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O GOVERNO DA EMERGÊNCIA:
Estado de Exceção, Guerra ao Terror e Colonialidade
RIO DE JANEIRO
2019
DIEGO DOS SANTOS REIS
O GOVERNO DA EMERGÊNCIA:
Estado de Exceção, Guerra ao Terror e Colonialidade
RIO DE JANEIRO
2019
CIP - Catalogação na Publicação
_________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco (Orientador)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_________________________________________________
Profa. Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
_________________________________________________
Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento
Universidade de Brasília
_________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_________________________________________________
Prof. Dr. Wallace dos Santos de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Suplentes
Rio de Janeiro
2019
À Nirinha, minha mãe – pois sua ausência em
mim demora.
Ao prof. Ney e à Iyá N’lá Beata de Yemonjá, voz
de muitas águas.
Marielle, presente!
Anderson, presente!
Agradecimentos
Escrever uma tese é, antes de tudo, uma tarefa obstinada e quase obsessiva. Linha por
linha, na tessitura de um exercício lento e contínuo, este trabalho foi se escrevendo. Às vezes,
com desvios e deslocamentos tão radicais que me pareciam, como as matrioskas russas, teses
dentro de teses, numa encruzilhada inesgotável de caminhos possíveis. Este trabalho não
poderia encontrar sua forma final, todavia, sem a co-laboração, a presença, a ajuda e o afeto de
pessoas imprescindíveis. Nenhum agradecimento seria capaz de dimensionar o que devo a elas.
Há várias pessoas a quem me sinto impelido a expressar minha gratidão por compartilhar
comigo a leitura, sugestões e advertências essenciais para a realização desta tese, sem que, no
entanto, se complete este estranho gesto de endereçamento que se pretende em uma dedicatória.
À minha mãe, Nirinha, em sua memória. Presença constante em minha travessia e
saudade que em mim mora – e demora.
Ao Professor Ney, nome que repito infinitamente em sua ausência, e que sobre-vive
em mim – afinal: “o que morre quando se morre?”1: gratidão incalculável.
Ao Professor Dr. Guilherme Castelo Branco, pela orientação, amizade e entusiasmo
ao longo desses dez anos de pesquisa. Quando penso nessa década corrida, me recordo do
graduando de 2009, suspenso nalgum lugar da memória. Sala cheia, texto em mãos, escuta
atentíssima para ouvi-lo ler e comentar O sujeito e o poder, de Foucault. Esta imagem resta
como uma das lembranças mais bonitas e vivas dessa minha Recherche. Ressoa nessa voz o
indissociável laço entre filosofia e vida e política. Esta herança que lego, infiel como todo
herdeiro, é também a responsabilidade de uma tarefa para a qual tento me colocar à altura: ser
professor, ensinar e aprender com seriedade, mas sem sisudez. Nesses tempos sombrios, de
vales de lágrimas diariamente renovados, a alegria é ainda a prova dos 9, como nos recorda
Oswald. Obrigado, Guilherme.
Àquelas e àqueles que aceitaram prontamente a tarefa de sentar à mesa e compor a
banca-banquete, que muito me alegra e me honra: Thula, Uã Flor, Rafael e Wallace. À Carla
Rodrigues, agradeço pelas considerações imprescindíveis na banca de qualificação deste
trabalho. À Thula, agradeço, especialmente, pela generosidade e por apontar outras lentes de
análise possíveis: mais coloridas e mais ao Sul – “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”: nunca
é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás.
1
ROUBAUD, Jacques. Retrato em meditação, V. In:____. Algo: preto. Trad. Inês Oseki-Dépré. São Paulo:
Perspectiva, 2005. p. 75.
À Pri, minha irmã, pela partilha dos caminhos, desde o começo; pelos laços que nos
unem em 3a. pessoa: nós e Theo, afilhado que a vida me deu. Ao Davi e à Bia, que enchem o
dindo de alegria. O singularmente novo, em cada nascimento, é a nossa velha e obstinada
esperança renovada, que teima em acreditar em dias melhores para estes que chegam. Oxalá!
Aos familiares queridos, que dividem os caminhos, os afetos e a pertença a uma raiz
que nos é comum. Ao meu pai, Ivo, ao meu irmão Iuri, à dinda Leo, ao dindo Leo, à dinda Nete,
e aos primos-irmãos de muitas vidas: Everson, Tati, Vivi e Érica. À dindinha Carminha,
admiração, amor e gratidão sem fim.
Agradeço imensamente à Thati que, ao longo desses 10 anos de amizade, me ensinou
muita coisa, sobretudo, a generosidade, o carinho e a lembrança reiterada de que meus “ombros
suportam o mundo”. Obrigado por escrever, por sobre a letra de Montaigne, tecendo
amorosamente palavra por palavra na superfície sinuosa de nossas vidas, a máxima que toda
amizade parece condensar no encontro certo de duas vidas: “porque era ela e porque era eu”.
Kairós...
À Malu, entre tantos séculos, entre tantos anos, que sorte a nossa. Na travessia desse
grande sertão dos nossos trópicos, M., seria difícil sem você. Sem a força do olhar que reflete
o tempo, águas profundas de sal, de sol e de mistério: meu amor e minha guerra. A estrada
comum é o chão da comunidade, do passo-a-passo, da continuidade do que, em nós, é projeto
e confiança em toda vida por vir: semente, alegria e doação. Ayò, ayomide!
Às amigas e aos amigos queridxs, Wallace, Eduardo, Mônica, Mariana, Lucio,
Andrea, Flora Manga, André, Gabriel, Julia e Tia Deborah. À Marcelita, que muito me ajudou
a forjar ferramentas de leitura crítica, desde os primeiros anos do ensino médio no Pedro II, e a
me atentar a um mundo que não cessa de nos interpelar e de exigir leituras a contrapelo. Aos
amigos do curso de Teoria do Teatro da UNIRIO: Rodrigo, Renata, Socorro, Ana Cecília,
Marília, Raquel. Aos amigos do coração: Victor, Vanessa e Érica. À Iris-bela: alegria dos meus
caminhos. Ao Felipe, pelas travessias partilhadas da vida que, na urdidura do cotidiano,
transformaram a matéria-viva de nossas existências na narrativa comum que nos fortalece.
À Flora Süssekind, diálogo primordial que me faz tremer a língua e o pensamento,
cuja herança carrego inscrita em cada linha deste trabalho. Porque um dia, Flora, com passo de
prosa, você me disse que o ensaio é movimento, vaivém na cadência auto-reflexiva do
pensamento. E que ensaiar uma outra escritura é também um gesto político. Nas batalhas da
linguagem, é preciso exercitar uma escrita só-lâmina, a mais crítica, “voraz e gráfica” para
dissecar “o anverso das coisas”. E nisso descobrir a matéria bruta que “não é de dentro”, mas
“é como a casa, que é de fora”. Como o olhar, mediado por visões de um horizonte comum:
inventário do tempo, notas, curvas e silêncios. Imaginar.
Ao Ilé Omiòjúarò, a casa das águas dos olhos do caçador e de muitos sonhos de além-
mar, forjados na comum-unidade de asè. Junto a nossos ancestrais, em sua memória, pelos
valores de partilha e coletividade da escuta e do respeito, na luta contra toda forma de tirania.
Porque ali, nas sombras do Iroko e por entre suas folhas que nos ensinam a espessura do tempo,
nos reconstituímos em um-só-corpo. Ao Bábà Adailton, à Iyákekeré mi Regina e à Iyá Nlá
Beata de Yemonjá, porque nossos passos vêm de longe... É uma encruzilhada de tempos
ancestrais e de resistências imemoriais. Olorum modupé, Òrìsà. Laroyé, Èṣù! Iyá Ivete, Iyá
Doya, Ekeji Stela, Ekeji Lúcia, Ajoiyé Lis, Egbon mi Neuza: mães amadas. Ao Asògbá Gelson.
Aos irmãos e irmãs: Shirlene, Tom, Thiago, Thula, Dandarinha, Sol, Iazana, Tati, Leandro,
Marina, Vanessa, Gláucia, Vimu, Rodrigo, Taiwo, Kehinde.
Às amigas e aos amigos professores da Escola Politécnica de Saúde da FIOCRUZ:
Verônica, Márcio, Tânia, Valéria, Ana, Carol, Inês, Bianca, Felipe e Viviane. Aos estudantes e
professores do Colégio Pedro II, do Colégio de Aplicação da UERJ e da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, doces-bárbaros. Ao Bruno Bahia, arché. À Juliana Lira,
à Aline do Carmo e à Joana Tolentino, cujas vozes combativas e corajosas redefiniram os
contornos da tarefa do ensino de filosofia para mim.
Às professoras e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
UFRJ, que não se furtam aos debates prementes da filosofia contemporânea, em cujas
provocações e gestos críticos encontro inspiração e alegria para seguirmos juntxs na caminhada.
Em especial, à professora Carla Rodrigues e aos professores Rafael Haddock-Lobo, Guilherme
Castelo Branco, Adriany Ferreira e Filipe Ceppas. Os acertos são deles também, sem qualquer
dúvida; os erros, titubeios e hesitações são todos meus.
Ao Institut d’Études Politiques de Paris – SciencesPo e ao prof. Dr. Fréderic Gros, pela
orientação ao longo do estágio doutoral no ano de 2017, em Paris. À Marie-Helène Kremer,
pela generosidade do acolhimento e pela ajuda diante do estranho mundo kafkiano dos papeis,
cartas amontoadas, firmas, selos, carimbos e processos-sem-fim da aparelhagem burocrática.
Às companheiras e aos companheiros da jornada doutoral em Paris, crème de la crème: Rafa,
Rubão, Ana, Paula, Juliana, Bruno, Lari, Nana, Luiz Arthur, Mme. Laya, Ana Carolina e
Catarina.
Ao PPGF/UFRJ – à Sônia e à Dina, sempre. Generosidade sem fim...
Ao CNPq e à CAPES pelas bolsas de pesquisa que me permitiram levar adiante as
questões que orientam esta tese, ainda que os tempos neste país, ao longo do último triênio, em
meio a golpes, cortes abruptos orçamentários e reformas hediondas, tenham sido tão nefastos
para a pesquisa acadêmica. É preciso ressaltar sempre a importância da liberdade acadêmica, a
defesa do pluralismo de ideias e da autonomia universitária – sobretudo, em contextos marcados
pelo autoritarismo, pela censura e pela verticalidade do “cumpra-se”, em tudo oposta ao
compromisso com o pensamento crítico. Sem o exercício da crítica radical e da liberdade de
expressão, a filosofia se torna mero compêndio de letras mortas. Pensar sem temer.
Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de
livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no
mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que
eu também preciso. Amém para nós todos.
Giorgio Agamben
RESUMO
Este estudo tem por objetivo analisar os procedimentos de governo erigidos a partir da política
de “guerra ao terror”, de suas estratégias, táticas e alvos. Nesta pesquisa se intenta pensar, em
uma perspectiva filosófico-política, os instrumentos analíticos capazes de produzir espaços de
legibilidade destes governos da/pela emergência, bem como as implicações político-jurídicas
advindas desta paisagem de guerra ao terror. Na tentativa de compreensão substantiva destes
problemas e discursos securitários, com adensamento crítico das discussões, tratou-se de adotar
uma perspectiva decolonial, que reconhece os efeitos persistentes da colonialidade nas
sociedades subalternizadas, na interface entre a luta por direitos sociais e a anomia; entre a
proteção da vida humana e seu extermínio sumário. São as consequências de uma racionalidade
de governo racista e colonial que este trabalho pretende discutir, tendo por ponto de partida o
problema do governo da emergência em contextos de terror, e do exercício do poder da guerra
no campo dos conflitos contemporâneos – sobretudo, das guerras ditas “preventivas” e as
intervenções humanitárias em nome da tutela dos direitos humanos e da democracia liberal. É
necessário, então, pensar a construção discursiva do terrorista racializado, bem como a
emergência da figura do imigrante na política global, que demonstra as tensões entre as ideias
de cidadania, de identidade nacional, dos direitos humanos e dos povos, e suas representações
como ameaças permanentes ligadas ao terror. Por conseguinte, o eixo em que se concentra esta
pesquisa é a discussão acerca das racionalidades das políticas de segurança atuais e da
colonialidade do ser/poder/saber, tendo por aporte teórico a interlocução estabelecida por
pensadores e pensadoras contemporânexs com a tradição da filosofia política.
REIS, Diego dos Santos. THE EMERGENCY GOVERNMENT: Exception State, War on
Terror and Coloniality. 2019 274 f. Thesis (Doctorate degree in Philosophy) – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
The purpose of this study is to analyze government procedures that are based on the "war on
terror" policy, strategies, tactics and targets. This thesis seeks to think, from a philosophical-
political perspective, the analytical instruments of understanding of these governments of the
emergence, as well as the political-juridical implications of this landscape of war on terror. In
an attempt to substantively understand these issues and securitary discourses, with a critical
consolidation of the discussions, we sought to adopt a decolonial perspective, which recognizes
the persistent effects of coloniality in subaltern societies, in the interaction between the struggle
for social rights and anomie; between the protection of human life and its decisive
extermination. It is the consequences of a rationality of racist and colonial government that this
thesis aims to discuss, starting with the problem of government of emergency in contexts of
terror, and the exercise of the power of war in the field of contemporary conflicts – especially,
the so-called "preventive" wars and humanitarian interventions in the name of the protection of
human rights and liberal democracy. It is necessary, then, to think the discursive construction
of the racialized terrorist, as well as the emergence of the immigrant figure in global politics,
which demonstrates the tensions between ideas of citizenship, of national identity, of human
rights, and their representations as permanent threats linked to terror. Therefore, the focus of
this research is the discussion about the rationalities of current security policies and the
coloniality of being/power/knowledge, having as a theoretical contribution the dialogue
established by contemporary thinkers with the tradition of political philosophy.
Este estudio tiene por objetivo analizar los procedimientos de gobierno erigidos a partir de la
política de “guerra al terror”, de sus estrategias, tácticas y blancos. En esta investigación se
intenta pensar, desde una perspectiva filosófico-política, los instrumentos analíticos capaces de
producir espacios de legibilidad de estos gobiernos de la emergencia, así como las
implicaciones político-jurídicas derivadas de este paisaje de guerra al terror. En el intento de
comprensión sustantiva de estos problemas y discursos securitarios, con adensamiento crítico
de las discusiones, se trató de adoptar una perspectiva decolonial, que reconoce los efectos
persistentes de la colonialidad en las sociedades subalternizadas, en la interfaz entre la lucha
por derechos sociales y la anomia; entre la protección de la vida humana y su exterminio
sumario. Son las consecuencias de una racionalidad de gobierno racista y colonial que este
trabajo pretende discutir, teniendo por punto de partida el problema del gobierno de la
emergencia en contextos de terror, y del ejercicio del poder de la guerra en el campo de los
conflictos contemporâneos – sobre todo de las guerras dichas "preventivas" y las intervenciones
humanitarias en nombre de la tutela de los derechos humanos y de la democracia liberal. Es
necesario entonces pensar la construcción discursiva del terrorista racializado, así como la
emergencia de la figura del inmigrante en la política global, que demuestra las tensiones entre
las ideas de ciudadanía, de identidad nacional, de los derechos humanos y de los pueblos, y sus
representaciones como amenazas permanentes vinculadas al terror. Por consiguiente, el eje en
que se concentra esta investigación es la discusión acerca de las racionalidades de las políticas
de seguridad actuales y de la colonialidad del ser/poder/saber, teniendo por aporte teórico la
interlocución establecida por pensadores y pensadoras contemporáneos con la tradición de la
filosofía política.
Cette étude vise à analyser les procédures de gouvernement issues de la politique de la « guerre
contre le terrorisme », de ses stratégies, tactiques et cibles. Dans cette recherche, nous essayons
de penser, d’un point de vue philosophique et politique, les instruments analytiques de
compréhension de ces gouvernements d’urgence, ainsi que les implications politico-juridiques
de ce paysage de guerre contre le terrorisme. Pour essayer de comprendre en profondeur ces
problèmes et les discours sécuritaires, avec une consolidation critique des discussions, une
perspective décoloniale a été adoptée, qui reconnaît les effets persistants de la colonialité dans
les sociétés subalternisées, dans l'interface entre la lutte pour les droits sociaux et l'anomie;
entre la protection de la vie humaine et son extermination décisive. Ce sont les conséquences
d’une rationalité de gouvernement raciste et colonial que cette thèse a l’intention de discuter,
prenant comme point de départ le problème du gouvernement d’urgence dans les contextes de
terreur et de l'exercice du pouvoir de guerre dans le domaine des conflits contemporains – en
particulier les guerres dites « préventives » et les interventions humanitaires au nom de la
protection des droits de l'homme et de la démocratie libérale. Il faut donc penser à la
construction discursive du terroriste racialisé, ainsi qu’à l’émergence de la figure de
l’immigrant dans la politique mondiale, qui montre les tensions entre les idées de citoyenneté,
d’identité nationale, des droits de l'homme et des peuples et leurs représentations en tant que
menaces permanentes liées au terrorisme. Par conséquent, l’objet de cette recherche est la
discussion sur les rationalités des politiques de sécurité actuelles et la colonialité de l’être / du
pouvoir / du savoir, ayant comme contribution théorique le dialogue établi par des penseurs
contemporains avec la tradition de la philosophie politique.
EI Estado Islâmico
ISIS Islamic State of Iraq and Syria (“Estado Islâmico do Iraque e da Síria”)
UA União Africana
2 (DES)GOVERNOS E LIBERDADES................................................................................35
2.3 NECROPOLÍTICAS...........................................................................................................64
4 OS DIREITOS HUMANOS..............................................................................................126
7 ANTITERRORISMO À BRASILEIRA..........................................................................234
ANEXOS................................................................................................................................250
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................253
17
Sempre evitei falar de mim,| falar-me. Quis falar de coisas.| Mas na seleção
dessas coisas | não haverá um falar de mim?
“it’s war, baby, c’est la guerre, mon amour”2. O verso de Alberto Pucheu em Para que
poetas em tempos de terrorismos? poderia figurar como uma espécie de epígrafe dos últimos
tempos. Epígrafe perversa, é bem verdade, que condensa no seu duplo registro, linguístico e
idiomático, tanto a virulência seca da justificação dos atos institucionais em tempos sombrios
quanto o ardil diplomático dos vocativos que une, simultaneamente, o amor e a guerra.
Se o amor pode ser também uma experiência bélica, como nos lembra outro poeta, João
Cabral de Melo Neto, nos três mal-amados – “o amor comeu minha paz e minha guerra”3 –, a
guerra, por sua vez, dificilmente pode ser uma história de amor. Mesmo se aceitarmos a
definição psicanalítica de que o amor é “dar o que não se tem a alguém que não o quer”4, o
princípio da guerra é a aniquilação total do outro. Não se trataria mais de se endereçar a um
objeto de desejo, mas de realizar o puro desejo de reduzir tudo a nada – terra arrasada que
destrói mesmo as condições de existência e de resistência do outro. No amor e na guerra, diz o
provérbio, não há pessoas certas.
Todavia, persiste algo nessa imagem que inquieta. Afinal, o que parece unir em seus
antípodas o amor e a guerra é a impressão da impotência diante do imponderável e de algo que
parece faltar: às vezes, uma língua comum; noutras, a compreensão de um “corpo estranho e
invasor” que nos encara e que devemos ou acolher ou rejeitar. E isso sob o signo totalmente
2
PUCHEU, Alberto. Para que poetas em tempos de terrorismos? Rio de Janeiro: Azogue Editorial, 2017. p. 22.
3
NETO, João Cabral de Melo. Os três mal-amados. In:______. Poesia completa e prosa. Org. Antônio Carlos
Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 40.
4
LACAN, Jacques. Seminário VIII: A Transferência. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.
18
desconhecido trazido pelo outro. Em ambos os casos, o que assombra é a deriva, a desorientação
e o descentramento. Oscilam a força dispersiva e a força agregadora; a vontade de anexar um
território alheio a um mesmo; a estranheza do que, de modo explosivo, faz tremer a língua e o
pensamento: movimento de amor ou de agressão.
“O político deveria ser o outro | desde o outro”, escreve a poeta Danielle Magalhães
em Quando o Céu Cair5. O Outro, que é a figura essencial de toda política, supõe dissenção e
diferença. É a seu respeito que Aristóteles recorda que a tirania significa a vontade de um sobre
a comunidade política e, por isso, não poderia constituir a melhor forma de governo6. E, de
modo similar, Hannah Arendt, quando afirma que a “política diz respeito à coexistência e
associação de homens diferentes”7.
Talvez o que a política deva aprender do amor seja o risco da queda e a vulnerabilidade
que une todos os corpos. A política, revestida pela ética da guerra, como extensão da guerra por
outros meios, como pensa Clausewitz, não concebe a vida do outro como fim, mas como meio.
Talvez o terror que assola a política seja fruto desse descompasso. Porque o amor é justamente
a ausência de qualquer garantia, como a guerra. Mas a guerra é um modo de reduzir as
diferenças às cinzas: apagar os traços, riscar os nomes e instituir a lei da força na força da lei.
Pois, como recorda Erasmo, “a guerra é doce para os que não a fizeram”. Como o amor.
Apocalipse now: 11 de setembro de 2001. O terror se instala nas casas e nas televisões
norte-americanas. Mal-estar, pânico e medo. Primeiro, o susto, as hipóteses desencontradas e
os três mil mortos contabilizados às centenas, de hora em hora, ao cabo do desmoronamento
das duas torres comerciais mais emblemáticas de Nova Iorque. Depois, a comoção e a revolta.
Os meios de comunicação de massa e a reação popular entre o frêmito e a surpresa. Nova Iorque,
“o epicentro do atual fluxo econômico-cultural”, e Washington, “a convergência dos fluxos
político-militares da globalização”8, estremecem sob o impacto do desastre, ainda sem uma
narrativa que lhe conferisse sentido inicialmente.
5
MAGALHÃES, Danielle. “este é um animal que tira selfie”. In:______. Quando o céu cair. Rio de Janeiro:
7Letras, 2018. p. 90.
6
ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
7
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de janeiro: DIFEL, 2008. p. 145.
8
PASSETTI, Edson. “Terrorismos, demônios, insurgências”. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete. (Org.).
Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006, p. 102.
19
9
Platoon é um filme norte-americano de 1986, escrito e dirigido por Oliver Stone.
10
Nascido para Matar é um filme norte-americano de 1987, dirigido por Stanley Kubrick.
11
Com base na alegação de que o Iraque, sob o governo de Sadam Hussein, era um dos países patrocinadores do
terrorismo internacional, em 2003, na liderança de uma coligação composta por mais de dez países, os EUA
invadiram o Iraque.
12
Imediatamente após os atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA aliaram-se à “Liga do Norte” afegã para
combater o governo Taliban, ao qual se ligava Osama Bin Laden. O governo islâmico do Afeganistão, vencido,
foi substituído por um “governo laico democraticamente eleito”. Contudo, desde então, com o apoio norte-
americano e da OTAN, a perseguição aos Talibans e aos membros da Al-Qaeda prossegue, com vistas,
evidentemente, à sua eliminação.
13
O Presidente George W. Bush promulgaria em 14 de outubro de 2006 o Military Commissions Acts, a polêmica
lei antiterrorista, que autorizava o recurso a “métodos agressivos” nos interrogatórios com suspeitos de planejar
ou apoiar atentados terroristas.
14
A “military order” de 13 de novembro de 2001 autoriza, ainda, a “indefinite detention” dos não cidadãos
suspeitos de praticar ou colaborar em atentados terroristas, cujo processo deveria ser julgado pelas “military
commissions” norte-americanas – que, diga-se de passagem, não são tribunais militares sancionados pelo direito
internacional da guerra. Ademais, o USA Patriot Act, decreto-lei de 26 de outubro de 2001, permite a detenção
indeterminada dos suspeitos estrangeiros que ameacem a segurança nacional; a interceptação telefônica, de e-
mails, de documentos privados e postais sem necessidade de autorização do poder judiciário, entre outras medidas
de “segurança”, com a finalidade de providenciar “ferramentas apropriadas e necessárias para interceptar e obstruir
o Terrorismo”.
20
15
Sobre esta discussão, remeto a NASSER, Reginaldo Mattar (Org.) O Silêncio das Missões de Paz. São Paulo:
EDUC/CNPq, 2012. E, de modo especial, ao artigo da professora portuguesa Daniela Nascimento, intitulado
“Humanitarismo e a ‘guerra contra o terrorismo’: de dilemas complexos a oportunidades perdidas?”. p. 197-215.
16
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1976. p. 180.
17
Já nos primeiros momentos da aula de 22 de janeiro de 1975, do curso Os Anormais, Foucault apresenta o
“monstro humano” como uma das figuras do desvio constituídas em fins do século XVIII e ao longo do XIX.
Recorda o filósofo que “A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato
do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não
apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é, num registro duplo,
infração às leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que
podemos dizer ‘jurídico-biológico’. [...] Ele é o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção
que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com
o proibido.” FOUCAULT, Michel. Les anormaux: cours au Collège de France, 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard,
1999. p. 51.
18
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Editora Vozes, 2017. p.
469.
19
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, E.; OLIVEIRA, S. (Org.). Terrorismos. São
Paulo: EDUC, 2006. p. 25. Grifos meus.
21
20
BORRADORI, Giovanna. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida.
Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 11.
21
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 132.
22
FERRAZ, Maria Cristina Franco. “Terrorismo: ‘nós’, o ‘inimigo’ e o ‘outro’. In: PASSETTI, Edson;
OLIVEIRA, Salete (Org.). Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006. p. 43-44.
23
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 50.
22
equações e cálculos político-econômicos. Não surpreende que, até 2013, somente cinco países
definiam penalmente o terrorismo: os EUA, o Reino Unido, a Espanha, Israel e a Colômbia –
e, a partir de 2016, o Brasil, que passaria a integrar essa lista seleta após a sanção de sua Lei
Antiterrorismo24.
Nas últimas décadas, a Organização das Nações Unidas (ONU) já examinou mais de
150 propostas de definição de terrorismo, todas rejeitadas, com a recomendação de que os 193
países-membros não as incorporassem em suas legislações. Isto porque definir os atos
tipificados penalmente como terroristas já implica uma tomada de posição que não é neutra –
e que poderia, em seu reverso, justificar medidas excessivas e restritivas das liberdades e dos
direitos civis e políticos dos cidadãos. Não esqueçamos, para citar um exemplo, que, durante
décadas, Nelson Mandela, líder anti-apartheid e da luta contra o regime segregacionista, e seu
partido, o Congresso Nacional Africano (ANC), foram considerados terroristas pelo governo
norte-americano, tendo seu nome retirado do catálogo da lista de vigilância terrorista somente
em 2008.
O “terrorista transnacional”, recoberto por formas diversas de designação racial,
adquiriu traços bem delineados: ele é arcaico, radical, fundamentalista, de pele escura, munido
de explosivos, suicida – animal selvagem. Por trás da língua bárbara, um exército de fac-símiles,
igualmente perigosos e suspeitos, cujo ódio é silenciosamente nutrido à espera de liberação. O
terrorista é a alteridade patologizada que desafia a compreensão da intelligentsia ocidental:
“oriente do oriente do oriente...”.
A identificação do islâmico com o terrorista e do negro como criminoso decantou no
imaginário coletivo as características físicas e psicológicas de um tipo, o Outro radical, que se
apresenta como interrogação indissolúvel e diferença abissal, a qual é preciso afastar de “nós”
– heterogêneos, mas coesos; diversos, mas ligados por fatores culturais, linguísticos e sociais
comuns. O Outro é o mal irredutível.
Em contexto nacional, o terrorista será o portador de uma forma íntima e epidérmica de
estrangeiridade que o marca na pele, identitariamente, como sujeito racial destinado ao
distanciamento e à clausura. Às margens do corpo social, é preciso que os processos de
24
A Lei Antiterrorismo é a denominação dada à Lei brasileira de nº 13.260/2016. Trata-se, por meio dessa lei, da
tipificação e da definição das penas para atos de natureza terrorista cometidos ou planejados em território nacional.
De acordo com o artigo 2o. dessa lei, “o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos
neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos
com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou
a incolumidade pública.” Inúmeras críticas foram feitas a essa elaboração, haja vista o risco iminente de
penalização de movimentos reivindicatórios da sociedade civil organizada. No capítulo VII desta tese, há uma
consideração sobre a seletividade penal operada pela Lei Antiterror e sua finalidade de criminalização de coletivos
políticos e movimentos sociais.
23
25
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 61.
26
Cf. SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na
construção da branquitude paulistana. Tese de Doutoramento em Psicologia. São Paulo: Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, 2012.
27
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; LYRIO, Caroline. Racismo Institucional e Acesso à Justiça: uma análise da
atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos anos de 1989-2011. In: CONPEDI/UFSC; Mônica
Bonetti Couto; Angela Araújo da Silveira Espindola; Maria dos Remédios Fontes Silva. (Org.). Acesso à justiça
I. vol.1. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 513-541. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7bf570282789f279. Acesso em: 15 jul. 2018. p. 520.
28
MBEMBE, Op. cit., p. 70.
29
Em discurso ao Congresso estadunidense, em 21 de setembro de 2001, o então presidente George W. Bush, em
tom inflamado, convocava as nações mundiais a participar da luta contra os grupos terroristas internacionais, em
parceria com os EUA. A partir dele, portanto, se estabelecem as bases das ações que marcarão a “guerra ao terror”,
materializadas em princípios norteadores e, diga-se de passagem, polarizadores, na medida em que claramente
opõe ao “nós”, os aliados, um “eles”, os não-aliados, logo apoiadores dos radicais. Esse discurso encontra-se
disponível em <http://archives.cnn.com/2001/US/09/20/gen.bush.transcript/>. Acesso em 15 jul. 2018.
24
30
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.
31
Como recorda Bill Nichols, professor emérito do Departamento de Cinema da San Francisco State University e
um dos principais pensadores em estudos de cinema nos Estados Unidos, “a cobertura ao vivo da televisão se
desenvolve como fluxo interminável. As usuais interrupções para propagandas e mudanças de programa
desaparecem. A ‘pausa para a notícia’ dá um ritmo irregular à mistura sincopada e pós-moderna de imagens e
comentários, conjecturas, resumos, descrições, repetições e entrevistas que se sucedem confusamente. Os âncoras
dos noticiários no estúdio, os repórteres no local, testemunhas e sobreviventes, novas filmagens feitas e
transmitidas, filmagens de amadores descobertas e editadas, mais imagens e mapas – esse trabalho dos bricoleurs
da mídia confunde, instiga e aterroriza.” NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, Maria Dora;
LABAKI, Amir. (Org.) O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 258-259.
25
32
SAFATLE, Vladimir. O devir negro do mundo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 abr. 2018. Opinião. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/04/o-devir-negro-do-mundo.shtml . Acesso
em: 5 dez. 2018.
33
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017. p. 15.
34
MITRANO, Bruna. Não. São Paulo: Patuá, 2016. p. 28.
26
filas dos pontos de ônibus ou nos calçadões da praia, sem qualquer assombro: “tem que bater,
tem que matar, engrossa a gritaria”35. E a vida prossegue em sua normalidade.
Na impossibilidade de registrar os nomes de tantos outros, mas igualmente atento para
não os apagar uma vez mais e nem fazer da minha a sua voz, é preciso marcar o gesto político
que, em linha dupla, inscreve-se neste texto. Gesto que não delimita apenas o objeto de pesquisa
desta tese, mas que pretende rastrear no discurso de contenção ao terror e na instauração dos
estados de exceção, a reiterada política de extermínio dos indesejados praticada nos “E/estados
de emergência”, com a devida simulação da legalidade. Assombrar-se face ao terror – e, às
vezes, diante da falta do assombro que assume os contornos da indiferença – torna-se a tarefa
política de primeira ordem para questionarmos as fraturas expostas de nosso tempo. Tempo de
ordens, ordenanças, ordenações, ordenamentos, subordens, mandados, requerimentos.
Tempo de emergência. De Estados Democráticos de Emergência.
É preciso reconhecer, então, logo de saída, que este não pretende ser um texto neutro e
desinteressado. Até porque essas mitologias positivistas não deveriam se sustentar em um lugar
situado de produção, enunciação, difusão e circulação do conhecimento assumido pela
universidade enquanto lugar de resistência crítica incondicional “a todos os poderes de
apropriação dogmáticos e injustos”36.
Desse modo, as linhas de força destes escritos têm como suporte uma suspeita
obstinada: as políticas de segurança pública erigidas contra os inimigos do Estado têm
desempenhado uma função restritiva em relação às garantias fundamentais – quer se trate dos
direitos individuais ou dos direitos humanos – cada vez mais presente nos ordenamentos
jurídicos nacionais. E, de modo ainda mais ostensivo e truculento, quando se tratam de vidas
precarizadas, que experimentam os riscos maiores de extermínio por conta de determinados
traços raciais, sociais, étnicos ou sexuais. Soma-se a isso a escassez do luto público mobilizado
por essas vidas, haja vista que, seguindo os passos de Butler, a partir da ideia e do fato do estado
de guerra permanente ao terror, existe “algo que divide as populações entre aquelas pessoas
por quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos”37. E se o inimigo do Estado é
construído à semelhança dos segmentos marginalizados, a morte deles é o que tornará a vida
mais segura.
35
BUARQUE, Chico. As Caravanas. Caravanas. Rio de Janeiro, Biscoito Fino, 2017.
36
DERRIDA, Jacques. A universidade sem condição. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade,
2003. p. 16.
37
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 64.
27
38
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 12.
39
BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? In: Cadernos Pagu, Campinas, n.º 53,
p. 1-14, 2018. p. 12. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332018000200405&lng=pt&nrm=iso&tlng=p.
Acesso em: 08 dez. 2018.
40
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, E.; OLIVEIRA, S. (Org.). Terrorismos. São
Paulo: EDUC, 2006. p. 26.
28
41
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 26.
42
O projeto “Modernidade/Colonialidade” (M/C) nasceu com um coletivo formado por pensadores latino-
americanos, como Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, María Lugones, Catherine Walsh, dentre
outros. Sua proposta interdisciplinar consiste em pensar criticamente a dialética da Modernidade/Colonialidade.
As proposições decoloniais procuram romper com a ideia de universalidade do conhecimento estabelecida pelo
colonialismo do Atlântico Norte. Ao analisar a colonialidade do ser/saber/poder que funda a modernidade, os
pensadores decoloniais expõem as marcas deixadas nas sociedades colonizadas e buscam questionar os pilares de
sustentação da “lógica cultural” legados do colonialismo.
29
43
Segundo o professor David Charles RAPOPORT, do Departamento de Ciência Política da Universidade da
Califórnia, em The Four Waves of Modern Terrorism. Washington: Georgetown University Press, 2004, a onda
religiosa teria se iniciado com a Revolução Islãmica no Irã e com o chamado “regime dos aiatolás”. A expressão
das reivindicações marcadamente teológico-políticas, a descentralização e a independência da organização celular
e o uso em larga escala de artefatos explosivos singularizariam grupos como o Hezbollah (Partido de Deus –
Líbano), o Hamas (Movimento da Resistência Islâmica – Palestina), a Jihad Islâmica Palestina e a Al-Qaeda (A
Base – Afeganistão) – e, mais recentemente, o Estado Islâmico (Iraque).
30
44
Conforme a definição de racismo proposta na Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, da UNESCO:
Art. 2º. Item 2: “O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os
comportamentos discriminatórios, as diposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a
desigualdade racial, assim como a idéia falaz de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e
cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentares, e de práticas
discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos anti-sociais; obstaculiza o desenvolvimento de suas
vítimas, perverte aqueles que o praticam, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a
cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito
internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais.” Declaração sobre a
Raça e os Preconceitos Raciais. Conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura, em 27 de novembro de 1978. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec78.htm. Acesso em: 8 dez. 2018.
31
45
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n. 14, jan.-jun., 2011b, p. 346. Tradução minha.
33
Ora, os assassinatos em massa em consequência das ações de paz não seriam também
eles terroristas? Não haveria um paradoxo entre a defesa da “pessoa humana” e a truculência
do intervencionismo bélico? Por outro lado, seria possível pensar os direitos humanos para além
dessa perspectiva do “homem natural”, ontologicamente constituído como dado supra-
histórico?
O capítulo V – Democracia, neoliberalismo e razão (ba)bélica –, por sua vez, é
voltado para a questão da difusão da democracia liberal em “países autoritários ou teocráticos”
e a razão (ba)bélica que a sustenta. Problema de tradução e de imposição do fundamentalismo
econômico, representado pela ética e política neoliberais, trata-se de discutir a tese de Francis
Fukuyama e o suposto “consenso geral”, “que aceita a legitimidade das pretensões da
democracia liberal em ser a forma mais racional de governo”.46 Para isso, é importante
considerar a divergência de Jacques Derrida, expressa em seu Espectros de Marx. Para o
filósofo franco-argelino, talvez seja justamente o pensamento que anuncia a “boa nova” que
traria consigo a legitimação mais cruel do “sacrifício” necessário de alguns, com vistas à
chegada na “Terra Prometida dos liberalismos econômico e político”47. Soma-se a isso o
debate da “razão criminológica” e punitivista dos regimes neoliberais, para os quais torna-se
imprescindível pensar a gestão e a economia política dos ilegalismos. Isto porque, como
veremos, o programa neoliberal inclui uma gama de diferenciações operatórias, de processos
oscilatórios e uma rede de “intervenção do tipo ambiental”48, segundo o cálculo racional de
custos e benefícios das punições.
Seria a “guerra ao terror” uma intervenção também “do tipo ambiental”, funcionando
como um “sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos
disciplinares e os mecanismos de segurança”?49 E o terrorismo de Estado poderia ser analisado
como a condição de propagação dos estados neoliberais, por meio da “intimidação
generalizada” e da aniquilação de contingentes humanos inúteis para os fluxos econômicos
transnacionais?
Finalmente, no capítulo VI – Tremor e terror: do estado de terror aos terrorismos de
Estado –, me dediquei a estudar a razão securitária e sua interface com os terrorismos de
Estado, quando a violência sistêmica e sistematizada de Estado passa a configurar uma estrutura
46
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992. p. 245.
47
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 98.
48
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.
355.
49
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 10.
34
que mobiliza instituições e agentes estatais direcionados à prática e à violação dos direitos
humanos, não-oficializada, mas tornada política pública pelas redes de repressão, chantagem,
intimidação e assassínio generalizados. “Legalidade” extraordinária, o autoritarismo e a
violência adquirem as formas de uma normatividade excepcional, cujos resquícios no
ordenamento jurídico são positivados como instrumentos de defesa.
Pensar o terror como governamentalidade de Estado significa enfatizar também o
governo das condutas pelo terror, quer dizer, pela ameaça constante do emprego da violência e
de seus aparatos repressivos com a finalidade política de neutralizar as dissenções. Mas não é
apenas pela via dos instrumentos excepcionais que regulam as situações de emergência que os
mecanismos suspensivos e relativizantes das garantias fundamentais são ativados. As práticas
difusas dos terrorismos de Estado e o legado de violência institucional passam a funcionar como
organizadores da vida política nestas sociedades marcadas pelo governo do terror.
No capítulo VII, que encerra esta tese – Antiterrorismo à brasileira –, discutem-se os
impactos mais nefastos da Lei Antiterror, sancionada no Brasil em 2016, e a tentativa de
enquadrar penalmente coletivos políticos e movimentos sociais na tipificação de “organizações
terroristas”. O que revelaria, uma vez mais, o perigo das definições genéricas e alargadas de
terrorismo e como esse debate tem servido, aclimatado à dinâmica política de cada país, para
suspensão das garantias jurídicas fundamentais, cortes nos direitos públicos subjetivos à
disposição dos acusados e para as estratégias punitivas “utilizadas pelos regimes autoritários
contra os grupos que estariam ameaçando a estabilidade das instituições do Estado”50, baseadas
no direito penal do inimigo.
50
ZACKSESKI, Cristina. A guerra contra o crime: permanência do autoritarismo na política criminal latino-
americana. In: ______. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Verso e reverso do controle penal: (Des)aprisionando
a sociedade da cultura punitiva. v. 2. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 125-126.
35
2 (DES)GOVERNOS E LIBERDADES
51
Segundo Hobbes, “[...] se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra
que é de todos os homens contra todos os homens.” HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 79.
52
Reelaborada e reescrita diversas vezes entre 1926 e 1956, Um Homem é um homem encena a transformação do
pequeno burguês Galy Gay numa máquina de combate humana. “A guerra, escreve Brecht no decorrer da peça,
“não escolhe seus mortos. Na guerra não há vencedores”.
36
53
BRECHT, Bertolt. Um Homem é um Homem. Trad. Fernando Peixoto. Adaptação de Paulo José. Belo Horizonte:
Autêntica/PUC-MG, 2007. p. 90-91.
54
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Sobre Eichmann, diz Arendt: "[...] apesar de todos os esforços da
promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse
um palhaço” (Idem, p. 67). E, em uma passagem célebre, que poderia aproximar Eichmann do personagem de
Brecht: “[...] era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito
insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso,
efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente
impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”. (Idem, p. 299)
55
Sobre essa abordagem, ver DIDI-HUBERMAN, Georges. Quand les images prennent position. L'Oeil de
l'histoire, 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009.
37
O que Brecht não poderia supor, entretanto, é que a natureza dessas transformações não
se limitaria aos conflitos territoriais de um mundo cindido por conta das ideologias políticas,
econômicas ou sociais. O campo das lutas ideológicas tomaria a forma dos grandes campos de
internamento e de concentração, que resultariam no genocídio de milhões de pessoas. Campos
que, hoje, funcionam por vias menos ostensivas mas igualmente eficazes no extermínio56 de
determinados grupamentos sociais57.
Tudo dominado
56
Para uma leitura mais detalhada da questão dos campos de extermínio como estratégia biopolítica, indico a
dissertação de Mestrado de Thatiana Victoria dos Santos Machado Ferreira de Moraes, Límen Político: Traçando
as fronteiras da violência e da exceção no interior do biopoder, orientada pelo Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco
e defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2017.
57
Veja-se, para citar um exemplo, os dados da Anistia Internacional Brasil divulgados no lançamento da
Campanha Jovem Negro Vivo. Só em 2012 ocorreram 56 mil homicídios no país. Mais da metade das vítimas
eram jovens com idade entre 15 e 29 anos, dos quais 80% eram negros. Desse total, ainda segundo a organização,
menos de 8% dos casos chegaram a ser julgados, o que reitera a percepção não de uma fatalidade, mas de um
projeto de Estado em curso no Brasil e no mundo, se analisarmos os dados de homicídio em decorrência de ação
policial. Disponível em: https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/ Acesso em: 15 nov. 2018.
38
própria morte do indivíduo, provando que, doravante nada – nem a morte – lhe pertencia e que
ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido.”58
O fato é que, em suas estratégias mais sutis, fascismos, colonialismos e imperialismos
legaram para a política contemporânea instrumentos autoritários e mecanismos amplamente
utilizados pelos Estados e frequentemente incorporados a legislações nacionais. No interior das
democracias liberais mais consolidadas, eles ressurgem em novos trajes, com outros emblemas
e em falas aparentemente mais republicanas, mas um tanto quanto perigosas. Pois, quando os
discursos que fundamentam as leis são pautados em discriminação étnica, cultural, social, racial
ou sexual, ou até mesmo na violação do Direito Internacional de proteção de refugiados e de
não devolução, é ainda a eliminação das condições de existência que está em jogo.
Não é de estranhar que as discussões sobre a segurança e a letalidade estatal se tornem
temas privilegiados nos debates políticos, militares e econômicos da atualidade. Ora, a que se
deve essa inflação nos últimos decênios? Poderíamos, inicialmente, afirmar às avessas: a
insegurança tornou-se o grande tema dos debates sociais desse início de século. É preciso
remarcar que o termo passa a designar um campo semântico tão vasto que, da segurança
alimentar à segurança da informação, da segurança ambiental à segurança política, defensiva e
pessoal59, redimensiona a especificidade do conceito para além da segurança nacional. Essa
expansão vocabular chega a tal ponto que, em 1994, seria elaborado no Relatório do
Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
um novo conceito, o de segurança humana60.
O que está em jogo, em diversos domínios e escalas, passa a ser não só estar protegido
de riscos, danos ou perdas em todos os âmbitos da vida individual e comunitária, mas também
a compreensão liberal da segurança como liberdade, isto é, escolha. Segundo o documento, “O
desenvolvimento humano é o alargamento das escolhas das pessoas. A segurança humana é a
garantia de que as pessoas possam exercer essas escolhas com segurança e liberdade”61
58
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 600.
59
A ponto de figurar no artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Toda pessoa tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
60
O conceito de segurança humana engloba dois aspectos principais: primeiro, segurança de ameaças crônicas,
como a fome, as doenças e a repressão (freedom from want); depois, proteção de mudanças súbitas e nocivas nos
padrões da vida – seja em residências, no trabalho ou em comunidades (freedom from fear). De acordo com o
PNUD, a segurança humana seria constituída de sete componentes: 1) Segurança econômica; 2) Segurança
alimentar; 3) Segurança sanitária; 4) Segurança ambiental; 5) Segurança pessoal; 6) Segurança comunitária; 7)
Segurança política (entendida como garantia do exercício da cidadania).
61
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME – UNDP. Human Development Report 1994. New
York: Oxford University Press, 1994.
39
(PNUD, 1994). Nesse contexto, as medidas de segurança ocupam espectros cada vez mais
amplos da vida, inseparáveis de um conjunto de procedimentos que engendra novas formas de
produção da precariedade e de desigualdade pelos dispositivos de seguridade.
Em outro domínio, a nova ordem internacional subsequente ao fim da Guerra Fria
redefiniu os parâmetros da segurança internacional. A dissuasão nuclear e a difusão da ideia de
segurança humana se aliam à discussão da segurança nacional e passam a orientar os debates
acerca da responsabilidade de proteção dos Estados, dos direitos humanos e do fenômeno da
guerra.
Ora, se as guerras atuais tomaram outras formas, não é mais possível analisá-las sob o
prisma dos conflitos regionais ou internacionais do século XX. Isto porque, além das novas
modalidades da guerra (que dificultam, inclusive, a demarcação de fronteiras das zonas de
combate e das zonas de paz), é cada vez mais patente a existência de um “estado de violência”62
permanente, no qual estamos inseridos. Estado, sem dúvida, proveniente menos de uma guerra
constante e ininterrupta de “todos contra todos” de extrato hobbesiano, do que de complexos
sistemas globais de segurança, multipolar e difusos, voltados para contenção das ameaças
transterritoriais. É nesse cenário que pode ser compreendida uma declaração de “guerra ao
terror”, tipificada como contraterrorista, apesar de lançar mão de mecanismos tão ou mais
destrutivos do que aqueles estrategicamente utilizados pelos “terroristas”. Se as aspas, aqui,
operam uma suspensão semântica do termo, cabe antes mais uma palavra a título de introdução.
É preciso problematizar tipificações e definições que enquadram63 grande parte das
políticas de combate ao “inimigo externo”, alçado como adversário de todas as nações do globo.
As redes de terror e células soturnas estariam sempre prontas a tomar de assalto os Estados e a
atentar contra as instituições civis e a democracia, o patrimônio artístico e cultural e, até mesmo,
62
Salienta Frédéric Gros que “A guerra mudou a tal ponto de aspecto que é preciso admitir que o que foi pensado
sob seu nome durante séculos praticamente desapareceu. [...] Depois da queda do Muro de Berlim, acreditou-se,
escreveu-se que começava o fim da história. [...] Foi outra coisa que se produziu: o fim da guerra e a emergência
dos estados de violência. [...] O fim da guerra não significa sobretudo a paz, porque não é possível pensar a paz
fora do horizonte da guerra. [...] A questão filosófica visa compreender o que, através do caos das violências, pode-
se pensar como Guerra e Segundo quais critérios.” GROS, Frédéric. Estados de Violência: ensaio sobre o fim da
guerra. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida, SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 5-6.
63
O conceito de enquadramento (“Framed”) é referido aqui tal como proposto pela filósofa Judith Butler em seu
livro Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (“Frames of war: When is life grievable?”), publicado
em língua inglesa em 2009. Logo na introdução, a filósofa justifica: “[...] por um lado, procuro chamar atenção
para o problema epistemológico levantado pela questão do enquadramento: as molduras pelas quais apreendemos
ou, na verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros como perdida ou lesada (suscetível de ser perdida
ou lesada) estão politicamente saturadas. Elas são em si mesmas operações de poder. Não decidem unilateralmente
as condições de aparição, mas seu objetivo é, não obstante, delimitar a esfera da aparição enquanto tal. Por outro
lado, o problema é ontológico, visto que a pergunta em questão é: O que é uma vida?. BUTLER, Judith. Quadros
de guerra: Quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015. p. 13-14.
40
contra a humanidade64. Monstros desumanos, bradam algumas vozes, que devem ser
neutralizados – segundo o jargão internacional, para dissimular as expressões de “morte”,
“abate” ou “extermínio” de seu léxico. Melhor seria, então, completam, a neutralização
profilática. E uma nova corrida anima as potências ocidentais, não mais armamentista ou
nuclear, apesar de prosseguir veladamente em curso, porém uma intensa caça com vistas a
prefigurar alvos futuros, antecipar e desmontar, pelos mapeamentos, possíveis ameaças.
Instaura-se a lógica do terror espectral, em um contexto no qual os riscos (financeiros,
ecológicos, bélicos, epidemiológicos etc.) são apresentados como onipresentes e as ameaças
globalizadas.
O fantasma do terror
64
Interessante ressaltar como o conceito de “humanidade” se presta a uma apropriação oportunista na justificação
dos combates bélicos. O “humano” em questão, é claro, exclui imensas parcelas étnicas e raciais que são
desumanizadas em razão de seu modo de vida. A desumanização de grupos marginalizados – imigrantes, minorias
étnicas e mulçumanos, para citar apenas alguns exemplos – opera, não raro, pela associação de traços físicos a
traços morais, com a essencialização e a hierarquização das diferenças. Por isso, estes grupos são eliminados sem
grande comoção da opinião pública. É deste modo que, historicamente, “as vítimas de genocídio eram chamadas
de vermes pelos perpetradores. Os escravos eram vistos como não valendo uma fração de uma pessoa. Os
imigrantes eram associados a pestes invasivas e a doenças infecciosas. Jogadores de futebol negros são saudados
com imitações de macacos em estádios europeus. Índios são estereotipados como selvagens em oposição a nobres.”
HASLAM, Nick; LOUGHNAN, Steve. Dehumanization and infrahumanization. Annual Review of Psychology,
65, 2014. p. 401. (Tradução minha). Trata-se, portanto, de categorizar o outro como moralmente, culturalmente ou
socialmente inferior, privando-o – via estereotipização ou animalização – de seus traços humanos.
65
CHANDLER, David. The responsibility to protect? Imposing the 'Liberal Peace'. International Peacekeeping,
vol. 11, n. 1, Spring 2004, p. 59–81.
66
Cf. NASSER, Reginaldo Mattar (Org.) O silêncio das missões de paz. São Paulo: EDUC/CNPq, 2012.
41
67
Cabe ressaltar, ainda, os distintos modos de percepção desses acontecimentos segundo a cobertura midiática que
os veicula. E, frequentemente, como contribuem para os modos distintos de elaboração do luto público. Como
lembra Derrida, tomemos os “exemplos de assassinatos em massa quase instantâneos que não foram registrados,
interpretados, sentidos e apresentados como ‘acontecimentos maiores’. Eles não deram a ‘impressão’, pelo menos
não para todo mundo, de serem catástrofes inesquecíveis”. Por isso, continua o filósofo franco-argelino, “devemos
(e esse dever é ao mesmo tempo filosófico e político) distinguir entre o fato supostamente bruto, a ‘impressão’ e
a interpretação”. DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques
Derrida”. In: BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de
Terror: Diálogos com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004. p. 99.
42
vezes, incontestavelmente justas68. Pois, quando uma associação de Estados nacionais declara
“guerra ao terror”, o que isto significa efetivamente, haja vista que o terror não é uma entidade
política soberana delimitada por um território, isto é, um Estado-nação? Ou ainda, seria possível
categorizar os terrorismos de Estado hoje com base nas definições dos terrorismos
transnacionais propostas pelos Estados?
Quando se proliferam os discursos de ódio e os diagnósticos apocalíticos, o que resta da
democracia? Estaríamos diante de um fantasma, o “fantasma do terror”? E, se for assim, o que
nos murmura esse fantasma? O que, afinal, esse espectro pode nos acenar, ainda? Nem Leviatã,
nem “o mais frio de todos os monstros”69. Se a maneira de elaboração do trauma é a compulsão
à repetição, como propôs Freud, então evitá-lo demandará um gasto preventivo, e quase
neurótico, em que a pulsão de autodefesa e a aniquilação radical se completam. Será preciso,
antes de tudo, assegurar-se, livrar-se do perigo, e, principalmente, falar da ameaça, prevenir-
se, desarmá-la.
Poderíamos analisar, nos termos do que Jacques Derrida chama de processos auto-
imunitários, esses delírios persecutórios e as suspeitas generalizadas em relação aos outros, que
estão no alicerce das políticas públicas de segurança atuais? De acordo com o filósofo,
68
Ao tratar das procedências do conceito contemporâneo de guerra justa, Thiago Rodrigues atenta para o fato de
que as “exceções ao uso da força”, presentes na Carta das Nações Unidas de 1945, encontram legitimação na noção
de segurança coletiva. Disso resulta não apenas a possibilidade de intervenção bélica em caso de legítima defesa
individual ou coletiva, como também um redimensionamento das modalidades de guerras justas. Segundo o autor,
“[...] no campo da discussão sobre o tema da guerra justa, interessa destacar como o internacionalismo liberal
atualizou a noção de justiça na guerra a partir do momento em que o sistema de segurança coletivo proposto pela
Liga das Nações não defendeu o fim total e absoluto da guerra, mas revalorizou quais modalidades de guerra
seriam justificáveis ou não. Portanto, tratou-se de uma atualização da definição de guerra justa que passou pela
nova fórmula defendida para o jus ad bellum: no novo sistema os Estados teriam direito de recorrer à guerra para
defender-se e em nome da paz internacional em ação coligada com outros membros da associação.” RODRIGUES,
Thiago. Guerra e Política nas Relações Internacionais. Tese de doutoramento em Ciências Sociais (Relações
Internacionais). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. p. 147.
69
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 48.
70
Tal como apresentado no diálogo com a filósofa Giovanna Borradori em BORRADORI, Giovanna; DERRIDA,
Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jüngen Habermas e Jacques
Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 109.
43
isto é, o terror. Na medida em que a militarização da vida tem por consequência – e talvez não
seja de modo fortuito – a restrição de participação democrática e a intimidação de civis, ela
envolveria aspectos dos terrorismos. Não à toa, prossegue Derrida, “[...] as condições auto-
imunes implicam o suicídio espontâneo do mecanismo que deveria proteger o organismo da
agressão externa.”71 A ameaça da vida democrática é gerada pela reação defensiva dos Estados
e no governo da exceção como paradigma do político. Paradigma que teria por contrapartida a
imensurável burocratização da vida, isto é, “[...] a forma de governo na qual todas as pessoas
estão privadas da liberdade política, do poder de agir”72. O poder anônimo dos administradores
é outra face da violência no limiar da qual política e polícia se tocam.
A relação sistêmica entre terrorismos e estados de segurança impactam profundamente
nos pilares de sustentação do Estado de direito. Basta pensar na política irrestrita de venda de
armas para Estados que apoiam organizações ditas terroristas para concluir que as relações são
muito mais complexas do que se poderia supor à primeira vista.
O estado de segurança, longe de afiançar, como se propõe, a proteção e a integridade
dos cidadãos nacionais, termina por se converter em estado policialesco, que potencializa o
terror. Terror definido não mais pelas instâncias jurídicas, mas pelos organismos policiais que
têm a primazia de identificar “comportamentos suspeitos” e intervir em situações de presumida
ameaça73.
Deste modo, a polícia seria como anticorpo ativo das políticas de segurança, para usar
uma vez mais a metáfora dos processos autoimunes de que se serve Derrida. Ela é um agente
que atua como fim de si mesma, que parece “[...] promover as forças da vida, mas que acaba
estando a serviço de um impulso de morte”74. O que Antonio Candido no ensaio “A verdade da
repressão”, de 1972 – escrito em pleno estado de exceção brasileiro –, aproximaria do processo
arbitrário kafkiano, pois a polícia já “não tem necessidade de motivos, mas apenas de
estímulos”. Para isso, ela:
71
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 32.
72
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte de Macedo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2014. p. 101.
73
O que contraria até mesmo os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobretudo aqueles que
dispõem sobre o direito à ampla defesa, à presunção de inocência, à instauração do devido processo legal por um
tribunal independente e imparcial, e à arbitrariedade de prisões, detenções ou exílios sem respaldo jurídico.
74
NAAS, Michael. A autonomia, a auto-imunidade e a limusine de cabine estendida – Do Rogue State (Derrida)
à Cosmópolis (DeLillo). In: NASCIMENTO, Evandro (Org.). Jacques Derrida. Pensar a desconstrução. São
Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 152.
44
Não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou
moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou
da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir,
sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância
ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura
e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.75
75
CANDIDO, Antônio. A verdade da repressão. In:____. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 113-
118.
76
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 142.
77
LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 57.
78
É curioso ressaltar ainda, de acordo com Freud, “que o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido
quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então
víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado, e assim por
diante”. FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“O homem
dos lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 364.
79
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 142.
45
Consideração intempestiva
O bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki pela Força Aérea Aliada
na Segunda Guerra Mundial poderia ser tipificado como terrorista? A invasão norte-americana
80
BARTHES, Roland, 1977 apud AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009b. p. 58.
81
Idem, p. 64.
46
82
Em matéria da Reuters de 06/08/2016, publicada no Jornal O Globo, que trata, dentre outros assuntos, da ação
judicial impetrada pela União Americana de Liberdades Civis (ACLU), em sua demanda de transparência na
política de combate às redes de terror, estima-se que somente em razão dos ataques de drones, 2.300 suspeitos e
civis foram assassinados no Paquistão, no Iêmen e no Afeganistão. A justificativa dessas mortes, consideradas
“danos colaterais” da guerra ao terror, segundo os documentos oficiais, revelam a tentativa de fundamentar o uso
da força letal por meio de procedimentos com alto grau de imprecisão. Substitui-se, aqui, o corpo a corpo e a
possibilidade de autodefesa por um instrumento de homicídio instantâneo, controlado via internet, satélites e até
smartphones. Matéria disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/eua-revelam-politicas-de-drones-vetam-
detencoes-em-guantanamo-19869673. Acesso em: 20 ago. 2016.
47
2002: “será que alguém acha que essa guerra – a que os Estados Unidos declararam contra o
terrorismo – é uma metáfora?”83 E, prossegue a escritora:
83
SONTAG, Susan. Um ano depois. In:____. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos. Trad. Rubens Figueiredo.
São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 132.
84
Idem, ibid.
48
estímulo às subjetividades agressivas e pela violência sistêmica que vitimiza, sobretudo, grupos
em situação de vulnerabilidade e de exclusão social. Compreende-se que:
85
TELES, Edson. A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção. In: GALLEGO, Esther
Solano (Org.). O ódio como política: A reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 71.
49
Com tudo isso em vista, portanto, podemos entender terrorismo como sendo o
emprego do terror contra um determinado público, cuja meta é induzir (e não
compelir nem dissuadir) num outro público (que pode, mas não precisa, coincidir
com o primeiro) um determinado comportamento cujo resultado esperado é alterar
a relação de forças em favor do ator que emprega o terrorismo, permitindo-lhe no
futuro alcançar seu objetivo político — qualquer que este seja.86
86
DINIZ, Eugênio. Compreendendo o Fenômeno do Terrorismo. In: BRIGADÃO, C.; PROENÇA JR., D. Paz e
Terrorismo. São Paulo: Ed. Hucitec, 2002, p. 13.
87
BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: diálogos
com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 113.
88
Cf. VIRILIO, Paul. L´insecurité du territoire. Paris: Stock, 1976.
89
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 62.
50
de Vichy; bem como diversos movimentos de libertação nacional, que combateram ditaduras,
neocolonialismos e ocupações militares em seus territórios, no decorrer do século XX.
É desse modo que, segundo Foucault, “[...] quando se dá como expressão de uma
nacionalidade que não tem ainda nem independência nem estruturas estatais e reivindica obtê-
las, o terrorismo é finalmente aceito”90. A ressalva do filósofo pode ser compreendida quando
pensamos nas guerras de descolonização e, especialmente, na Guerra da Argélia, que tomou
curso entre 1954 e 1962, cujos membros de libertação nacional eram classificados pelo governo
francês como “terroristas”. Foucault parece ter em mente que, enquanto movimento
revolucionário ou nacionalista, todo movimento tipificado como “terrorista” tão logo obtenha
êxito em seus propósitos, deixa de sê-lo, segundo as “definições” oficiais. Movimentos de
independência nacional, nesse sentido, podem ser considerados “terroristas” segundo uma
perspectiva prévia à autonomização ou à fundação de um Estado – e exemplos históricos se
multiplicam, do reconhecimento do Estado de Israel à Guerra de libertação nacional da Argélia
ou à luta (em curso) pelo reconhecimento do Estado Palestino. Como lembra Chomsky, “[...]
até mesmo os nazistas condenaram duramente o terrorismo e promoveram atos que chamavam
de ‘contraterrorismo’ contra os partisans terroristas”91.
Caso deixemos para segundo plano a discussão sobre a legitimidade ou não dos fins a
que se destinam as ações, mas enfatizarmos as suas consequências, os terrorismos têm como
marca distintiva o uso repentino e desmedido da violência, com objetivos políticos e uso
enfático do medo para intimidação de civis, de instituições e de governos.
Ao romper o pacto de segurança firmado entre a população e o Estado, expondo os
governados aos riscos dos quais o pacto deveria resguardar, os terrorismos evidenciam a
vulnerabilidade e a tensão que atravessa toda uma prática de governamento, pautada em
modelos securitários, na gestão burocrática dos riscos e da letalidade estatal e na proteção
seletiva dos agentes públicos, com vistas a barrar eventuais ameaças. Assim, em entrevista
intitulada Segurança e Estado, concedida a R. Lefort em novembro de 1977, Foucault
ressaltaria que “[...] o que choca no terrorismo, o que suscita a cólera real e não o disfarce do
governante é que precisamente o terrorismo o ataca em um plano em que justamente ele afirmou
a possibilidade de garantir às pessoas que nada lhes acontecerá”.92 A fratura exposta resultante
90
FOUCAULT, Michel. “Michel Foucault: la sécurité et l’État”. In:_____. Dits et Écrits II. Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 383. Tradução minha.
91
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.
105.
92
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: la sécurité et l’État. In:_____. Dits et Écrits II. Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 385-386. Tradução minha.
51
dos atentados revela, por sua vez, a fragilidade de uma técnica de governo que, de cima a baixo,
revestiu a população em uma miríade de dispositivos de segurança, com a garantia de protegê-
la em troca de sua integração. Daí “[...] o caráter complementar da seguridade com a segurança,
e [...] o vínculo direto entre as duas modalidades de gestão das populações que trabalham em
prol da boa ordem social”93.
É notório, de outra via, que os terrorismos são fenômenos políticos que não se
circunscrevem exclusivamente a determinados grupos nacionais ou a redes transnacionais,
como se pretende instituir pela narrativa colonial hegemônica. A instabilidade semântica na
linguagem pública, perpetuada sobretudo pelos meios de comunicação de massa, revela um
problema irredutível que não se restringe aos limites dos conceitos.
Não deixa de ser curioso, como nota Heleno Fragoso94, que “[...] as razões pelas quais
o rótulo ‘terrorista’ é aplicado num caso, e não no outro, parecem ter pouco a ver com a natureza
dos atos: elas derivam dos interesses da reação oficial a tais atos”95. Analisar os terrorismos,
portanto, exige um olhar atento aos seus efeitos e aos “interesses” envolvidos em sua
designação. Desse modo, problematizar a noção de terrorismo significa empreender uma crítica
com objetivo de retraçar as estratégias levadas a cabo em sua construção como fenômeno
político difuso e dos usos discursivos a que ele se presta sem partir de uma suposta
autoevidência – que, ademais, como atenta Derrida, fortalece o propósito das causas terroristas,
em todos os seus âmbitos.
Judith Butler, em Quadros de Guerra, sintetiza a ambiguidade das tipificações de modo
interessante, trazendo para primeiro plano o problema dos enquadramentos que sustentam as
designações:
93
CASTELO BRANCO, Guilherme. A seguridade social em Michel Foucault. Revista Ecopolítica, São Paulo, n.
6, jan./abr. 2013, p. 81.
94
A tese apresentada por Heleno Fragoso para concurso público de provimento do cargo de Professor Titular de
Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi publicada em 1981 pela Editora Forense. Em
Terrorismo e Criminalidade, Fragoso trata especialmente dos aspectos jurídicos e criminológicos do fenômeno do
terrorismo.
95
FRAGOSO, Heleno. Terrorismo e criminalidade política. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981. p. 5.
96
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 218-219.
52
97
“Os primeiros instrumentos da tecnologia nuclear – os vários tipos de bombas atômicas que, se deflagradas em
quantidades suficientes, que não precisam ser muito grandes, poderiam destruir toda a vida orgânica da Terra –
apresentam uma evidência suficiente da enorme escala em que tal mudança poderia ocorrer”. ARENDT, Hannah.
A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 186.
98
FERRAZ, Maria Cristina Franco (2006). Terrorismo: ‘nós’, o ‘inimigo’ e o ‘outro’. In: PASSETTI, Edson &
OLIVEIRA, Salete (Org.). Terrorismos. São Paulo: EDUC. p. 45.
99
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 206.
53
história que se concebe como atravessado internamente pelas relações de força que, longe de
se restringirem aos ofícios da história nacional, desempenham um papel importante no jogo do
poder, das suas estratégias, dos seus fluxos e refluxos.
É nesse contexto que emergirá a figura do bárbaro como tática política do discurso
histórico. O bárbaro, segundo Foucault:
Essa imagem do bárbaro, esboçada por Foucault, longe de ser uma descrição meramente
figurada, poderia bem definir a representação do estrangeiro a partir da constituição de certo
imaginário nacional, pois o medo desse que surge “contra o pano de fundo da história”101, como
símbolo da rapina e da dominação, não cessou de justificar desde então as medidas restritivas
e bélicas de que se desejou fazer recurso.
O bárbaro, como aquele que não suporta outras formas de vida, para além daquela que
rege o seu modo de existir, será categorizado, então, nos termos do estrangeiro. O estrangeiro,
enquanto estranho que chega a um território nacional e que traz em seu corpo uma lei
desconhecida, é, por extensão, a continuidade do bárbaro, exterioridade de fora dificilmente
assimilável às identidades internas das sociedades nas quais se encontram.
Forasteiros e “exóticos”, provenientes de mundos misteriosos e constituídos por lógicas
outras de pensamento e de organização social, serão logo associados aos bandos por um traço
comum: a “incivilidade” característica de quem não conhece os códigos, as leis e os costumes
nacionais.
Não conhecem e, ainda que assimilem certas características, serão sempre cultural,
racial e politicamente subordinados. Naturalmente inferiores, “o bárbaro, em compensação, não
pode não ser mau e maldoso, mesmo que se lhe reconheçam qualidades. Ele só pode ser cheio
de arrogância e desumano”102. Diante de sua “desumanidade”, cabem às polícias e aos exércitos
100
Idem, p. 233.
101
Idem, p. 235.
102
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 235.
54
o papel de vigiar e punir esses inimigos, senão declarados, pelo menos tácitos, que exigem a
guarda permanente das forças de ordem. Como o faz o tenente Giovanni Drogo, de O Deserto
dos Tártaros103, cuja espera converte-se numa espécie de fixação obsessiva: para combater
esses inimigos, deve-se dedicar a própria existência. Ou dela abdicar, custe o que custar.
Daí a compreensão que categoriza os povos islamizados, latinos, africanos ou asiáticos
como os “novos bárbaros”. Ou seja, povos primitivos e incivilizados, que transitam entre as
fronteiras nacionais e que materializam não apenas aquilo que não “somos”, mas também o que
não desejamos ser ou ter entre nós, haja vista que “[...] seu rosto nos parece hediondo, sua
inteligência nos parece limitada, seus gostos são vis; por pouco não o tomamos por um ser
intermediário entre a besta e o homem”104. Esse “nós”, plural e abstrato, tornado o paradigma
do sujeito autorreferenciado, irá instituir a voz plasmada da identidade nacional, cuja marca é a
redução das múltiplas formas e possibilidades de vida a um padrão único identitário, que tornará
possível o mútuo reconhecimento dos “iguais”. Não é à toa que o humanismo jurídico buscou
estabelecer pilares bastante sólidos que permitissem justificar o afastamento entre o humanum
e o barbarum e a sua exclusão absoluta. Ademais, como nos recorda Costas Douzinas, “[...]
não apenas de bárbaros estrangeiros, mas também de mulheres e pessoas não-brancas”.105
Há, contudo, nesse debate, um deslizamento semântico significativo. Hoje, diferente do
campo referencial enfatizado na epistemologia política europeia de guerra, o bárbaro não reflete
mais uma condição estritamente de natureza política ou linguística, mas uma subjetividade
hedionda, que suscita o temor por sua diferença orgânica. Ora, se o extremismo a que se deseja
conferir aos bárbaros é a impossibilidade de conviver com a diferença106, como justificar a
103
Cf. BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
104
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, vol. I – Leis e costumes. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 396.
105
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.
220.
106
Sobre a impossibilidade de conviver com a diferença do outro e a chancela do discurso democrático e
multiculturalista normativos, pode-se citar o intenso debate acerca do uso dos véus em locais públicos por
praticantes do islamismo, ocorrido na França. Este debate foi propulsionado pela Lei francesa de número 524/2010
que proibiu o uso do véu islâmico integral (burca e niqab), por conta da necessidade das autoridades “de identificar
aos indivíduos para prevenir atentados contra a segurança das pessoas e dos bens e lutar contra a fraude de
identidade”. Ora, que isso afete o direito à identidade cultural e religiosa, não é novidade. Pelo menos, tal como
colocado desde as discussões em torno da Lei francesa de número 228/2004, que proibiu o uso de signos ostensivos
de adesão religiosa nas escolas, colégios e liceus. Mas, o que há ainda de mais perverso nos debates posteriores,
nos termos da defesa da segurança e da democracia, é a estigmatização desse segmento social, marginalizado
segundo os estereótipos que ligam as práticas de violência política aos signos do islamismo. Além da França,
Bélgica (2011), Holanda (2015), Itália (2015), Bulgária (2016), Áustria (2017), Dinamarca (2018) e, em parte, a
Alemanha (2017) também adotaram essas medidas proibitivas. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, por sua
vez, considerou que a lei não feria a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Affaire S.A.S. c. France, nº
43835/11).
55
morte “racional” desses Outros, em contextos nos quais vigora o discurso democrático, sem ser
enredado em uma arapuca discursiva? É aqui que a erradicação dos indivíduos alocados nesse
grupo, sobretudo dos migrantes africanos e de cultura árabo-muçulmana (pejorativamente
alcunhados de towel-heads – os “cabeças-de-pano”) será chancelado pelo amálgama entre seus
traços étnico-culturais, suas características biológicas e o risco de futuros atentados terroristas.
Nesse âmbito, também, prefigurará, antecipadamente, o fundamentalismo identificado em todas
as suas práticas quando se tratar de documentar, de modo ordenado, as diferenças.
Em um quadro fundamentalmente desigual e hierarquizado, esse processo reitera um
mundo que “[...] em nada coincide com o nosso; em suma, não faz parte do nosso mundo e, por
isso, não poderia servir de base à experiência de uma cidadania comum”107. No limiar entre um
“nós” virtual e os “Outros”, abre-se um espaço de exceção. As políticas públicas de segurança,
desse modo, irão reconhecer nas migrações a porta de entrada desses “bárbaros” que, em busca
de asilo, trariam em si mesmos os perigos “que nascem em seu próprio corpo e de seu próprio
corpo”108. Não surpreende que as faixas de fronteira se tornem progressivamente “zonas de
segurança” altamente militarizadas e vigiadas para impedir a entrada dos “maus fluxos”. E que
capitais humanos inúteis ao sistema de produção econômica sejam imediatamente descartados
ou repatriados como “supérfluos”, “indesejáveis”, “supranumerários”. Mesmo que sejam
provenientes de zonas de conflito e que, de acordo com o direito internacional dos direitos
humanos, lhes seja previsto o direito de asilo e de migração:
Com essas práticas, reativa-se a seletividade das concessões de asilo político. Para
conter esses trânsitos, são realizados monitoramentos, barreiras de contenção são erigidas e os
velhos muros e arames farpados se transformam nos novos emblemas de um tempo que fez de
sua queda a promessa de uma nova ordem mundial. Não seria necessário inserir nessa nova
107
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
157.
108
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 258.
109
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 50.
56
ordem algumas aspas, pois, se há algo de novo nessa ordenação é o deslocamento da estrutura
civilizatória e o seu reenquadramento nos moldes da segurança e do progresso.
O barbarismo do migrante é a justificativa arbitrária para que se perpetre a barbárie sem
termo. Barbárie que, no corpo retesado das leis de segurança contemporâneas, irá ressoar a
lógica de muitos presidentes, primeiros-ministros e rainhas de copas, de matiz mais kafkiana
que o caleidoscópio colorido do espelho de Alice: “sentença, primeiro... veredito, depois.”110
Porque, no mundo das maravilhas, as histórias de terror prosseguem tiradas da cartola pelos
velhos chapeleiros e contadas, em tom imperativo, por aqueles que não deixaram de ordenar a
lei imperial do mundo. Dedo em riste, missiva em mãos, convite especial para, do lado de fora,
participar da grande festa da vitória: “I want you, my baby... I want you.”111
Não restam dúvidas de que a “ameaça terrorista” dos últimos anos tem sido amplamente
utilizada pelos Estados em função de seus interesses políticos e econômicos. A escalada
vertiginosa de ações individualizadas – dos chamados lobos solitários [lone wolfs] – e a
expansão de movimentos como o Salafismo, a Jihad islâmica e o Califado são consideradas as
razões para as intervenções bélicas, na tentativa de refrear o que se concebe como o grande
perigo do início do século.
Se, de um lado, historicamente, as duas Grandes Guerras do século XX foram
expressões paradigmáticas com relação à escala do poder bélico, de outro, os países beligerantes
se apoiavam nos protocolos de guerra declarada para levar a cabo a devastação de amplas
extensões territoriais e de seus contingentes humanos. É com base na lógica da destruição total
110
CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Cap. XII. Domínio Público. Disponível em
https://pt.wikisource.org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas/Cap%C3%ADtulo_XII. Acesso em: 30
jul. 2018.
111
Em 1917, o artista James Flagg desenha o cartaz que se tornaria mundialmente famoso com a personificação
nacional dos Estados Unidos da América na figura de Tio Sam [Uncle Sam]. No pôster, encomendado pelas Forças
Armadas dos Estados Unidos, que recrutava soldados para a Primeira Guerra Mundial, Tio Sam é representado
com o dedo em riste, com as cores da bandeira norte-americana, e com a sentença no topo do cartaz: "I Want You
for U.S. Army" ("Eu Quero Você para o Exército dos EUA").
57
do opositor até sua rendição, afinal, que o direito de guerra se consolida e se efetiva até o
momento da vitória de um dos agentes.
As duas Guerras, empreendida por meio da coligação de grandes blocos regionais,
antagonizariam ou uniriam nações segundo interesses geopolíticos comuns, e demonstrariam
visivelmente a potência efetiva das forças em jogo, na medida em que, de um lado ou de outro,
se produzissem mais rastros de destruição, de aniquilamento, de extermínio inclemente ou de
desenraizamento de parcelas expressivas de populações regionais, levadas ao êxodo forçado
para fugir dos percalços da guerra.
Hoje, porém, a despeito de muitos desses efeitos se manterem, uma outra economia da
guerra parece se esboçar. Pois, ainda que os blocos aliados operem de modo conjunto a partir
de diretrizes similares, não se pode deixar de notar as especificidades de projetos bastante
distintos como móbil dessas lutas – e mesmo nas transformações do que se concebe por direito
de guerra.
Esse quadro se deve ao fato de o discurso salvacionista já não dar mais conta de
apresentar, por si só, uma saída interventiva fácil, capaz de justificar a ingerência em outras
nações, em que pesem os marcadores discursivos característicos das intervenções em nome da
“democracia”, da “liberdade” e do “estado laico e republicano”. Em contrapartida, operações
militares localizadas são empreendidas com o objetivo de conter a “onda terrorista”. Muitos
desses regimes ditos violentos foram, a propósito, sustentados por longa data pelas potências
hegemônicas do Norte.
Por que razão, todavia, a violência do Boko Haram contra a população do norte da
Nigéria, ou os massacres contra as minorias cristãs e yazidi, no Iraque, para citar apenas dois
exemplos, não recebem a mesma atenção por parte das nações ocidentais e dos organismos
internacionais? No interior da guerra contra o terror, parecem se entrelaçar lógicas heterogêneas
de governo, com vistas à instauração de procedimentos de organização, gestão e eliminação de
parcelas das populações através de uma série de procedimentos direcionados tanto aos corpos
individuais quanto às massas.
Esses agenciamentos múltiplos e cada vez mais refinados – como os intrincados
sistemas biométricos de segurança, o controle ostensivo dos fluxos nas faixas de fronteira ou o
uso de alta tecnologia de guerra para contenção de conflitos nacionais – são levados a cabo em
prol da tentativa de impedir que a ameaça invisível dos terrorismos alcance os Estados
nacionais. Na prática, no entanto, eles produzem um revestimento autolegitimatório dos estados
excepcionais e a salvaguarda para matar em um contexto em que o medo encontra terreno fértil
para se disseminar.
58
É nesse cenário que a governamentalidade pelo terror desponta como modo de governo
da e pela violência, por excelência, sob o signo redimensionado da cultura punitiva de
extermínio e da conformidade com a lei (ou, justamente, por meio de sua suspensão) na
justificativa da letalidade estatal em larga escala – e, aqui, é importante lembrar, por exemplo,
do papel da economia das penas e dos castigos desempenhado pelos tribunais penais, que,
frequentemente, oferecem subsídios jurídicos que, em nome da razão de Estado, apontam para
reafirmação do caráter de legítima defesa por parte dos agentes públicos contra aqueles que são
construídos como inimigos públicos do Estado.
Os tribunais penais internacionais, por sua vez, evidenciam no decorrer de seus
processos que “a segurança do Estado não teria sido superada, mas recondicionada à segurança
humana, o que articularia de modo inédito uma dimensão universal – os direitos humanos – a
um elemento particularista, a segurança de cada Estado”112. Essa noção de “segurança humana”,
em torno da qual o novo ordenamento securitário mundial parece gravitar, opera um rearranjo
institucional na gestão dos fluxos transterritoriais de segurança. Doravante, proteger significa
tanto corresponsabilizar os cidadãos nessa tarefa quanto zelar pelos fluxos positivos, isto é, que
maximizem os benefícios produtivos e diminuam os riscos para determinados grupamentos da
população enquanto expõem outras parcelas ao perigo.
É desse expediente burocrático e administrativo de que se vale, não raro, a justiça
criminal ao atuar na produção de um efeito de verdade pela via dos atos normativos da lei, que
unem o direito à violência legitimada no controle de territórios e da proteção da vida. Esse
paradigma de governo ata as relações de poder cotidianas ao aparato jurídico, de modo que, por
vezes, violência e direito aparecem intrincados no marco do estado de exceção. O “uso legal da
força” justificaria, assim, mesmo os massacres113, pois o estatuto jurídico e político dos
cidadãos ficaria dependente da decisão soberana (refletida em todas as suas instituições) das
vidas matáveis ou daquelas socialmente valorizadas. Ao analisar essa contradição que justapõe
em seu cerne direito e violência, Derrida salienta em Força de Lei que:
112
RODRIGUES, Thiago. Ecopolítica e segurança: a emergência do dispositivo diplomático-policial. Revista
Ecopolítica, São Paulo, vol. 1, n.º 5, p. 143-144, jan./abr. 2013. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/15217. Acesso em: 30 ago. 2016.
113
Segundo Zaffaroni, “[...] massacre é, antes de tudo, um homicídio múltiplo, embora na forma de prática, ou
seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de algum segmento. Assim, não entram no
conceito de massacre os casos de assassinatos policiais isolados que não sejam resultado de uma prática
sistemática”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferências de criminologia cautelar. Rio de
Janeiro, Saraiva, 2012. p. 358.
59
114
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Trad. Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 81.
60
Para Foucault, o racismo de Estado seria caracterizado como “[...] um racismo que uma
sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios
produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões
fundamentais da normalização social”115. Ora, se nessa perspectiva a política é compreendida
como o desenrolar de uma guerra permanente contra indivíduos perigosos, que não cessariam
de se apresentar no interior dos Estados, uma economia política da vida estenderá de modo
indefinido o seu domínio de intervenção sobre eles, pois:
115
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 73.
116
BUTLER, Judith. Vida precaria: El poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidos, 2009. p. 108.
117
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Rio de Janeiro,
Saraiva, 2012. p. 383.
118
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 46-47.
61
119
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 143.
120
Idem, Ibd.
121
Vejam-se, por exemplo, os dados publicados em fevereiro de 2018 acerca do sistema prisional brasileiro, cuja
população carcerária chega a 686.594 mil pessoas, segundo o último balanço. Desse total, 236.058 mil pessoas
(34,4% do total) estão privadas de liberdade provisoriamente, isto é, não possuíam ainda condenação judicial. Mais
da metade do total de presos é composta por jovens entre 18 e 29 anos, e quase 65% são negros. Atrás dos EUA e
da China, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. A maior parte das acusações criminais
está ligada ao tráfico de drogas (28%), cuja política proibicionista funciona como alicerce da lógica da guerra e da
atuação do aparelho repressivo-policial do Estado.
122
KOLKER, Tânia. A tortura e o processo de democratização brasileiro. In: RAUTER, Cristina, PASSOS,
Eduardo; BENEVIDES, Regina (Org.). Clínica e política. Subjetividade e violação dos direitos humanos. Equipe
clínica do Grupo Tortura Nunca Mais. Rio de Janeiro: Ed. Te Corá-Instituto Franco Basaglia, 2002. p. 42.
123
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 145.
124
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, p. 145.
62
mobilizados para a garantia da paz, da segurança e da ordem, pois o genocídio passa a ser
“condição necessária para que as hierarquias de humanidade se mantenham.”125
Matar ou morrer
125
PIRES, Thula; CASSERES, Lívia. Necropoder no território de favelas do Rio de Janeiro. In: I CONGRESSO
DE PESQUISA EM CIÊNCIAS CRIMINAIS, I, 2017, São Paulo. Anais [...] São Paulo: IBCCRIM, 2017. p. 1459.
Disponível em: https: www.ibccrim.org.br/docs/2018/ANAIS-CPCRIM2017.pdf Acesso em: 20 jul. 2018.
126
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 138.
127
“Mais interessante, em nossa perspectiva, é o fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida
corresponda imediatamente a fixação de um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto,
ser morta sem que se cometa homicídio. A nova categoria jurídica de ‘vida sem valor’(ou ‘indigna de ser vivida’)
corresponde ponto por ponto, ainda que em uma direção pelo menos aparentemente diversa, à vida nua do homo
sacer [...]”. Idem, p. 135.
63
que tem como objeto e como objetivo a vida”128 prescinde, então, dessa racionalidade no
exercício do poder de morte. A condição para que se possa exercer o direito de matar passa, na
atualidade, por um corte que reativa o poder soberano de decisão sobre a vida digna. Soberania
assegurada pela economia da guerra ao terror, afinal a aceitabilidade é garantida com vistas à
erradicação do perigo, afinal:
[...] a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria a
minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior
(ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia;
mais sadia e mais pura.129
2.3 NECROPOLÍTICAS
128
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 303.
129
Idem, p. 305.
130
BUTLER, Judith. Vida precária. Trad. Angelo Marcelo Vasco. Contemporânea – Revista de Sociologia da
UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, n. 1, p. 13-33, 2011.
Disponível em http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18 Consultado em 20
fev. 2018.
64
131
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 10-11.
132
Idem, p. 71. Optei por modificar a tradução de “vivos” por “viventes”, a partir da consulta ao texto original em
língua inglesa.
65
“[...] a condição para a aceitabilidade do fazer morrer”133, de outro, seria preciso pensar, para
além de Foucault, os “dispositivos de racialidade”134 e de colonialidade operados pelas
biopolíticas como lentes privilegiadas de análise dessa tecnologia de poder. Daí a necessidade
de “colorir”135 as grades de inteligibilidade e de pensar a presença do corpo negro e da negritude
como signos de morte no âmbito do biopoder.
Apesar da análise foucaultiana136 não se centrar explicitamente em categorias críticas
da raça, mas na história do discurso da “guerra das raças” como operação primordial do racismo
de Estado (de uma perspectiva, diríamos, genético-genealógica e não fenotípica), grande parte
das incursões posteriores inspiradas nesses instrumentos conceituais sublinham tanto o corte
étnico-racial como o corte de gênero, não destacados pelo filósofo francês. Como ressaltaria
Sueli Carneiro, em tese defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo,
em 2005, em um horizonte biopolítico:
Ora, se há algo de simples na violência talvez seja a identificação rápida por parte dos
agentes públicos da lei entre o perigo potencial, o estigma (histórico) do devir-criminoso da
população negra e o uso indiscriminado da força coercitiva endereçado a esses corpos matáveis.
É a partir dos atributos raciais que a “[...] produção de condições de vida diferenciadas”138 irá
funcionar como fator determinante de estratificação social e de extermínio, segundo
estereótipos racistas e criminalizantes.
133
FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1975-1976. Paris: Seuil, 1997.
p. 228.
134
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 75.
135
Agradeço à Profa. Thula Pires do Departamento de Direito da PUC-Rio pelas considerações extremamente
importantes no que tange a esta abordagem. A sugestão para que as lentes analíticas fossem “coloridas”, bem como
para que se articulasse a questão das biopolíticas estatais à teoria crítica da raça e da colonialidade, conduziu-me
a um outro horizonte de investigação. A interlocução mais ativa com filósofas e filósofos africanos, sul-americanos
e que problematizam a questão colonial, como Achille Mbembe, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez ou Franz Fanon,
é resultado também deste diálogo com Thula.
136
De acordo com Mbembe (2018, p. 189), “[...] é preciso compreender que, para Foucault, o termo “raça” não
tem um sentido biológico estável. Designa tanto clivagens histórico-políticas quanto diferenças de origem, de
língua, de religião, mas sobretudo um tipo de vínculo que só é estabelecido por meio da violência da guerra”.
137
CARNEIRO, Op. cit., p. 72
138
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 74.
66
139
WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. In: Saúde e Sociedade [online], 2016,
vol. 25, n.º 3, p. 541.
140
CARNEIRO, Op. cit., p. 92.
141
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 17.
67
142
FANON, Frantz. A experiência vivida do negro. In:____. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da
Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 103 et seq.
143
AGAMBEN, Giorgio. “O que é um campo?”. In:_____. Meios Sem Fim: Notas Sobre Política. Trad. Davi
Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015a. p. 41.
144
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 27. Modifiquei a tradução de “escravo” para “escravizado”, de modo a
demarcar conceitualmente uma diferença, já que se trata de um processo de dominação sem qualquer naturalização
que o vocábulo “escravo” parece supor.
68
145
Segundo Sueli Carneiro (2005, p. 99): “O Não-ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não-
ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser pleno: auto-controle, cultura,
desenvolvimento, progresso e civilização. No contexto da relação de dominação e reificação do Outro, instalada
pelo processo colonial, o estatuto do Outro é o de ― coisa que fala”.
146
MBEMBE, Op.cit., p. 28.
147
SCHMITT, Carl. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988, p. 15.
148
Idem, p. 23.
149
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 35.
69
De ânimo muito audaz seria quem | então se regozijasse ao ver tal esforço de
guerra sem se penalizar.
Quando Foucault proferiu a conferência Omnes et singulatim: para uma crítica da razão
política, na Universidade de Stanford, em 1979, o mundo experimentava ainda a partilha
simbólica que se refletia nas disputas estratégicas entre duas superpotências e suas visões de
mundo. Mas, as análises de Foucault não se detinham somente no diagnóstico das tensões
daquele momento, tampouco nas disputas ideológicas ou econômicas, ainda que naquele
mesmo ano seu curso Nascimento da Biopolítica fosse dedicado a investigar a relação entre
economia política, liberalismos e biopolítica.
Foucault, logo de saída, ao tratar do papel da filosofia na atualidade, é enfático quando
pensa que, desde Kant, a tarefa a que ela se dedica seria a de “[...] impedir a razão de ultrapassar
aquilo que é dado na experiência”150. Completa ressaltando que “[...] desde esta época – isto é,
com o desenvolvimento dos Estados modernos e a organização política da sociedade –, o papel
da filosofia foi também de vigiar os abusos de poder da racionalidade política – o que lhe daria
uma expectativa de vida bastante promissora”151.
O vaticínio de Foucault parece apontar para o exercício permanente que a filosofia tem
por desafio no campo das práticas políticas. Com a fundação dos Estados nacionais na
Modernidade e com a racionalidade política que lhes é constitutiva, não são raros os sintomas
dos excessos e dos abusos de poder que se rastreariam direcionados às populações nacionais. A
ironia é que à filosofia caberia essa vigilância constante, esse olhar reflexivo e atento sobre o
que se passa no presente, sem que isso lhe desse qualquer garantia de interferência em
determinado estado de coisas. Esse olhar de modo vigilante, porém, segundo o filósofo francês,
indica algo que se avizinha a uma certa resistência à razão política e aos poderes políticos da
razão, haja vista a ligação entre a racionalização e o abuso de poder.
Se, naquele momento, falar dessa racionalização significava problematizar as estratégias
de governamento das vidas, apoiadas em uma série de procedimentos regulatórios e
150
FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: vers une critique de la raison politique [1979]. In:_____. Dits et
Écrits II (1976-1988). Paris: Gallimard, 2001f. p. 954. Tradução minha.
151
Idem, p. 954.
71
mecanismos normativos, seja via intensificação da percepção dos riscos, seja pela via da cultura
de autoinvestimento produtivo, centrada em uma construção liberal do self, na virada deste
século essa razão talvez tenha ganhado outros matizes. O que não significa negar a atualidade
dessas análises, sobretudo quando o neoliberalismo se apresenta como modo de gestão das vidas
por excelência, a se disseminar por todos os países do mundo. Trata-se, sim, de analisar a
economia política dos governos que, desde o alvorecer do século XXI, e de modo mais radical
após os atentados de 11 de setembro de 2001, redimensionariam a prática e o pensamento
político mundiais.
É nesse contexto que os chamados “novos terrorismos” têm reorganizado as estratégias
no campo das políticas públicas de segurança e das relações internacionais nos últimos anos.
Tanto do ponto de vista jurídico quanto político e institucional, medidas elaboradas de
“contenção” ao terror e aos terrorismos tensionam cada vez mais direitos civis individuais, o
pensamento democrático e o lugar da soberania do Estado-nação diante de ameaças
permanentes.
Em resposta a essas ameaças, inaugura-se um paradigma jurídico-político no qual as
fronteiras porosas entre norma e exceção tornam-se cada vez mais indistintas. Por não estarem
circunscritos territorialmente, esses novos fluxos de terrorismos transnacionais redefinem os
contornos do que se concebia até então pelo fenômeno do terror. Nesse contexto, é preciso
perguntar pela legitimidade das medidas adotadas nos atos de contenção do terror, sobretudo
quando a proteção jurídica e o direito subjetivo deixam de ser prerrogativas básicas da garantia
jurídica, diante da ameaça difusa, etérea e móvel.
Esse quadro não impede que se questione, além disso, a dinâmica das guerras de
combate ao terror e as suas tipificações criminalizantes. Como definir essas novas organizações
de difusão da violência política em rede para além das reconceituações jurídicas das guerras
terroristas, estabelecidas pelas potências hegemônicas, cujo fim é enquadrá-las em seu código
punitivo? Quais seriam as implicações disso no entendimento dos Estados nacionais hoje,
premidos entre o limiar de suas faixas de fronteiras e os delírios do combate ininterrupto ao
inimigo espectral?
Em diálogo com a psicanálise, seria interessante lembrar que é justamente nesse
horizonte da ameaça difusa, quando “[...] a fronteira entre fantasia e realidade é apagada,
quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico, quando um
72
símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado”152, de acordo com Freud, que o
efeito inquietante se dissemina mais facilmente. Ativado o imaginário do trauma, a compulsão
à repetição opera um retorno do que deve ser reprimido, mas reaparece de modo fantasmático
e obsessivo, desde o interior, como ameaça soberana capaz de irromper a qualquer instante.
Mas são esses novos atores das relações internacionais, entidades paraestatais de poder,
que redimensionam a função e o lugar do território, da terra e do terror. As distinções colapsam
diante de fenômenos polissêmicos e multifacetados, em que as tecnologias informacionais e
nanocientíficas aparecem, crescentemente, como elementos importantes na disseminação dos
terrorismos.
O medo, como afeto determinante de instauração da política estatal moderna e do pacto
social, a que atesta uma longa tradição explicativa, de Hobbes a Benjamin, de Locke a Schmitt,
parece ser ainda o afeto primordial que organiza a vida política, movida pelas ameaças e pelos
estados de violência apoiados nas instituições policiais. É nesse horizonte que a extensão das
modalidades de terrorismo encontra nas indefinições conceituais do fenômeno o terreno fértil
para a ampliação em larga escala de um outro terrorismo, mais sutil e subterrâneo à primeira
vista, mas não menos violento: o dos agentes estatais que, em nome da ordem e da segurança
públicas, recorrem à intimidação, sem peias, da população civil.
É isso que os estados de emergência viabilizam no plano jurídico-político. Os atos da
administração pública no campo da segurança, encetados sob o invólucro do poder
discricionário, tornam possíveis a execução de medidas privativas da liberdade individual sem
as formalidades legais, bem como a submissão dos cidadãos a constrangimentos, a ordenação
e o prolongamento de prisões temporárias sem que as arbitrariedades de conduta se configurem
como abuso de poder ou ilegalidade.
Entre atores estatais e paraestatais, combatentes da liberdade e organizações radicais, as
classificações das ações de enfrentamento como terroristas ou não talvez não possam ser tão
prontamente estabelecidas. Ao recorrer à legalidade dos atos governamentais, do uso da força
e das armas, o apelo legal parece igualmente não garantir a isenção dessas instituições públicas
e da natureza de suas ações de coercibilidade. Nesse campo, em que os combates discursivos e
os combates físicos se justapõem, coloca-se o problema do limite entre o defensivo e o ofensivo,
revelando, além disso, uma pluralidade de categorias e formas de intervenção “terroristas”
inéditas na história política do ocidente.
152
FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“O homem dos
lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 364.
73
I – em estado de necessidade;
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro
com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo
eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está
trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo
153
Segundo o Código Penal Militar (BRASIL, 1969), elaborado em pleno curso da ditadura civil-militar brasileira,
instaurada em 1964, a exclusão do crime é apresentada no seguinte artigo: “Art. 42. Não há crime quando o agente
pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal;
IV – em exercício regular de direito.” (grifos meus). Caberia questionar o que se entende por “estado de
necessidade” e se este estaria relacionado com o estado de exceção formal ou com a situação de necessidade
conforme a avaliação do agente público.
74
segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou
o outro. Porque eu quero ser o outro.154
O misto de tremor, vergonha e terror, enunciado pela narradora, do alívio inicial pela
morte do bandido até sua total identificação e transformação no homem abatido, interpela
diretamente o poder legitimador da lei entendido como outra face de sua própria violência. O
meio da legalidade toma forma na violência desproporcional de uma “justiça estupidificada”,
no seio da qual a vingança, ao dilacerar o Outro e reduzi-lo a objeto de pura dominação, alcança
a expressão de uma força aniquiladora, em cuja interface direito e violência sádica se tocam.
O que nos remete também a muitos extermínios praticados no Brasil por agentes do
Estado, como a Chacina de Costa Barros155, de 2015, ou o Massacre do Carandiru156, que
resultou na morte de 111 detentos, em dezembro de 1992. Em Costa Barros, não se tratavam
mais dos 13 tiros que acertariam Mineirinho, “[....] inerte no chão, sem gorro e sem os sapatos”;
mas 111 tiros, disparados sem qualquer chance de defesa contra os cinco jovens negros que
estavam dentro do carro.
Os estereótipos raciais e étnicos, mobilizados na prática da contenção criminal,
desempenham papel incontornável na fundamentação das ações de violência policial. No
mundo europeu e norte-americano, o perigo, nos antípodas do discurso universalista
republicano, assume a corporalidade imaginária dos traços de populações migrantes, árabes ou
africanas, matáveis pelo que representam em sua generalidade. No Brasil, devido à herança
escravocrata e colonial, cujo corolário é o racismo institucional, praticado em todos os âmbitos
da administração pública, a ameaça fantasmagórica encarnada no corpo negro tem como
resposta um tipo violência profilática, física, psicológica e moral, desde o início
desproporcional. Como objeto de uma estigmatização sistemática, ignora-se “[...] a primeira
lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás”157.
Velhos terrorismos, é bem verdade, que essa história a contrapelo do conceito coloca
em questão, renomeando-os onde eles são esvaziados de sua implicação política pela difusão
154
LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: ______. Para não esquecer. Rio de janeiro: Rocco, 1999, p. 124.
155
O episódio conhecido como chacina de Costa Barros ocorreu em 28 de novembro de 2015, no subúrbio do Rio.
Na ocasião, cinco jovens negros foram violentamente assassinados dentro de um carro, por policiais militares do
Rio de Janeiro, com 111 tiros. Os jovens tinham entre 16 e 25 anos, e comemoravam o primeiro emprego de um
deles, Roberto de Souza Penha, como auxiliar de supermercado. Confundidos com traficantes que teriam roubado
um caminhão de cargas no entorno, eles foram alvejados sem qualquer chance de defesa.
156
O massacre do Carandiru ocorreu em 2 de outubro de 1992, à ocasião da intervenção da Polícia Militar do
Estado de São Paulo, liderada pelo Coronel Ubiratan Guimarães, para conter uma rebelião na Casa de Detenção
de São Paulo, o que resultou na morte de 111 detentos.
157
LISPECTOR, Op. cit., p. 123.
75
Clausewitz, Da Guerra
158
GROSFOGUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.) Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 59.
76
“claras e distintas” acerca do humanitismo. A teoria de Quincas tem como ponto de partida uma
afirmação básica: a dor é uma ilusão, pois “a guerra, que parece uma calamidade, é uma
operação conveniente”159.
A identificação da guerra em sua função positiva, como “operação conveniente”
essencial para o sistema proposto pelo filósofo, seria advinda da ideia do combate como
“princípio universal, repartido e resumido em cada homem”160. A clareza da exposição de
Quincas, a lógica de seus princípios e o rigor das consequências depreendidas de cada princípio
enunciado não daria margem a dúvidas: a guerra seria a força movente, a grande luta que, para
além de qualquer equívoco diplomático, se constituiria como o pilar de uma virtude, em uma
espécie de heraclitismo redivivo.
Mas, as palavras mastigadas lentamente pelo filósofo e recontadas pelo narrador-
defunto, Brás Cubas, poderiam, sem grande polêmica, figurar em algum tratado contemporâneo
sobre a guerra. Isto porque a função da guerra vem sendo redefinida, de longa data, como algo
essencial na e para a política. Guerra, certamente, não entendida apenas como conflito voltado
à conquista de bens econômicos ou de novos domínios gerenciais, mesmo sob o viés expansivo
democrático-neoliberal, mas também como meio de reafirmar uma ordem global regida pelo
trinômio segurança internacional-democracia-colonialidade. trinômio que, ressoando Quincas
Borba, poderia ser determinado sem qualquer embaraço pelos agentes belicosos como
materializável somente pela “operação conveniente” da guerra.
Guerras coloniais, separatistas e de libertação nacional; as duas Grandes Guerras; o
holocausto e os lager nazistas; as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki. O breve século
XX161, na expressão cunhada pelo historiador Eric Hobsbawn, foi atravessado por catástrofes e
crises que colocaram em xeque o ideal positivista do progresso e do projeto secular da
modernidade/colonialidade tardia. As catástrofes de um mundo em escombros, cujas ruínas
desnudaram as consequências dos anseios de um mundo “civilizado”, não seriam somente o
movimento final daquele “desencantamento do mundo” a que Max Weber aludia a propósito
da racionalização das forças ocultas, a partir do século XIX, pela ciência e pela técnica162.
159
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas – Obra Completa 1. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. p.
170.
160
Idem, ibid.
161
Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
162
Sobre este tema, ver WEBER, Max. A ciência como vocação: In:_____. Ensaios de sociologia. Trad. Waltensir
Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 154-183.
77
[...] se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar
uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da
guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da
guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como função reinserir
perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa,
e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até
nos corpos de uns e de outros. Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta inversão
do aforismo de Clausewitz: a política é a guerra continuada por outros meios; isto
é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na
guerra.166
163
ADORNO, Theodor W.; HORKEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida.
Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 14.
164
BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In:_____. O anjo da história. Trad. João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013a. p. 65.
165
Idem, p. 66.
166
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
23.
78
político como relação de forças tensas, sem síntese ou recondução ao equilíbrio, mesmo nos
tempos de paz. E, sobretudo, no imbricamento entre a guerra e a questão racial, na medida em
que o conflito racial ou civilizatório deixa entrever que “[...] a guerra que se desenrola assim
sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário
é, no fundo, a guerra das raças.”167
A guerra das raças é aquilo que, em um horizonte necrobiopolítico, terá por função
instaurar a percepção da diferença e da hierarquia entre os indivíduos “perigosos” e os
“cidadãos de bem”. No que concerne aos indivíduos perigosos, o veredito é inequívoco: a sua
morte restituirá aos demais a tranquilidade da vida cotidiana168.
Se, por outra via, consideramos essa guerra de raças como o pano de fundo da contenda
entre as organizações ditas terroristas e os comandos de “caça” ao terror, é a lógica da
eliminação sistêmica do Outro, reduzido ao não-ser, que passa a funcionar como móbil das
ações, teoricamente, voltadas para a restituição da paz nos territórios ocupados. O alargamento
dos estados de violência engendrados pela guerra reforça, inclusive, essa percepção. Não é à
toa que a morte do indivíduo criminoso, refigurado como o terrorista radical, que traz em seu
corpo, em seus hábitos e em seu equipamento genético os miasmas inconfundíveis do terror
parasitário, será condição necessária de uma vida melhor.
Justifica-se, então, o fato de os assassinatos espetaculares dos supostos terroristas
circularem em ritmo acelerado e em fluxo lancinante de imagens difundidas pelos meios de
comunicação de massa. Esse ritmo vertiginoso da exposição da morte do “inimigo” não é mera
demonstração de crueldade regeneradora via lei de talião. Porque, nessas mortes, vingança,
justiça e castigo entrelaçam-se e sobrepõem-se na tarefa da restituição exemplar que não
encontra termo senão na aniquilação total do Outro, até a sua completa remissão. Bombardear
e destruir totalmente as cidades; invadir e devastar as comunidades periféricas, de modo que
167
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
70-71.
168
No Brasil, para citar um exemplo paradigmático, os chamados “autos de resistência” (mortes com exclusão de
ilicitude) ou “resistência seguida de morte”, criados durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985),
configuram-se como verdadeiras penas de morte nas periferias urbanas. A existência de um procedimento
regulamentar que encobre massacres sistêmicos dão a ver como as políticas públicas, sob a forma da razão de
Estado, funcionam segundo uma cultura punitiva de extermínio daqueles que são construídos como inimigos
internos. A letalidade estatal, então, está diretamente associada à “cultura da matança”, apoiada não só na biografia
das vítimas, mas em fundamentações redutoras do Outro ao não-ser e ao mal radical que justificariam o seu
assassinato. A seletividade do exercício do poder punitivo reflete-se em dados alarmantes, como aqueles
produzidos pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O total de pessoas mortas por policiais só no ano
de 2014 foi de 3.022 – uma média de oito pessoas por dia. Entre 2008 e 2013, o número chega a 11.197 pessoas
assassinadas, segundo os dados da Anistia Internacional. 77% do total das vítimas eram negras, em sua maioria
homens jovens, com idade entre 15 e 24 anos. A “normalidade” desse cenário dificulta a percepção da “banalidade
do mau”, para usar a expressão de Arendt, por trás desse extermínio burocrático da juventude negra.
79
não reste senão os vestígios da “raça” inferior, torna-se o signo da purificação necessária da
consciência ocidental: hay que destruir, pero sin perder la ternura jamás169.
A Organização das Nações Unidas (ONU) denuncia, reiteradamente, a morte de civis;
a indústria cinematográfica comercializa o drama dos soldados ocidentais em meio às ruínas da
barbárie estrangeira. Nesses filmes, os bárbaros quase sempre falam de maneira estranha, ba-
belicamente, e não objetivam nada afora a matança generalizada em nome de seu Deus –
mártires prometeicos da fé – e da redenção dos ímpios. Oblitera-se, todavia, de que se trata
frequentemente de uma invasão ou ocupação territorial e, como tal, não há paz quando dois
projetos políticos distintos se confrontam e têm em comum somente o uso da força e da
violência, ainda que ambas as partes considerem a luta justa, santa e necessária.
Ao localizar a origem do terror noutro lugar, onde reinaria livremente o fanatismo
fundamentalista e a irracionalidade política, reitera-se a identificação entre alteridade e
violência, enquanto, simultaneamente, apagam-se as marcas das “[...] estruturas como os efeitos
injuriosos da opressão, colonialismo, globalismo e a reação do subjugado, lutas pela libertação
nacional, ressentimento”170, tal como aponta Bill Nichols. De um lado, os espectadores
identificam-se com o “nós” suposto e ativamente produzido nas narrativas midiáticas que
contrapõem o bem e o mal; de outro, divide-se o mundo a partir de uma visão maniqueísta
simplificada da realidade, onde a violência, justa ou injusta, terá seu lugar no espetáculo
moralizante da erradicação do mal. Narrador e espectador tornam-se cúmplices, a um só tempo,
dos traumas coletivos, da resposta imediata de intensidade superior e assimétrica, e da justa
destruição da causa exterior do mal.
O fato é que o poderio militar das nações do ocidente precisa se fazer visível. E, mais
do que isso, temível pela via dos efeitos espetaculares gerados não mais pela produção
audiovisual dos recursos especiais de laboratórios de cinema, mas do próprio real, difundido
pelas mídias digitais simultaneamente às ações de intervenção. Nas cidades arruinadas pelos
discípulos de Marte é preciso, pela força das imagens, ser mais incisivo que os pretensos
algozes, uma vez que o apelo visual adquire uma função profilática na cultura bélica do controle
e da dominação.
169
A citação de referência desta passagem (“hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”) é atribuída
a Ernesto Che Guevara (1928-1967), guerrilheiro argentino-cubano, ideólogo e um dos comandantes da Revolução
Cubana (1953-1959), que culminou, em 1959, na instauração do novo regime político socialista, em Cuba.
170
NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, M. D.; LABAKI, A. (Org.) O Cinema do Real. São Paulo:
Cosac Naify, 2014. p. 277.
80
Se a exceção se tornou a regra, como pensa Walter Benjamin em seu ensaio Sobre o
Conceito de História171, é preciso, no entanto, problematizar o estatuto e a dimensão expressos
por essa exceção. Pois se, de um lado, as regras podem ser mecanismos definidos pelo aparato
jurídico-legal, de outro, a exceção encontra-se também prevista neles, e até mesmo –
paradoxalmente – torna-se um de seus pilares de sustentação, com apelo ao recurso da
autoanulação dos ordenamentos jurídicos em situações de emergência.
Begbick: Toda guerra é suja, toda guerra é cega. Mata-se por engano, por
engano também se morre.
171
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b.
172
SONTAG, Susan. Algumas semanas depois. In:_____. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos. Trad. Rubens
Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 123.
81
173
BUSH, George. W. Address to a joint session of Congress and the American peopIe, Washington, D.C., 20 de
setembro de 2001. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/ news/reIeases/200 1/09/200 10920-8.html. Aceso
em: 08 jul. 2016.
174
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 157.
175
O “Eixo do Mal”, segundo a expressão adotada nos documentos e discursos oficiais do governo norte-
americano, a partir de 2002, seria formado pelo Iraque, pelo Irã e pela Coréia do Norte. Esses regimes que,
supostamente, apoiariam e exportariam o terror seriam a fonte principal da ameaça à segurança e à paz globais;
por isso, deveriam ser duramente combatidos pelos EUA e seus amigos e aliados.
82
entre “nós” e os “outros”: ir ao front, como quem vai aos mortos. Toda guerra é suja; toda
guerra é cega.
Estados inimigos
Segundo a teoria clássica de Carl Schmitt, uma guerra se caracteriza pela confrontação
direta entre dois Estados inimigos. O jurista, ao propor o par amigo-inimigo, pensa esse binômio
como a distinção que definiria, além disso, o específico da política:
Em 1986, os EUA foram condenados pela Corte Mundial por ‘uso ilegal da força’
(terrorismo internacional) e então vetou uma resolução do Conselho de Segurança
176
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 32.
177
Ronald Regan foi presidente dos EUA entre 1981 e 1989, por dois mandatos, tendo por vice-presidente em seu
governo George W. H. Bush. Como último presidente dos EUA durante o período da Guerra Fria, os mandatos de
Reagan foram fundamentais para a sustentação da Guerra em seus últimos anos, bem como para a reativação da
corrida armamentista e nuclear norte-americana, alcunhada de “guerra nas estrelas” [star wars]. Em 1983, Reagan
projetou o ataque contra a Líbia, chamada de Operação El Dorado Canyon. A ofensiva visava a deter a capacidade
de Muammar al-Gaddafi, então presidente líbio, acusado de ”exportar o terrorismo” para além de suas fronteiras.
O bombardeio da Líbia, criticado por diversas instituições internacionais, foi condenado pela ONU em abril de
1986, por meio de uma resolução. Essa resolução sublinhava que os ataques constituiriam uma violação da Carta
das Nações Unidas e do direito internacional. Esse documento encontra-se disponível no site das Nações Unidas:
http://www.un.org/documents/ga/res/41/a41r038.htm. Acesso em: 27 ago. 2016.
83
da ONU que instava todos os países (referindo-se aos EUA) a aderir as leis
internacionais.178
Essa condenação por violação dos tratados internacionais em seu atentado terrorista à
Nicarágua179 – se utilizamos a própria definição de terrorismo proposta pelos norte-americanos
e os parâmetros similares daqueles usados para definir certas ações de inimigos de Estado
oficiais – evidencia as contradições envolvidas na guerra, que poderia ser compreendida como
como técnica de governo. E mais: o quanto as medidas jurídicas são suscetíveis aos jogos
políticos e de interesses de países centrais, que culminam frequentemente com a criminalização
dos imigrantes e na instauração do clima de medo e suspeição ideais para a restrição das
liberdades fundamentais.
As leis draconianas de contenção do terror funcionam como salvo conduto para que se
endureçam as medidas penais, se reforce a lógica do encarceramento em massa como
gerenciamento das populações indesejáveis, a criminalização de grupos “suspeitos”, bem como
a restrição à imigração e ao direito de asilo. As polícias são, nesse contexto orwelliano,
revestidas da autoridade soberana de decidir sobre a vida e a morte dos indivíduos que se
encaixam na seleção criminalizante: categorias designadas racialmente, submetidas a intenso
processo de diferenciação, classificação e exclusão.
Com a transformação do exercício do poder e a intensificação das penalizações, as lutas
que se travam contra opositores, inclusive internos, se redefinem na lógica dos combates
antiterroristas. O pensamento e as medidas que animam esses combates estão centrados nas
análises racionais dos riscos, que autorizam práticas inquisitoriais e autoritárias para obtenção
de informações desejadas.
Veja-se, por exemplo, o uso “legal” da tortura como medida excepcional, apesar de
constituir grave violação aos direitos da pessoa humana180. A permanência desse procedimento
178
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 25.
179
Segundo Chomsky (idem, p. 91), “[...] ainda nos anos 1980, os EUA entraram numa terrível guerra na América
Central, que resultou em 200 mil cadáveres torturados e mutilados, milhões de órfãos e refugiados, e quatro países
devastados. Um dos alvos principais visados pelos EUA era a Igreja Católica, que cometera o deplorável pecado
de adotar a ‘opção preferencial pelos pobres’”.
180
A prática da tortura foi proibida formalmente em 1929, pela Terceira Convenção de Genebra, e reiterada pela
Convenção das Nações Unidas em assembleia geral realizada em 10 de dezembro de 1984. Da Convenção contra
a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, consolidou-se a resolução n.º 39/46,
que dispõe sobre a prática da tortura como grave violação aos Direitos Humanos. De acordo com a parte 1, artigo
1 da resolução: “1. Para os fins desta Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma violenta
dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de
uma terceira pessoa informações ou confissão; de puní-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido
ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada
em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por
outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento
84
ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou
decorrentes de sanções legítimas.” Disponível em: http://www.ovp-sp.org/lei_resoluc_onuxtort.htm. Acesso em:
20 mai. 2018. Sabe-se, todavia, que a tortura continua a ser praticada por governos e instituições estatais, com
vistas à obtenção de informações ou confissões. As denúncias frequentes, sejam no Campo de Detenção da Baía
de Guantánamo – por onde já passaram mais de 775 prisioneiros sem acusação formada, sem processo constituído
e, obviamente, sem direito a julgamento –, ou as torturas praticadas pelas policias brasileiras com a assombrosa
conivência do poder judiciário em audiências de custódia, expõem como os abusos policiais são regularmente
ignorados e os relatos dos custodiados, deslegitimados.
85
O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto,
uma emanação da virtude.
Robespierre, Virtude e terror
“Doravante, a segurança está acima das leis”, declara Foucault em entrevista ao jornal
francês Le Matin, em novembro de 1977181. Naquele mesmo ano, uma pergunta atravessa o
curso Segurança, Território, População182, desde os momentos iniciais da primeira aula:
“pode-se dizer que em nossas sociedades a economia geral de poder está em vias de tornar-se
da ordem da segurança?”183. Ao tentar traçar algumas linhas reflexivas para essa questão,
Foucault propõe uma história das tecnologias de segurança, com vistas a investigar de que modo
os espaços securitários e a forma de normalização específica da segurança passaram a figurar
como preocupação central dos governos na modernidade.
Com a governamentalidade e a entrada da questão do Estado no campo de análise dos
micropoderes, concebendo o aparato estatal como “efeito móvel de um regime de
governamentalidades múltiplas”184, o problema da segurança e da economia das punições passa
a ser central na racionalidade política apoiada em uma arte governamental securitária e em seu
cálculo político-econômico.
Essa tecnologia contemporânea de governo, baseada no discurso das “razões de
segurança”, passaria a se ocupar da regulação dos efeitos político-econômicos advindos das
crises que irrompem de tempos em tempos no seio das democracias neoliberais. Crises, aliás,
que não cessam de reforçar o discurso da centralidade dos mecanismos de segurança, em meio
à suspensão da ordem “normal” do fluxo das coisas. E que intensificariam, em via de mão dupla,
o retroespelhamento entre o estado neoliberal e o estado penal185.
Gentrificação das cidades, privatização dos espaços públicos, políticas autoritárias de
controle e de segregação social materializam-se, assim, nas cercas, nos muros e nos territórios
fortificados, onde a patologização, a criminalização da pobreza e o medo eugenista mobilizam
fluxos financeiros significativos dos mercados de segurança pública e privada. A extensão do
paradigma bélico na própria dinâmica urbana reativa pela via da obsessão securitária a presença
181
FOUCAULT, Michel. Désormais, la sécurité est au-dessus des lois. In:____. Dits et Écrits. II. Paris: Gallimard,
2001. p. 366. Tradução minha.
182
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004.
183
FOUCAULT, Idem, p. 12. Tradução minha.
184
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008,
p. 106.
185
Cf. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan,
2003.
86
do inimigo interno, que precisa ser contido. É essa a razão das ocupações militarizadas cada
vez mais cotidianas e intensivas nos territórios de emergência, que culminam na política de
saneamento das populações periféricas e no disciplinamento que recria prisões, guetos e zonas
de exceção em diferentes escalas. Simultaneamente, os controles múltiplos e reticulares
operam-se a partir do paradigma repressivo, que pressiona incessantemente em direção à
redução de direitos individuais como salvaguarda operacional do modelo preventivo-penal.
A resposta virulenta aos atentados terroristas do início do século XXI expôs a fragilidade
na observação dos direitos fundamentais dos indivíduos, respaldados pelas legislações
internacionais. Ao se retraírem, em nome dos estados de emergência, os direitos individuais
dos cidadãos, marco da tradição política do ocidente, se flexibilizariam diante da ameaça
generalizada dos terrorismos e da desregulamentação de ordenamentos jurídicos como forma
de justificar, pela proteção, a contrapartida do encolhimento dos direitos historicamente
adquiridos.
Ora, se por um lado a implantação de medidas securitárias se refletiu na constante
inobservância dos direitos humanos, as “intervenções humanitárias enquanto responsabilidade
de proteger”, por outro, foram justificadas exatamente tendo em vista a salvaguarda desses
direitos. Não são poucos os discursos a circular como justificativa às vezes de cunho restritivo
dos direitos, noutras expansivo – como defesa da dignidade da pessoa humana186 –, cujos efeitos
reverberam na interface algo paradoxal da vida que necessita ser, a um só tempo, protegida e
destituída de suas garantias jurídico-políticas. Como propõe Agamben, “[...] o humanitário
separado do político não pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra187 sobre a qual se
baseia a tirania, e, prossegue o filósofo, o campo, isto é, o espaço puro da exceção, é o
186
Segundo Kant, na segunda seção de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, “[...] o homem, e, duma
maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim”. KANT,
Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 67-
68. Essa concepção de pensamento está na base da ideia jurídica da dignidade humana incondicional (Würdigkeit),
segundo a qual, em função de sua autonomia como ser racional, não se pode atribuir valor ao homem, entendido
como preço de mercado (Marketpreis) – isto é, os seres racionais não podem ser substituídos por equivalentes, na
medida em que são singulares e insubstituíveis.
187
A definição de Agamben de “vida nua” (nuda vita) é equivalente à de “vida sacra” (vita sacra), que o filósofo
italiano desenvolve a partir das considerações sobre a biopolítica, realizadas por Foucault, e da filosofia do direito.
Estas noções se referem à vida indiferenciada, matável e insacrificável. Segundo Agamben, ademais, é na vida nua
que se apoia o vínculo essencial entre a vida e a violência jurídica.
87
paradigma biopolítico para o qual ele não consegue encontrar solução” 188. Nesse horizonte,
o campo, fundamentado no autoritarismo e na ausência do ordenamento jurídico, torna-se, por
excelência, o lugar da anomia na contemporaneidade. Situação de exceção que se mostra como
limite do princípio da dignidade da pessoa humana, na ausência do qual, como definiu Arendt,
“tudo é possível”:
188
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 130.
189
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: A contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados,
vol. 30, n.º 11, 1997, p. 57.
190
AGAMBEN, Op. cit., p. 164.
191
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2018. p.
53.
88
A gestão dos riscos neste cenário é o imperativo categórico do estado de segurança: agir como
se a máxima da ação de todo Estado devesse tornar-se a lei universal da guerra.
Na dobra necrobiopolítica e governamental do Estado, a razão securitária assenta-se na
coexistência de lógicas heterogêneas: liberdade e insegurança são polos alternadamente
enfatizados que, em nome da imprevisibilidade do perigo, “condiciona a indeterminabilidade
dos critérios adotados pelos dispositivos securitários”192. Entre Estado e população, a relação
é mediada, portanto, por um pacto de segurança, que significa um princípio de exceção
permanente, que perpassa as democracias neoliberais contemporâneas. Neste pacto, seguridade
e insegurança são as duas faces de um mesmo processo: a produção de liberdade é análoga à
multiplicação dos riscos e dos dispositivos de segurança. Como lembra Agamben,
Foucault, por sua vez, sugere de que se trata de “[...] uma racionalização das técnicas
políticas, das técnicas de poder e das técnicas de dominação"194. Veja-se então que o governo
da emergência não se resume à gestão política da violência ou a um estado de sítio definido
juridicamente. Ele opera uma série de inflexões nas prerrogativas dos direitos fundamentais que
são levadas a cabo no fato e no discurso democráticos pela via da construção da guerra ao terror
e à criminalidade, nômade e dissimétrica, contínua e onipresente.
Aqui se esboçam dois movimentos complementares. O primeiro tem por finalidade
analisar as categorias, as identidades e o modo como diferentes estratégias discursivas são
mobilizadas para compreensão do “terror”; depois, um movimento de investigação acerca dos
terrorismos, seus efeitos, sua expansão efetiva e categorial, em fins de século XX e XXI, e de
que modo a guerra ao terror redefine as figuras do pensamento filosófico no campo da política
(Estado-nação, fronteira, cidadania, democracia, cosmopolitismo) e dos direitos humanos
inalienáveis (dos liberalismos igualitaristas das teorias da justiça até os comunitarismos).
192
BAZZICALUPO, Laura. Produção de Segurança e Incerteza dos Critérios. In: AVELINO, Nildo; VACCARO,
Salvo. (Org.) Governamentalidade | Segurança. São Paulo: Intermeios, 2014. p. 83.
193
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
118.
194
FOUCAULT, Michel. La torture, c’est la raison [1977]. Entrevista com K. Boesers. Literaturmagazine, n°. 8,
dez. 1977. In :_____. Dits et Écrits II. Paris : Gallimard, 2001d, p. 392. Tradução minha.
89
Na medida em que o poder não é algo estritamente de ordem repressiva ou uma relação
de interdição, seguindo a hipótese do filósofo francês, ele deve ser analisado como algo que
produz. Dessa feita, caso concebamos o poder sob o prisma produtivo, mas não como um
produto ou um bem transferível, essa economia do poder da guerra e da violência, que ora se
195
FOUCAULT, Michel. “Le sujet et le pouvoir” [1982]. In:____. Dits et Écrits II . Paris: Gallimard, 2001e. p.
1043-1044. Tradução minha.
90
196
Agamben (2008, p. 39) redimensiona o problema do seguinte modo: “[...] o estado de exceção não é nem
exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma
zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não
significa a sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída
de relação com a ordem jurídica”.
197
LEMKE, Thomas. “Os Riscos da Segurança: Liberalismo, Biopolítica e Medo”. In: AVELINO, Nildo;
VACCARO, Salvo (Org.). Governamentalidade | Segurança. São Paulo: Intermeios, 2014. p. 117.
198
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 115.
91
conjuntura, “[...] quando a vida e política, divididos na origem e articulados entre si através da
terra de ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a identificar-se, então
toda a vida torna-se sacra e toda política torna-se exceção”199.
O medo realiza, nessa modalidade de governo, uma importante função moral. Ao
recorrer à produção da insegurança e da incerteza, bem como à manutenção das zonas de risco,
com os ilegalismos tolerados pelo Estado e as ilegalidades perseguidas como infração,
dissemina-se a percepção da vulnerabilidade que faz de cada cidadão um alvo potencial da
barbárie. É aí que, aliadas à força moral, as práticas segregacionistas operam a partilha dos
grupos nos territórios ao demarcar, segundo pretensos “graus” de periculosidade, os que
estariam mais ou menos expostos à violência. Mas não é só. Igualmente, as linhas divisórias
definem topograficamente aqueles que são mais suscetíveis à criminalidade e que, por essa
razão, devem ser vigiados mais de perto.
As tecnologias de promoção e de contenção do medo, por sua vez, atuam na extensão
dos aparatos de segurança do Estado, cada vez mais com a ajuda das agências de segurança
privadas, de mercenários e de prestadores de serviço terceirizados. O medo movimenta a
economia, seja nas práticas de lançamento de bombas ou de alimentos em territórios em guerra.
Altamente rentável – e não apenas do ponto de vista econômico, mas no discurso moralizante
que justifica intervenções políticas e militares –, ele opera segundo a produção de emergências.
É na divisa entre o bem e o mal, no interior das diferenciações que remontam à fundação dos
Estados modernos, que se traçam as estratégias de governo distintas na regulação da
“desordem”. Talvez por isso a declaração de alguém como o Tenente-coronel Ricardo Augusto
Nascimento de Mello Araújo, comandante da polícia militar de São Paulo, a ROTA200, soe tão
natural aos ouvidos e às práticas cotidianas dos agentes de segurança do Estado. Em entrevista
concedida ao Portal Uol, em 24 de agosto de 2017, Mello Araújo distingue a atuação da polícia
militar nos Jardins – bairro de classe média alta paulistana – e nas periferias. Segundo o
comandante:
199
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
148.
200
A ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é a tropa do comando geral da polícia militar do estado de São
Paulo, o maior batalhão de polícia militar do Brasil. Em 1851, o batalhão, então conhecido como "Batalhão de
Caçadores", foi batizado com o nome de Tobias de Aguiar, adquirindo a denominação de "Batalhão de Caçadores
Tobias de Aguiar". Após diversas designações, passou a ostentar seu nome atual a partir de 1970, embora os
diferentes nomes nunca tivessem alterado a manutenção de sua função “caçadora” endereçada ao combate de
possíveis “desordens” urbanas. Não se pode esquecer, ademais, o papel crucial desta polícia no Golpe Militar de
1964, que derrubou o então presidente da República João Goulart, dando início ao governo interino de Ranieri
Mazzilli e, treze dias depois, ao governo do General Castelo Branco (1964-1967).
92
É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele
abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na
periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins
[região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado [...].
Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a
mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no
Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali,
andando. O policial tem que se adaptar àquele meio que ele está naquele
momento”201.
201
Entrevista disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-
jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm. Acesso em: 20 jun. 2018. Grifos
meus.
202
Devo essa referência a um amigo querido, Victor Dias Maia Soares, e sua pesquisa doutoral acerca do perdão
e da pena de morte a partir de Jacques Derrida, intitulada Perdoar o imperdoável: uma leitura do perdão a partir
da desconstrução derridiana. Essa tese, orientada pela Profa. Dra. Dirce Eleonora Nigro Solis, foi defendida no
Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em junho de 2018.
93
As placas nas igrejas, nos museus e nos aeroportos não deixavam margem a dúvidas.
Embora as dúvidas se multiplicassem ali, no país onde uma tradição iluminista ganhou
espessura e se disseminou pelo mundo como a defesa teórica dos direitos dos cidadãos e cidadãs
e da garantia da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Assim ensinam nas escolas ainda. A
Revolução das revoluções, a francesa, inscreve-se na história como a insubmissão popular a
toda forma de autoridade tirânica e monárquica, que, em nome da manutenção do privilégio de
alguns, impôs rígidas restrições às massas empobrecidas.
Aquela, porém, não é mais a França do século XVIII. E, claro, não há qualquer resquício
nostálgico nesta afirmação. Também já não é a França da Comuna de Paris, de 1871, ou de
maio de 1968, com o movimento estudantil e operário nas ruas. As insurreições populares, hoje,
são duramente sufocadas pelas forças armadas. Essa é a França de 2017, sob a lei do estado de
emergência, integrado ao direito comum, e dos plenos poderes conferidos às polícias, a fim de
conter toda e qualquer possível ameaça terrorista.
Realizar parte da pesquisa doutoral em um país em estado de emergência, como
estudante estrangeiro, a quem foi concedido um visto temporário de permanência, é estranho.
Sobretudo, porque este estado coincide com o problema estudado: pensar de que modo os
estados de exceção instauram um novo modo de governo fazendo uso daquilo mesmo a que
pretendem combater – o terror.
Aqui, de algum modo, rasgando o princípio comunal de identificações linguísticas e
culturais do país, o estranho sou eu. O Outro, não-branco, latino, vindo de além-mar, também
sou eu. Se a condição de pesquisador de doutorado me confere alguma distinção diante das
instituições acadêmicas, na lida da vida comum eu sou apenas mais um estrangeiro. Estrangeiro
como muito outros, mas inscrito em lógica distinta daquela que marca ostensivamente e
epidermicamente os grupos racializados como inferiores, como os árabes ou os africanos do
Norte, que vejo serem parados e revistados em cada esquina – crianças inclusive.
Sob o signo de Marte, sob o signo da morte, a produção das emergências alarga a
extensão temporal e espacial desse estado de exceção. Nas bancas de jornais, no Parlamento
Europeu, nos cafés e nos cabarés, esse é o assunto comum: o medo dos atentados, que
rapidamente se converte em medo dos refugiados, no medo de frequentar lugares públicos em
horários de rush, no medo de estar no lugar errado e na hora errada e de experimentar o
infortúnio – quelle malchance! – de ser a próxima vítima desses “loucos”.
Não, não posso dizer que vivo uma situação nova ou extraordinária. Vindo do Brasil, e
mais especificamente do Rio de Janeiro, sabe-se bem o que isso significa. A sensação de estar
refém das forças de ocupação e de não ter mecanismos para se defender de possíveis excessos
94
203
De acordo com Antonio Guimarães, é “o mesmo fenômeno de estereotipia negativa dos traços somáticos negros
fundamenta o mecanismo de ‘suspeição policial’, que torna os negros as vítimas preferenciais do arbítrio dos
policiais e dos guardas de segurança nas ruas, nos transportes coletivos, em lojas de departamento, bancos e
supermercados”. GUIMARÃES, Antonio. Combatendo o racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 14, n.º 39, p. 103-117, 1999.
204
MC BOB RUM. Rap do Silva. Rio de Janeiro: Furacão 2000, 1995. Disco sonoro.
205
Tratam-se dos subúrbios ou das periferias das capitais de província francesas, onde há alta concentração de
imigrantes, por conta das “habitações de aluguel moderado” (Habitation à Loyer Modéré – HLM) .
206
Cf. SAFATLE, Vladimir. Quando as ruas queimam: Manifesto pela emergência. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
Disponível em: http://coleciona.mma.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/MERGULHANDO-3-Fragmento-de-
texto-de-Vladimir-Safatle.pdf Acesso em: 05 jan. 2017.
95
que resta nesse excesso a que seria preciso ordenar. Abordar a exceção, então, sem questionar
o que significa viver sob a lei da emergência não faz qualquer sentido, mesmo se os agentes da
lei e as instituições operam de modo muitíssimo diferenciado em relação à classe, à raça ou ao
gênero, quando fazem valer nessa lei o que nela há de mais violento, quer dizer, a sua
autoreferencialidade.
Como a justificação da violência de Estado pode se fundamentar nas prerrogativas da
exceção previstas pela própria lei? Daí o que transborda do texto ser aquilo que ele não diz, mas
está inscrito tacitamente lá como a lei muda de toda a lei, a rasura, o furo e a brecha que a
assombra de modo quase espectral: a inextrincável relação entre o excesso e a exceção como
dupla face de uma falta. De uma falta que só o que excede pode conter, nisso mesmo que ele
deixa escapar: o abuso do poder soberano e o vazio fundamental de toda exceção jurídica207.
É Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito da história quem recorda que “[...]
a tradição dos oprimidos nos ensina que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é a regra”. E,
conclui o filósofo, com o apelo a uma revisão autocrítica da história que fizesse jus à tarefa de
instaurar um verdadeiro estado de exceção: “[...] Temos então que chegar a um conceito de
história que corresponda a esta ideia”208. Ao apontar para o estado de emergência de seu
tempo, perpetrado pelos regimes totalitários em expansão – mas não dissociado da norma
histórica da violência dos vencedores –, Benjamin alertaria para o fato de que o espanto diante
das forças abruptas e opressoras do fascismo em nada se equipararia ao espanto que é fonte do
conhecimento filosófico. Isso porque a experiência da perplexidade traumática do entreguerras
e dos campos de extermínio estaria muito distante do thaumázein de que trata Aristóteles em
sua Metafísica, como disposição que origina o pensar filosófico.
Construir um conceito de história, como desafio à compreensão do terror totalitário,
apresentava-se, então, como tarefa do historiador interessado em “[...] escovar a história a
207
Mesmo o decisionismo (entscheidung) schmittiano é senão isso, quando afirma ser soberano “[...] aquele que
decide sobre o Estado de exceção”. Se soberano é o direito e não o Estado, a decisão do soberano será acerca das
medidas a serem tomadas para o estabelecimento da ordem, para além da legalidade e independente da lei. Para
Schmitt, “[...] a filosofia da vida concreta não pode subtrai-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-
se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia
romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que
as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova
nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da exceção. Na exceção, a
força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição.” SCHMITT, Carl. Teologia política:
quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. In: _____. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês
Lobbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 94.
208
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b. p. 13.
96
contrapelo”209. Tarefa essa que, nas análises filosóficas de Giorgio Agamben, em seu Estado
de Exceção210, converteria-se em exercício crítico de pensamento acerca da suspensão da ordem
jurídica como paradigma de governo. E, de modo ainda mais pregnante, após as medidas
forjadas em resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001, em escala planetária. Desde
então, os ordenamentos jurídico-políticos e a violência passaram a se relacionar intimamente
nos termos da segurança e da seguridade, via suspensão dos direitos civis e da instauração da
exceção jurídica permanente no seio dos Estados democráticos de direito.
Ao passo em que pensarmos, todavia, em um precedente legal para a instauração desse
recente estado de emergência, não se pode esquecer de que a perspectiva da nova ordem
internacional, pós-Guerra Fria, instaurou novos parâmetros na segurança internacional. A
segurança global, a dissuasão nuclear e a ideia de segurança humana211 em detrimento da
segurança nacional parecem redefinir ativamente os debates acerca da responsabilidade de
proteção, dos direitos humanos e do fenômeno da guerra. Nesse contexto, tensionam-se as
diretrizes políticas internacionais e o arcabouço conceitual de filosofias políticas amplamente
ancoradas em uma perspectiva da soberania nacional e dos direitos naturais, forjada pela
modernidade/colonialidade.
O fenômeno e o conceito da guerra ganhariam ainda outras margens e contornos,
deslocando em diversas escalas as análises de uma tradição da filosofia política que pensou a
guerra como grade de inteligibilidade, seja das relações sociais, seja de uma suposta natureza
humana, ou mesmo como continuação da política por outros meios212.
Não há dúvidas, contudo, que a guerra continua a ser uma realidade deste tempo. Se
levarmos em consideração as novas modalidades e agentes da guerra – que incluem, por
exemplo, as empresas militares privadas e a guerra com uso de veículos aéreos de combate não-
209
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b. p. 13.
210
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
211
Conforme notas 10 e 11 do Capítulo 2.
212
Em 1976, no primeiro tomo de sua Histoire de la Sexualité: La Volonté de Savoir, questiona-se Foucault:
“Deve-se então inverter a fórmula e dizer que a política é a guerra prosseguida com outros meios? Talvez, se se
quisesse manter sempre uma distância entre guerra e política, dever-se-ia adiantar ao contrário, que essa
multiplicidade das relações de força pode ser codificada – em parte e jamais totalmente – seja na forma da ‘guerra’,
seja na forma da ‘política’: essas seriam duas estratégias diferentes (mas prontas para cair uma na outra) para
integrar essas relações de força desequilibradas, heterogêneas, instáveis, tensas” (FOUCAULT, 1976, p. 123).
97
213
Como desenvolvido em UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia
pelas empresas militares privadas. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. E por
CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do Drone. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
214
GROS, Fréderic. Estados de Violência: Ensaio Sobre o Fim da Guerra. Trad. José Augusto da Silva. São Paulo:
Editora Ideias & Letras, 2009. É Gros, em seu ensaio, quem elabora a hipótese segundo a qual a redistribuição da
violência em configurações inéditas, desde o início do século XXI, ocasionaria a emergência dos “estados de
violência” contemporâneos, que redefiniriam o traçado do pensamento e da prática da guerra tal como vigorou até
o século XX.
215
FRAGOSO, 1981 apud BATISTA, Nilo. Reflexões Sobre Terrorismos. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA,
Salete. (Org.) Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006, p. 16.
98
Seria, então, pertinente caracterizar essa guerra ao terror como um “[...] ato de violência
destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”216, tal como a clássica
definição da “guerra” proposta por Clausewitz? Para além disso, que adversário seria esse
contra o qual se luta, o terror, desterritorializado? A guerra ao terror se caracterizaria, assim,
como um novo “governo da emergência”, chancelado pelo medo do Outro?
É isso que o discurso e a prática da neutralização profilática dos “inimigos” indicam.
Como medida mais eficiente e eficaz de contenção dos riscos próximos, instaura-se uma intensa
caçada, com vistas não só ao encarceramento e ao abate dos adversários presentes, mas também
a prefigurar alvos futuros, antecipar e desarticular, por meio dos mapeamentos, dos cálculos e
da vigilância ostensiva, as ameaças potenciais.
Na institucionalização das estratégias políticas de abrangência planetária, em nome da
necessidade de viver, “os massacres tornaram-se vitais”217, como afirmaria Foucault em
relação ao modo de operação dos racismos e de sua inscrição nos mecanismos do Estado, no
curso Em Defesa da Sociedade. Uma outra economia da violência parece se esboçar, pois se
doravante “no quadro de uma guerra justa, matar não é um crime”218, em nome da urgência
da hora histórica as medidas de exceção são aderidas à estrutura jurídico-política e passam a ser
integradas ao direito comum, apesar de sua ambivalência notória, pois “[...] coincidindo com a
regra, ameaça hoje torná-las indiscerníveis”219. Instrumentalizadas e refletidas nas diversas
formas de violência sistêmica e institucional, a lógica da guerra estará na base da estrutura dessa
necrogovernança, por meio da qual o quadro de violência – com sua maquinaria bélica e com
suas tecnologias de controle de massa – estabiliza como normalidade cotidiana a manutenção
dos modos de dominação.
Mas não será somente no campo da guerra e dos conflitos geopolíticos que as
transformações decorrentes das medidas de exceção se fazem sentidas. Há, mesmo nos
processos de pacificação, mudanças radicais em suas operações e no que se compreende pelas
216
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. Trad. Carlos Francisco S. Gomes. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2010, p. 7.
217
FOUCAULT, 1976, p. 179-180. E, igualmente, no primeiro volume de sua História da Sexualidade: A Vontade
de Saber, publicado também em 1976.
218
GROS, Fréderic. Estados de Violência: Ensaio Sobre o Fim da Guerra. Trad. José Augusto da Silva. São Paulo:
Editora Ideias & Letras, 2009. p. 251.
219
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 132.
99
Nosso governo jura solenemente destruir a causa desse ataque terrível e encontrar
esses “traços característicos” (fanatismo, disposição para ocultar, isolamento,
fontes de recursos misteriosas etc., até mesmo “árabes” de qualquer tipo e
220
CHANDLER, David. The responsibility to protect? Imposing the 'Liberal Peace'. International Peacekeeping,
vol. 11, n.º 1, Spring 2004, p. 59–81.
100
“islâmicos” de qualquer espécie) que “revelam” uma presença estranha onde quer
que ela possa ser encontrada.221
Não é fortuito que, nas últimas décadas, conflitos étnicos e raciais tenham se ampliado,
cindindo países e povos, e reverberando na escalada política vertiginosa das direitas
extremistas. Esses grupos reforçam o discurso conservador, com suas figuras fortemente ligadas
à pátria, à terra e às identidades – linguística, religiosa, racial, sexual, nacional –, em resposta
ao que julgam ser fruto do extremismo islâmico ou do perigo estrangeiro. Porém, como nos
lembra Derrida, “[...] o extremismo político-religioso não é o islã, mesmo que os extremistas
falem em seu nome. É uma usurpação. Tanto que as vítimas mais numerosas desta
monstruosidade são os próprios muçulmanos”223.
Seria preciso, portanto, recusar essa ligação instantânea, disseminada no senso comum
como verdade secreta que religa a crença islâmica ao extremismo político. E não se pode
esquecer, igualmente, o quanto essa “verdade” está apoiada em uma cisão epistemológica, que
tem na “teoria do choque das civilizações”224 a sua expressão mais bem-acabada. Essa leitura,
221
NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir. (Org.) O Cinema do Real.
São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 288.
222
BUTLER, Judith. Excitable Speech: A politics of the performative. Nova Iorque: Routledge, 1997. p. 45.
Tradução minha.
223
In: CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 88.
224
Teoria proposta pelo cientista político Samuel P. Huntington no artigo The Clash of Civilizations?, publicado
na revista 'Foreign Affairs' , de 1993. Esse artigo ganhou repercussão ao afirmar que as identidades culturais e
101
que opõe oriente e ocidente como forças irreconciliáveis, tem por consequência o reforço das
fronteiras binárias e maniqueístas, por meio das quais o irracional é identificado nesse “outro
lugar”. Lugar fronteiriço onde, no limiar entre humano e inumano, o terrorismo de Estado pode
se instalar sem se preocupar com a aplicação dos rituais democráticos.
Por isso, pensar a atualidade e a questão dos terrorismos desde outras lentes, no
momento em se instala essa “zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de
exceção”225 torna-se tarefa de suma importância para problematizar os limites da jurisdição do
Estado. Além disso, enquanto paradigma efetivo de governo, a constituição dessas
representações é indissociável dos efeitos hostis que se apoiam não apenas no desprezo da lei,
mas na nulificação do ser – essencial para que se exerça a letalidade estatal. A propósito disto,
Foucault constata que:
Essa vontade de golpear faz parte do jogo do medo mantido há anos pelo poder.
Toda campanha sobre a segurança pública deve ser apoiada – para ser credível e
rentável politicamente – por medidas espetaculares que provam que o governo
pode agir rápido e forte acima da legalidade. Doravante, a segurança está acima
das leis. O poder quis mostrar que o arsenal jurídico é incapaz de proteger os
cidadãos.226
Governar por meio do “jogo do medo”, nas bordas da legalidade, é instituir como técnica
de governo o paradigma da exceção. É o que notaria Agamben, atento para o fato de que “[...]
o estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo
factício e tende a confundir-se com a própria norma”227. Desse modo, governar pela exceção,
instituindo como parâmetro não a norma legal, mas a segurança, resultará, não à toa, no vazio
jurídico que parece caracterizar as situações de anomia social dos estados de emergência atuais.
E que realiza, perversamente, o prognóstico enunciado por Benjamin: o estado de exceção
normaliza-se como medida desejada de governo.
No reforço dos mecanismos de exceção com existência jurídica, sob sua vigência, é que
se poderá, dispor da vida e da morte dos sujeitos. Porque, se “toda palavra guarda uma
religiosas dos povos seriam a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria, haja vista “as falas geológicas
entre as civilizações”. Evidentemente, trata-se de uma perspectiva apressada, segundo a qual oriente e ocidente
são polos heterogêneos e irreconciliáveis, fadados a conflitos intercivilizacionais.
225
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 64.
226
FOUCAULT, Michel. “Désormais, la sécurité est au-dessus des lois”. In:____. Dits et Écrits II. Paris:
Gallimard, 2001. p. 367. Tradução minha.
227
AGAMBEN, Op. cit., p. 164.
102
cilada”228, toda medida de segurança pública guarda também uma emboscada: a ordem das
coisas é a violência como ordem – experiência primeira e última do terror.
Jacques Derrida
Olivier Roy
As mil e uma noites de terror que assombram o mundo ocidental bem poderiam ter sido
relatadas por Sherazade, cuja paixão em narrar contos fantásticos aponta para a luta que se
trava, secretamente, por sua própria sobrevivência. A interrupção matinal da narração dos
contos, que recomeça pela noite, é senão, como sabido, um subterfúgio para aguçar a
curiosidade do rei e evitar que a execução sumária se abata sobre ela, fruto da fúria insaciável
de vingança do rei traído229.
Os contos de terror ocidentais, entretanto, seriam estranhos à pretendente do rei.
Sobretudo, quando o cenário, para além do pacto ficcional, é o próprio território da protagonista,
em que escombros, ruínas e destroços compõem a paisagem urbana devastada. As bombas que
caem aos montes nos subúrbios das cidades, distantes dos contos mágicos, fazem parte do
cotidiano de centenas de milhares de pessoas que vivem em cidades do Oriente Médio e da
África, cuja rotina de destruição e de intimidação engendra um modo de vida marcado pelo
nomadismo e pelos riscos multiplicados de morte.
A imagem do mundo árabe que se tornou paradigmática no pensamento ocidental oscila
entre o exotismo de seu modo de vida e a suspeita de que todo indivíduo de cultura árabe-
muçulmana é fundamentalista religioso – pronto para sacrificar a sua vida em nome de seus
valores teológico-políticos e do islamismo extremista. Por outro lado, tem-se em mente que o
retrato ocidental no Oriente, por conta dos fluxos acelerados de informações, da produção e do
consumo de mercadorias é aquele de um mundo globalizado, secular e blasfemo.
228
NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982. p. 369.
229
ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites – vol. I: ramo sírio/anônimo. Trad. Mamede Mustafá Jarouche. São
Paulo: Globo, 2005.
103
Essa visão do choque de civilizações foi adensada nos anos da década de 1990 por um
intenso debate em torno das identidades culturais e religiosas dos povos como origem dos
conflitos pós-Guerra Fria. Esse modo de compreensão, reforçado pelo livro do cientista político
Samuel P. Huntington, O Choque de Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem
Mundial230, prioriza a esfera cultural como fonte dos conflitos mundiais, em detrimento do
campo ideológico ou econômico. Para Huntington, nos antípodas do que argumentava Francis
Fukuyama, os conflitos culturais envolvendo o islã seriam o paradigma dessa concepção
centrada no choque. Nas trilhas do que se chamaria “nova ordem mundial”, na década de 1990,
sob o fragor dos ventos da globalização, Huntington sustenta que a democracia liberal, o sistema
capitalista de livre mercado e os direitos humanos seriam, de modo inequívoco, a única
alternativa ideológica possível após a Guerra Fria.
A chave de compreensão dos conflitos intercivilizacionais não parece dar conta, todavia,
das especificidades das tensões geopolíticas que envolvem os povos orientais e ocidentais, além
de homogeneizar as diferenças intraculturais. Sob a ótica do binarismo irreconciliável, a
consequência imediata é a instituição de uma polarização redutora, incapaz de lançar um olhar
crítico mais denso, tanto para o fenômeno cultural quanto para o político, de modo integrado.
E, ainda de forma mais restritiva, essa perspectiva fomenta a percepção homogeneizante
segundo a qual a política oriental seria intrínseca ao sectarismo e ao obscurantismo religioso,
por oposição à prática política do ocidente, livre e democrática, amparada pelo sufrágio
universal. Se levarmos em consideração que a gramática política do ocidente, apesar da perda
progressiva de valores religiosos, é definitivamente devedora do vocabulário judaico-cristão –
bastaria ver, para citar apenas um exemplo, como se apropria de conceitos como “tolerância”231
–, a fronteira entre o político-racional e o mítico-religioso se apresentaria mais porosa e
permeável do que se supõe. É o que o clássico ensaio A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, de Max Weber, tentava demonstrar ao pensar as relações entre conduta econômica
230
HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Trad. M.H.C.
Cortês. Rio de janeiro: Objetiva, 1997.
231
Ao se opor à noção habermasiana de “tolerância”, como terreno para um universalismo puro das sociedades
pluralistas modernas, Derrida indica o caráter paternalista e violento deste conceito. Isto porque, segundo o
filósofo, a tolerância seria uma virtude cristã e, apesar de vislumbrar uma “coabitação” tolerante, supõe “[...] uma
espécie de concessão condescendente” (BORRADORI; DERRIDA, 2004, p. 137). Como forma de caridade, a
tolerância estaria sempre do lado da “razão dos mais fortes”, em sentido oposto à hospitalidade sem condição. Em
suma, a tolerância demonstra a unilateralidade de um princípio que não pode se reduzir a uma regra aplicável, pois
serve frequentemente à causa da opressão e da hierarquização entre quem tolera e o que é tolerado.
104
Estado de graça
232
Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Ainda, neste sentido, cf. BENJAMIN, W. O capitalismo como religião.
Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013.
233
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 21.
234
Idem, p. 22.
235
BENJAMIN, Op. cit., p. 22.
236
1 Coríntios 6:12.
105
tornou paradigmática na análise da questão islâmica. Esta abordagem pretende ler em todo
islamismo uma conexão necessária entre o fanatismo irracional e o dogmatismo cego ligados a
valores intrínsecos da religião muçulmana exportados para a ordem política. A estratégia de
deslegitimação epistêmica e religiosa, que marca os discursos hegemônicos, consiste em traçar
uma linha genealógica direta entre a ausência de liberdade de escolha e a violência
constrangedora, que justificaria o seu caráter originariamente violento.
Isto explicaria a razão pela qual as determinações pré-fixadas na política ocidental-
cêntrica, de longa data, têm obtido êxito ao fixar o adversário islâmico como o polo negativo
de toda mediação ou negociação possível. Difícil não iniciar o debate, então, sem notar que, por
meio dessas figurações, populações inteiras são eliminadas imediatamente por serem
reconhecidas como lugar de origem do mal. Origem de um mal sem nome próprio, silencioso,
arcaico e tentacular. Mal que se expande difuso, em territórios outrora traçados a régua e
compasso pelas sucessivas ocupações colonialistas e neocolonialistas, que não cessaram de
fragmentar o Oriente Médio, a Ásia e a África em sua corrida pela partilha do mundo entre as
nações do Norte.
Missionários e cordeiros
237
E não apenas no contexto internacional, se pensarmos na crítica à prática das pacificações que norteou, por
exemplo, a política de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, que se iniciou
em dezembro de 2008, na Favela Santa Marta. Ao aprofundar a segregação socioespacial, por meio de dispositivos
criminalizantes e de uma política de administração repressiva, vigilante e de controle, a pacificação não se
configuraria como uma política comunitária de garantia da ordem e de “reconquista territorial”, mas funcionaria,
antes, como um reforço das fronteiras que aprofundam a estratificação social nos espaços urbanos e a
governamentalidade de seus moradores. Soma-se a isto o papel desempenhado pelas forças armadas com vistas
ao controle do território, que culmina na militarização da questão urbana e nas intervenções policiais violentas,
frequentemente em promíscua negociação com grupos paramilitares, como as milícias, e com as próprias forças
do chamado “poder paralelo”. O discurso de integração e da contrapartida de promoção do acesso aos
equipamentos e políticas sociais, desse modo, colide com a prática efetiva de ocupação, ancorada no modelo
belicoso. Daí as reações hostis, truculentas e arbitrárias por parte dos agentes do Estado, direcionadas aos
106
O fato é que, por vezes, algo parece fugir dos cálculos. Inesperadamente, antigos aliados
passam a figurar no papel pouco honroso do inimigo, não raro utilizando as mesmas estratégias
bélicas aprendidas com seus coachings internacionais. Assim, velhos parceiros estratégicos se
voltam contra as nações outrora “amigas”, sob a tutela das quais permaneceram por longa data,
submetidas a todas as relações de dominação – identitárias, linguísticas, intersubjetivas, de
autoridade política ou epistemológica.
Como escreve Freud, em ensaio de 1919, dedicado ao estranho238, o duplo é nomeado
como o íntimo familiar, “[...] que experimentou uma repressão e dela retornou”239. O estranho
não é o novo, mas o familiar que retorna na expressão de algo oculto (ou ocultado), que se
manifestaria de modo ainda mais assombroso. Os fundamentalismos e o eurocentrismo seriam
duas faces de uma mesma moeda. Ambos partilham da ideia da pureza identitária do “Estado-
nação”, ideia moderna do ocidente em cuja raiz está o esforço de homogeneização das
identidades da população no interior das fronteiras territoriais da Nação.
É desse modo que investigar os terrorismos permite encontrar, a um só tempo, o Outro
e o Mesmo, em suas figurações espectrais e fantasmagóricas. Nas explícitas manifestações de
islamofobia240, negrofobia e de xenofobia em geral, revestidas pelo caráter autoindulgente e
racista das medidas de exceção, o espelhamento analógico revela no medo do outro a outra face
de uma identidade e de uma identificação: a aparição do estrangeiro racializado como
duplicação fantasmática do terror potencial e da lógica racista/sexista/colonial que organiza as
estruturas da violência sistemática, da expropriação e do ódio como política.
Os demônios da fé
habitantes das zonas ocupadas, como as favelas, imediatamente identificadas como “espaços de ilegalidade”
povoados por inimigos potenciais.
238
FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“o homem dos
lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 328-376.
239
Idem, p. 366.
240
Cf. PASSETTI, Edson. Limites da Tolerância. Zero Hora, Porto Alegre, 10/01/2015. Disponível em:
http://www.nu-sol.org/agora/agendanota.php?idAgenda=598. Acesso em: em 29 ago. 2016.
107
da segurança: esse olhar redutor favorece o amálgama e o descrédito, e reduz o terceiro ramo
do monoteísmo a uma miríade de ínfimos grupos”241.
Encarar o islã como bloco monolítico e considerá-lo estritamente em sua interface com
as questões de segurança pública internacional, significa, com efeito, distorcer seus
pressupostos éticos e religiosos como se a prática do terrorismo fosse uma premissa religiosa.
Quanto a isso, pergunta-se Derrida:
Por que alguns no ocidente fecham-se ainda na construção de uma figura redutora
do islã e de sua cultura do oriente, que consideram “subdesenvolvida”, à do
ocidente, dita “desenvolvida”, segundo seus critérios arbitrários, procurando
sempre impor pela força os seus valores?242
241
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 11.
242
Idem, p. 43-44.
243
O califado é a forma islâmica monárquica de governo. Representa a unidade e liderança política do mundo
islâmico. A posição de seu chefe de Estado, o Califa, baseia-se na noção de um sucessor à autoridade política do
profeta Moḥammed. Importante lembrar que, no passado, os califados foram multiespirituais e multiculturais,
diferente da compreensão contemporânea dos grupos que reivindicam, hoje, a sua refundação.
244
NAPOLEONI, Loreta. “Califado. A sede corporativa do terror”. Entrevista publicada pelo Jornal Avvenire,
18.11.2014. Trad. Ivan Pedro Lazzarotto. IHU On Line. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537616califadoasedecorporativadoterror?tmpl=component&print=1&page=
Consultado em 10 ago. 2016.
108
por um viés fundamentalista do islã, não significa que a ancoragem teológica para a
radicalização da violência esteja, de fato, inscrita na religião. O califado islâmico atual, que
pode ser considerado um projeto teológico-político por meio do qual algumas organizações
fundamentalistas travam uma luta sangrenta para impor um certo modelo de governo, é extraído
menos das escrituras sagradas do que de um ideal tático utilizado como argumento nos conflitos
em nome de interesses econômico-territoriais e de dominação étnica.
É interessante ressaltar, como aponta Grosfogel, que:
[...] o pensamento colonial não é somente o que impõe o Ocidente. Pode muito
bem ser internalizado pelos colonizados, e em nome de uma alternativa ao
Ocidente, pode reproduzir uma visão completamente ancorada na modernidade
ocidental-cêntrica.245
Esses Estados [islâmicos] têm sido, na verdade, alvo de ataques pelas forças
radicais do islamismo que foram organizadas e treinadas para lutar uma Guerra
Santa contra a URSS, vinte anos atrás [i.e. no final da década de 70 e início da
década de 80], e logo a seguir começaram a traçar suas próprias prioridades, ou
seja, disseminar o raio de alcance do terrorismo que praticavam, iniciando pelo
assassinato do presidente egípcio, Sadat [1981].247
245
GROSFOGEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 67.
246
Idem, ibid..
247
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.
87. Ressalte-se que, aqui, Estados islâmicos não se referem à organização do Estado Islâmico (ISIS).
109
Os grupos islâmicos radicais, aos quais Chomsky se refere, foram formados em 1979,
devido aos conflitos de interesses geopolíticos, que levaram à criação de protetorados no
Oriente Médio pelos países do Norte, com vistas à formação de uma “barreira ideológica”. Para
deter o avanço soviético no Afeganistão, milhares de soldados foram treinados pela CIA
[Central Intelligence Agency], de modo a combater a expansão dos sovietes. Em que pese o
momento histórico da Guerra Fria que se desenrolava, muitos dos atuais inimigos de Estado
das potências ocidentais foram aliados importantes que receberam, além de treinamento,
financiamento direto e uma série de informações privilegiadas de agências de inteligência no
que foi batizado, estrategicamente, de “guerra santa”.
Com o objetivo de conter a expansão e de conferir ao conflito um cunho religioso-
territorial, a guerra dividiu as nações árabo-islâmicas e a força aliada dos comunistas soviéticos,
que se retiraram após a ofensiva. Naquele momento, figuravam como aliados importantes do
ocidente e dos EUA, nomes como Sadam Hussein e Osama Bin Laden, para citar apenas dois,
que seriam considerados posteriormente lideranças de grupos terroristas contra as quais a
“guerra ao terror” se destinaria.
A multipolarização do mundo pós-Guerra Fria deslocou interesses geopolíticos e
resultou em novas alianças e divergências. A guerra santa, neste cenário, foi redefinida como
uma espécie de niilismo apocalítico que assumiu os traços arcaicos do terror. A perspectiva
ocidental da teologia política do islã, aproximada ao jihadismo e ao fundamentalismo religioso,
transmutou a imagem do muçulmano em radical-religioso. Em consequência, os muçulmanos
estariam fadados ao fatalismo irracional. Mesmo Max Weber, em suas considerações
sociológicas eurocentradas, já via no muçulmano um desvio “[...] por completo de qualquer
conduta de vida racional”.249
A islamofobia epistêmica transmuta-se, então, no veredito racista que desconsidera
completamente as contribuições islâmicas para a formação dos saberes modernos do ocidente
e produz amplas reservas de imaginários culturais a fim de desqualificar qualquer traço
248
CHOMSKY, Op. cit., p. 95.
249
SUKIDI, Mulyadi. “Max Weber’s remarks on islam: The Protestant Ethic among Muslim puritans”. Islam and
Christian-Muslim Relations, Birmingham, vol. 17, n.º 2, 195–205, 2006. p. 200. Tradução minha.
110
histórico que confira relevância a essas culturas. Veja-se, por exemplo, a importância histórica
da Escola de Bagdá (a Bayt al-Hikmah, conhecida como a “Casa da Sabedoria”) como centro
de irradiação intelectual e de circulação de saberes – inclusive, pela via institucional, com a
fundação das universidades mais antigas do mundo250, enquanto a Europa mergulhava no
processo inquisitorial.
Talvez esse estranhamento tenha lugar porque o islã traz consigo outra concepção de
religião, distinta do sentido ocidental, que a considera uma prática cultural dissociada da
política, da economia ou da vida pública – embora essa laicidade republicana possa ser
contestada sem muita dificuldade. Sem ser uma esfera separada, a visão cosmológica do mundo
islâmico rompe com o modelo dualista, seja cristão ou cartesiano, sem que a religião se oponha
às ciências ou ao pensamento racional, como o secularismo cientificista moderno/colonial
postulou. Não se deve esquecer, todavia, o quanto esses valores (atrelados ao discurso
civilizatório) estão implicados no projeto colonial, que não pode prescindir do epistemicídio
que deslegitima formas de conhecimento não ocidentais ou periféricas. É apontando o reino das
“trevas” e dos “demônios da fé” que o epistemicídio e o “espiritualicídio” tonaram possíveis a
colonização das mentes e dos corpos dos sujeitos coloniais.251
Há, ainda, a inconciliável aliança entre a democracia política e o islã. Evidentemente,
essa incompatibilidade tem como pedra angular o descrédito epistêmico e político conferido a
qualquer prática de governo que não seja pautada pela suposta primazia do regime democrático
liberal – entendido como forma de organização social e de governo “autorregulatório”, isto é,
em tese, aquela em que o Estado se abstém de intervir no que concerne ao direito dos cidadãos
e de sua responsabilidade de escolha pela via do sufrágio universal. Em relação a essas visões
parciais dos orientalistas anglo-eurocentrados e do que fazem circular como imagem canônica
do islã, quase coercitiva pela sua força impositiva, Edward Said remarca que:
250
A Universidade de Al-Karaouine, em Fez, no Marrocos, fundada no ano 859, é reconhecida como a instituição
universitária mais antiga do mundo. É significativo também que a Universidade Al-Azhar, no Cairo, já oferecia
desde sua fundação, no século X, uma ampla variedade de graduações acadêmicas e é considerada como a primeira
universidade global.
251
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n.º 14, p. 341-355, janeiro-junho 2011b. p. 352. Tradução minha.
111
estudo sério das sociedades ocidentais, com suas teorias completas, suas
enormemente diversas análises das estruturas sociais, históricas, as formações
culturais e as linguagens sofisticadas da investigação, deveríamos esperar também
do estudo e da discussão sobre as sociedades islâmicas no Ocidente.252
A islamofobia epistêmica, uma das formas do racismo colonial, tem por função difundir,
na geopolítica do conhecimento, um esquema referencial determinado e determinante por meio
do qual o “[...] sistema mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial
ocidentalizado/cristianizado”253 justifica sua superioridade pela via do essencialismo identitário
hegemônico, que visa apagar os lugares desde os quais os discursos são produzidos, fazendo-
os circular como formas neutras, objetivas e, por isso, fora das relações de poder.
Mas não é apenas isso. O fluxo de imagens, que opera via interseção entre os
significantes do mal, o terror e a religião islâmica, teria por contraponto a constituição e a
disseminação de uma autoimagem estratégica: a do ocidente heroico, que elege o mundo
desencantado da razão, da tecnociência e da democracia liberal como o modo de vida legítimo
a ser difundido planetariamente. Vê-se, então, a circulação planificada da imagem do
muçulmano como criatura violenta e racialmente inferior, tal qual vilão dos filmes da Disney.
Associado à representação do terrorista, esse estereótipo, simultaneamente significante racial e
maquinaria de desumanização, funciona como razão suficiente para justificar a prática dos
terrorismos de Estado transnacionais e como alicerce no qual se apoia o projeto de dominação
colonial.
A guerra santa, agora não mais circunscrita nos confins do Oriente Médio e da África
do Norte, mas expandida em direção ao mundo todo, consolidou uma única vertente possível
do islã, idêntica à produção massiva do inimigo indisponível ao diálogo, à diplomacia e ao
reconhecimento do Outro. Essa tática, aliás, não seria uma novidade, se considerarmos a crítica
à visão onírica e exótica do “orientalismo”, apresentada por Edward Said. Por outro lado, dentro
dos princípios religiosos, ignora-se uma outra interpretação possível, mais nuançada, segundo
a qual “a grande guerra santa [jihad] não é a do muçulmano contra o infiel, mas aquela – de
renúncia – que lhe é necessário conduzir incessantemente contra ele próprio”254.
252
SAID, Edward. Covering islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World.
Nova Iorque: Vintage Books, 1998. p. xi-xvi. Tradução minha.
253
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n. 14, p. 341-355, janeiro-junho 2011b. p. 343. Tradução minha.
254
BATAILLE, Georges. A parte maldita – Precedida de “A noção de dispêndio”. Trad. Júlio Castañon Guimarães.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 90.
112
Esse mal radical, portanto, mais íntimo e próximo do que se desejaria não parece tão
estrangeiro às negociações e às alianças do ocidente. Interessa, sim, construir criminalmente a
figura do fundamentalista religioso como salvaguarda de instauração de uma arte de governo
que passa, simultaneamente, pelo discurso da (in)segurança e pela expansão dos fluxos de
capitais humanos, bens e serviços. Com o radical livre a ser destruído, efetiva-se a fusão de
uma identidade étnico-religiosa com os valores arcaicos e sectários da exterioridade a ser
combatida. O que, desde a modernidade europeia, tem sido o móbil da empresa colonial, que
não deixou de tentar erradicar, com o ethos racialista de sua força expansiva e militarista, a
todos aqueles cuja vida atentariam não apenas contra a humanidade, mas contra a natureza.
Vemos esboçar-se o revés de uma tecnologia política que, “[...] no silêncio de uma
justiça um tanto outra, nas telas dessa obscura instância”, profere o veredito de antemão: ‘ser é
ser culpado’”.255 A esses bárbaros sem conversão, restaria o banimento ao último círculo do
inferno dos homens: as mil e uma noites de terror ainda, ao longo das quais nem a narrativa da
guerra é capaz de refrear o ímpeto do exterminador.
Enquanto o leão não tiver os seus historiadores, a glória vai sempre para o
caçador.
Provérbio africano
255
BECKETT, Samuel. Textos para nada. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 22.
113
Mas, o espectro, alvo e tão assustador quanto os demais, tampouco se compara aos bons
fantasmas dos contos de Oscar Wilde ou às visagens sobrenaturais mais folclóricas das
Assombrações do Recife Velho, descritas por Gilberto Freyre. Sua presença, signo também de
uma ausência, é assombrosa; incapaz de compreender a língua do Outro, atordoado pelo ímpeto
devastador que o impede de ver o que lhe olha por um singular autocegamento, o branco
espectro dissemina a estranheza em sua distância infinita. Ali, tudo o que se vê nele encarnado
é, a um só tempo, a decomposição que escancara a sua instabilidade ontológica e o desejo
irrefreável de terra arrasada.
Não é à toa que a escrita da história recente do imperialismo colonial, sobretudo dos
séculos XIX e XX, seja saturada de sombras, de cadáveres e de sangue, bem diferente da
alegoria romanesca do progresso emancipador e da luz da razão que libertaria todos os povos
de seus grilhões em direção à paz perpétua, como postulavam outrora os teóricos europeus.
Porque se o racional e o real coincidem256, como enunciaria Hegel, é a mesma fantasia do
controle total que toca o pensamento racional e seus desdobramentos empíricos mais violentos,
lá onde a hierarquização, a subalternidade e a dominação sobrepõem-se nos termos do terror
racial.
Daí a tentativa de apagamento e o reiterado processo de silenciamento dessa ferida
recente e ainda não suturada. Para justificar os atos criminosos, os executores – poderíamos
dizer também, os executivos – apontam em suas vítimas uma outra ausência – e que não deixa
de ser mais um assassínio: a do próprio pensamento (ou da “civilidade”, conforme o nome
adotado pela política do império). Selvagens, canibais e feiticeiros: como não perpetrar a morte
diante desse Outro tão radical que, por estranha lógica não cartografada, ataca justamente
aqueles que levam o espírito de liberdade ao continente das trevas257? No coração de todo
colonialismo habita esse segundo gesto de fúria e de pretensa caça aos fantasmas: o
epistemicídio que legitima o assassinato pelo não-reconhecimento do Outro e inaugura, nos
termos do vocabulário bélico, o próprio antídoto contra a má-consciência coletiva do ocidente:
tratam-se apenas de danos colaterais de um projeto maior.
256
Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. São
Paulo: Ícone, 1997.
257
“O continente [africano] se tornou, desde o início do tráfico atlântico, um inesgotável poço de fantasias, matéria
de um gigantesco trabalho imaginativo, cujas dimensões políticas e econômicas jamais serão suficientemente
ressaltadas e do qual jamais se dirá o bastante que continua a informar, até o presente, as nossas representações
dos africanos, de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem”. 257 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra.
Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 131.
114
Assim, opera-se não somente a invisibilização de quem se mata. No mesmo ato, produz-
se, quase de modo benevolente e missionário, o salvo conduto de quem aponta em seu próprio
trabalho de desbravamento uma espécie de gesto pedagógico irrepreensível: “ide e educai os
povos!”. Onde houver resistência à operação modelar de ensinamento dos valores do trabalho,
do pensamento lógico-científico, do modo de vida livre e autodeterminado do homem branco,
que cantem fuzis e baionetas a profissão de fé da liberdade.
Foi desse modo que a África se constituiu como o continente fantasmagórico de uma
terra a ser explorada. Terra, ao mesmo tempo, fértil e impotente, trágica e carnavalesca, pronta
para receber, como salvação de seu estado de pobreza, a tutela dos governos estrangeiros258:
258
Note-se que o projeto de exploração na África e na Ásia levado a cabo pelas potências europeias no decorrer
do século XX encontrava nos “protetorados” a figura jurídico-política para justificar a ocupação territorial e o
domínio colonial. Esse misto de paternalismo, cobiça e de desfarçatez, que está na raiz de diversos conflitos
etnicidas até hoje, mobilizou a prática política que recortou a geografia dos continentes subjugados e alçou seu
regime autoritário e repressivo como modo de administração legítimo das colônias. Sobre isso, remeto ao livro de
Chinua Achebe A educação de uma criança sobre o protetorado britânico, publicado em língua inglesa em 2009.
Escreve a ensaísta, logo nas linhas iniciais dos ensaios: “A meu ver, é um grave crime qualquer pessoa se impor a
outra, apropriar-se de sua terra e de sua história, e ainda agravar esse crime com a alegação de que a vítima é uma
espécie de tutelado ou menor de idade que necessita de proteção. É uma mentira total e deliberada. Parece que até
o agressor sabe disso, e é por essa razão que ele às vezes procura camuflar seu banditismo com essa hipocrisia tão
descarada.” ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sobre o protetorado britânico: Ensaios. Trad. Esa
Mara Lando. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 17.
259
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
96.
260
Idem, p. 97.
115
socialmente valorizado será aquele atrelado ao poder expansivo da ordem colonial: “[...] fora
das suas fronteiras está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem-sentido”.261
É o que a filósofa Susan Buck-Morss, em ensaio intitulado Hegel e o Haiti262, remarca
ao analisar a recorrência da metáfora política da escravidão no iluminismo filosófico europeu.
E, de modo paradigmático, a partir da dialética do senhor e do escravo, tal como proposta por
Hegel em A Fenomenologia do Espírito. O que surpreende mais no filósofo alemão, porém, é
a brutalidade argumentativa com que nega qualquer contribuição para a história mundial dessa
“terra de crianças”, de “barbárie e selvageria”, como encarava a África subsaariana263. A razão
disso seriam as deficiências próprias do “espírito” africano e o fato de que “na África, todos são
feiticeiros”.264 Essa filosofia da história ofereceu, por dois séculos, subsídios teóricos para
justificar não só o eurocentrismo, mas também a escravidão, visto que, como argumenta Hegel,
“[...] a única conexão essencial entre os negros e os europeus é a escravidão”265.
A alienação colonial e o terror epistêmico consistem então no triplo movimento de
expropriação. Primeiramente, de uma língua nativa, ao compelir o uso da língua do colonizador
aos autóctones; depois, expropriação de uma origem histórica comum e do transplante de todo
um sistema-mundo exterior, imposto pelo ferro das conquistas, e que restringe as heranças
ancestrais ao vocabulário comum de uma história na qual os sujeitos coloniais participam senão
como corpos inferiorizados, residuais e à margem do corpo político. A isso Frantz Fanon
nomearia de “epidermização dessa inferioridade”266, cuja semiótica visível da cor da pele
“deve tornar-se ódio”267. Destaca-se, por fim, a instituição de uma ordem jurídico-econômica
261
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação na América Latina. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1986. p. 11.
262
BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Trad. Sebastião Nascimento. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo , n.º
90, p. 131-171, julho 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002011000200010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 23 jul. 2018.
263
Kant, em sua Lógica, partilha de perspectiva similar em relação a outras formas de racionalidade não-europeias:
“[...] o mesmo vale também da tão louvada sabedoria egípcia, que, em comparação com a filosofia grega, não
passou de um jogo de crianças”. KANT, Immanuel. Lógica. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1992. p. 44 (grifos do autor).
264
Sobre esse aspecto, Buck-Morss cita uma passagem importante de Hegel no rodapé de seu texto: “Nessa maior
parte da África, nenhuma história real pode acontecer. Existem apenas acidentes ou surpresas que se sucedem.
Não há objetivo, nenhum estado digno de observação, nenhuma subjetividade, mas apenas uma série de sujeitos
que se destroem uns aos outros” (Hegel, Die Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 216-7). Hegel cita Heródoto,
implicando que nada havia mudado ao longo dos séculos: "Na África, todos são feiticeiros"; e repete a história dos
africanos como "adoradores de fetiches" que já se encontrava em Charles de Brosses, o contemporâneo iluminista
de Voltaire.” HEGEL apud BUCK-MORSS, Op. cit., p. 154.
265
GILROY, Paul. Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Editora 34, 2012. p. 101.
266
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 28.
267
Idem, p. 61.
116
A infância do mundo
Não são poucas as narrativas etnográficas, literárias ou históricas que dão margem a
leituras mais ou menos empáticas às práticas colonialistas. Se tomarmos por referência A África
Fantasma268, de Michel Leiris, para citar somente um exemplo no qual os três registros estão
interpostos, não será difícil observar como o imaginário de todo um continente se choca com a
realidade do narrador, esse viajante estrangeiro que nomeia, admirado, tudo o que vê.
Bem menos heroica, no entanto, é a empresa do colonizador, cuja imagem de nobreza
dissipa-se na violência crônica contra os povos nativos; na espoliação de bens culturais,
saqueados e expostos nos grandes museus europeus; na incapacidade de compreensão de um
modo de vida pautado por outros valores e devastado pelos administradores provincianos
delegados pelos impérios coloniais:
Ora, não se trataria de pensar nessas experiências sob as lentes de uma violência não
fortuita e casual, mas fruto de um projeto racional de governo, cuja técnica de dominação é o
terror? Invisibilizado em sua singularidade, homogeneizado como um todo informe e sem lei,
o continente Africano, ao lado das Américas, foi o campo perfeito de experimentação do
exercício soberano, do governo necrobiopolítico e do terror como projetos políticos de
subalternização. Porque se o racismo é a base da instituição colonial, é a partir dela que a
estatização do biológico e o discurso da economia se aliam concretamente na dilatação das
268
Trata-se do diário pessoal que Michel Leiris manteve ao longo da Missão Etnográfica e Lingüística Dacar-
Djibuti, da qual fez parte como secretário-arquivista. Missão delegada pela França ao também antropólogo Marcel
Griaule, entre 1931 e 1933, cujo objetivo era o de coletar dados sobre o Império Francês na África e peças para o
Museu do Homem em Paris. Cf. LEIRIS, Michel. A África Fantasma. Trad. André Pinto Pacheco. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
269
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
p.112.
117
Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo
em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos
que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos
270
RAMOSE, Mogobe. An African Perspective on Justice and Race. Polylog, Forum for Intercultural Philosophy.
Tübingen, vol. 1, n. 3, 2001. p. 4. Disponível em: https://them.polylog.org/3/frm-en.htm. Acesso em: 20 abr. 2018.
Tradução minha. Na versão original, em inglês: “Aristotles definition of "man" as a rational animal constituted the
philosophical basis for racism in the West. In order to qualify as a human being one had to be rational. When the
colonizer encountered the colonized there was a striking similarity in some physiological features. At the same
time there were discernible physical differences. These were then used as a reason to exclude the colonized from
the category of being human. The colonized were no and never had been human beings, it was claimed, because
they lacked rationality. Reason or rationality was not part of their nature even though in appearance they looked
like human beings. The hallmark of racism then is the claim that other human-like animals are not truly and fully
human”.
271
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
41 et seq.
272
Idem, p. 61.
273
Esse conceito, forjado pelo filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl em livro homônimo de 1922,
designava o estágio das pessoas nas chamadas “sociedades pouco diferenciadas”. De acordo com Lévy-Bruhl,
essas pessoas teriam uma mentalidade pré-lógica, baseada em representações míticas, e não submetida ao princípio
de não-contradição e de causalidade. Para um aprofundamento da construção argumentativa desta
psicologia/antropologia eurocêntricas, remeto ao livro do autor: LÉVY-BRUHL, L. (1922) La mentalité primitive.
Paris: PUF, 1947. Particularmente, ao capítulo II, intitulado As potências místicas e invisíveis, no qual, logo de
saída, expõe-se que “[...] a mente dos europeus – mesmo aquela dos mais imaginativos, a dos mais puros poetas
ou metafísicos – é prodigiosamente positiva, em comparação com a dos primitivos. Para nos curvarmos a uma
atitude tão contrária àquela que nos é natural, seria preciso violentar nossos hábitos mentais mais enraizados, fora
dos quais – achamos – não poderíamos mais pensar”. Outra leitura das obras de Lévy-Bruhl é apresentada em:
GOLDMAN, Marcio. Razão e diferença: Afetividade, racionalidade e relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora Grypho, 1994.
119
O Estado escravagista foi nutrido por esses fundamentos, em toda sua extensão e
amplitude. Expulsos da ratio humana, esses Outros seriam, como os animais, reduzidos ao puro
instinto e passíveis, portanto, de serem inscritos no “círculo da extração”.275 No limite, essas
formas de subvidas podem ser abatidas, pois a esses proto-sujeitos racializados não serão
atribuídos marcadores públicos de reconhecimento: se os selvagens parecem com os
colonizadores é menos por sua humanidade do que por uma estranha coincidência de traços
comuns que faz desses animais, dentre os outros, o animal que mais se avizinha do homem.
O colonizado tem, por conseguinte, a sua humanidade sustada. E se “[...] é o racista que
cria o inferiorizado”276, segundo Fanon, o recurso bioracista à hierarquia natural das espécies
terá por função fixar numa armadura histórica essa assimetria instituída, no tempo, como
distinção originária. Esse desequilíbrio referenda a funcionalidade tática de uma história todo-
poderosa, de mira supostamente “imparcial”, que apaga silenciosamente de suas páginas o traço
de sangue deixado pelo caminho. Assim,
Terrorismos Epistêmicos
274
KANT, Immanuel. Observações sobre o belo e o sublime. Ensaio sobre as demências mentais. Trad. Vinícius
de Figueiredo. São Paulo: Editora Papirus, 1993. p. 75.
275
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
67.
276
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 90.
277
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. p. 46 e 73.
120
278
“É que, de um modo geral, a loucura não está ligada ao mundo e a suas formas subterrâneas, mas sim ao homem,
a suas fraquezas, seus sonhos e suas ilusões. [...] ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo
mesmo. [...] De todos os modos, a loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão.” FOUCAULT,
Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2010.
p. 24 et seq.
121
da relação de ser, de poder e de saber que ela produz. “Saber”, aqui, tal como a máxima de
Francis Bacon, “é poder”; mas significa também silenciar tudo o que, sob o manto do
“obscurantismo”, do “primitivismo” e do “paganismo” apresente-se como contraponto ao modo
de operação, aos princípios e aos conceitos erigidos como referenciais incontornáveis do
pensamento branco-ocidental279.
O uso da força, por sua vez, justificado como instrumento necessário e legítimo para
assegurar a hegemonia do Estado, as relações de produção e de penalização dos corpos e das
mentes “outros” adquire os contornos do extermínio físico e cultural – entendido aqui em sua
acepção mais ampla – quando não do encarceramento massivo e das formas institucionalizadas
de violação. Esse genocídio cultural, que visa a liquidar sistematicamente qualquer traço das
práticas e dos saberes do Outro, apesar da assimilação tensa de elementos “exóticos” à cultura
“civilizatória” e dos trânsitos das realidades simbólicas, opera pela negação de perspectivas e
de matrizes epistemológicas que fujam à configuração do complexo político e social dominante.
O que lembraria Fanon ao se referir a
Essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a
parte onde o encontra [...]; essa Europa que nunca parou de falar do homem, de
proclamar que só se preocupava com o homem, sabemos hoje com que
sofrimentos a humanidade pagou cada uma das vitórias de seu espírito280.
A dinâmica das relações de poder, nesse sentido, funciona de modo a reforçar as normas
sociais – não sem conflitos, é bem verdade, mas a partir de uma negociação desigual do ponto
de partida e dos termos adotados. O suporte das instâncias jurídicas e político-institucionais é
fundamental para legitimar a empreitada “salvacionista” que, historicamente, revestiu o
discurso dos colonialismos, dos imperialismos e das relações de dependência entre o centro
(metrópole) e suas periferias (colônias). Ao se valer do direito socialmente e legalmente
reconhecido são auferidas vantagens, mesmo em um cenário de disputas, a determinados
grupamentos sociais. O aparato legal, é preciso ressaltar, não afeta de modo semelhante os
corpos e as identidades, e o direito, a despeito de seu revestimento positivo e supostamente
“neutro” e “objetivo”, pode ser operado, sem grande dificuldade, de modo a privilegiar aqueles
279
“De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou,
menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição
com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta”. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad.
José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 104.
280
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. p. 271-272.
122
que dominam não somente o seu léxico (e as suas lacunas), mas também aqueles que se valem
de dispositivos inscritos no corpo da própria lei para justificar seus atos.
Não deixa de ser significativo que “[...] o direito foi, nesse caso, uma maneira de fundar
juridicamente uma determinada ideia da humanidade dividida entre uma raça de conquistadores
e outra de escravos”281. À “raça” dos conquistadores, legitimamente, poderia se atribuir
qualidades humanas; os colonizados, por seu turno, estariam legalmente barrados desse campo,
abandonados à indigência do espírito e das leis. Em relação a essa “ordem do discurso” jurídico
e o modo como sua ativação produz efeitos práticos, é interessante notar, conforme ressalta
Foucault, que:
281
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
115.
282
FOUCAULT, M. História dos Sistemas de Pensamento – 1970-1971. Lisboa: Editora Centelha Viva, 2007. p.
6.
123
modo de exercer o poder, fundado em uma geopolítica, o que indica que esses
modos de produção de conhecimento e de exercício de poder têm um local
privilegiado de irradiação e atuam de modos diferentes em diferentes lugares do
mundo.283
283
FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. A modernidade vista desde o Sul: perspectivas a partir das
investigações acerca da colonialidade. Padê: Est. em Filos., Raça, Gên.e Dir. Hum., Brasília, v. 1, n. 1/2, p. 1-19,
jan./dez 2009. p. 2.
284
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.70.
285
FLOR DO NASCIMENTO, Op. cit., p. 10.
124
286
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 102.
125
4 OS DIREITOS HUMANOS
Costas Douzinas
Todo discurso expõe um lugar de enunciação definido a partir do qual se fala. Talvez
por isso todo lugar de fala seja também atravessado por essa estranha topofonia, que revela um
duplo movimento de enunciação e de escuta políticos. De um lado, a produção de um discurso
parcial, situado, às vezes vacilante, em sintonia com o repertório enunciado por uma
coletividade; de outro, a trincheira discursiva que se dispõe como último refúgio – e talvez o
primeiro – de defesa em meio às batalhas da linguagem, cujas brechas permitem entrever, nas
entrelinhas, a mobilização ativa – questão de sobrevivência – pelo reconhecimento e contra a
precarização e o assassinato sumário que toca muitos corpos igualmente precários.
Por isso, aqui não há qualquer neutralidade discursiva. Ou mesmo uma abordagem que
não parta do arsenal dessas vulnerabilidades rastreadas não apenas nas vítimas diretas de um
processo predatório da negociação política internacional, mas também cotidiano e prosaico, que
não cessa de mostrar a mobilidade de certas fronteiras discursivas, a intransponibilidade de
outras, enquanto marcha sem refluxo a agenda genocida dos Estados.
Nos fóruns internacionais, discutem-se os mecanismos de proteção da vida humana;
simultaneamente, autorizam-se bombardeios, chacinas, extermínios e encarceramentos em
massa como modo de prevenção de crimes possíveis. Desviantes, terroristas, delinquentes e
marginais são suspeitos facilmente identificáveis como inimigos. Inimigos da espécie humana,
criminalizados e designados racialmente, proscritos de toda humanidade. Se o discurso da
guerra é uma constante nessas questões políticas, há de se definir de qual lado das fronteiras se
quer estar. Porque os fronts de batalha não cessam de se multiplicar. Como as vozes, corais e
coletivas, a questionar o que é isso. O que é isso, o direito do homem? O direito do homem
engloba o da mulher? Das mulheres negras da Nigéria nas fronteiras italianas? Das parturientes
sudanesas na rota do Mediterrâneo? O direito humano, de que humanidade? E de qual
paradigma humanitário se parte?
Não é novidade. Os direitos humanos, demasiado humanos, são repletos de fissuras
indefinitórias, inclusive do que vem a ser esse humano suposto e seu reverso. Não à toa, essa
concepção abstrata e idealizada tem sido taticamente instrumentalizada para subjugação de uns
e de outros. Assumir um referencial teórico, nesse contexto, é escolher as vozes que podem
127
potencializar criticamente o nosso exercício, em meio a tantos exércitos, tiro, porrada e bomba,
que constrangem o mundo à reprodução dos monólogos que não ressoam as realidades
regionais, os múltiplos modos de vida a que se prometem resguardar, a polifonia das multidões
que denunciam, em todo o mundo, os perigos da universalização, os limites da representação e
da agenda política internacional de direitos humanos.
Adota-se aqui uma perspectiva crítica à concepção hegemônica dos direitos humanos e
indissociável do debate acerca das novas formas de colonialismo, de genocídio e de opressão
atuais. Mas será preciso, antes de tudo, apresentar duas considerações importantes, talvez as
únicas essenciais, deste capítulo.
Logo de saída, não se trata de pensar por meio da crítica tecida a essas concepções a
irrelevância da defesa dos direitos humanos. Muito pelo contrário. Garantir as lutas por direitos
e propor que sejam observadas com rigor as garantias fundamentais dos direitos previstas pelos
ordenamentos jurídicos significa tratar os direitos não como privilégios inerentes à
branquitude287 ou válidos somente para assegurar a proteção legal de algumas vidas. Como
abordaremos a seguir, a questão dos direitos humanos deve ser compreendida como fruto de
lutas históricas e não como concessões filosófico-jurídicas diante do reconhecimento de
qualquer natureza humana a-histórica.
Não se propõe, tampouco, qualquer espécie de reformismo do direito, estritamente no
âmbito dos textos escritos e das disposições abstratas, com vistas a dar conta de suas lacunas
discursivas e a ser prontamente difundido em escala planetária a qualquer custo. Uma vez mais,
a produção discursiva deveria ser sempre situada e os mecanismos de elaboração desses
arquivos com força de lei, discutidos para além da defesa da universalidade ou dos direitos
naturais que ganham os contornos das missões civilizatórias contemporâneas. Afinal,
O “direito” dos direitos humanos, é portanto, um meio – uma técnica, entre muitos
outros, na hora de garantir o resultado das lutas e interesses sociais e, como tal,
não pode se afastar das ideologias e das expectativas dos que controlam seu
funcionamento tanto no âmbito nacional como no âmbito internacional.288
287
No que concerne à crítica da identidade racial branca constituída como norma, Richard Dyer destaca que:
“Olhar com tamanha paixão e unicidade de propósito para os grupos não dominantes teve o efeito de reproduzir o
sentimento de estranheza, diferença e excepcionalidades desses grupos, o sentimento de que eles constituem
desvios da norma. Entrementes, a norma seguiu adiante, como se fosse a maneira natural, inevitável e comum de
sermos humanos”. DYER, Richard. White: Essays on Race and Culture. London and New York: Routledge, 1997.
p. 44.
288
HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia,
Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 23-
24.
128
289
GROSFOGEL, Ramón. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la visión descolonial de
Frantz Fanon y la sociología descolonial de Boaventura de Sousa Santos. In: Formas-Otras: Saber, nombrar,
narrar, hacer. Barcelona: CIDOB Edicions, 2011. p. 99. Disponível em:
http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Formas-Otras_Dec2011.pdf. Acesso em: 02 ago. 2018.
129
Sem se atentar a isso será difícil perceber todas as consequências extraídas da “ordem
do discurso” dos direitos humanos, e a estratégia punitiva que seu uso tem adquirido no âmbito
da política internacional. “‘Humanidade’ – remarcaria Foucault noutra ocasião – é o nome
respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos”.290 Se a economia penal passa a
revestir a defesa dos direitos segundo cálculos políticos, o risco é que a disputa política em
torno das garantias de vida, liberdade e segurança se metamorfoseie em mero empreendimento
formal e utilitarista, incapaz de proteger a integridade dos seres humanos, “[...] sejam eles
jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos ou
imigrantes indesejáveis no hemisfério norte”291.
A reflexão filosófica acerca dos direitos humanos deve interrogar os fundamentos desses
empreendimentos políticos e o rastro de dominação – colonial, burocrática, patriarcal,
autoritária – que trazem consigo. Pois, se as relações sociais foram forjadas no seio de
sociedades transpassadas pelas experiências de violência política e organizadas sobre esse
legado – frequentemente não reparado –, colocar em questão essas estruturas é se perguntar
também pelos pressupostos raciais inscritos nos termos e na lógica de um “sistema de
supremacia branca”292, que categoriza hierarquicamente os sujeitos de direitos humanos.
Tem-se, então, o motivo de essas demandas e o efetivo exercício da dignidade humana,
seja qual for o modo de ser dos indivíduos e dos povos, não poder serem pautadas pelo ideal
globalizante dos mercados liberais, como se a produção destes direitos fosse correlata à criação
de zonas livres de consumo. Os sujeitos que reivindicam os seus direitos são indissociáveis
destes processos, pois as contribuições de seus saberes, situados e vividos, partem de suas
realidades sócio-históricas, irredutíveis aos saberes/práticas jurídicos universais, e que apontam
para a pluralidade de modos de vida, de concepções culturais, sociais, morais e jurídicas.
Trata-se de adotar, assim, a perspectiva da interculturalidade, cuja abordagem ensaia
uma alternativa para que essas realidades sejam reconhecidas não como periféricas,
marginalizadas ou estigmatizadas, mas como o nódulo de organização dos direitos humanos. E
isso sem que se recaia no festim multiculturalista, que celebra a heterogeneidade cultural, mas
escamoteia as relações de dominação, exploração e de poder que enformam a sua compreensão
social. Antes, essa concepção teria como referência o paradigma liberal, ancorado na
290
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 2009. p. 88.
291
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 20-21.
292
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 105
et seq.
130
293
Ressaltemos, porém, que essa não é a perspectiva adotada por Boaventura de Souza Santos, que toma de
empréstimo do interculturalismo para sustentar o que chama de “multiculturalismo policêntrico”. Para ele, esse
poderia enfatizar o projeto contra-hegemônico e emancipatório com vistas a fazer frente a concepções
eurocêntricas e ao processo de decolonização das relações de poder desiguais entre culturas. Cf. SOUSA SANTOS,
Boaventura de. Reconhecer para libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
294
Como recorda Gilroy (2012, p. 353): “[...] os racismos operam de forma insidiosa e consistente para negar
historicidade e integridade cultural aos frutos artísticos e culturais da vida negra.”.
295
FOUCAULT, Michel. Mal faire, dire vrai : Fonction de l’aveu en justice (Cours de Louvain, 1981). Édition
établie par Fabienne Brion et Bernard E. Harcourt. Belgique: Presses Universitaires de Louvain/Chicago:
University of Chicago Press, 2012. Tradução minha.
131
296
FOUCAULT, Michel. Mal faire, dire vrai : Fonction de l’aveu en justice (Cours de Louvain, 1981). Édition
établie par Fabienne Brion et Bernard E. Harcourt. Belgique: Presses Universitaires de Louvain/Chicago:
University of Chicago Press, 2012. p. 258-9. Tradução minha.
132
Foucault se opõe, de maneira similar, à concepção do ser humano como dotado de uma
natureza imutável ou constituída a priori, ou seja, como portador de qualquer essência inata
dissociada das lutas históricas emancipatórias. Essa posição interpela diretamente o
sustentáculo das declarações liberais que serviram – e servem – de referência para a própria
definição de humanidade, de cidadania e de direitos humanos, tal como formulados pela
filosofia iluminista do século XVIII, e que referendam inúmeros pactos até hoje. Porque se não
há uma essência prévia às reivindicações históricas, como instituir um referencial que parta não
do essencialismo normativo, mas do factual? Em outras palavras, na medida em que as lutas
são localizadas e pontuais, seria possível pensar os direitos humanos por um enquadramento
não estático, mas como uma forma de resistência aos excessos de poder e da
modernidade/colonialidade impostas às culturas periféricas?
A paisagem que tem se constituído nos últimos anos, por seu turno, parece apontar para
a transformação dos direitos humanitários em meio para legitimar o intervencionismo em nome
do capitalismo liberal-democrático, da inserção coercitiva de nações recalcitrantes à economia
de mercado neoliberal e da manutenção da estrutura desigual de matriz colonial. A política
humanitária é, assim, frequentemente mobilizada para fins distanciados daqueles estabelecidos
pelos regulamentos jurídicos das diversas modalidades de violência estatal – quando não se
converte em âmbito estrito de caridade, assistencialismo e filantropia.
Nesse contexto, o diagnóstico de Arendt em seu Origens do Totalitarismo seria incisivo:
“[...] ao se tornarem objeto de uma organização de caridade ineficaz, os Direitos do Homem
caíram em descrédito ainda maior”298. A observação da filósofa reforça a necessidade de pensar
os direitos humanos em outra chave, para além da compaixão ou da tarefa de tutela dos povos
297
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês. In: 13º. MUNDO DE
MULHERES & FAZENDO GÊNERO 11, 2017, Florianópolis. Anais eletrônicos do Seminário Internacional
Fazendo Gênero 11 & 13th. Women’s Worlds Congress. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 1-12. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499473935_ARQUIVO_Texto_completo_MM_FG
_ThulaPires.pdf. Acesso em: 23 jul. 2018.
298
ARENDT, Hannah. “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. In:____. Origens do
Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 706 (nota 27).
133
primitivos a que se atribuem as nações ocidentais. Nem prática filantrópica nem ações
assistenciais, os direitos humanos são constituídos como frutos de disputas históricas, de lutas
políticas e sociais contra a violação de direitos.
A seletividade das ações políticas humanitárias, no que tange aos direitos humanos,
merece especial atenção aqui, já que uma análise mais detida dessas lutas específicas deixam
entrever que os engajamentos são diferenciados quer se trate da “liberação de pessoas em
situação análoga à escravidão”; quer se trate dos impasses que envolvem direito ambiental
global e a prevenção da degradação; ou mesmo, as práticas diplomático-militares com a
finalidade de reestruturação democrática de países arruinados por guerras e conflitos.
Em um contexto ampliado, caberia, ainda, questionar a tensão entre os direitos humanos
universais e os direitos políticos específicos dos cidadãos nacionais. Como lembra Hannah
Arendt,
299
ARENDT, 1958 apud ZIZEK, Slavoj. Contra os Direitos Humanos. Mediações: revista de ciências sociais,
Londrina, vol. 15, n.º 01, p. 11-29, 2010. p. 24. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/6541/5947. Acesso em: 15 jun. 2017.
300
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002.
134
Diante da cruel realidade que desumaniza todos aqueles que fogem à condição de
sujeito de direitos humanos e da constatação de que as grandes declarações de
direito cumpriram o papel de manutenção e legitimação dessa mesma ordem,
objetiva-se refundar os pilares de sustentação dos direitos humanos a partir de
uma noção de humanidade que nos diga respeito, que seja capaz de nos acessar e
que não reproduza a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza.301
301
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês. In: 13º. MUNDO DE
MULHERES & FAZENDO GÊNERO 11, 2017, Florianópolis. Anais eletrônicos do Seminário Internacional
Fazendo Gênero 11 & 13th. Women’s Worlds Congress. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 1-12. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499473935_ARQUIVO_Texto_completo_MM_FG
_ThulaPires.pdf. Acesso em: 23 jul. 2018. p. 6.
302
BRITO, Fausto. “Os Direitos Humanos e a Soberania Nacional”. In: BIGNOTTO, Newton, STARLING,
Heloísa et alli. Dimensões Políticas da Justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 227.
136
303
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
124.
304
AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In:______. Meios sem fim: Notas sobre a política.
Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015b. p. 27.
305
ZIZEK, Slavoj. Did somebody say totalitarianism? Five interventions in the (mis)uses of a notion. Nova
York/Londres: Verso, 2001. p. 244-245.
137
Tal como na concepção de Foucault, pensar os direitos humanos não como algo
essencial, natural ou pré-político, mas como efeitos de lutas políticas e sociais, indissociáveis
dos processos históricos, talvez seja a condição de repolitizá-los como instrumento de
resistência dos governados. É preciso atentar, conforme ressalta Derrida, que “[...] os direitos
humanos jamais são suficientes. O que já é o bastante para nos lembrar que eles não são naturais.
Possuem uma história – uma história recente, complexa e inacabada”.307 Essa história-em-
construção demanda que se analise os processos de pacificação e os jogos políticos nos quais
se inscrevem estas lutas e suas fronteiras.
Tácito
Foucault
A emergência do direito internacional dos direitos humanos, no século XX, gerou uma
série de discussões no campo filosófico sobre os limites e as articulações entre o humanismo
teórico, a universalidade dos direitos e a sua aplicabilidade. Os impasses desse debate,
entretanto, não são novos. É o que atestam as calorosas disputas já na primeira metade do século
XX, que opunham pensadores de extração humanista crítico-dialética, como os marxistas, de
um lado, e os humanistas essencialistas de outro.
Se as discussões se travavam, especialmente, sustentadas por paradigmas filosóficos
que reverberavam na divergência de interpretação de obras seminais para a tradição político-
filosófica, é notório que, na prática, o repertório que lhe servia de referência seria marcado pela
epistemologia produzida no contexto europeu e segundo sua compreensão geopolítica.
306
HOBSBAWM, Eric. Prefácio. In:_____. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 18-19.
307
BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: diálogos
com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 142.
138
Missão Impossível
Mas os discursos não se reduzem à tradução das relações de poder ou dos sistemas de
dominação. Eles mesmo, enquanto discursividades em disputa, são expressões daquilo “[...]
pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar”309. A apropriação social dos discursos,
sua circulação e os procedimentos de sujeição que fazem funcionar envolvem regimes no
interior dos quais se criam campos de tensão e de concentração de poderes e saberes, segundo
escalas variadas, conforme a efetividade/legitimidade que esses regimes discursivos encontram
nas esferas institucionais até sua validação como verdadeiros.
308
HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria Crítica dos Direitos Humanos. Os direitos humanos como produtos
culturais. Trad. Luciana Caplan, Carlos Roberto Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson
Aparecido Dias. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009b.
309
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 10.
141
310
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (Paris, 1948). Disponível em:
http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf . Acesso em: 10 ago. 2018.
311
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 15.
142
opõem os guardiões da ordem mundial (rogue states) e os estados falidos infratores312 (failed
states).
Missões impossíveis, plantas, planos de ataque, exterminadores a postos. O uso
unilateral da força bélica, justificado a partir da defesa da dignidade humana, é recorrente nessas
operações de pacificação. Essa situação, nos últimos anos, tem gerado um sem número de
controvérsias e contendas nos tribunais internacionais, dado o uso desmedido e desproporcional
das forças de intervenção. Além disso, esse quadro tem apontado as contradições que a guerra
traz quando as armas são empunhadas à frente das bandeiras da paz.
Mas, o Haiti é aqui também. Veja-se, para citar um exemplo mais próximo
geograficamente, os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário que figuram
na raiz da polícia de pacificação de territórios conflituosos no Rio de Janeiro. O paradigma
estadunidense de ocupação territorial resulta da instrumentalização da ideia das áreas
desgovernadas (ungoverned areas) e do uso da força com vistas a restaurar a autoridade do
Estado. Por conseguinte, estabeleceu-se o processo de militarização da segurança pública e das
forças armadas, transformadas em salvadoras da pátria, e o consequente salvo conduto para os
assassinatos decorrentes dos “danos colaterais” da guerra levada a cabo nesses enclaves
urbanos. Justifica-se, igualmente, todo o discurso contra a “desordem urbana” que sustenta a
ação espetacular das tropas de elite e suas práticas de coercibilidade e letalidade.
Ao passo em que “[...] onde há guerra não pode haver direito”313, como afirma Nilo
Batista, os crimes de guerra são cometidos frequentemente apoiados nessa prerrogativa de
legítima defesa, em nome da qual, paradoxalmente, a vida de civis é ameaçada e territórios
estrangeiros são invadidos e devastados:
312
Poderíamos questionar se essa construção do “Estado-nação falido” e do “Estado-nação fraco” não seriam
modos de forjar, no vocabulário da soberania imperial, os contornos das figuras biopolíticas da existência – e dos
modos dignos ou não de vida –, moduladas pelo Estados hegemônicos. “Estados fracos” requerem intervenções
constantes e tutela, o que significa gerir a vida das populações subalternizadas segundo os parâmetros reguladores
da modelagem da exclusão racial.
313
BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da militarização da segurança pública.
In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p. 51.
314
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 49.
143
Ora, quando a paz democrática se torna razão para a guerra, é preciso questionar o que
se compreende por esse conceito e pelos procedimentos adotados para sua efetivação, pois,
como salienta Foucault:
[...] a noção de ‘paz’, no singular, me parece uma noção duvidosa, parece-me que
a própria noção de ‘pacifismo’ deve ser reexaminada desse ponto de vista. O
pacifismo para qual a paz? O pacifismo em relação a qual paz ou em relação a
qual guerra escondida pela paz que foi decretada?315
Essas operações de paz que têm por “inevitável” dano colateral a morte das parcelas
mais vulneráveis das populações, não deixam de expor as engrenagens complexas nas quais se
enredam discursos humanitaristas, propósitos expansionistas e modelos de gestão policial da
vida cotidiana. Seus efeitos letais, todavia, não são enquadrados como assassinatos em massa
ou massacres, mas como preço a ser pago pela implementação das políticas de pacificação. Por
isso, elas se prestam tão bem a fins necrobiopolíticos, quando: “[...] as intervenções militares
por motivos humanitários, nas quais operações bélicas se propõem fins biológicos, como a
nutrição ou controle das epidemias” se tornam – prossegue Agamben – “[...] exemplo
igualmente patente da indecidibilidade entre política e biologia”316.
Estratificação social reforçada de um lado, ódios, paixões e medos convocados de
outro. E que não venham chorar os cadáveres espalhados. É preciso estabelecer via intervenção
e ocupação territorial os controles sociais e penais imprescindíveis para o bom funcionamento
do sistema: “braço forte, mão amiga”317.
Se as operações de manutenção de paz (peacekeeping) assumem os contornos da
guerra é em prol da “[...] legitima atuação das forças de segurança para além do marco da
legalidade sob o pretexto da reconquista de territórios”318. Enquanto agentes mediadores da
pacificação, a atuação dos exércitos “pacificadores e humanitários” é a expressão perfeita do
lema orwelliano: guerra é paz. O que, em nome dos direitos humanos, mobiliza uma série de
315
FOUCAULT, Michel. “...ils ont déclaré... sur le pacifisme, sa nature, ses dangers, ses illusions” [1983]. In:____.
Dits et Écrits II. Paris: Éditions Gallimard, 2001c. p. 1357. Tradução minha. Na versão original: “[...] la notion
de paix au singulier me paraît une notion douteuse, il me semble que la notion même de pacifisme doit être
réexaminée de ce point de vue. Le pacifisme pour quelle paix ? Le pacifisme par rapport à quelle paix ou par
rapport à quelle guerre cachée par la paix qui a été décrétée ?”.
316
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
181.
317
Este é um dos lemas da missão do Exército brasileiro no Haiti.
318
SERRA, Carlos Henrique Aguiar; ZACCONE, Orlando. Guerra é paz: os paradoxos da política de segurança
de confronto humanitário. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.
p. 44.
144
contradições. Afinal, até que ponto o universalismo dos direitos humanos confere legitimidade
a uma guerra para protegê-lo? Até que ponto o uso das armas de destruição em massa (leia-se
de assassinatos em massa) pode ser autorizado nesses processos de paz como medidas de
segurança global? Slavoj Zizek nota que “[...] a principal imagem do tratamento das
‘populações locais’ como Homo Sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o
Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou alimentos”319.
O buraco, porém, é mais embaixo. Não são poucas as denúncias, nesse contexto, de
violação dos direitos humanos por parte das tropas em missão de paz. Tráfico humano,
prostituição forçada, sexo com menores, tortura, estupro e troca de sexo por alimentos320 são
relatos comuns nestas operações321. Elas evidenciam os abusos que se proliferam nas ocupações
e a precariedade dos corpos explorados quando a responsabilidade de proteção se choca com o
tratamento degradante das populações locais.
Capacetes azuis, camisas-pretas e caveiras. Poder militar e poder punitivo
transmutam-se na dupla face de forças sobrepostas e complementares. O que resulta tanto no
aprofundamento das desigualdades e segregações socioespaciais quanto no estado de polícia
que se infiltra e se superpõe ao estado de direito. Como define Zaffaroni e Batista: “[...] o estado
de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de
polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam”322.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Porque, no estado de polícia, os
genocídios estão longe de serem exceções. Muito pelo contrário. Eles engendram formas
autocoloniais de governo nas quais as agências executivas, legislativas e jurídicas do sistema
penal justificam os massacres, dando continuidade a uma longa tradição de ocupação territorial
militarizada seja nos engenhos, nas favelas ou nas ungoverned areas com potencial exploratório
(recursos naturais e minerais, mercados de consumo, mão de obra barata etc).
319
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 114.
320
Cf. NDULO, Muna. The United Nations Responses to the Sexual Abuse and Exploitation of Women and Girls
by Peacekeepers During Peacekeeping Missions. Berkeley Journal of International Law, vol. 27, n. 1, p. 127-161,
2009. Disponível em: http://scholarship.law.berkeley.edu/bjil/vol27/iss1/5/>. Acesso em: 15 ago. 2018.
321
Veja-se, por exemplo, o estudo recente realizado por antropólogos da Brown University, no que concerne casos
de abuso e de exploração sexual. A pesquisa aponta um aumento significativo da prostituição infantil com a
chegada das forças de paz da ONU em diversas zonas de conflito, com mais de 2.000 casos reportados de violência
sexual. Cf. LUTZ, Catherine; GUTMANN, Matthew; BROWN, Keith (2009). Conduct and Discipline in UN
Peacekeeping Operations: Culture, Political Economy and Gender. Watson Institute for International Studies
Research Paper. Out. 2009. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2323758.
Acesso em: 15 ago. 2018.
322
ZAFFARONI et al, 2003. apud BATISTA. O Alemão é muito mais complexo. In: BATISTA, Vera Malaguti.
(Org.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p. 65.
145
Há, ainda, um mecanismo de defesa perverso na naturalização das guerras pela paz.
Talvez, coubesse melhor aqui a expressão mecanismo de ataque, visto que o uso desenfreado
das armas e tecnologias de guerra nas intervenções culmina com o assassinato de largo
contingente de civis, inocentes, mas que estavam “no lugar errado e na hora errada”. Ou, pelo
menos, são alçados à categoria dos “suspeitos de envolvimento”, cuja morte legítima se dá em
função da possibilidade de integrarem o grupo dos “criminosos de guerra”.
Os civis mortos em decorrência dos conflitos, enquanto “danos colaterais”, seriam
excedentes populacionais de humanidades subalternas, cujas mortes são sacrifícios necessários
na lógica da segurança e da razão humanitária. É preciso conter a contrainsurgência, e disso
ninguém poderia duvidar. Esse modelo comum tanto às UPPs quanto às premissas que norteiam
as guerras do Iraque, do Afeganistão ou da Síria são fundadas no programa de “limpeza,
manutenção e construção”, que faria frente à desordem e à insegurança. Cidade-de-exceção,
território militarizado, práticas de zoneamento. Tudo se passa como se o que estivesse em jogo
fosse a rebalcanização do mundo em subcampos de pobres e em condomínios de uma classe
média que deseja segurança, quadra poliesportiva, biometria e piscina aquecida.
O custo-benefício dessas comodidades é o que está em questão. Sobretudo, quando o
valor-mercadoria a ser pago são os corpos marcados pela negatividade nos processos de
colonização323 ou degredados à zona do não-ser e da indigência sob a gestão penal da pobreza
por parte dos agentes do Estado. A instauração das tecnologias de penalização a céu aberto,
como situou Edson Passetti324, produz modos de vida policialescos e policiais, em seus menores
detalhes, com controles penais ininterruptos, recurso sistemático a práticas extrajudiciais e
medidas repressivas.
E não é tudo. Produto de um maquinário construído nas bordas jurídicas do estado de
emergência, os prisioneiros detidos no curso das guerras humanitárias e os centros de detenção
de “combatentes inimigos” não deixaram de se proliferar. Guantánamo, Abu Ghraib, Bagram,
para citar apenas alguns dos mais notórios e polêmicos, são reconvertidos em espaços de
exceção jurídica onde torturas, execuções, violências físicas, sexuais e psicológicas são
323
A inscrição destes processos nos corpos e nas humanidades inferiorizadas é resultado de uma “[...] conquista
militar continuada e reforçada por administração civil e policial”, como apontaria Fanon (1980, p. 90). Porque a
matriz dessa técnica de dominação é a guerra, que adquire a função de manutenção das múltiplas violência ao
longo do tempo. FANON, Franz. Em defesa da revolução africana. Trad. Isabel Pascoal. Lisboa: Sá da Costa,
1980.
324
PASSETTI, Edson. Poder e anarquia. Apontamentos libertários sobre o atual conservadorismo moderado.
Revista Verve: Revista Semestral Autogestionária do Nu-Sol, São Paulo, n.º 12, p. 11-43, 2007b.
146
praticadas com vistas à degradação das pessoas detidas, muitas vezes, sem mandado judicial ou
direito à legítima defesa. Em tempos de guerra em nome dos direitos humanos, suspendem-se,
ironicamente, os direitos humanos dos presos de guerra. Isso só é possível na condição de, uma
vez mais, desumanizar os “sujeitos do terror”, transformando-os em objetos de ameaça
monstruoso; do puro poder do negativo seguido do estado de degradação de natureza
ontológica.
Instituídas em zonas fronteiriças, à margem das leis, essas prisões constituem-se como
espaços subtraídos das instituições formais, atreladas a uma lógica punitivista e a uma malha
transnacional que, na ausência de limitação jurídica em tempo de guerra, faz valer a lei do uso
inescrupuloso da força. Esses espaços refiguram, como no imaginário colonial, zonas de
exceção inseridas, simultaneamente, na ordem global e no “além-mundo”, isto é, “[...] o lugar
onde o único princípio de conduta é o direito do mais forte”325.
Não é raro então que as fronteiras sejam esboroadas entre ação humanitária, ação
política e ação militar. Enquanto a economia bélica da pacificacão exige que se usem todas as
armas debaixo da manga, os mercados globais da violência sentam-se à mesa de negociação
para ofertar produtos, serviços e soluções sob medida, a gosto do cliente.
A guerra não é a exceção econômica da política mundial. Pelo contrário. As cifras que
envolvem as operações militares e o contingente de pessoas envolvido nas mais diversas
funções são exorbitantes. No que concerne às missões de paz, não poderia ser diferente:
nenhuma escapatória ao fluxo internacional de capitais é permitida. Pois estão expressas nas
premissas mesmas norteadoras dos processos de manutenção (peacekeeping), de promoção
(peacemaking) ou de imposição da paz (peace enforcement) a introdução do modelo de livre
mercado nos Estados em reconstrução.
Ao afirmar que os Estados liberais democráticos seriam mais pacíficos em suas relações
internas e exteriores, o processo de pacificação encontra o seu respaldo nas teorias econômicas
liberais. Pacificar se transmuta na implementação de um modelo de desenvolvimento
econômico orientado pelas escolhas de consumo, pela livre concorrência e pela defesa
intransigente da propriedade privada como direito fundamental a ser resguardado.
325
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
112.
147
326
É nessa linha, por exemplo, que Sonia Fleury elabora suas considerações acerca da militarização do social como
estratégica de integração no caso das Unidades de Polícia Pacificadoras do Rio de Janeiro e as contradições geradas
pela “nova ordem policial coercitiva” em face da ampliação dos direitos por cidadania. Cf. FLEURY, Sonia.
“Militarização do social como estratégia de integração – o caso da UPP do Santa Marta”. In: Sociologias. Porto
Alegre, ano 14, n.º 30, mai./ago. 2012, p. 194-222.
327
A OUA é a sigla da Organização da Unidade Africana, criada em 1963, para enfrentar o colonialismo e o
neocolonialismo nos países africanos e promover a unidade e a cooperação entre os Estados nacionais. Em 2002,
a OUA foi substituída pela União Africana (UA), que congrega, em 2018, 54 Estados-membro.
328
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviço. A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. p. 68.
148
Zonas cinzentas às margens das leis, criação de redes ilícitas, visão expansionista. Por
trás dos lemas de paz, os mercados de armas, cartéis de drogas, a demarcação de áreas de
influência, o tráfico de pessoas e de bens naturais, o dinheiro não declarado de máfias, lavado
com sangue das populações civis mais precarizadas.
Grupos paramilitares, milícias e mercenários revezam-se como “civis armados” nos
conflitos intermináveis e na extensão indefinida da violência privatizada. É importante ressaltar
que essas empresas militares privadas e os programas políticos de “paz armada” são
indissociáveis da emergência das redes de (in)segurança e de terror transnacionais. Porque se a
“ética” da empresa é movida pelos interesses do contratante, os Estados com pretensão coloniais
disputam com senhores da guerra, grupos insurgentes e de libertação nacional ou estados
ditatoriais a hegemonia sobre determinados territórios. A indicação não deixa margem a
dúvidas: Quem pagar mais, leva. É o que os próprios relatórios da Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas para o combate aos mercenários mostram, pois:
329
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 50.
330
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços – A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 90.
149
Foi isso que o escândalo na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em 2004, revelou acerca
das tramas complexas que envolvem as parcerias público-privadas. Alguns desses prestadores
de serviço que atuariam em prol da democratização, da liberdade e da paz, aparecem, aliados a
militares do exército dos Estados Unidos da América, como torturadores violentos no
tratamento de “suspeitos” sob custódia e de presos locais. As fotos e gravações que se
disseminaram rapidamente pelo mundo, em sua brutalidade, “[...] constituíam uma clara
evidência representacional dos crimes de guerra”331. Detidos por tempo indefinido, os
prisioneiros iraquianos eram interrogados por profissionais especializados em “quebrar sua
resistência”, pois, se não eram permitidos aos interrogadores infligir diretamente sofrimentos
aos presos, eles poderiam, porém, provocar “desconfortos moderados” – segundo atestam os
documentos publicados – nos detentos: desorientação, medo, vergonha, esgotamento.
Os militares envolvidos nos casos de tortura e humilhação em Abu Ghraib foram
condenados; mas não “[...] a metade dos trinta especialistas em interrogatórios naquela
prisão”332 composta por funcionários de empresas militares privadas. Em tese, eles teriam sido
apenas contratados como tradutores internacionais. Mas, efetivamente, tratavam-se de
especialistas na aquisição de informações e na guerra psicológica, isto é, torturadores
profissionais.
Nada de novo no front. Na vigência do governo da emergência deflagrado em todo o
mundo, consolida-se, por todas as vias, a ordem política da “guerra ao terror”. Nesse âmbito,
na prática:
331
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 120.
332
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 49.
333
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 44.
150
334
GROS, Frédéric. Estados de Violência: ensaio sobre o fim da guerra. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida,
SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 244.
335
Segundo Nasser (2010, p. 47), “no caso Nicarágua versus Estados Unidos, por exemplo, a Corte Internacional
de justiça considerou que, quando o Estado intervém enviando bandos armados, grupos irregulares ou mercenários,
seus atos são considerados tão graves como aqueles cometidos pelas Forças Armadas regulares. A intervenção
equivaleria a um ataque armado e, portanto, justificaria uma resposta. [...] Em 2001, a Comissão de Direito
Internacional da ONU emitiu novas diretrizes sobre as atribuições e responsabilidades dos Estados, considerando
que o comportamento de um grupo que age com base nas instruções , ou sob a direção e controle de um Estado,
pode ser atribuído a esse Estado; e que o comportamento de um grupo que exercer elementos da autoridade do
Estado, na ausência ou omissão das autoridades oficiais, poderia também ser atribuído a um Estado”. NASSER,
Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas perspectivas sobre os
conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
336
FOUCAULT, 2004 apud GROS, Frédéric. Estados de Violência: Ensaio sobre o fim da guerra. Trad. José
Augusto da Silva. Aparecida, SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 245.
151
337
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 88.
338
DOUZINAS, Costas. Os ideais perdem seu valor quando chamam a polícia e a força aérea para promovê-los.
Revista do Instituto Humanitas UNISINOS/IHU on-line. São Leopoldo: 18 mai. 2009. Entrevista concedida a
152
Pendurado em um arame farpado, um homem iça uma criança. Assustada, ela olha longa
e fixamente em direção a um ponto distante. Outro homem, possivelmente seu pai, levanta a
menina pelas pernas – curtas e frágeis –, para garantir que ela seja alcançada pelo rapaz, do
outro lado da rede de arame, agarrado em estacas de ferro. A tentativa, talvez a última e mais
radical, é de transferir a pequena criança de lado, de modo a conduzi-la a um campo de
refugiado da outra margem.
O homem, desolado, suspende a filha como quem entrega um sacrifício aos deuses,
torcendo para que a imolação não se complete e uma segunda chance lhe seja concedida. Pelos
braços finalmente pescada, a criança tem a expressão serenamente imóvel. Não chora. Não
resiste. Sequer dificulta a ação, impassível diante de tanto temor e tremor. Pelo contrário, a
serenidade melancólica que lhe dá a aparência envelhecida – talvez tenha apenas três ou quatro
anos –, direciona o seu olhar para trás, como se fixasse pela última vez o seu povoado, o seu
país, a estranha familiaridade com uma língua e com uma paisagem já completamente devastada
pelos bombardeios. O que procura a menina? O que busca este olhar inquieto e inquietante,
inalterável?
Um horizonte de estrangeiridade parece se imprimir no rosto arredondado. Já não se
assemelha às outras crianças sírias de sua idade que, de longe, observam a filha erguida pelo
pai ou por um parente próximo. Talvez fosse tio ou irmão. Sua face é de quem, inegavelmente,
experimenta a duras penas o trabalho de um luto antecipado. Um luto ambíguo, cujo objeto é
entregue, perdido em meio a uma deriva de pernas e braços e gritos altos, aos quais vem se unir
o desejo profundo de que a sorte da pequena seja diferente daquelas que restam em Suran, a
cidade síria.
O longo périplo em direção à fronteira turca obriga a passagem pelo cruzamento de Bob
Salama, onde outros pais e mães aflitos lançam, igualmente, meninos e meninas à própria sorte.
Do outro lado, o exército turco e seus homens armados, de tempos em tempos, abrem fogo
contra o grupo de pessoas que se aglomeram à espera de poder entrar na parte turca.
Deslocadas de áreas sob o controle do Estado Islâmico/EL, a multidão foge da província
síria de Alepp, limítrofe com o país vizinho. Ali, naquela fronteira, o perigo torna-se
estranhamente duplicado: adiante, do outro lado, a estrangeiridade; desse, em seu próprio país,
a terra fraturada e tomada pelos confrontos entre o Exército Livre Sírio e o ISIS/EL.
Já desidentificados na veiculação das notícias ao redor do globo, em tempo real, os
meninos e meninas perdem seus nomes, como as identidades que deixam para trás, nos
escombros das casas de barro. Em meio ao volume e à densidade de ferros retorcidos e arames
farpados, esperam avidamente pela oportunidade de serem transferidos de lado, com a
benevolência da guarda turca, pouco amistosa. Desamparados e sem nome, os corpos frágeis
cambaleiam em direção aos grupos de assistência internacionais e às organizações não-
154
governamentais de direitos humanos, aos gritos distantes dos pais e mães, para que prossigam,
mesmo reticentes, a lenta caminhada em rumo ao desconhecido. Às vezes, caem; noutras
choram longamente até completar a odisseia inversa. A imagem fixada na memória das
crianças, como a pequena Sena, é tão forte quanto à que os observadores presenciam. O que
resta, de modo fantasmal, é a dor inexplicada do abandono; são as figuras recortadas em
pequenos mosaicos irregulares pelas grades; as sandálias amontoadas pelo caminho, duro
caminho, de lágrimas e terras secas.340
340
Remeto ao Anexo A desta tese (p. 250), no qual constam as fotografias da pequena Sena, cuja expressão é aqui
descrita, e do campo de refugiados de Osmaniye, na Turquia.
341
Sobre este tema, cf. HALL, S. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In:____; Liv Sovik
(org). Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003.
155
342
AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In:______. Meios sem fim: Notas sobre a política.
Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015b. p. 27.
343
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 46.
344
Segundo o ACNUR, em 2015, o total de pessoas deslocadas em razão das guerras, de conflitos étnico-políticos
e das perseguições chegou a 65,3 milhões. Ou seja, 1 em cada 113 pessoas no mundo é solicitante de refúgio,
deslocada interna ou refugiada. Com este quadro alarmante, fica configurada a maior crise de refugiados e
migrações desde a 2ª. Guerra Mundial. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/
Acesso em: 15 ago. 2016.
156
nem totalmente do lado do Outro, o ‘imigrante’ situa-se nesse lugar ‘bastardo’ [...] a fronteira
entre o ser e o não-ser social”345.
Os fluxos migratórios em expansão e a criação de grandes enclaves de refugiados, que
rasgam a paisagem com suas tendas e lonas, concretizam, de modo aterrador, a consideração
de Arendt, quando via nos campos – de internamento, de refugiados e de extermínio – um
símbolo político da modernidade346. O refugiado torna-se, assim, o emblema de uma condição
excepcional347, que poderia ser proposta como o “[...] paradigma de uma nova consciência
histórica”348.
Essa condição exprime, no ordenamento do Estado-nação, um problema político dos
mais relevantes, haja vista que “[...] rompendo a identidade entre homem e cidadão, entre
natividade e nacionalidade, põe em crise a ficção originária da soberania”349. Pois se é o
nascimento (autoctonia) o elemento que define a ligação à cidadania nacional e, por
conseguinte, o pertencimento a um Estado, aos sujeitos que não são nacionalizados é negado o
pertencimento a uma comunidade política e o direito a ter direitos, isto é, o direito dos cidadãos.
Salvo, de modo provisório e segundo um ordenamento jurídico específico, a quem conseguir
obter o estatuto político de asilado ou refugiado.
Com a recente saída350 do Reino Unido da União Europeia, em 2016, acirrou-se o
debate acerca do livre trânsito de pessoas pelas fronteiras nacionais e a responsabilidade de
acolhimento dos países do bloco para os quais os migrantes se deslocam. A saída estratégica do
Reino Unido tem como razão principal a reiterada recusa de abertura de fronteiras a refugiados
e imigrantes, tal como é definida pelos tratados da União Europeia.
345
BOURDIEU, Pierre. Prefácio. In: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São
Paulo: Edusp, 1998. p. 11.
346
Agamben partilha também dessa visão de Arendt e desenvolve suas considerações na 3ª. parte de seu Homo
Sacer I, intitulada “O campo como paradigma biopolítico do moderno”. Aqui, as análises de Arendt são justapostas
às de Foucault, com vistas a pensar a politização da vida e os direitos do homem em sua interface com as
biopolíticas.
347
É interessante lembrar o que Agamben chama de relação de exceção, no Homo Sacer, a propósito da norma e
da regra versus a exceção. Segundo o autor, uma relação de exceção é “[...] esta forma extrema da relação que
inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano
e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 25.
348
AGAMBEN, Giorgio. De l’État de droit à l’État de sécurité. Le Monde, Paris, 23 dez. 2015. Idées. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2015/12/23/de-l-etat-de-droit-a-l-etat-de-securite_4836816_3232.html.
Acesso em: 05 nov. 2018. p. 23.
349
Idem, p. 29.
350
O Brexit, processo de desintegração da comunidade europeia, resultou em um referendo aos cidadãos do Reino
Unido com vistas a deliberar sobre a permanência ou pela saída da União Europeia. Por uma pequena vantagem
percentual, os cidadãos optaram pela saída, reivindicando, sobretudo, maior autonomia para negociar com outros
países e blocos econômicos, e uma forte resistência aos imigrantes europeus, considerado um peso para a economia
britânica.
157
351
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. As fronteiras raciais do genocídio. Direito – UnB, Brasília, vol. 01, n.º 01,
p. 119-146, jan./jun. 2014. p. 135.
158
352
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 15.
353
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
130.
159
Essas vidas matáveis, sem valor jurídico, e que “[...] pode[m], portanto, ser[em] morta[s]
sem que se cometa homicídio”355, são signos patentes de que a politização e a eliminação da
vida são duas faces de um mesmo processo. Em um enquadramento necrobiopolítico, o
revestimento político do corpo e da vida “natural”, nos quais os direitos vêm a se inscrever, tem
por contrapartida o extermínio sistemático de grupos que não são “dignos” de viver.
Corpos em diáspora
Apesar de atual, esse quadro não é inédito na história do ocidente. Interrogar as zonas
de anomia e de excepcionalidade nas quais se inserem os refugiados requer repensar o conceito
e a condição da diáspora. Como deslocamento forçado de grandes massas humanas, a diáspora
está fundada na “construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um 'outro'
e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora”356. Essa fronteira de exclusão nada mais
é do que uma fronteira racializada, quando envolve processos de extermínio – ativo ou por
omissão deliberada – movidos pela aliança entre violência, desigualdade e exclusão de base
étnico-racial.
Destituídas as pessoas do círculo da humanidade, a diáspora marca a condição de
indigência inextrincável dos rastros da colonialidade do poder, do ser e do saber. Identidades
fragmentadas, laços desfeitos e recentramentos impostos, cuja violência coloca em xeque o
ideal dos cosmopolitismos e da posse comunal da terra – cada vez mais demarcada por muros
e arames farpados.
É preciso lembrar, nesse sentido, como o tráfico atlântico e as dezenas de milhões de
pessoas africanas trazidas ao Novo Mundo na condição de escravidão foram identificadas na
354
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
128.
355
Idem, p. 135.
356
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo
Horizonte: UFMG, 2008. p. 32.
160
história recente do colonialismo, como aquelas que, por excelência, encarnavam a fronteira
para além da zona do ser. Exilados de sua condição humana, antes mesmo da diáspora, os
corpos negros como lugar de inscrição do perigo e da subalternidade poderiam, finalmente, ser
espalhados pelo mundo sem que o “direito a ter direitos” lhes fosse concedido.
O sistema escravocrata, que desarticulou as sociedades africanas, até hoje produz
consequências nefastas, na medida em que perduram as relações de dependência, de
subordinação e a ausência de estruturas administrativas autônomas nesses Estados. A alienação
imposta a expressivos contingentes de pessoas expropriadas de um lar talvez seja um dos gestos
do terror colonial de Estado mais patentes, pois a subordinação racial opera também pela
desintegração das culturas via dispersão, movendo as estruturas do racismo por meio do
bloqueio à aquisição de uma cidadania substantiva. Essa designação racial constitui-se como
“[...] o meio pelo qual certas formas de subvida são produzidas e institucionalizadas, a
indiferença e o abandono justificados, a parte humana no outro violada, velada ou ocultada e
certas formas de encarceramento e até mesmo de abate toleradas”357.
À comunidade fundada na lembrança de uma perda e no desenraizamento, responde-se
com a fabricação sistemática da diferenciação subordinadora, de modo a produzir a
inadequação e a percepção da “excedência”, em cujo centro está o corte racial. Essas vidas
humanas que integram os povos em diáspora são, assim, consideradas “sintomas de uma
condição-limite” que podem, por isso, ser associadas “ao desperdício e ao dispêndio, sem
reservas”358.
Os grupos populacionais assim identificados são marcados pela assimetria das relações
de poder que fixam, na mobilidade dos corpos expostos e em deslocamento, os signos visíveis
da identidade (des)territorializada e da geografia racializada. A violência tem, então, duas faces
não excludentes, mas complementares: por um lado, na via para a modernidade/colonialidade,
se direciona à expropriação in loco, ao sequestro político das pessoas de grupos subordinados
e à dominação pela lógica da disjunção, que caracteriza o empreendimento escravagista-
colonial; por outro, se destina aos povos em dispersão forçada como gesto político refletido,
com vistas a obstaculizar a sua integração e como tentativa de regular entradas e saídas de
fluxos – expulsando os desqualificados, marginais e racialmente estigmatizados.
Esses dois processos de transplante são orientados por uma lógica comum. Em ambos,
o extermínio é justificado ou permitido pelo status dos sujeitos em questão e o deslocamento é
357
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.70.
358
Idem, p. 73.
161
forçado devido às pressões pela sobrevivência ou pela força coercitiva de apreensão, que toma
de assalto os indivíduos inferiorizados pelo racismo e inscritos racionalmente na ordem do
poder como farrapos sub-humanos.
Os padrões de brutalidade estabelecidos durante o tráfico atlântico são continuados por
outros meios. O terror etnocida e racial da dominação colonial é reatualizado a partir de formas
eminentemente modernas da subordinação pela via dos conflitos geopolíticos e das pressões
econômicas que forçam milhões de pessoas ao êxodo, com alto nível de exposição à morte. E
que expõe a indiferença do sistema legal e a recusa obstinada de “consolidação dos
mandamentos da supremacia branca como bases fundamentais para a exclusão do genocídio
como uma categoria viável na Diáspora.”359
Só dentes e sapatos
“Temo que o que se passa no Vietnã não seja, somente, uma sequela do passado, mas
que constitua um presságio do futuro”360. Assim Foucault encerra a entrevista concedida em
17 de agosto de 1979 a um jornal japonês. A conversa, intitulada O problema dos refugiados é
um presságio da grande migração do século XXI, tratava, comparativamente, da questão dos
refugiados no Camboja e no Vietnã, alertando ao êxodo pelo mar, no qual 80 mil refugiados se
lançavam às portas da morte.
Em sua análise, no calor da hora histórica, o filósofo ressaltaria que:
359
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. As fronteiras raciais do genocídio. Direito – UnB, Brasília, vol. 01, n.º 01,
p. 119-146, jan./jun. 2014. p. 136.
360
FOUCAULT, Michel. O problema dos refugiados é um presságio da grande migração do século XXI (1979).
In:____. Ditos e Escritos VI – Repensar a Política. Trad. Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013. p. 285-288. Interessante notar que Hannah Arendt, em seu Origens do Totalitarismo, de 1949,
afirma, de modo bastante similar, que o problema dos refugiados seria a grande questão do século XX, “o fardo
de nossa época”.
162
Ora, pensar esses trânsitos problemáticos do século XXI, alargando essas considerações
de Foucault, requer, antes, um passo atrás. Senão atrás do ponto de vista temporal, pelo menos
um olhar desconfiado e suspensivo em relação à grande metarrativa da globalização que
mobilizou os últimos esforços da década de 1990 em direção a um mundo “sem fronteiras”.
Porque se hoje a questão das migrações parece atravessar uma gama de outras discussões no
âmbito da política e da segurança internacionais, há de se atentar não somente para o léxico
empregado, mas para um deslocamento discursivo que reafirma, sobretudo pós-11 de Setembro
de 2001, as linhas e os limites fronteiriços que distinguem “nós” e “os outros”. E,
consequentemente, para o fortalecimento de identidades nacionais e do funesto Estado-nação,
redivivo, apesar dos atestados de óbito finisseculares.
Essa linha imaginária das fronteiras, que demarcam não apenas o traço de um território,
ganha uma concretude insuspeita quando se trata dos dispositivos militares da segurança
internacional. É no plano simbólico do pertencimento e de tudo o que escapa ao seu traçado
que se operam os efeitos de poder mais sensíveis. Talvez, pode-se objetar, isso não seja um
problema tão “contemporâneo”. E, para confirmar isso, bastaria se lembrar da instituição do
ostracismo na Grécia Antiga, a maior pena de desagravo passível a um cidadão, condenado à
vida errática extra-muros. Como o Édipo, sentenciado a vagar sem identidade pelas cidades.
Esse Édipo, cego e expatriado, reconvertido em bárbaro, isto é, à estranheza de si mesmo e de
sua língua no contato com outros povos, poderia ser considerado o símbolo do estrangeiro hoje.
Ao passo que, do ponto de vista das figurações imagéticas, esse parece ser um símbolo
um pouco gasto, da perspectiva das tensões políticas que suscita não é difícil reconhecer as
similitudes, se transformarmos o destino maldito de um homem em destino errático de povos
inteiros. Povos comprimidos sobre o platô de barcos à deriva, que cruzam o Mediterrâneo, o
Mar Negro e o Mar Egeu, deixando pelo caminho os corpos, as narrativas individuais e
coletivas, e um questionamento renitente: como falar em dignidade humana e direito dos povos
361
FOUCAULT, Michel. O problema dos refugiados é um presságio da grande migração do século XXI (1979).
In:____. Ditos e Escritos VI – Repensar a Política. Trad. Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013. p.287.
163
quando as contendas travadas nos tribunais internacionais são insuficientes para salvaguardar
essas vidas?
Não é de estranhar que em junho de 1981, em uma pequena intervenção intitulada Os
direitos dos homens em face dos governos, Foucault ressalte as iniciativas humanitárias das
organizações internacionais, como os Médicos do Mundo, Anistia Internacional e o navio-
hospital Île-de-Lumière, que socorreu os boat-people no mar da China, em 1979, como
promoção de um novo direito de livre acesso às vítimas de todos os conflitos. Ademais, segundo
Foucault, essas iniciativas criaram um direito inédito: “[...] aquele dos indivíduos despojados
de intervirem, efetivamente, na ordem das políticas e das estratégias internacionais”362.
Por outro lado, há quem aponte que a defesa dos direitos humanos tornaria contraditório
o projeto de um filósofo que, da célebre morte do homem em As Palavras e as Coisas ao
manifesto anti-humanismo teórico363, recusou sistematicamente qualquer essencialismo ou
ideia de uma natureza humana anterior às práticas e às instituições sociais, econômicas e
políticas que formam os sujeitos. Todavia, conforme Foucault,
362
FOUCAULT, Michel. O Direito dos Homens em Face dos Governados. In:____. Ditos e Escritos VI. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 370.
363
Cf. CASTELO BRANCO, Guilherme. Foucault: anti-humanista, libertário. Kalágatos. Revista de Filosofia.
Fortaleza, Fortaleza (CE), vol. 4, n.º 7, p. 97-114, 2007.
364
FOUCAULT, Michel. “Vérité, pouvoir et soi” [1982]. In:___. Dits et Écrits II. Paris: Gallimard, 2001h. p.
1601. Grifos meus.
365
FOUCAULT, Michel. “Va-t-on extrader Klaus Croissant?” [1977]. In:____. Dits et Écrits II. Paris: Gallimard,
2001g. p. 361-365.
164
Seria possível, à luz das inúmeras intervenções de Foucault com relação a esse caso e
dos exilados políticos, pensar a questão dos direitos humanos a partir de outra lente de análise?
Porque, hoje, para além de casos políticos específicos, com a emergência da figura do imigrante
na política global, as tensões entre as ideias de cidadania, identidade nacional e direitos do
homem e seus desdobramentos “marginais”: apátridas, exilados, imigrantes ilegais, enfim, “o
bárbaro”, “o estrangeiro”, “o não-cidadão” parecem se recolocar com força. Isto porque esses
passam a ser vistos como ameaças permanentes ligadas ao terror. Tendo em vista que o migrante
econômico e o refugiado político são categorias distintas de exilados, sem dúvida, hoje, as
maiores tensões advêm dos refugiados pobres de guerra.
A declaração do ex-Primeiro Ministro francês, Manuel Valls366, por exemplo, quando
anuncia que os países europeus “não podem aceitar mais refugiados”, não deixa qualquer
dúvida com relação a isto. A terceira margem é cada vez mais distante entre a Europa, a África
e o Oriente Médio. Reverso da globalização alardeada pelos países do Norte, a livre circulação
de migrantes encontra resistência de todos os níveis e dimensões, que culminam, no limite, com
o fechamento das fronteiras e com o “deixar morrer” à deriva em mares internacionais, a que
assistimos, perplexos, todos os dias.
É nesse contexto de trânsito de refugiados, além disso, que se aprofundam os
nacionalismos xenófobos. A República Tcheca, para citar um exemplo, adotou procedimentos
de marcação numérica na pele dos refugiados – tal como faziam os nazistas do Terceiro Reich.
Por isso, afirma Agamben:
A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano
como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao
contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a
sua irreparável exposição na relação de abandono.367
366
Manuel Valls foi nomeado Primeiro-ministro da França em 31 de março de 2014, pelo ex-presidente François
Hollande, tendo ocupado esse cargo até 6 de dezembro de 2016.
367
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 85.
368
Cf. CORTÁZAR, Julio. Último Round. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2009. 2. vol.
165
direito internacional dos direitos humanos, do qual são defensores privilegiados, quando os
refugiados adquirem o semblante corporificado do terrorista potencial.
Na esperança de aportar em terras seguras, os refugiados da guerra e da fome lançam-
se aos mares, literalmente abatidos às portas de uma Europa que se fecha cada vez mais –
encalhada em suas crises, mas obstinada na defesa de sua “europeidade”. Milhões de refugiados
que, à deriva, aguardam a boa-vontade dos planos internacionais e do fim das vexaminosas
cercas de arame farpado que dividem os protegidos daqueles relegados a tingir com o próprio
sangue as areias desertas das praias europeias. Ou, como a pequena Sena, a serem separados de
suas famílias, nas cotas arbitrárias de asilo político estabelecidas. Ironicamente, por aqueles que
se outorgam o compromisso de zelar pela defesa dos direitos humanos369 em todo o mundo.
Aqui, há uma margem intransponível: a retórica política esbarra na muralha erguida
contra os “marginais”. Às margens do texto, emerge, em meio à correnteza, a violência
vertigionosa do que escapa a seus limites. Para fora dos tratados, dos acordos e dos pactos
internacionais, os navios negreiros ou os barcos repletos de imigrantes navegam nas bordas da
lei. Porque esses corpos transbordam toda a lei. Como excedentes, excessivos e excepcionais,
eles desafiam a estabilidade de tudo o que é sólido e que, liquidado, desmancha no (m)ar.
369
Como afirma Douzinas, em ensaio publicado no The Guardian, em março de 2009: “Isso também significa que
os direitos humanos não pertencem aos seres humanos. Os direitos humanos ajudam a construir quem e como se
é humano. [...] Porém, os únicos direitos efetivos são dados pelos Estados a seus cidadãos. Estrangeiros,
refugiados, apátridas, os que não têm estado ou governo para protegê-los e que poderiam esperar ser os
beneficiários dos direitos de humanidade, tem muito poucos direitos, quando tem”. DOUZINAS, Costa. What are
Human Rights? The Guardian, Londres, n. p. mar. 2009. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/libertycentral/2009/mar/18/human-rights-asylum. Acesso em: 20
ago. 2018.
166
And he war.
Razão Babélica: o sagrado e o segredo, o divino e o profano, o duelo sem fim das
línguas, dos símbolos e das verdades. Em meio a tanta confusão, a tantos restos caídos do céu
e dos rastros de guerras em nome do poder de definir os nomes e as versões dos conflitos,
impõem-se um problema de tradução370. Ou melhor, de enunciação dos modos de vida mais
verdadeiros e de idiomas mais universais que pretendem se instituir como o paradigma da
gramática política contemporânea.
Razão babélica é outro nome para a mitologia contemporânea das torres – de Babel ao
World Trade Center –, que se traduz, de modo imperfeito como toda tradução, nos abismos e
trincheiras multiplicados, porque o fosso da impossibilidade de compreensão de forças
antagônicas, mas menos contraditórias do que se supõem, é mais fóssil do que se poderia crer.
Nos termos da acusação de fundamentalismo – religioso ou econômico –, da oposição entre
modernidade e antimodernidade ou de duas ortodoxias distintas, jorra explosivamente o sangue
negro e viscoso cujas ações na bolsa de valores não cessam de aumentar. Majora-se o valor das
ações e cresce o confronto de forças que investem uma contra a outra – em nome da verdade
do poder ou do poder da verdade.
Mas, na verdade, longe dos pactos, dos aliados, dos adversários e dos inimigos, a massa
empobrecida desconhece outra língua que não seja a da guerra. Babel é o nome de Deus; Babel
é também confusão. Instaurado o caos, soldados, mercenários, milicianos e nacionais se
digladiam por todos os lados. Mas, a língua de babel é o ranger dos fuzis, das metralhadoras e
das bombas lançadas, de tempos em tempos, pelos drones que trazem dos céus não a salvação
e sim o fogo que se reflete nos olhos do povo. Ardem o chão, as casas, os corpos dos infantes e
370
Cf. DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
167
das infantarias, na luta pelo que afunda e aprofunda as diferenças. Tudo milimetricamente
previsto por estrategistas e políticos ciosos na partilha da terra. A terra prometida. A terra
arrasada de babel, tomada pela guerra santa, quente, morna e fria. Pela afonia e esterilidade dos
campos; pelas veias abertas das entranhas da terra, que ora servem para prospecção de riquezas
ora para deitar os restos de corpos estraçalhados.
[...] Esperamos, de tal modo, que o futuro nos traga novidades catastróficas a
propósito da saúde e da segurança das políticas democráticas, que temos, às vezes,
371
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992.
372
Idem, p. 14.
168
A linguagem messiânica e redentora com que é anunciada a boa nova não é fortuita. E
se assume os traços linguísticos de uma dicção religiosa é justamente por apresentar como um
novo testamento o conjunto de princípios norteadores a serem seguidos pelas potências já
convertidas ou em vias de conversão. O caminho, a verdade e a vida da redenção ganham os
matizes do neoliberalismo democrático. Teria chegado, enfim, o tempo de anunciar ao mundo
a boa nova: sacrifício, luta e tempos levíticos.
Desencaminhados, caberia providenciar aos infiéis o retorno ao caminho da salvação.
Alguns, porém, obstinados em permanecer no erro, não teriam olhos para enxergar o caminho
das luzes: “[...] hoje em dia, afora o mundo islâmico, um consenso geral parece emergir, que
aceita a legitimidade das pretensões da democracia liberal em ser a forma mais racional de
governo...”.374 A exceção islâmica de que fala Fukuyama, se, por um lado, dá a ver o seu
equívoco, por outro revela traços sectários. Tudo o que impede o acesso à “Terra Prometida
dos liberalismos econômico e político”375 é rechaçado, por desviar do telos liberal.
Os limites à narrativa triunfante do capitalismo desregulado como fim da história se
apresentariam no desenrolar dos acontecimentos históricos dos anos que se seguiram à década
de 1990. Os conflitos, ressignificados, não se dissolveram como os arautos da boa nova
imaginavam. Eles reiteram, às avessas, que ante à imposição de uma nova ordem mundial, as
resistências igualmente se proliferam, apontando as contradições de uma pretensa história
reconciliada e da violência inerente a uma escrita da história que não cessou de silenciar os seus
outros para validar, de modo unívoco e universal, a narrativa vitoriosa de sua marcha
progressiva rumo à auto-superação.
Morreu de burocracia
373
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992. p. 13.
374
Idem, p. 245.
375
BORRADORI, Giovanna. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida.
Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 98.
169
376
ARENDT, Hannah. “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. In:____. Origens do
Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 268.
377
CALVEIRO, Pilar. Poder y desaparición: los campos de concentración en Argentina. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Colihue, 2014. p. 12.
378
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 21. Disponível também em: www.zazie.com.br.
379
VIANNA, Adriana. As mães, seus mortos e nossas vidas. Revista Cult, São Paulo, n.º 232, p. 36-39, 2018.
170
um ‘fazer morrer alguns’ e ‘deixar morrer outros (e outras) tanto(a)s’”380. O caráter sistemático
da destruição compreendida nessa modalidade de governo é instrínseco às políticas de
extermínio, encarceramento em massa e às ações cotidianas de terror estatal, que alia o discurso
da liberdade e da democracia aos mecanismos de criminalização, precarização e exceção com
existência jurídica.
A exclusão de estratos populacionais que estão à deriva dos jogos de mercado não seria,
assim, simples consequência das dinâmicas econômico-financeiras, mas produto, estrutural e
estruturante, de sustentação das disparidades que movem os mercados e as dinâmicas dos
desejos, das inseguranças, das individualidades. Por isso, sublinha Foucault em uma entrevista,
que “[...] são evidentes as relações que existem entre a racionalização e os excessos de poder
político. E não deveríamos esperar pela burocracia e pelos campos de concentração para
reconhecer a existência de tais relações”381. Ao justapor a burocracia aos campos de
concentração, ressalta-se o potencial de extermínio desses sistemas, com a vantagem de a
economia de produção de cadáveres nas burocracias estatais ser menos ostensiva.
Ao fim e ao cabo, assim como o modelo neoliberal propõe o governo do mundo como
se gere uma empresa, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso na gestão da empresa-vida
individual de cada um é totalmente creditada ao sujeito convertido em capital humano. Ou
talvez debitada como dívida assumida por um contrato tácito de gestão dos riscos em um estado
de mal-estar social no qual a burocracia se faz lei.
Daí o modo de operação da responsabilização como “injunção moral exterior”382, por
meio da qual o sujeito é, a um só tempo, responsabilizado individualmente e inserido em uma
cadeia causal na qual se torna um elemento dentre outros no circuito administrativo da
governança – e, por isso mesmo, um “elemento dispensável para o todo”383. Esse regime
enfatiza a responsabilidade enquanto processo que torna possível aferir condutas, decisões,
comportamentos e ações do sujeito “responsável”, cujos efeitos sociais das relações de poder
são os próprios sujeitos reconstruídos para o “mundo administrado” e imputáveis moralmente.
380
VIANNA, Adriana. As mães, seus mortos e nossas vidas. Revista Cult, São Paulo, n.º 232, p. 36-39, 2018. p.
37.
381
FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir [1982]. In:_____. Dits et Écrits. II (1976-1988). Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 1043-1044.
382
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 21. Disponível também em: www.zazie.com.br.
382
VIANNA, Op. cit., p. 39.
383
BROWN, Wendy. Revisitando Foucault: homo politicus e homo oeconomicus. Trad. Danielle Guizo Archela,
Gustavo Hessmann Dalaqua e Sibele Paulino. Dois Pontos: Revista dos Departamentos de Filosofia da UFPR e
da UFSCar, Curitiba, São Carlos, vol. 14, n.º 1, p. 265-288, abr. 2017. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/download/48108/34036. Consultado em 25 mar. 2018. p. 282.
171
Mas, como nada do “[...] mundo administrado funciona sem solavancos”384, como
afirmaria Adorno, é preciso avançar com reservas. Pois, nesse regime, a instância deliberativa
sobre a própria vida funciona de modo fraturado e parcial. É preciso atentar para a aparência de
decisão do que já se encontra, muitas vezes, formatado em orquestrações prévias e que liquida,
verdadeiramente, com a capacidade de agência do indivíduo inserido em condições reais e
materiais específicas, bem diferente daquelas idealizadas para o “cidadão-consumidor” padrão
não marcado do neoliberalismo385. Por isso, na escolha que se efetua, perpetua-se o já instituído
e a ordem hegemônica, que permite sacrificar em nome do todo aqueles que ameaçam o bom
funcionamento da empresa.
384
ADORNO, Theodor W., 1966 apud DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Mímeses e Racionalidade: a concepção
de domínio da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo: Loyola, 1993. p. 190.
385
Interessante atentar, nesse sentido, para a crítica traçada por Brown (2018, p. 54): “O capital humano, no
linguajar neoliberal, não possui gênero, sexualidade, raça ou qualquer outra posição subjetiva. Porém, é claro, o
neoliberalismo se intersecciona com poderes existentes de estratificação, marginalização e estigmatização,
reconfigurando e reafirmando esses poderes”. A necessidade de marcação desse sujeito “sem rosto”, na contramão
do que é defendido pelos teóricos neoliberais, é essencial para se ressaltar as disparidades estruturais e os efeitos
diferenciados que atingem mais determinados segmentos do que outros. E que inserseccionam vulnerabilidades e
violências no discurso e na prática da “cidadania sacrificial” vigentes na racionalidade neoliberal. BROWN,
Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi
Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018.
172
386
DEMOCRACY STIRS IN THE MIDDLE EAST. The Economist, 3 mar. 2005.
173
387
Jacques Derrida, ao vincular desconstrução e a democracia, também partilha dessa ideia, segundo a qual é em
nome da “democracia por vir” que a democracia deve ser questionada, bem como suas instituições, princípios e
conceitos-chave. Segundo o filósofo, essa é a promessa de revolução do político e do exercício da política em
direção à sua gradativa perfectibilidade.
388
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
31.
174
389
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
31.
390
BROWN, Wendy. “Nous Sommes Tous Démocrates à Present”. In:_____ et al. Démocratie, dans quel état?
Paris: La Fabrique Éditions, 2009. p. 63.
391
AGAMBEN, Giorgio. “Note Liminaire sur le Concept de Démocratie”. In: ______ et al. Démocratie, Dans
Quel État? Paris: La Fabrique Éditions, 2009. p. 9.
392
DARDOT, Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 370.
175
É no bojo dessa democracia “plural de individualidades” que temos visto, por exemplo,
a escalada vertiginosa dos grupos de extrema-direita, que rejeitam, na pretensa defesa da coesão
do mesmo, alteridades vistas como perigosas à manutenção da ordem social e das identidades
nacionais constituídas. Nesse sentido, a democracia, em vez de significar um alargamento do
exercício político sob os pilares da igualdade no Estado democrático de direito, volta-se contra
si mesma – de modo auto-imune –, pois, sob a acusação da “tirania das maiorias” e da crise da
representatividade em curso, reduz-se ao ritual eleitoral periódico: a “festa da democracia” –
que evidencia, às avessas, a opacidade da efetiva participação nos processos políticos.
Assim, promover a integração está na ordem do dia, não obstante as dinâmicas de
in/exclusão serem eficientes modos de normalização de segmentos sociais marginalizados ou
“integrados” conforme sua funcionalidade. A lógica de expansão dos mercados consumidores
pressupõe a intensificação do discurso democrático, mas com limitações claras – como uma
espécie de bloco unívoco do exercício político legítimo –, pois, para os pensadores neoliberais,
“[...] a democracia deve somente criar condições viáveis para que o mercado funcione bem e
segundo suas próprias regras”393. Na medida em que o mercado passa a realizar a paridade entre
os indivíduos, “iguais” na possibilidade de adquirir seus produtos e realizar trocas comerciais,
é o Estado que se torna a instância que deve dar as garantias de que o “jogo” transcorrerá sem
interrupções, de maneira ordenada em todas as suas regras procedimentais.
Doravante, a democracia mínima ou limitada, tal como defendida por Hayek394, ganha
a função de mediadora do ambiente das trocas e de constituição de uma cidadania administrada
no campo da autonomia e das liberdades de mercado. O mesmo Hayek que apoiou e assessorou
regimes ditatoriais no Cone Sul, como o do General Augusto Pinochet, durante a ditadura
chilena. Ora, nessa perspectiva, há uma clara incompatibilidade entre governos autoritários e a
preservação da liberdade, apesar de considerar que a democracia não é um fim último, válido
por si mesma, mas que deve ser julgada pelo que realiza. É justamente por não ser absoluta que,
em entrevista ao jornal El Mercúrio, em abril de 1981, Hayek podia afirmar sem meias palavras:
393
CANDIOTTO, César. Neoliberalismo e Democracia. Princípios: Revista de Filosofia da UFRN, Natal (RN),
vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2012. p. 164.
394
Assim é apresentada em HAYEK, F. A. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto
Liberal, 1987.
176
Uma sociedade livre requer certas morais que, em última instância, se reduzem à
manutenção das vidas; não a manutenção de todas as vidas, porque poderia ser
necessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de
outras vidas. Portanto, as únicas normas morais são as que levam ao “cálculo de
vidas”: a propriedade e o contrato395.
Afirmar que não existe democracia sem mercado não supõe, reciprocamente, afirmar
a impossibilidade do mercado sem a consequente existência da democracia. A
‘verdadeira’ democracia precisa do mercado; embora o mercado não precise
inevitavelmente dela.397
A defesa de uma esfera pública ampliada não tem por consequência a superestimação
do Estado ou sua representação como modo último de resistência à racionalidade de governo
neoliberal. Pois, ao encarnar o ideal desenvolvimentista da necrobiopolítica, o Estado é
instância que regula igualmente os fluxos e sua construção – como sabemos bem desde o Sul
395
HAYEK, 1981 apud MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo: Editora
SENAC, 2001. p. 83. Grifos meus.
396
Idem, ibid.
397
GENTILLI, 1998 apud CANDIOTTO, César. Neoliberalismo e Democracia. Princípios: Revista de Filosofia
da UFRN, Natal (RN), vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2012. p. 165.
177
geográfico398 – está longe de significar efetiva democratização e justiça social para as classes
subalternizadas. Os Estados construídos fora do eixo hegemônico, pela via de longos processos
de soberania colonial, autoritarismos e formas híbridas devem se adequar perfeitamente, em
sua governança, às hierarquias formuladas e erigidas de dentro do mercado global. Inclusive,
hierarquias de humanidade, que instauram cesuras essenciais na administração de forças (de
modo mais ou menos coercitivo) e na ação sobre a subjetividade que produz uma sociedade
mais ou menos forte e competitiva. E que, já em Os Sertões de Euclides da Cunha, no alvorecer
do século XX, confiava na “[...] força motriz da história no esmagamento inevitável das raças
fracas pelas raças fortes”.399
Porém, é na esfera pública que a luta contra a privatização da vida torna visíveis os
privilégios e a dominação dos grupos oligárquicos na sociedade e na pressão que exercem no
Estado. Como deslocamento permanente dos limites, o processo democrático não se reduz à
“democracia militar”, imposta segundo a lógica verticalizada da colonialidade e dos
colonialismos. Esse processo exige a “invenção de formas de subjetivação”400 e da recusa à
divisão “por competência” nas esferas deliberativas, que desaguam nos controles punitivos e
policialescos que guardam as fronteiras da propriedade privada, das formas sociais do poder
das elites e da atomização dos indivíduos devidamente estratificados.
A expansão dos mercados e a incorporação do discurso dos direitos humanos401 e
sociais confere novo fôlego ao ideário de universalidade do exercício da política, que tende a
fazer da democracia liberal a única ordem legítima. Em contrapartida, analogamente, há a
ampliação sem precedentes na história ocidental das sociedades de controle, assim
conceituadas por Deleuze a partir de seu diálogo com Foucault, vetores de circulação dos
racismos de toda espécie, que cindem o mundo entre “nós” e os “Outros”, entre os
398
No caso latino-americano, por exemplo – e do Brasil em especial –, é patente a existência de “um pacto
corporativo interno à própria estrutura do Estado, com o objetivo de manter as dimensões neo-escravistas que
oprimem grande parte da população: os negros, os pobres, os mestiços”. NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe
Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2005. p. 249.
399
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1999 [1901]. p. 8.
400
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
81.
401
Como afirmam Gilles Deleuze e Félix Guattari, “[...] os direitos do homem não salvam nem os homens, nem
uma filosofia que se reterritorializa no estado democrático. [Pois] os direitos do homem nada dizem sobre os
modos de existência imanente ao homem dotado de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a sentimos
apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, diante da baixeza e da
vulgaridade da existência que ameaça a democracia, diante da propagação desses modos de existência e de pensar-
para-o-mercado, diante dos valores, dos ideais e das opiniões da nossa época. A ignomínia das possibilidades de
vida que nos são oferecidas aparece por dentro”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la
philosophie? Paris: Ed. Minuit, 1991. p. 103. Tradução minha.
178
“sacrificáveis” ou não. Acresce-se a isso a mutação atual do capitalismo digital nos termos da
governabilidade algorítmica, por meio da qual o conjunto dos dados do big data402 pode ser
mercantilizado, pela via da “mão invisível” da circulação da informação e do consequente
controle das condutas dos indivíduos.
É notório como esta cisão, em nome da democracia liberal, esteve na raiz de dois tipos
de discursos que embasaram práticas políticas distintas, mas com muitos pontos de contato.
Para citar somente dois exemplos, primeiramente, na década de 1980, com a invocação do papel
do neoliberalismo, no governo norte-americano de Reagan, nas cruzadas contra o “império do
mal”, materializado na figura dos comunismos; depois, na famigerada “Doutrina Bush”,
sintetizada nas “Estratégias de Segurança Nacional dos Estados Unidos”, de 2002, um dos
bastiões do discurso democrático liberal e das “guerras contra o terror” do século XXI.
Ao estabelecer as bases da “democracia efetiva”, tornando indissociáveis as liberdades
econômicas e políticas, o dogmatismo de mercado toma as rédeas de condução das intervenções
políticas globais. Lideradas pelos países hegemônicos, o objetivo é a instituição do único
modelo sustentável para o sucesso das nações: “liberdade, democracia e livre mercado”.403
Estranho paradoxo, não se pode deixar de notar, quando em nome da “dignidade
humana” e contra os excessos do poder cometidos alhures, a força e a truculência exportadas
passam a ser as armas que servem como instrumentos de regulação para que se reestabeleçam
os princípios de agência humana. Em nome da vida, da restruturação da ordem e dos valores
democráticos será preciso intervir nos países “em risco” – como outrora o discurso teológico-
salvacionista legitimou os colonialismos –, justificando em prol dos direitos humanos, as ações
bélicas mais truculentas.
Os interesses geopolíticos e geoestratégicos são, frequentemente, subjacentes aos
ideais humanitários, que assumem o discurso da vida e da liberdade para justificar, inclusive, o
extermínio de populações inteiras. No interior das contradições dos programas políticos de
abrangência planetária, em nome da necessidade de viver, “os massacres tornaram-se
402
Em tecnologia da informação, o termo Big Data refere-se a um grande conjunto de dados armazenados. A
chamada “governamentalidade algorítmica”, conceito cunhado por Antoinette Rouvroy e Thomas Berns, é a
condução da ação dos indivíduos por meio de funções, em torno dos Big Data. E que participam da “emergência
de novas formas de controle”. Cf. “Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como
condição de individuação pela relação?” In: Revista Eco Pós. vol. 18, n. 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015, p. 36-56.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/2662. Acesso em: 4 set. 2018.
403
National Security Strategy of the United States, 2002, p. 3-4. Ademais, o documento apresenta, logo de saída,
seu objetivo principal: “We will actively work to bring the hope of democracy, development, free markets, and
free trade to every corner of the world”. Isto é, “Trabalharemos ativamente para levar a esperança da democracia,
desenvolvimento, mercados livres e livre comércio a todos os cantos do mundo”. (Tradução minha).
179
404
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 149.
405
A expressão é de Hannah Arendt em seu Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.
Zaffaroni (2012, p. 358), em A Palavra dos Mortos, define também o massacre como “antes de tudo, um homicídio
múltiplo, embora na forma de prática, ou seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de
algum segmento.”
406
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
407
Idem, p. 27-28.
408
CASTELO BRANCO, Guilherme. Estado e Crime: extermínio, intimidação, exclusão. In:______. (Org.)
Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b. p. 150.
409
Se consideramos, por exemplo, as famigeradas parcerias público-privadas, vemos como esse amálgama entre
iniciativa privada, capital corporativo e Estado evidencia a dependência do setor financeiro ao aparato e às
instituições públicas. Conforme sublinha Brown (2018, p. 22): “Diferentemente de uma mera terceirização, tais
parcerias privatizam os ganhos enquanto socializam os riscos e, na medida em que precisam ser lucrativas para
os investidores, sujeitam os cidadãos a mais apertos.” BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo,
capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018.
180
Rancière410, ainda que para isso seja preciso reconquistar os espaços açambarcados pelo
mercado. O que exige refutar também a estratégia da negatividade, que visa a recompor um
consenso reacionário pela afirmação de que, fora do neoliberalismo, nada mais seria possível.
Pois,
Heterotopia que não deixa de revelar o neoliberalismo não apenas como doutrina
econômica, mas como cosmovisão integrada que regula os modos de vida em uma chave
econômica. Assim, com o respaldo do discurso da regulação democrática, neutraliza-se o “[...]
ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se
fundamentado”412. Ingovernável capaz de ativar os diferentes modos de resistência e de
redimensionamento das práticas através das lutas intestinas e da recusa cotidiana em de-cifrar
a vida a partir do esquema valorativo das finanças, do modelo do capital humano
responsabilizado e da razão normativa neoliberal.
É o que Jean-Luc Nancy argumenta quando sublinha que:
410
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
411
Idem, p. 61.
412
Idem, p. 66.
413
NANCY, Jean-Luc apud HONESKO, Vinícius Nicastro. Democracia e/ou Democracias: Vozes insistentes
sobre “insistências democráticas” (Entrevista com Miguel Abensour, Jean-Luc Nancy & Jacques Rancière).
Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), Natal, vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2015, p. 512. Disponível em:
https://periodicos.ufrn.br/principios/issue/view/449 Acesso em: 15 jun. 2018.
181
políticas de austeridade e que transfere competências da esfera estatal aos experts e aos cartéis
do setor privado.
E não é só isso. Sabe-se bem como isso funciona, como um funil entre aqueles que
poderão acessar esses bens e serviços e aqueles que estarão à margem das transações de compra
e venda que transformam o cidadão em cliente. Pois, é certo que na leitura despolitizante na
qual a economia circunscreve a sociedade, quem não é consumidor que pague o pato. Como
ressalta Wendy Brown,
414
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 38.
183
415
Tome-se, por exemplo, como lembra Brown (2018, p. 29), o processo coletivo movido por um grupo de
trabalhadoras contra a rede Wal-Mart Stores, nos EUA, no que foi considerado o maior caso de discriminação
laboral da história. Em junho de 2011, a Suprema Corte americana rejeitou o processo por meio do qual as mulheres
reivindicavam a paridade salarial, além do pagamento da diferença entre o salário dos funcionários e o pagamento
delas. De acordo com a alegação da Corte, não haveria nada que ligasse as milhões de decisões empregatícias e o
salário mais baixo generalizado pago pela empresa, além de rejeitar “o posicionamento das mulheres enquanto
classe”. Não seria supérfluo lembrar dessa premissa básica das análises de Foucault em Nascimento da Biopolítica,
quando ressaltava que, na racionalidade neoliberal, “o jurídico dá forma ao econômico”. Idem.
416
REICH, Robert, 1993 apud FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo:
Editora Unesp, 1997. p. 26.
184
417
AESCHIMANN, Éric. Pourquoi Michel Foucault est partout?. Le Nouvel Observateur, 21/12/2013. Disponível
em: http://bibliobs.nouvelobs.com/essais/20131220.OBS0394/pourquoi-michel-foucault-est-partout.html. Acesso
em: 21 abr. 2017.
418
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009.
185
419
“O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo liberto de suas referências
arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e como norma geral da vida”. DARDOT, Pierre ;
LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris: Éditions La
Découverte, 2009. p. 6. Tradução minha.
420
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 437.
421
Idem, p. 434.
422
Cf. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
186
referenciais na formação cidadã e do capital humano de maior valor. Não à toa, o molde do
sujeito neoliberal será o do indivíduo empreendedor, na medida em que ele:
Tolerância zero?
423
DARDOT Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 414.
424
ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political Power Beyond the State: Problematics of Government. The British
Journal of Sociology, vol. 43, n.º 2, p. 271-303, 1992. p. 188-189.
425
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 339.
187
impiedoso e burocrático, pronto para fabricar delinquentes quando for necessário, “[...]
carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos”426.
Afinal, será preciso justificar os investimentos no sistema e na aplicação penal
excludente, nesse contexto de tamanha “liberdade” e de cortes nas políticas sociais. Além, é
bem verdade, da produção permanente de medos tangíveis, afeto que impossibilita que se
constitua um mundo comum e justifica a guerra contra as massas miseráveis: as únicas
responsáveis pelo seu fracasso. É aí que, como afirma Loïc Wacquant, “[...] o encarceramento
reelabora sua missão histórica dirigindo-a à ‘regulação da miséria (talvez sua perpetuação’) e
ao armazenamento dos refugos do mercado”427. Demandas punitivas em resposta aos conflitos
sociais, normalização da ação violenta do sistema de segurança pública, “[...] acumulação social
da violência”428 distribuída de forma desigual. Como gerir a massa periférica, produzida como
resíduo imprescindível de uma ordem social pautada pelo individualismo democrático, pela
flexibilização dos direitos sociais e pela aposta no jogo de risco do empreendedorismo de si?
Refugos do mercado, laranjas podres, raspas e restos que não interessam. Questão de
seletividade: o circo da liberdade que movimenta a engrenagem dos hipermercados; o cerco dos
horrores das xepas de feira dos territórios militarmente ocupados, à margem das cidades.
Hiperinflação carcerária das populações desviantes, precárias e perigosas; ostracismo étnico-
racial e uma ode à liberdade: recompensar os bons investidores e glorificar o sistema penal na
contenção dos indisciplinados.
Crime e castigo
426
FOUCAULT, Michel. Sobre a prisão. In:_____. Microfísica do Poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 133.
427
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan,
2003. p. 12.
428
MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, n.º 3,
p. 371-385, set./dez. 2008.
188
punitivo em moldes econômicos, isto é, pela via da problematização dos custos da delinquência
e dos modos de torná-los o menos dispendioso possível e com a máxima eficiência. O recurso
mobilizado pelos reformistas é uma saída legalista. A boa lei, tal como concebida por eles,
estabeleceria um princípio universal de funcionamento de modo mais econômico, com vistas à
punição eficaz dos crimes prescritos por ela. Dado que o crime é uma falta contra uma regra
jurídica instituída, se não há lei também não há crime. Por isso, seria imperativo a definição das
penas e das punições pelas leis, de acordo com modulações que refletissem o nível de
“gravidade” dos delitos.
Quanto aos tribunais penais, caberia a eles aplicar a lei previamente estabelecida aos
crimes, de modo “objetivo”. A consequência desses princípios é que se trama, com extrema
concisão, toda uma rede de política penal, cuja mecânica funciona, sob a ótica neoliberal,
baseada em princípios econômicos. Política penal e economia se encontram, finalmente, na
forma dos mecanismos legais: “o homem que é penalizável, o homem que se expõe à lei e pode
ser punido pela lei, esse homo penalis é, no sentido estrito, um homo oeconomicus”429.
Um paradoxo atravessaria, porém, a economia penal. Pois se, de um lado, a lei só pune
o ato, é preciso levar em consideração, de outro, a função de exemplaridade da punição dos
infratores para os demais. A tendência individualizante da lei e a inserção de saberes médicos,
psicológicos e das ciências humanas na avaliação do criminoso e no traçado de seu perfil, assim,
indicaria um deslocamento operacional do homo penalis para o homo criminalis. O sinal dessa
modificação pode ser lido na própria formação do campo da criminologia no final do século
XIX, que se ocupa, em sua gênese, do grau de periculosidade, da personalidade e da forma de
ressocialização do criminoso430. Nesse momento, a criminologia adquire os contornos de uma
“antropologia criminal”, que acaba por contribuir para o enxerto de uma série de elementos que
inflam, via mecanismos próprios da norma, a mecânica econômica da lei.
Essa antropologia do criminoso que se cria com recurso à biologia, à psicologia e à
genética irá trazer em seu cerne os traços do racismo científico, responsável por justificar a
ligação direta entre determinados fenótipos raciais e a propensão à criminalidade. Assim, tratou-
se cientificamente de legitimar a exclusão de determinadas parcelas da população com apelo à
ameaça que elas poderiam representar aos demais, demonstrada pela sua tendência inata para o
429
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 341.
430
A tese de Cesare Lombroso, L’Uomo Delinquente, de 1876, é paradigmática em relação à investigação em
torno do “criminoso nato”, figura forjada pelo italiano para explicar o caráter hereditário do crime e que em muito
contribuiu para o chamado racismo científico do século XIX. Cf. LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente.
Trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone Editora, 2007.
189
431
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: Entre política de reconhecimento e meio de
legitimação do controle social sobre os negros. Brasília: Brado Negro, 2016. p. 200.
432
BECKER, 1968 apud FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. 344.
433
FOUCAULT, Op. cit., p. 344.
434
Idem, p. 344-345.
435
Foucault (2008, p. 353) precisa em uma nota na página 19 de seu manuscrito que “um sujeito econômico é um
sujeito que, no sentido estrito, procura em qualquer circunstância maximizar seu lucro, otimizar a relação
ganho/perda; no sentido lato: aquele cuja conduta é influenciada pelos ganhos e perdas a ela associados”. Idem.
190
O criminoso não é nada mais que absolutamente qualquer um. O criminoso é todo
o mundo, quer dizer, ele é tratado como qualquer outra pessoa que investe numa
ação, que espera lucrar com ela e aceita o risco de uma perda. O criminoso, desse
ponto de vista, não é nada mais que isso e deve continuar sendo nada mais que
isso. Nessa medida, vocês percebem que aquilo de que o sistema penal terá de se
ocupar já não é essa realidade dupla do crime e do criminoso. É uma conduta, é
uma série de condutas que produzem ações, ações essas cujos atores esperam um
lucro, que são afetadas por um risco especial, que não é simplesmente o da perda
econômica, mas o risco penal, ou ainda, o risco da perda econômica que é infligida
por um sistema penal.436
Jogo de riscos e perigos que fará com que o sistema penal tenha que “[...] reagir a uma
oferta de crime”437. De maneira distinta, porém, daquela proposta por Beccaria e Bentham, pois,
para esses reformadores, a punição encontrava sua justificativa no efeito daninho de um ato
praticado, para o qual, em nome de um princípio de utilidade, se deveriam buscar medidas de
reparação. Ao passo que, para os neoliberais, trata-se de, face a um mercado do crime, fornecer
os instrumentos de ação e de discurso, os mecanismos e os procedimentos necessários para se
gerar uma demanda negativa do crime, ou seja, que se coloque nos antípodas da oferta.
Não se objetiva, por essa via, a supressão exaustiva dos crimes, como sonhavam com
seu cálculo penal os reformadores do século XVIII. Antes, visa-se a propor medidas capazes de
intervir no mercado do crime – quer dizer, sobre o jogo de ganhos e perdas possíveis –, e que
sirvam como limites à oferta, elas mesmas circunscritas por um cálculo racional que não deve
ultrapassar o custo da criminalidade de que se deseja barrar.
Vemos esboçar-se uma concepção que gravita em torno da ideia de gestão e economia
política dos ilegalismos438. Conforme interpreta Foucault439, “[...] a boa política penal não tem
em vista, de forma alguma, uma extinção do crime, mas sim um equilíbrio”440. A busca por esse
ponto de estabilidade faz com que certas curvas de oferta de crime sejam absolutamente
toleradas – e até desejáveis – para a manutenção da estabilidade e da regulação das políticas
436
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 346.
437
Idem, ibd.
438
Para uma precisão do termo utilizado por Foucault na língua francesa, as considerações do prof. Márcio Alves
da Fonseca são valiosas: “É certo que, por vezes, illégalisme e illégalité são aparentemente utilizados com um
mesmo sentido nos escritos de Foucault em que aparecem, entretanto, há uma predominância, nesses escritos, no
emprego da palavra illégalisme em detrimento de illégalité e, a nosso ver, existe uma diferença importante entre
ambas. O próprio fato de o termo illégalisme não ser veiculado correntemente na língua francesa parece
demonstrar, por parte do autor, a intenção de marcar uma especificidade do mesmo em relação ao termo mais
corrente, illégalité”. FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.
p. 130.
439
Diversas considerações nessa direção já haviam sido tecidas por Foucault em Vigiar e Punir. Ver FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 37. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 243-277.
440
FOUCAULT, Op. cit., p. 350.
191
441
Segundo Misse (2008), “[...] para distinguir esse processo social de um processo de incriminação racional-legal,
chamo-o de ‘sujeição criminal’. Nele, primeiramente, busca-se o sujeito de um crime que ainda não aconteceu. Se
o crime já́ aconteceu e se esse sujeito já́ foi incriminado antes, por outro crime, ele se torna um ‘sujeito propenso
ao crime’, um suspeito potencial. Se suas características sociais podem ser generalizadas a outros sujeitos como
ele, cria-se um “tipo social” estigmatizado. Mas a sujeição criminal é mais que o estigma, pois não se refere apenas
aos rótulos, à identidade social desacreditada, à incorporação de papéis e de carreiras pelo criminoso (como na
“criminalização secundária” de Lemert). Ela realiza a fusão plena do evento com seu autor, ainda que esse evento
seja apenas potencial e que efetivamente não tenha se realizado. É todo um processo de subjetivação que segue
seu curso nessa internalização do crime no sujeito que o suporta e que o carregará como a um “espírito” que lhe
tomou o corpo e a alma.” Assim, a construção social do sujeito “bandido” é um processo por meio do qual se
constituem os sujeitos e os tipos sociais “mais propensos” ao crime, estigmatizados pelos traços raciais e pela
classe social. O efeito mais perverso desse processo é lógica segundo a qual “bandido bom é bandido morto” e do
suspiro aliviado de “menos um”, repetido exaustivamente quando esses “suspeitos” ou “criminosos” potenciais
são executados. MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre,
vol. 8, n.º 3, p. 371-385, set./dez. 2008. p. 341.
442
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 355.
443
WACQUANT, Loic. Foucault, Bourdieu et l’état pénal à l’ère néolibérale. In: ZAMORA, Daniel (Org.).
Critiquer Foucault : Les Années 1980 et la Tentation Néolibérale. Bruxelles: Ed. Aden, 2014. p. 121.
192
A partir desse cálculo, a vida passa a ser pautada extensiva e intensivamente pelos
domínios securitários e previdenciários. Esses domínios, compreendidos em sentido alargado
como conjunto de cálculos que movem as engrenagens da dinâmica de riscos e seguros,
periculosidade e vigilância, custos e benefícios, serão os moldes de organização das sociedades
securitárias-empresariais, para as quais vigiar e punir são contrapartidas indispensáveis do
guardar, acumular e proteger.
Instrumentos provenientes da estatística são assimilados e tornam-se, por excelência, os
indicadores de compreensão das variáveis sociais e econômicas, cujos referenciais são as grades
analíticas e os gráficos matemáticos. Com base neles, toda uma rede de ajustes modulados,
imprescindíveis para o governo das vidas e para economia das punições são planejados.
Modelar a realidade, traçar limites e estabelecer balanços, com o objetivo de tornar mais efetiva
sua assertividade, convertem-se em imperativos no tratamento de problemas que estão na lista
de prioridades dos Estados.
Por esse motivo, os dispositivos de segurança mobilizados para o controle, o
monitoramento e a gestão de campos estratégicos são, atualmente, alvos prioritários de atenção
e investimento por parte de todos os governos. É preciso governar os corpos, mas
principalmente, as subjetividades e os interesses. Configura-se, assim, uma preocupação
constante de investimento na securitização da vida cuja contrapartida é o “fazer morrer”
daqueles cujas condutas são identificadas, no contrato racial e social do neoliberalismo, com a
periculosidade orgânica.
Ora, é sintomático, todavia, que os campos da segurança pública e criminal sejam
investigados de modo secundário nas análises políticas neoliberais, quando é patente o papel
capital que desempenham hoje – quer da perspectiva das elevadas quantias movimentadas nos
orçamentos público-privados, quer nas intervenções militarizadas em prol da “segurança
cidadã”, ou na complexidade dos modos de subjetivação a que ensejam. Os mecanismos
modulados e diferenciais, as ameaças e a judicialização permanente da vida, nesse sentido,
constituem uma “[...] verdadeira inflação legal, inflação do código jurídico-legal para fazer esse
sistema de segurança funcionar”.444
Porque, para a manutenção da ordem social e da seletividade do sistema penal, exigem-
se sacrifícios. Daí, a outra face da segurança, nas formas da razão de Estado, ser o controle
social violento, que tem como paradigma securitário o incremento da letalidade do sistema
penal. Segundo Zaffaroni,
444
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 9.
193
445
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2001. p. 27. Grifo do autor.
446
Em um debate com militantes maoístas, publicado em 1972 na revista Les Temps Modernes, Foucault articula
a questão racial intrínseca ao modelo “extrativista” da colonização à barreira ideológica erigida pelo racismo, com
o objetivo de impedir que entre “pequenos brancos” e os colonizados se instituíssem alianças ou vínculos de
solidariedade. Foucault sugere, ademais, que a manutenção dessa barreira, nas sociedades modernas, seria
assegurada pelas prisões, que teriam “estreita relação com o racismo”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 52.
447
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2001. p. 258.
194
marginalização urbana. Se “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”448, ele aporta
diretamente nas instituições de confinamento penal.
Nas brechas da discussão acerca da legitimidade de punir, na fenda instaurada entre a
função da prisão e o objetivo da empresa, multiplicam-se as situações violatórias e se reiteram
as críticas ao cárcere como instrumento de controle social e de manutenção do status quo. Com
o agravante de, associado à lógica das empresas, ser revestido da operação inerente ao capital
privatista: gerar lucro por meio da expansão de sua clientela. Daí a prevalência da defesa do
encarceramento em detrimento de alternativas penais, que agravam a superlotação das unidades
prisionais, acentuam as práticas autoritárias no controle da violência e o racismo institucional
que impõe penas mais duras e rigorosas aos segmentos historicamente subalternizados: negros
e pobres449. Como nota Julita Lemgruber, a privatização das prisões:
448
O RAPPA. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Rio de Janeiro: Sony. 1994. Disco sonoro.
449
Segundo o IPEA, em relatório de pesquisa divulgado em 2015 e intitulado A aplicação de penas e medidas
alternativas no Brasil, o rigor da Justiça Criminal com negros é maior comparado aos brancos, que têm mais
acesso às penas alternativas: "Existe um maior número de réus negros nas varas criminais, onde a prisão é a regra,
e maior quantidade de acusados brancos nos juizados, nos quais prevalece a aplicação de alternativas penais",
informou o estudo. Pode-se concluir, sem dificuldade, que há nas próprias instâncias do direito penal “processos
de construção de desigualdades e de reprodução de opressões nas instituições brasileiras, que conferem a cor negra
aos nossos cárceres”. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150325_relatorio_aplicacao_penas.pdf.
Acesso em: 1 out. 2018.
450
LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Think Tank. São Paulo, vol. 15, p. 1-29, jun.
2011. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2011/06/Controle-da-
criminalidade_mitos-e-fatos.pdf. Acesso em: 24 set. 2018.
451
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 51.
195
Vocês não têm mecanismos de segurança que tomam o lugar dos mecanismos
disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurídico-legais. Na
verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar,
claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se
complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais
exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os
mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança.452
A segurança se torna, desse modo, uma das principais preocupações normativas da vida
nos regimes democráticos da atualidade. A experiência habitual evidencia que essa preocupação
tem um fundamento real, na medida em que se vê um alargamento crescente do uso das
tecnologias de segurança, cada vez mais recorrentes, que perscrutam de cima a baixo a vida dos
governados. Elas operam pela via das medições e aferições biométricas, da vigilância
ininterrupta das câmeras de segurança, dos identificadores digitais e das nanotecnologias, dos
monitoramentos algorítmicos, enfim, de uma gama de controles computo-informacionais e
institucionais, que visam ao governo e à normalização das condutas. Vinculado a isto:
No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de
distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em
serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos
muros das prisões assomam entre os principais fatores de “confiança dos
investidores” e, portanto, entre os dados principais considerados quando são
tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor
policial possível é a melhor coisa (talvez a única) que o Estado possa fazer para
atrair o capital nômade a investir no bem-estar dos seus súditos; e assim o caminho
mais curto para a prosperidade econômica da nação e, supõe-se, para a sensação
de “bem-estar” dos eleitores, é a da pública exibição de competência policial e
destreza do Estado.453
452
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 10. Tradução minha.
453
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 128.
196
A todos esses imperativos – zelar para que a mecânica dos interesses não
provoque perigo nem para os indivíduos nem para a coletividade – devem
corresponder estratégias de segurança que são, de certo modo, o inverso e a
própria condição do liberalismo. A liberdade e a segurança, o jogo liberdade e
segurança – é isso que está no âmago dessa nova razão governamental cujas
características gerais eu lhes vinha apontando. Liberdade e segurança – é isso que
454
ROUVROY, Antoinette; BERNS, Thomas. Le nouveau Pouvoir Statistique: ou quand le controle s’exerce sur
un réel normé, docile et sans événement car constitué de corps “numériques”... Multitudes, n.º 40, p. 88-103. 2010.
455
Idem, p. 88-9.
197
456
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p.89.
457
WACQUANT, Loic. Foucault, Bourdieu et l’état pénal à l’ère néolibérale. In: ZAMORA, Daniel (Org.).
Critiquer Foucault: Les Années 1980 et la Tentation Néolibérale. Bruxelles: Ed. Aden, 2014. p.114-131.
458
HAMANN, Trent. H. Neoliberalismo, Governamentalidade e Ética. Revista Ecopolítica, São Paulo, n.º 3,
mai./ago. 2012. p. 112. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/issue/view/755/showToc.
Acesso em: 20 jun. 2018.
198
Acrescenta-se a essa criminalização, salienta Foucault, que “[...] não há liberalismo sem
cultura do perigo”459. Ser uma unidade-empreendedora de si exige viver inteiramente e
intensamente no risco. E são os riscos de mercado que demandariam, por sua vez, recurso às
tecnologias securitárias, na medida em que, “[...] em seu discurso, o risco é dado como uma
dimensão ontológica”460, isto é, correr riscos passa a ser inerente a uma vida de investimentos,
empreendimentos e atividade:
Isso, claro, acarreta certo número de consequências. Podemos dizer que, afinal de
contas, o lema do liberalismo é “viver perigosamente”. “Viver perigosamente”
significa que os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo, ou
antes, são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu
futuro como portadores de perigo. É essa espécie de estímulo do perigo que vai
ser, a meu ver, uma das principais implicações do liberalismo461.
Interessante sublinhar, porém, que a gestão social e política dos riscos, na concepção
neoliberal, é individualizada. É assim que os perigos são perpetuamente (re)produzidos,
atualizados e colocados em circulação. Se o risco é englobado pelas esferas de mercado,
tornando-se comercializável – e rentável –, não há grande novidade em constatar que a
produção do sujeito do risco tem como contraface a geração do sujeito da segurança privada.
Todos se tornam responsáveis individuais pelo seu futuro, às expensas do comum e da dimensão
coletiva da existência, e transformam-se em unidades “autorreferenciadas”, ou no que Ulrich
Beck chama em A Sociedade do Risco, de “[...] agentes de sua própria subsistência, mediada
pelo mercado”.462
459
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 91.
460
DARDOT Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 428. Tradução minha.
461
FOUCAULT, Op. cit., p. 90. Grifos meus.
462
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011. p. 133 et seq.
199
vêem em ação nas políticas neoliberais [...] É a essa tendência: a política social
privatizada.463
463
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 198-199.
464
Idem, p. 106.
465
Diversas considerações nesta direção já haviam sido tecidas por Foucault em Vigiar e Punir. Ver FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 37ª. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 243 et seq.
466
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 350.
467
FOUCAULT, Michel. “Gerir os Ilegalismos” [Entrevista, 1975]. In: POL-DROIT, Roger. Michel Foucault :
Entrevistas. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. São Paulo: Edições Graal, 2006. p. 50.
200
468
GROS, Fréderic. Direito dos Governados, Biopolítica e Capitalismo. In: NEUTZLING, Inácio & RUIZ, Castor
M. M. Bartolomé. (Org.). O (des)governo biopolítico da vida humana. São Leopoldo: Casa Leiria, 2011. p. 121.
469
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 198.
470
Nesse sentido, Cf. CASTELO BRANCO, Guilherme. A Seguridade Social em Michel Foucault. Revista
Ecopolítica, São Paulo, n.º 5, p. 40-53, jan./abr. 2013. Disponível em:
http://www.pucsp.br/ecopolitica/revista_ed5.html. Acesso em: 01 jul. 2017. Igualmente, Foucault, na aula de 14
de fevereiro de 1979 do curso Nascimento da Biopolítica, irá afirmar que, no que concerne à razão neoliberal:
“Uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo. Ao contrário, ela deve deixar a desigualdade agir
[...] o jogo econômico, com efeitos desigualitários que ele comporta, é uma espécie de regulador geral da
sociedade, a que, evidentemente, todos devem se prestar e se dobrar.” (FOUCAULT, 2008, p. 196).
201
seja esta coisa que chega de todo mundo, que é a velhice, não podem constituir
um perigo nem para os indivíduos nem para a sociedade.471
471
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 89.
472
GUIMARÃES ROSA, João. Conversa de bois. In:_____. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
473
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 19.
202
Diante de um arquivo inquietante, que nos interpela do fundo de seu silêncio, como
resistir? Como resistir a essa febre que devora identidade e pertença, como papel lambido
descuidadamente pela chama, e o “mal de arquivo” que nos denuncia muito mais próximos da
violência de Estado do que supúnhamos?
No alto da estante de ferro, não havia caixa de Pandora. Havia uma velha pasta verde
de fotografias, quase esquecida, de elástico frouxo e laterais carcomidas. Há alguns anos,
resolvi abri-la, fascinado por esse inventário de fragmentos temporais que, por um misterioso
traço consaguíneo e espectral, significa simultaneamente a presença do passado e o futuro de
uma destinação secreta, arquivos do resto. Talvez esse fascínio fosse sobretudo pelo mal-estar
diante da morte; ou, ainda, o contínuo trabalho de um luto em atividade que nos lança em
direção ao que perdemos e que se releva como parte de um mundo comum ausente, a uma
língua morta.
A pasta, como sarcófago, guardava relíquias em seu interior. Eram as poucas fotografias
dos mortos da família: indícios de desaparecimento de fantasmas de rostos variados, de nomes
desconhecidos, de identidades perdidas, rastros de narrativas que já não podemos reconstruir.
Se a fotografia indica a suspensão do tempo, como escreveria Barthes em A Câmara Clara, não
deixa de ser curioso como as imagens, por estranha magia, podem operar à distância em sua
obra de perda, “o retorno do morto”474 – o vestígio, o traço, a ruína.
Ao escavar as camadas da pasta, descubro ao fundo uma foto em especial. Um spectrum
me olha fixamente. Vi, com um espanto irredutível, aquele homem de terno preto que marchava
na rua do Centro num dia 1º. de abril de 1964. Assombrado, leio no verso seu nome “Camilo
474
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 20.
203
Monteiro dos Santos”. Camilo foi um tio, que não conheci, e que trabalhou como advogado e
despachante do Estado da Guanabara na década de 1960. Na dedicatória da foto, que se
endereça a seu pai de criação, o orgulho de defender a pátria brasileira é manifesto. Paro diante
da imagem por longo tempo. Examino. É como se descobrisse nessa fotografia um vínculo
estranho e secreto que me ligasse, violentamente, àquilo contra o que grande parte do meu
trabalho de pesquisa se direciona. Espectador dessa imagem, perco o chão. Princípio mesmo
da dialética do olhar, nas palavras de Didi-Huberman, “[...] quando ver é sentir que algo
inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí.”475
Tudo estava lá, ali. A marcha do dia 1º de abril no Centro da cidade do Rio de Janeiro
objetivava expressar o apoio da sociedade civil ao regime excepcional que destituiria o
presidente democraticamente eleito, João Goulart, e instauraria uma ditadura militar no país.
“Marcha da vitória”, em sua expressão celebrativa, a passeata no Rio era um desdobramento
das Marchas da Família com Deus pela liberdade, que se multiplicaram por todo país a partir
da marcha paulista de 19 de março daquele ano.
Camilo não pôde ver o que se passou ao longo dos vinte e um anos que se seguiram ao
Golpe de 64. Eu nasceria no início da década de 1990, já no período democrático do país. Entre
sua morte e meu nascimento, há um hiato. Um triste entreato. Nenhum de nós foi testemunha
ocular do regime de exceção brasileiro. Mas, como dois espectros, olhamo-nos longamente, à
distância, em perspectiva.
Fecho a pasta e encerro as fotografias novamente em seu sepulcro. A imagem, porém,
me acompanha obstinadamente, grita em silêncio – persiste. Sobretudo, porque não se trata
apenas do que foi; mas, do que, estranhamente, permanece como restância nesse tempo, vivo
no presente como semente pronta a germinar diante do menor descuido, fruto da amnésia
histórica de um tempo encerrado em pastas e arquivos não exumados. Como a face oculta de
nossa própria história, cuja dívida permanece em aberto, sem perdão, sem anistia.
Quando o passado de opressão está no plano coletivo, com reverberações autoritárias
evidentes no tempo presente, é preciso rememorar o que nos encara de frente. Os gregos,
recorda Barthes, “[...] entravam na morte caminhando para trás: o que tinham diante deles era
o passado”476. Diante da morte, das imagens ou do tempo perdido, é preciso despertar do
475
DIDI-HUBERMAN. Georges. O Que Vemos, O Que nos Olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.
p. 34.
476
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 106-107.
204
passado, “[...] pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes?”477. Ouvir
essas vozes talvez seja uma das tarefas políticas mais urgentes da atualidade. Principalmente
quando se somam às marchas do passado os gritos pela intervenção militar no presente, que nos
desafiam, nesse rumor, a abrir uma vez mais os nossos próprios arquivos478.
Apesar de vocês
477
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol. I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.
223.
478
A fotografia consta no Anexo B desta tese (p. 251).
479
Para aprofundar essa discussão e acessar os documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)
brasileira, cf. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php Acesso em: 20 dez. 2018.
480
Desde sua primeira sentença, no caso Velasquez Rodrigues vs. Honduras, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) afirma o caráter pluriofensivo do desaparecimento forçado de pessoas: “O desaparecimento
forçado de seres humanos constitui uma violação múltipla e continuada de numerosos direitos reconhecidos na
Convenção [...]. O sequestro da pessoa é um caso de privação arbitrária da liberdade que compromete,
adicionalmente, o direito da pessoa detida de ser conduzida sem demora à presença de um juiz e a impetrar os
recursos adequados para controlar a legalidade de sua detenção, o que infringe o artigo 7 da Convenção. [... ] Além
disso, o confinamento prolongado e a incomunicabilidade coativa a que se vê submetida a vítima representam, por
si mesmos, formas de tratamento cruel e desumano, que lesam a [integridade] psíquica e moral da pessoa e o
direito de todo detido ao respeito da dignidade inerente ao ser humano, o que constitui, por sua vez, uma violação
das disposições do artigo 5 da Convenção [...]. Ademais, as investigações realizadas em casos de desaparecimentos
e os depoimentos das vítimas que recuperaram sua liberdade demonstram que tal prática abrange ainda o
tratamento desumano outorgado aos presos, os quais se veem submetidos a todo tipo de vexame, tortura e outros
tratos cruéis, desumanos e degradantes, violando também o direito à integridade física, reconhecido no mesmo
artigo 5 da Convenção. A prática dos desaparecimentos, enfim, tem resultado, com frequência, a execução dos
presos, em segredo e sem submetê-los a julgamento, seguida da ocultação do cadáver com o objetivo de apagar
todos os vestígios materiais do crime e buscar a impunidades daqueles que o cometeram, o que implica uma brutal
violação do direito à vida, reconhecido no artigo 4 da Convenção.” CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Sentença de 29 de julho de 1988, par. 155-157.
205
rememoração e de elaboração dos traumas sociais os testemunhos das vítimas envolvidas, mas
aprofundando o debate sobre a construção permanente da democracia e do Estado de direito.
A resistência a esses processos jurídico-políticos expõe as tensões que envolvem a
sociedade civil, as instituições políticas e o Estado, e as versões em disputa a serem legitimadas
por uma escrita da história que não cessa de “[...] unir o estudo dos mortos ao tempo dos
vivos”481 e de apresentar os conflitos entre memória e história, testemunho e relato,
descontinuidades e permanências que não se separam da dor política e do exercício do poder
no nível da vida.
Em campos distintos, tem-se, de um lado, a massa discursiva, os aparatos
administrativos e burocráticos produzidos pelos agentes e instituições do Estado, com a
pretensão de recobrir todo âmbito da vida política e social, sem resíduos; de outro, os
testemunhos traumáticos, os relatos singulares de sujeitos cujas vidas foram atravessadas pelos
efeitos violentos do poder, do choque entre suas existências singulares e o terror de Estado.
Que a violência física e o assassinato político sejam os gestos mais emblemáticos da
experiência do terror, não há dúvidas. Mas, há ainda uma violência suplementar, simbólica, que
faz desaparecer mesmo “[...] a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar o
nome”482. Apagados “a memória do nome” e o “nome como memória”, resta o inominável “[...]
cuja voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referência alguma”483.
Exilados do universo simbólico, os fantasmas retornam no real como lembrança do que não
pode ser esquecido. Como aparência do que, redivivo, resiste a uma segunda morte, na “[...]
tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado
desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um
presente evanescente.”484
Mosaico de notas, fotografias, inquéritos, boletins, registros orais, documentos secretos
e censurados. Os processos de negociação e de repactuação das memórias em disputa justapõem
versões que colocam em campos opostos os agentes estatais e os sujeitos privados de direitos
pela via da exceção jurídica. Mas se “[...] cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
‘política geral’ da verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
481
BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. Paris: Armand Colin, 1993. p. 97.
482
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Tradução Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 140.
483
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson.
(Org.) O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 238.
484
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 44
206
485
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: ___. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 2011. p. 12.
486
SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010. p. 11.
487
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson
(Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 239.
488
Segundo o Artigo 1º. da Emenda Constitucional N.º 11 de 1978, que alterou o disposto no Artigo 158 da
Constituição autoritária de 1967 e a sua Emenda Constitucional N.º 1 de 1969: “O Presidente da República ouvido
o Conselho Constitucional (artigo 159), poderá decretar o estado de emergência, quando forem exigidas
providências imediatas, em caso de guerra, bem como para impedir ou repelir as atividades subversivas a que se
refere o artigo 156.” BRASIL, 1978. Cabe ressaltar que a Constituição Federal de 1988, vigente no Brasil, dispõe
em seu Artigo 84 como uma das competências privativas do Presidente da República: “[...] IX – decretar o estado
de defesa e o estado de sítio; X – decretar e executar a intervenção federal”. É possível notar, assim, os rastros do
legado autoritário, apesar dos avanços democráticos consolidados na Carta Cidadã de 1988.
489
NODARI, Alexandre. O que é o Terror? (Notas a partir de Giorgio Agamben). Revista Diálogos
Mediterrânicos, Curitiba, n. 14, jun. 2018. p. 106.
207
490
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 14.
491
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de Janeiro. Revista Direito
& Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, n.º 2, 2018. p. 1063.
208
492
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da constituição brasileira de 1988. In:
SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 48.
493
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 23.
494
NODARI, Alexandre. O que é o Terror? (Notas a partir de Giorgio Agamben). Revista Diálogos
Mediterrânicos, Curitiba, n. 14, jun. 2018. p. 109.
495
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
vol. 92/93, p. 69-82, jan./jun., 1988.
209
496
VILLALOBOS, Juan Pablo. Festa no covil. Trad. Andreia Moroni. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.
16.
210
497
Fanon lembra o quanto isto afeta diretamente os corpos dos envolvidos nesse processo violento, vítimas e
algozes: “Não foi só o terreno que foi ocupado. [...] O colonialismo [...] se instalou no próprio âmago do indivíduo
[...] e ali realizou um árduo trabalho de pilhagem, de expulsão de si mesmo, de mutilação racionalmente praticada.
[...] Nessas condições, a respiração do indivíduo é uma respiração observada, ocupada. É uma respiração de
combate. FANON, 1959 apud MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São
Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 284-285 [nota de rodapé].
498
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
306.
499
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento: Escritos morais e éticos. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 98-99.
211
O que não significa propor uma leitura do dispositivo político do terror de Estado como
uma razão essencialmente repressiva ou que operasse apenas por meio da coerção, do
silenciamento e da persecução. Afinal, o poder exercido sobre a vida liga-se indissociavelmente
à ideia de humanidade e aos modos de vidas que ele pretende forjar. O efeito disciplinar da
violência de Estado é potencializado por criminalizar, pela via das engrenagens jurídicas, as
múltiplas lutas e resistências à dinâmica do poder soberano desempenhado pelos agentes
estatais. Trata-se, então, de questionar, no cruzamento de mecanismos violentos e efeitos de
discurso, as práticas e o pensamento político envolvidos nessa arte específica de governo que
engendra os “monstros” a serem combatidos como inimigos do Estado e da humanidade.
Eis que essa arte de governar pelo terror produz uma manifestação específica de
autolegitimidade, na forma dos procedimentos que engendram os jogos de verdade que são
característicos dos exercícios de poder dos terrorismos de Estado. E isso em um triplo
movimento. Cria-se o problema da insegurança e da ameaça iminente, face ao menor risco de
contestação das estruturas hegemônicas ou diante de uma ação de violência contra o Estado.
Depois, dissemina-se o medo associado à figura e aos traços daqueles que são potencialmente
mais perigosos. Apresenta-se, enfim, a solução final nos termos do óbvio ululante. Como se a
autoevidência do perigo encarnado na figura racializada do criminoso/terrorista/delinquente
exigisse técnicas de aniquilação à altura: execuções extrajudiciais, genocídios, torturas,
mutilações, enfim, respostas rápidas de violência exterminadora.500
“[...] óbito ululante: não há nenhuma linguagem inocente”501, nos alertaria o poeta Waly
Salomão. Porque, se a guerra contra os terrorismos transnacionais necessita da figura do
estrangeiro incivilizado para se sustentar, que atenta de modo bárbaro contra a segurança e a
soberania nacionais, os terrorismos de Estado tornam-se operatórios diante da figura
ficcionalizada do inimigo interno, forjado como seu radicalmente outro e inimigo de todos:
500
Ao analisar as formas de resistência negra durante a ditadura civil-militar brasileira, Thula Pires atenta para o
fato de que as práticas seculares de desumanização e de subjugação racial, para além do mito da democracia racial,
atingiram de modo ainda mais contundente nesse período os corpos não brancos. Segundo a pesquisadora, “[...] o
racismo como fonte política do Estado, orientando historicamente o controle e o extermínio das populações negra
e indígena é não apenas um problema da ditadura, como parte constitutiva de sua possibilidade de existência e dos
termos de sua atuação.” PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de
Janeiro. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 2, 2018. p. 1062.
501
SAILORMOON [SALOMÃO], Waly. Self-portrait. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio
de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. p. 183–184.
212
502
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 152.
503
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 38.
213
perturbação localizada – ao tumultus, cujo étimo, como nos lembra Agamben, remete a tumor,
inchaço, desordem504:
A ideia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que
nascem em seu próprio corpo e de seu próprio corpo; é, se vocês preferirem, a
grande reviravolta do histórico para o biológico, do constituinte para o médico no
pensamento da guerra social.505
504
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 68.
505
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 258.
506
Sobre a relação entre segurança nacional e segurança interna, Ananda Fernandes revisita os conceitos
enunciados no manual básico da Escola Superior de Guerra, de 1976: “A Segurança Interna integra-se no quadro
da Segurança Nacional, tendo como campo de ação os antagonismos e pressões que se manifestem no âmbito
interno. Não importa considerar as origens dos antagonismos e pressões: externa, interna ou externo-interna. Não
importa a sua natureza: política, econômica, psicossocial ou militar; nem mesmo considerar as variadas formas
como se apresentem: violência, subversão, corrupção, tráfico de influência, infiltração ideológica, domínio
econômico, desagregação social ou quebra de soberania. Sempre que quaisquer antagonismos ou pressões
produzam efeitos dentro das fronteiras nacionais, a tarefa de superá-los, neutralizá-los e reduzi-los está
compreendida no complexo de ações planejadas e executadas, que se define como Política de Segurança Interna”.
BRASIL, 1976 apud FERNANDES, Ananda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. In: Antíteses, Porto Alegre/RS,
vol. 2, n. 4, p. 850, 2009. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/viewFile/2668/3937. Acesso em: 05 dez. 2018.
507
Câmara dos Deputados — Legislação Informatizada. Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Artigo 2º.
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 19 ago. 2017.
508
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
225.
214
Esta ênfase na constante ameaça à nação por parte de “inimigos internos” ocultos
e desconhecidos produz, no seio da população, um clima de suspeita, medo e
divisão que permite ao regime levar a cabo campanhas repressivas que de outro
modo não seriam toleradas. Dessa maneira, a dissensão e os antagonismos de
classe podem ser controlados pelo terror.510
509
FORTES, 1973 apud COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América
Latina. Trad. A. Veiga Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 48.
510
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru/SP: Edusc, 2005. p. 31-32.
215
A razão soberana estatal nomeia a violência. Enquanto gestor das vidas, dispor do nome
confere ao Estado a possibilidade de tipificar grupos, organizações e atos, segundo os critérios
estabelecidos pelos sistemas político-jurídicos, que refletem sua própria razão e revestem seus
mecanismos administrativos. As práticas reeditadas dessa política do nome justificam, por sua
vez, a manifestação da violência de Estado na guerra contra o inimigo, interno ou externo. A
511
AGAMBEN, Giorgio. De l’État de droit à l’État de sécurité. Le Monde, Paris, 23 dez. 2015a. Idées. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2015/12/23/de-l-etat-de-droit-a-l-etat-de-securite_4836816_3232.html
Acesso em: 05 nov. 2018. Tradução minha.
512
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 270. Tradução minha.
513
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete. (Org.). Terrorismos.
São Paulo: EDUC, 2006. p. 25.
514
Importante sublinhar que, segundo Rover, “Os encarregados da aplicação da lei são responsáveis pela busca de
fatos, ao passo que o Judiciário é o responsável pela apuração da verdade. O direito a um julgamento justo
[consiste] na determinação de qualquer acusação criminal contra si, ou de seus direitos e obrigações em um
processo legal; todas as pessoas terão o direito a um julgamento justo e público por um tribunal competente,
independente, imparcial e estabelecido por lei”. Cf. ROVER, Cees de. Para servir e proteger. Direitos humanos e
direito internacional humanitário para forças policiais e de segurança: manual para instrutores. Trad. Sílvia Backes
e Ernani S. Pilla. Genebra: Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Disponível igualmente em:
http://www.dhnet.org.br/dados/ manuais/dh/mundo/rover/index.html. Acesso em: 05 nov. 2018.
515
BATISTA, Op. cit., p. 27.
216
guerra ao terror, ao crime ou a guerra às drogas, assim, partilham de uma mesma economia
penal: reativam práticas de extermínio movidas por uma racionalidade bélica e binária.
Aniquilar os inimigos significa mirar em seus corpos concretos; enunciar padrões de
identificação e de aceitabilidade do fazer morrer; desumanizá-los lá onde a culpa se confunde
com a cor, com o pensamento contra-hegemônico, com a condição intolerável de quem transita
nas fronteiras do ser ou não-ser.
Ora, o terrorismo mais comum ao longo do século passado foi protagonizado justamente
pelos Estados. E não apenas na sequência de golpes ditatoriais e regimes autoritários, mas
igualmente por meio das guerras e ocupações neocoloniais, cujo contingente de vítimas civis é
inestimável. Porque se os Estados dispõem do poder de nomear, eles definem o problema do
terrorismo nos seus termos, exclusivamente no singular. O terrorismo, nesse prisma, refere-se
à “[...] prática violenta de grupos irregulares contraestatais”516.
Mas não nos enganemos. Os terrorismos de Estado são modalidades de violência
política bem mais constantes, abrangentes e indiscriminados que os atos delituosos designados
pelo significante “terrorismo”. O artefato explosivo do terror de Estado apresenta-se, desde
sempre, sem peias para imobilizar, intimidar ou neutralizar extensas camadas populacionais,
em inequívoco estado de polícia, enquanto, de outra via, favorece os fluxos móveis do capital
corporativo-financeiro.
Como sugere Derrida, a título de hipótese, numa interessante nota de rodapé de Filosofia
em Tempos de Terror:
516
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 71.
517
DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques Derrida. In:
BORRADORI, Giovanna.; DERRIDA, Jacques.; HABERMAS, Jürguen. Filosofia em Tempo de Terror..., Op.
cit., p. 193 (nota 7).
217
518
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 36.
218
Mortificados, indignos de vida, objetiváveis: o inimigo vira de cima para baixo a ordem
estabelecida. Ele sub-verte um estado de coisas que tem a pretensão de se manter tal e qual no
imaginário autocrático. Por isso, será preciso contê-lo de algum modo. É preciso submergi-lo
sem piedade, como um objeto lançado ao mar do qual, sabe-se, não retornará. É preciso garantir
que não retorne. Garantir concretamente, como fizeram os militares envolvidos na Operação
Condor519, que atavam aos pés dos prisioneiros políticos blocos de concreto antes de jogá-los
ao mar. Antes de seu desaparecimento total: sem corpo, sem vestígio, sem nome – absorvidos
na imensidão oceânica de água e sal.
A partir de 1955, com o objetivo de desmantelar a luta de libertação nacional na Argélia,
as tropas francesas passaram a empregar a tortura na guerra que opunha a França à sua colônia.
As formas, paulatinamente profissionalizadas e instrumentalizadas nas técnicas e nos saberes
gestados no decurso da guerra, seriam formalizadas no discurso do método da tortura, alçada à
tecnologia de exportação. A escola francesa exportou para o Brasil todo um arsenal do
terrorismo de Estado, que incluía técnicas de tortura, a eliminação física de opositores, a
expansão dos serviços de informação, a vigilância das populações civis e os voos da morte (que
as ditaduras chilena e argentina empregaram mais usualmente). A doutrina francesa,
aperfeiçoada na Guerra da Argélia (1954-1962) e exportada para as ditaduras do Cone Sul,
previa o uso dessas técnicas como um método científico.
A ditadura militar brasileira de 1964 adotou inúmeras práticas violentas, nascidas no
bojo dessa guerra colonial, justificadas por aqui devido a uma espectral ameaça comunista. A
tortura, considerada um crime contra a humanidade pela Convenção de Genebra520, foi realizada
nos porões e nunca declarada pelo regime ditatorial, apesar das incontestáveis provas,
documentos e atestados de perícias médicas. De uma configuração colonial a outra, a
inventividade nacional somou às técnicas estrangeiras outras garimpadas diretamente da
herança patriarcal-escravocrata brasileira, o que garantiu “[...] a eficiência não somente como
método de interrogatório, mas como forma de controle político”.521
519
A Operação Condor mobilizou um mecanismo de inteligência supranacional, organizado pelos regimes
repressivos das ditaduras do Cone Sul, com a finalidade de unificar o combate aos chamados “subversivos
políticos” por meio da atuação clandestina de seus aparatos repressivos. Cf. DINGES, John. Os anos do Condor:
Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
520
A tortura é tipificada como crime pelo direito internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por meio
da Convenção de Genebra (1949) e seus protocolos adicionais (1977). Além disso, a Convenção contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes foi adotada pela resolução n. 39/46 da
Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984 e entrou em vigor em 26 de junho de 1987.
521
TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade e justiça”
no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 257.
219
522
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 145.
523
A modalidade de tortura “light” ou “aceitável”, como ficou conhecida, parte do pressuposto de que um
“terrorista” sob a custódia dos agentes da lei deve ser pressionado a revelar informações úteis capazes de salvar
vidas inocentes. Algumas destas práticas mais comuns consistem na privação do sono; manter os presos em
posições estressantes por longos períodos; tortura sonora pela via do “ruído branco” ou música muito alta;
exposição a temperaturas altas ou baixas; afogamento; isolamento prolongado, dentre outras. Decorrem do uso
deste método, alucinações, psicoses, desorientação temporal e perda do senso de realidade, frequentemente
sintetizadas pelas vítimas pela expressão: “não sei quanto tempo isso durou”.
220
524
LESSA, Renato. Quanto vale a vida dos outros... São Paulo, O Estado de São Paulo, Caderno Aliás, 07 set.
2008.
525
DAVIS, Angela Y. A democracia da abolição: Para além do império, das prisões e da tortura. Trad. Artur
Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 83.
526
RUMSFELD, 2004 apud SONTAG, Susan. Sobre a tortura dos outros. In:___. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e
Discursos. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 142.
221
527
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.
528
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 18.
222
É preciso, porém, dar um passo atrás e lançar um olhar crítico para práticas largamente
empregadas e aperfeiçoadas na modernidade/colonialidade, quando se tratou de exercitar o
poder de domínio sobre populações subalternas. Pois, a tortura, nas configurações coloniais do
exercício do poder, é a regra nas sociedades estruturadas pelo racismo e pela dominação
autoritária. Fanon, citado por Mbembe, recorda que,
529
Segundo Élio Gaspari: “O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar,
apanha e fala. É sobre esta simples constatação que se edifica a complexa justificativa da tortura pela
funcionalidade”. GASPARI, Élio. A Ditadura Escancarada. vol. 1. São Paulo: Companhia da Letras, 2002. p. 37.
530
FANON, 1980 apud MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-
1 Edições, 2018. p.193.
531
GUINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: SAFATLE, Vladimir & TELES, Edson (Org.). O que resta da
ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 141.
532
PELLEGRINO, 1996 apud Idem, p. 142.
223
533
GUINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: SAFATLE, Vladimir & TELES, Edson (Org.). O que resta da
ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 136-137.
534
MILLS, Charles W., 1999 apud CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo:
Selo Negro, 2011. p. 91.
535
FANON, Frantz. Toward the african revolution: political essays. New York: Grove Press, 1994. p. 64.
536
DAVIS, Angela Y. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Trad. Artur
Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 141.
224
537
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 57-58.
225
encaram o seu emprego. Sobretudo em sociedades marcadas pela razão colonial e pelo arranjo
estrutural da violência, no cerne do qual a tortura não é mera consequência, mas modo de
funcionamento constitutivo da política de extermínio dos inimigos. E que aponta, igualmente,
para o imaginário de violência que fundamenta subjetividade, agências e instituições
atravessadas pelo expediente civilizatório, racional e marginalizante: máscaras securitárias,
desejos coloniais.
538
Para informações suplementares do caso, cf. http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/ana-rosa-kucinski-
silva/index.html. Acesso em: 20 nov. 2018.
539
A Casa da Morte é o nome pelo qual ficou conhecido o centro clandestino de tortura e execução de presos
políticos criado pelos órgãos de repressão da ditadura civil-militar brasileira. Situado em Petrópolis, no Rio de
Janeiro, e cedida ao exército por um empresário alemão entusiasta do regime, no centro foram cruelmente
assassinados, pelo menos, 22 militantes que se opunham ao regime, malgrado o número oficial ser desconhecido.
Em 21 de novembro de 2018, o Conselho Municipal votou pelo tombamento do imóvel. A decisão, a ser
sancionada pelo executivo municipal, prevê que a Casa seja transformada em um memorial.
226
540
De acordo com o historiador Carlos Fico, “O AI-5 não expressou uma mudança da natureza do regime militar,
que já havia se inaugurado durante o governo de Castelo [Branco], pois houve tortura e toda sorte de violência
institucional antes dele. Com ele, houve decerto, uma mudança de escala, mas não de natureza”. FICO, Carlos. O
golpe de 64: Momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 120.
541
ALMEIDA, Criméia Alice Schmidt de. & TELES, Janaína de Almeida et al. Dossiê ditadura: mortos e
desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985. São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009.
542
TODOROV, 1993 apud CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el
crimen como medios de control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 29.
543
KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
227
pai de uma desaparecida política, para reencontrá-la. Procura kafkiana sempre barrada por
armadilhas burocráticas, descaso administrativo e falsas informações e que culminaria na
queima de arquivo realizada pelos agentes do Estado: “[...] agora é hora de limpar os arquivos,
não deixar prova. […] Entregar a moça, onde é que esses caras estão com a cabeça? Mesmo
que eles estivessem vivos, como é que eu ia entregar, depois de tudo o que aconteceu? Não é
para acabar com as provas? Pois nós acabamos.”544
A ordem é eliminar sem deixar vestígios. A acusação de crime contra a segurança
nacional ou de envolvimento com terrorismo, que pesa sobre os desaparecidos, funciona como
alegação da não garantia de salvaguarda pelo Estado e na sua conversão de vida torturável e
passível de ser desaparecida pelos esquadrões policiais da morte. Isto na medida em que “[...]
a forma de repressão que gera o desaparecido caracteriza-se pela supressão de todo elemento
que permita comprovar a detenção arbitrária e o destino das vítimas, cuja intenção é justamente
dissimular as provas”.545
O terror do desaparecimento possui ainda uma outra face lancinante. A ausência de
corpo ou restos mortais, a inexistência de informações e a manutenção do segredo torna-se um
modo de perpetuar a tortura. Pois, a angústia da morte anônima, presumida, mas não
confirmada, impede que se inscreva simbolicamente a existência das pessoas em um ciclo
fechado de vida. Ao lidar com a presença de uma ausência, de uma presença fantasmal, o que
se configura é uma suspensão temporal, uma interrogação diante do vazio que se coloca entre
a morte e a vida: o anacronismo de um luto sempre adiado.
Corpos insepultos, memórias assombradas, luto impossível546:
544
KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 77.
545
TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade e justiça”
no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 287.
546
Ao tratar do trabalho do luto em Espectros de Marx, Derrida faz uma consideração importante, que parece
apontar justamente nessa direção: “É preciso saber. É preciso sabê-lo. Ora, saber é saber quem e onde, saber de
quem é propriamente o corpo e onde este repousa – pois ele deve permanecer em seu lugar. Em lugar seguro. [...]
Nada seria pior para o trabalho do luto do que a confusão ou a dúvida: é preciso saber quem está enterrado onde
– e é preciso (saber – assegurar-se) que, nisso que resta dele, há resto.” DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx:
O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994. p. 25.
547
CATELA, Ludmila. Situação-limite e memória: A reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos na
Argentina. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 150.
228
548
A convenção está disponível em: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2010/12/Carta-desaparecimentos-
PORTUGUES-FINAL.pdf. Acesso em: 25 nov. 2018. Acrescente-se também a definição da Convenção
Interamericana Sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, firmada pelo Brasil em 1994, em seu Artigo II:
“Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa
ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que
atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a
reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos
recursos legais e das garantias processuais pertinentes.” Esta Convenção foi promulgada pela Presidenta Dilma
Rousseff, por meio do Decreto Nº. 8.766, em 11 de maio de 2016.
549
CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio
Vargas. Verbete: Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/sergio-fernando-paranhos-fleury. Acesso em: 21
nov. 2018.
229
Social (DOPS-SP) de São Paulo, notório torturador, poderia ter sido feita por qualquer político
democrata do Atlântico Norte, por populistas reacionários do Atlântico Sul, ou mesmo por meu
tio, negro, que, em 1964, não hesitou em compor as fileiras da marcha comemorativa do Golpe
militar. Ela consiste em justificar o uso da força, em todas as suas formas e intensidades, em
virtude do perfil imaturo das massas, amorfas, sem o qual a desordem e a indisciplina reinariam
sem obstáculos. A imagem-guia da infância, uma vez mais, é mobilizada para afirmar a
incapacidade de autonomia e a consequente tutela necessária para o controle popular e para
“pôr ordem na casa”. Que todos se submetam sem dissensão à vontade de quem manda é a
regra, por excelência, dos estados autoritários:
550
TELES, Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In:
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 303.
230
Golpes (extra)ordinários
Seja por meio de doutrinas de segurança nacional, seja pela via de atos patrióticos ou de
políticas emergenciais de combate ao inimigo multifacetado, se a violência de Estado não é a
mesma em todos momentos, o paradigma da violência excepcional, todavia, é similar: o
governo pelo terror. A implicação entre violência de Estado e governo da emergência resulta
no estado de exceção que, de formas tão diversas quanto o inimigo a que deseja conter, pode
ser declarado ora com finalidade política, ora econômica, quando se tratar de salvar a sociedade
do perigo do colapso iminente.
É importante reforçar a função dessa proximidade temporal da crise e do caos quando
estiver em jogo a intransigência de uma ordem soberana a ser executada para a proteção
coletiva. A exceção adquire, assim, a forma jurídica da gramática liberal e a forma política das
medidas de segurança em razão de periculosidade, que nada mais são do que modos de
fundamentar os apelos à prorrogação indeterminada da emergência – dilatada, capilarizada e
expandida, como a imagem difusa do inimigo.
Exercício de dever ou abuso de poder, estrutural ou factual, as fronteiras são
estrategicamente cada vez mais móveis. Porque, no interior dessa dobradura, entre a
legitimidade e seu excesso, há uma série de operações mobilizadas nos planos do direito de
intervenção para “melhor viver” – que vão da instauração dos estados de sítio e das ditaduras
até os estados de urgência. No limiar dos parâmetros legais, no ponto de tensão entre a lei e sua
negação, é em nome da segurança pública que se buscará justificar a atuação soberana:
Se atribui o direito cada vez que esse é suficientemente indeterminado para lhe
dar essa possibilidade. Mesmo que ela não promulgue a lei, a polícia se comporta
como um legislador nos tempos modernos, para não dizer o legislador dos tempos
modernos.553
551
PRIETO, Evaristo. Poder, soberania e exceção: uma leitura de Carl Schmitt. Trad. Andityas Soares de Moura
Costa Matos e Pedro Savaget Nascimento. Revista brasileira de estudos políticos, Belo Horizonte, n.º 105, p. 101-
150, 2012. Disponível em: https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-
7191.2012v105p101 Acesso em: 05 dez. 2018. p. 128.
552
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 347. Na versão original:
“La police c‘est le coup d‘État permanent”. Tradução minha.
553
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Trad. Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 99.
554
COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: O poder militar na América Latina. Trad. A. Veiga
Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 65.
555
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Nomos pantokrator: apocalipse, exceção e violência. In:
CARDOSO, Renato César; MATOS, Andityas Soares de Moura Costa (Org.). Estado de exceção e biopolítica.
Belo Horizonte: Initia Via, 2012, p. 11-66. p. 24.
232
em tempos, enquanto instrumento que assegura a colonização das instituições pelos grupos
hegemônicos nos contextos nacionais. Enquanto Estados administrativos historicamente
constituídos e pautados pela relação desigual entre cidadãos, a questão de classe interpõe-se
primordialmente quando se tratar de inserir a vida no jogo dos cálculos políticos.
Ora, notaria Schmitt, “[...] justamente porque ela [a exceção] serve a qualquer um, ela
não é neutra”556. A exceção declarada, em todos os seus estados, expressa o elo existente entre
os valores de ordem e pacificação de corte liberal e o esforço de dirimir os conflitos pela via da
eliminação de quem representa a dissenção de determinado projeto de Estado. De modo que,
longe de qualquer neutralidade, contrariamente ao que o discurso do Estado de exceção
pretende difundir e defender, “[...] a busca da estabilidade é uma ameaça para a vida política”557.
Sobretudo, quando estabilidade significa consenso, ausência de conflitos, conservação da
ordem desigual e inalteração do quadro de privilégios raciais, sociais, políticos e simbólicos
que servem para demarcar as diferenças entre classes historicamente dominantes e a massa
dominada.
Regulação e controle de fluxos, na lógica do contrato social e racial, a segurança é o que
fundamentará o exercício do poder soberano. Segurança que demanda a potencialização de um
modo de vida e a aniquilação de outros, identificados como hostis à ordem que precisa ser
preservada. Nesse sentido,
556
SCHMITT, Carl. Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. In: _____. A crise da
democracia parlamentar. Trad. Inês Lobbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 116.
557
BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. In: Kriterion, Belo Horizonte, n.
118, p. 401-415, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
512X2008000200007. Acesso em: 5 dez. 2018. p. 414.
558
SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 52.
233
necessitam ser publicizadas, de modo a criar um ambiente de temor coletivo que assegura a
efetividade política do golpe e a decisão da autoridade que define a que fins ele servirá. Pois,
ao apontar para as lacunas e para a impopularidade do governo atual, intenta-se mobilizar o
desejo de rejeição e canalizá-lo para aceitação de um estratagema que expõe, em seu sacrifício
fundador, a lógica da violência do direito estatal.
Daí a recorrência da grande demonstração de violência de Estado em períodos
subsequentes aos golpes e à transição de governo. Violência que se prolonga e se espetaculariza
como se afirmasse não como uma contradição ao sistema legal, mas como sua radicalização
legitimada por razões securitárias. Ao exceder a lei, o golpe manifesta a interface de exceção
suposta em todo regime político. Na encruzilhada do jurídico com o político, assentam-se
caminhos estreitos e perigosos, que conectam os mecanismos de funcionamento do poder que
não são meras suspensões temporais da lei, mas paradigma de governo contemporâneo.
Refeito o pacto mefistofélico, de missivas endereçadas contra o poder instituído, e das
letras da lei apagadas pelos atos de força, de golpe a golpe, permanece intacta a estrutura do
poder real: entre mortos e afogados, caçados, assassinados e depostos, a exceção soberana
alarga-se indefinidamente e com contornos cada vez mais indeterminados, movediços e
variados.
E que parece, por estranho traço genealógico, apontar para a linha de continuidade entre
a violência de Estado e as práticas patriarcais e patrimoniais da soberania, entendida como
poder de manifestação verdadeira de sua própria autoridade. Na cena do golpe de Estado e da
força ex machina do poder mobilizada para salvar a nação, ressoa ainda a velha máxima de
Quincas Borba – renovada pela roupagem diplomática e tecnocrática dos golpes gestados no
interior dos sistemas democráticos: “ – Ao vencedor, as batatas”.
234
7 ANTITERRORISMO À BRASILEIRA
Porém, a ampliação em termos genéricos e abertos dos tipos penais recobertos pelos
terrorismos dá margem para interpretações subjetivas e expansivas na categoria de “terrorista”,
559
Além de ser crime inafiançável, a Lei prevê reclusão de 12 a 30 anos em regime fechado para aqueles que forem
enquadrados em seus artigos.
560
O Decreto 3.018/99 foi promulgado pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e entrou
em vigor no Brasil em 6 de abril de 1999.
561
A Convenção entrou em vigor no Brasil em 26 de dezembro de 2005, promulgada pelo Decreto 5.639/05 do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
235
Art. 1º: Esta Lei regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição
Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e
processuais e reformulando o conceito de organização terrorista.
pública, como as polícias militares e civis, cuja tradição de violência excessiva e violação dos
direitos humanos dão a ver os perigos latentes do recurso a estas normas incriminadoras.
Normas, aliás, que perpetuam a tradição vertical das proposições de leis no país, dado
que sua aprovação, em regime excepcional, prescindiu de discussões aprofundadas e amplas
com a sociedade civil. O que se evidencia na própria redação e na letra da lei, cuja proposta
modificada pelo Senado incluiu tanto com a tipificação do crime de “apologia à tortura”, o
“terrorismo contra a coisa” – orientado para depredações – o uso flutuável do termo
“extremismo político”, subjetivando expressamente sua interpretação. E se ambos foram
retirados posteriormente pelo veto presidencial, sem dúvidas, se deveu à reação de setores
organizados da sociedade civil e às críticas de especialistas atentos às manobras político-
jurídicas em curso no país.
Penalidades desproporcionais, categorização como organização criminosa, políticas
criminais expansivas, tipos penais vagamente delineados. Ora, o objetivo de enquadrar qualquer
possibilidade de resistência política em seus dispositivos é bastante evidente. E resistência
entendida desde associações de moradores que protestem contra atentados terroristas de Estado
ou mesmo movimentos organizados historicamente perseguidos ou deslegitimados, por serem
relacionados à violência e à ocupação de propriedades improdutivas e ociosas. Pois se cabe aos
operadores do direito a interpretação acerca dos enquadramentos, não surpreende que as
imagens de “vândalos” e “terroristas” sejam intercambiáveis quando se trata de criminalizar
ações reivindicatórias.
Não é de estranhar certos traços de aproximação entre este ordenamento jurídico e
alguns dispositivos da Doutrina de Segurança Nacional brasileira, em que pese os distintos
contextos. Familiaridade incômoda, é certo. Veja-se, por exemplo, o juízo de valor sobre o
cunho ideológico dos atos praticados. Competiria ao juiz a definição de pertenças ideológicas,
segundo os objetivos praticados pelos movimentos ou pessoas circunscritas no tipo penal da
lei. De outro lado, determinadas filiações ideológicas, como movimentos anarquistas ou de
esquerdas revolucionárias, por si só, se configurariam como desordeiros e criminosos, com o
reforço do discurso midiático, pronto para sentença condenatória mesmo sem fundamentação.
Ou, sobretudo sem fundamentação, pois a presunção de inocência é também negada quando se
trata de “extremistas”.
Terrorismo de classe organizado, na situação de guerra vale tudo. Porque é preciso se
adiantar ao crime, como em Minority Report, e suas visões do futuro. É preciso definir o
criminoso antes mesmo de cometido o crime. E será nas fileiras de indivíduos não-brancos e de
baixo poder aquisitivo que irá se recrutar os candidatos a potenciais criminosos e terroristas,
237
ora recobertos pela figura do estuprador ora daqueles que são capazes de tudo, pois não teriam
nada a perder.
As máscaras do poder
562
Rafael Braga respondeu a dois casos que ficaram notórios pelos indícios de falha processual e abuso de
autoridade, um por “porte ilegal de artefato incendiário” e outro por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Os
critérios racial e social foram fatores determinantes em sua condenação, fundamentadas nos depoimentos de
policiais. Os dois frascos de desinfetante Pinho Sol encontrados com ele e, posteriormente, seis gramas de maconha
foram provas suficientes para condenação à pena privativa de liberdade por cinco anos, sem possibilidade de
recorrer em liberdade.
563
A Lei Estadual n.º 6.528, de 11 de setembro de 2013, ao regulamentar o artigo 23 da Constituição do Estado,
instituiu a proibição das formas de ocultação do rostos dos cidadãos com o propósito de impedir ou dificultar a
identificação pelos agentes estatais.
564
A Lei de Organizações Criminosas, n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013, regulamenta meios de obtenção de
provas não convencionais, a infiltração de agentes policiais, sanciona novos tipos penais de associação e
organização criminosas, dentre outras medidas inteiramente questionáveis, formalizadas no “calor da hora”.
565
Cabe citar, nesse sentido, o “processo dos 23”. Trata-se de processo criminal de 2014, contra 23 ativistas
acusados de integrarem organização criminosa e planejarem atos de violência direta nas manifestações. Com a
expedição dos mandados de prisão na véspera dos jogos finais da Copa do Mundo, realizada no Rio de Janeiro,
visava-se, evidentemente, dissuadir possíveis protestos pelo medo de pena semelhante. Em julho de 2018, dando
sequência à pressão criminalizante direcionada às lutas sociais, os ativistas foram condenados a penas entre cinco
e sete anos de prisão por crimes de formação de quadrilha, corrupção de menores, lesão corporal e dano
qualificado.
238
movimentos sociais. Tudo vira índice e indício de pertencimento ideológico a uma organização:
bandeiras, livros e cores adquirem a materialidade significante de artefatos a serem usados
como prova suficiente senão da participação direta, pelo menos da cumplicidade criminosa.
A disputa que se trava hoje para o veto do artigo566 que exclui os movimentos sociais
do rol do terror – incluído à ocasião de inúmeras contestações de movimentos sociais contra os
gastos exorbitantes em obras públicas que culminaram na gentrificação e na remoção forçada
de milhares de pessoas –, indica bem o que está em jogo. Pois se o objetivo é criminalizar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ou o Movimentos dos Trabalhadores
Sem-Teto (MTST), as medidas de repressão cotidianas e o urbanicídio indicam claramente a
que fins tem se direcionado os instrumentos penais do antiterror à brasileira.
As transformações acentuadas pela especulação imobiliária tem um custo elevado para
as populações mais pobres. E se favorece o capital das grandes empreiteiras, rentistas e
investidores imobiliários, de um lado, o urbanicídio aponta para a não efetivação dos próprios
instrumentos legais, elaborados para garantir o acesso e a permanência das pessoas em suas
casas, como o Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece os
princípios básicos de planejamento participativo, uso e ocupação do solo, e a função social da
propriedade.
A gentrificação olímpica, assim, deu continuidade aos processos de valorização
periférica das cidades-sede e à intensificação dos terrorismos de Estado contra suas próprias
populações marginalizadas, expulsas de regiões em processo de “enobrecimento” e
indissociáveis da higienização social em curso. Note-se como a cidade se abre como campo de
batalha internamente, com seus territórios a serem conquistas e ocupados pelas forças da ordem.
Como se no mapa da pólis se encontrasse, desde o interior, aquilo que pode enfraquecê-la: a
massa amorfa dos pobres, quando não basta mais erguer muros de concreto e tapumes para
neutralizar os “desvios” da paisagem. Na margem da zona limite, primeiro se expede a ordem;
depois, se mobiliza a necropolitica estatal de gestão dos espaços urbanos racialmente
produzidos. Não necessariamente nesta ordem.
Pois os modelos “cívico-territoriais”567 ensejam territorialidades que não se dissociam
da gestão do modelo desigual da sociedade, como lembraria o geógrafo Milton Santos. Não se
566
Há ainda os Projetos de Lei do Senado – PLS 272/2016, proposto por Lasier Maciel, e o PL 5065/2016,
elaborado pelo Delegado Edson Moreira, com o objetivo de reinserir estas tipificações, penalizando-as, e a fim de
“disciplinar com mais precisão condutas consideradas como atos de terrorismo”. Disponível para consulta em:
http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?t=196641 Acesso em: 07 dez. 2018.
567
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. p. 150.
239
tratam mais do medo dos contágios e da disseminação dos miasmas, que serviram de razão para
criação das barreiras divisórias, físicas e simbólicas, entorno das áreas mais pobres. Em
topografias marcadas pela presença cada vez mais difusa, nas grandes metrópoles, os enclaves
raciais não parecem dar mais conta do movimento expansionista de áreas “glamourizadas”,
como determinadas regiões de favela ou bairros outrora vistos como distantes dos centros
urbanos, mas reconfigurados como segmentos de mercado rentáveis, voltados para classes
médias. A pressão atura uma vez mais no movimento centrífugo da expulsão. “Barreiras de
mobilidade espacial”568: linhas de cor, governamentalidade territorial de dominação sócio-
étnico-racial.
A lógica do estado de exceção à brasileira e a seletividade penal estigmatiza grupos
criminalizados, comumente vulneráveis economicamente, no exercício necrobiopolítico
cotidiano, com a finalidade de manutenção e reforço do controle social. Às instituições policiais
é conferida a tarefa da vigilância e da fiscalização repressiva, não raro, com função similar que,
no século XIX e XX, tinham os aparatos repressivos direcionados à esquerda, comunista ou
anarquista, identificada ao terrorismo revolucionário. E no Brasil mais recente, durante a
ditadura civil-militar brasileira, com a associação entre comunistas e terroristas internos –
inimigos e não cidadãos, a serem eliminados em nome da pacificação social.
Enquanto não se redefinem as bases para aplicação racialmente direcionada das leis
punitivas no Brasil, a ideia de uma democracia real permanece idealmente bela, mas
efetivamente distante. Sobretudo, com a tentativa de redução da polifonia das multidões às
vozes-em-uníssono do consenso oligárquico e punitivista em voga. Os ruídos da ordem
tensionada não foram capazes de colocar em cheque a hegemonia dos poderes e dos grupos
dominantes. E que, de modo insuspeito, teria por consequência a escalada vertiginosa da
extrema-direita, reacionária e conservadora, que não cessou de imputar a desordem à falta de
disciplina, às leis brandas e à necessidade de endurecer as penas e os castigos para “dar o que
merece” àqueles que fazem o que querem.
A Lei Antiterror responde aos anseios securitários destes segmentos sociais ciosos por
mecanismos de punição da desordem, da qual eles mesmos se figuram distantes, mas
estranhamente próximos, envoltos por ela: fora dos condomínios, no centro da cidade, nas
dependências de empregada. Até aí não é novidade o delírio do terror à brasileira, cujo
568
ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo.
Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, USP, vol. 22, p. 108-134, 2011. p. 114.
240
Pois paz sem voz | paz sem voz | não é paz, é medo.
Walter Benjamin
Temos medo do tempo presente. O medo é o afeto que nos paralisa. Mas também é
aquele que nos coloca em guarda, em riste e em permanente atenção ao que se passa ao redor.
O tempo é ainda de homens partidos, como escreveu Drummond. De homens, mulheres e
crianças que restam e resistem aos avanços acelerados de políticas que fazem da exceção – sob
todos os estados – a prerrogativa para o exercício de morte na guerra contra o inimigo
racial/biológico.
Resistir, por outro lado, significa manter a coragem, permanecer, ficar de pé, parar. Mas,
uma parada mais próxima à suspensão que da estagnação, atenta, ativa e em deslocamento
contra a força do terror. Nesta parada há contenção – de segurar junto e manter unido o que os
terrorismos de Estado desejam estancar: o movimento, o deslocamento, a diferença.
Estado de exceção, guerra ao terror, colonialidade: a tríplice aliança das estruturas
modernas/coloniais de poder que fundamentam o governo pelo terror, paradigma da gestão
contemporânea dos corpos, dos tempos e dos espaços, das arquiteturas do medo e das
engenharias de controle social. Estruturas que reconfiguram e reativam as hierarquias racistas,
sexistas, classistas e discriminatórias, por meio da prerrogativa legal da emergência, e que
instauram esquemas legados dos empreendimentos coloniais – a exceção, por excelência,
quando a vida é modulada pelas práticas de subjugação, de extração e de fabricação do
excedente, “[...] isto é, uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou dispendida sem
reservas”569.
Formas de genocídio atualizadas, as permanências violentas e autoritárias das estruturas
de poder da colonialidade se redimensionam no éthos beligerante e na multiplicação das
guerras: às drogas, ao crime e, finalmente, a guerra total ao terror. É essa guerra que tem sido
globalmente mobilizada como artifício geopolítico de manutenção da colonialidade, que não
569
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
73.
242
Implica continuar a perseguir na vida de hoje os sinais que indicam esses retornos
do colonialismo ou sua reprodução e sua repetição nas práticas contemporâneas –
sejam elas práticas de guerra, formas de menosprezo e de estigmatização das
diferenças ou, mais diretamente, formas de revisionismo, que, a pretexto do
fracasso dos regimes pós-coloniais, procuram justificar ex post aquilo que foi,
antes de tudo, como sugeriu Tocqueville, um governo grosseiro, venal e
arbitrário.570
570
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
275.
243
571
Agradeço à Malu Stanchi pela indicação do texto de Thula Pires, intitulado “Não solte a minha mão, que eu
não soltarei a de vocês”. Nele, a autora atenta para o fato de que: “O lugar de poder ocupado por Marielle a
aproximou de uma zona (a do ser) e abriu a porta para que seu sangue fosse sentido em outras cercanias. Mas, ela
nunca ocupou verdadeiramente esse lugar. E, foi a morte brutal e sem ameaças anteriores que fortalecem essa
hipótese. Estava-se diante de corpos que habitam a zona do não ser. Sobre eles, historicamente se pode dispor,
violentar e matar sem necessidade de aviso ou ameaças. São corpos sobre os quais, normalmente, não há luto. Não
que a zona do não ser não chore, não vele os seus e suas, não seja corroída a cada vida perdida. Mas, sua dor não
é reconhecida como dor válida. Como dor humana. Como dor política.” PIRES, Thula. “Não solte a minha mão,
que eu não soltarei a de vocês.” Empório do Direito, Florianópolis/SC. 19 mar. 2018. Disponível em:
http://emporiododireito.com.br/leitura/nao-solte-a-minha-mao-que-eu-nao-soltarei-a-de-voces. Acesso em: 21
dez. 2018.
572
CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato Sergio de; BUENO, Samira; VALENCIA, Luis Iván; HANASHIRO,
Olaya; MACHADO, Pedro Henrique G.; LIMA, Adriana dos Santos. Atlas da Violência 2017. Rio de Janeiro:
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada; FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública, jun. 2017.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 24 jun. 2018.
573
Segundo Asante: “Um agente, em nossos termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em
função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários
244
colonizador, “o bem” – polo hegemônico do poder e das forças da ordem –, pode exterminar o
colonizado/inimigo racial desumanizado, identificado com “o mal” – fonte de emanação de
toda negatividade:
Por esse motivo, o governo da emergência, hoje, está na ordem do dia. Há capitalização
política e econômica do medo, ativamente mobilizado na bolsa de temores contemporânea, e
instrumentalizado para criação do indivíduo perigoso. Porque, se não há guerra sem inimigos,
é preciso recriá-los constantemente. É necessário reanimar a ameaça, difusa e esparsa, mas
sempre à espreita. E, finalmente, estabelecer o paradigma da guerra e da excepcionalidade como
operadores ativos do controle dos corpos, dos fluxos e das formas de vida, com a justificação
prévia do assassinato político e do extermínio perpetrados segundo a lógica da violência racial.
O fato é que “[...] alguns corpos e alguns territórios racializados recebem a preferência
na distribuição das chances de vida e morte”575. Espacializada, a política de morte e de
silenciamento é sustentada por um padrão mórbido das relações raciais e de
governamentalidade, que determina quais geografias e corpos serão alvos privilegiados da
intervenção violenta. Firma-se, então, a necessidade de contestar o modelo de guerra e o padrão
mórbido que ele faz funcionar:
para o avanço da liberdade humana. Em uma situação de falta de liberdade, opressão e repressão racial, a ideia
ativa no interior do conceito de agente assume posição de destaque. [...] é importante observar o conceito de
agência em oposição ao de desagência.” ASANTE, Molefi K. Afrocentricidade: notas sobre uma posição
disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.) Afrocentricidade: Uma abordagem epistemológica
inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-94.
574
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In:
LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 83.
575
ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo.
Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, USP, vol. 22, p. 108-134, 2011. p. 117-118.
245
576
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 20.
577
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Prefácio. In: STREVA, Juliana Moreira. Corpo, raça, poder – Extermínio
negro no Brasil: uma leitura crítica, decolonial e foucaultiana. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018. p. 11.
578
MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da
modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 38.
579
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In:
LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 83.
246
cerne, já que a questão da raça está implicada na questão do Estado-nação e dos pactos em torno
da segurança nacional. Por vezes, ela se mescla tão inextrincavelmente às narrativas da defesa
que somente o corte racial permite um olhar mais acurado para seus enunciados e para as
práticas de objetificação e de desumanização predatória, de criminalização e de marginalização
de que se nutrem, historicamente, esses discursos racistas:
Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza
somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada
um dos âmbitos. A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz
instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o
classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos
da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade
pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno,
com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política.580
580
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.).
A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005. p. 126.
581
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões
básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 29.
247
582
Cf. MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324,
2008.
583
Como lembra Fanon, “[...] no mundo branco o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em
terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.” FANON, Frantz. Pele negra,
Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 104.
584
GROSFOGEL, Ramon. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.) Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 65.
585
FOUCAULT, Michel. Est-il donc important de penser? [1981]. Entrevista com Didier Eribon. Libération, n°
15, 30-31 maio de 1981. In:_____. Dits et écrits II. Paris: Gallimard, 2001b. p. 999. Na versão original: “La critique
consiste à débusquer cette pensée et à essayer de la changer: montrer que les choses ne sont pas aussi evidentes
248
qu’on croit, faire em sorte que ce qu’on accepte comme allant de soi n’aille plus de soi. Faire la critique, c’est
rendre difficile les gestes trop faciles”. Tradução e grifos meus.
249
586
ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: _____. Prismas. Trad.: Augustin Wernet e Jorge
Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998. p. 26.
587
O termo é de Angela Y. Davis em seu “A democracia da abolição: Para além do império, das prisões e da
tortura”, op. cit.
588
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
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589
Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Um Departamento Francês de Ultramar: Estudos sobre a formação da cultura
filosófica uspiana. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1994.
250
ANEXO A
A.1
A.2
ANEXO B
Acervo pessoal. Camillo Monteiro dos Santos na “Marcha da Vitória”, no Rio de Janeiro, em
1º. de abril de 1964
252
ANEXO C
590
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões
básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
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referido esquema, de inspiração fanoniana, encontra-se na página 26.
253
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