty, a expressão etnocentrismo é redescrita, assumindo significação diferenciada
daquela convencional, advinda da tradição antropológica. Na discussão dos antropólogos, a
postura etnocêntrica está associada à pressuposição de superioridade de um determinado
ethnos. Na retórica rortyana, entretanto, está associada ao fato de que é impossível, a qualquer
pessoa, observar e julgar os termos de uma conversação a partir de um ponto neutro. É
impossível “sair da própria pele”. Em outras palavras, “as crenças e desejos de um indivíduo
são tudo o que ele tem” (ARAÚJO, 2016, p. 125).

106
exercício de comparação dos resultados, observando a situação de vida das
pessoas em diversas configurações sócio-politico-econômicas, leva-nos
tranquilamente ao resultado de que as sociedades liberais e democráticas são
aquelas que têm dado a seus cidadãos as melhores oportunidades de viver de
forma digna; 2. o fato de que toda a democracia que já conhecemos não
expressa ainda o que podemos ter. A democracia é um processo em
andamento, uma construção, uma utopia a ser efetivada.
Assim, não há um argumento ótimo, não circular e infalível, para
defender a democracia ante seus opositores. Todorov argumenta que boa
parte das ameaças mais sérias à democracia é, desconcertantemente,
concebida e gestada em seu próprio ventre, e que muitos dos seus inimigos
podem ser chamados “inimigos íntimos”, uma vez que a conhecem e com ela
convivem a ponto de indicar as suas supostas contradições internas, e se valer
das dificuldades a ela inerentes de delimitar o significado e o alcance de
valores que lhe são basilares, como, por exemplo, a liberdade. Neste sentido,
questiona o filósofo e linguista búlgaro:

(...) Num primeiro momento eu tinha acreditado que a liberdade


era um dos valores fundamentais da democracia; agora
percebo que certo uso da liberdade pode representar um
perigo para a democracia. Haveria aí um indício de que, hoje,
as ameaças que pesam sobre ela não vêm do exterior, da
parte daqueles que se apresentam como seus inimigos, mas
sobretudo de dentro, das ideologias, movimentos ou gestos
que alegam defender os valores democráticos?” (TODOROV,
2012, p. 12).

Para Rorty, a existência dessa inimizade íntima não deve ser suficiente
para se acreditar que tudo está perdido. Pelo contrário, isso é apontado como
maior virtude das sociedades democráticas: a democracia é capaz de ouvir
suas críticas – e todas as demais –, justamente, por alimentar a habilidade de
inquirir-se a si mesma, considerando isso algo não apenas normal mas
imprescindível. Não existe nisso qualquer deificação do regime democrático. A
democracia, nos termos encampados por Rorty, não promete solucionar todos
os seus problemas e nem responder satisfatoriamente a todas as suas
questões. O que ela “promete” é estar sempre afeita ao diálogo a ponto de
buscar saídas e reformas para sanar as suas dificuldades. É a liberdade que

107
alimenta – e é também alimentada a todo instante – a democracia. A livre-
discussão é o seu esteio:

"Free discussion" here does not mean "free from ideology," but
simply the sort which goes on when the press, the judiciary, the
elections, and the universities are free, social mobility is
frequent and rapid, literacy is universal, higher education is
common, and peace and wealth have made possible the leisure
necessary to listen to lots of different people and think about
what they say. (RORTY, 1989, p. 84)140

Além disso, há, para ele, a alternativa-oportunidade de buscarmos a


observação das conquistas democráticas e, também, a real possibilidade de
novas conquistas cada vez mais impressionantes para as quais,
provavelmente, não temos hoje sequer palavras com as quais descrevê-las.
Para Rorty, alguns pensadores da democracia, intelectuais genuinamente
comprometidos com o espírito democrático, como, por exemplo, Habermas e
Putnam, escolheram justificá-la de modo essencialista, tratando-a ou como
algo necessário a todos que utilizam a linguagem ou como algo que pode ser
defendido pela capacidade argumentativa, a habilidade de argumentar melhor
que os seus opositores. Em oposição a esta via de argumentação em defesa
da democracia, que, aliás, mostra-se pouco democrática, universalista e
essencialista, Rorty (2005a, p. 108) afirmava que:

Deveríamos, em vez disso, admitir que não temos um terreno


neutro onde nos colocar, quando defendemos tal política contra
seus opositores. Se não admitirmos isso, penso que podemos
ser corretamente acusados de tentar infiltrar nossas próprias
práticas sociais na definição de algo universal e inelutável,
porque pressuposto pelas práticas de todo e qualquer usuário
de linguagem. Seria mais franco, e portanto melhor, dizer que a
política democrática não pode apelar para essas
pressuposições mais que a política antidemocrática, mas que
ela não está absolutamente em maus lençóis por causa disso.

140
Na edição lusitana: “„livre discussão‟ não significa aqui „livre de ideologia‟, mas apenas o tipo
de discussão que se dá quando a imprensa, o sistema judicial, as eleições e as universidades
são livres, a mobilidade social é frequente e rápida, a alfabetização é universal, os estudos
superiores são comuns e a paz e a riqueza tornam possível o lazer necessário para escutar
muitas pessoas diferentes e pensar sobre o que elas dizem” (RORTY, 1994, p. 116).

108
Infiltrar as próprias práticas sociais na definição de algo presumidamente
universal e inelutável é, isso sim, um etnocentrismo inaceitável. Rorty propunha
outra espécie de etnocentrismo, portanto. Para ele, justifica-se o orgulho de
viver em uma sociedade cujas conquistas sociais transformaram a vida do ser
humano em algo indescritivelmente melhor, mais justo, menos cruel e mais
includente. Isso basta para defender a política liberal-democrática ou, em seus
termos, a cultura liberal. É a prioridade da democracia que tem o efeito de
empreender as reformas necessárias à criação de uma sociedade cada vez
mais responsiva ao sofrimento e à injustiça.
Na perspectiva rortyana, não há, por óbvio, nenhum sentido em dizer
que este ou aquele predicativo dos seres humanos comprova que eles tenham
uma natureza ou que existe algo a se considerar como universal. A despeito
disso, há qualidades construídas na práxis social que com o uso – com a
prática justificatória – passam a compor a auto-imagem das pessoas. Desde a
Grécia, especialmente desde Aristóteles, um atributo recorrentemente citado
como um diferencial do ser humano, em relação a todas as demais espécies, é
a sua capacidade de pensar, a sua racionalidade, sua propensão ao
conhecimento141. Mais uma vez, Rorty, posicionando-se contra o logocentrismo
deste pensamento, propunha a prática ininterrupta de redescrição de si mesmo
no sentido de reconstruir esta auto-imagem. Haveria, para ele, algo melhor do
que se orgulhar:

(...) o abandono da ideia logocêntrica de que o conhecimento é


a capacidade distintivamente humana deixaria espaço para a
ideia de que a cidadania democrática é mais adequada a tal
papel. Esta última é aquilo de que os seres humanos deveriam
mais se orgulhar, e que deveriam tornar central para nossa
auto-imagem. (RORTY, 2005d, p. 109)

A utopia rortyana é, desse modo, uma proposta que prescinde da visão


metafísica de natureza humana. E essa posição o levou – e nos leva – ao
desafio de encarar a contingência e apontar a importância de se buscar o
aperfeiçoamento das ferramentas de que dispomos para a construção da auto-

141
Em Aristóteles esta propensão ao conhecimento é tratada como algo natural, uma coisa
indelével na composição da natureza humana, assim como a sociabilidade: “todos os homens,
por natureza, tendem ao saber”. Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Vicenzo Cocco. São
Paulo: Victor Civita, 1984, 980a21, p11.

109
imagem da sociedade democrática. Na comunidade de diálogo resultante de
uma atitude cada vez mais ironista, marcada pela lealdade liberal entre seus
membros, e pela busca diuturna da ampliação de seus próprios limites de
inclusão, coisa sobremaneira importante é a cuidadosa construção dessa auto-
imagem. Dela dependem a valorização, a manutenção e a ampliação do
alcance das instituições. Neste sentido, contar a história passada é um
instrumento de grande valor. A História precisa, então, ser objeto de uma
atenção especial, não porque desvende a verdade real dos fatos passados,
mas porque o papel que lhe cabe é parte relevante neste processo de
construção da auto-imagem da democracia. As controvérsias acerca do
passado real deixam de ter a maior importância e cedem lugar ao desejo de
construir uma história melhor no futuro, como esclarece Carvalho Filho (2013b,
p. 106): “na sociedade literária, não se está mais interessado no “passado real”,
mas no passado que é útil contar para preparar um futuro melhor”. Assim, a
narrativa histórica é importante, desde que afirmativa, na medida em que se
comprometa com a contribuição para uma sociedade melhor.
A questão da identidade pessoal e/ou “nacional” (comunitária) foi levada
muito a sério nos escritos de Rorty, especialmente nas últimas obras, em que,
de certo modo, ele se incumbiu da tarefa de combater o cansaço, a atitude
expectadora, ou mesmo condescendente, da esquerda americana em relação
à tendência de contar uma história vergonhosa de seu país142. O destaque que
o autor fazia da necessidade de se ter uma postura afirmativa da identidade na
democracia liberal se justifica pelo fato de ser este um importante degrau na
escada que pode nos levar a construir uma sociedade melhor que a atual e
realizar as nossas utopias. Ele o afirmava taxativamente: “levantamos questões
sobre nossa identidade individual ou nacional como parte do processo de
decidir o que tentaremos fazer em seguida, o que tentaremos nos tornar”
(RORTY, 1999c, p. 47).
Importa, entretanto, que não se entenda essa via de argumentação
como a tentativa de negar e/ou encobrir os erros cometidos no passado, como
a defesa da postura de uma total condescendência para com as mazelas
sociais historicamente construídas. Não se trata, é claro, de uma revisão da

142
Para Rorty, “a desesperança tornou-se uma moda na esquerda – desesperança filosófica,
teorizada, fundamentada” (RORTY, 1999b, p. 72).

110
história para que se aproveite somente aquilo que nos é agradável, mas do
firme propósito de transformar os erros do passado em uma oportunidade de
não os cometer no futuro. Para Rorty, “nada que uma nação tenha feito impede
uma democracia constitucional de recobrar a auto-estima” (RORTY, 1999c, p.
68).
Richard Rorty foi, pois, um pensador do hoje e do amanhã, um mediador
de épocas, um fazedor forte, comprometido com as imagens do futuro ao
tempo que se desobrigava de qualquer ânsia de eternidade, esperançoso e
otimista, entusiasta da solidariedade, certo da força e da prioridade do diálogo
sobre a violência, um autor cujo olhar estava contingentemente direcionado aos
acontecimentos da vida social de sua época, mas que se comprometia com a
maravilhosa possibilidade de construir novos modos de existência –
possivelmente sequer imagináveis – para que as pessoas e as comunidades
sejam capazes de ter uma vida melhor do que a que temos hoje, e, a cada dia,
melhor do que a que tinham antes.

2.5 Uma utopia centrada na solidariedade

Toda a utopia rortyana é assentada na esperança de criarmos uma


sociedade mais solidária. A noção de solidariedade está intrinsecamente
relacionada à de liberalismo, pois, na retórica rortyana, liberal é aquele que se
compromete com o combate à humilhação e ao sofrimento de seres humanos,
importando-se, inclusive, com a possibilidade de infligir sofrimento ao outro
sem que se aperceba. A auto-criação individual, dessa maneira, não poderá
ser realizada na direção do egoísmo e do sadismo, mas na direção da
solidariedade. É precisamente por este motivo, que ressaltamos a importância
da educação da sensibilidade das pessoas em uma sociedade utopicamente
liberal.
Para Rorty, não há nenhuma necessidade de se estabelecer a
fundamentação ontológica da solidariedade, por exemplo, em algo que se
possa identificar como natureza humana, nem sequer na racionalidade
humana. A solidariedade é algo a ser construído e não algo a ser acessado em
algum rincão escondido da personalidade das pessoas. Ela é uma meta

111
traçada, um objetivo a ser alcançado por meio da imaginação143. E
precisamente nisso se verifica o papel da utopia.
A tarefa de imaginar, em uma cultura utópica liberal, requer uma
sociedade não mais obcecada com a teoria, o tratado, o sermão, os sistemas
filosóficos, as verdades abrangentes, a objetividade, a racionalidade, mas
afeita ao romance, à peça e à metáfora.
Não é difícil a um crítico habituado ao vocabulário e aos procedimentos
metodológicos da filosofia tradicional tecer ressalvas as mais diversas à
retórica rortyana. Isso se dá, principalmente, porque muitas das questões a que
está habituado são consideradas por Rorty como algo que nem se deveria
tentar responder. De fato, essa é (ou seria) uma redescrição dolorosa para um
pensador: passar a considerar como de somenos importância aquilo que até
então era tido como vital, passar a duvidar da necessidade de muitos e muitos
tratados filosóficos. Observe-se, entretanto, que muitas conquistas sociais
relevantes nas sociedades democráticas se efetivaram a partir de ideias menos
rígidas e mais exequíveis, como afirma McClean:

No entanto, muito do que celebramos nas e como sociedades


democráticas maduras e florescentes pode ser dito que
descansa sobre suportes filosóficos e teológicos „frágeis‟,
„derrotáveis‟. A partir desses suportes, novos sonhos foram
sonhados (são sonhados), e depois vividos - sobre „direitos
inalienáveis‟, „irmandade do homem‟ e o „arco do universo
moral‟. (McCLEAN, 2014, p. 4 – tradução nossa).144

Esse sonho – que deve ser protegido e alimentado – é o maior de


todos os compromissos intelectuais e morais de Rorty, e pode ser entendido
como a tentativa incessante de fomentar as condições necessárias à
solidariedade, à cessação da crueldade, à aceitação da alteridade e ao dever
de melhorar, corrigir e fazer progredir a própria civilização145.
A utopia de Rorty vislumbra um futuro em que tolerância seja uma
palavra menos dita que solidariedade. Ou seja, um futuro em que mais que

143
Na retórica rortyana, a sociedade utópica é aquela em que a imaginação – assumindo o
lugar da razão – é o instrumento principal do bem.
144
No original: “Yet much of what we celebrate in and as mature and flourishing democratic
societies may be said to rest on „flimsy‟, „defeasible‟ philosophical and theological supports.
From those supports new dreams were dreamed (are dreamed), and then lived out –
concerning „unalienable rights‟, „the brotherhood of man‟ and the „arc of the moral universe‟.
145
Cf. Ibid, p. 3.

112
tolerar a diferença – de pessoas e ideias – os homens sejam obstinados em
procurar e encontrar arranjos sociais para facilitar a convivência respeitosa e
solidária entre os diferentes, formas respeitosas de comunicação entre
diferentes vocabulários.
Entretanto, Rorty de modo algum poderia ser associado a alguma
espécie de utopismo ingênuo, incitando realidades transformadas sem que se
preocupe com as dinâmicas de transformações reais da sociedade. O
pensamento de Rorty é, desde já, um elemento de mudança, um mobile. É
nesse sentido que McClean (2014, p. 6) afirma que:

Uma coisa é apelar para uma ética de amor planetária, como o


fizeram tantos visionários religiosos e poéticos ao longo dos
tempos, mas outra coisa é ajudar a desbravar o terreno para
uma. O pensamento de Rorty ajuda a fazer exatamente isso146.

De certo modo, Rorty prepara o terreno para eventos de transformação


futuros, inclusive, aqueles que somos incapazes de descrever no momento,
mas que serão possíveis. O incremento da solidariedade é, pois, uma
transformação social do futuro, mas que precisa iniciar hoje e a cada dia. A
solidariedade é, em Rorty, uma tarefa ininterrupta e muito mais importante que
a tarefa de chegar às verdades – ou, mais ainda, a tarefa de chegar à Verdade
–, tão cara à filosofia tradicional.
Ao referir-se à solidariedade, Rorty não se mantém no mundo dos
valores generalizantes, das ideias abstratas, mas trata da solidariedade na vida
das pessoas reais e no enfrentamento de questões sociais delicadas.
Buscando ensejar a ampliação contínua dos círculos de lealdade, a construção
de pontes entre os vocabulários diferenciados, sua perspectiva inclui desde as
mazelas provocadas pela diferenciação entre uma criança rica e uma criança
pobre, ou o espancamento de um homossexual por razões de intolerância e
preconceito, até o fascismo e o genocídio.
Exatamente por centrar a sua utopia em algo notoriamente tão frágil
como o senso de fraternidade e solidariedade, Rorty alerta com veemência
para os perigos a que ela está exposta a todo instante. Diante dessa fragilidade

146
No original: “It is one thing to call for a planetary love ethic, as did so many religious
and poetic visionaries over the ages, but it is quite another to help clear the ground for
one. Rorty‟s thought helps to do just that”. (McCLEAN, 2014, p. 6)

113
é necessário que se tenha atenção e cuidado para com ele. As conquistas das
instituições sociais, que se tornaram práticas sociais comuns nas sociedades
democrático-liberais, são o resultado de um complexo de eventos históricos
não necessários. Não existe nenhuma espécie de garantia de que a herança
dessa combinação de eventos históricos permanecerá sendo levada a sério em
uma dada comunidade. Desse modo, bastaria, talvez, que ascendesse ao
poder um governante cujos princípios e valores destoassem completamente
daqueles em voga – valores democráticos e de combate à crueldade e ao
sadismo social – para que tais valores se perdessem e o sadismo social
voltasse a ser uma moda.
Expressões como direitos humanos universais ou direitos inalienáveis, e
qualquer outra cujo embasamento seja a noção de natureza humana147,
chegam a ser, nesta perspectiva, perigosas, uma vez que denotam certa
perenidade e garantia a coisas que foram – e precisam ser entendidas assim –
conquistas sociais, resultado de condições históricas contingentes, e que
podem vir a ser mitigadas ou até suprimidas a qualquer tempo, a despeito de
normatizações em contrário.
Precisamente por isso, Rorty chamava a atenção para o fato de que a
consciência da contingência talvez seja a nossa única defesa contra ela. Saber,
de certa forma, que tudo pode ser perdido é a única coisa capaz de fazer com
que permaneçamos atentos em proteger os sentimentos, os valores e os
princípios que justificam, promovem e alimentam as instituições democráticas e
liberais.

2.6 Um profeta com os olhos voltados para trás

A utopia de uma sociedade idealmente cosmopolita, liberal e


democrática está presente, mesmo que de forma sub-reptícia, em todo o
complexo dos textos políticos de Rorty. Em Contingência, ironia e

147
Para Rorty, o pragmatismo efetua a negação de alguns “confortos metafísicos” com os quais
a tradição cultural ocidental estava muito familiarizada. Dentre eles, “o pensamento de que os
membros de nossa espécie biológica carregam com eles certos „direitos‟”, o que se associa à
ideia de “direitos humanos”, inalienáveis e transmitidos biologicamente. Cf. RORTY, Richard.
Objetivismo, relativismo e verdade, p. 48.

114
solidariedade, houve, de fato, uma excelente sistematização de conceitos e
uma apresentação mais argumentativa das ideias principais que o filósofo
pretendia defender148. Foi, entretanto, em uma obra posterior, Philosophy and
social hope, uma compilação de ensaios sobre política, cultura e crítica literária,
que Rorty publicou o texto, escrito em 1996, que explicitamente ilustraria a sua
utopia: Looking backwards from the year 2096149.
Em um riquíssimo exercício de imaginação, Rorty adotou ficcionalmente
uma perspectiva privilegiada, ao observar o século XX – mais precisamente, o
desenrolar dos acontecimentos políticos ao longo desse século na América – a
partir do ano de 2096, final do século XXI.
No início do enredo de tal investigação prospectiva-retrospectiva, o autor
concentrou o olhar prioritariamente em um determinado recorte temporal,
compreendido entre os anos de 2014 e de 2044, a que chamava Dark Years,
período em que muitos dos valores mais caros a uma democracia-liberal teriam
sido suplantados e, em decorrência, conquistas sociais anteriormente
empreendidas – especialmente no que diz respeito aos sentimentos de
solidariedade e esperança social – teriam sido mitigadas.
Nesse período, dois processos sociais indicativos de tais retrocessos
seriam de fácil detecção: primeiramente, uma marcante transformação em
termos de vocabulário político corrente, e, em segundo lugar, uma mudança
significativa no tocante à relação entre moral e economia. A partir de um ponto
privilegiado, o observador-narrador constrangia-se ao constatar a conivência
dos homens e mulheres do século XX com a desigualdade e com uma moral
capaz de cegar as pessoas para o sofrimento e a dor dos outros. Guiados por
uma moral desse tipo, os indivíduos não poderiam de modo algum considerar,
movidos por um sentimento de solidariedade social, contentar-se com menos
riquezas materiais para que outros dispusessem também de melhores
condições de existência.
Olhando um pouco mais a diante, a partir da perspectiva adotada, o
observador aponta que nos 100 anos que precederam a Revolução Industrial, a

148
Deve-se ressalvar que, mesmo na obra citada, de caráter eminentemente teórico, Rorty
manteve uma escrita leve e ensaística, sendo coerente com o tipo de retórica filosófica que o
próprio texto afirma valorizar. Assim, o autor apresentava poeticamente as argumentações que
julgava pertinentes, flertando, simultaneamente, com diversas formas de arte e com a crítica
literária.
149
Originalmente, esse texto foi publicado no The New York Times, em 1996.

115
América respirava um ar de alguma tolerância e solidariedade, mas que, após
o advento dos tempos industriais, ficou cada vez mais difícil verificar relações
de fraternidade, por exemplo, entre empregador e empregado. O abismo entre
ricos e miseráveis só viria a aumentar. E, além do problema da distribuição de
riquezas, há, relacionado a ele, o da segregação racial, que perduraria ainda
por muito tempo.
Após a Segunda Guerra Mundial, algumas mudanças sociais
importantes já se verificavam, especialmente as implementadas pela
jurisprudência da Suprema Corte americana, acerca dos direitos de grupos
identificados pela raça, etnia ou sexualidade, especificamente relacionadas aos
direitos civis. Tais transformações políticas e morais, inclusive, serviram de
parâmetro para conquistas sociais semelhantes em outras partes do mundo.
Nesse período do pós-guerra, era possível enxergar algum progresso moral em
termos de solidariedade. Americanos brancos, gradativamente, começavam a
considerar os americanos negros como concidadãos.
Houve, entretanto, a partir dos anos de 1980, um marcante retrocesso,
com o processo de banalização do egoísmo e uma explosão de ódio e
segregação. A retórica dos políticos conservadores, pouco a pouco, parecia
fazer mais sentido. Ideias como “é apropriado que a educação das pessoas
seja condizente com sua posição social”; ou “deve-se investir menos e menos
recursos públicos com presidiários”, ou ainda “as pessoas devem ter o direito
ao porte de armas, para que possam defender seu patrimônio e sua vida”
passam a fazer sentido no imaginário das pessoas. E a consequência do
sucesso de ideias como essas foi o fim de qualquer espírito de fraternidade
entre os cidadãos de diferentes raças ou classes sociais. Além disso,
explodiam insurgências em toda parte e a sensação de segurança diminuía
paulatinamente. Concomitantemente, a economia colapsava. Era a ascensão
dos Dark Years.
A partir da descrição distópica desse período, o narrador-observador
direciona o foco para o tempo presente, o final do século XXI. É nessa
descrição imaginativa de como seria a realidade moral e política na América no
final do século XXI que o autor deixa transparecer sua utopia de sociedade
liberal e solidária. Mudanças consideráveis no vocabulário político teriam,
então, ocorrido e expressões como fraternidade e altruísmo teriam voltado a

116
fazer sentido na retórica política. Aos poucos, construíram-se as condições
para que a linguagem da literatura viesse a ser preferível à do direito, e para
que as pessoas passassem a sentir vergonha da desigualdade150. Tornou-se
senso comum a ideia de que podemos estender a nossa solidariedade a um
número cada vez maior de pessoas, uma revolução de perspectiva, do “eu”
para o “nós”.
Neste ambiente de altruísmo, a expressão liberal já não se referiria a
alguém cujo propósito político maior seria a proteção de sua propriedade e da
propriedade de todas as pessoas. Liberal seria aquele cujo maior objetivo a
perseguir é o resgate da dignidade das pessoas através da solidariedade.
Outra mudança vocabular importante, em termos de religião e moral,
agiria no sentido de ensinar às pessoas que nenhuma espécie de salvação,
aprimoramento ou segurança exclusivamente individual, que exclua os outros
cidadãos, deva jamais ser tomada como o que há de prioritário. As igrejas não
deixariam de existir, mas o evangelho que ensinariam seria uma espécie de
“evangelho social”, aperfeiçoando as pessoas para incluir, dividir e participar.
Há ainda outro aspecto importante: na sociedade que se construiu na
América do final do século XXI, as pessoas são permanentemente
conscientizadas de o quanto foi difícil atingir tal nível de conquistas
civilizacionais e de como são frágeis as instituições erguidas. A consciência da
fragilidade e a suscetibilidade à contingência teriam atingido padrões que
Whitman e Dewey jamais poderiam ter imaginado151. Esse é, em conseguinte,
um elemento-chave para se afirmar que uma determinada sociedade está
tomando o caminho da utopia cosmopolita liberal democrática rortyana: se as
pessoas estiverem muito seguras de que aquilo que construíram são
conquistas perenes, realizações acabadas, e que o que importa agora é tão
somente empreender novas melhorias, algo está errado com esse senso de
democracia; por outro lado, se elas estiverem constantemente empenhados na
tarefa de lembrar que as conquistas civilizacionais até então realizadas
precisam ser protegidas e solidificadas, uma vez que não estão assentadas
sobre nenhuma espécie de absolutos, sendo muito frágeis e contingentes e

150
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na
América, p. 248.
151
Cf. Ibid., p. 250.

117
que nunca termina o processo de realizar projetos novos e criar novos direitos
e práticas sociais includentes, até então inimagináveis, aí sim poderemos
afirmar que eles têm tomado o caminho da utopia que Rorty sonhava.

2.7 Mais que um método, uma meta

A vida que não é vivida na proximidade dos limites da


imaginação humana não vale a pena ser vivida. (Rorty, 2009,
p.163)

Uma das provocações mais básicas que se costuma fazer a um filósofo,


a fim de desacreditar os seus escritos, tem sido chamá-lo de literato, ou, em
uma generalização proposital, de escritor. De certo modo, funciona como a
denegação do status de pensador diminuir a importância e a força de suas
palavras, insinuando que aquilo que foi escrito não é Filosofia, podendo ser
qualquer outra coisa152. Rorty observou tal repreensão – a que, evidentemente,
ele também fora submetido inúmeras vezes –, afirmando que “os intelectuais
do tipo literário têm de ouvir com frequência que não amam a verdade
suficientemente” (RORTY, 2009, p. 155). Há, sem dúvida, grande quantidade
de autores-heróis cujo objetivo maior de sua vida intelectual, em nome do amor
pela verdade, é o de, a qualquer custo, “resgatar o bom navio da filosofia para
o serviço da Ciência das mãos dos piratas sem lei do mar da literatura” (Peirce
apud Haack, 2011, p. 107).
Isso pressupõe certa concepção de Filosofia e de seus titulares, os
filósofos, como especialistas em realidade, aqueles que estão mais próximos
de descrever as coisas como elas de fato o são. É como se os filósofos fossem
uma espécie de profissionais cuja atividade é polir as lentes através das quais
podemos observar/contemplar a verdade com a devida dioptria e clareza.

152
Em entrevista concedida a Giovanna Borradori, Rorty (2003, p. 152) elencou alguns autores
americanos e europeus que faram tratados dessa forma depreciativa, a despeito de sua
importância intelectual: “Emerson jamais foi lido como filósofo pelos filósofos. É como o caso
de Nietzsche, que antes de Heidegger não era considerado um filósofo. Só recentemente
filósofos como Stanley Cavell e Cornel West procuraram trazer Emerson para dentro do
„cânone filosófico‟. Emerson e Thoreau eram considerados figuras literárias, na tradição dos
americanos excêntricos”. Em outro momento, Rorty (Ibid., p. 158) afirmou que na Europa uma
continuidade entre filosofia e literatura já é comum ao modo como se lêem os filósofos e que,
“Valéry e Sartre perambulavam de uma para a outra conforme o momento”.

118
Muitos são os filósofos, entretanto, que não se consideram polidores de coisa
alguma, contentando-se com a pretensão de oferecer uma visão útil daquilo
que se propõem discutir, mantendo-se cientes de que tal visão não
necessariamente é mais acurada que todas as outras, e, também, que ela não
precisa ser a visão definitiva daquele objeto de reflexão.
Realidade, visão, polimento, lentes, dioptria e clareza são termos
propositadamente afeitos à ciência óptica. São metáforas oculares, que
evidenciam tanto a maneira de descrever a relação epistemológica entre o
homem e os objetos cognoscíveis que se tornara prioritária –
correspondentismo (verdade como correspondência) e representacionismo
(conhecimento como representação) – como a forma de entender o método de
trabalho da filosofia a ela correlata. O sonho de ter uma linguagem e um
método semelhantes ao das ciências embalou, por séculos, o sono de muitos
filósofos. Ghiraldelli Júnior afirma que, em uma suposta história da filosofia
americana sob a perspectiva de Rorty, um dos momentos importantes seria a
presença dos empiristas lógicos do Círculo de Viena, refugiados nos Estados
Unidos, que assumiram um protagonismo em relação aos problemas filosóficos
discutidos bem como à forma de discuti-los, marcantemente anti-historicista,
buscando “fazer filosofia de maneira científica” (GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 26).
Rorty (2003, p. 151) levantava uma hipótese de motivação para essa postura
dos intelectuais que vieram para a América escapando à barbárie nazista:

Os positivistas lógicos consideravam que um signo distintivo do


fascismo era a oposição às ciências naturais, e que impor
então à filosofia critérios de cientificidade representava também
uma profissão de fé política antifascista.

Rorty – que, evidentemente, opunha-se a todo regime antidemocrático,


e, especialmente, ao nazifascismo, tinha a sua própria ideia de como combatê-
los – certamente, não está entre eles. Precisamente por não se alinhar a essa
busca incondicional por objetividade, rigor e método científicos, Rorty é
“repreendido” por Haack – para quem a escrita rortyana é a melhor
representação de um “pragmatismo vulgar” e deve ser apropriadamente
associada a uma moda irracionalista – como alguém que se comporta de má
fé, sendo desprovido de genuíno amor pela verdade e negligenciando qualquer

119
preocupação com a honestidade intelectual153. Tal intento de dar aspecto de
ciência à filosofia esteve presente, para Haack, nas origens do Pragmatismo
Clássico, desvirtuado, banalizado e vulgarizado hoje por autores da moda
irracionalista, especialmente Rorty:

Mas de alguma maneira o pragmatismo clássico, na forma da


aspiração de Pierce de renovar a filosofia tornando-a mais
científica, tem sido transmutado no pragmatismo vulgar que
hoje está na moda, na forma (...) das esperanças de Rorty de
uma cultura pós-filosófica em que “nós pragmatistas”
desistimos da idéia antiquada de que a verdade é uma meta da
investigação e refazemos a filosofia como um gênero da
literatura, apenas um tipo de escrita. (HAACK, 2011, p. 52)

O fato desconcertante dessa repreensão de Rorty por Haack é que,


enquanto esta brada a todos os cantos que aquele não tem o devido “amor
pela verdade”, ele reconhece que de fato não o tem – do modo como ela
desejaria – e acrescenta que, em uma cultura evoluída, uma cultura literária, tal
amor pela verdade seria uma “virtude intelectual” raramente encontrada.
Rorty não se interessava pela construção de um sistema filosófico
abrangente ou sequer pela defesa de uma teoria política à maneira da tradição
filosófica. Não há em sua escrita um edifício de argumentações que se
sustentam umas às outras comprovando uma tese de modo irrefutável por ser
racional. Isso se dá, aliás, por um motivo bastante simples: para ele, as
questões que valem a pena ser formuladas – porque suscitariam a resolução
de problemas – não poderiam ter uma resposta definitiva, um “ponto terminal”,
conforme evidencia no seguinte trecho em que rebate a acusação de
frivolidade:

Aqueles que, como eu, se vêem acusados de frivolidade pós-


modernista não pensam que haja um tal ponto terminal. Nós
pensamos que nosso questionamento é apenas outro nome
para resolução de problemas, e não podemos imaginar um
questionamento sobre como os seres humanos deveriam viver,
sobre o que deveríamos fazer de nós, chegando a um ponto
final. (RORTY, 2009, p. 156)

153
Cf. HAACK, Susan. Manifesto de uma moderada apaixonada: ensaios contra a moda
irracionalista. Trad. Rachel Herdy. Rio de Janeiro: Loyola, 2011, p. 57.

120
A descrição de Borradori acerca da filosofia em uma sociedade pós-
filosófica, ao modelo do entusiasmo de Rorty, é precisa e esclarecedora:

Um traço distintivo do novo quadro pós-filosófico é a tradução


da categoria de objetividade para a de solidariedade. A
filosofia, envolvida num processo de des-disciplinarização
“humanística”, não cabe mais o papel de mãe e rainha das
ciências, sempre à procura de um vocabulário definitivo e
imortal com base no qual sintetizar ou descartar os resultados
de outras esferas de atividade. Ao invés disso, ela se
democratiza na forma de uma “crítica da cultura” que a vê
transformada numa disciplina entre outras, fundada sobre
critérios histórica e socialmente contextuais e preposta ao
estudo comparado das vantagens e desvantagens das diversas
visões de mundo. (BORRADORI, 2003, p. 147)

O abandono dessa procura por verdades redentoras é visto por muitos


como um flagrante retrocesso de uma época que nega tudo o que é sério. Para
Rorty, entretanto, o advento de uma cultura literária e a mudança de foco e de
procedimentos da filosofia – que passa a fazer novas perguntas, diferentes das
questões perenes da metafísica, e a respondê-las de uma maneira
inteiramente nova – são um grande e importante progresso, e:

(...) uma substituição desejável de más questões como “O que


é o Ser?”, “O que é verdadeiramente real?” e “O que é o
homem?” pela questão sensata “Alguém tem quaisquer ideias
novas sobre o que nós, seres humanos, poderíamos conseguir
fazer de nós mesmos?”. (RORTY, 2009, p. 160)

Desse modo, em Rorty, a filosofia encontra um projeto conversacional,


maiêutico e edificante. Segundo Araújo, ele “formula seu próprio pragmatismo
em um estilo de discurso radicalmente antilogocêntrico, com o qual adota uma
retórica não teórica, não sistemática e pouco conceitual (ARAÚJO, 2016, p.
56). Precisamente por adotar uma retórica nesse modelo, não são poucos os
intelectuais a apontar uma aproximação entre a escrita rortyana e a
protagoriana, na medida em que Rorty propõe uma perspectiva de verdade
socialmente situada, contextual e negocial, consoante ao anthrôpos metron,
uma perspectiva de verdade que foi poeticamente descrita por Schiller, no
início do século passado:

121
Os tijolos dos quais o templo da Verdade é construído têm
como matéria prima os julgamentos individuais. Cada pessoa
os fabrica continuamente. Mas destes, uma grande parte é de
tijolos mal queimados, ou feitos com a forma errada. Por isso,
precisam ser rejeitados. É possível que eles ainda pareçam
subjetivamente “verdadeiros” para os seus produtores, mas são
objetivamente inúteis. Quem quer que, por outro lado, tenha a
habilidade de projetar uma forma de tijolo que seja útil encontra
muitos imitadores. Ele se torna uma autoridade em arquitetura,
e é chamado a modelar ou remodelar os tijolos de outras
pessoas. (SCHILLER, 1908, p.17 – tradução nossa)154

Para Rorty, portanto, a questão importante não é, por exemplo, se entes


como, por exemplo, a Verdade ou Deus existem em algum lugar ou se não
existem. O importante é que não é útil dedicar grande esforço intelectual à
tarefa infinita de definir e localizar coisas pretensamente transcendentes como
essas se, enfim, os homens vivem neste mundo humano – contando,
exclusivamente, uns com os outros155 – em que precisam, mais que descobrir,
inventar as formas de fazer com que suas vidas valham a pena. Assim, o
desespero de não podermos contar com nada que esteja além do mundo
humano e a angústia de sermos responsáveis por nosso próprio destino, para
Rorty, devem ser substituídos pelo orgulho de construir o mundo que queremos
para nós e para nossos descendentes.
Em uma cultura consciente disso, a filosofia aparecerá, por conseguinte,
como um gênero literário, e não como o saber portador do poder-atribuição de
julgar as verdades ou de ditar a verdade. Essa esperança de atingir o
conhecimento eterno, de desvelar as verdades redentoras e tornar-se
“conhecedor das necessidades incondicionais e a-históricas”, tem um efeito
nefasto para a filosofia, impedindo-a de se preocupar com o que há de mais

154
No original: “The bricks out of which the temple of Truth is built are the individual judgments
which supply the material. Every one is continually making tham. But of these a large proportion
are half-baked, or broken, or of wrong shaps. So these have to be rejected. They may still seem
to their makers subjectively „true‟, but they are objectively useless. Whoever, on the other hand,
has the skill to devise a form of bricks which is useful finds hosts of imitators. He becomes an
architecyonic authority, and is called in to mould or re-mould the bricks of others”.
155
Rorty adota a perspectiva de que os homens estão sós no mundo, sem poder apelar para
uma segurança ou conforto transcendente, que já era presente na cultura grega – em
Protágoras, por exemplo – e que permeia a obra de outros importantes nomes da reflexão
filosófica, como Emerson e Shelley: “Considero que Shelley confirma o argumento de
Protágoras – ou o que pode ter sido o argumento de Protágoras –, de que não há nada, fora
dos seres humanos, que lhes ofereça orientação. Considero que Protágoras sugeriu que os
seres humanos só contam consigo mesmos” Cf. RORTY, Richard. Filosofia, racionalidade,
democracia: os debates Rorty & Habermas, p. 87.

122
relevante para a vida do homem, as imagens que ele pode traçar do seu
próprio futuro, do futuro de seu país e do futuro forjado para as novas
gerações. Por muito tempo, a filosofia esteve às voltas com a pretensão de
descobrir verdades eternas. Somente no século XIX, isso se modifica de modo
marcante e autoconsciente. Pensadores como Hegel e Darwin foram
essenciais nessa descoberta e na assunção de uma postura eminentemente
historicista e naturalista: “a influência combinada de Hegel e Darwin afastou a
filosofia da questão „o que somos?‟ e a aproximou da questão „em que
podemos nos tornar?‟” (RORTY, 2005a, p. 123-124).
A perspectiva do olho de Deus, isto é, olhar a vida, a história ou a
sociedade humana de fora, é, portanto, uma pretensão que os filósofos, muito
lentamente e a muito custo, foram aprendendo a abandonar e precisam tomar
como uma tarefa constante e sem fim. Esse movimento é crucial para que eles
possam vir a pensar em termos de ação em vez de contemplação. E esse não
é o ocaso ou a desgraça da filosofia, mas os filósofos precisam aprender a
desenvolver uma espécie diferente de pensamento, mais afeito à vida real e
mais propício a ser útil ao engendramento do futuro. O filósofo deve parecer
mais com um engenheiro que com um sacerdote e deve ser menos afeito a
descobrir mundos que a criá-los.
Para Rorty, abandonar o paradigma platônico-kantiano não é abandonar
a filosofia. E ela não deve mesmo ser abandonada, uma vez que tem o
potencial de contribuir de forma criativa para a resolução de problemas e a
criação do novo:

A filosofia provavelmente não vai acabar enquanto existirem


mudanças social e cultural. (...) Somente uma sociedade sem
política – ou seja, uma sociedade governada por tiranos que
impedem a mudança social e cultural – não necessitaria mais
de filósofos. (...) Em sociedades livres, sempre haverá a
necessidade de seus serviços, pois elas nunca param de
mudar, portanto nunca param de tornar obsoletos os velhos
vocabulários. (RORTY, 2005a, p. 124-125)

O propósito da filosofia na democracia liberalmente ideal é o de


contribuir para que a sociedade possa avançar – promovendo uma mediação
entre o passado e o futuro – e não o de desvendar segredos eternos
escondidos sob a grossa capa de poeira das aparências. Não haveria nada de

123
estranho, portanto, em vê-la aproximar-se de outras formas de descrição da
vida, como a literatura, por exemplo. Em conseguinte, o papel do filósofo,
assim como o dos engenheiros e advogados, é o de auxiliar na composição de
soluções para os “problemas particulares que emergem em situações
particulares”. Em vez de empreender uma busca infindável pelos os universais,
ou de ansiar por compor uma espécie de vanguarda de movimentos políticos, o
que importa, enfim, é a capacidade de oferecer sugestões alternativas
concretas, propícias a redescrever o que se discute em uma situação
particular. Tais sugestões são uma condição necessária para o progresso
moral. Rorty elenca algumas dessas sugestões alternativas, que, de fato,
tiveram impacto sócio-cultural incomensurável, modificando o mundo em que
vivemos:

As sugestões de Galileu sobre como redescrever o universo


aristotélico, as sugestões de Marx sobre como redescrever o
século XIX, as sugestões de Heidegger sobre como
redescrever o Ocidente como um todo, as sugestões de
Dickens sobre como redescrever as leis da sorte, as sugestões
de Rabelais sobre como redescrever monastérios e as
sugestões de Virginia Woolf sobre como redescrever mulheres
escritoras. (RORTY, 1999f, p. 101)

O tipo de papel que Rorty pensava estar destinado ao filósofo em uma


sociedade livre é, precisamente, aquele que ele se empenhou a desempenhar
em sua filosofia, o de mediador entre a linguagem do passado e a do futuro,
uma visão que Rorty associa também a Dewey, para quem, sob a perspectiva
rortyana, “o papel do filósofo é o de um trabalhador não qualificado, que limpa
o lixo do passado para abrir espaço para a construção do futuro” (RORTY,
2005a, p. 128). Rorty fez a ressalva de que, além desse papel de mediador, o
filósofo também é um profeta, capaz de enunciar visões de um futuro utópico.
Intelectuais como Rawls, Habermas e ele próprio devem ser vistos como
mediadores-profetas de uma “sociedade completamente democrática”.
A utopia foi, pois, para Rorty, a sistemática escolhida para se falar de um
futuro que seria excelente construir, o futuro da democracia, o futuro da
solidariedade e o futuro da esperança. Contudo, mais que uma sistemática,
trata-se de uma atitude de proposição das transformações de melhoramento
social que já conseguimos vislumbrar, bem como da defesa de que

124
construamos um mundo em que buscar novas e novas transformações de
ampliação de direitos e de conquistas sociais seja uma disposição permanente,
e, mais ainda, um mundo em que seja possível a invenção de direitos com os
quais ainda nem sonhamos.
Em síntese, não há na construção da retórica rortyana qualquer indício
de que ele estivesse buscado edificar uma Teoria, mas há, e muito claramente,
o propósito de oferecer uma ferramenta capaz de contribuir para uma mudança
real em uma direção política bem definida, a saber, a melhoria e a ampliação
das conquistas civilizacionais da democracia liberal156. Assim, o antiteoricismo
de Rorty se expressa na crítica à precedência da teoria sobre a ação política,
tão defendida pela tradição do pensamento político, especialmente de viés
marxista157. Em vez disso, os que têm ascendência deweyana, tendem a
pensar primeiramente em uma política e somente depois em uma articulação
filosófica para ela158. Rorty é uma das vozes mais importantes na defesa da
democracia contemporânea e da justiça social, mas não move um músculo em
defesa da teoria democrática ou em busca de argumentações fundacionalistas
para o fim da desigualdade, preferindo a atitude pragmatista – e pragmática –
de empreender propostas, sugestões:

Não há nada em minha perspectiva que atrapalhe nossa


observação da miséria e da desesperança de cidadãos
americanos negros ou favelados latino-americanos ou
camponeses cambojanos. Nem há qualquer coisa que sugira
que tal miséria e tal desesperança são irremediáveis. Há só a
sugestão de que sempre tivemos tanta teoria quanto
precisamos, e que o que necessitamos agora são utopias
concretas e propostas concretas sobre como alcançar tais
utopias a partir de onde estamos agora. (RORTY, 1999f, p.
113)

156
Evidentemente, essa posição rortyana está muito bem afianda com a maneira pragmatista
de proceder. Segundo Araújo, “São características da perspectiva pragmatista, considerando a
prioridade da interação, 1) a predominância da prática sobre o „puro pensamento‟, 2) da
pesquisa em relação à especulação, 3) em alguns casos, da política em relação à teoria”. Cf.
ARAÚJO, Tiago Medeiros. Pragmatismo romântico e democracia: Roberto Mangabeira
Unger e Richard Rorty. Salvador: Edufba, 2016, p. 30.
157
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. RODRIGUES, Alberto Tosi. Rorty: da filosofia da linguagem à
filosofia política democrática. In: RORTY, Richard. Contra os chefes, contra as oligarquias:
entrevista a Derek Nystrom e Kent Puckett. Trad. João Abreu. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.
35.
158
Cf. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade, p. 238.

125
Trata-se, em Rorty, portanto, menos de um esforço de reflexão, e mais
de uma proposição; menos da tentativa de provar algo e mais da tentativa de
provocar algo. Rorty, através de uma filosofia política conversacional e
contextualista, utiliza-se da imaginação de uma utopia de sociedade
democrática e liberal como um método, uma ferramenta que considerava
apropriada para um determinado fim. Em sua retórica, a utopia é um método
para uma meta, em sentido latu, a solidariedade humana, que não está por ser
descoberta, mas, continuamente, criada:

In my utopia, human solidarity would be seen nor zN a fact to


be recognized by clearing away "prejudice" or burrowing down
to previously hidden depths but, rather, as a goal to be
achieved. It is to be achieved not by inquiry but by imagination,
the imaginative ability to see sffange people as fellow sufferers.
Solidarity is not discovered by reflection but created. (RORTY,
1989, XVI)159

Tomando de empréstimo a ideia, acima mencionada, de que o filósofo é


como “um trabalhador não qualificado”, toda essa propositura de Rorty,
portanto, não era vista, por ele mesmo e nem deve ser vista – seguindo a
leitura de Rorty que recomendamos – como o trabalho sistemático e metódico
de um cientista da sociedade de visão muito aguçada, cujo resultado culmina
com a minuciosa descrição de transformações sociais que se avizinham e que,
por sua natureza, são inafastáveis. Longe disso, Rorty não estranharia que sua
descrição de uma sociedade utopicamente democrática e liberal tivesse sido
feita – como, aliás, o fora, em muitos de seus aspectos – por profissionais de
quaisquer áreas do conhecimento160, como, por exemplo, um romancista, um
poeta, um jornalista, um cineasta, um teatrólogo ou um desenhista. A

159
Na edição lusitana: “Na minha utopia, a solidariedade humana seria vista não como um
facto que haveria apenas que reconhecer uma vez removidos os “preconceitos” ou alcançadas
as profundezas até então ocultas, mas sim como um objectivo a atingir. Um objectivo a atingir
não pela investigação, mas sim pela imaginação, pela capacidade imaginativa de ver em
pessoas estranhas companheiros de sofrimento. A solidariedade não é descoberta pela
reflexão, mas sim criada” (RORTY, 1994, p. 18).
160
O esforço de Rorty, em relação ao lugar da filosofia, vai, pois, de encontro às ideias de
autonomia e profissionalização da disciplina. Para ele, é muito mais interessante que não
existam contornos muito bem definidos entre questões filosóficas e questões políticas,
religiosas ou estéticas, e que não estejamos muito preocupados em diferenciar os momentos
em que nossos pensamentos são estritamente filosóficos e os momentos em que não o são.
Para ele, “não há nenhuma maneira pela qual possamos isolar a filosofia como ocupando um
lugar distintivo na cultura ou estando interessada num assunto distintivo ou procedendo
segundo um método distintivo” (RORTY, 1982b, p. 153)

126
democracia é um espaço propício, o mais propício que se conhece até hoje, a
que qualquer cidadão o possa fazer:

A democracia (...) é um modo de interagir que exercita


constantemente a renovação das relações entre as pessoas
umas com as outras e entre elas e suas instituições. Isso é
feito reconhecendo-se em pessoas comuns a ação criadora
com que forjar suas próprias realidades culturais e
institucionais. (ARAÚJO, 2016, p. 25)

Qualquer cidadão, enfim, desde que interessado e dotado de talento


para descrever e redescrever, na verdade, pode contribuir com a tarefa de
mediar passado e futuro, e com a condução da sociedade rumo à utopia de um
futuro ainda mais democrático, ainda mais liberal e muito mais solidário.
Fizemos um percurso pelo pensamento político de Rorty, neste capítulo,
caracterizando-o como uma utopia cosmopolita liberal democrática centrada na
solidariedade. Não temos, por óbvio, a pretensão de esgotar a discussão
acerca da proposta utópica rortyana, mas apresentá-la – em consonância com
o próprio Rorty, segunda a leitura que fazemos – como um importante
elemento, uma boa ferramenta, para a discussão política em nosso tempo,
especialmente no que concerne a questões acerca da democracia, do
liberalismo, da solidariedade e do futuro da política.
A escrita rortyana nos permite, como vimos, pensar o compromisso
moral do indivíduo não apenas com os homens vivos em sua comunidade, mas
também com aqueles que ainda virão, ou seja, temos a possibilidade e o
compromisso moral de imaginar e buscar a criação de um mundo melhor que o
nosso para os que nos sucederão. Temos o direito a ter esperanças, o direito
de gestar novas e novas utopias de um mundo melhor.
Percebemos que em Rorty é totalmente inútil buscar a descrição
pormenorizada deste mundo idealmente liberal e democrático que ele deseja e
nos faz desejar. É justamente aí que encontramos um de seus atributos mais
preementes: o liberalismo, como Rorty o vislumbra, é o lugar da liberdade, o
lugar da democracia e, em conseguinte, o cenário ideal para o esforço infinito
de mudança e de transformação. Em um mundo assim, ninguém e coisa
alguma estaria jamais acabado, nenhum livro poderia ter a sua leitura definitiva,
nenhuma metáfora a sua literalização final e nenhuma pessoa seria capaz de

127
considerar o seu vocabulário final ou o do outro como a forma perfeita de
descrição das coisas como elas verdadeiramente o são.
Não há ferramentas mais apropriadas à tarefa de continuamente
reaprender a ver o mundo que a sensibilidade e a imaginação. Exatamente por
isso, tais ferramentas têm maior valor que, por exemplo, a argumentação
lógico-racional da filosofia tradicional. Pouco importava a Rorty, ser taxado de
um “filósofo anti-filosofia”. Agressivo mesmo – e injustificado – seria chamá-lo
pessimista, derrotista ou tentar relegar a sua literatura à margem da reflexão
política séria contemporânea.
Rorty não se limitou a fazer uma análise da esquerda na América, ou
mesmo da política de hoje no mundo ocidental. Ele se mostra um mediador de
épocas, uma ponte entre o pensamento política do passado e as possibilidades
políticas de amanhã. Rorty foi, em síntese, um fazedor forte, um ironista e um
liberal, e – por que não dizer? – um fazedor de utopias.
No capítulo seguinte, as ideias de Rorty serão retomadas sob o pano de
fundo de outros pensadores, intelectuais importantes à discussão política de
nosso mundo moderno. Evidentemente, nem todos deram, ou dão, a sua
anuência ao discurso rortyano, e nem todos os outros, rejeitam-no
veementemente. Todos eles estabelecem um diálogo profícuo com Rorty, o
que, por óbvio, é o caminho para se chagar – ou, pelo menos, se buscar – ao
novo.

128
CAPÍTULO III

A política rortyana, uma utopia do possível ou do


impossível? Rorty sob fogo amigo e sob fogo inimigo

A escrita rortyana, especialmente no que diz respeito às suas


implicações políticas, desperta uma grande variedade de reações, algumas
muito entusiasmadas, tanto no sentido de acatá-las e defendê-las, tomando-o,
por vezes, como uma “voz que clama no deserto”, como também no sentido de
rechaçá-la ou condená-la161 e, até mesmo, com o propósito de denunciá-la e
revelar seu caráter supostamente utópico – tomando-se o termo no mau
sentido, como irreal e irrealizável –, ilógico, iconoclasta, não filosófico,
antifilosófico.
Algumas possibilidades de controvérsias, aliás, foram de antemão
levantadas pelo próprio autor, no decorrer da apresentação de suas
argumentações, como ferramenta de esclarecimento ou como antecipação de
possíveis críticas futuras dos leitores. Outras controvérsias resultaram das
reações aos textos de Rorty e foram, em muitos casos, objeto de sua própria
apreciação ou de réplica162, o que resultou em profícuos debates teóricos.
Antes de tudo, podemos atribuir a Rorty o mérito de trazer à discussão
filósofos das mais variadas estirpes, fazendo-os manter uma conversação
acerca dos temas relevantes – especialmente a metafilosofia e a filosofia
política – que propunha. É nesse sentido que Chin (2014, p. 56 – tradução
nossa) assevera:

Rorty envolveu pensadores analíticos, pragmáticos, teóricos


críticos e filósofos continentais (entre outros) em um diálogo

161
Para Bernstein, muitos dos aspectos da escrita rortyana o levaram a ser visto, em alguns
círculos, como um inimigo, alguém que contribuiria mais se não difundisse suas ideias. Isso
ocorria porque Rorty não hesitava em tocar em pontos muito sensíveis a esses grupos. Por
exemplo, ao empreender a defesa do liberalismo burguês, evidentemente, desagradava em
muito os intelectuais marxistas; ao acusar os conservadores de serem gananciosos e egoístas,
deixava-os enfurecidos; e, por fim, ao valorizar o patriotismo americano, incitava a ira de
setores da esquerda que o viam como uma espécie de justificativa para o imperialismo. Cf.
BERNSTEIN, Richard. The dark years. In: Pragmatism Today: The jornal of Central-European
pragmatist forum. n. 1, v. 10, 2019, 09-15.
162
É bastante comum, inclusive, a expressão “Response to...” nos títulos de seus artigos,
demonstrando a abertura do autor ao debate, e, ainda, o respeito ao leitor de seus textos que
se tenha incomodado com algum aspecto ou suscite a explicação de algum ponto.

129
filosófico inclusivo que conseguiu, simultaneamente, ser
relevante a todos esses grupos. É nesse sentido que ele foi
descrito com precisão como „o mais influente filósofo
americano contemporâneo‟.163

Receptivo às leituras que os críticos faziam de seus textos, Rorty se


dedicava com respeito intelectual às contestações levantadas, mesmo que,
muitas vezes, o seu estilo, irônico e ironista, deixasse transparecer alguma
impressão de autoimagem de superioridade, especialmente, por sua disposição
para transpor problemas filosóficos, em vez de considerá-los a sério ou tentar
resolvê-los. Em sua resposta a Thomas McCarthy164, por exemplo, a
consideração com o interlocutor é tamanha a ponto de dizê-lo explicitamente:
“(ele) me ajuda a ter uma compreensão melhor que a que eu tinha até então de
minhas próprias mudanças, voltas e dificuldades” (RORTY, 1999f, p. 99). Isso
não significa, porém, que ele não tenha rebatido com a devida veemência os
tópicos que julgou conflituosos.
Carvalho Filho chama a atenção para o relevante fato de que as
pesquisas acerca do pensamento de Rorty têm crescido expressivamente – o
que desperta um sem número de admiradores entusiasmados e de críticos
vorazes – ao tempo que atribui à boa parte da crítica dirigida à filosofia rortyana
a um fato intrigante:

A maioria das críticas – que ele desperta tanto à direita quanto


à esquerda, no espectro político – oscila entre o puro
desconhecimento e um ressentimento quase raivoso. Tal
fenômeno não chega a surpreender, pois o espaço que recebe
o maior impacto inicial das ideias de Rorty é exatamente o
sistema de ensino da filosofia tradicional, espaço habitado por
uma maioria de profissionais cuja autoimagem parece reclamar
para esta produção literária humana o estatuto de
especialidade acadêmica análoga à das ciências (“rigorosas”).
(CARVALHO FILHO, 2013, p. 35)

De fato, a forma de pensar e escrever filosofia encontrou em Rorty um


aspecto inteiramente renovado, uma metodologia singular que lhe possibilitou

163
No original: “Rorty engaged Analytic thinkers, Pragmatists, Critical theorists and Continental
philosophers (amongst others) in an inclusive philosophical dialogue that managed,
simultaneously, to speak to all these groups. It is in this sense that he was accurately described
as „the most influential contemporary American philosopher‟”.
164
Texto em que Rorty responde ao artigo “Private irony and public decency: Richard Rorty‟s
new pragmatism”, de 1990.

130
fazer uso de termos antigos com significados inteiramente novos, e contornar
problemas teóricos considerados fulcrais na tradição filosófica, furtando-se de
resolvê-los e os tratando como completamente desnecessários.
O mesmo pesquisador brasileiro, Carvalho Filho, observa, em outro
momento, que há, em relação à retórica rortyana, um qualitativo incomum ao
ambiente da discussão filosófica tradicional – o que muitas vezes serviu,
injustamente, para que Rorty não fosse levado tão a sério como filósofo. Trata-
se do fato de que muitos aspectos de sua escrita estão simplesmente “fora do
alcance dos criticismos usuais”. O autor explica:

Fora de alcance porque, ao contrário da quase totalidade das


teorias filosóficas e políticas tradicionais, as ideias de Rorty não
carregam qualquer veleidade de se apresentar como
descrições corretas de como as coisas realmente se passam.
Nesse sentido, a rigor, suas posições são simplesmente
irrefutáveis de um ponto de vista tradicional. Não há nada que
se possa dizer para desmascará-lo por meio de um confronto
crítico com o modo como as coisas realmente se passam.
(CARVALHO FILHO, 2006, p. 33)

Entretanto, o fato de Rorty utilizar um método filosófico diferenciado dos


filósofos tradicionais de modo algum condenaria a sua retórica à irrelevância ou
inutilidade. O que ocorre, isso sim, é que toda a discussão de seu pensamento
terá de ser deflagrada em um território de conversação cujas regras, para os
dois lados da conversa, são definidas no sentido de escapar à ânsia de se
aproximar o mais possível da verdade e de se desvencilhar ao máximo dos
enganos das aparências.
De todo modo, pode-se afirmar que Rorty esteve continuamente sob o
efeito de duas espécies de artilharias: por um lado – algo como um fogo amigo
–, textos de autores e comentadores que, apesar de respeitarem a escrita
rortyana e concordarem com muitos aspectos de sua retórica, apontam
questões polêmicas e dúvidas consistentes e respeitáveis acerca de sua
posição; por outro – um indisfarçado fogo inimigo –, textos de autores e
comentadores que se posicionam em rota de colisão direta com o pensamento
rortyano, objetivando desafiar ou contrapor sua posição, rechaçá-lo. Tal
embate, aliás, sempre foi tido por Rorty como de grande importância no sentido
de manter continuamente aberto o diálogo. Para ele, os melhores

131
interlocutores, os mais socráticos, são os que aprenderam a perceber quando o
debate será melhor servido pela harmonia e quando o será pela discórdia 165.
Um exemplo desse encontro foi descrito por Bernstein, analisando as
circunstâncias e o impacto imediato da obra central de Rorty, Contingência,
ironia e solidariedade, quando fora lançada, em 1989166:

(...) Mas as implicações políticas das ideias de Rorty ainda não


eram totalmente claras. É por isso que Rorty era um alvo tão
fácil tanto para os conservadores políticos que o acusavam de
ser “cínico e niilista” como para esquerdistas que achavam que
ele estava simplesmente defendendo o status quo do
individualismo liberal burguês. Rorty foi acusado de encobrir o
racismo, sexismo, consumismo e violência que tanto faziam
parte da América. (BERNSTEIN, 2008, p. 21 – tradução
nossa)167

Veremos, neste capítulo, alguns dos questionamentos suscitados pelo


próprio filósofo neopragmatista, de forma cautelar, algumas respostas e
esperanças apresentadas ante a estes questionamentos, e, por fim, as
posições de alguns autores e críticos importantes, que direta ou indiretamente
estão relacionadas – pela via da oposição ou da aquiescência – à proposição
da utopia cosmopolita-liberal-democrática de Rorty. Além disso, pretendemos
responder à uma questão relevante acerca de sua escrita política: a utopia
cosmopolita, liberal e democrática de Rorty é uma utopia do possível? Isto é,
Rorty via as suas sugestões como dotadas da real potência de contribuir para a
construção de uma sociedade melhor que aquela por ele vivenciada?

3.1 Ironismo e cimento social na sociedade liberal ideal

165
Cf. AUXIER, Randall; HAHN, Lewis. (eds). The Philosophy of Richard Rorty. Chicago:
Open Court, 2010, p. 573.
166
Para Bernstein, a concepção política de Rorty ficará muito mais explícita e clara em obras
marcantes da década de 1990, em que Rorty delineou com maior precisão conceitos como o
de “política cultural”. Nesse período, será vicinal o texto Achieving Our Country, em que o
filósofo se dirige de forma muito direta aos pontos que considera fundamentais da política na
América.
167
No original: “(...) But the political implications of Rorty‟s views were not yet fully clear. This is
why Rorty was such an easy target to attack by both political conservatives who accused him of
being “cynical and nihilistic” and political leftists who felt that Rorty was simply defending status
quo bourgeoisie liberal individualism. Rorty was accused of glossing over the racism, sexism,
consumerism, and violence that was so much a part of America”.

132
O ironismo é um elemento de extrema importância na retórica rortyana.
Ele é uma decorrência necessária do reconhecimento da contingência, algo
caro a qualquer pensador antifundacionista e anti-essencialista como Rorty.
Assim, a consciência da contingência – do indivíduo, da linguagem e da própria
sociedade liberal – é um dos fatores que se somam para fazer surgir um
homem diferenciado, dotado de uma capacidade especial – o ironismo –, a que
Rorty (1989, xv) qualificou nos seguintes termos:

I use "ironist" to name the sort of person who faces up to the


contingency of his or her own most central beliefs and desires –
someone sufficiently historicist and nominalist to have
abandoned the idea that those central beliefs and desires refer
back to something beyond the reach of time and chance168

Na circunscrição do conceito169, podemos dizer que uma pessoa deveria


ser chamada ironista à medida que satisfaz a três condições necessária e
concomitantemente: em primeiro lugar, deve ser alguém suficientemente aberto
para se deixar tocar pelos vocabulários de outras pessoas e dos livros que lê,
bem como das outras modalidades de linguagem com as quais se deparar,
capaz, portanto, de reconsiderar e de modificar a maneira como descreve o
mundo e como descreve a si mesmo, ou, em termos rortyanos, de redescrever
o seu mundo; em segundo lugar, deve ser alguém capaz de perceber que suas
dúvidas e inquietações não poderão ser plenamente sanadas pelo seu
vocabulário atual, sendo necessário o movimento de redescrição contínua do
mundo e de si mesmo; e por último, deve ser alguém suficientemente capaz de
perceber que o seu conhecimento – sua maneira de descrever o mundo – não
está mais aproximado da Verdade que os conhecimentos das outras pessoas
(mas tão somente se mostra mais eficiente para a sua posição atual), o que
resulta em uma abertura para o ouvir e uma receptividade às diferentes – e até
inimagináveis, para ele até o momento – maneiras de descrever o mundo que
possam ter as outras pessoas, outras gerações, ou outras comunidades.

168
Na edição lusitana: “Uso o termo ironista para designar o tipo de pessoa que encara
frontalmente a contingência das suas próprias crenças e dos seus próprios desejos mais
centrais – alguém suficientemente historicista e nominalista para ter abandonado a idéia de que
essas crenças e desejos centrais estão relacionados com algo situado para além do tempo e
do acaso” (RORTY, 1994, p. 17).
169
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 73.

133
Há na utopia concebida por Rorty a pressuposição da predominância de
um certo tipo de homem, o cidadão ironista. Mas uma sociedade composta por
indivíduos assim poderia se manter coesa? O que teria força para servir como
elemento de unificação em uma sociedade constituída por indivíduos cujo
intento permanente é o movimento, a redescrição? Ou, em outras palavras,
qual o cimento social na sociedade utopicamente liberal rortyana?
Rorty afirmava que, em uma sociedade idealmente consciente da
contingência, a defesa das instituições liberais burguesas teria dois efeitos
importantes: primeiramente, seria esse engajamento na proteção (e,
possivelmente, ampliação) das conquistas civilizacionais das sociedades
liberais e democráticas que teria o condão de unir, tornar coesa, a sociedade,
funcionando como uma espécie de cimento social; em segundo lugar, em uma
espécie de retroalimentação, somente tais instituições liberais democráticas
são capazes de garantir aos cidadãos a possibilidade de autocriação e a
oportunidade de realizar contínuas redescrições de suas vidas. Perceba-se que
este é, ao mesmo tempo, um importante ponto de encontro e de cisão no
pensamento utópico rortyano: de um lado, a autocriação privada dos indivíduos
ironistas; de outro, as instituições políticas liberal-democráticas, a convergência
entre aspectos privados e públicos da vida social.
Há duas questões que, para Rorty170, devem nortear as discussões
acerca dos aspectos públicos da vida social na sociedade utópica por ele
pensada: 1. Como equilibrar as necessidades de paz, riqueza e liberdade,
quando as condições exigem que um desses objetivos seja sacrificado em
favor dos outros?; 2. Funcionaria bem nivelar oportunidades de autocriação e
depois deixar às pessoas – e só a elas – a decisão de usar ou de recusar
essas oportunidades? A reflexão acerca desses pontos – desse cimento social
que surge do encontro/cisão de aspectos de dimensão pública e outros
pertinentes à vida privada dos indivíduos – poderia vir a suscitar algumas
objeções a que Rorty (1989, p. 85) se antecipou:

The sugestion that this is all the social glue liberal societies
need is subject to two main objections. The first is that as a
practical matter, this glue is just not thick enough - that the
(predominantly) metaphysical rhetoric of public life in the

170
Cf. Ibid., p. 85.

134
democracies is essential to the continuation of free institutions.
The second is that it is psychologically impossible to be a liberal
ironist - to be someone for whom "cruelty is the worst thing we
do," and to have no metaphysical beliefs about what all human
beings have in common.171

Rorty desenvolveu um pensamento antifundacionista do começo ao fim.


Não poderia, por certo, abrir uma exceção tão importante e autocontraditória,
uma vez que, para a retórica de defesa da manutenção e ampliação das
instituições sociais liberais, atrelar-se a fundamentações metafísicas seria
minar toda a sua estrutura discursiva. Desse modo, a retórica pública na
sociedade liberal ideal substitui metafísica172 por ironismo, o que pode suscitar,
como já sugerimos, a desconfiança de que uma troca dessas possa resultar em
um enfraquecimento ou até na insustentabilidade da sociedade.
Tal suspeita, para Rorty, não é infundada nem digna de desprezo. Em
instante algum ele insinuou que há uma garantia infalível de que o abandono
da fundamentação metafísica na retórica pública resultará em um cimento
social inquestionavelmente eficiente ou indestrutível. Mas apresentava173 uma
analogia em seu favor: os séculos XVIII e XIX viram a vertiginosa queda do
paradigma religioso; nesse contexto, tornou-se cada vez menos comum que as
pessoas construíssem seus valores morais ou pautassem suas vidas, suas
decisões, a partir de promessas de recompensas post mortem. Àquela época,
pensava-se que isso poderia resultar no fim das sociedades liberais, que sem
Deus, não haveria motivo algum para a moralidade, que como podemos
observar na famosa máxima de Dostoiévski174, sem Deus, tudo é permitido.
Mas as sociedades liberais foram, na verdade, fortalecidas nesse processo e a

171
Na edição lusitana: “A sugestão de que isto é todo o cimento social de que as sociedades
liberais necessitam está sujeita a duas objeções naturais. A primeira é a de que, enquanto
questão prática, este cimento não é suficientemente espesso – que a retórica
(predominantemente) metafísica da vida pública nas democracias é essencial para a
continuação das instituições livres. A segunda é a de que é psicologicamente impossível ser
um ironista liberal – ser alguém para quem a “crueldade é a pior coisa que fazemos” e não ter
crenças metafísicas sobre aquilo que todos os seres humanos têm em comum” (RORTY, 1994,
p. 117).
172
Ideias metafísicas arraigadas, por exemplo, sobre a natureza da moralidade e da
racionalidade dos seres humanos.
173
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 85.
174
Em Os Irmãos Karamazov, a personagem Ivan vaticina que “se Deus não existe, tudo é
permitido”, afirmação muito recorrente para ilustrar a ideia de que a moral necessita de um
fundamento transcendente, não sendo possível uma moral sem fundamentações metafísicas.
Tal concepção, entretanto, está longe de ser uma unanimidade, encontrando em Rorty, e em
sua defesa de uma ética laica, uma forte oposição.

135
esperança social, o desejo de construir um mundo melhor para nossos netos,
supriu o desejo de ser recompensado com o Paraíso175.
Desse modo, para Rorty, o cimento social nas sociedades liberais não
precisa advir da crença partilhada em um Deus fora da história e do tempo,
assim como não deve precisar de qualquer outro atavio metafísico. Um cimento
social suficientemente espesso pode advir das esperanças compartilhadas de
um mundo melhor aqui, agora e no futuro:

What binds societies together are common vocabularies and


common hopes. The vocabularies are, typically, parasitic on the
hopes - in the sense that the principal function of the
vocabularies is to tell stories about future outcomes which
compensate for present sacrifices. (RORTY, 1989, p. 86)176

No que concerne a esse caráter desencantado da sociedade, Judt


(2011, p. 166) vê a contemporaneidade, especialmente nos países
desenvolvidos, como o coroamento de tal tendência secularizante:

O fato é que não há esperança de redescobrir o reino da fé. No


mundo desenvolvido, principalmente, há cada vez menos
pessoas para as quais a religião é um motivo necessário ou
suficiente para a ação pública ou privada. (JUDT, 2011, p. 166)

A crença compartilhada em um Deus transcendente encontra substitutos


suficientes em uma comunidade solidária. Os pensadores devem, em uma
sociedade pluralista e liberal, ser capazes de contar histórias sobre um mundo
melhor, sem que essas histórias pareçam irrealizáveis. Esta é a esperança
capaz de servir de cimento social: a certeza de que um mundo melhor é
possível para amanhã, não porque assim Deus o quis, mas porque somos
capazes de erguer uma tal realidade para nossos descendentes e para os
descendentes de todos.
Numa sociedade marcada por uma retórica pública historicista e
nominalista, em que os intelectuais ironistas sejam capazes de difundir
histórias como essas e em que o cimento social seja a esperança partilhada de

175
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 86.
176
Na edição lusitana: “O que liga as sociedades são os vocabulários comuns e esperanças
comuns. Os vocabulários são, tipicamente, parasitas das esperanças – no sentido em que a
função dos vocabulários é contar histórias sobre resultados futuros que compensem sacrifícios
presentes” (RORTY, 1994, p. 118).

136
um mundo melhor, o senso comum seria suficiente para que seja
desnecessário a alguém responder a perguntas como “por que sou liberal?” ou
“por que se importar com o sofrimento de pessoas que nem conheço?”. Tais
perguntas soariam assaz estranhas – até inadmissíveis – ao jogo de linguagem
que todos estariam acostumados a jogar.
Nesse ponto, importa grifar a ressalva que Rorty fazia em relação à
viabilidade de uma cultura pública ironista177: a retórica pública deve ser
historicista e nominalista, mas não ironista. O ironismo é uma qualificação
apropriada para se referir a aspectos da vida privada. Assim, se os cidadãos –
intelectuais ou não – forem suficientemente ironistas em sua vida privada,
serão capazes de aceitar e de contribuir para que se efetive uma cultura
pública marcantemente historicista e nominalista, efetivando aquilo que Rorty
denominava sociedade liberal ideal.
A segunda objeção prevista e investigada por Rorty pode ser enunciada
assim: como seria possível que alguém viesse a ser um ironista – em sua vida
privada – e, ao mesmo tempo, um liberal – em sua vida pública? Seria
suficiente para resolver esse impasse, entretanto, dizer que as dimensões
privada e pública estão separadas na utopia rortyana para que se possa admitir
que isso seja psicologicamente possível para algum indivíduo na prática?
A resposta apresentada por Rorty178 é que não há coisa alguma que
necessariamente impeça a um ironista ser também um liberal. Mas não é o
bastante tratar as preocupações privadas e públicas como apartadas para que
essa tensão esteja resolvida. Suscita-se, pois, uma questão importante: como
se poderia defender uma ética universalista – ou uma solidariedade
cosmopolita – sem admitir que possa haver uma natureza humana comum a
todos, ou sem se valer de alguma espécie de gancho celeste?
Essa tensão está centrada no fato de que parece típico ao ironista – e só
a ele – a prática da redescrição, tanto de si mesmo como das outras pessoas.
E também no fato de que a redescrição carrega consigo um forte potencial de
infligir sofrimento, especialmente àqueles que se sentem seguros de seus
vocabulários e suas crenças. Muitas vezes, o processo de redescrever equivale
a considerar as antigas palavras, as antigas ideias ou as antigas crenças como

177
Cf. RORTY, Richard. Contingency, Irony and Solidarity, p. 87.
178
Ibid, 88.

137
algo que perdeu, parcial ou completamente, o seu valor e precisa ser deixado
de lado, substituído. Isso é potencialmente muito doloroso. Para um liberal –
cujo objetivo é fugir sempre à prática de provocar sofrimento e humilhação às
outras pessoas – tal prática pode parecer, portanto, pouco recomendável.
Rorty esclareceu179 que há uma falácia nesse argumento. A atividade de
redescrever não é exclusiva do ironista. Ela também é exercida pelo metafísico,
mesmo que com diferentes pressupostos e por meio de método diverso.
Enquanto o metafísico oferece algo que aparenta – ou promete – ter um valor
incomensurável, para que as pessoas redescrevam suas vidas (como, por
exemplo, a salvação para os cristãos), abandonando as antigas crenças e
práticas, e até renegando-as, o ironista não pode oferecer esse tipo de
redenção. Tudo o que ele pode oferecer é a saída de uma posição atual para
uma posição “melhor”, mas esse “melhor” não é a Verdade, o Absoluto, o
Inefável, ou coisa alguma que o valha. Trata-se tão somente de um “melhor”
em sentido deweyano, pragmático: por exemplo, um certo know-how, um
incremento na habilidade de reconhecer as situações de sofrimento e
humilhação de outros seres humanos e de se sentir implicado em cada
situação desse tipo. É precisamente por isso que Rorty não via na Filosofia180
uma aliada especial e muito valiosa, preferindo o potencial de sensibilização e
transformação que a literatura, a etnografia e as artes encampam, uma vez
que: “solidarity has to be constructed out of little pieces, rather than found
already waiting, in the form of an ur-language which all of us recognize when
we hear it” (RORTY, 1989, p. 94)181. Não que para ele os filósofos sejam
desimportantes, mas seu fazer intelectual é mais apropriado para a busca da
perfeição privada que para a persecução do objetivo público da solidariedade.
A retórica rortyana aponta, pois, para uma integração de anseios
utópicos bem definidos: em primeiro lugar, a superação dos problemas da
filosofia tradicional, junto com as necessidades de fundamentação baseada no
tripé racionalidade–objetividade–argumentação; em segundo lugar, a gradual e

179
Ibid., 90 - 91.
180
Quando grafada com inicial maiúscula, Filosofia, em Rorty, refere-se à tradição filosófica
platônico-cartesiano-kantiana e à sua busca infinda pelas verdades últimas e pelas respostas
universalizantes.
181
Na edição lusitana: “A solidariedade tem de ser construída a partir de pequenas peças, e
não encontrada já à nossa espera, na forma de uma ur-linguagem que todos reconheçamos ao
ouvi-la” (RORTY, 1994, p. 128).

138
incessante criação de uma cultura liberal pós-filosófica, centrada na liberdade e
na solidariedade; e, em terceiro lugar, a gradual e incessante poetização da
sociedade, assumindo-se, cada vez mais, os poetas fortes, por sua habilidade
de criar novas metáforas, como os seus novos heróis culturais.

3.2 Roger Scruton e a falácia utópica

Roger Scruton (1944 – 2020), um dos mais destacados nomes do


conservadorismo político e cultural inglês contemporâneo182, não demonstra
uma flagrante predileção pela crítica de textos rortyanos especificamente. Muito
embora, em alguns momentos importantes, dirija-se nomeadamente a Rorty,
seu olhar se concentra, em especial, na contraposição à esquerda – e à
esquerda cultural –, principalmente por meio da denúncia dos perigos da
utopia, ou, mais abrangentemente, de qualquer forma de otimismo ou
esperança que possa subsumir àquilo que Schopenhauer qualificava como as
formas perversas ou inescrupulosas de otimismo183. Mesmo assim, apresentá-
lo aqui faz-se oportuno pela contraposição de seu marcante conservadorismo
político em relação ao melhorismo ou reformismo, representado pela utopia
rortyana.
Scruton afirma haver um sem número de falácias que se articulam na
tentativa de justificar uma postura mental específica, um espírito de otimismo e
esperança, a seu ver, injustificável e mesmo inaceitável. Tal espírito se revela
como um ativo muito perigoso, uma ideologia espúria, que tem se instalado “no
cerne do debate público e também no mundo acadêmico” (SCRUTON, 2015, p.
10), especialmente relacionado ao pensamento político de esquerda184. Para

182
Scruton se destacou no cenário cultural inglês, especialmente, escrevendo livros e gravando
documentários sobre História e Teoria da Arte, sobre Religiosidade e sobre Teoria Política,
especialmente, o Conservadorismo.
183
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança.
Trad. Fábio Faria. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 7.
184
Em oposição a esse pensamento de esquerda, Scruton reconhece-se um autor “de direita”,
um pensador que, sendo um otimista escrupuloso, assume a postura de, ao se deparar com
um problema, optar pela consulta do estoque pré-existente de conhecimento e de autoridade
para, só depois, posicionar-se em relação à questão. Em não havendo uma tradição
respeitável acerca da questão, apenas aí, utiliza-se da iniciativa e da inspiração, mas nunca
sem antes se acautelar, mensurando os riscos e calculando os custos de um possível
insucesso, objetivando se assegurar de que seria mesmo capaz de arcar com eles. Para
Scruton, é, pois, “de direita” – como ele próprio – todo aquele que preza por este espírito de

139
ele, é, portanto, necessário e urgente confrontá-lo, denunciá-lo e até mesmo
desmascará-lo.
Esse sentimento de otimismo e esperança estaria inafastavelmente
relacionado à marcante presença de uma figura recorrente na produção
literária e filosófica contemporânea, o intelectual inescrupuloso, ou o otimista
ardiloso:

(...) aquele que, incomodado com as prescrições imperfeitas


contidas nos costumes, no senso comum e no direito, anseia
por outro tipo de futuro, em que essas velhas formas de
compromisso não sejam mais exigidas. Os otimistas
inescrupulosos acreditam que as dificuldades e desordens da
humanidade podem ser superadas por algum tipo de ajuste em
larga escala: é suficiente desenvolver um novo arranjo, um
novo sistema, e as pessoas serão libertadas de sua prisão
temporária rumo a um reinado de sucesso. (SCRUTON, 2015,
p. 10-11)

Sob sua óptica, é, pois, no mínimo, um contra-senso, uma falácia


evidente, esperar que um novo ser humano possa emergir de “milhões de anos
de incompetência humana em colocar todos os desastres de volta dentro da
caixa de Pandora” (SCRUTON, 2015, p. 16). Essa ideia, de que um novo
homem possa ser gerado a partir do antigo, estaria eivada de vício insuperável,
inviabilizando, inclusive, não só otimismos exagerados, mas qualquer
argumento de viés transumanista. Desse modo, imaginar um futuro pós-
humano, como já o fizeram muitos autores de ficção – algumas vezes com
elevado grau de presciência,185 – e hoje o fazem muitos pensadores em nome
de utopias transumanistas, propicia mais a origem de distopias sociais que a
construção de utopias respeitáveis.
Pensar o lugar do futuro requer, pois, grande cuidado e
responsabilidade. Pensar um mundo em que todos os obstáculos à felicidade,
especialmente aqueles relacionados às limitações da natureza humana,
tenham sido postos de lado, um mundo em que todos os desejos tenham sido

acautelamento e “nutre suspeitas pelo entusiasmo e pelas novidades, e que é respeitoso para
com a hierarquia, a tradição e os costumes estabelecidos” (SCRUTON, 2015, p. 23).
185
Scruton cita Aldous Huxley como um exemplo de literatura ficcional realizada com um
impressionante grau de presciência, especialmente nos pontos em que trata da evolução na
contracepção e na engenharia genética. Em sua leitura, o que o autor de Admirável mundo
novo intencionou, desde o princípio, foi “proteger o amor e a confiança contra a liberdade
sexual e a engenharia genética” (SCRUTON, 2015, p. 18).

140
satisfeitos – justamente porque seriam fabricados os desejos e suas
satisfações simultaneamente –, como na circunstância descrita por Huxley em
Admirável mundo novo, é conceber um mundo não humano, em que não há
espaço para o homem, em que se põem de lado os valores mais preciosos à
existência humana186:

Quando visualizamos situações que envolvem um


remodelamento da natureza humana, de modo que todas
aquelas características que a moralidade tradicional foi feita
para regular – agressividade, fragilidade, mortalidade; amor,
esperança, desejo – ou desaparecem ou são purgadas de seus
custos, conjuramos mundos que não conseguimos
compreender e que de fato não nos incluem. (SCRUTON,
2015, p. 22)

Assim, Scruton vê se estabelecer uma disputa entre otimistas


inescrupulosos e pessimistas distópicos. Para ele, só um espírito guiado por
aquilo que denomina atitude do nós ou uma concepção educada da primeira
pessoa do plural, pode ser um ponto sensato e razoável entre essas duas
posturas extremistas, lembrando-nos sempre da imperfeição humana e das
fragilidades das comunidades reais, da necessidade de se manter uma
consciência firme dos limites do ser humano. A atitude do nós é, para ele, pois,
a alternativa viável que utiliza uma dose de pessimismo para temperar a
esperança – um acautelamento diante da utopia – impedindo-a de ser
desmedida e descomprometida com os valores importantes às pessoas e às
comunidades humanas, estabelecidos ao longo de muito tempo, pela tradição.
Tal atitude do nós é assumida pelo otimista escrupuloso, que,
resguardando-se e sempre moderando seus raciocínios com uma pitada de
pessimismo-realismo, analisa as possibilidades e não se aferra à melhor das
hipóteses como o único resultado possível de suas intervenções. Ele sabe que
vive “em um mundo de limitações, que alterar essas limitações é difícil e que as
consequências de fazê-lo são frequentemente imprevisíveis” (SCRUTON,
2015, p. 35). Ante a realidade da vida, os otimistas escrupulosos consideram
que:

186
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança, p.
20.

141
Podem muito mais facilmente ajustar a si próprios do que
modificar as limitações sob as quais vivem, e que deveriam
trabalhar nisso continuamente, não apenas pelo bem de sua
própria felicidade e daqueles que amam e que dependem
deles, mas também pelo bem da atitude do “nós” que respeita
as constantes das quais nossos valores dependem, e que faz o
máximo possível para preservá-las. (SCRUTON, 2015, p. 35)

Falar da importância de certo pessimismo é evidenciar o fato de que,


sendo apenas seres humanos, não nos é dada a possibilidade da perfeição. É
aceitar que as nossas comunidades, nossas instituições e nós mesmos não
seremos contemplados sempre com a melhor das hipóteses e, por isso,
devemos manter uma postura razoavelmente acautelatória:

O pessimismo judicioso nos ensina a não idolatrar os seres


humanos, mas a perdoar seus defeitos e a lutar em particular
por sua recuperação. Ele nos ensina a limitar nossas ambições
na esfera pública e a manter abertas as instituições, os
costumes e os procedimentos em que os erros são corrigidos e
as falhas, confessadas, em vez de mirar algum novo arranjo
em que os erros nunca são cometidos. (SCRUTON, 2015, p.
37)

Além disso, a atitude do nós, marcantemente conservadora, para


Scruton, retira dos ombros do intelectual o fardo de ter que encontrar,
isoladamente, a saída eficiente e definitiva – a verdade libertadora – para os
problemas sociais que se lhe apresentam. Acessar a sabedoria existente há
muito tempo na tradição intelectual de uma comunidade é reconhecer que o
nós é mais que o eu, uma atitude de prudência e parcimônia, o que, segundo
Scruton, impediria de nos associarmos a radicais e ativistas187, movidos pelo
que chama de “mente utópica”. Para Scruton, a mente utópica é aquela
“moldada por uma necessidade moral e metafísica particular, que conduz à
aceitação de absurdidades não apesar de sua absurdidade, mas por causa
dela” (SCRUTON, 2015, p. 59).
Combater essa postura utopista e contrapor-se às visões indevidamente
otimistas, oriundas de pensamentos inescrupulosos acerca do real, não seria
de modo algum uma tarefa simples, nem tão somente um exercício de
argumentação teórica. Isso porque o mesmo espírito que a constrói também a

187
Cf. Ibid., p. 41.

142
protege de toda e qualquer forma de oposição, criando uma blindagem a sua
volta, pela qual cada tentativa de crítica a ela direcionada é imediatamente
convertida em um elemento de ratificação. Scruton afirma que a mente utópica
e os devaneios dela emergentes são dotados de uma espécie de imunidade à
refutação188. Tal blindagem ao contraditório é tão marcante e tão poderosa
que, na utopia, “a impossibilidade e a irrefutabilidade andam lado a lado sem
nenhum constrangimento” (SCRUTON, 2015, p. 61). Assim, junto à condição
de que jamais será realizado plenamente, o projeto utópico busca – e, em
geral, consegue – difundir a ideia de que não o querer e não o perseguir é que
seriam posturas absurdamente inaceitáveis. Assim, o que se pretende muitas
vezes transparecer é que o que é ideal não pode ser desmentido pelo real, mas
o que é real pode ser avaliado, diminuído ou até negado pelo ideal:

O ideal permanece eternamente no horizonte de nossa


experiência, imaculado e não posto à prova, lançando um
julgamento sobre tudo que é real, como um sol para o qual não
podemos olhar diretamente, mas que cria um lado sombrio em
todas as coisas que ilumina. (SCRUTON, 2015, p. 67)

Para Scruton, os pensadores de esquerda são essencialmente afeitos à


persecução do ideal em detrimento do real e sempre estiveram (ou estão)
comprometidos com o combate pela sua ideia de “libertação” e “justiça social”.
Para eles, seria mais importante alimentar o sonho de que seja viável construir
uma realidade inteiramente nova, em que todos os bens deste mundo sejam
perfeitamente distribuídos189, que estudar sistemas que oportunizem um melhor
funcionamento das estruturas sociais já existentes, de modo a promoverem a
liberdade190 e o equilíbrio social. Scruton listou alguns desses autores, dentre
eles pensadores de relevo na filosofia política contemporânea, como Michel
Foucault, Noam Chomsky, Howard Zinn, Ronald Dworkin, Slavoj Žižek, Eric
Hobsbawn e Richard Rorty, buscando estabelecer um rol de características
que, segundo a sua perspectiva, são convergentes em seus textos. Assim, em
188
Ibid., 61.
189
Cf. SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda. Trad.
Alessandra Bonrruquer. São Paulo: Record, 2018, p. 12.
190
Scruton trata libertação e liberdade como conceitos diferenciados. O primeiro, como um
objetivo perseguido pelos intelectuais de esquerda, caracterizado pela contestação e/ou
negação de instituições sociais que considera importantes, ou pela emancipação das
estruturas sociais estabelecidas. O segundo, como um valor social de importância capital,
protegido pelos intelectuais de direita de tais incursões iconoclastas.

143
relação à produção intelectual de esquerda, Scruton (2018, p. 14) afirmava
que:

Grande parte de sua literatura é devotada a desconstruir


instituições, como família, escola, lei e Estado-nação, por meio
das quais a herança da civilização ocidental chegou até nós.
Essa literatura, vista no auge de sua fertilidade nos textos de
Foucault, apresenta como “estruturas de dominação” o que
outros vêem meramente como instrumentos da ordem civil.

Tal postura de crítica – sem a culpa que Scruton parece lhe atribuir – é,
de fato, recorrente na literatura de esquerda. Rorty, por exemplo, muito embora
não se comprometa com uma transformação completa e minuciosa de todas as
instituições sociais, tem o prefixo “anti”191 comumente associado a suas
tendências ideológicas, por isso considerado, por muitos críticos, um filósofo
iconoclasta. Ele mesmo, entretanto, via-se muito mais como alguém disposto a
contribuir com a realização de mudanças de foco, redirecionamentos, ou
redescrições.
Para Scruton, tal propositura de desconstrução das instituições nem
sempre estaria atrelada a uma atitude revolucionária e radical. Muitas vezes,
ela estaria associada, sutilmente, mas insistentemente, ao espírito reformista –
ou progressista – de alguns intelectuais. E, para ele, esse é, na verdade, o
principal adversário do conservadorismo:

Seu oponente mais característico e perigoso não é o radical,


que se posiciona diretamente contra eles, armado com mitos e
preconceitos que se equiparam aos seus próprios, mas, antes,
o reformador, que, agindo sempre com um espírito de
progresso, encontra motivos para mudar tudo aquilo que não
lhe apresenta razões para se conservar. É desse espírito de
progresso – o legado do liberalismo vitoriano e do darwinismo
social – que os socialistas e liberais modernos continuam a
deduzir sua inspiração moral. (SCRUTON, 2015b, p. 43)

191
Deve-se lembrar, porém, que o prefixo “anti”, quando associado apropriadamente à
perspectiva rortyana, nem sempre indica um discordar ou contrapor – associados ao uso da
argumentação filosófica para demonstrar a verdade em detrimento da tesa antes apresentada
–, mas, muitas vezes, uma superação, um “pós”, ou uma mudança de assunto. Como explica
Laclau (1996, p. 84, tradução nossa), “a argumentação filosófica não acontece por meio da
desconstrução interna de uma tese apresentada em um determinado vocabulário, mas sim pela
apresentação de um vocabulário concorrente”.

144
O risco do reformismo está justamente, na perspectiva de Scruton, no
modo engenhoso como ele se aninha nas instituições para de dentro realizar o
enfrentamento dessas mesmas instituições. Após os insucessos dos regimes
comunistas, e o desgaste da popularidade de várias formas de pensamento
radical, os autores de esquerda passaram a descartar o paradigma
revolucionário, buscando a institucionalização – por meio de legislação, de
comitês ou comissões de representatividade política – de seus interesses. De
certa forma, é como combater os pilares da estrutura social a partir de seu
interior. E, para esta tarefa, um dos instrumentos mais recorrente e eficientes é
a gradual e contínua apropriação e manipulação da linguagem política corrente.
Desse modo, de todas as conquistas empreendidas pela esquerda,
lograr tornar a sua voz, a sua maneira de falar – a descrição que escolhe fazer
do mundo político – a forma prevalecente, especialmente no ambiente
acadêmico, foi, sem dúvida, a maior e mais importante do ponto de vista
prático. Modificando-se o vocabulário político corrente, dá-se a falsa sensação
de que se tem modificado também a própria realidade, em uma espécie de
“triunfo das palavras sobre as coisas”192.
Rorty foi, de fato, um grande entusiasta dessa ideia. Vendo-a pela
perspectiva rortyana, a modificação do modo de se referir a alguma coisa teria
mesmo o condão de provocar transformações no modo como olhamos para ela
e, gradualmente, no modo como nos portamos perante ela. Não se trata,
entretanto, de mero idealismo lingüístico, pois as mudanças de vocabulário são
importantes apenas como ferramentas para as transformações nos modos de
viver.
Judt, em consonância com Rorty no que iz respeito a essa questão,
afirma que “se não houver mudança no jeito de falar, não conseguiremos
mudar o modo de pensar” (JUDT, 2011, p. 159), e instrumentaliza seu
argumento com a seguinte exemplificação:

Existem precedentes para essa maneira de conceber as


mudanças políticas. No final do século XVIII, na França,
quando o antigo regime cambaleava, os avanços mais
significativos no cenário político não surgiram dos movimentos
de protesto ou das instituições estatais que procuravam podá-
192
Cf. SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda. 2018,
p.19.

145
los. Eles vieram da própria linguagem. Jornalistas e
panfletários, juntos com alguns administradores e padres
rebeldes, criaram a partir da antiga linguagem da justiça e dos
direitos populares uma nova retórica de ação pública. (...)
Quando a Revolução explodiu, a nova linguagem da política
encontrara seu lugar: se não fosse assim os próprios
revolucionários não teriam como descrever o que estavam
fazendo. No início foi o verbo. (JUDT, 2011, p. 159)

Rorty apostava suas fichas no poder das redescrições nos mecanismos


de progresso moral, concentrando-se no potencial de substituir antigas
metáforas por novas metáforas e ampliando incessantemente o espaço lógico
da moral. Ele percebia que muitos dos progressos em direitos humanos na
América foram acompanhados pela perceptível alteração da maneira como as
pessoas falavam. Não que a linguagem modificada tenha a responsabilidade
de provocar tais mudanças por si só, mas faz parte de um processo de
normalização de novos comportamentos e ideias: as questões dos direitos da
mulher, do negro e do homossexual são exemplos patentes. Em Rorty, a
garantia e a ampliação dos direitos dessas pessoas e grupos são a direção do
progresso moral, o caminho para o combate à humilhação e à crueldade, mas
isso é ainda pouco se comparado ao potencial de mudança do qual o homem é
capaz e à necessidade de mudança que as sociedades podem vir a ter:

Rorty entende que não basta a extensão dos direitos. A


tolerância e o fim da crueldade necessitam de ações mais
ousadas. Na maior parte das vezes, uma ação contra a
crueldade depende da invenção de direitos. (...) Há direitos
jamais sonhados que só podem virar direitos a serem
reivindicados quando um novo vocabulário alternativo emerge.
(GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 64)

Daí a importância da figura do poeta forte na sociedade utópica rortyana


e da aproximação entre o pensamento filosófico-político e as diversas formas
de descrever o mundo, como a literatura e as artes: ele precisará atuar “não
apenas como profissionais, mas sim como poetas e gênios – eles vão ter de
criar novos vocabulários” (GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 64).

146
Os críticos da mentalidade utópica193 – e Scruton bem os representa –
consideram o desejo por reformas profundas ou a persecução de soluções
definitivas por parte de intelectuais utopistas, sempre acompanhadas por uma
radical adaptação da linguagem política corrente, o ponto preferencial a ser
contestado, um calcanhar de Aquiles:

A crítica mais importante a ser feita a essa forma de raciocínio,


(...), não é que seja contraditória, embora ela seja, e sim que,
ao buscar uma única e completa solução para o conflito
humano, uma solução que elimine o problema para sempre, ela
destrói as instituições que nos permitem resolver nossos
conflitos um a um. (SCRUTON, 2015, p. 67)

Por esta perspectiva, as verdadeiras soluções para os problemas das


pessoas e das comunidades jamais poderiam advir de uma transformação
radical e completa das estruturas socais, que viesse a criar uma realidade
inteiramente transformada, desprovida de todas as espécies de conflitos. Em
vez disso, dever-se-ia exercitar, por meio do diálogo, da negociação e do
regular funcionamento e melhoramento das instituições, a construção das
soluções dos problemas e, simultaneamente, o estabelecimento do conjunto de
precedentes de soluções de que aquela comunidade poderá dispor a partir de
então: “as soluções raramente são vislumbradas com antecipação, porém se
acumulam de forma constante por meio do diálogo e da negociação”
(SCRUTON, 2015, p. 67).
Para Scruton, portanto, esperar ou buscar um ideal, radicalmente
diferente do que se tem construído ao longo do tempo em instituições sociais
firmadas e experimentadas, é resultado de um raciocínio deficitário, é cair em
uma falácia utópica: aceitar que algo apenas imaginado ao largo, cujo
funcionamento institucional nem poderia ser pensado de antemão194 (pelo
complexo de detalhes que encerra uma sociedade real) possa ser mais
recomendável que as estruturas paulatinamente edificadas ao longo da
história, é trocar o real pelo que é meramente imaginado.

193
Scruton elenca Burke, Chateaubriand e Tocqueville entre os autores que realizaram críticas
pertinentes dessa forma de pensamento.

147
Apesar da vasta literatura acerca das utopias compreender um complexo
de utopistas projetistas importantes195, Scruton chama a atenção para alguns
utopistas que, de fato, tornando-se autores de muito impacto no Século XX,
influenciaram muitas das decisões políticas e dos estremecimentos sociais
desse século. Ele cita, por exemplo, o fato de que Karl Marx faz, em A
ideologia alemã, tão somente uma precária descrição196 de como seria a vida
em uma sociedade após a Revolução Proletária e o advento do comunismo197.
E que Jean-Paul Sartre, apontado como intelectual engajado e comprometido
com um utopismo revolucionário, cujo ideal de sociedade compreendia uma
fina integração entre intelectuais e trabalhadores, também jamais esmiuçou o
funcionamento das engrenagens de uma tal sociedade, defendendo-a apenas
em textos muito evasivos e apresentando tão somente vislumbres daquelas
condições que defendia para a sociedade.
Para Scruton, outra marca registrada da utopia, que se evidencia,
especialmente, quando os utopistas chegam de algum modo a assumir
posições de poder político, é o ressentimento e o firme propósito de vingança
para com aqueles que são considerados entraves à realização plena de seus
ideais. Assim, cada situação tem o seu grupo preferencial de culpados que
deverá arcar com os custos de serem estorvos à consecução dos objetivos
preconizados por aquela utopia. Em geral, aqueles que se sentem confortáveis
com o mundo real tal como ele é – ou tal como pode vir a ser por meio das
ações efetivas dos homens – são perseguidos como inimigos da utopia e
entraves à realização de seus propósitos198.
Precisamente por isso, tais incursões dos utopistas pelo mundo da
práxis, da política real, costumam ser marcadas pela reestruturação das forças
de repressão das ideias e de um sistema jurídico eficiente em tornar legal toda
forma de perseguição aos discordantes, muitas vezes reprimidos violentamente
ou até convertidos em lixo humano, por meio da ideologia e da violência
195
Como vimos no Capítulo I deste mesmo texto.
196
Cf. SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda, p. 15.
É como se a inevitabilidade histórica dessa condição o livrasse da necessidade de descrevê-la
pormenorizadamente.
197
No projeto marxista, com a extinção da divisão de trabalho, as pessoas passariam a viver de
acordo com suas necessidades e desejos, o que ele descreve sucintamente, caçando pela
manhã, pescando à tarde, cuidando do gado à noite e fazendo trabalho intelectual – como a
crítica literária – após o jantar.
198
Cf. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança, p.
70.

148
legítima do Estado. Em síntese, uma vez no poder, a utopia tende a se
estruturar em um Estado totalitário199.
Essas desconfianças em torno da ideia de utopia, como vimos
anteriormente nesse mesmo texto, não são, de modo algum, uma novidade.
Entretanto, associar algumas dessas propriedades – supostamente inerentes
ao espírito utópico – ao pensamento de Rorty causa interesse. Scruton critica
os pensadores da nova esquerda como autores que estão mais preocupados
em revolucionar ou em desconstruir as ideias consagradas na reflexão política
da tradição filosófica, apresentando perspectivas subversivas, que em
apresentar argumentos válidos acerca de seu pensamento200. A Rorty, em
especial, ele o tinha na conta de um autor cujos escritos haviam contribuído
enormemente para a ascensão de uma cultura fake201. Em detrimento da alta
cultura, emerge uma situação onde nada é necessariamente verdadeiro ou
falso. A literatura rortyana, sob a óptica de Scruton, seria uma importante aliada
dessa transformação, uma vez que a postura do filósofo neopragmatista diante
da questão da Verdade o autorizava a lhe dar pouca relevância.
Segundo a noção de pragmatismo e a leitura de Rorty, tomadas por
Scruton, a Verdade para o filósofo neopragmatista é sempre e tão somente
aquilo que nós concordamos, sempre uma coisa negociável, contextual e
relativa, a despeito de qualquer racionalidade transcultural. E Scruton (2018, p.
207) continua, inquirindo quem seria esse “nós” rortyano:

Mas quem somos nós? E sobre o que concordamos? (...)


Somos todos feministas, liberais, defensores das causas
radicais do momento e do currículo aberto; não acreditamos
em Deus ou em alguma religião herdada, nem nas velhas
ideias de autoridade, ordem e autodisciplina. Decidimos quanto
ao sentido dos textos, ao criar, por meio de nossas palavras,
um consenso que nos inclua. Não há limitações, com exceção
da comunidade a que escolhemos pertencer. E, como não há
verdade objetiva, mas apenas nosso próprio consenso
autogerado, nossa posição é incontestável de qualquer ponto
de vista externo a ela. Os pragmatistas não apenas decidem o

199
Ibid., p. 73.
200
Cf. SCRUTON, no artigo Richard Rorty’s legacy, publicado na revista Open Democracy, de
12 de junho de 2007, bem como no artigo The great swindle, publicado em 2012 na Aeon
Magazine.
201
Especialmente na Arte e na reflexão filosófica, em virtude de seu desfavor para com as
noções de Verdade Universal e racionalidade transcultural, dentre outras.

149
que pensar, eles se protegem de quem quer que não pense o
mesmo.

Em defesa de Rorty, Ghiraldelli Jr. afirma202 que outros autores, antes de


Scruton, já empreenderam crítica muito semelhante e foram respondidos a
contento pelo próprio filósofo estadunidense203. Em sua maioria, tais críticos
cometem o mesmo deslize: tomam Rorty pelas consequências supostamente
advindas de seus escritos204 e não pelos seus textos. No caso de Scruton, isto
soa ainda mais incômodo em face de sua defesa da verdade objetiva. De certo
modo, ele estaria incorrendo no erro que atribui ao opositor. Uma leitura atenta
de Rorty esclareceria que ele nunca desprestigiou a verdade ou jamais disse
que a verdade não existe. E que no contexto em que se refere à verdade como
negociável, faze-o não em um sentido banal – como relativista simplista – mas
pelo fato de que “a negociação em torno dos enunciados que afirmamos como
verdadeiros é uma prática da qual nenhum homem de ciência pode fugir”
(GHIRALDELLI Jr., 2013, p. 10).
Deslocando-se uma asserção ou outra do contexto em que foram
utilizadas nos escritos de Rorty, pode-se transmitir a indevida impressão de
que o autor seja tão somente um relativista banal e que o enfraquecimento do
respeito pela verdade objetiva, bem como a – suposta – ascensão de uma
cultura fake – que teria abandonado sua confiança nos argumentos e na
razoabilidade – decorrente dele, sejam inferências esperadas, ou mesmo
necessárias, da leitura de textos como os seus. Rorty, entretanto, jamais se
portava irresponsavelmente perante quaisquer discussões teóricas que logrou
empreender, além do mais:

Não foi como um militante que gostaria de ver a alta cultura se


deteriorar que Rorty se dedicou ao tema da verdade, se é que
alguém que se dispusesse a falar contra a verdade objetiva

202
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Roger Scruton e a denúncia tardia da modernidade ou Scruton
versus Rorty: crítica ao the great swindle. In: Redescrições, n. 2, 2013, p. 9.
203
Como exemplo, cita o caso em que Searle associou o fim da avaliação objetiva nas provas
universitárias e a deterioração do ensino superior americano à influência da atitude intelectual
de autores “pós-modernos”, entre eles, Rorty.
204
Como o próprio título do artigo o sugere, Richard Rorty’s legacy, Scruton se refere ao
suposto legado de Rorty. Ora, o legado de um autor nem sempre é aquilo que ele esperaria ou
gostaria, mas um complexo resultado de como as pessoas o leram e de como decidiram
colocar em prática o conhecimento advindo da interpretação que elas mesmas fizeram de seus
escritos. Exatamente por isso, muitas vezes as decorrências dessas experiências de leitura
fogem gritantemente às intenções que tinha o autor ao escrever.

150
estivesse já de imediato criando caminhos para a entrada da
cultura “fake”. (GHIRALDELLI Jr., 2013, p. 11)

Nem por sua postura ante o problema da verdade nem por qualquer
proposta de progressismo social que tenha enunciado, Rorty poderia ser, com
justiça, acusado de desonestidade intelectual ou tomado apenas como um
militante irresponsável. Somente uma leitura tendenciosa, porém, poderia
sugeri-lo. Para McClean, não causaria estranheza, por exemplo, que Scruton
entendesse o reformismo rortyano como um caso de otimismo inescrupuloso,
pela opção procedimental defendida por Rorty. Mais uma vez, é como se Rorty
se pautasse unicamente na esperança de obter os melhores resultados
possíveis de suas propostas de reformas, independentemente dos riscos e
prejuízos possivelmente resultantes. Ou como se Rorty, ingenuamente,
incorresse sempre na falácia da melhor hipótese:

Eu suspeito que Scruton tomaria a sugestão, frequentemente


utilizada por Rorty, de que o melhor que podemos fazer ao
perseguir as reformas é “desviarmo-nos” (onde “desviarmo-
nos” significaria um conjunto de ações irrefletidas, arbitrárias e
graduais rumo a um objetivo específico) como prova de falta de
escrúpulos. (McCLEAN, 2014, p. 72 – tradução nossa)205

Reformistas como Rorty decidem correr riscos, arcar com os seus


custos. Para que as instituições e a sociedade possam ser aprimoradas, há,
evidentemente, algum ônus a suportar. Não se trata de desconsiderá-los,
afastá-los ou, muito menos, de esperar que não haja resultados desagradáveis.
Trata-se de aceitar que o processo de mudança é gradual, negocial,
experimental e afetado, como todo o mais, pela contingência. Essa é, aliás, a
única postura que se poderia esperar de um pragmatista. É o que esclarece
McClean (2014, p. 72 – tradução nossa):

Mas, na verdade, o que Rorty quis dizer é somente que não


existe um roteiro trans-histórico que nos diga a maneira exata
de realizar as reformas desejadas. Esta é a essência do
experimentalismo pragmatista - não sanciona um desprezo
impensado pelas consequências; na verdade, requer que a
205
No original: “Scruton would, I suspect, take Rorty‟s oft-used suggestion that the best we can
do when pursuing reform is „muddle through‟ (where „muddle through‟ is taken to mean a
collection of thoughtless, arbitrary and blithe actions toward a stated goal) as evidence of
„unscrupulousness‟”.

151
inteligência seja aplicada a fim de obter o melhor resultado com
o menor custo social possível, em vista da gravidade do
resultado desejado.

A acusação de que reformistas como Rorty são perigosos, porque


costumam agir de má fé – omitindo as possibilidades de degradação das
instituições firmadas historicamente como consequência de alterações na
estrutura social, decorrentes de suas propostas – deve ser contraposta,
segundo McClean206, por duas constatações: em primeiro lugar, deve-se
lembrar que, em geral, reformistas propõem transformações necessárias;
muitas vezes, as condições sociais que gestam o anseio por mudanças são
degradantes a tal ponto que exigir um planejamento exaustivamente detalhado
das intervenções seria inviabilizar que as mudanças possam ocorrer em tempo
hábil; exigir que um intelectual pense todas as possibilidades de variações de
resultados antes de propor uma mudança social e não tome uma determinada
posição antes de ter certeza que os seus riscos são desprezíveis ou
inexistentes não é algo razoável, sequer é factível. A preocupação com o
inesperado, muitas vezes é maior que o compromisso com a melhoria da vida
das pessoas:

Embora os conservadores políticos e sociais avisem sobre as


"consequências não intencionais", sobre os perigos de alterar o
status quo, eles muitas vezes parecem estar menos
preocupados com as condições dolorosas e até odiosas, que
os reformadores sociais estão pelo menos tentando resolver.
(McCLEAN, 2014, p. 73 – tradução nossa)207

O segundo ponto é que se faz imperioso lembrar que, passada a


circunstância agonística da reforma, é natural que haja o saneamento das
consequências adversas inesperadas, os ajustes que decorrem de novas
reflexões sobre a nova conjuntura resultante das transformações sociais
empreendidas.
Levar a sério demais essa argumentação conservadora – e, por vezes,
até reacionária – talvez seja o motivo pelo qual muitos intelectuais americanos,

206
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism. London: Pickering
and Chatto, 2014, p. 72.
207
No original: “While political and social conservatives warn of „unintended consequences‟
concerning the dangers of altering the status quo, they often seem to be less concerned with
the painful and often odious conditions that social reformers are at least trying to address”.

152
pensadores da política contemporânea, encontram-se inertes, priorizando uma
reflexão filosoficamente interessante, demonstrativa de erudição, mas pouco
pragmática, muito afastada da realidade vivida pelas pessoas e das
necessidades sociais de reformas. Rorty empreendeu uma denúncia
contundente desse estado de coisas e do papel da esquerda cultural208 na
construção de uma realidade melhor em seu último livro, Para realizar a
América: o pensamento de esquerda no século XX na América. A justiça social
deve ser defendida com a resolução de problemas sociais específicos – a
fome, o racismo, a distribuição de renda –, gradativa e continuamente, como o
preconizaram tanto Dewey como Rorty209.
Intelectuais que compõem uma esquerda cultural, nos moldes
denunciados por Rorty, poderiam caber na qualificação de otimistas
inescrupulosos, citada por Scruton210. São aqueles que não trazem para a vida
real a reflexão acerca do ideal de sociedade e, precisamente por isso,
alimentam uma espécie de utopia não pragmática, desiderativa e não estão
muito afeitos a especular acerca das possíveis consequências inesperadas e
inapropriadas das proposições que enunciam. Distanciando-se da práxis
política, os utopistas desiderativos escapam à falácia da melhor das hipóteses,
uma vez que não propõem nada efetivamente e, partindo do princípio de que
suas reflexões abstratas são tudo o que podem e precisam dar em contribuição
ao cenário político, não funcionam como um elemento de contraposição real à
crueldade ou à injustiça social:

Utopistas desiderativos, no contexto desta discussão, são


aqueles que pensam que a denúncia erudita esgota suas
responsabilidades para com seu país - o país a respeito do
qual eles articularam aspirações no sentido de transformá-lo
em uma civilização pluralista, em que os piores tipos de
crueldade, incluindo as crueldades relacionadas à
desigualdade social, sejam erradicados. Eles tendem a não ser
culpados da "falácia da melhor da hipóteses", porque não estão
engajados o suficiente com a política real ou o funcionamento
de instituições reais para isso. (McCLEAN, 2014, p. 78 –
tradução nossa)211

208
A quem Rorty contrapôs o que denominou “esquerda reformista”, na qual afirma estar ele
mesmo inserido.
209
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism, p. 75.
210
Ibid., 78.
211
No original: “Desiderative utopians, in the context of this discussion, are those who think that
erudite complaint exhausts their responsibilities to their country – the country concerning which

153
Tal postura, evidentemente, é uma das principais responsáveis pela
perda de apreço da expressão utopia na reflexão relevante sobre a política
contemporânea. Passa a ideia de que são utópicos apenas aqueles autores
que descrevem fantasias às quais não se pretende ascender, de fato, jamais,
visto que são de impossível realização. Contribuem assim para que as pessoas
esqueçam que há outra forma de se ser utópico. Pode-se trilhar a via de um
utopismo pragmático, utilizando-se a sua utopia como elemento de integração
das ações contínuas e graduais que realizarão, ao final, grandes
transformações na vida social. Rorty tem precisamente esta concepção e esta
prática, quando assume a defesa de uma utopia e dá a ela exatamente esta
esperança e responsabilidade:

A utopia liberal-pragmática-cosmopolita de Rorty é um esboço


de ordem social que tem pelo menos alguma chance razoável
de acontecer se (e este é um grande se, como Rorty bem o
sabia) os movimentos certos forem feitos, e se houver o
suficiente engajamento político, esperançoso e otimista, para
concretizá-lo. A utopia de Rorty está profundamente enraizada
nas tradições e hábitos mentais que acompanham o liberalismo
ocidental e, portanto, não é uma mera veleidade. (McCLEAN,
2014, p. 78 – tradução nossa)

Assim, a utopia rortyana não é a quimera de uma circunstância social


impossível, mas a realização de transformações desejáveis e possíveis,
mesmo que somente a longuíssimo prazo. McClean (2014, p. 79 – tradução
nossa), mais uma vez argumentando nesse sentido, traça-lhe um perfil muito
esclarecedor:

Rorty trabalhou com as tensões que existem e sempre existirão


entre a esperança, o risco e o acaso jamesianos, por um lado,
e a necessidade de abraçar e defender os valores de um 'nós'
particular que, na conta de Scruton, deve ser defendido, e que
de fato fornece o realismo para o empreendimento. O esboço
utópico que deriva dessa tensão tem uma chance muito maior
de se tornar uma realidade, pois o que ele nos fornece é uma
visão historicista arraigada, um utopismo que olha para o

they have articulated aspirations to fi nish the work that is required to transform it into a pluralist
civilization in which the worst sorts of cruelty, including the cruelties of invidious types of social
distance, are eradicated. They tend not to be guilty of „the best case fallacy‟ because they are
not engaged enough with real politics or the workings of real institutions to bring about any
case”.

154
sucesso passado enquanto projeta o avanço em direção a
condições sociais cada vez melhores.212

Neste sentido, a crítica de Scruton afetaria muito mais alguns


intelectuais autores de utopias desiderativas que a concepção utópica rortyana
– a utopia de uma sociedade idealmente liberal, democrática e justa –
construída a partir do melhoramento, sempre conveniente, das instituições
sociais que já existem para garantir as conquistas civilizacionais que a história
e as lutas sociais lograram efetivar até hoje.

3.3 Contingência da sociedade liberal ou fim da história?

As conquistas civilizacionais das sociedades democráticas liberais são


inegáveis. Em geral, os intelectuais são capazes de lhes apontar lacunas e
imperfeições ou de lhes prever um futuro tempestuoso, mas nunca de negar
completamente o resultado da escalada histórica de construção e afirmação
das instituições nos Estados democráticos. Na verdade, até o esforço de
desenhar estruturas econômicas e organizações sociais excelentes e
realmente diferentes das firmadas em tais sociedades é hoje algo já
extremamente raro. E se o observador faz uso comparativo das narrativas
históricas, muito provavelmente, será tentado a levar a sério a ideia de
progresso moral e social.
Francis Fukuyama, intelectual nipo-americano neoconservador, destaca-
se como um dos autores de grande expressividade a olhar o processo histórico
a partir desta perspectiva. Para ele, boa parte das convulsões resultantes das
lutas sociais e dos movimentos utópicos de mudança radical da realidade
política no mundo inegavelmente naufragou, revelando uma convergência
mundial para a democracia liberal:

212
No original: “Rorty worked with in the tensions that exist and will always exist between
Jamesian hope, risk and chance, on the one hand, and the need to embrace and defend the
values of a particular „we‟ that, on Scruton‟s account, must be defended, and which in fact
provides the realism for the venture. The utopian sketch that derives from this tension has a far
better chance of becoming a reality, for what it provides us with is a rooted, historicist vision, a
utopianism that looks to past success as it „muddles‟ forward toward ever-improving social
conditions”.

155
Hegel tivera razão ao dizer que a história terminara em 1806,
uma vez que não ocorrera nenhum progresso político essencial
além dos princípios da Revolução Francesa, que ele vira
consolidados pela vitória de Napoleão na batalha de Iena
naquele ano. A derrocada do comunismo em 1989 assinalou
apenas o desfecho de uma convergência mais ampla rumo à
democracia liberal à volta do globo. (FUKUYAMA, 2003, p. 11)

Do mesmo modo, em outro trecho, afirma:

A começar com a Revolução Francesa, o mundo foi


convulcionado por uma série de movimentos políticos utópicos
que tentaram criar um paraíso terrestre através de um rearranjo
radical das instituições mais básicas da sociedade, desde a
família até o Estado, passando pela propriedade privada.
Esses movimentos tiveram o seu clímax no século XX, com as
revoluções socialistas que ocorreram na Rússia, na China, em
Cuba, no Camboja e alhures. No fim do século XX,
praticamente todos esses experimentos haviam fracassado, e
em seu lugar vieram esforços para criar ou restaurar
democracias liberais igualmente modernas, mas politicamente
menos radicas. (FUKUYAMA, 2003, p. 27)

Para ele213, as diversas configurações político-econômicas têm sempre o


desiderato de encontrar os melhores modos possíveis para satisfazer às
necessidades, atender às aspirações e afirmar os valores individuais e
comunitários. Precisamente por esse desiderato, o liberalismo ocidental, sob
sua perspectiva, é, dentre todas essas configurações político-econômicas,
aquela que melhor equilibra essas necessidades, aspirações e valores nesta
relação entre o individual e o comunitário. É, pois, no ambiente da democracia
liberal que esta relação se estabelece da melhor maneira vista até hoje.
Persson e Savulescu (2007, p. 138) elencam algumas razões para isso:

A democracia liberal satisfaz nossas necessidades materiais


por estar bem adequada a um alto grau de desenvolvimento
científico e tecnológico que, com um mercado livre, promove
um alto padrão material de vida. Ela também satisfaz a nossa
necessidade social de reconhecimento através da concessão
de reconhecimento igual a todos os cidadãos, ao invés de
conferi-lo mais a alguns (os governantes) às custas de outros
(os sujeitos).

213
Cf. FUKUYAMA, Francis. The end of history? In: National Interest. n.16, 1989, p. 3.

156
Na retórica de Fukuyama, os eventos que marcaram o início da
derrocada da Guerra Fria, conjuntura histórica cuja culminância dar-se-ia com a
queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, atestaram,
simultaneamente, dois fatos de extrema relevância histórica e política: primeiro,
a incontestável vitória do sistema capitalista sobre o socialista; em segundo
lugar, o advento do estágio mais aprimorado da evolução ideológica da
humanidade. Esses acontecimentos foram tão somente o desenrolar mais
previsível possível da contraposição entre um sistema em que não existiam
condições razoáveis de desenvolvimento e reconhecimento individual das
pessoas – enquanto o Estado era forte e centralizador –, e outro em que tais
condições eram muito valorizadas, consideradas como algo que precisa ser
garantido – enquanto que o Estado precisa ser fraco, mantendo nítidas as
limitações de seu poder perante os direitos e garantias individuais.
Fukuyama considera que um dos aspectos muito relevantes ao
reconhecimento individual dos cidadãos é o direito à participação nas decisões
políticas do Estado. Alguns regimes adotaram postura diametralmente oposta a
essa, como o fizeram o Fascismo e o Comunismo em muitos países.
Precisamente por esta junção de predicativos, o encontro dos vocábulos
“liberal” e “democrático”, compondo a expressão “liberal-democrático”, é tão
recorrente no vocabulário político. Os Estados liberais assumem como um valor
importante pretender intervir o mínimo possível na vida privada de seus
cidadãos, ao tempo em que permitem – e têm por princípio214 – que os
cidadãos participem, direta ou indiretamente, das decisões políticas relevantes
às suas vidas, conforme afirma Fukuyama (1992, p. 70) no seguinte trecho:

O direito de participar do poder político pode ser considerado


como outro direito liberal, na verdade, o mais importante, e é
por isto que o liberalismo tem sido historicamente associado à
democracia.

Fukuyama assevera, por conseguinte, o caráter incontornável da


democracia de mercado, o que hoje se manifesta especialmente na
disseminação da cultura consumista no mundo. Esse gradual e incessante
espelhamento do modo de viver típico às democracias liberais e o afastamento,
214
O principal princípio de legitimidade que fundamenta as democracias liberais é justamente a
soberania do povo.

157
cada vez maior, de questões ideológicas como a dicotomia capitalismo-
comunismo, que sacudiram o século passado, fazem nascer um tempo de
relações internacionais pautadas, principalmente, pelas regras e dinâmicas do
mercado, em consequência, um estado duradouro de não-guerra. O sentido
original da expressão imperialismo é, de certo modo, substituído, na medida
em que as dominações passam a se pautar em termos não meramente
territoriais, mas de mercado. Fukuyama opta por não justificar ou respaldar, por
exemplo, o uso da força para fins de imposição da democracia ou do
liberalismo pelo mundo. Do mesmo modo, não advoga pela necessidade de
uma exaustiva justificação filosófica da ideia de que a liberal-democracia seja o
sistema mais benéfico possível ao ser humano. Nisso, aproxima-se de Rorty,
considerando bastante um simples exercício de comparação entre as formas
de viver neste contexto ideológico-econômico-políitco e nos demais.
O triunfo da ideia ocidental, concepção que nasceu como apenas uma
hipótese levantada por Fukuyama em um tempo de indefinições geopolíticas
marcante, o final da Guerra Fria215, não parece hoje uma afirmação descabida.
Pensar em alternativas de configuração política diferenciadas da democracia
liberal é possível, mas é cada vez mais difícil imaginar uma contradição
insanável no capitalismo que venha a fazer nascer uma opção completamente
nova, e melhor, capaz de satisfazer, de modo muito mais eficiente, as
necessidades, anseios e valores das pessoas e das comunidades.
Persson e Savulescu questionam um aspecto relevante dessa
discussão, que, aliás, é fulcral ao pensamento de Fukuyama. Muitos filósofos
se dedicaram ao mesmo desafio do pensador nipo-estadunidense, a saber,
uma análise qualitativa das possíveis configurações ideológico-políticas a fim
de decidir qual é a melhor dentre todas elas. Um ponto, entretanto, parece ter
sido negligenciado por muitos deles, inclusive Fukuyama: a melhor das formas
de governo, quando alcançada e efetivada em seus melhores termos, durará
para sempre? É o que eles questionam com muita agudeza de espírito:

215
Deve-se lembrar que Fukuyama lançou esta hipótese ainda em 1989 em um ensaio teórico
publicado na revista National Interest, com o título interrogativo The End of History? A essa
época, alguns dos eventos históricos que hoje são basilares na descrição das mais importantes
transformações sócio-políticas do séc. XX estavam ainda em andamento ou apenas se
anunciavam.

158
É suficiente considerar que a forma moralmente melhor de
governo poderia muito plausivelmente conceder aos seus
cidadãos o direito de determinar a forma de governo à qual
eles são sujeitos. Todavia, então, se eles não se dão conta de
que o melhor governo é, de fato, o melhor governo – e eles
podem falhar em perceber isso, pois a sociedade que possui o
melhor governo não possui necessariamente os melhores
cidadãos –, eles poderiam substituí-lo por outra forma de
governo. (PERSSON e SAVULESCU, 2017, p. 146)

Parece uma contradição em termos imaginar que a democracia liberal


poderia durar para sempre, uma vez que sua própria maneira de ser exige que
dê a seus cidadãos o direito de questioná-la ou de experimentar novas
configurações político-ideológicas. A democracia é, por definição, o espaço em
que se pode questionar216, inclusive, a forma democrática de Estado.
A leitura que Rorty fazia de Fukuyama recomendava que os entusiastas
de um pensamento político radicalmente à esquerda, em especial aqueles que
se mantinham fiéis à tradição do pensamento comunista e à esperança pela
revolução, pelo totalmente novo, encarassem-no com cuidado e respeito, uma
vez que os eventos do final da década de 1980 sinalizavam de forma muito
contundente para que se lhe dessem razão em muitos aspectos.
Entretanto, Rorty desenvolveu uma retórica em muitos aspectos
diferenciada da de Fukuyama, embora também em prol do liberalismo. Sua
defesa da sociedade liberal democrática, e, especialmente, da construção de
uma cultura liberal, era intransigente, mas o liberalismo – assim como a
democracia – nem sequer se assemelha a uma necessidade histórica ou uma
decorrência lógica inarredável. Se esse fosse o caso, a democracia liberal não
necessitaria de utopia. Para ele, portanto, em sua forma utópica, a cultura
liberal seria marcantemente esclarecida e secular, e ininterruptamente voltada
para o combate à crueldade e ao sofrimento e só poderia surgir e ser cultivada
pela ação deliberada dos homens. Trata-se, portanto, de uma maturidade
moral e política que os homens precisariam construir juntos e que não
decorreria de nenhum processo histórico teleológico, não representando a
emergência de formas necessárias e universalistas de moralidade, nem mesmo

216
É importante lembrar que o verbo questionar tem uma amplitude aberta. De certa forma, os
Estados decidem – ou devem decidir – os limites da amplitude de significados que lhe poderá
ser atribuída. Por exemplo, pode-se questionar a democracia por meio de atos, palavras ou
omissões eminentemente antidemocráticas?

159
a realização em nível superior da racionalidade humana. É o que assevera
Mouffe (2016, p. 14), referindo-se e alinhando-se a essa perspectiva rortyana:

Devemos parar de apresentar as instituições das sociedades


liberais do Ocidente como se oferecessem a solução racional
para o problema da coexistência humana, como a solução que
outros povos necessariamente irão adotar quando deixarem de
ser “irracionais”.

Para alcançar tal grau de maturidade, e esse progresso moral, a cultura


liberal necessitaria menos de uma fundamentação filosófica firme e mais de
uma auto-imagem positiva construída a partir da forma como descreve sua
história, suas práticas e seus objetivos. Apesar de pensar em termos de cultura
liberal ideal, ou de sociedade utopicamente liberal, Rorty encaminha-se pela via
da necessidade do reconhecimento da contingência. E não só a contingência
do indivíduo e da linguagem, mas até a contingência da própria sociedade
liberal-democrática. Assim, trata-se de uma utopia ininterrupta, que jamais
admitiria o conceito de fim da história.
Podemos afirmar, com Rorty, portanto, que não há nada extra ou
suprapolítico que fundamente as instituições liberais como as melhores que se
possa ter, justificando que a sua concretização representa a chegada ao ápice
das possibilidades inventivas em termos de política. Pelo contrário, as
instituições liberais são contingentes e podem ser aperfeiçoadas a cada dia.
Em vista disso, Araújo (2016, p. 116), explicitando essa perspectiva tanto
contingencialista como melhorista de Rorty, afirma que:

Rorty modifica os critérios de julgamento das instituições


liberais, para que elas pareçam mais abertas a intervenções
aperfeiçoadoras. Mas, ao modificar os critérios, ele não está
emasculando sua crença na “superioridade” das instituições
liberais. A seu ver, elas são, sim, os melhores experimentos da
existência coletiva que a história humana já produziu,
porquanto orientam-se por horizontes mais universalizáveis de
liberdade e de tolerância – mais universalizáveis porque mais
úteis.

Assim, mais uma vez, o que justifica olharmos para a experiência


democrática e liberal como uma experiência de inegável sucesso não é
qualquer espécie de superioridade natural, mas tão somente os resultados que

160
ela pode expor, confrontando-se-lhes com os resultados de outras experiências
político-econômicas.
Em conseguinte, Rorty considerava que a ideia de fim de história,
presente na retórica de Fukuyama, não seria um elemento de descrição
positiva para a sociedade utopicamente liberal, podendo agir muito mais como
um estímulo ao espírito estático, como um elemento de inércia, que como um
combustível ao espírito transformador, tão caro e essencial ao surgimento de
novas utopias. Seu efeito seria, pois, desanimador, como Rorty (2005c, p. 284)
afirmou no seguinte trecho em que se refere diretamente ao pensamento de
Fukuyama:

Para ele o fim da política romântica terá o mesmo efeito


desanimador sobre nosso imaginário coletivo que o que Platão
teria sofrido se admitisse que as instituições atenienses da
época eram as melhores que ele poderia imaginar. Como
seguidor de Strauss e de Kojève, Fukuyama lamenta esse
efeito desanimador. Na tradição intelectual à qual ele pertence,
a filosofia política é, antes de tudo, filosofia.

Avesso a esse espírito desanimador, Rorty não considerava ser possível


– ou desejável – determinar em qual momento seu ideal de progresso social,
sua utopia, estaria plenamente realizada ou teria atingido o seu apogeu. Isso
porque o que se espera, no contexto da retórica utópica rortyana, é que o
homem seja capaz de construir realidades sociais tão melhores, se
comparadas às que conhecemos, que não seria possível sequer descrevê-las a
partir do presente. Além do mais, a capacidade imaginativa de sonhar
realidades ainda melhores, quando se tivesse chegado a esse ponto de
melhoramento social, estaria sempre presente, fazendo com que estejamos,
assim, em um ciclo inesgotável de utopias. O fim da história não pode ocorrer
enquanto a capacidade de sonhar e realizar do homem continuar existindo.

3.4 A crítica de Richard J. Bernstein

Richard J. Bernstein, além de um leitor atento e muito crítico, foi uma


pessoa próxima a Rorty desde a juventude e, como este, tornou-se um autor

161
importante a compor a tradição do pragmatismo americano. Seus trajetos
profissionais se cruzaram nos corredores de universidades217. Por essa razão,
Bernstein acompanhou de perto o percurso intelectual de Rorty – desde antes
de sua aproximação com a filosofia analítica 218 –, o que culminaria, sob a
óptica do amigo e crítico, com a defesa de sua utopia liberal-democrática e a
construção de um pensamento eminentemente humanista.
Por uma questão de sonoridade no ambiente vocabular rortyano, a
expressão humanismo – utilizada por Bernstein em referência ao colega – pode
parecer deslocada, uma vez que Rorty não costumava utilizar expressões tão
generalizantes como esta, pelo intento de se manter firme no objetivo de
escapar a quaisquer formas de essencialismo. A despeito disso, Bernstein
defende que Rorty tenha desenvolvido um pensamento filosófico
profundamente humanista219.
Qualificar de humanista a expressão intelectual de Rorty, para Bernstein,
justifica-se plenamente pela presença ostensiva de alguns aspectos
eminentemente humanistas em sua obra, especialmente, a partir de
Contingência, ironia e solidariedade, a saber: uma ênfase na contingência
histórica radical, uma rejeição completa de todas as formas de
representacionismo epistêmico e semântico, a primazia da imaginação sobre a
argumentação racionalizante, a preferência pela literatura em detrimento da
linguagem técnico-filosófica, a ênfase na necessidade de ampliação da
simpatia e da empatia, um fortíssimo senso de ironia e de solidariedade, e a
total condenação da crueldade e da humilhação entre as pessoas220.
A constatação de um profundo humanismo na retórica rortyana,
entretanto, não inutiliza a análise de alguns questionamentos feitos

217
Cf. BERNSTEIN, Richard. Richard Rorty‟s deep humanism. In: New Literary History. n. 1,
v. 39, 2008, p. 13.
218
Bernstein chama a atenção para o fato de que alguns comentadores costumam afirmar que
Rorty teria iniciado a sua produção intelectual como um promissor filósofo analítico, associando
A filosofia e o espelho da natureza a uma espécie de estréia. Para ele, essa afirmação não é
precisamente correta, uma vez que, tendo-o conhecido ainda muito jovem, pode acompanhar
suas incursões ainda como um entusiasta da Metafísica – o que, depois, o próprio Rorty
chamaria “platonismo” – e, em muitos escritos, da Metafilosofia. Apenas posteriormente, Rorty
teria se aproximado da filosofia analítica, do materialismo eliminativo, e, somente após, da
tradição do pragmatismo americano.
219
Cf. BERNSTEIN, Richard. Richard Rorty‟s deep humanism. In: New Literary History. n. 1,
v. 39, 2008, p. 13 e seguintes.
220
Cf. Ibid., p. 24-25.

162
anteriormente221 por Bernstein quando, ao analisar uma publicação importante
de Rorty a respeito do pensamento político de John Rawls, A prioridade da
democracia para a filosofia, enumerou uma série de aspectos em que
considerava a perspectiva do colega obscura, imprecisa e, em conseguinte,
arriscada, perigosa.
Para Bernstein, uma das dificuldades evidentes em Rorty à época
estava relacionada ao fato de que, embora ele se pretendesse um pragmatista
deweyano, encontrava-se, desconcertantemente, mais distante de Dewey do
que imaginava, em especial no que diz respeito à política e à vida pública,
porque o tipo de defesa do liberalismo que empreendia, na verdade, era
justamente o tipo de defesa que Dewey queria e recomendava evitar222.
Em seu intento de defender o liberalismo, Rorty faria, por exemplo, uma
leitura reducionista de Rawls, atendo-se tão somente à ideia de que a
democracia liberal não exige uma doutrina abrangente para efeito de
fundamentação filosófica, Rorty passa muito ao largo de elementos
fundamentais da Teoria da Justiça como Equidade, e, em geral, não esclarece
precisamente o sentido da expressão liberalismo em seus textos.
Extremamente polissêmico, essa expressão tende a assumir diferentes
nuances para diferentes contextos. Considerar que a expressão liberalismo não
requer uma precisão de significado, ou tratá-la como se todos soubessem
exatamente do que se está falando, revelaria, para Bernstein, um resquício de
essencialismo por parte de Rorty, justamente aquilo que ele mais desejava
rejeitar.
De acordo com Bernstein223, a principal técnica utilizada por Rorty ante
as questões filosófico-metafíscas que se lhe impõem é assumir a atitude não
de respondê-las ou de apresentar elementos que as neutralizem, mas de
demonstrar a sua desnecessidade ou irrelevância, afirmando estar mais
interessado em questões de “prática política” que em questões de filosofia.
Essa diferenciação, entretanto, não esclarece bem os termos da discussão.
Falar em “práticas políticas”, genericamente, causa mais problemas que
esclarece. Em uma sociedade democrática e liberal, por definição, haverá

221
Antes da publicação de Contingência, ironia e solidariedade.
222
Cf. BERNSTEIN, Richard. One Step Forward, Two Steps Backward: Richard Rorty on
Liberal Democracy and Philosophy. In: Political Theory. n. 4, v. 15, 1987, p. 541.
223
Ibid, 549.

163
conflitos entre os valores democráticos e as escolhas na vida prática política.
Quem definirá os parâmetros de solução para os problemas de conflito
surgidos no âmbito da sociedade liberal democrática? Por exemplo, existe uma
forte ideia liberal que enfatiza a liberdade negativa, do mesmo modo, uma
tradição no republicanismo cívico que destaca a liberdade participativa positiva.
Como a sociedade irá equacionar os diálogos entre essas duas tradições que
representam igualmente a prática política liberal e democrática moderna,
evidenciando ambas o valor da liberdade?
Partir do pressuposto de que uma espécie de “equilíbrio reflexivo” será
sempre suficiente para resolver todas as controvérsias surgidas na sociedade
liberal ideal é, em última análise, negar o aspecto de contingência da própria
sociedade liberal democrática e, contrariando frontalmente a tendência do
próprio pensamento, partir de uma visão essencialista do liberalismo. Um
consenso advindo de um equilíbrio reflexivo como este exigiria a pressuposição
de uma ideia de nós sobremaneira afinado e pacífico. Mas se Rorty afirmava a
consciência de que não faz sentido exigir às pessoas, numa sociedade
democrática, sequer uma noção uniforme de boa vida – o que lhes dá uma
grande liberdade em termos de auto-criação privada –, muito menos se poderia
querer, ou esperar, algum tipo de consenso estável em relação à vida pública,
ao liberalismo e à democracia, por exemplo.
De certo modo, essa noção de nós, em Rorty, não é explicitada de forma
clara e objetiva, transparecendo, por vezes, a impressão de que o autor se
refere tão somente àqueles que com ele concordam. Além do mais, a retórica
rortyana parece ignorar um fato desconcertante e muito relevante acerca do
liberalismo: observa-se facilmente um enorme abismo entre aquilo que se
atribui de qualidades às sociedades liberal-democráticas – especialmente, a
valorização incondicional dos ideias de liberdade e igualdade – e o estado real
das coisas nas sociedades ditas liberais:

Desde o século XIX, quando as variedades do liberalismo


sofreram forte ataque, houve aqueles (marxistas, socialistas,
anarquistas, reformadores radicais e até weberanos) que
argumentaram que, quando examinamos o liberalismo como
ele está incorporado nas sociedades modernas concretas
(especialmente em uma ordem econômica capitalista)
descobrimos que não é um fato contingente ou meramente

164
acidental que os ideais liberais de liberdade universal e
igualdade sejam constantemente traídos nas sociedades
capitalistas burguesas. Existem forças e tendências em ação
(por exemplo, conflito de classes, divisão social, patriarcado,
racismo) que são compatíveis com as práticas políticas liberais,
mas, no entanto, promovem a desigualdade real e limitam a
liberdade política efetiva. (BERNSTEIN, 1987, p. 553 –
tradução nossa)224

Para Bernstein, Dewey e Rawls, por exemplo, trataram dessa questão


de modo mais respeitável que Rorty, que, muitas vezes, apenas a
circunscrevia, sem discuti-la apropriadamente. Do mesmo modo, em relação à
narrativa da história da filosofia que informa os textos rortyanos225, a atitude de
agrupar toda a reflexão metafísica sob a etiqueta de platonismo – com
Nietzsche, Heidegger, pós-estruturalistas e pós-modernistas – acaba por gerar
um preconceito ofuscante que mais obscurece que ilumina, contribuindo para
que o diálogo seja descontinuado, em vez de se manter sempre aberto, como o
próprio Rorty pretendia e recomendava.
Em resposta226 a tais questionamentos de Bernstein, que Rorty
considerou compreensíveis e importantes – visto que partiam de um respeitável
intelectual e que traziam algumas discordâncias genuínas que poderiam ser
discutidas, apesar de expressarem também algumas confusões apenas
aparentes – Rorty esclareceu que sua noção de nós não está relacionada
genérica e necessariamente a “nós que concordamos”, mas que se pode
entender o seu nós como uma referência aos autores de viés liberal e social-
democrata, os que concordam em alguns pontos fundamentais à defesa de
uma sociedade melhor, e que, neste conceito, o próprio Bernstein, assim como
muitos outros de seus críticos, está incluído.
Para Rorty, uma discordância real com Bernstein está relacionada ao
papel da teoria, e em especial da filosofia, na vida política prática, a real

224
No original: “Since the nineteenth century when the varieties of liberalism have come under
heavy attack, there have been those (Marxists, socialists, anarchists, radical reformers, and
even Weberans) who have argued that when we examine liberalism as it is embodied in
concrete modern societies (especially in a capitalist economic order) we discover that it is not a
merely accidental contingent fact that liberal ideals of universal freedom and equality are
constantly betrayed in bourgeois capitalist societies. There are forces and tendencies at work
(e.g., class conflict, social division, patriarchy, racism) that are compatible with liberal political
practices but nevertheless foster real inequality and limit effective political freedom”.
225
Cf. Ibid., p. 559.
226
Cf. RORTY, Richard. Thugs and theorists: a replay to Bernstein. In: Political theory, Vol.
15. n. 4, 1987, 564-580.

165
utilidade da teoria. Rorty esclareceu que, contrapondo-se à posição de alguns
pensadores radicais de esquerda227, não atribui à reflexão filosófica o papel
vicinal de traçar os caminhos das ações políticas, mas que há uma relevância
muito respeitável da filosofia – que não é, entretanto, algo exclusivo dela –, a
tarefa de imaginar uma utopia liberal, o papel de pensar a utopia, mantendo
viva a chama do reformismo e melhorismo.
Evidentemente, discordar que a filosofia tenha a obrigação de ser
relevante para as tomadas de decisões práticas da vida política não é o mesmo
que afirmar que ela não tem relevância alguma, que ela não serve para nada.
Assim como na literatura, há livros que nos ajudam a fazer escolhas de caráter
público, mas há livros que não se prestam a isso. Boa parte dos autores
associados à filosofia da subjetividade, por exemplo, Nietzsche, Derrida e
Foucault, não estão preocupados em se dedicar a uma espécie de análise
pormenorizada da situação política dos contextos históricos em que viveram,
mas nem por isso devem ser vistos como irresponsáveis ou desimportantes.
Sua literatura está mais voltada, pois, para o desenvolvimento espiritual
privado, em termos rortyanos, a auto-criação privada.
Em relação ao fato, apontado por Bernstein, de que Rorty passa ao largo
de algumas questões da vida política como se elas lá não estivessem, sem
lhes dá a devida atenção e importância, Rorty considerava que a chave para
entender a sua postura em relação a essas questões é o fato de que os social-
democratas preferem depositar sua confiança naquilo que Rawls denominou
consenso sobreposto. Por isso:

Todos nós trabalhamos por uma utopia em que a igualdade de


acesso a uma imprensa livre, a um poder judiciário livre e a
universidades livres permitirá questionar, por exemplo, sobre
liberdade negativa versus republicanismo cívico ou privatismo
versus comunitarismo ou etnocentrismo versus universalismo
(questões que Bernstein diz, com razão, que eu encobro com o
meu uso de "nós”) para ser pacificamente e gradualmente
trabalhado através de novas e cada vez mais ricas sínteses de
teoria e prática. As diferenças de gosto filosófico entre nós,
social-democratas, podem ser facilmente adiadas até que nos

227
Para Rorty, podia-se dizer que a esquerda no Primeiro Mundo se tornara súper-teórica ou
super-filosófica, empenhando-se em empreender críticas infindáveis à estrutura e à suposta
ideologia das democracias sobreviventes.

166
tenhamos aproximado muito mais dessa utopia. (RORTY,
1987, p. 573 – tradução nossa)228

De certa forma, essa fluidez de significados apontada por muitos dos


leitores de Rorty, dentre eles Bernstein, acaba por incorporar o seu método de
trabalho, dando-lhe um aspecto heterodoxo, radicalmente diferente dos usos
tradicionais das argumentações filosóficas, como explicava o próprio Rorty
(1989, p. 9):

This sort of philosophy does not work piece by piece, analyzing


concept after concept, or testing thesis after thesis. Rather, it
works holistically and pragmatically. It says things like "try
thinking of it this way" – or more specifically, "try to ignore the
apparently futile traditional questions by substituting the
following new and possibly interesting questions".229

Bernstein também advertia que algumas das teses de Rorty, pela


carência de objetividade ou precisão, poderiam cair nas mãos das pessoas
erradas e interpretadas de modo a se tornar uma espécie de defesa para ideias
que Rorty jamais defenderia. Sua concepção de contingência de todos os
vocabulários pode ser entendida230 – ou utilizada – como ferramenta para a
naturalização de posturas políticas as mais sádicas possíveis, uma vez que
permite apresentar como bem qualquer coisa que se esteja disposto a
defender, sem necessidade de grande justificação filosófica. Tal concepção
pode se transformar em uma poderosa arma nas mãos de pessoas mal
intencionadas, inclusive daquelas que detenham o poder político.
Um exemplo importante desse desconforto com a imprecisão de termos-
chave da retórica rortyana é apontado por Bernstein no tocante à expressão

228
No original: “We all are working for a utopia in which equal access to a free press, a free
judiciary, and free universities will permit questions about, for example, negative liberty-versus-
civic republicanism or privatism-versus-commu- nity or ethnocentrism-versus-universality (the
issues that Bernstein rightly says I gloss over with my use of “we”) to get peacefully and
gradually worked out through new, ever-richer, syntheses of theory and practice. Differences in
philosophical taste between us social democrats can easily be deferred until we have come a
good deal closer to that utopia”.
229
Na edição lusitana: “esse tipo de filosofia não trabalha peça por peça, analisando conceitos
atrás de conceitos, ou testando teses atrás de teses. Em vez disso, trabalha de forma holística
e pragmática. Diz coisas como „tente pensar nisto desta maneira‟ ou, mais especificamente,
„tente ignorar as questões tradicionais, que se verifica serem fúteis, substituindo-as pelas
seguintes questões novas e possivelmente interessantes‟”. (RORTY, 1994, p. 30).
230
Cf. BERNSTEIN, Richard. Rorty‟s liberal utopia. In: Social Research. n. 1, v. 57, 1990, p.
55.

167
“vocabulário”. Para Bernstein231, Rorty utiliza esse termo de modo
propositadamente vago, fazendo um uso muito particular da noção de jogos de
linguagem de Wittgenstein e dando a ele uma circunscrição que envolve
significados de descrever, avaliar, julgar e agir.
A essas objeções, em especial, Rorty respondeu de modo incisivo,
afirmando que todo pensamento filosófico independe do consentimento do
autor para que seja utilizado, inclusive, para os fins que ele veementemente
condena. Mas que devemos ter o cuidado de tratar bandidos como bandidos e
teóricos como teóricos, em vez de tomar demasiado a sério a preocupação
estatizante sobre quais bandidos podem fazer uso nefasto de quais textos,
desvirtuando e criminalizando quais teóricos.
Mais recentemente, entretanto, analisando as contribuições de Rorty
para a descrição da sociedade americana do final do século passado e
algumas afirmações impressionantemente prescientes que fizera –
especialmente em sua última obra, Para realizar a América –, Bernstein o toma
em conta de um autor extremamente relevante, combativo e sagaz, capaz de
enxergar, por exemplo, os riscos que rondam a democracia liberal.
Sobre a utopia rortyana hoje, Bernstein questiona se, na atual conjuntura
político-social nos Estados Unidos, ainda faz sentido se alimentar os anseios
rortyanos ou se fazê-lo seria ceder a um espírito de nostalgia de uma época e
de valores que não voltam mais:

Podemos ter sérias dúvidas se o tipo de política reformista que


Rorty defende ainda faz muito sentido hoje. (...) Mas dada à
paralisia da política nos Estados Unidos hoje em dia, às
sofisticadas técnicas digitais para manipular a "opinião pública",
ao poder do dinheiro na formação da política, à desordem no
seio do Partido Democrata, e ao fracasso persistente dos
intelectuais de esquerda em estabelecer alianças politicamente
eficazes com os trabalhadores de colarinho azul, Rorty abre-se
à crítica de que desliza para uma nostalgia de uma era
passada que já não é relevante. (BERNSTEIN, 2019, p. 15 –
tradução nossa)232

231
Ibid, p. 36.
232
No original: “One may have serious doubts whether the type of reformist politics that Rorty
advocates still makes much sense today. (...) But given the paralysis of politics in the United
States today, the sophisticated digital techniques for manipulating “public opinion,” the power of
money in shaping politics, the disarray within the Democratic Party, the persistent failure for left
intellectuals to establish politically effective alliances with blue collar workers, Rorty opens
himself to the criticism that he slips into a nostalgia of a past era that is no longer relevant”.

168
Tal questionamento parece, entretanto, menos uma dúvida ou uma
suspeita real e mais uma maneira de chegar à conclusão acerca da atitude
intelectual de Rorty: não há qualquer ingenuidade em permanecer firme e fiel à
utopia de um mundo melhor, menos cruel e menos sádico. A despeito das
inumeráveis razões para um sério pessimismo em relação ao futuro da
democracia, que Rorty nunca escondeu conhecer, ele, pragmaticamente, opta
por não lavar as mãos, mas seguir impactando os leitores para que se
comprometam em lutar por aquilo que ainda vale a pena: a ideia de que a vida
em sociedade pode ser mais solidária.

3.5 A democracia radical e pluralista em Chantal Mouffe

O fato de Rorty ter se dedicado a “minar radicalmente a própria base da


abordagem racionalista dominante” (MOUFFE, 2016, p. 9), para Mouffe,
coloca-o no cerne de muitas das controvérsias mais importantes da filosofia
contemporânea, fazendo com que ele seja, por vezes, desacreditado por
filósofos tradicionais e, contrária e simultaneamente, localizando-o como um
dos mais proeminentes pensadores de nosso tempo. Apesar de evidenciar a
importância e atualidade do pensamento de Rorty, especialmente a relevância
política do pragmatismo rortyano, Mouffe, analisando as condições de defesa
da democracia, levanta questões233 relacionadas ao tipo de utopia liberal e de
engenharia social gradual que Rorty defende. Para ela, é possível que uma
grande quantidade de lutas e transformações sociais importantes à efetivação,
cada vez em um nível mais elevado, da democracia exijam mais do que a
esperança expressa em um gradual reformismo ou progressismo possa
oferecer: “pode um tal reformismo fazer justiça à multiplicidade de lutas que
clama por uma radicalização do ideal democrático?” (MOUFFE, 2016, p. 12).

233
Cf. MOUFFE, Chantal. Desconstrução, pragmatismo e a política da democracia. In:
CRITCHLEY, Simon... (et all). Org. Chantal Mouffe. Desconstrução e Pragmatismo. Trad.
Victor Dias Maia Soares. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 12.

169
Rorty, em seu reformismo234, partia da ideia de que a defesa do ideal
liberal democrático requereria a ampliação da lealdade compartilhada entre as
pessoas e a criação de um ethos democrático. Para Mouffe (2016, p. 16):

Isso tem a ver com a mobilização de paixões e sentimentos,


com a multiplicação de práticas, instituições e jogos de
linguagem que forneçam as condições de possibilidade para
sujeitos democráticos e formas democráticas de vontade.

Talvez o maior e mais recorrente equívoco da maioria dos pensadores


em defesa do liberalismo e da democracia tenha sido partir da ideia
universalista e essencialista de que os valores liberais e democráticos são tão
sagrados que devem ser associados, teleologicamente, à ascensão a níveis
superiores da racionalidade humana. Alguns desses autores, inclusive,
adaptando-se apenas aos fins que pretendem, pressupõem uma concepção
irreal de ser humano:

A maioria dos teóricos liberais (...) opera com uma concepção


metafísica que considera o indivíduo como anterior à
sociedade, portador de direitos naturais, maximizador da
utilidade ou sujeito racional – de acordo com a vertente de
liberalismo que eles sigam. (MOUFFE, 2016, p. 16)

Para Mouffe, a posição pragmática e anti-essencialista de Rorty tem o


potencial de contribuir sobremaneira para que enfrentemos os verdadeiros
problemas da democracia no mundo real, em vez de dispensar uma enorme
quantidade de energia e tempo respondendo a perguntas que, na prática, são
pouco relevantes ou, até, realmente dispensáveis. Entretanto, Mouffe alimenta
uma importante dúvida em relação a até que ponto Rorty deveria ter ido nessa
posição menos teorizante e mais pragmática. Para ela, Rorty parece não ter
levado inteiramente em consideração “a complexidade da política”, uma
decorrência imediata do seu radical e intransigente antiessencialismo, que o

234
Rorty sempre saiu em defesa da ideia de que as transformações sociais desejadas para a
construção de um país melhor – ou de um mundo melhor – devem conquistas graduais e
cumulativas. Assim, qualificá-lo como um reformista seria correto. Entretanto, não se pode, de
modo algum, associar sua posição a uma atitude política descansada. As pequenas reformas
sociais, para Rorty, podem ter um gigantesco poder de transformação: “algum dia, talvez,
reformas graduais e cumulativas farão surgir mudanças revolucionárias” (RORTY, 1999c, p.
141).

170
faz dispensar, inclusive, algumas questões que não são, ao cabo, de modo
algum dispensáveis.

Quero sugerir que o problema fundamental subjaz no fato de


que Rorty não reconhece inteiramente a complexidade da
política, e que isto está relacionado à sua rejeição a qualquer
tipo de investigação sobre a natureza da esfera política. Para
ele “a política é uma questão do pragmático, de reformas a
curto prazo e de compromissos. É algo para ser discutido em
termos banais e familiares”. (MOUFFE, 2016, p. 17)

Tal posição, avessa à teorização e a qualquer forma de essencialismo, e


essa ênfase nos aspectos pragmáticos da vida política acabam por demonstrar,
para Mouffe, que Rorty cultiva uma visão muito limitada dos conflitos sociais.
Ele não encarava de frente, por exemplo, a importante questão das
desarmonias e dos conflitos entre interesses igualmente relevantes às pessoas
e aos grupos que sejam simetricamente resguardados como direitos e
garantias fundamentais. Beirando o reducionismo e o simplismo, “ele espera
que, com o crescimento econômico e o desenvolvimento de atitudes mais
tolerantes, a harmonia possa finalmente ser estabelecida” (MOUFFE, 2016,
18). Desse modo, para ela, Rorty confundiria a desnecessidade de
fundamentação filosófica da democracia liberal com a inutilidade de toda e
qualquer reflexão filosófica acerca dela:

Uma coisa é afirmar que a democracia não pode – e não


precisa – ter fundamentações filosóficas. Outra, completamente
diferente, é rejeitar a utilidade de qualquer tipo de reflexão
filosófica e acreditar que nada é obtido com uma investigação
sobre a natureza da democracia, e que possamos prescindir
dela. Qualquer concepção de política democrática, mesmo uma
tão antifilosófica como a defendida por Rorty, implica
necessariamente uma certa compreensão da natureza da
política. Também implica privilegiar um dos vários sentidos de
um tão controvertido conceito como o de “democracia”. Não há
um campo neutro, supostamente incondicionado pela filosofia,
do qual se possa falar. (MOUFFE, 2016, p. 18)

Rorty, para Mouffe, pauta a defesa de sua utopia liberal democrática na


persuasão e no progresso econômico, fugindo de toda esperança de que o
progresso da razão implique no progresso moral de que sua utopia necessita.
Nesse ponto, inclusive, reside a sua principal discordância com Habermas: eles

171
não estão distantes no que defendem como a melhor opção político-econômica
para os povos, mas estão distantes na fundamentação de tal escolha, nos
mecanismos necessários e eficientes para a consecução de seus objetivos.
Mouffe, em consonância com Laclau, evidencia uma questão importante,
que integra Rorty e Habermas à mesma crítica. Ambos estariam muito
comprometidos com a construção de uma sociedade pautada na comunicação
sem distorções e na lealdade entre as pessoas nos processos sociais. Muito
embora discordassem, como já dito, quanto aos mecanismos de efetivação
desse progresso. Para Mouffe (2016, p. 19), entretanto, “nenhum dos dois é
capaz de compreender o papel crucial do conflito e a função integrativa central
desempenhados em uma democracia pluralista”. Ambos os pensadores,
comprometidos genuinamente com a defesa da democracia liberal, adotam,
cada um a seu modo, um modelo “consensual” – pelo menos em aspiração –
de sociedade democrática.
Castro explica com maestria que, em Rorty, todavia, não se concebe
uma sociedade utópica plenamente consensual. Mas que é correto se pensar
em um sistema de composições – em que ninguém sairia totalmente
insatisfeito – entre os cidadãos na esfera pública. Em relação a suas vidas
privadas, Rorty é afeito à ideia romântica da inexpugnabilidade e autenticidade
do indivíduo, mas no que diz respeito às questões importantes da esfera
pública, conforme a lide de Creonte e Antígona, não apenas Rorty, mas a
tradição do pragmatismo:

(...) sempre defenderá a possibilidade de que através de uma


redescrição do problema dado seja possível às partes opostas
chegar a uma maneira em que ninguém sairá perdendo
totalmente. Assim, para um pragmatista a solução honrosa
para o conflito entre Creonte e Antígona não é a morte de uma
das partes conflitantes, mas sim a continuação do diálogo entre
as partes até que seja possível chegar a uma forma tolerável
de convivência sem que nenhuma das partes seja obrigada a
mudar completamente suas convicções. Essa busca pela
solução pacífica do conflito através do diálogo e da redescrição
através da imaginação da situação conflitante não significa a
defesa da possibilidade de acordo total, outro termo para a
universalidade a posteriori de Habermas. (CASTRO, 2009, p.
4)

172
Ainda assim, considerando uma espécie de consenso da esfera pública,
tanto Rorty quanto Habermas parecem, sob a perspectiva de muitos críticos,
Mouffe e Laclau entre eles, deixar de lado ou negar um dos aspectos mais
próprios à democracia: imaginar ou desejar uma sociedade consensual –
idealmente consensual – é virar as costas para o fato de que o conflito é parte
fundamental do espírito democrático. Desejar a sua superação, torná-lo
ilegítimo, é também esperar algo além da democracia. A noção de lealdade
ampliada de Rorty, por exemplo, se levada às suas últimas consequências,
entre em rota de colisão com o conceito de pluralismo, tão caro ao espírito
democrático. Na democracia o conflito, resultante de seu pluralismo agônico, é,
evidentemente, tão importante quanto o consenso:

Uma democracia pluralista precisa também dar lugar à


expressão do dissenso e aos interesses e valores em conflito.
E isso não deve ser visto como obstáculos temporários no
caminho para o consenso, uma vez que, em sua ausência, a
democracia deixaria de ser pluralista. (MOUFFE, 2016, p. 20)

Do mesmo modo, Laclau assevera que “a „utopia‟ democrática radical


que gostaria de contrapor à liberal de Rorty não exclui antagonismos e divisões
sociais, mas, ao contrário, os considera constitutivos do social” (LACLAU,
1996, p. 91 – tradução nossa)235.
Nem sempre haverá consenso e harmonia na dinâmica social de uma
democracia pluralista. E não se pode querer que os dissensos importantes
sejam relegados à dimensão privada da vida social. Desejar uma sociedade em
que – na dimensão privada ou na dimensão pública – o dissenso seja visto
sempre como um passo para se construir o consenso é se distanciar do desejo
por uma sociedade genuinamente democrática. No tocante a isso, Mouffe
(2016, p. 20-21) é direta e incisiva em sua crítica a Rorty:

O progresso da democracia, contrariando Rorty, jamais tomará


a forma de uma evolução suave e progressiva, na qual “nós, os
liberais” nos tornamos mais numerosos e inclusivos quanto
mais direitos forem reconhecidos. Os direitos entrarão em
conflito e não poderá existir vida democrática vibrante sem uma

235
No original: “the radical democratic „Utopia‟ that I would like to counterpose to Rorty's liberal
one does not preclude antagonisms and social division but, on the contrary, considers them as
constitutive of the social”.

173
verdadeira confrontação democrática entre os direitos e sem
um desafio às relações de poder existentes.

Para Mouffe, o papel da política – especialmente a política democrática


– é manter a coesão social em um contexto plural, contexto de conflito e
diversidade. Ocupar-se das maneiras como chegaremos a uma situação em
que o nós seja cada vez mais amplo e o eles cada vez mais restrito é esquecer
que a democracia é o lugar do “nós” e do “eles” conviverem, respeitando, cada
grupo, as idiossincrasias de todos os demais: “o que é específico da política
democrática não é a oposição nós/eles, mas a maneira diferente com a qual é
desenhada” (MOUFFE, 2016, p. 21).
Mesmo uma ideia utópica de sociedade que vise à construção de um
contexto predominantemente consensual se afasta, para Mouffe, daquilo que
pode ser evocado como princípio básico da democracia pluralista. Para ela,
nem como uma tarefa utópica inesgotável, deve-se evocar uma sociedade
democrática consensual, uma vez que “como condições de possibilidade para
a existência uma democracia pluralista, conflitos e antagonismos constituem ao
mesmo tempo a condição de impossibilidade de sua realização final”
(MOUFFE, 2016, p. 25).
Mouffe defende uma democracia radical e plural. Seu maior foco é
lançado para o fato de que a democracia é o lugar genuíno do pluralismo.
Exatamente por isso, ela encontra, em algumas das posições de Rorty,
ferramentas sobremaneira úteis, eficientes para a defesa de sua perspectiva
democrática. O combate de Rorty, por exemplo, às formas fundacionistas e
essencialistas de olhar o mundo pode se tornar um excelente aliado quando se
pretende por em xeque alguns conceitos sociológico-políticos tradicionalmente
consagrados – e generalizantes – como os de raça, classe e gênero, que põem
os regimes democráticos frente a importantes questões – causa e efeito de
lutas sociais de grande relevo em todo o mundo democrático – como a das
identidades, dos reconhecimentos, cidadania e direitos humanos.
Para Mouffe, na estrutura da sociedade democrática pluralista “nem o
todo nem os fragmentos possuem qualquer tipo de identidade fixa, anterior à
sua forma de articulação contingente e pragmática” (MOUFFE, 1996, p. 19). A

174
herança universalista e essencialista do Iluminismo236 – bem como suas
expressões, como o conceito de “natureza humana” – são, portanto,
completamente desnecessários à defesa de uma democracia radical237. E
nisso, Mouffe caminha ao lado de Rorty e compartilha muitas de suas
pretensões.
Produzir uma reflexão filosófica apurada sobre a natureza do político,
entretanto, faz muito sentido e é, mesmo, necessário. É esse trabalho que
pode nos fazer compreender o caráter agonístico irredutível do político e,
especialmente, da política democrática. Toda utopia que descreva sociedades
em que a perfeição se efetivaria, entre outras coisas, com a superação dos
conflitos rumo a uma comunidade de paz e harmonia são, em conformidade
com essa sua posição, incompatíveis com a esperança de um mundo mais
democrático, mais justo e mais capaz de reconhecer as pessoas, os grupos e
as lutas que compõem o complexo da sociedade. Precisamente por seu caráter
agonístico e conflituoso, por excelência, falar de democracia radical, para
Mouffe, é também falar de uma democracia nunca plenamente realizada.

3.6 Utopia e retrotopia: Rorty e Bauman, pensar o século XXI

Muitas das questões que se tornaram centrais no pensamento filosófico


de Rorty foram também objeto da escrita sociológica do intelectual polonês-
britânico Zygmunt Bauman. A prática de pensar o seu tempo – o século XX e o
início do século atual – e de utilizar este pensamento para lançar prognósticos
e alertas sobre o futuro, especialmente o futuro nas sociedades ocidentais
democráticas e liberais, tornou-os pensadores cuja leitura complementar238
pode ser de muito esclarecedora.

236
Não se deve, a partir disto, entender o pensamento de Rorty e o de Mouffe como visões
anti-iluministas. Rorty chamava a atenção, especialmente em Justiça como lealdade, para o
fato de que devemos separar o liberalismo iluminista do racionalismo iluminista.
237
É importante frisar que Rorty – bem como os pensadores de tendência pragmatista – não
nega a importância do Iluminismo e de sua herança em sentido lato, estabelecendo um diálogo
importante com a tradição iluminista, mas contrariando-a em alguns aspectos, em especial, a
sua auto-imagem e a centralidade da racionalidade humana como fundamento de todas
realizações relevantes do homem.
238
Provavelmente o mais razoável seja ler Bauman – especialmente os trabalhos que se
estendem a partir de sua fase pós-moderna até seus últimos escritos, como complementar a

175
No início de sua carreira, Bauman exibiu uma marcante tendência à
linha marxista de pensamento sociológico, o que veio a se protrair até o início
da década de 1970. A partir de então, em uma fase conhecida como “pós-
moderna”239, dedicou-se principalmente à crítica da modernidade e enunciou
alguns de seus conceitos-chaves – como o de ambivalência e o de liquidez –,
movimento que o tornaria um autor reconhecido nos círculos intelectuais
contemporâneos e não somente nos departamentos de filosofia e de sociologia
das universidades, mas ante ao público comum, ávido por explicações
racionalizantes da realidade e da dinâmica sociais.
Até esse período, Bauman ainda olhava para o pensamento de Rorty
com reservas. Para ele, Rorty parecia não oferecer nada de novo e tecia, por
fim, um projeto filosófico incompleto. Em Legisladores e intérpretes, de 1987,
Bauman apresenta uma leitura de Rorty como autor que, lamentavelmente, não
conseguia se desvencilhar daquilo que ele mesmo criticava. Essa constatação
o levou a qualificar Rorty como um intelectual legislador, isto é, um pensador
que, em última análise, permanece engajado na tarefa de oferecer respostas
universais a questões perenes da filosofia – mesmo que o negasse
veementemente ou que o fizesse de modo velado.
Em obra mais recente, Modernidade e ambivalência, de 1991, Bauman
mantém ainda essa observação acerca da suposta incompletude das coisas no
pensamento rortyano: é necessário fugir à linguagem da necessidade, da
certeza e da verdade absoluta, que são instrumentos de humilhação do outro –
daqueles que não se enquadram nos padrões estabelecidos por essas
necessidades, certezas e verdades –; deve-se, portanto, assumir a linguagem
da contingência, muito mais propícia à gentileza e generosidade para com esse
outro, como Rorty assevera com veemência; o fato, entretanto, é que a
gentileza não pode ser considerada o final, o ápice, desse processo. Não basta
dividir o espaço e ser gentil com o outro em uma experiência de coexistência

Rorty e não o contrário. Isso porque fica evidente, e, algumas vezes chega a ser textualmente
reconhecida, a grande influência da escrita rortyana sobre o sociólogo polonês-britânico.
239
Bauman foi um escritor muito profícuo. Alguns críticos e comentadores, tomando por base
as temáticas mais discutidas por ele ao longo de sua carreira, agrupam suas obras em três
fases distintas: a) a fase marxista, que se estende até a década de 1970; b) a fase pós-
modernista, a partir da década de 1970, em que ele se dedicou principalmente à análise da
modernidade; c) por fim, a fase mosaica, no final de sua carreira, quando passa a escrever
mais livremente, sobre temas diversos, tornando-se, inclusive, um autor de grande repercussão
editorial.

176
pacífica. O outro precisa ser respeitado em sua alteridade, o outro é objeto de
responsabilidade. E Rorty não chegava, sob a perspectiva baumaniana de
então, a tanto:

Minha ligação com o estranho é revelada como


responsabilidade, não apenas como neutralidade indiferente ou
mesmo aceitação cognitiva da similaridade de condição (e
certamente não através da desdenhosa versão da tolerância:
"Fica-lhe bem ser como é. Que o seja. Só que eu jamais seria
assim."). É revelada, em outras palavras, como comunidade de
destino, não mera semelhança de fado. A uma sina comum
bastaria a tolerância mútua; o destino comum requer
solidariedade. (BAUMAN, 1991, p. 249)

Nesta perspectiva baumaniana, dizer que é necessário ser responsável


pelo outro é o mesmo que dizer que é necessário ser responsável por si
mesmo. Estas seriam apenas duas maneiras diferentes de dizer a mesma
coisa. Ao afirmar que “a uma sina comum bastaria a tolerância mútua; o
destino comum requer solidariedade”, Bauman transparece um claro
desconforto, muito vívido à época, em relação a Rorty, uma desconfiança dos
perigos de uma postura intelectual de defesa da tolerância, sem passar disso,
ou seja, sem elevar-se ao nível de uma real solidariedade: “a solução de Rorty
está apenas na metade do caminho, porque ele se restringe à tolerância
perigosa e ambivalente e é preciso ir mais longe, em direção a (nova)
solidariedade” (KWIEK, 1996, p. 261, tradução nossa)240.
A leitura de Rorty por Bauman, àquele momento, talvez não fosse muito
justa em relação à real semelhança e até complementaridade que havia – e
haveria mais ainda – entre as suas concepções, como veremos à diante.
Em seus escritos posteriores, especialmente aqueles acerca da pós-
modernidade, Bauman passou a executar uma forte aproximação com a
pragmática do discurso de Jürgen Habermas, principalmente no que tange a
seu entusiasmo para com a força do diálogo racional – em oposição à força da
violência – em condições ideias de diálogo. Entretanto, com o transcorrer de
sua produção intelectual, Bauman empreendeu uma nova mudança de

240
No original: “Rorty‟s solution is only half-way because he stays by dangerous and ambivalent
tolerance and one must go further, towards (new) solidarity”.

177
itinerário, por assim dizer, uma virada, passando a tangenciar e a compartilhar
cada vez mais da perspectiva rortyana, em detrimento da habermasiana.
A despeito da admiração intelectual declaradamente assumida por
Bauman para com Rorty, a partir de então, essa aproximação teórica
despertou, também, como é natural, uma série de choques e de críticas
importantes. O que se ocorreria a partir desta maior aproximação, por
conseguinte, seria uma espécie de recepção crítica de muitos aspectos do
pensamento rortyano por parte de sociólogo e filósofo polonês.
Assim, alguns aspectos da perspectiva neopragmatista, em especial,
foram decisivos para essa virada rortyana, encenada por Bauman, em desfavor
da linha mais habermasiana: o antiuniversalismo radical e o papel da
consciência da contingência, pontos fulcrais da postura intelectual rortyana,
são, de longe, muito mais coerentes com a escrita baumaniana, se comparado
ao anseio por universalidade, subjacente e necessário à ideia de agir
comunicativo de Habermas.
Além disso, a retórica de Bauman tende a dar uma relevância muito
grande a outras formas de expressão e saber, diferentes da Sociologia
acadêmica e, muitas vezes, separada desta, empreendendo aproximações
importantes com textos advindos de áreas como a Literatura, a Psicologia, a
Antropologia e a Filosofia, fato em que, novamente, aproxima-se da forma
eclética do pensamento rortyano241. Bauman, para quem Rorty se mostra agora
“a mais radical de todas as possíveis respostas à condição da pós-
modernidade” (BAUMAN, 2010, p. 267), identifica-se de forma marcante com o
contextualismo242 rortyano e a ideia de que no mundo-linguagem não pode
haver modelo de comunicação ideal e universalizável, mas podemos
estabelecer comunidades de conversação e estender o diálogo a um número
cada vez mais amplo de pessoas, sem recorrer a quaisquer espécies de
ganchos celestes243, ou sem promessa de validez universal da verdade.

241
Cf. ALMEIDA, Felipe. Bauman entre Habermas e Richard Rorty: interpretações. In: Impulso.
n. 64. v. 25, 2015, p. 54.
242
Expressão utilizada por Habermas para se referir ao pensamento de Rorty. Segundo
Carvalho Filho, o cerne do contextualismo rortyano é tentar “propor a sério a sugestão de que
não há, em qualquer sentido relevante, uma capacidade prévia universalmente compartilhada
capaz de reconhecer normas universais, dar-se normas universais, e nem mesmo discernir leis
universais no território da natureza” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 122).
243
Carvalho Filho, descrevendo as condições de construção de uma cultura pós-filosófica,
afirma que ela dependerá “de uma escolha pela auto-imagem segunda o qual estamos sós,

178
Assim, agora já em desacordo radical com o pensamento neoiluminista
habermasiano244, Bauman defende a ideia de que até mesmo um conceito
unívoco de verdade pode – e deve – ser posto de lado. Não há, portanto,
necessidade alguma de se tomar como ponto de partida uma concepção,
qualquer que seja, de verdade unívoca e universalizante. Para ele, em
consonância com William James – antes de Rorty – podemos apenas adotar
uma ideia deflacionada de verdade, como aquilo que endossamos, ou aquelas
crenças que partilhamos245. A verdade, para uma comunidade, está associada
à atitude adotada por ela em torno de uma crença compartilhada, aceita com
confiança e segurança, e da relação com o complexo de outras crenças
igualmente aceitas. O conceito de comunidade, para Bauman, já indica isso: a
comunidade se estabelece pela mesmidade interna, ou pelo entendimento
compartilhado tácito246.
A disputa sobre a verdade, por conseguinte, para Bauman, é sempre a
expressão de uma disputa de poder, é, em síntese, invariavelmente, o meio de
descobrir quem deverá ter a autoridade de falar enquanto os outros se
calam247, ou quem deverá ter o direito de decidir quais são as ideias e
comportamentos que todos os demais deverão adotar como normais e também
quais aquelas ideias e condutas que deverão ser tidas como desviantes,
imorais, ou inaceitáveis.
Assim, quando Bauman (1998, p. 143) se pergunta para quê se
precisaria de uma teoria da verdade, a resposta surge na seguinte linha de
pensamento:

Necessita-se de uma teoria da verdade em uma ou duas


situações: ou as posições de diversos participantes ativos,

finitos, não dispomos de Deus, nem da Verdade. (...) Teremos apenas a nós mesmos e nossos
jogos culturais” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 130).
244
O pensamento neoilumista de Habermas objetiva fazer a defesa do esclarecimento, ou da
modernidade – para ele, um projeto inacabado –, que ainda não cessou de gerar todos os
frutos que lhe são potenciais, ao tempo que sofre os ataques daqueles que lhe apregoam sua
decadência, os pensadores pós-modernistas, críticos radicais da racionalidade, dentre eles, o
próprio Rorty.
245
Rorty adota algumas funções para o conceito de verdade além da função de endosso. Para
Bauman, entretanto, a maior dentre todas essas funções é mesmo essa, a qual ele também
chamou função de controvérsia.
246
Cf. BAUMAN. Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, p. 15 e
seguintes.
247
Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia
Mertinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 143.

179
supostos ou potenciais do debate são desiguais e sua
desigualdade tem de ser justificada a fim de ser defendida e
preservada, ou a dominação deve ainda ser estabelecida e a
competência de determinados agentes que no momento
afirmam falar com autoridade tem de ser, para esse objetivo,
contestada e desacreditada. (BAUMAN, 1998, p. 143)

Desse modo, a necessidade de uma teoria da verdade denota um


alinhamento com toda a tradição platônico-cartesiano-kantiana248,
veementemente questionada, antes por autores como Nietzsche, e depois por
Rorty. A ânsia de descobrir ou chegar a uma Verdade universal – ou
universalizável – é a repetição da fábula da República, em que uma
personagem diferenciada, especial, consegue, a muito custo, libertar-se das
ingenuidades das impressões, e das limitações intelectuais e sensoriais a ela
associadas, e ascender à contemplação das formas ideias, das verdades
transcendentes, iluminando-se e passando a arcar com o ônus de iluminar o
maior número possível de pessoas. As teorias da verdade expressam, em
círculos, sempre esse mesmo roteiro, impregnado de luta de poder:

Toda teoria da verdade segue o modelo de Platão, em ser uma


teoria sobre por que e como os poucos escolhidos conseguem
emergir da caverna e enxergar as coisas como elas
verdadeiramente são, mas também, e talvez acima de tudo,
uma teoria sobre por que todos os outros não conseguem fazer
o mesmo sem serem guiados e por que tendem a resistir à
direção e permanecer dentro da caverna, em vez de explorar o
que é visível somente à luz do sol, no lado de fora. (BAUMAN,
1998, p. 144)

Tal ponto de partida, mesmo em suas diversas facetas possíveis, terá


sempre o resultado da necessidade de um saber especial – e especializado –
que localiza, desmascara e denuncia os conhecimentos e práticas que se
restringem à mera opinião. À Filosofia e aos filósofos tem sido atribuída essa
obrigação – uma espécie de direito-dever – há séculos. Por isso, negar a
necessidade de uma teoria da verdade, ou mesmo do anseio pela verdade
universalizável, também modifica muito a maneira como se deve olhar para a
ciência, o saber em sentido lato, e para a filosofia, em específico.
248
Bauman afirmou que se houver alguma verdade na famosa máxima de Whitehead segundo
a qual toda a história do pensamento filosófico tem sido como uma série de notas de rodapé a
Platão, este o sentido está justamente no fato de que muito se buscou, até hoje, encontrar a
Verdade, do mesmo modo prenunciado pela famosa alegoria da caverna.

180
Desse modo, para Bauman, podemos sim escapar a esse modo de
pensar, que parte de uma determinada teoria da verdade. O contextualismo
seria tudo aquilo de que precisamos. Em decorrência, desprender tempo e
energia na busca de uma estratégia ou um método de construção de verdades
universais – ou mesmo universalizantes – não deve ser o papel do intelectual
em um mundo infinitamente plural e extremamente dinâmico e polifônico, ou,
utilizando o vocabulário baumaniano, um mundo e um tempo líquidos.
Na perspectiva de Bauman249, o entusiasmo pelo consenso (na
comunicação como na vida social em geral) não deveria angariar tantos
adeptos entusiasmados. O consenso não deve jamais ser a meta em uma
sociedade plural, pois ele é, em última análise, excludente e incapacitante. O
dissenso, isso sim, é expressão de liberdade e vida, ao passo que, se formos
capazes de pensar em uma sociedade plenamente consensual, podemos
facilmente imaginá-la imersa em uma paz dos cemitérios.
Tal anseio por consenso seria, também, uma espécie de anseio por
pureza. E tal ideal de pureza, que acompanha o homem desde muito tempo,
tem resultado, ao longo da história, em inumeráveis catástrofes e mazelas das
mais sangrentas e lamentáveis250. Atrelado a este ideal de pureza, o papel do
intelectual na sociedade moderna, especialmente o papel do filósofo, esteve
sempre associado, como se disse há pouco, à purificação dos erros e
ingenuidades do senso comum, em busca da verdade pura. Por esta óptica, a
vida prática, cotidiana, das pessoas comuns parece estar sempre desvinculada
de qualquer significação filosófica, e parece se comportar como um espaço
vazio de significados que espera pela atuação do intelectual para lhe imprimir
um sentido. Bauman (1998, p. 109), assim como Rorty, refutava com
veemência essa visão bifurcada e simplista de separar vida e significado:

249
Cf. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. 1998, p. 249.
250
Para se referir ao perigo do sonho da pureza, Bauman (1998, p. 13), citando a escritora
americana Cynthia Ozick, lembra-nos que a solução final alemã pode ser entendida
exatamente como uma expressão do sonho da pureza. O holocausto teria sido como uma
limpeza, uma solução estética, a eliminação do que não se considerava harmonioso,
adequado. Do mesmo modo que nos lembrou Michel Foucault em relação ao procedimento
adotado para com os loucos no início da Modernidade, lançando-os ao mar, para que não
continuassem representando a desordem, o caos e a doença. Do mesmo modo, a sociedade
contemporânea tende a criar seus mecanismos de proteção em relação ao pária, ao estranho,
ao estrangeiro, ao desempregado, etc.

181
É de trivial evidência, hoje, que a experiência comum não seja
absolutamente como a filosofia moderna (e a sociologia, para
essa questão) a pintava: nem o vazio que espera ser
preenchido com o significado, nem o plasma informe a que
profissionais devem dar configuração, equipados de perícia
hermenêutica. Em vez disso, essa experiência é desde o
princípio significativa, interpretada, compreendida pelos
impregnados dela - essa significação, interpretação e
compreensão é seu modo de ser.

Essa forma ascética de pensar, em que a razão filosófica tinha a


atribuição-obrigação de legislar acerca da verdade – o poder-dever de decidir
quais as ideias que precisam ser consideradas e quais precisam ser
descartadas para que o mundo e o homem façam sentido – seria abandonada
e combatida tanto por Rorty como por Bauman, que vêem – cada um a seu
modo – a ficção artística como ferramenta adequadíssima à propositura do
novo. Bauman o expõe, evidenciando a capacidade da ficção artística de atuar
como uma “irônica e irreverente contracultura à cultura tecnológico-científica da
modernidade, essa cultura de paixão ordenada, divisões nítidas e disciplina
retesada” (BAUMAN, 1998, p. 150). Enquanto Rorty lhe atribuía um
importantíssimo papel em sua sociedade idealmente liberal: é da ficção
artística – especialmente da literatura, e, mais especificamente, do romance –
que brotarão sempre as novas metáforas, que resultarão em novos
vocabulários, e que desembocarão em maneiras renovadas de pensar e de
viver.
Como dedicar-se a pensar o futuro foi um traço marcante tanto no
trabalho de Rorty quanto no de Bauman, ambos, no ocaso de sua produção
intelectual, voltaram-se, cada um à sua maneira, à discussão da utopia. Em
seu último trabalho, publicado postumamente251, Bauman direciona seu olhar
para esta temática, apresentando – como contraste às ideias mais correntes de
utopia e distopia – um conceito novo, que à sua perspectiva é muito afeto à
sociedade líquida, o de retrotopia.
Para Bauman, vivemos uma epidemia global de nostalgia. As
inseguranças e incertezas do futuro, que sempre foram o ambiente propício ao
nascimento das utopias, têm ocasionado hoje um movimento de retorno, um

251
Retrotopia foi lançado no final do ano de 2017, mesmo ano do falecimento do autor, que
ocorrera em Janeiro.

182
espírito nostálgico. O século XX, em especial, teria começado como uma utopia
futurista e terminado como nostalgia. A retrotopia é a expressão social desse
espírito nostálgico, que se apresenta sob a forma de “visões instaladas num
passado perdido/roubado/abandonado, mas que não morreu, em vez de se
ligarem a um futuro „ainda todavia por nascer‟ e, por isso, inexistente”
(BAUMAN, 2017, p. 10). Assim, há uma forte tendência à supervalorização de
uma idealizada segurança, estabilidade, pureza ou felicidade – supostamente –
deixada para trás, perdida, em virtude das transformações que foram, gradual
ou radicalmente, introduzidas na sociedade.
Evidentemente, tal entusiasmo pela possibilidade idealizada de retorno
aos valores e às circunstâncias do passado distante só pode tomar como
referência um tempo guardado na memória afetiva, impreciso e sujeito a
diferentes interpretações. Isso porque não vemos o passado de modo
plenamente claro e objetivo, vemo-lo do modo como ele se parece para nós,
em geral, anuviado pela afetividade e pela distância.
Bauman via este apego à nostalgia como uma espécie de segundo grau
de negação da utopia. Assim, a retrotopia nega a negação da utopia. Para
tanto, ela se expressa, em geral, por meio de algumas tendências notáveis de
movimentos sociais simultâneas de retorno a valores antigos. Bauman discutiu
essas tendências, observando seus comportamentos típicos e suas
implicações nas dinâmicas da sociedade líquida. Elas são, a saber, quatro
espécies de tendências, que ocorrem de forma simultânea e integrada, a que
ele denomina: 1. de volta a Hobbes; 2. de volta às tribos; 3. de volta às
desigualdades; 4. de volta ao útero.
Bauman considera ter havido uma importante e decisiva cisão na
sociedade líquida, um radical afastamento entre poder e política. Para ele, o
poder se encontra hoje cada vez mais capilarizado e descentralizado em
relação ao Estado, que se vê diante de grandes transformações da arena
pública. Precisamente por isso, vê-se esvaziado de muitas das suas antigas
prerrogativas e impossibilitado de cumprir boa parte das atribuições que lhe
são tradicionalmente vinculadas. O Leviatã tem se tornado, portanto, objeto de
desconfiança, e tem sido visto, relativamente a várias de suas obrigações,
como insolvente. Desse modo, muitos aspectos da sociedade contemporânea
lembram um cenário pré-hobbesiano, um ambiente de laços humanos

183
enfraquecidos, pessoas afetadas pela ansiedade da impotência, coabitação de
inúmeros pequenos Leviatãs, e a sensação de que todos são dignos de
desconfiança e de que o Estado não é eficiente ou suficiente para arbitrar – ou,
muito menos, evitar ou contornar – uma guerra de todos contra todos.
Em vista disso – como uma reação a essa inépcia do Estado em gerir os
anseios e conflitos com as feições que se lhe apresentam hoje –, percebe-se
um recrudescimento da mentalidade tribal. Imersos nas mais diversas tribos, os
indivíduos se acomodam e buscam criar suas identidades e lealdades.
Definindo a quem (sejam ideias, pessoas ou outras tribos) devem ser
opositores – a quem devem confrontar, se necessário, ao custo da própria vida
– definem-se a si mesmos: dizer quem são “eles” é a única forma de dizer
quem somos “nós”. Desse modo, faz-se extremamente necessário existir uma
posição contrária, um inimigo comum, real ou imaginário. Sentimentos
marcantemente neoconservadores, como o nacionalismo, a xenofobia, o
moralismo, o fundamentalismo religioso e a emocionalidade são combustíveis
eficientes para atitudes de confrontação ideológica, política e, muitas vezes, até
para enfrentamentos pela violência física.
Fato curioso é que, para ser aceito em um “nós”, sentir-se parte de
alguma coisa, irmanado por algum valor ou causa, muitos indivíduos, em
sociedades democráticas, ajudam a eleger candidatos eminentemente
contrários à democracia e que, muitas vezes, apresentam propostas
frontalmente aversas aos seus interesses individuais. Evidentemente, esse
painel descrito por Bauman, é um solo mais que fértil para o surgimento de
líderes políticos carismáticos que representem tais sentimentos e tendências
neoconservadoras. Assim, muitos “políticos do ódio” estão sendo e ainda
serão, por muito tempo, eleitos no mundo inteiro. Rorty tem diagnóstico
semelhante a esse: várias foram as oportunidades em que se referiu
explicitamente à tendência de que os discursos de ódio viessem a assumir um
protagonismo em relação à linguagem dos direitos humanos ou da
solidariedade.
Pari passu, objetivar o combate à miséria e à desigualdade social
parece, cada vez mais, uma ideia totalmente desvinculada do papel do Estado.
Ao tempo que a carência de bens sociais e de condições dignas de vida por
parte de uma quantidade gigantesca de indivíduos se reverte, ainda mais, em

184
combustível para dissensos e embates de todas as formas. E os mais
abastados passam a buscar maneiras de viver separados dos mais pobres, em
uma espécie de “comunidade murada móvel”.
Bauman avaliava, ainda, que faz cada vez mais sentido se falar em fim
das esperanças, desde que se esteja referindo às esperanças sociais, aos
grandes anseios e sonhos coletivos. As esperanças pessoais, por sua vez,
seguem firmes, movidas por um contexto social extremamente – e
crescentemente – individualista. Assim, objetivar ações cujo fim imaginado seja
o de tornar o mundo um lugar mais habitável – livre, igual, democrático, ou
coisa que o valha – parecem, cada vez mais, injustificáveis ou mesmo
inaceitáveis. O aprimoramento do eu, a exacerbação do individualismo – que
transparece em tendências como o “faça você mesmo” – e as relações
meramente virtuais, tornam-se a marca distintiva na contemporaneidade.
Esse apego à individualidade – ou, mais acertadamente, ao
individualismo – , marca indelével da sociedade líquida, pode ser visto também
como um ponto crucial de análise do pensamento rortyano, pretensamente
voltado para a solidariedade ao mesmo tempo que se assenta – às vezes de
modo mais consciente e às vezes de modo mais velado – em pressupostos
individualistas. É o que veremos, com maior detalhamento, na seção a seguir.

3.7 Individualismo e solidariedade na retórica rortyana

Uma das questões mais sensíveis na retórica política de Rorty é sua


radical disjunção entre público e privado252, a qual dedicou muitos textos, e, em
especial, parte importante de sua autobiografia poética, Trotsky e as orquídeas
selvagens. Esse ponto – e as decorrências teóricas de tal perspectiva –,
inclusive, tem sido um dos mais objetados por seus debatedores. Correlata a
252
Para Rorty, público e privado devem ser entendidos como dimensões da vida separadas,
que os filósofos desde há muito tempo – especialmente Platão e os platônicos, incluindo os
cristãos – tentam inutilmente confundir e misturar. Araújo afirma, em análise dessa temática,
que “a fusão de público e privado é para Rorty mero produto da obsessão filosófica de impor
unívoca e conclusiva normatividade para a conduta humana” (ARAÚJO, 2016, p. 79). Rorty
buscava evidenciar a incomensurabilidade dessas duas dimensões da vida – associando a
cada uma delas uma plêiade de autores importantes por servirem de inspiração e linguagem
para a auto-realização individual ou para o compromisso comunitário – e também mostrar que
elas não precisam ser unificadas, mas apenas acomodadas, na figura típica do liberal ironista.

185
isso, a questão da autocriação privada tomou uma dimensão enorme no seu
discurso, e, com ela, a perspectiva da individualidade e do individualismo, ante
a política liberal.
Carvalho Filho, considerando que há na sociedade moderna um
paradigma marcante individualista253 e objetivando propor um solidarismo
universal254, vê, em Rorty, uma tentativa frustrada de comunitarismo, em que o
conceito de solidariedade não é suficiente para desbancar o viés individualista
subjacente à sua retórica política – terminando por reforçar e revigorar o
paradigma que pretende combater – e o considera como "a expressão mais
bem acabada de individualismo”. Entretanto, todo vocabulário político assumido
por Rorty – a partir de redescrições, revalorações e apropriações diversas de
termos inusitados – e a defesa de uma utopia marcada pela solidariedade e
justiça social funcionam como uma cortina de fumaça, fazendo parecer que há
em sua retórica um forte e genuíno combate ao individualismo.
Evidentemente, não haveria nenhum problema em construir um
pensamento ético com base no individualismo, como já o fizeram inúmeros
filósofos, consciente e propositadamente ou não. O problema aqui se dá
porque a defesa do individualismo está imiscuída no contexto de uma
concepção utópica de política comprometida com a solidariedade e a justiça
social. Como é de se esperar, um desses aspectos haverá de se impor e
sobressair em relação ao outro: ou o individualismo – e a liberdade da
autocriação privada que lhe é correlata – ou a solidariedade social – que se
afina melhor com uma concepção mais comunitarista que individualista –
assumirá o protagonismo, relegando o outro elemento da retórica rortyana a
um segundo plano.
Para Carvalho Filho, a despeito de Rorty fazer uso corrente de uma
linguagem e de metáforas que se referem a uma utopia de solidariedade,
observando-se com a devida atenção, o que encontraremos, às vezes de forma
sub-reptícia e outras vezes de forma indisfarçada, é mesmo uma contundente e
eficaz defesa do individualismo.

253
O que afeta toda a sua auto-imagem, tornando-se como uma espécie de “senso comum”, ou
um background quase unânime, entre as pessoas que se dedicam a pensá-la.
254
Cf. CARVALHO FILHO, Aldir Araújo. Individualismo solidário: uma redescrição da
filosofia política de Richard Rorty. 2006. 470 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 26.

186
Os compromissos – conscientes ou não – de Rorty para com o
individualismo assumem, em dissonância com sua firmeza anti-essencialista,
aspecto de um fundamento ou de um dogma a que ele segue incontinenti,
advindo da disjunção público-privado, e constituindo um ponto prioritário255 em
seu pensamento político:

Cumpre forjar individualidades cujo espaço privado deve ser


preservado a qualquer custo. O que equivale a dizer que as
individualidades têm que ser individualistas, isoladas do todo
no sentido mais decisivo: naquele que se refere à sua própria
vida “privada”. Individualidades que, não obstante isso, em seu
“momento público” (até) podem participar do esforço em
promover a “solidariedade”. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 143)

Em uma síntese, Rorty preocupa-se em desenvolver uma ideia de ética


para a vida privada – cujo fim é a autocriação privada, o que está vinculado ao
conceito de ironismo – e uma ideia de política para a vida pública – sociedade
utopicamente liberal-democrática. E essas duas coisas só se coadunam, para
ele, na figura do „ironista liberal‟, o que também sintetiza antifundacionismo e
esperança social. Nessa equação, a solidariedade entra tão somente como um
aditivo. Para Carvalho Filho, essa síntese – ao modo como Rorty a formulou –
garante uma fuga à tendência de opor público e privado, e transparece a
sofisticação de uma superação de dicotomias. Mas esta superação é apenas
aparente, e, no final, é o individualismo – escondido sob a capa da liberdade –
que prevalece, em detrimento de qualquer aspecto de coletivismo.
Assim, temos que entre liberdade e solidariedade, em Rorty, não
existem dúvidas: a liberdade é uma exigência, a solidariedade, uma opção
preferencial se comparada à crueldade ou ao descaso, mas, em hipótese
alguma, uma obrigação moral aos moldes do que se costuma entender por
essa expressão256. O resultado dessa tentativa de síntese é, na verdade, uma

255
Para Carvalho Filho, há, de fato, em Rorty – mesmo que ele tente, a todo custo, impedir que
isso seja evidente em sua retórica – uma espécie de precedência política do indivíduo: “do
ponto de vista da hierarquia dos objetivos sociais, a socialização é apenas um meio para o fim
desejado, a saber, a individuação bem-sucedida” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 158-159).
256
Em geral, entende-se, muito graças à cultura cristã e à kantiana, a expressão obrigação
moral pelo viés essencialista e universalista. Em Rorty, por outro lado, ela só pode ser utilizada
em sua configuração contingente e historicista, como algo que é resultante de um
pertencimento a uma comunidade específica. Não faria sentido, pois, atrelar a tal conceito a
ideia de que haja pessoas “desumanas”, por não cumprirem com sua obrigação moral, de
solidariedade, por exemplo, para com outros seres humanos em uma dada situação histórica.

187
apenas convivência de duas dimensões da vida, dois espaços que apenas se
entrecruzam:

No espaço privado, todo mundo tem o direito à busca livre por


seus próprios valores, idéias e escolhas, em termos de
autenticidade, originalidade, pureza etc.; no espaço público,
deve-se praticar “liberalmente” a solidariedade: evitar toda ação
cruel e danosa aos outros. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 151)

Quando se faz, pois, o apanhado do que está posto na utopia rortyana,


tem-se a inegável precedência política do indivíduo, expressa, por exemplo, em
coisas como “o modelo de educação liberal, o modo de funcionamento das
instituições democráticas, o apreço pelo capitalismo e a fé no american way of
life” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 159). Sua utopia é, ao fim e ao cabo, apenas a
defesa da ideologia individualista hegemônica há muito tempo, na medida em
que engendra associar uma solidariedade a ser ampliada no futuro e um
individualismo a ser afirmado no presente257.
Por conseguinte, uma solidariedade utópica aos moldes de Rorty não
teria chances de ser, de fato, solidariedade, mas tão somente, a solidariedade
possível, resultante do que escapa aos desejos e ideais idiossincráticos, ou da
liberdade, das pessoas:

Escolher o individualismo sob o pretexto de escolher “a


liberdade” é apenas fazer a escolha por uma sociabilidade
sofrível, encolhida, e, de fato, não-solidária. A tentativa rortyana
de promover a solidariedade, ao circunscrever as preferências
e escolhas individuais à dimensão privada, pressuposto que na
dimensão pública tais escolhas não causem qualquer dor ou
sofrimento aos outros, não tem nenhuma chance de funcionar.
(CARVALHO FILHO, 2006, p. 189-190)

O que se poderia esperar dos indivíduos livres, desobrigados a ser


solidários, em uma sociedade liberal, de fato, não é a solidariedade. O
liberalismo, de um modo ou de outro, é muito mais condizente com o espírito
de competição e de individuação258 que com o de solidariedade e/ou justiça

257
Cf. CARVALHO FILHO, Aldir Araújo. Auto-edificação idiossincrática como modelo liberal-
burguês de educação. In: Redescrições, n. 1, 2009, p. 10.
258
A ética rortyana gravita em torno à ideia de auto-criação privada. Para Rorty, em
conseguinte – e em total consonância com sua perspectiva do pensamento filosófico de
Nietzsche – não há maior fracasso possível à vida de uma pessoa que ela não lograr “tornar-se

188
social. Ao modo de Rorty, mais ainda, uma vez que a atitude pública das
pessoas deve advir de suas deliberações privadas.
Por essa leitura, a sociedade utopicamente liberal de Rorty se assenta
numa tentativa arrojada de fazer convergir duas vias não convergentes, o
individualismo e o solidarismo. Para tanto, tal utopia desenharia os contornos
de “uma sociedade de individualistas solidários em seu individualismo, isto é,
uma sociedade cujo foco é a manutenção (e até ampliação) do isolamento dos
indivíduos em suas esferas privadas” (CARVALHO FILHO, 2006, p 355).
A despeito de favorecer o individualismo, Rorty apresenta uma maneira
de reorientar a discussão ética e política para um campo antiuniversalista e
uma tentativa de suscitar meios para a melhoria das relações humanas e para
a defesa da solidariedade como um valor construído pelos homens em sua vida
comunitária, ainda que, mais uma vez, tais defesas não alcancem o patamar
mais desejável do combate real a um dos valores mais arraigados na tradição
da cultura ocidental, o individualismo.
Reafirmamos, pois, que Rorty tem o inegável mérito de não suscitar
apenas uma maneira, mas de ter se tornado a voz originalmente oportuna e
contundente de que dispomos hoje para a sustentação ideológica de uma
solidariedade social – mesmo que no viés do individualismo solidário – e que,
inegavelmente, parece ser a via mais promissora ao combate do
individualismo-egoísmo, tão flagrante e nocivo quanto marcante no mundo
contemporâneo.

3.8 Literatura, força e persuasão na sociedade pós-filosófica

Rorty desenvolveu um complexo de ideias que dialogam coerentemente


entre si, estabelecendo, com perspicácia e clareza, as premissas que o
levaram a culminar o seu pensamento com a concepção política de uma
sociedade ideal liberal e democrática. Entretanto, algumas questões
importantes suscitaram, a seus leitores mais atentos, importantes dúvidas e

quem é”, isto é, não pode haver maior erro para consigo mesmo que se tornar apenas a
imitação de outra(s) pessoa(s). No mesmo sentido, a teoria da crítica literária de Bloom,
associa o fracasso à incapacidade de uma criação artística genuína. Fracassar seria “não
criar”, copiar, reduzir-se a dizer apenas aquilo que já fora dito antes.

189
controvérsias: as conclusões a que ele chegou e que definem, em síntese, a
sua utopia são, de fato, uma decorrência lógica dessas premissas
estabelecidas? A sua utopia pode ser apresentada como algo plausível para
cumprir o papel um ideal a se perseguir? Há contradições internas no
pensamento de Rorty que possam minar a sua prescrição de uma sociedade
idealmente liberal? Tais questões foram levantadas e discutidas, como já se
disse ao longo deste capítulo, inclusive por ele mesmo, mas também por vários
de seus interlocutores.
Um ponto fulcral, indicado por muitos dos críticos da filosofia rortyana,
diz respeito ao fato de que Rorty, objetivando ser fiel ao seu antifundacionismo
radical, impõe tanto ao sermão como ao tratado259 um papel de somenos
importância em sua sociedade utópica. Para ele, a Teologia e a Filosofia
representam as bases de sustentação de estruturas de pensamento
predominantes em outros tempos, que não mais satisfazem às necessidades
correntes. Elas são como ferramentas que já foram muito usadas – e que foram
de extrema utilidade em contextos sociais pretéritos –, mas que precisam ser
substituídas por outras mais adequadas aos problemas da contemporaneidade,
com o surgimento de uma cultura pós-filosófica260.
Rorty enuncia, principalmente, o romance261 – como forma
paradigmática de expressão da narrativa, da imaginação e da sensibilidade –
como uma ferramenta muito mais adequada a suscitar as reflexões aptas a
enfrentar os problemas atuais. Nesse sentido, a literatura assumiria um papel
relevantíssimo em uma sociedade idealmente liberal e democrática: ela seria o
principal veio de educação dos sentimentos das pessoas tanto para se
tornarem, cada vez mais ironistas, como para se tornarem, cada vez mais,

259
Na perspectiva rortyana, a partir do século XVII houve um grande redirecionamento em
relação ao que a cultura ocidental chamava divindade: o amor a Deus foi sendo substituído
pelo amor à Verdade, o que ocasionaria uma verdadeira deificação da ciência. Apenas após
isso, e muito lentamente, as pessoas foram percebendo que a verdade é criada e não
descoberta.
260
Explanando as características do fazer filosófico pragmatista, Carvalho Filho assevera que
“os pragmatistas não temem que a perda da filosofia seja um problema, ao contrário. Uma
cultura pós-filosófica será melhor, assim como o é uma cultura pós-teológica” (CARVALHO
FILHO, 2006, p. 127).
261
Em muitos pontos, Rorty transparecia que o romance é o modo maior da imaginação
literária, maior expressão da liberdade criativa no texto literário. Acerca disto, citava Milan
Kundera – inclusive, na epígrafe de Contingência, ironia e solidariedade – e a sua análise da
importância e representatividade do romance na cultura ocidental, para quem a linguagem do
romance é aberta, uma vez que “no território do romance, não se afirma: é o território do jogo e
das hipóteses” (KUNDERA, 1988, p. 72).

190
solidários, uma vez que este é um objetivo possível de se atingir mais pela
imaginação que pela investigação262.
O trabalho do filósofo é revirar as perspectivas, justapor e contrapor os
vocabulários, contribuir para uma modelagem renovada das crenças e desejos
das pessoas e dos grupos sociais. Araújo (2016, p. 58), ilustrando a visão de
Rorty acerca dessa maneira nova de ver o trabalho da filosofia, que utiliza
como matérias primas a metáfora e o vocabulário, afirma que:

Colocá-los frente a frente, compará-los, misturá-los, prever


possíveis resultados a partir de possíveis combinações,
orientando-se na contínua ampliação dos espaços lógicos,
seriam o escopo da tarefa positiva da filosofia hoje.

Ampliando a ideia, Ghiraldelli Júnior assevera que as transformações


ocorridas na história não apenas da filosofia, mas também da ciência e da
política, para Rorty, são, ao cabo, nada mais que o resultado da dialética das
linguagens, ou de uma contínua troca de vocabulários263. Segundo ele, Rorty
vê:

(...) as linguagens como formas de vida que se desenvolvem,


formas de vida que tanto lutam umas com as outras como
colaboram entre si, e que também desaparecem, e isso tudo
sem qualquer teleologia. (GHIRALDELLI Jr., 1999, p. 51-52)

Exatamente em decorrência dessa reorientação de valores, correlata à


dinâmica dos vocabulários, os heróis ou os atores centrais de uma sociedade
idealmente liberal, como a por Rorty imaginada e desejada, não são os
teólogos, nem os cientistas, nem os filósofos – muito embora nada impeça que
um determinado teólogo ou um cientista ou um filósofo também o seja, em
função da maneira como pensa e realiza o seu trabalho –, mas o poeta forte e
o revolucionário utópico, isto é, aqueles capazes de suscitar as novas
metáforas, criando novos espaços lógicos.
São, portanto, o poeta forte e o revolucionário utópico os responsáveis
por cuidar para que a sociedade permaneça alerta e jamais esqueça dos seus
valores mais imprescindíveis, mantendo-se aberta o suficiente para que novas
262
Cf. RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade, p. 18.
263
Cf. GHIRALDELLI Jr., Paulo. Richard Rorty: a filosofia do novo mundo em busca de
mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999, p.51.

191
metáforas possam sempre ser construídas e novas utopias possam sempre ser
gestadas. Nesse sentido, Judt (2011, p. 169) é perspicaz em fazer um
diagnóstico do que necessitamos:

Precisamos de razões para escolher uma política em


detrimento de outra. O que nos falta é uma narrativa moral: um
relato coerente que confere a nossas ações um propósito que
as transcende.

Tal necessidade ocorre porque em uma sociedade pós-filosófica ou em


uma cultura ironista, eminentemente anti-essencialista, é a narrativa que terá a
função de construir os valores sociais importes para estruturar o cimento
necessário à manutenção da sociedade, a saber, os vocabulários e as
esperanças sociais compartilhados. Rorty (1989, p. 94) o esclareceu:

Within an ironist culture (...) it is the disciplines which specialize


in thick description of the private and idiosyncratic which are
assigned this job. In particular, novels and ethnographies which
sensitize one to the pain of those who do not speak our
language must do the job which demonstrations of a common
human nature were supposed to do. (RORTY, 1989, p. 94)264

Uma cultura pós-religiosa e pós-filosófica, como a que Rorty pretende,


precisa escapar às justificações ou fundamentações transcendentes e aos
anseios de redenção advinda de qualquer além. Desse modo, uma linha
evolutiva de expectativas de redenção do homem na cultura ocidental poderia
ser traçada da religião até a literatura, e ela passaria pela filosofia:

A religião monoteísta oferece uma esperança de redenção


através do estabelecimento de uma relação com uma pessoa
não humana extremamente poderosa. (...) A redenção pela
filosofia consistiria em adquirir um conjunto de crenças que
representem as coisas da única maneira como elas realmente
são. A literatura, enfim, oferece a redenção ao se travar
conhecimento com uma variedade de seres humanos tão
grande quanto possível. (RORTY, 2009, p. 158)

264
Na edição lusitana: “Numa cultura ironista (...) é às disciplinas que se especializam na
descrição densa do privado e do idiossincrático que se atribui essa função. Em particular os
romances e as obras etnográficas, que sensibilizam para a dor dos que não falam a nossa
linguagem, têm de desempenhar a função que se pretendia que as demonstrações de uma
natureza humana comum desempenhassem.” (RORTY, 1994, p. 23).

192
Carvalho Filho (2009b, p. 3), explica essa linha evolutiva, de forma muito
clara e sucinta, nos seguintes termos:

A religião é a tentativa de relação não cognitiva com um ser


não-humano – Deus. A filosofia é a tentativa de relação
cognitiva com um ser não-humano – a realidade “tal qual ela é”.
A literatura e cultura literária significam a tentativa de uma
relação não-cognitiva com seres humanos. Essa relação
“literária” significa a aceitação da mediação de artefatos
culturais entre os homens, pelos quais eles se dão mutuamente
propósitos e promovem a satisfação de suas necessidades.

A literatura se diferencia, pois, tanto da religião como da filosofia. Sua


relação humana típica é do tipo não-cognitiva e parte do homem direcionando-
se também ao homem, do eu para o outro. A literatura, bem como os artefatos
que a circundam, são criações eminentemente humanas. E é a partir da
imaginação, incrementada com a experiência do contato com a maior
variedade possível de seres humanos e da sensibilização para com as dores
das outras pessoas diferentes de nós que se torna possível uma redenção pela
literatura:

Quanto mais livros nós lemos, mais maneiras de ser humano


levamos em consideração, mais humanos nos tornamos – e
quanto menos tentados por sonhos de uma fuga do tempo e do
acaso, mais convencidos de que não podemos contar com
nada a não ser uns com os outros. (RORTY, 2009, p. 164)

Entretanto, a ideia de concentrar tamanha responsabilidade na literatura


e esperar que ela seja capaz de responder a esse chamamento, satisfazendo a
todas aquelas expectativas que foram nela depositadas, talvez seja um
excesso de otimismo por parte de Rorty. Ou, o que seria bem pior, uma aposta
ingênua. A literatura pode ter o poder transformador que Rorty lhe atribuía?
Experimentar o sofrimento do outro, através do texto literário e da imaginação,
é garantia de uma sensibilização em relação à sua dor? Mesmo que haja um
potencial de sensibilizar muito forte e penetrante em alguns textos literários, as
pessoas são igualmente permeáveis, receptivas a isso? E se a resposta a essa
pergunta for “sim”, isso não seria também uma maneira de, implicitamente,
suscitar-se uma natureza humana afeita à sensibilização?

193
Castro assevera265 que, em Rorty, a capacidade de a linguagem intervir
na vida moral, modificando práticas sociais, é decorrência de uma concepção
anti-correspondentista, historicista e de ascendência hegeliana, segundo a qual
a imaginação tem papel central na construção de novos mundos. É essa a
matriz de pensamento que permite associar filosofia e poesia como
instrumentos da imaginação e, em conseguinte, da atividade infinita de
progresso moral.
Kundera, por sua vez, expõe com maestria o que denomina espírito do
romance, como algo que supera as respostas simples e rápidas dadas às
questões

O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada


romance diz ao leitor: “as coisas são mais complicadas do que
você pensa”. Esta é a eterna verdade do romance que,
entretanto, é ouvida cada vez menos no alarido das respostas
simples e rápidas que precedem a questão e a excluem.
(KUNDERA, 1988. p. 21-22).

Em consonância com Kundera, Rorty expressava um grande entusiasmo


pela sabedoria do romance, e, juntava-se a ele para apelar ao romance contra
o espírito teórico da filosofia:

A sabedoria do romance é diferente da sabedoria da filosofia.


O romance não nasceu do espírito teórico, mas do espírito do
humor. Uma das maiores falhas da Europa é que ela nunca
entendeu a alma europeia das artes – o romance; nem seu
espírito, nem seus grandes conhecimentos e descobertas,
nema autonomia de sua história. A arte inspirada pelo riso de
Deus não serve, na natureza, às certezas ideológicas, ela as
contradiz. Tal como Penélope, ela desfaz cada noite o tapete
que os teólogos, filósofos e professores ensinaram os homens
a tecer durante o dia. (KUNDERA apud RORTY, 1999f. 107-
108).

A prerrogativa de desfiar tapetes e os fiar novamente, com outras cores


e modelos, a capacidade de revirar as perspectivas, é o que dá, tanto para
Kundera como para Rorty, à literatura – especialmente ao romance – um tão
relevante papel em uma cultura idealmente ironista, uma vez que esta seria
afeita muito mais à atividade de redescrever que à ânsia por demonstrar.
265
Cf. CASTRO, Susana de. Sem limites – a imaginação antes da razão. In: Redescrições,
número especial, n. 3, 2009.

194
Na perspectiva Rortyana, é coerente dizer que se acredita na sabedoria
do romance como algo afeito a exceder e transpor a sabedoria da teoria, e
como algo capaz de instigar a imaginação, indo além das respostas
racionalizantes, dadas pela argumentação lógica, em direção à argumentação
dialética. O que não faria sentido, entretanto, em Rorty, é a afirmação de
qualquer valor como absoluto ou de qualquer prática como infalível para o
objetivo de modificar a maneira de pensar e de viver das pessoas. Rorty não
absolutiza nem a filosofia, nem a literatura. Assim como tudo é contingente,
nada é infalível. Desse modo, apontar para um suposto endeusamento da
literatura na retórica rortyana, ao fim e ao cabo, não faz qualquer sentido e
resulta numa crítica sem qualquer valor.
A grande importância da leitura na vida pessoal de Rorty talvez tenha
sido um elemento decisivo para o seu otimismo e confiança – como se disse,
dentro dos limites traçados pela contingência – em relação ao poder da
literatura. O filósofo teve uma infância na presença dos livros, decidindo
dedicar-se ao estudo acadêmico de filosofia quando contava com apenas
quinze anos. Suas leituras de Platão e de muitas obras de tendência marxista,
simultaneamente, o levaram a uma crise existencial-intelectual profunda, e,
mais uma vez, foram os livros que lhe trouxeram um alento: A fenomenologia
do espírito, de Hegel, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, foram o
fio de Ariadne para Rorty, despertando-lhe a ideia de que é impossível
sintetizar satisfatoriamente, em uma única teoria, os gostos e desejos
idiossincráticos de um indivíduo e uma busca real e genuína por justiça social.
Essa teria sido uma virada pragmatista importante em sua maneira de pensar,
inclusive, a própria filosofia e a literatura, e que culminaria com a escrita de A
filosofia e o espelho da natureza, obra que o faria participar do cenário da
discussão filosófica relevante no mundo.
Em sua maturidade intelectual, alguns autores foram uma presença
decisiva. Rorty citava recorrentemente, com uma espécie de admiração e
carinho especiais, além de Hegel e Proust, nomes como Dewey, Heidegger,
Habermas, Kierkegard, Nietzsche, Baudelaire, Nabokov, Rawls, Orwell,
Dickens, Mill, e muitos outros. Desse modo, a experiência de proximidade com
o discurso literário é bem condizente com o entusiasmo em relação ao poder

195
transformador da literatura e a ascendência de uma cultura literária que Rorty
viria a desejar e promover, na defesa de sua utopia liberal democrática.
A crítica de Laclau segue outra via. Para ele, pode-se afirmar que Rorty
estabelece premissas pragmatistas muito sóbrias e interessantes para o
edifício lógico da sua argumentação, mas que acaba por chegar a conclusões
que, não necessariamente, decorrem daquelas premissas. E isso é muito
marcante no que toca à sua defesa de uma utopia liberal. Considerando o
pragmatismo rortyano e a sua “consequência” política, Laclau (2016, p. 99-100)
afirma que:

Não há nada no pragmatismo que necessariamente o restrinja


ao tipo de engenharia liberal gradual defendido por Rorty. O
pragmatismo, como um gesto intelectual, libera muito mais
possibilidades e direções de desenvolvimento do que Rorty
está realmente disposto a reconhecer. (...) O problema que
vejo nas formulações de Rorty é que ele tenta fundir seu
liberalismo e seu pragmatismo sem avaliar suficientemente o
fato de que o segundo não leva necessariamente ao primeiro.

Esse fato de que pode haver um deslize na retórica rortyana, em que as


conclusões políticas a que chegou não decorrem necessariamente das
premissas pragmatistas postas à mesa, pode ser uma causa e,
simultaneamente, uma consequência do uso impreciso ou ambíguo de muitos
termos no ambiente dos textos de Rorty, conforme outras críticas a que
anteriormente já nos referimos, como Bernstein e Scruton.
Além disso, Laclau aponta para outra questão, relacionada a essa
imprecisão, que, em sua perspectiva, não pode ser entendida como apenas um
detalhe teórico ou como uma lacuna facilmente sanável no pensamento
rortyano266. Para ele, a referida “substituição da força pela persuasão”,
elemento central na retórica da utopia liberal de Rorty, carece de atenção e
cuidado: falar-se em substituição de uma coisa pela outra é aceitar a
conceituação superficial das duas coisas; como se poderia falar em trocar a
força pela persuasão se, observando com cuidado, não há como prescindir de
um elemento de força quando se faz uso da persuasão. Não se pode opor

266
Cf. LACLAU, Ernesto. Community and Its paradoxes. In: LACLAU, Ernesto.
Emancipation(s). London: Verso, 1996, p. 90.

196
“persuasão” e “força” porque aquela é uma espécie desta267 e não o seu
contraditório ou o seu contrário.
Para Laclau, Rorty trata essa questão de forma simplista, a ponto de não
deixar claro se ele recomendaria, em uma sociedade idealmente liberal, o uso
da persuasão em substituição da força em quaisquer circunstâncias. Por
exemplo, a sociedade idealmente liberal trataria com persuasão o cometimento
de um crime grave como o assassinato ou o estupro? Ela abriria mão do poder-
dever da sociedade de coerção do agressor, ou daquele que, a despeito de
toda a sensibilização a que tivera sido submetido, cometeu um delito bárbaro?
Assim, Laclau argumenta que uma sociedade que prescindisse
plenamente da violência não seria uma ótima opção para se viver, pois as suas
reformas precisariam partir de um “exército de engenheiros sociais” e ter a
aceitação global e pacífica dos demais integrantes da comunidade, sem que
interesses ou direitos já existentes sejam considerados, ou sem que pessoa
alguma possa se sentir desprivilegiado pela não satisfação de seus interesses
particulares. Esse não seria, para Laclau, um mundo bom de se viver. Nele, a
única liberdade possível seria – ao modo de Spinoza – a de se ter a
consciência da necessidade268. O jogo democrático, muito longe disso,
pressupõe a prerrogativa de aceitar uma ideia e descartar inúmeras outras, de
satisfazer o interesse de uns e descartar os de outros, de adotar uma demanda
como prioridade em detrimento de todas as outras, e isso é impossível sem a
violência que lhe é intrínseca. Desse modo, formas pontuais de opressão
podem ser combatidas e eliminadas, mas a opressão é inerradicável 269.
Uma questão semelhante a essa é desenvolvida por Berlin, ao ventilar a
hipótese de uma sociedade em que os valores fossem todos eles compatíveis
entre si. Na vida social, os valores podem e costumam entrar em rota de
colisão uns com os outros. Isso é intrinsecamente social:

Deveria um homem resistir a uma tirania a todo custo,


sacrificando a vida de seus pais e filhos? Deveriam crianças
ser torturadas para que se extraíssem informações que levem
267
Cf. Ibidem.
268
No pensamento ético de Spinoza (1632 – 1677), o conceito de liberdade é extremamente
importante. Para ele, a liberdade entendida como autodeterminação não existe para o homem,
mas somente para Deus. O homem, quando muito, adquire a liberdade de agir com
consciência das necessidades que o transcendem.
269
Cf. LACLAU, Ernesto. Community and Its paradoxes, p. 92.

197
a traidores e criminosos perigosos? Esses choques de valores
são próprios de sua essência e de nossa essência humana. Se
nos dizem que essas contradições serão resolvidas em um
mundo perfeito no qual todas as coisas boas poderão ser
harmonizadas teoricamente, devemos responder que os
significados que eles atribuem a esses valores não são os
mesmos que os nossos. Devemos dizer que um mundo no qual
valores incompatíveis não estão em conflitos está além de
nossa compreensão. (BERLIN, 2016, p. 40)

Desenvolver uma defesa da sociedade idealmente liberal, partindo de


duidades como persuasão/violência, portanto, acaba por simplificar demais
uma questão muito mais complexa, o que enfraquece marcantemente a
retórica rortyana. Toda argumentação de defesa de uma sociedade
democrática, para esses autores, precisa se concentrar em descrever as
formas, inerradicáveis, de poder – e, por conseguinte, as formas de violência –
que lhe serão aceitáveis e as formas de composição para as lides advindas das
demandas antagônicas.
Muitas dessas objeções levantadas pelos críticos do pensamento
rortyano foram consideradas como relevantes e debatidas por Rorty. Outras,
contudo, não tiveram a mesma atenção do autor e não foram respondidas
diretamente – ou não foram contempladas exaustivamente –, permanecendo,
enfim, como elementos importantes de apreciação e crítica à real possibilidade
de efetivação de uma sociedade cosmopolita liberal e democrática, como a por
ele proposta.

198
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A map of the world that does not include Utopia is not worth
even glancing at, for it leaves out the one country at which
Humanity is always landing. And when Humanity lands there,
it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is
the realisation of Utopias. (Oscar Wilde)

Se observarmos as representações cartográficas do mundo, desde a


Antiguidade até nossos dias, constataremos um fato: o mundo humano muda,
assim como o próprio homem. O ser humano cria, modifica, amplia, reduz,
extingue, renomeia, enfim, reorganiza incontinenti as configurações político-
sociais das terras que habita, com uma frequência comparável apenas à com
que – de modo consciente ou não – redescreve a si mesmo, na medida em
que modifica os seus hábitos, sua linguagem, e, enfim, quem ele é, sua
identidade. Uma espécie de mapa mundi que jamais foi registrado, entretanto,
é aquele que inclua plenamente as suas aspirações, que represente os
ambientes – locais, tempos ou circunstâncias – de seus sonhos. Tal desenho
precisaria elencar uma inumerável variedade de lugares e gentes, além de que
ele seria para sempre um desenho inacabado. A utopia é este lugar do sonho
humano. Ela não é, necessariamente, o lugar onde o homem descansa e se
sente plenamente feliz e realizado, mas é o seu horizonte, o ponto aonde quer
chegar, só para depois ter outro destino.
Richard Rorty foi um pensador atento à ideia de que não estamos
ultimados, de que não temos ainda as soluções satisfatórias para muitas
demandas que nos acompanham há séculos. A injustiça e o sadismo social
denunciam, para ele, precisamente isso: estamos ainda muito distantes de
responder satisfatoriamente a inúmeras questões suscitadas por aquelas
pessoas que nos antecederam neste mundo. Isso jamais poderia significar,
todavia, que não haja história alguma suficientemente bonita e respeitável para
ser contada por nós em resposta àquelas questões. As democracias pluralistas
e liberais, no mundo inteiro, ergueram sistemas de instituições – constituições,
parlamentos, independência do poder judiciário, liberdade de imprensa,
sufrágio universal, etc. – cujos fins últimos lhes são compartilhados, sendo um

199
dos principais o de garantir que as pessoas e os grupos sociais sejam
reconhecidos e tenham o direito a ter direitos.
Mesmo as melhores dessas instituições, entretanto, permanecem – e
permanecerão sempre – na condição de inacabadas, passíveis de
aprimoramento. A perfeição não é sequer uma meta. O melhoramento contínuo
e ininterrupto é a utopia para a sociedade liberal-democrática. Desse modo,
para que uma democracia morra, não seria necessária a mitigação ou mesmo
a denegação de todas as conquistas civilizacionais até aqui realizadas, ou o
desmonte de todas as instituições que foram sendo criadas e se tornaram os
alicerces do regime democrático. Na verdade, bastaria, para tanto, negar-lhe
um de seus atributos típicos, a imperfeição, inculcando aos cidadãos a crença
de que já atingiram o estado último e mais desejável possível de segurança e
felicidade. Isso porque, negar-lha seria inviabilizar o seu potencial de querer
mais, de melhorar sempre, de aprimorar seus mecanismos e, se um dia
perfeita, a “democracia” não necessitaria do conflito e do diálogo, não sendo
mais democrática. O espírito democrático é o ambiente ideal da esperança
social. E precisamente por isso, a utopia é a melhor forma de expressá-lo e
pode ser uma excelente forma de motivar seu aprimoramento. Pela perspectiva
de Rorty, só a aniquilação completa poderia representar para o homem uma
catástrofe maior que perder a sua capacidade de imaginar, seu entusiasmo
para projetar e promover novos mundos. Um tipo de sociedade mais
aterrorizante possível, para efeito de contraste – em que personagens como
O‟Brien270 sejam consideradas o normal da vida – é aquela que se pode
qualificar por dois atributos: em primeiro lugar, ela seria uma sociedade capaz
de tolerar a ideia de que o futuro seja representado pela metáfora de uma bota
a esmagar um rosto humano para sempre; em segundo lugar, seria uma
sociedade em que “os intelectuais terão aceitado o facto de as esperanças
liberais não terem possibilidades de realização” (RORTY, 1994, p. 29).
É perfeitamente aceitável, no âmbito da perspectiva rortyana, que se
duvide da democracia, que se tenha desconfiança de suas instituições. É

270
Rorty dedicou todo o oitavo capítulo de Contingência, ironia e solidariedade a discutir o
impacto da literatura de George Orwell – especialmente em Animal farm e 1984 – na análise da
vida política no século XX. O‟Brien, para Rorty, tornara-se a personagem mais significativa de
1984, alguém “perigoso e possível”. Sua importância está justamente no fato de que Orwell nos
convence de que ele é mesmo possível, em sua absurdidade.

200
também perfeitamente aceitável partir sempre da ideia de que as respostas de
que dispomos hoje para as questões importantes da vida social são respostas
incompletas, soluções parciais. Manter vivas algumas dúvidas e cuidar para
que permaneçam abertas as questões ajuda também a manter viva a chama
do aprimoramento. Rorty enumerou, exemplificativamente, algumas dessas
dúvidas importantes que uma sociedade democrática pode – e, na verdade,
deve – ter acerca de si mesma: “doubt about their own sensitivity to the pain
and humiliation of others, doubt that present institutional arrangements are
adequate to deal with this pain and humiliation, curiosity about possible
alternatives” (RORTY, 1989, p. 198)271. Não se estar convencido de que a
democracia liberal seja suficientemente boa para satisfazer nossas
inquietações e necessidades é totalmente aceitável. A única coisa que
realmente não se pode aceitar, em sua perspectiva, seria desistir da tarefa de
pensar e acreditar na possibilidade de construir amanhã uma sociedade melhor
se comparada àquela que logramos construir até hoje.
Seria, por conseguinte, muito adequado e justo incluir o pensamento
rortyano em qualquer rol de discursos contemporâneos portadores e
transmissores de um bem muitíssimo valioso, a esperança social. Rorty
desejava que continuássemos sempre nos exercitando na atividade de olhar
fatos antigos com novos olhos, de ressignificar as experiências,
redescrevendo-as de modo a tirarmos delas o máximo de esperança social
possível.
A despeito de ser prioritariamente uma mensagem de esperança, o
discurso de Rorty reclamava a atenção para um fato relevantíssimo: a
democracia e o liberalismo (como ele o via) na América no século XXI
poderiam vir a sofrer fortes revezes, precisamente por serem, como tudo mais,
contingentes e extremamente frágeis.
Para que se possa promover-proteger a Democracia, por conseguinte,
faz-se necessária uma atenção permanente para com os seus inimigos íntimos:
muitas das ameaças que o regime democrático sofre não são resultantes da
ação insistente e determinada dos seus inimigos externos, mas provêm do seu

271
Na edição lusitana: “dúvidas quanto à sua própria sensibilidade à dor e à humilhação dos
outros, dúvida de que os entendimentos institucionais actuais sejam adequados para lidar com
a dor e a humilhação, curiosidade sobre alternativas possíveis” (RORTY, 1994, p. 246)

201
próprio interior, como Todorov (2012, p. 14-15) evidenciava com muita
perspicácia:

(...) a democracia produz, nela mesma, forças que a ameaçam,


e a novidade de nossos tempos é que essas forças são
superiores àquelas que a atacam de fora. Combatê-las e
neutralizá-las é tanto mais difícil quanto mais elas invocam o
espírito democrático e possuem, assim, as aparências de
legitimidade. (...) O regime democrático não se define por um
traço único, mas por um conjunto de características que se
combinam para formar um arranjo complexo, em cujo seio elas
se limitam e se equilibram mutuamente, pois, mesmo sem estar
em contradição frontal uma com a outra, têm fontes e
finalidades diferentes. Se o equilíbrio for rompido, o sinal de
alarme deve ser desencadeado.

A ameaça à democracia não se faz necessariamente com o uso de


tanques ou fuzis. Possivelmente, processos erosivos importantes advém de
políticas públicas empreendidas por líderes legitimamente escolhidos para os
cargos de decisão. Tais políticas, mesmo não sendo individualmente
inconstitucionais, vão se somando, tornando-se impactantes e enfraquecendo
as bases dos regimes democráticos a partir de seu próprio bojo. Soma-se às
políticas públicas dessa natureza o bombardeio semiótico de conteúdo
antidemocrático a que as populações são muitas vezes submetidas. A profusão
dessas ideias que sitiam os valores da igualdade, e da liberdade, por exemplo,
contribui sobremaneira para a indiferença política – por vezes concentrada na
parcela mais jovem da polução – ou a perda marcante da confiança nas regras
do jogo democrático, o que costuma se reverter em apoio incondicional – e
irracional – a políticos populistas e autoritários, fortes e, supostamente,
capazes de adotar atitudes radicais de retrocesso, mesmo a despeito
da desaprovação de parcelas significativas do eleitorado.
McClean, analisando o mesmo cenário, observa272 que, se partirmos da
observação de uma determinada moralidade pública – informada por uma série
de teorias econômicas273, políticas, morais e jurídicas – que determina algumas
posturas assumidas por indivíduos e povos mais abastados em relação aos

272
Cf. McCLEAN. David E. Richard Rorty: liberalism and cosmopolitanism, p. 175 e seguintes.
273
McClean cita algumas das teorias de Economia e Política que têm sido determinantes para
decisões importantes em políticas públicas nos EUA, além de influenciarem de forma marcante
o pensamento prioritário dos cidadãos acerca de questões sociais de enorme relevância, por
exemplo, o Realismo Político e a Economia Autista.

202
menos afortunados e a despeito de todo o progresso do conhecimento
humano, talvez estejamos certos em desconfiar que não logramos aprender
uma coisa: não aprendemos ainda a ver o outro como igual. E talvez estejamos
ainda muito distantes de construir um mundo realmente solidário. Citando
Rorty, e seu artigo Fraternity reigns274, McClean alimenta a esperança de que
podemos fazer mais e melhor em direção ao objetivo da solidariedade.
Podemos mudar os nossos hábitos e evitar que o egoísmo e o sadismo social
nos arrastem para os Dark Years prenunciados por Rorty. E podemos, por
exemplo, parar de tolerar a distância abissal que separa as comunidades por
razões de raça e condições econômicas, nos empenhando em construir,
gradual mas incessantemente, uma ordem social informada por um ethos de
fraternidade.
Escapar aos Dark Years – e a todo o complexo de sentimentos, hábitos
e ideias que podem vir a oportunizá-los – exige o compromisso de refletir
seriamente sobre as ações que podemos empreender para forjar e aprofundar
nossos laços comunitários, tanto em casa como no exterior275.
Rorty é um autor exemplar no que concerne à esta preocupação e este
compromisso. Seu grande esforço em “Para realizar a América: o pensamento
de esquerda no século XX na América” estava direcionado justamente ao fito
de fazer ver à esquerda americana que as reformas e melhoramentos por ela
ambicionadas para seu país eram viáveis. Mas para que tenham chance de
realização, exigiam uma postura política mais cuidadosa e pragmática. E que,
se isso não ocorresse, a possibilidade de um grande retrocesso moral e perda
de conquistas sociais angariadas, muitas vezes, ao preço de vidas humanas e
expressadas em igualdade de oportunidades, representatividade de minorias,
direitos civis, trabalhistas e previdenciários, etc. era não apenas real, mas até
iminente.
A partir de 2016, com a ascensão ao poder de um presidente de ultra
direita nos EUA, Donald J. Trump, boa parte das preocupações expressadas

274
Este foi o artigo publicado no The New York Times, em 1996, que daria origem ao texto
Looking backwards from the year 2096, que se tornou um capítulo de Philosophy and social
hope, publicado em 1999.
275
Cf. Ibid., p. 182.

203
por Rorty vieram à tona como ordem do dia276. Seus escritos – especialmente
seu último livro, supracitado – passaram a ser considerados como uma espécie
de profecia daquilo que se vislumbrava cotidianamente na política nacional277.
Não são raros os intelectuais dedicados à análise do regime democrático a
propugnarem, hoje, uma crise da democracia em muitos pontos do globo, com
a ascensão de líderes fortes, ultraconservadores. Alguns desses autores
denunciam a promoção consciente de uma espécie de erosão vagarosa, mas
eficiente, dos valores que definem a democracia, enquanto outros apontam
para a possibilidade iminente de rupturas bruscas e violentas, principalmente
advindas da supervalorização dos aspectos neoliberais na economia.
Singer, Araujo e Belinelli (2021, p. 225), elencando de um lado autores
alinhados à perspectiva gradualista e de outro aqueles que apostam na
iminência de rupturas por choque, afirmam que:

Os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, da


universidade de Harvard, do elenco “gradualista”, talvez
tenham estado entre os primeiros a apontar de modo
sistemático que Trump, sem romper explicitamente com a
democracia, possuía uma retórica que questionava as suas
regras e a legitimidade dos opositores, intimidava a imprensa,
encorajava a violência de seus partidários e se mostrava
disposto a restringir as liberdades civis.

McClean defende que muito embora a análise de Rorty das condições


sociais que culminariam com a ascensão de um “homem forte” ao poder nos
EUA fosse simplista – apostando, quase que exclusivamente, nas questões
vinculadas à renda e às condições de trabalho – o pensamento pragmático do

276
Em mais de uma ocasião, Rorty expressou a preocupação com a proteção das conquistas
democráticas e liberais nos EUA e com a fragilidade de tal patrimônio. Em Para realizar a
América: o pensamento de esquerda no século XX na América, ele elencou as condições
sociais reais existentes em sua época e a tendência de agravamento de alguns problemas que
poderiam culminar com a eleição de um “homem forte”, um líder carismático, representativo de
uma parcela da população ressentida com as mudanças progressistas.
277
Essa relação entre os escritos de Rorty e os acontecimentos políticos recentes nos EUA,
inclusive, foram um motivo a mais para o sucesso editorial de Para realizar a América: o
pensamento de esquerda no século XX na América, que passou a ser procurado nas livrarias
com uma frequência muito maior que antes, e para a popularização do nome do autor, como
uma espécie de profeta dos nossos tempos.

204
filósofo permanecia sendo uma ferramenta de muita utilidade em tempos de
Donald Trump278.
Ainda segundo McClean, Rorty não ofereceu somente instrumentos
teóricos úteis de análise da vida político-social na América, mas contribuiu
efetivamente, e de modo decisivo, com a reflexão acerca da posição política
que a esquerda precisa assumir para que seus anseios de uma sociedade mais
justa possam trilhar um caminho de realística esperança e ação. McClean não
compartilha plenamente com a tipificação cerrada em três categorias da
esquerda política nos EUA, feita por Rorty279, e propõe que se chegue a uma
posição de integração – o que chamou de The Bridge Left – para que o
pensamento reformista possa se converter em ações políticas efetivas de
melhorias da sociedade. Em “Para realizar a América: o pensamento de
esquerda no século XX na América”, Rorty leva a sério essa tarefa de propor
alternativas, indicar caminhos, a ponto de sugerir algumas atitudes que, à sua
perspectiva, poderiam ser muito eficientes para que a esquerda americana
possa contribuir de fato para a defesa e o progresso das instituições. Para ele,
os intelectuais de esquerda deveriam abandonar o excesso de apego à
ideologia e à teoria, afastar-se um pouco do gosto pela Filosofia, e procurar
uma postura mais pragmática e reformista. Deveriam também empenhar-se em
mobilizar o que resta de orgulho nacional americano, contribuindo para a
construção de imagens inspiradoras do país e abandonando o seu
“antiamericanismo semiconsciente”280.
Com Rorty, penso que se as esquerdas – nos EUA como em todo o
mundo democrático – quiserem levantar a bandeira do melhoramento das
instituições sociais e contribuir efetivamente para alargar as conquistas em

278
Cf. McCLEAN. David E. Richard M. Rorty and the Trump Years: On the 20th Anniversary of
Achieving Our Country - Leftist Thought in Twentieth-Century America. The New School: Public
Programs end events. 2018.
279
Em Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na América, Rorty
diferencia três tendências no pensamento de esquerda nos EUA: 1. a esquerda reformista; 2. a
nova esquerda; 3. a esquerda cultural. McClean afirma acreditar que tal tipificação seja mais
um recurso metodológico e retórico utilizado – conscientemente – por Rorty que a afirmação de
uma abrupta separação entre os autores e as ideias e posturas políticas associadas a cada
uma dessas tendências. Em relação às duas últimas formas citadas de esquerda, Rorty fazia
críticas severas, especialmente por terem se distanciado das questões políticas mais
relevantes à sociedade americana, concentrando seus esforços em práticas e posições
ideológicas que, muitas vezes, servem mais à denúncia de problemas e vícios da democracia
liberal que à proposição de caminhos a seguir.
280
Cf. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na
América, p. 135.

205
termos de igualdade, direitos civis, proteção da democracia e direitos humanos
– além da permanente possibilidade de invenção de novos direitos – precisam
se concentrar na tarefa de apontar caminhos, e não apenas apontar pecados
históricos imperdoáveis, deficiências intrínsecas ao sistema liberal democrático
e culpados por elas. Isto é, a esquerda precisaria se convencer da
necessidade-tarefa de pensar a política real, os problemas reais dos homens e
os meios efetivos de enfrentá-los. É o que Rondel (2018, p. 17 – tradução
nossa) ilustra com precisão:

A luta política de esquerda deve se concentrar em tentativas de


formar um consenso majoritário sobre a necessidade de
reformas específicas, sobre a aprovação de leis e fomento de
políticas, sobre mobilização, peticionamento, lobby, sobre
tomar as ruas e exercer pressões281.

Evidentemente, nos regimes democráticos, apropriar-se de tais


ferramentas e adotar posturas e atitudes como essas são o caminho para
tornar possível o desiderato de chegar legitimamente às posições políticas de
decisão, que oportunizariam trabalhar mais e melhor em nome da igualdade,
do melhoramento das instituições e da criação de uma circunstância material-
social-política favorável à invenção de novos direitos.
Precisamente pela habilidade e disposição em empreender um
pensamento diagnóstico da realidade cultural-política presente, e fomentá-lo de
modo perspicaz e provocador, além de apontar uma direção possível para o
liberalismo democrático, Rorty deve ser ainda lido e levado a sério. Sua retórica
utopista integra recursos críticos e reconstrutivos, tornando-se uma ferramenta
importante na tarefa de compreendermos quem somos e para onde podemos
ir. É sobremaneira importante atentar para esse segundo aspecto: seu
pensamento não é meramente descritivo, mas amplamente redescritivo. Ao
tempo que objetivava suscitar uma interpretação da América – baseada na
tradição democrática americana, nos valores jeffersonianos de tolerância
religiosa e liberdade, e direcionada para o orgulho nacional e a esperança
social – Rorty buscava fomentar e realizar as intervenções político-cultuais que

281
No original: “Leftist political struggle should concentrate around attempts to forge
majoritarian consensus on the need for specific reforms, on passing laws and enacting policies,
on mobilizing, petitioning, lobbying, demonstrating, on taking to the streets and exerting
pressure”.

206
julgava necessárias para empreender a reconstrução político-cultural do
presente e a defesa de uma utopia liberal-democrática para o futuro.
Sua utopia é defendida, portanto, como uma possibilidade ótima, um
horizonte realmente possível, mas não como uma necessidade histórco-
teleológica ou como a única opção de salvação para o homem. Com Sartre,
Rorty reconhece que a verdade dos homens será sempre aquela que eles
decidirem para si, e que se as pessoas, algum dia, desistirem da democracia e
optarem por qualquer regime totalitário, avesso aos valores democráticos e aos
direitos humanos, essa será a sua realidade, e, nesse caso, poderemos
lamentá-lo, argumentar em contrário, imaginar e descrever alter mundi
democráticos e livres, mas não podemos evitá-lo:

Amanhã, depois da minha morte, certas pessoas podem decidir


estabelecer o fascismo, e outras podem ser suficientemente
cobardes ou miseráveis para as deixar triunfar. Nesse
momento, o fascismo será a verdade do homem, e tanto pior
para nós. Na realidade as coisas serão exatamente como o
homem tiver decidido que elas sejam. (SARTRE, 1946, p. 53-
54 apud RORTY, 1982, p. 45)

Talvez a maior contribuição de Rorty seja precisamente esta: ao tempo


que proclamava que a verdade do homem será amanhã e sempre aquela que
ele decidir para si e para seus descendentes, conclamava a filosofia para o
desafio de desistir da busca pela verdade transcendental e manter-se atenta à
reflexão acerca dos problemas que realmente carecem de empenho, como o
sadismo social, a pobreza, o racismo, o sexismo, etc. O combate a tais
desvalores, para Rorty, resultava na incansável defesa da solidariedade. Para
ele, a solidariedade era, mais que um valor, uma causa, uma utopia. E sua
utopia era o encontro poético entre uma forma de dizer e descrever o mundo –
um método –, uma forma de querer e imaginar um mundo novo – uma meta –,
e, por fim, uma forma de viver e redescrever o mundo real – uma prática.

207
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