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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DIEGO DOS SANTOS REIS

O GOVERNO DA EMERGÊNCIA:
Estado de Exceção, Guerra ao Terror e Colonialidade

RIO DE JANEIRO
2019
DIEGO DOS SANTOS REIS

O GOVERNO DA EMERGÊNCIA:
Estado de Exceção, Guerra ao Terror e Colonialidade

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do
título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco

RIO DE JANEIRO
2019
CIP - Catalogação na Publicação

Reis , Diego dos Santos


R375g O GOVERNO DA EMERGÊNCIA: Estado de Exceção,
Guerra ao Terror e Colonialidade / Diego dos Santos
Reis . -- Rio de Janeiro, 2019.
274 f.

Orientador: Guilherme Castelo Branco.


Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
2019.

1. Estado de Exceção. 2. Segurança. 3.


Colonialidade. 4. Terrorismos. 5. Filosofia Política
Contemporânea . I. Castelo Branco, Guilherme,
orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
O GOVERNO DA EMERGÊNCIA: Estado de Exceção, Guerra ao Terror e Colonialidade

Diego dos Santos Reis

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Filosofia.

Aprovada em 12 de março de 2019, por:

_________________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco (Orientador)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_________________________________________________
Profa. Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

_________________________________________________
Prof. Dr. Wanderson Flor do Nascimento
Universidade de Brasília

_________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_________________________________________________
Prof. Dr. Wallace dos Santos de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Suplentes

Profa. Dra. Adriany Ferreira de Mendonça – UFRJ


Prof. Dr. Samir Haddad – UNIRIO

Rio de Janeiro
2019
À Nirinha, minha mãe – pois sua ausência em
mim demora.
Ao prof. Ney e à Iyá N’lá Beata de Yemonjá, voz
de muitas águas.
Marielle, presente!
Anderson, presente!
Agradecimentos

Escrever uma tese é, antes de tudo, uma tarefa obstinada e quase obsessiva. Linha por
linha, na tessitura de um exercício lento e contínuo, este trabalho foi se escrevendo. Às vezes,
com desvios e deslocamentos tão radicais que me pareciam, como as matrioskas russas, teses
dentro de teses, numa encruzilhada inesgotável de caminhos possíveis. Este trabalho não
poderia encontrar sua forma final, todavia, sem a co-laboração, a presença, a ajuda e o afeto de
pessoas imprescindíveis. Nenhum agradecimento seria capaz de dimensionar o que devo a elas.
Há várias pessoas a quem me sinto impelido a expressar minha gratidão por compartilhar
comigo a leitura, sugestões e advertências essenciais para a realização desta tese, sem que, no
entanto, se complete este estranho gesto de endereçamento que se pretende em uma dedicatória.
À minha mãe, Nirinha, em sua memória. Presença constante em minha travessia e
saudade que em mim mora – e demora.
Ao Professor Ney, nome que repito infinitamente em sua ausência, e que sobre-vive
em mim – afinal: “o que morre quando se morre?”1: gratidão incalculável.
Ao Professor Dr. Guilherme Castelo Branco, pela orientação, amizade e entusiasmo
ao longo desses dez anos de pesquisa. Quando penso nessa década corrida, me recordo do
graduando de 2009, suspenso nalgum lugar da memória. Sala cheia, texto em mãos, escuta
atentíssima para ouvi-lo ler e comentar O sujeito e o poder, de Foucault. Esta imagem resta
como uma das lembranças mais bonitas e vivas dessa minha Recherche. Ressoa nessa voz o
indissociável laço entre filosofia e vida e política. Esta herança que lego, infiel como todo
herdeiro, é também a responsabilidade de uma tarefa para a qual tento me colocar à altura: ser
professor, ensinar e aprender com seriedade, mas sem sisudez. Nesses tempos sombrios, de
vales de lágrimas diariamente renovados, a alegria é ainda a prova dos 9, como nos recorda
Oswald. Obrigado, Guilherme.
Àquelas e àqueles que aceitaram prontamente a tarefa de sentar à mesa e compor a
banca-banquete, que muito me alegra e me honra: Thula, Uã Flor, Rafael e Wallace. À Carla
Rodrigues, agradeço pelas considerações imprescindíveis na banca de qualificação deste
trabalho. À Thula, agradeço, especialmente, pela generosidade e por apontar outras lentes de
análise possíveis: mais coloridas e mais ao Sul – “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”: nunca
é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás.

1
ROUBAUD, Jacques. Retrato em meditação, V. In:____. Algo: preto. Trad. Inês Oseki-Dépré. São Paulo:
Perspectiva, 2005. p. 75.
À Pri, minha irmã, pela partilha dos caminhos, desde o começo; pelos laços que nos
unem em 3a. pessoa: nós e Theo, afilhado que a vida me deu. Ao Davi e à Bia, que enchem o
dindo de alegria. O singularmente novo, em cada nascimento, é a nossa velha e obstinada
esperança renovada, que teima em acreditar em dias melhores para estes que chegam. Oxalá!
Aos familiares queridos, que dividem os caminhos, os afetos e a pertença a uma raiz
que nos é comum. Ao meu pai, Ivo, ao meu irmão Iuri, à dinda Leo, ao dindo Leo, à dinda Nete,
e aos primos-irmãos de muitas vidas: Everson, Tati, Vivi e Érica. À dindinha Carminha,
admiração, amor e gratidão sem fim.
Agradeço imensamente à Thati que, ao longo desses 10 anos de amizade, me ensinou
muita coisa, sobretudo, a generosidade, o carinho e a lembrança reiterada de que meus “ombros
suportam o mundo”. Obrigado por escrever, por sobre a letra de Montaigne, tecendo
amorosamente palavra por palavra na superfície sinuosa de nossas vidas, a máxima que toda
amizade parece condensar no encontro certo de duas vidas: “porque era ela e porque era eu”.
Kairós...
À Malu, entre tantos séculos, entre tantos anos, que sorte a nossa. Na travessia desse
grande sertão dos nossos trópicos, M., seria difícil sem você. Sem a força do olhar que reflete
o tempo, águas profundas de sal, de sol e de mistério: meu amor e minha guerra. A estrada
comum é o chão da comunidade, do passo-a-passo, da continuidade do que, em nós, é projeto
e confiança em toda vida por vir: semente, alegria e doação. Ayò, ayomide!
Às amigas e aos amigos queridxs, Wallace, Eduardo, Mônica, Mariana, Lucio,
Andrea, Flora Manga, André, Gabriel, Julia e Tia Deborah. À Marcelita, que muito me ajudou
a forjar ferramentas de leitura crítica, desde os primeiros anos do ensino médio no Pedro II, e a
me atentar a um mundo que não cessa de nos interpelar e de exigir leituras a contrapelo. Aos
amigos do curso de Teoria do Teatro da UNIRIO: Rodrigo, Renata, Socorro, Ana Cecília,
Marília, Raquel. Aos amigos do coração: Victor, Vanessa e Érica. À Iris-bela: alegria dos meus
caminhos. Ao Felipe, pelas travessias partilhadas da vida que, na urdidura do cotidiano,
transformaram a matéria-viva de nossas existências na narrativa comum que nos fortalece.
À Flora Süssekind, diálogo primordial que me faz tremer a língua e o pensamento,
cuja herança carrego inscrita em cada linha deste trabalho. Porque um dia, Flora, com passo de
prosa, você me disse que o ensaio é movimento, vaivém na cadência auto-reflexiva do
pensamento. E que ensaiar uma outra escritura é também um gesto político. Nas batalhas da
linguagem, é preciso exercitar uma escrita só-lâmina, a mais crítica, “voraz e gráfica” para
dissecar “o anverso das coisas”. E nisso descobrir a matéria bruta que “não é de dentro”, mas
“é como a casa, que é de fora”. Como o olhar, mediado por visões de um horizonte comum:
inventário do tempo, notas, curvas e silêncios. Imaginar.
Ao Ilé Omiòjúarò, a casa das águas dos olhos do caçador e de muitos sonhos de além-
mar, forjados na comum-unidade de asè. Junto a nossos ancestrais, em sua memória, pelos
valores de partilha e coletividade da escuta e do respeito, na luta contra toda forma de tirania.
Porque ali, nas sombras do Iroko e por entre suas folhas que nos ensinam a espessura do tempo,
nos reconstituímos em um-só-corpo. Ao Bábà Adailton, à Iyákekeré mi Regina e à Iyá Nlá
Beata de Yemonjá, porque nossos passos vêm de longe... É uma encruzilhada de tempos
ancestrais e de resistências imemoriais. Olorum modupé, Òrìsà. Laroyé, Èṣù! Iyá Ivete, Iyá
Doya, Ekeji Stela, Ekeji Lúcia, Ajoiyé Lis, Egbon mi Neuza: mães amadas. Ao Asògbá Gelson.
Aos irmãos e irmãs: Shirlene, Tom, Thiago, Thula, Dandarinha, Sol, Iazana, Tati, Leandro,
Marina, Vanessa, Gláucia, Vimu, Rodrigo, Taiwo, Kehinde.
Às amigas e aos amigos professores da Escola Politécnica de Saúde da FIOCRUZ:
Verônica, Márcio, Tânia, Valéria, Ana, Carol, Inês, Bianca, Felipe e Viviane. Aos estudantes e
professores do Colégio Pedro II, do Colégio de Aplicação da UERJ e da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ, doces-bárbaros. Ao Bruno Bahia, arché. À Juliana Lira,
à Aline do Carmo e à Joana Tolentino, cujas vozes combativas e corajosas redefiniram os
contornos da tarefa do ensino de filosofia para mim.
Às professoras e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
UFRJ, que não se furtam aos debates prementes da filosofia contemporânea, em cujas
provocações e gestos críticos encontro inspiração e alegria para seguirmos juntxs na caminhada.
Em especial, à professora Carla Rodrigues e aos professores Rafael Haddock-Lobo, Guilherme
Castelo Branco, Adriany Ferreira e Filipe Ceppas. Os acertos são deles também, sem qualquer
dúvida; os erros, titubeios e hesitações são todos meus.
Ao Institut d’Études Politiques de Paris – SciencesPo e ao prof. Dr. Fréderic Gros, pela
orientação ao longo do estágio doutoral no ano de 2017, em Paris. À Marie-Helène Kremer,
pela generosidade do acolhimento e pela ajuda diante do estranho mundo kafkiano dos papeis,
cartas amontoadas, firmas, selos, carimbos e processos-sem-fim da aparelhagem burocrática.
Às companheiras e aos companheiros da jornada doutoral em Paris, crème de la crème: Rafa,
Rubão, Ana, Paula, Juliana, Bruno, Lari, Nana, Luiz Arthur, Mme. Laya, Ana Carolina e
Catarina.
Ao PPGF/UFRJ – à Sônia e à Dina, sempre. Generosidade sem fim...
Ao CNPq e à CAPES pelas bolsas de pesquisa que me permitiram levar adiante as
questões que orientam esta tese, ainda que os tempos neste país, ao longo do último triênio, em
meio a golpes, cortes abruptos orçamentários e reformas hediondas, tenham sido tão nefastos
para a pesquisa acadêmica. É preciso ressaltar sempre a importância da liberdade acadêmica, a
defesa do pluralismo de ideias e da autonomia universitária – sobretudo, em contextos marcados
pelo autoritarismo, pela censura e pela verticalidade do “cumpra-se”, em tudo oposta ao
compromisso com o pensamento crítico. Sem o exercício da crítica radical e da liberdade de
expressão, a filosofia se torna mero compêndio de letras mortas. Pensar sem temer.
Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de
livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no
mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que
eu também preciso. Amém para nós todos.

Clarice Lispector, A Hora da Estrela

O que esperamos na ágora reunidos?


É que os bárbaros chegam hoje
...
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros, o que será de nós?
Ah! Eles eram uma solução.

Konstantinos Kaváfis, En attendant les barbares

Podemos dizer que a política trabalha secretamente no sentido da produção de


emergências.

Giorgio Agamben
RESUMO

REIS, Diego dos Santos. O GOVERNO DA EMERGÊNCIA: Estado de Exceção, Guerra


ao Terror e Colonialidade. 2019 274 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Este estudo tem por objetivo analisar os procedimentos de governo erigidos a partir da política
de “guerra ao terror”, de suas estratégias, táticas e alvos. Nesta pesquisa se intenta pensar, em
uma perspectiva filosófico-política, os instrumentos analíticos capazes de produzir espaços de
legibilidade destes governos da/pela emergência, bem como as implicações político-jurídicas
advindas desta paisagem de guerra ao terror. Na tentativa de compreensão substantiva destes
problemas e discursos securitários, com adensamento crítico das discussões, tratou-se de adotar
uma perspectiva decolonial, que reconhece os efeitos persistentes da colonialidade nas
sociedades subalternizadas, na interface entre a luta por direitos sociais e a anomia; entre a
proteção da vida humana e seu extermínio sumário. São as consequências de uma racionalidade
de governo racista e colonial que este trabalho pretende discutir, tendo por ponto de partida o
problema do governo da emergência em contextos de terror, e do exercício do poder da guerra
no campo dos conflitos contemporâneos – sobretudo, das guerras ditas “preventivas” e as
intervenções humanitárias em nome da tutela dos direitos humanos e da democracia liberal. É
necessário, então, pensar a construção discursiva do terrorista racializado, bem como a
emergência da figura do imigrante na política global, que demonstra as tensões entre as ideias
de cidadania, de identidade nacional, dos direitos humanos e dos povos, e suas representações
como ameaças permanentes ligadas ao terror. Por conseguinte, o eixo em que se concentra esta
pesquisa é a discussão acerca das racionalidades das políticas de segurança atuais e da
colonialidade do ser/poder/saber, tendo por aporte teórico a interlocução estabelecida por
pensadores e pensadoras contemporânexs com a tradição da filosofia política.

Palavras-Chave: Estado de exceção; Segurança; Colonialidade; Terrorismos;


Governamentalidade.
ABSTRACT

REIS, Diego dos Santos. THE EMERGENCY GOVERNMENT: Exception State, War on
Terror and Coloniality. 2019 274 f. Thesis (Doctorate degree in Philosophy) – Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

The purpose of this study is to analyze government procedures that are based on the "war on
terror" policy, strategies, tactics and targets. This thesis seeks to think, from a philosophical-
political perspective, the analytical instruments of understanding of these governments of the
emergence, as well as the political-juridical implications of this landscape of war on terror. In
an attempt to substantively understand these issues and securitary discourses, with a critical
consolidation of the discussions, we sought to adopt a decolonial perspective, which recognizes
the persistent effects of coloniality in subaltern societies, in the interaction between the struggle
for social rights and anomie; between the protection of human life and its decisive
extermination. It is the consequences of a rationality of racist and colonial government that this
thesis aims to discuss, starting with the problem of government of emergency in contexts of
terror, and the exercise of the power of war in the field of contemporary conflicts – especially,
the so-called "preventive" wars and humanitarian interventions in the name of the protection of
human rights and liberal democracy. It is necessary, then, to think the discursive construction
of the racialized terrorist, as well as the emergence of the immigrant figure in global politics,
which demonstrates the tensions between ideas of citizenship, of national identity, of human
rights, and their representations as permanent threats linked to terror. Therefore, the focus of
this research is the discussion about the rationalities of current security policies and the
coloniality of being/power/knowledge, having as a theoretical contribution the dialogue
established by contemporary thinkers with the tradition of political philosophy.

Keywords: State of Exception; Security; Coloniality; Terrorisms; Governmentality.


RESUMEN

REIS, Diego dos Santos. EL GOBIERNO DE LA EMERGENCIA: Estado de Excepción,


Guerra al Terror y Colonialidad. 2019 274 f. Tesis (Doctorado en Filosofía) - Instituto de
Filosofía y Ciencias Sociales, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Este estudio tiene por objetivo analizar los procedimientos de gobierno erigidos a partir de la
política de “guerra al terror”, de sus estrategias, tácticas y blancos. En esta investigación se
intenta pensar, desde una perspectiva filosófico-política, los instrumentos analíticos capaces de
producir espacios de legibilidad de estos gobiernos de la emergencia, así como las
implicaciones político-jurídicas derivadas de este paisaje de guerra al terror. En el intento de
comprensión sustantiva de estos problemas y discursos securitarios, con adensamiento crítico
de las discusiones, se trató de adoptar una perspectiva decolonial, que reconoce los efectos
persistentes de la colonialidad en las sociedades subalternizadas, en la interfaz entre la lucha
por derechos sociales y la anomia; entre la protección de la vida humana y su exterminio
sumario. Son las consecuencias de una racionalidad de gobierno racista y colonial que este
trabajo pretende discutir, teniendo por punto de partida el problema del gobierno de la
emergencia en contextos de terror, y del ejercicio del poder de la guerra en el campo de los
conflictos contemporâneos – sobre todo de las guerras dichas "preventivas" y las intervenciones
humanitarias en nombre de la tutela de los derechos humanos y de la democracia liberal. Es
necesario entonces pensar la construcción discursiva del terrorista racializado, así como la
emergencia de la figura del inmigrante en la política global, que demuestra las tensiones entre
las ideas de ciudadanía, de identidad nacional, de los derechos humanos y de los pueblos, y sus
representaciones como amenazas permanentes vinculadas al terror. Por consiguiente, el eje en
que se concentra esta investigación es la discusión acerca de las racionalidades de las políticas
de seguridad actuales y de la colonialidad del ser/poder/saber, teniendo por aporte teórico la
interlocución establecida por pensadores y pensadoras contemporáneos con la tradición de la
filosofía política.

Palabras Clave: Estado de excepción; Seguridad; Colonialidad; Terrorismos;


Gubernamentalidad.
RÉSUMÉ

REIS, Diego dos Santos. LE GOUVERNEMENT D’URGENCE: État d'exception, Guerre


contre le Terrorisme et Colonialité. 2019 274 f. Thèse (Doctorat en Philosophie) – Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Cette étude vise à analyser les procédures de gouvernement issues de la politique de la « guerre
contre le terrorisme », de ses stratégies, tactiques et cibles. Dans cette recherche, nous essayons
de penser, d’un point de vue philosophique et politique, les instruments analytiques de
compréhension de ces gouvernements d’urgence, ainsi que les implications politico-juridiques
de ce paysage de guerre contre le terrorisme. Pour essayer de comprendre en profondeur ces
problèmes et les discours sécuritaires, avec une consolidation critique des discussions, une
perspective décoloniale a été adoptée, qui reconnaît les effets persistants de la colonialité dans
les sociétés subalternisées, dans l'interface entre la lutte pour les droits sociaux et l'anomie;
entre la protection de la vie humaine et son extermination décisive. Ce sont les conséquences
d’une rationalité de gouvernement raciste et colonial que cette thèse a l’intention de discuter,
prenant comme point de départ le problème du gouvernement d’urgence dans les contextes de
terreur et de l'exercice du pouvoir de guerre dans le domaine des conflits contemporains – en
particulier les guerres dites « préventives » et les interventions humanitaires au nom de la
protection des droits de l'homme et de la démocratie libérale. Il faut donc penser à la
construction discursive du terroriste racialisé, ainsi qu’à l’émergence de la figure de
l’immigrant dans la politique mondiale, qui montre les tensions entre les idées de citoyenneté,
d’identité nationale, des droits de l'homme et des peuples et leurs représentations en tant que
menaces permanentes liées au terrorisme. Par conséquent, l’objet de cette recherche est la
discussion sur les rationalités des politiques de sécurité actuelles et la colonialité de l’être / du
pouvoir / du savoir, ayant comme contribution théorique le dialogue établi par des penseurs
contemporains avec la tradition de la philosophie politique.

Mots-clés: État d’exception; Sécurité; Colonialité; Terrorismes; Gouvernamentalité.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI-5 Ato Institucional Nº. 5

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados

CICTE Convenção Interamericana Contra o Terrorismo

CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

CNV Comissão Nacional da Verdade

CONADEP Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

EI Estado Islâmico

ETA Euskadi Ta Askatasuna ("Pátria Basca e Liberdade")

EUA Estados Unidos da América

FBSP Fórum Brasileiro de Segurança Pública

HAMAS Ḥarakat al-Muqāwamat al-Islāmiyyah (“Movimento de Resistência Islâmica”)

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IRA Irish Republican Army (“Exército Republicano Irlandês”)

ISIS Islamic State of Iraq and Syria (“Estado Islâmico do Iraque e da Síria”)

ONG Organização Não-Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte

OUA Organização da Unidade Africana

PMRJ Polícia Militar do Rio de Janeiro

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

UA União Africana

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

UPP Unidade de Polícia Pacificadora


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO – PÓLVORA & POESIA...........................................................................17

1.1 O EXTERMINADOR DO FUTURO...............................................................................................18


1.2 NOTAS PARA UM COMEÇO........................................................................................................25

2 (DES)GOVERNOS E LIBERDADES................................................................................35

2.1 O TERROR NOS TEMPOS DO CÓLERA........................................................................ 45

2.2 UM ENTRELAÇAMENTO: TERRORISMOS E BIOPOLÍTICA.....................................56

2.3 NECROPOLÍTICAS...........................................................................................................64

3 OS VELHOS E OS NOVOS TERRORISMOS................................................................70

3.1 ESTADOS EM GUERRA.................................................................................................. 75

3.2 GUERRA AO TERROR.....................................................................................................80

3.3 ATENTADO AO PODER..................................................................................................84


3.3.1 Sob o signo de Marte............................................................................................ 92
3.3.2 O Islã dos contos de fábulas: as mil e uma noites da guerra..........................102
3.3.3 A África espectral e o terrorismo epistêmico...................................................112

4 OS DIREITOS HUMANOS..............................................................................................126

4.1 A INTERVENÇÃO ARMADA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS................................137

4.2 O DESUMANISMO DO OUTRO HOMEM: REFUGIADOS, APÁTRIDAS,


CLANDESTINOS..................................................................................................................152

5 DEMOCRACIA, NEOLIBERALISMO E RAZÃO (BA)BÉLICA........................... ...166

5.1 O FUNDAMENTALISMO ECONÔMICO......................................................................171

5.2 A RAZÃO CRIMINOLÓGICA NA ERA NEOLIBERAL...............................................183


6 TREMOR E TERROR: DO ESTADO DE TERROR AOS TERRORISMOS DE
ESTADO................................................................................................................................203

7 ANTITERRORISMO À BRASILEIRA..........................................................................234

8 CONCLUSÃO PARA UM COMEÇO..............................................................................241

ANEXOS................................................................................................................................250

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................253
17

1 INTRODUÇÃO – PÓLVORA & POESIA

O terror abre-se assim, como uma alcachofra, em camadas sucessivas rumo


a um centro sempre adiado e cada etapa, cada revelação, é somente a infância
do terror futuro e completo.

Nuno Ramos, Cujo

Sempre evitei falar de mim,| falar-me. Quis falar de coisas.| Mas na seleção
dessas coisas | não haverá um falar de mim?

João Cabral de Melo Neto, Dúvidas apócrifas de Marianne Moore

“it’s war, baby, c’est la guerre, mon amour”2. O verso de Alberto Pucheu em Para que
poetas em tempos de terrorismos? poderia figurar como uma espécie de epígrafe dos últimos
tempos. Epígrafe perversa, é bem verdade, que condensa no seu duplo registro, linguístico e
idiomático, tanto a virulência seca da justificação dos atos institucionais em tempos sombrios
quanto o ardil diplomático dos vocativos que une, simultaneamente, o amor e a guerra.
Se o amor pode ser também uma experiência bélica, como nos lembra outro poeta, João
Cabral de Melo Neto, nos três mal-amados – “o amor comeu minha paz e minha guerra”3 –, a
guerra, por sua vez, dificilmente pode ser uma história de amor. Mesmo se aceitarmos a
definição psicanalítica de que o amor é “dar o que não se tem a alguém que não o quer”4, o
princípio da guerra é a aniquilação total do outro. Não se trataria mais de se endereçar a um
objeto de desejo, mas de realizar o puro desejo de reduzir tudo a nada – terra arrasada que
destrói mesmo as condições de existência e de resistência do outro. No amor e na guerra, diz o
provérbio, não há pessoas certas.
Todavia, persiste algo nessa imagem que inquieta. Afinal, o que parece unir em seus
antípodas o amor e a guerra é a impressão da impotência diante do imponderável e de algo que
parece faltar: às vezes, uma língua comum; noutras, a compreensão de um “corpo estranho e
invasor” que nos encara e que devemos ou acolher ou rejeitar. E isso sob o signo totalmente

2
PUCHEU, Alberto. Para que poetas em tempos de terrorismos? Rio de Janeiro: Azogue Editorial, 2017. p. 22.
3
NETO, João Cabral de Melo. Os três mal-amados. In:______. Poesia completa e prosa. Org. Antônio Carlos
Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 40.
4
LACAN, Jacques. Seminário VIII: A Transferência. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2010.
18

desconhecido trazido pelo outro. Em ambos os casos, o que assombra é a deriva, a desorientação
e o descentramento. Oscilam a força dispersiva e a força agregadora; a vontade de anexar um
território alheio a um mesmo; a estranheza do que, de modo explosivo, faz tremer a língua e o
pensamento: movimento de amor ou de agressão.
“O político deveria ser o outro | desde o outro”, escreve a poeta Danielle Magalhães
em Quando o Céu Cair5. O Outro, que é a figura essencial de toda política, supõe dissenção e
diferença. É a seu respeito que Aristóteles recorda que a tirania significa a vontade de um sobre
a comunidade política e, por isso, não poderia constituir a melhor forma de governo6. E, de
modo similar, Hannah Arendt, quando afirma que a “política diz respeito à coexistência e
associação de homens diferentes”7.
Talvez o que a política deva aprender do amor seja o risco da queda e a vulnerabilidade
que une todos os corpos. A política, revestida pela ética da guerra, como extensão da guerra por
outros meios, como pensa Clausewitz, não concebe a vida do outro como fim, mas como meio.
Talvez o terror que assola a política seja fruto desse descompasso. Porque o amor é justamente
a ausência de qualquer garantia, como a guerra. Mas a guerra é um modo de reduzir as
diferenças às cinzas: apagar os traços, riscar os nomes e instituir a lei da força na força da lei.
Pois, como recorda Erasmo, “a guerra é doce para os que não a fizeram”. Como o amor.

1.1 O EXTERMINADOR DO FUTURO

Apocalipse now: 11 de setembro de 2001. O terror se instala nas casas e nas televisões
norte-americanas. Mal-estar, pânico e medo. Primeiro, o susto, as hipóteses desencontradas e
os três mil mortos contabilizados às centenas, de hora em hora, ao cabo do desmoronamento
das duas torres comerciais mais emblemáticas de Nova Iorque. Depois, a comoção e a revolta.
Os meios de comunicação de massa e a reação popular entre o frêmito e a surpresa. Nova Iorque,
“o epicentro do atual fluxo econômico-cultural”, e Washington, “a convergência dos fluxos
político-militares da globalização”8, estremecem sob o impacto do desastre, ainda sem uma
narrativa que lhe conferisse sentido inicialmente.

5
MAGALHÃES, Danielle. “este é um animal que tira selfie”. In:______. Quando o céu cair. Rio de Janeiro:
7Letras, 2018. p. 90.
6
ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
7
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de janeiro: DIFEL, 2008. p. 145.
8
PASSETTI, Edson. “Terrorismos, demônios, insurgências”. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete. (Org.).
Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006, p. 102.
19

Naquele momento, a imagem inatingível da modernidade/imperialidade ocidental ruía


com os edifícios esfacelados em direção ao concreto. Escombros, fumaça, destroços: universal
concreto em queda livre. O som e as imagens em looping davam ares espetaculares ao
acontecimento, que mais se avizinhava dos filmes de guerra hollywoodianos, como Platoon9
ou Nascido para matar10, do que da insólita realidade que tornava a todas e todos testemunhas
oculares do evento traumático, devido à cobertura ininterrupta dos meios de comunicação.
Se o real se ficcionalizava, a ficção, doravante, ganharia a espessura do real. Refeito do
choque inicial, o governo de George W. Bush imediatamente começa a elaborar as medidas de
resposta ao atentado – naquele momento, considerado, indubitavelmente, terrorista –, com
claro intuito de infundir o terror e o pânico generalizados à população estadunidense. Os
“terroristas”, diriam mais tarde em pronunciamentos públicos, mereciam ser punidos de modo
exemplar pela ameaça que representavam à paz das nações e pelos crimes contra a humanidade:
“imprescritíveis, inafiançáveis e imperdoáveis”. O terror já tinha rosto, nome e sobrenome.
Seguiram-se a invasão do Iraque11 e sua ocupação territorial, em uma longa guerra que
duraria dez anos; o recrudescimento das políticas de segurança, que comprimiu direitos civis,
políticos e sociais e alargou a competência do poder Executivo; a guerra do Afeganistão12, ainda
ocupado por tropas internacionais; a Lei Antiterrorismo13; o endurecimento da concessão de
vistos a estrangeiros; interrogatórios sem aviso prévio; enfim, todo um conjunto de
procedimentos ditos preventivos e profiláticos, em prol da segurança interna e da proteção da
população, previstos pelo USA Patriot Act14.

9
Platoon é um filme norte-americano de 1986, escrito e dirigido por Oliver Stone.
10
Nascido para Matar é um filme norte-americano de 1987, dirigido por Stanley Kubrick.
11
Com base na alegação de que o Iraque, sob o governo de Sadam Hussein, era um dos países patrocinadores do
terrorismo internacional, em 2003, na liderança de uma coligação composta por mais de dez países, os EUA
invadiram o Iraque.
12
Imediatamente após os atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA aliaram-se à “Liga do Norte” afegã para
combater o governo Taliban, ao qual se ligava Osama Bin Laden. O governo islâmico do Afeganistão, vencido,
foi substituído por um “governo laico democraticamente eleito”. Contudo, desde então, com o apoio norte-
americano e da OTAN, a perseguição aos Talibans e aos membros da Al-Qaeda prossegue, com vistas,
evidentemente, à sua eliminação.
13
O Presidente George W. Bush promulgaria em 14 de outubro de 2006 o Military Commissions Acts, a polêmica
lei antiterrorista, que autorizava o recurso a “métodos agressivos” nos interrogatórios com suspeitos de planejar
ou apoiar atentados terroristas.
14
A “military order” de 13 de novembro de 2001 autoriza, ainda, a “indefinite detention” dos não cidadãos
suspeitos de praticar ou colaborar em atentados terroristas, cujo processo deveria ser julgado pelas “military
commissions” norte-americanas – que, diga-se de passagem, não são tribunais militares sancionados pelo direito
internacional da guerra. Ademais, o USA Patriot Act, decreto-lei de 26 de outubro de 2001, permite a detenção
indeterminada dos suspeitos estrangeiros que ameacem a segurança nacional; a interceptação telefônica, de e-
mails, de documentos privados e postais sem necessidade de autorização do poder judiciário, entre outras medidas
de “segurança”, com a finalidade de providenciar “ferramentas apropriadas e necessárias para interceptar e obstruir
o Terrorismo”.
20

Por isso, em “defesa” da vida, da restruturação da ordem e dos valores democráticos


foi traçado, com urgência, um plano de intervenção permanente nos países do Oriente Médio.
E se, há algum tempo, o discurso teológico-salvacionista justificava os colonialismos, os
imperialismos e, até mesmo, o extermínio deliberado de grupos étnicos, raciais ou religiosos,
hoje, é em favor da defesa dos direitos humanos que toma forma, por vezes, as ações bélicas
mais truculentas cometidas contra civis15. É na trilha dos programas políticos e dos acordos de
abrangência mundial, em nome da necessidade de resguardar a vida da pessoa humana, que
parece se reafirmar frequentemente – desde o interior de suas próprias contradições –, aquilo
que Foucault polemicamente escrevia, em 1976, sobre o modus operandi das biopolíticas
estatais: “os massacres tornaram-se vitais”16.
Ora, quem serão os indivíduos suspeitos, construídos como monstros17 perigosos por
conta de sua potencial ameaça à segurança pública? Naturalizado sem muita contestação, o
perfil desse indivíduo perverso, no imaginário coletivo ocidental, é do sexo masculino,
islâmico, de pele escura, árabe ou proveniente de países do Oriente Médio ou do norte da África,
em conflito. Mas, também o negro, esse “ser-outro”, abissal. Estátuas sem linguagem nem
autodeterminação, declararia Hegel, pois sua consciência de si seria “sem universalidade”18.
E não é só isso. As identidades e as representações sociais a que se ligam
desempenham um papel central no traçado e na execução das políticas públicas de segurança,
de intervenção e de vigilância policial, na medida em que, segundo Nilo Batista, “a seleção
criminalizante opera através de estereótipos: é entre os ‘suspeitos’ que se procurará a conduta
que fundamente a criminalização”19. Condutas determinadas ontologicamente, grupos

15
Sobre esta discussão, remeto a NASSER, Reginaldo Mattar (Org.) O Silêncio das Missões de Paz. São Paulo:
EDUC/CNPq, 2012. E, de modo especial, ao artigo da professora portuguesa Daniela Nascimento, intitulado
“Humanitarismo e a ‘guerra contra o terrorismo’: de dilemas complexos a oportunidades perdidas?”. p. 197-215.
16
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1976. p. 180.
17
Já nos primeiros momentos da aula de 22 de janeiro de 1975, do curso Os Anormais, Foucault apresenta o
“monstro humano” como uma das figuras do desvio constituídas em fins do século XVIII e ao longo do XIX.
Recorda o filósofo que “A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato
do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não
apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é, num registro duplo,
infração às leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que
podemos dizer ‘jurídico-biológico’. [...] Ele é o limite, o ponto de inflexão da lei e é, ao mesmo tempo, a exceção
que só se encontra em casos extremos, precisamente. Digamos que o monstro é o que combina o impossível com
o proibido.” FOUCAULT, Michel. Les anormaux: cours au Collège de France, 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard,
1999. p. 51.
18
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Editora Vozes, 2017. p.
469.
19
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, E.; OLIVEIRA, S. (Org.). Terrorismos. São
Paulo: EDUC, 2006. p. 25. Grifos meus.
21

segmentados social e racialmente: homens-fantasma, espectros do extermínio, que trazem em


si os emblemas da morte e da ameaça do terror.
Se, de um lado, “o terror parece menos um acontecimento passado do que uma
possibilidade futura”20, quando se fala em terrorismo ou em ameaça terrorista no singular, de
outro, faz-se necessário questionar as clivagens que determinam o que é o terror, na medida em
que essas categorias são, simultaneamente, construções e fenômenos políticos atravessados por
tensionamentos de variadas ordens. Pois, certos discursos pretendem reduzir essas categorias à
“equivalente universal oculto de todos os males sociais”21, mas elas revelam, também, a
tentativa de escamotear as razões políticas que fundamentam medidas racistas e coloniais, cujo
objetivo último é o extermínio de determinados grupos étnicos, raciais ou sociais.
Não serão fortuitas, assim, as tensões com relação ao trânsito, às fronteiras e aos fluxos
migratórios, bem como as demandas de asilo provenientes de países alvos das ações de guerra
ao terror. Mas é de se estranhar, de outro lado, configurando flagrante paradoxo, a fissura no
que concerne ao preceito neoliberal, segundo o qual as fronteiras nacionais deveriam se esgarçar
em nome das redes e dos fluxos permanentes de mercadorias, serviços e pessoas. Talvez se
devesse adicionar bons fluxos, haja vista que as políticas de exclusão são crescentemente
reforçadas na tentativa de conter o perigo, que vem na bagagem ou no corpo – em seu
patrimônio biológico – de indivíduos que desafiam não só as leis, mas toda a tentativa de
compreensão de uma alteridade absolutamente outra – e, por isso, teratológica, já que “o estado
de ‘guerra ao terror’ em que se vive hoje coincide com o estado de ameaça terrorista sempre
presente, em geral, em suspensão”22. Isto posto, “qualquer securitização ideal requer
necessariamente a instauração de dispositivos globais de controle dos indivíduos e a tomada de
poder sobre um corpo biológico não apenas múltiplo, mas em constante movimento”.23
O fato é que, não havendo uma definição criminal universalmente aceita de terrorismo,
a delimitação de seu conceito jurídico-penal será também lugar de conflitos. Essas disputas
envolvem, evidentemente, complexas relações de poder para sua circunscrição interessada, de
acordo com o léxico das potências hegemônicas e a consequente criminalização de condutas e
legitimação das penas e dos castigos voltados àqueles que ameaçam desestabilizar suas

20
BORRADORI, Giovanna. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida.
Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 11.
21
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 132.
22
FERRAZ, Maria Cristina Franco. “Terrorismo: ‘nós’, o ‘inimigo’ e o ‘outro’. In: PASSETTI, Edson;
OLIVEIRA, Salete (Org.). Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006. p. 43-44.
23
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 50.
22

equações e cálculos político-econômicos. Não surpreende que, até 2013, somente cinco países
definiam penalmente o terrorismo: os EUA, o Reino Unido, a Espanha, Israel e a Colômbia –
e, a partir de 2016, o Brasil, que passaria a integrar essa lista seleta após a sanção de sua Lei
Antiterrorismo24.
Nas últimas décadas, a Organização das Nações Unidas (ONU) já examinou mais de
150 propostas de definição de terrorismo, todas rejeitadas, com a recomendação de que os 193
países-membros não as incorporassem em suas legislações. Isto porque definir os atos
tipificados penalmente como terroristas já implica uma tomada de posição que não é neutra –
e que poderia, em seu reverso, justificar medidas excessivas e restritivas das liberdades e dos
direitos civis e políticos dos cidadãos. Não esqueçamos, para citar um exemplo, que, durante
décadas, Nelson Mandela, líder anti-apartheid e da luta contra o regime segregacionista, e seu
partido, o Congresso Nacional Africano (ANC), foram considerados terroristas pelo governo
norte-americano, tendo seu nome retirado do catálogo da lista de vigilância terrorista somente
em 2008.
O “terrorista transnacional”, recoberto por formas diversas de designação racial,
adquiriu traços bem delineados: ele é arcaico, radical, fundamentalista, de pele escura, munido
de explosivos, suicida – animal selvagem. Por trás da língua bárbara, um exército de fac-símiles,
igualmente perigosos e suspeitos, cujo ódio é silenciosamente nutrido à espera de liberação. O
terrorista é a alteridade patologizada que desafia a compreensão da intelligentsia ocidental:
“oriente do oriente do oriente...”.
A identificação do islâmico com o terrorista e do negro como criminoso decantou no
imaginário coletivo as características físicas e psicológicas de um tipo, o Outro radical, que se
apresenta como interrogação indissolúvel e diferença abissal, a qual é preciso afastar de “nós”
– heterogêneos, mas coesos; diversos, mas ligados por fatores culturais, linguísticos e sociais
comuns. O Outro é o mal irredutível.
Em contexto nacional, o terrorista será o portador de uma forma íntima e epidérmica de
estrangeiridade que o marca na pele, identitariamente, como sujeito racial destinado ao
distanciamento e à clausura. Às margens do corpo social, é preciso que os processos de

24
A Lei Antiterrorismo é a denominação dada à Lei brasileira de nº 13.260/2016. Trata-se, por meio dessa lei, da
tipificação e da definição das penas para atos de natureza terrorista cometidos ou planejados em território nacional.
De acordo com o artigo 2o. dessa lei, “o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos
neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos
com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou
a incolumidade pública.” Inúmeras críticas foram feitas a essa elaboração, haja vista o risco iminente de
penalização de movimentos reivindicatórios da sociedade civil organizada. No capítulo VII desta tese, há uma
consideração sobre a seletividade penal operada pela Lei Antiterror e sua finalidade de criminalização de coletivos
políticos e movimentos sociais.
23

diferenciação delimitem distância segura, de modo a resguardar a sua “exterioridade selvagem,


passível de desqualificação moral e instrumentalização prática”25. A “consciência ocidental do
negro”, assim, fixa um marcador identitário privilegiado, a branquitude26, e, a partir desse
centro referencial, define alteridades periféricas e os desvios da norma:

O corpo, o rosto e as representações estabelecem as fronteiras que servirão de


parâmetro para definição da diferença e, por consequência, da identidade. A
determinação dessas fronteiras não ocorre naturalmente, os significados sociais e
simbólicos atribuídos a cada representação são, além de contingentes – no tempo,
no espaço e na cultura –, abertos, inacabados e disputados.27

Essa alteridade insondável e inapreensível, fabricada racialmente, suscita o medo


generalizado e a desconfiança permanente daqueles que identificam nela os miasmas do terror
e da violência oportunista, à espreita para impingir o maior dano possível aos cidadãos de bem,
se não com bombas e tiros, com os prejuízos que causam aos cofres públicos, quando estão fora
do mercado de trabalho formal, do sistema de contribuições sociais ou em situação de
permanência ilegal – condenados, portanto, de antemão.
“Se a cena racial é um espaço de estigmatização sistemática”28, como indica
Mbembe, quando se tratam das medidas e das políticas públicas levadas a cabo na guerra ao
terror29, os mecanismos de produção do medo generalizado em relação ao “inimigo interno” e
ao “bárbaro estrangeiro” ressaltam a percepção da exterioridade disruptiva, que circula
livremente – quiçá, impunemente – pelo tecido social. É na proteção contra esses indivíduos
forjados-em-diferença, espúrios e hediondos, que se buscará a justificativa para as intervenções
de toda ordem e para a execução das medidas de extermínio, respaldadas nas práticas de
crueldade, degradação e desumanização dos corpos não-brancos. É nesse contexto que os

25
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 61.
26
Cf. SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na
construção da branquitude paulistana. Tese de Doutoramento em Psicologia. São Paulo: Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, 2012.
27
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; LYRIO, Caroline. Racismo Institucional e Acesso à Justiça: uma análise da
atuação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nos anos de 1989-2011. In: CONPEDI/UFSC; Mônica
Bonetti Couto; Angela Araújo da Silveira Espindola; Maria dos Remédios Fontes Silva. (Org.). Acesso à justiça
I. vol.1. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 513-541. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7bf570282789f279. Acesso em: 15 jul. 2018. p. 520.
28
MBEMBE, Op. cit., p. 70.
29
Em discurso ao Congresso estadunidense, em 21 de setembro de 2001, o então presidente George W. Bush, em
tom inflamado, convocava as nações mundiais a participar da luta contra os grupos terroristas internacionais, em
parceria com os EUA. A partir dele, portanto, se estabelecem as bases das ações que marcarão a “guerra ao terror”,
materializadas em princípios norteadores e, diga-se de passagem, polarizadores, na medida em que claramente
opõe ao “nós”, os aliados, um “eles”, os não-aliados, logo apoiadores dos radicais. Esse discurso encontra-se
disponível em <http://archives.cnn.com/2001/US/09/20/gen.bush.transcript/>. Acesso em 15 jul. 2018.
24

discursos eurocentrados ou anglocentrados podem reforçar as formas políticas autoritárias,


quando não reconhecem modos de ser, de poder e de saber distintos daqueles que caracterizam
a sua tradição, ou seja, desqualificam e invalidam os repertórios de povos não-europeus, não-
brancos e não-ocidentais.
Aqui, ressoam as palavras de Agamben, para quem “diante do incessante avanço do
que foi definido como uma ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a
se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”30. Medidas
temporárias se convertem em síntese final das contradições de sua implementação e, finalmente,
em técnicas definitivas de governo.
Mas, para que sejam gerados efeitos intimidatórios, desigualmente distribuídos nesses
estados excepcionais, a repercussão e a publicização das figuras do terror desempenham um
papel fundamental. As bombas, os tiros, o número de mortos e o fluxo incessante das imagens
repetidas ad nauseam têm consequências que vão muito além dos alvos materiais a que se
direcionam, pois o objetivo último é a generalização do medo em larga escala31. Disso resulta
o cheque em branco que o Estado detém para que seus agentes realizem e assegurem a limpeza
étnico-racial, sem expressiva comoção pública.
Pelo contrário, a limpeza étnico-racial é endereçada à satisfação do público, desejoso
pelos espetáculos de violência suscitados pelas operações policiais e pelas chacinas que
reforçam o sentimento coletivo de segurança em igual proporção ao número de “criminosos”
ou de “terroristas” abatidos. As razões aventadas para o endurecimento do combate aos
terrorismos nacionais e transnacionais, quer os terroristas se confundam com criminosos
comuns, quer sejam estrategicamente islamizados ou constituídos como “negros”, convergem
para um ponto comum: o da violência política dos terrorismos de Estado, naturalizada em uma
cadeia de violência sistêmica e estrutural, vinculada à legitimação das formas de dominação
vigentes. Aquém da representação e do conceito, esses outros conservam, ambiguamente, a

30
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.
31
Como recorda Bill Nichols, professor emérito do Departamento de Cinema da San Francisco State University e
um dos principais pensadores em estudos de cinema nos Estados Unidos, “a cobertura ao vivo da televisão se
desenvolve como fluxo interminável. As usuais interrupções para propagandas e mudanças de programa
desaparecem. A ‘pausa para a notícia’ dá um ritmo irregular à mistura sincopada e pós-moderna de imagens e
comentários, conjecturas, resumos, descrições, repetições e entrevistas que se sucedem confusamente. Os âncoras
dos noticiários no estúdio, os repórteres no local, testemunhas e sobreviventes, novas filmagens feitas e
transmitidas, filmagens de amadores descobertas e editadas, mais imagens e mapas – esse trabalho dos bricoleurs
da mídia confunde, instiga e aterroriza.” NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, Maria Dora;
LABAKI, Amir. (Org.) O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 258-259.
25

animalidade, em “contínuo processo de brutalização”32, e suscitam “o desejo do apartheid e da


endogamia que envolve a nossa época”33.
O cheque em branco, sem fundo e sem fundamento, apresenta-se, então, como garantia
do exercício da violência de Estado: o controle social pelo terror. O terrorismo de Estado marca
os grupos populacionais fixando os limites de circulação e inscrevendo os sujeitos em
mecanismos de controle e vigilância, diferenciados no interior dos jogos jurídico-políticos.
Política institucional de desaparição, tecnologias repressivas de tortura ilimitada, extração de
informações e assassínio adquirem a aparência da legalidade burocrática, enquanto
intensificam arbitrariedades e o recurso ao terror irrestrito.
Daí a vizinhança entre as medidas de combate ao terror e seu reverso sombrio, a
espelhar exatamente o que se propõe a combater e ao que há de mais assustador nos terrorismos:
a restrição à liberdade, a presunção de criminalidade e a difusão do pânico ampliada a tal escala
que se autoriza mesmo o uso indiscriminado da violência para neutralizar o perigo – também
ele indefinido, polimorfo e multifacetado. E, nesse intervalo cinzento de indistinção e anomia,
instaura-se o terror soberano e inominável, na turva interface entre prerrogativas de urgência e
as ilegalidades: na fronteira indiscernível entre a norma jurídica e a emergência política.

1.2 NOTAS PARA UM COMEÇO

O estudo apresentado nesta tese foi escrito sob o signo de um assombro. De um


assombro íntimo, que não cessou de interferir ao longo de sua escritura e de pontuar que, nessa
zona sombria entre política e polícia, resta algo inquietante. Talvez, algo próximo ao que a
poeta carioca Bruna Mitrano, em seu livro Não, enuncia ao lembrar que “em toda alteridade,
resta um pouco de fim”34. Mas se é o outro que aponta para a finitude, há alguns corpos mais
precários, torturáveis e matáveis que outros, mesmo que os períodos excepcionais do ponto de
vista jurídico-político valham para todos.
Há, na exceção, exceções intestinas e ainda mais rigorosas. E nem se pode dizer que
essa inflação dos mecanismos excepcionais no acesso violento a determinadas corporalidades
se esquiva aos nossos olhos e ouvidos. Ela é manifesta e justificada nas conversas de rua, nas

32
SAFATLE, Vladimir. O devir negro do mundo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 abr. 2018. Opinião. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/04/o-devir-negro-do-mundo.shtml . Acesso
em: 5 dez. 2018.
33
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017. p. 15.
34
MITRANO, Bruna. Não. São Paulo: Patuá, 2016. p. 28.
26

filas dos pontos de ônibus ou nos calçadões da praia, sem qualquer assombro: “tem que bater,
tem que matar, engrossa a gritaria”35. E a vida prossegue em sua normalidade.
Na impossibilidade de registrar os nomes de tantos outros, mas igualmente atento para
não os apagar uma vez mais e nem fazer da minha a sua voz, é preciso marcar o gesto político
que, em linha dupla, inscreve-se neste texto. Gesto que não delimita apenas o objeto de pesquisa
desta tese, mas que pretende rastrear no discurso de contenção ao terror e na instauração dos
estados de exceção, a reiterada política de extermínio dos indesejados praticada nos “E/estados
de emergência”, com a devida simulação da legalidade. Assombrar-se face ao terror – e, às
vezes, diante da falta do assombro que assume os contornos da indiferença – torna-se a tarefa
política de primeira ordem para questionarmos as fraturas expostas de nosso tempo. Tempo de
ordens, ordenanças, ordenações, ordenamentos, subordens, mandados, requerimentos.
Tempo de emergência. De Estados Democráticos de Emergência.
É preciso reconhecer, então, logo de saída, que este não pretende ser um texto neutro e
desinteressado. Até porque essas mitologias positivistas não deveriam se sustentar em um lugar
situado de produção, enunciação, difusão e circulação do conhecimento assumido pela
universidade enquanto lugar de resistência crítica incondicional “a todos os poderes de
apropriação dogmáticos e injustos”36.
Desse modo, as linhas de força destes escritos têm como suporte uma suspeita
obstinada: as políticas de segurança pública erigidas contra os inimigos do Estado têm
desempenhado uma função restritiva em relação às garantias fundamentais – quer se trate dos
direitos individuais ou dos direitos humanos – cada vez mais presente nos ordenamentos
jurídicos nacionais. E, de modo ainda mais ostensivo e truculento, quando se tratam de vidas
precarizadas, que experimentam os riscos maiores de extermínio por conta de determinados
traços raciais, sociais, étnicos ou sexuais. Soma-se a isso a escassez do luto público mobilizado
por essas vidas, haja vista que, seguindo os passos de Butler, a partir da ideia e do fato do estado
de guerra permanente ao terror, existe “algo que divide as populações entre aquelas pessoas
por quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos”37. E se o inimigo do Estado é
construído à semelhança dos segmentos marginalizados, a morte deles é o que tornará a vida
mais segura.

35
BUARQUE, Chico. As Caravanas. Caravanas. Rio de Janeiro, Biscoito Fino, 2017.
36
DERRIDA, Jacques. A universidade sem condição. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade,
2003. p. 16.
37
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 64.
27

O primeiro movimento esboçado nesta tese visa a problematizar as categorias, as


identidades e o modo como diferentes estratégias discursivas e políticas são mobilizadas para a
compreensão dos terrorismos como violência política, a um só tempo, singular e universal,
individualizado e totalizante – uma epistemologia política do terror. O segundo movimento,
por sua vez, objetiva revolver não somente o solo conceitual-discursivo, mas rastrear a
emergência de um certo enquadramento político dos terrorismos, a partir da disseminação da
“lógica paranoica de controle total sobre uma ameaça futura”38. Esse enquadramento é crucial
para o alargamento indefinido dos estados de exceção, que se confundem doravante com a
normalidade nos Estados Democráticos de Direito. É fundamental também para a legitimação
da violência étnico-racial e social como elemento estruturante da necrobiopolítica de letalidade
estatal na guerra contra o terror. Afinal, se as balas perdidas se endereçam prioritariamente a
determinados corpos é porque toda guerra pressuporia um “efeito colateral”. Como destaca
Berenice Bento:

A necrobiopolítica é tentacular e sistemática. Tampouco se pode tributar essa


prática reiterada à impunidade. A suposta “impunidade” funciona como uma
senha para o corpo repressivo: continua seu trabalho de limpeza do Estado-nação.
Policiais justificam suas ações porque notaram “atitudes suspeitas”. A expressão
“atitude suspeita” tornou-se suficiente para que policiais prendam e matem. O que
é uma atitude suspeita? Não é apenas “uma atitude”, mas um corpo, uma pele,
uma região.39

Trata-se, então, de deslocar a perspectiva do campo de análise dos terrorismos: não os


encarar apenas como violência destinada a atingir a soberania do Estado, com finalidade
política, mas, primordialmente, pensá-lo como produzido e gestado pelas próprias instituições
e agências do Estado. Pois, se o terrorismo só existe na designação da violência perpetrada pelo
adversário, o emprego terrorista do poder punitivo estatal parece “se reciclar no próprio terror
que produz”40: instabilidade jurídica, vigilância e controles hiperbólicos, presunção de
criminalidade, negação do direito à ampla defesa e do devido processo legal, prisão preventiva
arbitrária.

38
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 12.
39
BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? In: Cadernos Pagu, Campinas, n.º 53,
p. 1-14, 2018. p. 12. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332018000200405&lng=pt&nrm=iso&tlng=p.
Acesso em: 08 dez. 2018.
40
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, E.; OLIVEIRA, S. (Org.). Terrorismos. São
Paulo: EDUC, 2006. p. 26.
28

A expansão das medidas jurídicas de exceção, no final do século XX e no início deste,


aterrorizam o pensamento filosófico e suas construções universalizantes no campo da política
(Estado-nação, cidadania, democracia), na concepção ideal da natureza humana (humanismo,
dignidade da pessoa humana, jusnaturalismo) e dos direitos inalienáveis dos cidadãos. Se
aterrorizam é porque expõem, nestes tempos sombrios, um “fora” que historicamente foi
destinado aos povos lançados na zona do não-ser41, invisibilizados e desumanizados. Coube
aos movimentos decoloniais, de libertação nacional e aos pensadores do Sul geográfico, ao
propor o “giro decolonial” do pensamento, apontar nessas construções as suas lacunas: elas se
solidificaram ao impor como universais as suas construções culturais, políticas e sociais ao
custo de desqualificar outras matrizes de pensamento, de organização social e modos de ser.
Por isso a necessidade de, ao traçar um inventário crítico do que se passa hoje em termos
políticos no ocidente, confrontar as identidades hegemônicas com as figuras forjadas como seu
“outro”, isso é, tensionar o referencial não-nomeado – universalizável – e a diferença que se
“arma” em contraposição aos valores morais, jurídicos e políticos erigidos pela
modernidade/colonialidade42 como fundamentais de toda práxis política legítima: democracia
liberal, laicidade do Estado, direito à propriedade, liberdade de escolha etc.
Logo, problematizar o privilégio conferido a esses paradigmas – em crise permanente,
como se sabe –, requer analisar o seu contraponto. Ou seja, é preciso tratar de certas construções
identitárias – notadamente, islâmicas, africanas, anti-capitalistas, teocráticas –, indissociáveis
da desqualificação moral e da desconsideração humana a que são objeto. Essas construções
reforçam o lugar do Estado liberal como o significante privilegiado e não-marcado da política,
como se fora dele só reinasse a barbárie.
Daí as intervenções serem ancoradas não somente nos racismos de Estado e em
procedimentos necrobiopolíticos – de seleção, de gestão e de eliminação racional e sistemática
de grupos subalternizados –, mas também na regulação das condutas normais; nos controles,
intensivos e extensivos, que reativam práticas insidiosas de vigilância e normalização,
refiguradas, em nome da guerra preventiva ao terror.

41
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 26.
42
O projeto “Modernidade/Colonialidade” (M/C) nasceu com um coletivo formado por pensadores latino-
americanos, como Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, María Lugones, Catherine Walsh, dentre
outros. Sua proposta interdisciplinar consiste em pensar criticamente a dialética da Modernidade/Colonialidade.
As proposições decoloniais procuram romper com a ideia de universalidade do conhecimento estabelecida pelo
colonialismo do Atlântico Norte. Ao analisar a colonialidade do ser/saber/poder que funda a modernidade, os
pensadores decoloniais expõem as marcas deixadas nas sociedades colonizadas e buscam questionar os pilares de
sustentação da “lógica cultural” legados do colonialismo.
29

Singularizado, o terror – anônimo e multifacetado – multiplica-se, sem deixar de lado


uma série de ambiguidades. Porque, se de um lado, potencialmente, qualquer um pode encarnar
esse mal radical, de outro, alguns parecem coincidir com ele pela própria maneira de ser, pensar
e viver. Ao associar o perigo aos traços estereotipados do “bárbaro”, cria-se uma ameaça
discursiva e ficcionalizada.
Do bárbaro à barbárie, não é de estranhar que a passagem seja rápida. E, com o salvo
conduto dos organismos, das leis de emergência e das agências internacionais, procedem-se os
ataques àqueles que devem ser aniquilados, como ato final do que oscila entre a tragédia e a
farsa.
Tempo de emergência. Tempo de virulência.
Ora, como proceder esse aniquilamento do mal? De que modo será possível intervir
nesses territórios e exterminar as “classes/raças perigosas”, diante de tantas convenções e
jurisprudência que definem as normas dos direitos humanos e do direito à soberania nacional?
A resposta não tarda, no tempo e no discurso ambíguos de Hermes: em primeiro lugar, é preciso
interferir para salvar as populações de governos teocráticos e levar a essas nações os valores
sagrados das democracias liberais, o que exige dar prosseguimento à empreitada das
intervenções humanitárias – que, pela via armada, propõem a reestruturação dos Estados falidos
e a construção da paz; noutra via, para extirpar o mal, é preciso recorrer aos estados de
emergência, apontar o perigo difuso, o som confuso das línguas, o medo. E, enfim, instaurar
zonas de anomia e formas tecnoburocráticas de produzir cadáveres por meio do extermínio dos
indesejados.
Se no plano internacional, ao tratar da expansão dos estados de exceção, justificada pelo
recrudescimento dos terrorismos transnacionais, utiliza-se o argumento criminalizante baseado
na “onda religiosa”43, no plano nacional esse discurso de produção de emergências se volta para
os corpos abjetos, que representam o perigo imanente e que se tornam alvos diletos da violência
de Estado. Não se tratam de dois movimentos incompatíveis, mas de dois exercícios de morte
em prejuízo de populações socialmente inferiorizadas e racialmente desqualificadas.
Para além dos impasses que estilhaçam as definições, escandidas por tensionamentos de
diversas ordens, é notório que se trata da vigência de uma lógica penal estruturada em um

43
Segundo o professor David Charles RAPOPORT, do Departamento de Ciência Política da Universidade da
Califórnia, em The Four Waves of Modern Terrorism. Washington: Georgetown University Press, 2004, a onda
religiosa teria se iniciado com a Revolução Islãmica no Irã e com o chamado “regime dos aiatolás”. A expressão
das reivindicações marcadamente teológico-políticas, a descentralização e a independência da organização celular
e o uso em larga escala de artefatos explosivos singularizariam grupos como o Hezbollah (Partido de Deus –
Líbano), o Hamas (Movimento da Resistência Islâmica – Palestina), a Jihad Islâmica Palestina e a Al-Qaeda (A
Base – Afeganistão) – e, mais recentemente, o Estado Islâmico (Iraque).
30

projeto de Estado norteado por um empreendimento genocida. Os racismos44 aí se configuram


como elementos estruturantes da seletividade penal, que hierarquizam os grupos e justificam
subjugações com base na humanidade sustada de alguns em detrimento da supremacia racial de
outros.
É no rastro da leitura crítica de Foucault sobre os problemas da biopolítica e do racismo
de Estado nas sociedades securitárias que este trabalho se assenta. Atrelada a esses problemas,
a questão do dispositivo racial de controle necropolítico, tal como proposto por Mbembe, é
fundamental no esforço de racializar o debate e pensar de que modo os governos da emergência
reconfiguram práticas coloniais que dependem tanto da opressão racial e da ficcionalização
redutora do inimigo, forjada pelo imaginário racista, quanto de sua desumanização objetiva.
A hipótese que será investigada ao longo desta tese objetiva repensar criticamente o
estágio atual da racionalização da prática governamental sob o signo do terror. O que significa
examinar se a transformação nos exercícios de governo a que temos assistido nas últimas
décadas seria da ordem de uma mudança de ênfase na gestão política das vidas pela tecnologia
da governamentalidade pelo terror.
É incontornável, assim, problematizar a guerra que se trava contra o terrorismo e a
inversão do estado de terror para os terrorismos de Estado, nos termos da acomodação estrutural
dos racismos nas práticas seletivas de seus sistemas penais. O rearranjo que essas práticas
operam no campo da segurança requer, ademais, colocar em questão certos pressupostos do
pensamento político. Pois, examinar essas transformações e seu papel atualmente demanda que
se realize uma leitura crítica tanto do arcabouço conceitual forjado pela tradição filosófica de
matriz europeia – ancorada nos binarismos: mito/ciência, natureza/cultura, civilização/barbárie,
tradição/modernidade etc. – quanto de suas instituições, estratégias discursivas, normativas e
de governo que chancelam, hoje, a lógica punitiva e a judicialização da política.

44
Conforme a definição de racismo proposta na Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, da UNESCO:
Art. 2º. Item 2: “O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas em preconceitos raciais, os
comportamentos discriminatórios, as diposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a
desigualdade racial, assim como a idéia falaz de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e
cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentares, e de práticas
discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos anti-sociais; obstaculiza o desenvolvimento de suas
vítimas, perverte aqueles que o praticam, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a
cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito
internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais.” Declaração sobre a
Raça e os Preconceitos Raciais. Conferência da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura, em 27 de novembro de 1978. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec78.htm. Acesso em: 8 dez. 2018.
31

O capítulo II – (Des)Governos e Liberdades – busca problematizar, em um horizonte


biopolítico, o modo de gerenciamento das liberdades segundo a lógica do terror. Interessa
interrogar a tarefa política de associação das dinâmicas contemporâneas da segurança –
premidas pela produção simultânea do risco e do infrator perigoso –, aos mecanismos de
inclusão/exclusão social, que são modulados pelos racismos de Estado e seus cálculos
neoliberais, na perspectiva dos capitais humanos úteis ou desprezíveis. Para isso, torna-se
essencial desdobrar o conceito de “terror” e “terrorismos”, analisar seus usos e as questões que
advêm de uma instabilidade semântica na linguagem pública e política que não nos parece
fortuita.
O capítulo III – Os velhos e os novos terrorismos – é pautado na reflexão acerca dos
chamados “novos terrorismos” e dos instrumentos de controle social e penal mobilizados pela
“arquitetura do medo” e também pela “engenharia do extermínio”, operada pelos braços
armados do Estado. Trata-se de abordar o fenômeno da guerra e, notadamente, da chamada
guerra ao terror, na medida em que essa política desloca significativamente o pensamento e a
prática das guerras tal como ocorreram até o final do século XX, reguladas por normatizações
político-jurídicas e acordos internacionais. Se essas guerras passam a instaurar um estado de
exceção permanente ou não, será o foco de análise das minhas considerações. Por outro lado,
questionar a guerra ao terror requer pensar nas figuras que sintetizam o “mal radical”, quer
dizer, como os alvos de uma suposta luta global têm contribuído para legitimar os genocídios e
as “guerras profiláticas”, em vista da restrição dos ataques futuros.
Nesse terceiro capítulo, me proponho a analisar também a contraparte necessária da
violência política, talvez a matriz original de todo terrorismo estatal: os terrorismos
epistêmicos, inerentes aos processos de colonização e de dominação. Os terrorismos
epistêmicos são compreendidos, aqui, como o ato de neutralização de perspectivas, modos de
vida e de matrizes epistemológicas que fujam à configuração do complexo político e social
hegemônicos, e que funcionam como um desdobramento necessário do uso da violência em
larga escala, apoiada no racismo epistêmico.
Ao tomar como ponto de partida o essencialismo identitário (europeu ou norte-
americano, masculino, heteropatriarcal, judaico-cristão) que norteia a subjugação de povos
inferiorizados, pretende-se problematizar o que talvez seja o ponto cego da discussão acerca
dos terrorismos políticos. Ou, seria melhor dizer, o ponto de cisão (e de tensão) no qual o lugar
de enunciação geopolítica privilegiado do ocidente é exposto como indissociável dos processos
de invisibilização e extermínio dos grupos subalternizados.
32

O fundamentalismo ocidental estaria, então, na premissa dogmática, que funcionaria


como uma espécie de petição de princípio, segundo a qual o único regime de verdade seria
fornecido pela tradição de pensamento europeia, cuja cosmovisão deveria se disseminar como
forma superior de conhecimento em detrimento de outras cosmologias. O que tem por
consequência o impulso “civilizatório” dos movimentos coloniais, insuflados pelas “hierarquias
raciais, binárias e essencialistas do fundamentalismo eurocêntrico hegemônico”45.
Daí a permanência do racismo epistêmico, derivado da teoria social, implicado nas
políticas de segurança contemporâneas e incorporado na fundamentação argumentativa da
guerra ao terror. O resultado, como se sabe, é uma série de justificativas naturais, ancoradas
em estereótipos culturais, para a inferiorização racial, ontológica e epistemológica de povos
submetidos à violência arbitrária das ocupações e, finalmente, nas políticas de contenção do
terror estrangeiro, enquanto os terrorismos de Estado permanecem inquestionados em seu
impulso dominador.
Já no capítulo IV – Os Direitos Humanos –, pretende-se interrogar a política dos
direitos humanos, tal como se estabeleceu no contexto internacional a partir de 1948, no âmbito
da Organização das Nações Unidas (ONU), regulada por uma série de pactos internacionais
com o objetivo de resguardar a “dignidade e os direitos da pessoa humana”. A crítica que se faz
à defesa dos direitos humanos universais, ancorados em um humanismo abstrato e idealizado,
se orienta para a sua instrumentalização tática, por partir de uma ideia prefixada do sujeito
portador de direitos, de extração liberal, que serve como padrão de normalização da condição
humana.
Por isso, buscou-se adotar uma perspectiva crítica à concepção hegemônica dos direitos
humanos e indissociável do debate acerca das novas formas de colonialismo, de genocídio e de
opressão atuais. Porque se eles partem de um repertório monocultural, cujos padrões podem ser
geograficamente localizados, a estruturação dos parâmetros e seus termos precisam ser
contextualizados, sob o risco de deslegitimar aquilo mesmo a que se propõem: responder aos
excessos dos governos e proteger a dignidade de toda pessoa humana diante das arbitrariedades
temerárias. Inclusive àquelas que, hoje, estão submetidas às relações de terror ocasionadas pela
própria defesa dos direitos humanos e do direito humanitário, calcada na lógica das
“intervenções armadas por razões humanitárias”, em nome da salvaguarda das populações
vitimadas.

45
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n. 14, jan.-jun., 2011b, p. 346. Tradução minha.
33

Ora, os assassinatos em massa em consequência das ações de paz não seriam também
eles terroristas? Não haveria um paradoxo entre a defesa da “pessoa humana” e a truculência
do intervencionismo bélico? Por outro lado, seria possível pensar os direitos humanos para além
dessa perspectiva do “homem natural”, ontologicamente constituído como dado supra-
histórico?
O capítulo V – Democracia, neoliberalismo e razão (ba)bélica –, por sua vez, é
voltado para a questão da difusão da democracia liberal em “países autoritários ou teocráticos”
e a razão (ba)bélica que a sustenta. Problema de tradução e de imposição do fundamentalismo
econômico, representado pela ética e política neoliberais, trata-se de discutir a tese de Francis
Fukuyama e o suposto “consenso geral”, “que aceita a legitimidade das pretensões da
democracia liberal em ser a forma mais racional de governo”.46 Para isso, é importante
considerar a divergência de Jacques Derrida, expressa em seu Espectros de Marx. Para o
filósofo franco-argelino, talvez seja justamente o pensamento que anuncia a “boa nova” que
traria consigo a legitimação mais cruel do “sacrifício” necessário de alguns, com vistas à
chegada na “Terra Prometida dos liberalismos econômico e político”47. Soma-se a isso o
debate da “razão criminológica” e punitivista dos regimes neoliberais, para os quais torna-se
imprescindível pensar a gestão e a economia política dos ilegalismos. Isto porque, como
veremos, o programa neoliberal inclui uma gama de diferenciações operatórias, de processos
oscilatórios e uma rede de “intervenção do tipo ambiental”48, segundo o cálculo racional de
custos e benefícios das punições.
Seria a “guerra ao terror” uma intervenção também “do tipo ambiental”, funcionando
como um “sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos
disciplinares e os mecanismos de segurança”?49 E o terrorismo de Estado poderia ser analisado
como a condição de propagação dos estados neoliberais, por meio da “intimidação
generalizada” e da aniquilação de contingentes humanos inúteis para os fluxos econômicos
transnacionais?
Finalmente, no capítulo VI – Tremor e terror: do estado de terror aos terrorismos de
Estado –, me dediquei a estudar a razão securitária e sua interface com os terrorismos de
Estado, quando a violência sistêmica e sistematizada de Estado passa a configurar uma estrutura

46
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992. p. 245.
47
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 98.
48
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.
355.
49
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 10.
34

que mobiliza instituições e agentes estatais direcionados à prática e à violação dos direitos
humanos, não-oficializada, mas tornada política pública pelas redes de repressão, chantagem,
intimidação e assassínio generalizados. “Legalidade” extraordinária, o autoritarismo e a
violência adquirem as formas de uma normatividade excepcional, cujos resquícios no
ordenamento jurídico são positivados como instrumentos de defesa.
Pensar o terror como governamentalidade de Estado significa enfatizar também o
governo das condutas pelo terror, quer dizer, pela ameaça constante do emprego da violência e
de seus aparatos repressivos com a finalidade política de neutralizar as dissenções. Mas não é
apenas pela via dos instrumentos excepcionais que regulam as situações de emergência que os
mecanismos suspensivos e relativizantes das garantias fundamentais são ativados. As práticas
difusas dos terrorismos de Estado e o legado de violência institucional passam a funcionar como
organizadores da vida política nestas sociedades marcadas pelo governo do terror.
No capítulo VII, que encerra esta tese – Antiterrorismo à brasileira –, discutem-se os
impactos mais nefastos da Lei Antiterror, sancionada no Brasil em 2016, e a tentativa de
enquadrar penalmente coletivos políticos e movimentos sociais na tipificação de “organizações
terroristas”. O que revelaria, uma vez mais, o perigo das definições genéricas e alargadas de
terrorismo e como esse debate tem servido, aclimatado à dinâmica política de cada país, para
suspensão das garantias jurídicas fundamentais, cortes nos direitos públicos subjetivos à
disposição dos acusados e para as estratégias punitivas “utilizadas pelos regimes autoritários
contra os grupos que estariam ameaçando a estabilidade das instituições do Estado”50, baseadas
no direito penal do inimigo.

50
ZACKSESKI, Cristina. A guerra contra o crime: permanência do autoritarismo na política criminal latino-
americana. In: ______. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Verso e reverso do controle penal: (Des)aprisionando
a sociedade da cultura punitiva. v. 2. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 125-126.
35

2 (DES)GOVERNOS E LIBERDADES

Danton: Vejo uma grande desgraça abater-se sobre o mundo. É a ditadura


da violência; rasgou o véu e caminha sobre os nossos cadáveres de cabeça
erguida. Por quanto tempo ainda, as pegadas da liberdade serão túmulos?

Georg Büchner, A Morte de Danton

A cena se abre com o anúncio da guerra. As imagens de metralhadoras, tropas em


deslocamento, fuzis, tonéis de petróleo e artefatos bélicos poderiam ser exibidas em uma
emissão televisiva no horário nobre, ou impressas nas páginas dos principais jornais do mundo
com a declaração estampada de presidentes e de primeiros-ministros enérgicos: “estamos em
guerra”. A declaração seria recebida sem grande espanto, pois tais enunciados se tornaram cada
vez mais prosaicos na imprensa internacional; a bolsa continuaria a operar oscilando seus
marcadores de tempos em tempos; e as pessoas a ler os jornais entre um gole e outro de café,
sonhando com a aurora de suas vidas, quando tudo era melhor que hoje.
Mas, sim, estamos em guerra. Em estado de guerra todo tempo, embora de modo distinto
daquele proposto por Thomas Hobbes em sua fábula filosófica acerca do estado natural dos
homens51. As cortinas vermelhas se abrem. Soa o último sinal. Encena-se Um homem é um
homem52, de Bertolt Brecht, que poderia figurar perfeitamente como um retrato do estado de
violência e das guerras imperiais que assolaram o século XX e o início do XXI. Na peça,
Fairchild, personagem que representa um dos sargentos do exército britânico, conhecido como
“Cinco Sangrento”, exorta seus homens à investida que se aproxima:

Fairchild: Soldados, chegou a hora decisiva! Finalmente nossas tropas se


deslocam para o Uraquistão, para mais um triunfo da civilização sobre a barbárie.
Cairemos sobre eles com todo peso da nossa intolerância! Vamos ver quem é mais
determinado na matança, nas atrocidades, nas mutilações, nos estupros, nas

51
Segundo Hobbes, “[...] se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra
que é de todos os homens contra todos os homens.” HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 79.
52
Reelaborada e reescrita diversas vezes entre 1926 e 1956, Um Homem é um homem encena a transformação do
pequeno burguês Galy Gay numa máquina de combate humana. “A guerra, escreve Brecht no decorrer da peça,
“não escolhe seus mortos. Na guerra não há vencedores”.
36

torturas, nas decapitações. Soldados, hoje mesmo estaremos marchando sobre o


território inimigo, e vamos fazer da vida deles um verdadeiro inferno!53

A fala do personagem de Brecht, que encarna no drama as desmedidas ambições


imperialistas dos exércitos estrangeiros, repousa sobre um mito importante: o do “triunfo da
civilização sobre a barbárie”. Alegoria que associa a emancipação ao progresso, a dicotomia
funciona via polarização dos campos: de um “nós” civilizados versus “eles”, os bárbaros.
Poderíamos completar, ali onde “território inimigo” inscreve-se, sob a vigência de uma lei
desconhecida e espúria, seria preciso levar a liberdade aos povos que vivem sob sua desordeira
tutela, cujo desgoverno poderia ser ameaçador às demais nações. Triunfar será, pois, instituir
um governo: o governo das liberdades.
Há, ainda, outro traço que mereceria destaque, no ponto em que se tornam indistintas a
cena teatral e a dramaturgia de guerra do mundo contemporâneo. Ao longo da peça, são
expostas – em uma espécie de dissecação anatômica – as camadas subterrâneas e as pressões
ideológicas capazes de modificar os sujeitos e de revelar, nos seus avessos, o potencial
destrutivo da obediência cega. Não é de estranhar, assim, a semelhança entre o protagonista
Galy Gay e o oficial da Gestapo Nazista Adolf Eichmann54, na medida em que ambos são
homens comuns que desempenham bem o seu trabalho de extermínio. Eficientes e pragmáticos;
ordinários e incapazes, como burocratas de guerra, de elaborar juízos críticos e reflexivos.
As imagens propostas por Brecht não cessaram de “tomar posição”55 ao longo do século
passado. Elas testemunham a percepção, em todos os campos, de uma profunda mudança em
curso, que alteraria definitivamente o cenário do mundo contemporâneo. Cenário das grandes
guerras e das longas crises, pano de fundo de experiências traumáticas da história ocidental, os
horrores dos tempos sombrios, para usar a expressão de Hannah Arendt, não deixaram de
evidenciar as consequências dos excessos de poder a que a desmedida da gestão necro-
biopolítica pode acarretar.

53
BRECHT, Bertolt. Um Homem é um Homem. Trad. Fernando Peixoto. Adaptação de Paulo José. Belo Horizonte:
Autêntica/PUC-MG, 2007. p. 90-91.
54
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Sobre Eichmann, diz Arendt: "[...] apesar de todos os esforços da
promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse
um palhaço” (Idem, p. 67). E, em uma passagem célebre, que poderia aproximar Eichmann do personagem de
Brecht: “[...] era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito
insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – esse era um tipo novo de criminoso,
efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente
impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”. (Idem, p. 299)
55
Sobre essa abordagem, ver DIDI-HUBERMAN, Georges. Quand les images prennent position. L'Oeil de
l'histoire, 1. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009.
37

O que Brecht não poderia supor, entretanto, é que a natureza dessas transformações não
se limitaria aos conflitos territoriais de um mundo cindido por conta das ideologias políticas,
econômicas ou sociais. O campo das lutas ideológicas tomaria a forma dos grandes campos de
internamento e de concentração, que resultariam no genocídio de milhões de pessoas. Campos
que, hoje, funcionam por vias menos ostensivas mas igualmente eficazes no extermínio56 de
determinados grupamentos sociais57.

Tudo dominado

Se os terrorismos totalitários buscaram obstinadamente o controle global das populações


em seus territórios, por meio da eliminação sistemática de parcelas indesejadas do corpo social,
os imperialismos e os neocolonialismos, por sua vez, não operariam em chaves muito distintas.
Quando dominar é o imperativo dos tempos de guerra, o assassínio de civis passa a integrar as
ações de conquista dos Estados como “dano colateral” de um programa a ser cumprido. Porque
se não há contiguidade entre imperialismo e totalitarismo, as técnicas de controle e de combate
inventariadas por eles, no entanto, convergem em alguns pontos – seja no que concerne ao
anseio de dominação total, ou na partilha objetiva que operam da terra e dos homens.
O aparato burocrático do Estado nazista e o extermínio programático imperialista para
domínio territorial e econômico têm em comum o emprego de métodos com notável eficácia, a
fim de expandir seu espaço de soberania e de impor um governo dos modos de vida. De um
modo de vida que se apresenta como digno de ser vivido. O que não significa que os
movimentos coloniais ou imperiais e os totalitarismos sejam duas faces de uma mesma moeda.
O fio que os une é o potencial de destruição da condição humana, ancorado nos racismos de
Estado. Em seus ímpetos expansionistas, esses movimentos lançam mão dos instrumentos de
violência do Estado e, como consequência, como recorda Hannah Arendt, “[...] roubaram a

56
Para uma leitura mais detalhada da questão dos campos de extermínio como estratégia biopolítica, indico a
dissertação de Mestrado de Thatiana Victoria dos Santos Machado Ferreira de Moraes, Límen Político: Traçando
as fronteiras da violência e da exceção no interior do biopoder, orientada pelo Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco
e defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2017.
57
Veja-se, para citar um exemplo, os dados da Anistia Internacional Brasil divulgados no lançamento da
Campanha Jovem Negro Vivo. Só em 2012 ocorreram 56 mil homicídios no país. Mais da metade das vítimas
eram jovens com idade entre 15 e 29 anos, dos quais 80% eram negros. Desse total, ainda segundo a organização,
menos de 8% dos casos chegaram a ser julgados, o que reitera a percepção não de uma fatalidade, mas de um
projeto de Estado em curso no Brasil e no mundo, se analisarmos os dados de homicídio em decorrência de ação
policial. Disponível em: https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/ Acesso em: 15 nov. 2018.
38

própria morte do indivíduo, provando que, doravante nada – nem a morte – lhe pertencia e que
ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido.”58
O fato é que, em suas estratégias mais sutis, fascismos, colonialismos e imperialismos
legaram para a política contemporânea instrumentos autoritários e mecanismos amplamente
utilizados pelos Estados e frequentemente incorporados a legislações nacionais. No interior das
democracias liberais mais consolidadas, eles ressurgem em novos trajes, com outros emblemas
e em falas aparentemente mais republicanas, mas um tanto quanto perigosas. Pois, quando os
discursos que fundamentam as leis são pautados em discriminação étnica, cultural, social, racial
ou sexual, ou até mesmo na violação do Direito Internacional de proteção de refugiados e de
não devolução, é ainda a eliminação das condições de existência que está em jogo.
Não é de estranhar que as discussões sobre a segurança e a letalidade estatal se tornem
temas privilegiados nos debates políticos, militares e econômicos da atualidade. Ora, a que se
deve essa inflação nos últimos decênios? Poderíamos, inicialmente, afirmar às avessas: a
insegurança tornou-se o grande tema dos debates sociais desse início de século. É preciso
remarcar que o termo passa a designar um campo semântico tão vasto que, da segurança
alimentar à segurança da informação, da segurança ambiental à segurança política, defensiva e
pessoal59, redimensiona a especificidade do conceito para além da segurança nacional. Essa
expansão vocabular chega a tal ponto que, em 1994, seria elaborado no Relatório do
Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
um novo conceito, o de segurança humana60.
O que está em jogo, em diversos domínios e escalas, passa a ser não só estar protegido
de riscos, danos ou perdas em todos os âmbitos da vida individual e comunitária, mas também
a compreensão liberal da segurança como liberdade, isto é, escolha. Segundo o documento, “O
desenvolvimento humano é o alargamento das escolhas das pessoas. A segurança humana é a
garantia de que as pessoas possam exercer essas escolhas com segurança e liberdade”61

58
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 600.
59
A ponto de figurar no artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Toda pessoa tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
60
O conceito de segurança humana engloba dois aspectos principais: primeiro, segurança de ameaças crônicas,
como a fome, as doenças e a repressão (freedom from want); depois, proteção de mudanças súbitas e nocivas nos
padrões da vida – seja em residências, no trabalho ou em comunidades (freedom from fear). De acordo com o
PNUD, a segurança humana seria constituída de sete componentes: 1) Segurança econômica; 2) Segurança
alimentar; 3) Segurança sanitária; 4) Segurança ambiental; 5) Segurança pessoal; 6) Segurança comunitária; 7)
Segurança política (entendida como garantia do exercício da cidadania).
61
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME – UNDP. Human Development Report 1994. New
York: Oxford University Press, 1994.
39

(PNUD, 1994). Nesse contexto, as medidas de segurança ocupam espectros cada vez mais
amplos da vida, inseparáveis de um conjunto de procedimentos que engendra novas formas de
produção da precariedade e de desigualdade pelos dispositivos de seguridade.
Em outro domínio, a nova ordem internacional subsequente ao fim da Guerra Fria
redefiniu os parâmetros da segurança internacional. A dissuasão nuclear e a difusão da ideia de
segurança humana se aliam à discussão da segurança nacional e passam a orientar os debates
acerca da responsabilidade de proteção dos Estados, dos direitos humanos e do fenômeno da
guerra.
Ora, se as guerras atuais tomaram outras formas, não é mais possível analisá-las sob o
prisma dos conflitos regionais ou internacionais do século XX. Isto porque, além das novas
modalidades da guerra (que dificultam, inclusive, a demarcação de fronteiras das zonas de
combate e das zonas de paz), é cada vez mais patente a existência de um “estado de violência”62
permanente, no qual estamos inseridos. Estado, sem dúvida, proveniente menos de uma guerra
constante e ininterrupta de “todos contra todos” de extrato hobbesiano, do que de complexos
sistemas globais de segurança, multipolar e difusos, voltados para contenção das ameaças
transterritoriais. É nesse cenário que pode ser compreendida uma declaração de “guerra ao
terror”, tipificada como contraterrorista, apesar de lançar mão de mecanismos tão ou mais
destrutivos do que aqueles estrategicamente utilizados pelos “terroristas”. Se as aspas, aqui,
operam uma suspensão semântica do termo, cabe antes mais uma palavra a título de introdução.
É preciso problematizar tipificações e definições que enquadram63 grande parte das
políticas de combate ao “inimigo externo”, alçado como adversário de todas as nações do globo.
As redes de terror e células soturnas estariam sempre prontas a tomar de assalto os Estados e a
atentar contra as instituições civis e a democracia, o patrimônio artístico e cultural e, até mesmo,

62
Salienta Frédéric Gros que “A guerra mudou a tal ponto de aspecto que é preciso admitir que o que foi pensado
sob seu nome durante séculos praticamente desapareceu. [...] Depois da queda do Muro de Berlim, acreditou-se,
escreveu-se que começava o fim da história. [...] Foi outra coisa que se produziu: o fim da guerra e a emergência
dos estados de violência. [...] O fim da guerra não significa sobretudo a paz, porque não é possível pensar a paz
fora do horizonte da guerra. [...] A questão filosófica visa compreender o que, através do caos das violências, pode-
se pensar como Guerra e Segundo quais critérios.” GROS, Frédéric. Estados de Violência: ensaio sobre o fim da
guerra. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida, SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 5-6.
63
O conceito de enquadramento (“Framed”) é referido aqui tal como proposto pela filósofa Judith Butler em seu
livro Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (“Frames of war: When is life grievable?”), publicado
em língua inglesa em 2009. Logo na introdução, a filósofa justifica: “[...] por um lado, procuro chamar atenção
para o problema epistemológico levantado pela questão do enquadramento: as molduras pelas quais apreendemos
ou, na verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros como perdida ou lesada (suscetível de ser perdida
ou lesada) estão politicamente saturadas. Elas são em si mesmas operações de poder. Não decidem unilateralmente
as condições de aparição, mas seu objetivo é, não obstante, delimitar a esfera da aparição enquanto tal. Por outro
lado, o problema é ontológico, visto que a pergunta em questão é: O que é uma vida?. BUTLER, Judith. Quadros
de guerra: Quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015. p. 13-14.
40

contra a humanidade64. Monstros desumanos, bradam algumas vozes, que devem ser
neutralizados – segundo o jargão internacional, para dissimular as expressões de “morte”,
“abate” ou “extermínio” de seu léxico. Melhor seria, então, completam, a neutralização
profilática. E uma nova corrida anima as potências ocidentais, não mais armamentista ou
nuclear, apesar de prosseguir veladamente em curso, porém uma intensa caça com vistas a
prefigurar alvos futuros, antecipar e desmontar, pelos mapeamentos, possíveis ameaças.
Instaura-se a lógica do terror espectral, em um contexto no qual os riscos (financeiros,
ecológicos, bélicos, epidemiológicos etc.) são apresentados como onipresentes e as ameaças
globalizadas.

O fantasma do terror

Mas, o espectro do terrorismo transnacional ronda o mundo ocidental. Todas as


potências se unem numa Santa Aliança para conjurá-lo. E não apenas no campo das guerras
sem termo as transformações se fazem sentidas. Há, nos processos de pacificação, igualmente,
mudanças radicais em suas operações e mesmo no que se compreende pelas intervenções
humanitárias. A imposição de uma “paz liberal”65, sob a ingerência das potências hegemônicas,
toma a forma das “missões de paz”66 e suas ocupações sem fim. O longo processo de
reconstrução democrática dos Estados, cujo objetivo é a manutenção da paz, desse modo, tem
na iminência da guerra o seu contraponto estratégico para a garantia da pacificação e da
disseminação dos dispositivos policiais no interior dos países “reestabilizados”.
Com o reordenamento do sistema securitário internacional e a reconfiguração do papel
das forças armadas na promoção da segurança pública, as dinâmicas de segurança conheceram
outras estratégias táticas. Atores, processos e agendas da promoção dos direitos humanos, via

64
Interessante ressaltar como o conceito de “humanidade” se presta a uma apropriação oportunista na justificação
dos combates bélicos. O “humano” em questão, é claro, exclui imensas parcelas étnicas e raciais que são
desumanizadas em razão de seu modo de vida. A desumanização de grupos marginalizados – imigrantes, minorias
étnicas e mulçumanos, para citar apenas alguns exemplos – opera, não raro, pela associação de traços físicos a
traços morais, com a essencialização e a hierarquização das diferenças. Por isso, estes grupos são eliminados sem
grande comoção da opinião pública. É deste modo que, historicamente, “as vítimas de genocídio eram chamadas
de vermes pelos perpetradores. Os escravos eram vistos como não valendo uma fração de uma pessoa. Os
imigrantes eram associados a pestes invasivas e a doenças infecciosas. Jogadores de futebol negros são saudados
com imitações de macacos em estádios europeus. Índios são estereotipados como selvagens em oposição a nobres.”
HASLAM, Nick; LOUGHNAN, Steve. Dehumanization and infrahumanization. Annual Review of Psychology,
65, 2014. p. 401. (Tradução minha). Trata-se, portanto, de categorizar o outro como moralmente, culturalmente ou
socialmente inferior, privando-o – via estereotipização ou animalização – de seus traços humanos.
65
CHANDLER, David. The responsibility to protect? Imposing the 'Liberal Peace'. International Peacekeeping,
vol. 11, n. 1, Spring 2004, p. 59–81.
66
Cf. NASSER, Reginaldo Mattar (Org.) O silêncio das missões de paz. São Paulo: EDUC/CNPq, 2012.
41

organizações intergovernamentais, colocaram na ordem do dia o desenvolvimento, a


cooperação e a integração de blocos regionais e globais em direção a horizontes comuns. Novos
conceitos, que não superam antigas questões e velhos conflitos, opõem, não raro, diferentes
grupos étnicos e religiosos e concepções de justiça, de política e de sociedade. É nessa tentativa,
porém, de homogeneização da política global, com o neoliberalismo no plano econômico-social
e a democracia liberal, no plano político, que interessa pensar de que modo aqueles que se
colocam fora desse enquadramento são percebidos.
A construção discursiva da ameaça islâmica, pós-11 de Setembro, e as dinâmicas
regionais de segurança responderam ostensivamente às investidas dos grupos que teriam
atentado contra a “paz ocidental”. O impacto das tecnologias de informação digitais –,
sobretudo dos drones (veículos aéreos, terrestres ou marítimos não tripulados) –, transformou
de modo inequívoco a compreensão da guerra, tal como essa foi praticada até o fim do século
passado. Novos parâmetros de segurança internacional e regional ressignificam direitos civis
liberais e tensionam o fundamento dos Estados democráticos de direito – a soberania; a
cidadania; a dignidade da pessoa humana; o pluralismo político.
O terreno dessa complicada injunção geopolítica revela-se um campo minado. E não
somente no que diz respeito à tensão das negociações entre nações, mas, igualmente, no campo
conceitual. Porque se, de um lado, a tensão discursiva do campo expõe as imbricações de uma
série de relações de poderes complexas, de outro, evidencia a fratura no vocabulário político do
ocidente e nos interesses internacionais, quando tomam o “terror” e o “terrorismo” em sua
suposta autoevidência. Quando se desfaz a compreensão natural do fato e do conceito, todavia,
outras questões podem ser colocadas, esboroando as linhas que separam a atividade criminosa
comum e as tensões políticas globais67.
Se tomamos essas modulações como ponto de partida é porque elas envolvem,
notadamente, repensar a soberania estatal e a guerra – inclusive discursiva, como forma de
nomear os acontecimentos políticos – como problemas, lá onde elas se pretendem, muitas

67
Cabe ressaltar, ainda, os distintos modos de percepção desses acontecimentos segundo a cobertura midiática que
os veicula. E, frequentemente, como contribuem para os modos distintos de elaboração do luto público. Como
lembra Derrida, tomemos os “exemplos de assassinatos em massa quase instantâneos que não foram registrados,
interpretados, sentidos e apresentados como ‘acontecimentos maiores’. Eles não deram a ‘impressão’, pelo menos
não para todo mundo, de serem catástrofes inesquecíveis”. Por isso, continua o filósofo franco-argelino, “devemos
(e esse dever é ao mesmo tempo filosófico e político) distinguir entre o fato supostamente bruto, a ‘impressão’ e
a interpretação”. DERRIDA, Jacques. “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques
Derrida”. In: BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de
Terror: Diálogos com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004. p. 99.
42

vezes, incontestavelmente justas68. Pois, quando uma associação de Estados nacionais declara
“guerra ao terror”, o que isto significa efetivamente, haja vista que o terror não é uma entidade
política soberana delimitada por um território, isto é, um Estado-nação? Ou ainda, seria possível
categorizar os terrorismos de Estado hoje com base nas definições dos terrorismos
transnacionais propostas pelos Estados?
Quando se proliferam os discursos de ódio e os diagnósticos apocalíticos, o que resta da
democracia? Estaríamos diante de um fantasma, o “fantasma do terror”? E, se for assim, o que
nos murmura esse fantasma? O que, afinal, esse espectro pode nos acenar, ainda? Nem Leviatã,
nem “o mais frio de todos os monstros”69. Se a maneira de elaboração do trauma é a compulsão
à repetição, como propôs Freud, então evitá-lo demandará um gasto preventivo, e quase
neurótico, em que a pulsão de autodefesa e a aniquilação radical se completam. Será preciso,
antes de tudo, assegurar-se, livrar-se do perigo, e, principalmente, falar da ameaça, prevenir-
se, desarmá-la.
Poderíamos analisar, nos termos do que Jacques Derrida chama de processos auto-
imunitários, esses delírios persecutórios e as suspeitas generalizadas em relação aos outros, que
estão no alicerce das políticas públicas de segurança atuais? De acordo com o filósofo,

[...] todos estes esforços para atenuar ou neutralizar o efeito do traumatismo


(negar, reprimir, esquecer, ou superar) não passam de tentativas desesperadas de
muitos movimentos auto-imunitários que produzem, inventam e alimentam a
própria monstruosidade que alegam superar. 70

Assim, dada a invisibilidade e o anonimato do inimigo a que se deseja combater, a


repressão política generalizada acabaria reproduzindo justamente aquilo que pretende desativar,

68
Ao tratar das procedências do conceito contemporâneo de guerra justa, Thiago Rodrigues atenta para o fato de
que as “exceções ao uso da força”, presentes na Carta das Nações Unidas de 1945, encontram legitimação na noção
de segurança coletiva. Disso resulta não apenas a possibilidade de intervenção bélica em caso de legítima defesa
individual ou coletiva, como também um redimensionamento das modalidades de guerras justas. Segundo o autor,
“[...] no campo da discussão sobre o tema da guerra justa, interessa destacar como o internacionalismo liberal
atualizou a noção de justiça na guerra a partir do momento em que o sistema de segurança coletivo proposto pela
Liga das Nações não defendeu o fim total e absoluto da guerra, mas revalorizou quais modalidades de guerra
seriam justificáveis ou não. Portanto, tratou-se de uma atualização da definição de guerra justa que passou pela
nova fórmula defendida para o jus ad bellum: no novo sistema os Estados teriam direito de recorrer à guerra para
defender-se e em nome da paz internacional em ação coligada com outros membros da associação.” RODRIGUES,
Thiago. Guerra e Política nas Relações Internacionais. Tese de doutoramento em Ciências Sociais (Relações
Internacionais). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. p. 147.
69
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 48.
70
Tal como apresentado no diálogo com a filósofa Giovanna Borradori em BORRADORI, Giovanna; DERRIDA,
Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jüngen Habermas e Jacques
Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 109.
43

isto é, o terror. Na medida em que a militarização da vida tem por consequência – e talvez não
seja de modo fortuito – a restrição de participação democrática e a intimidação de civis, ela
envolveria aspectos dos terrorismos. Não à toa, prossegue Derrida, “[...] as condições auto-
imunes implicam o suicídio espontâneo do mecanismo que deveria proteger o organismo da
agressão externa.”71 A ameaça da vida democrática é gerada pela reação defensiva dos Estados
e no governo da exceção como paradigma do político. Paradigma que teria por contrapartida a
imensurável burocratização da vida, isto é, “[...] a forma de governo na qual todas as pessoas
estão privadas da liberdade política, do poder de agir”72. O poder anônimo dos administradores
é outra face da violência no limiar da qual política e polícia se tocam.
A relação sistêmica entre terrorismos e estados de segurança impactam profundamente
nos pilares de sustentação do Estado de direito. Basta pensar na política irrestrita de venda de
armas para Estados que apoiam organizações ditas terroristas para concluir que as relações são
muito mais complexas do que se poderia supor à primeira vista.
O estado de segurança, longe de afiançar, como se propõe, a proteção e a integridade
dos cidadãos nacionais, termina por se converter em estado policialesco, que potencializa o
terror. Terror definido não mais pelas instâncias jurídicas, mas pelos organismos policiais que
têm a primazia de identificar “comportamentos suspeitos” e intervir em situações de presumida
ameaça73.
Deste modo, a polícia seria como anticorpo ativo das políticas de segurança, para usar
uma vez mais a metáfora dos processos autoimunes de que se serve Derrida. Ela é um agente
que atua como fim de si mesma, que parece “[...] promover as forças da vida, mas que acaba
estando a serviço de um impulso de morte”74. O que Antonio Candido no ensaio “A verdade da
repressão”, de 1972 – escrito em pleno estado de exceção brasileiro –, aproximaria do processo
arbitrário kafkiano, pois a polícia já “não tem necessidade de motivos, mas apenas de
estímulos”. Para isso, ela:

71
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 32.
72
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte de Macedo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2014. p. 101.
73
O que contraria até mesmo os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobretudo aqueles que
dispõem sobre o direito à ampla defesa, à presunção de inocência, à instauração do devido processo legal por um
tribunal independente e imparcial, e à arbitrariedade de prisões, detenções ou exílios sem respaldo jurídico.
74
NAAS, Michael. A autonomia, a auto-imunidade e a limusine de cabine estendida – Do Rogue State (Derrida)
à Cosmópolis (DeLillo). In: NASCIMENTO, Evandro (Org.). Jacques Derrida. Pensar a desconstrução. São
Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 152.
44

Não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou
moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou
da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir,
sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância
ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura
e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.75

Materialidade da culpa destituída de sentido, de um lado, impossibilidade de ampla


defesa e ausência de instauração de procedimento jurídico legal, de outro, com a fundação de
um pacto paralelo e complementar ao meio de repressão oficial. A violência de Estado institui
o espaço de anomia, imprescindível para o modo de governo pelo terror e para a produção de
sistemática de cadáveres nos regimes de necrobiopoder neoliberais, onde até mesmo a morte se
“flexibiliza” e se autonomiza no ideário punitivista. Trata-se de um necrobiopoder instituído na
base do Estado-nação, “de um poder que na verdade não precisaria de constituição, pois está
habituado a agir fora de qualquer legitimação que não seja de domínio”76.
“O medo impele uns e o ódio outros; qualquer outra força emudece. Todos são, para
nós, inimigos ou rivais”77, afirmaria Primo Levi. Porque as bases estruturais do terror estão
fundadas no pacto corporativo que estrutura o Estado, que normaliza o racismo institucional
nos múltiplos processos de silenciamento e de extermínio que se efetivam nas violências
sistêmicas contra populações indesejadas – sobretudo, o povo negro e as classes historicamente
subalternizadas. 78 Com a vantagem de a economia do extermínio poder operar no interior dos
regimes democráticos no registro da legalidade, em que as disputas transcorreriam, em tese,
“em pé de igualdade” entre os sujeitos de interesse. Como se sabe, porém, os estigmas inerentes
às distintas identidades e estratos sociais se ligam de modo inextrincável às relações materiais
de cidadania, o que se converte em mecanismo essencial para produção e reprodução das
funções de domínio das elites e da “modelagem da exclusão racial”79.

75
CANDIDO, Antônio. A verdade da repressão. In:____. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 113-
118.
76
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 142.
77
LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 57.
78
É curioso ressaltar ainda, de acordo com Freud, “que o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido
quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real que até então
víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado, e assim por
diante”. FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“O homem
dos lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 364.
79
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 142.
45

Consideração intempestiva

Se pensar o contemporâneo é se confrontar com o intolerável, então é urgente a tarefa


filosófica e política de repensar os modos de habitá-lo e de subvertê-lo. Pois, realizar um
diagnóstico do presente histórico requer colocar o nosso tempo em suspensão – e
reiteradamente em suspeita –, para lançar um olhar crítico sobre o que se passa hoje no campo
expandido da política, das relações internacionais, do direito e da filosofia. Aquilo que, em uma
anotação de curso de um de seus seminários no Collège de France, Roland Barthes resume do
seguinte modo: “o contemporâneo é o intempestivo”80.
Este tempo intempestivo e “fora dos eixos” ecoa as considerações de Nietzsche acerca
da história: é preciso se posicionar criticamente em relação ao presente e receber “em pleno
rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”81. Trevas, terror, terrorismos: os conceitos
clássicos da filosofia política eurocentrada teriam perdido a precisão de nomear determinados
acontecimentos, em face das experiências-limite da atualidade e do tensionamento de
perspectivas – mais ao Sul – em curso na hora histórica?
Distante das águas agitadas do Atlântico Negro, nas quais as antropologias filosóficas
construíram seus portos (a custo de muitas guerras em nome dos “valores civilizatórios” e da
subjugação racial), revolve-se o solo conceitual desses territórios em disputa e coloca-se sua
estabilidade à prova, propondo outros assentamentos, cruzamentos e lentes de análise. Talvez
o “fantasma do terror”, ainda com algum assombro, nos exija encarar no espelho trincado da
modernidade o reflexo de nossa própria imagem e de nosso próprio tempo “out of joint”.
Fraturado pelos anacronismos, assombrado por fantasmas e pelos fins do mundo, o dever de
justiça e de memória emergem como armas diante do que se repete compulsivamente na cena
da violência de Estado.

2.1 O TERROR NOS TEMPOS DO CÓLERA

Não se contam os mortos da mesma maneira em todos os lugares do mundo.


Jacques Derrida, Filosofia em tempo de terror

O bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki pela Força Aérea Aliada
na Segunda Guerra Mundial poderia ser tipificado como terrorista? A invasão norte-americana

80
BARTHES, Roland, 1977 apud AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009b. p. 58.
81
Idem, p. 64.
46

e a ocupação do Iraque, em 2003, em busca de armas de destruição em massa – não encontradas,


como se sabe –, poderia ela também ser enquadrada nessa categoria? Ou, talvez, os sucessivos
ataques de drones, no Paquistão, desde 2004, pelas forças militares norte-americanas, que já
vitimou mais de dois mil paquistaneses82?
É inquietante que, apesar das centenas de milhares de pessoas assassinadas no Japão, no
Afeganistão, no Iraque ou no Paquistão, a resposta jurídica seja negativa para as perguntas
precedentes. Não se deve, afirmam juristas e politicólogos estadunidenses, confundir as ações
“contraterroristas” de um estado de guerra com os crimes praticados intencionalmente contra a
vida de civis inocentes, com fins políticos, imprescindíveis na tipificação do que se
convencionou chamar de “atentado terrorista”. Não é de estranhar que, quando pensamos nessas
categorizações móveis, elas em si mesmas adquiram importância inestimável na legitimação
das lutas e nas batalhas políticas (e discursivas) travadas em torno de sua legalidade ou não. As
classificações, sem dúvidas, dão a ver os enquadramentos flutuantes conferidos por tribunais
penais internacionais e por políticas de governo obstinadas em manter uma correlação de forças
que intensifique seu poderio e zona de influência ao redor do globo.
O estado de guerra global tem dividido o mundo, segundo esse vocabulário, em zonas
de intervenção direta dos países que cooperam na “guerra contra o terror” e aqueles
recalcitrantes. Mas, o que isto significa? Em que medida a produção dessa guerra ostensiva tem
aberto brechas para governamentalidades apoiadas no medo e na invasão manisfesta das vidas
e dos corpos das pessoas? Se lutar contra o terror demanda, por um lado, investimento maciço
na formação de complexos militares-industriais, nanotecnologias, bancos de dados e
dispositivos de vigilância ininterrupta, por outro, não se pode ignorar o impacto que essas
práticas de segurança, legais ou ilegais, têm exercido sobre as legislações nacionais, na
soberania estatal e na própria concepção do Estado democrático de direito. O que faria a
escritora Susan Sontag perguntar-se no ensaio Um Ano Depois, publicado originalmente como
Guerra? Batalhas Reais e Metáforas Vazias, na página Opinião do The New York Times, em

82
Em matéria da Reuters de 06/08/2016, publicada no Jornal O Globo, que trata, dentre outros assuntos, da ação
judicial impetrada pela União Americana de Liberdades Civis (ACLU), em sua demanda de transparência na
política de combate às redes de terror, estima-se que somente em razão dos ataques de drones, 2.300 suspeitos e
civis foram assassinados no Paquistão, no Iêmen e no Afeganistão. A justificativa dessas mortes, consideradas
“danos colaterais” da guerra ao terror, segundo os documentos oficiais, revelam a tentativa de fundamentar o uso
da força letal por meio de procedimentos com alto grau de imprecisão. Substitui-se, aqui, o corpo a corpo e a
possibilidade de autodefesa por um instrumento de homicídio instantâneo, controlado via internet, satélites e até
smartphones. Matéria disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/eua-revelam-politicas-de-drones-vetam-
detencoes-em-guantanamo-19869673. Acesso em: 20 ago. 2016.
47

2002: “será que alguém acha que essa guerra – a que os Estados Unidos declararam contra o
terrorismo – é uma metáfora?”83 E, prossegue a escritora:

Guerras verdadeiras não são metáforas. E guerras verdadeiras têm um início e um


fim. Mesmo o horrendo e intratável conflito entre Israel e a Palestina um dia vai
terminar. Mas a guerra decretada pelo governo Bush jamais terminará. Isso é um
sinal de que não é uma guerra, mas sim um pretexto para ampliar o poder
americano.84

Quando a guerra se destina a combater o terror, materializado na “rede multinacional


de inimigos”, ela se torna espectral, dilatada e incontestável, por escapar à regulação e à
normatização de tratados jurídicos e convenções internacionais. Indeterminada e sem projeção
de término, já que não envolve a rendição entre beligerantes ou armistícios, por ser unilateral,
a guerra se estende indefinida, se espraiando pelos confins do mundo, com a disseminação da
lógica marcial.
De um lado, estariam os aliados, combatentes do terror, espécie de “justiceiros” globais,
cuja imagem os super-heróis hollywoodianos fornecem perfeitamente ao imaginário coletivo;
de outro, os Estados vilões – rogues states –, que ameaçariam a paz mundial por se encontrarem
fora das normas de comportamento estabelecidas pela comunidade internacional. Ou melhor,
estabelecida para a comunidade internacional pelas potências hegemônicas. Países como Irã,
Coreia do Norte, Venezuela ou Síria, para citar apenas alguns, são considerados estados párias,
passíveis de sofrerem uma série de sanções e embargos como represália por serem outsiders
das convenções internacionais.
É preciso reforçar a todo o tempo que ninguém está imune aos ataques. Ao operar uma
inversão de perspectiva no problema, quem se coloca para fora do circuito das formas coloniais
de dominação, logo se vê enquadrado pela ótica do crime e do perigo. Afinal, quem ousaria não
compactuar com o que serviria para proteger e defender a todos contra o mal?
Ameaças “reais”, forças destrutivas, material invasivo: impelindo para dentro do círculo
os recalcitrantes, a militarização da vida cotidiana e os sistemas de segurança expelem o que
consideram economicamente supérfluo para integrar o circuito de bens, pessoas e mercadorias
a serem resguardados. O discurso da guerra e as estratégias de combate aos inimigos autorizam
o uso da força e engendram formas autoritárias nas relações sociais, caracterizadas pelo

83
SONTAG, Susan. Um ano depois. In:____. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos. Trad. Rubens Figueiredo.
São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 132.
84
Idem, ibid.
48

estímulo às subjetividades agressivas e pela violência sistêmica que vitimiza, sobretudo, grupos
em situação de vulnerabilidade e de exclusão social. Compreende-se que:

[...] a militarização não se restringe à presença de forças de segurança na esfera


pública. Trata-se do termo de definição das redes que infinitamente derivam em
conexões de forças descentralizadas. Referimo-nos aos discursos, estratégias,
instituições, arquiteturas, performances, representações, entre tantos outros
artefatos que eventualmente possam relacionar e efetivar técnicas e tecnologias
de condução de subjetividades. Assim, não existiria um ponto central ou de
intersecção das estratégias e ações do militarismo. A estrutura repressora do
Estado e o governo das subjetividades cristalizam os elementos de dominação,
fundamentalmente em torno do racismo, do patriarcalismo e da diferença de
classes.85

A colonialidade e a racialidade do poder punitivo se transmutam, assim, na estratégia


blindada de manutenção dos efeitos desumanizadores que sustenta o processo de militarização
da vida em resposta ao “crime”, à “infração” e ao “terror”. Terror e território, topografias do
medo e da violência, zonas de turbulência que indicam a fragilidade de um sistema baseado na
distribuição desigual da violência, que divide o mundo dicotomicamente e impõe o “Estado
democrático de emergência” como o “novo espírito” do terrorismo – de Estado.

Parasitas, insurgentes, terroristas

Dado que o tratamento do terrorismo como fenômeno jurídico significaria relegar às


instituições nacionais a responsabilidade de análise, de julgamento e de execução das penas
previstas para condutas criminalizadas, a abordagem jurídica do terrorismo é deixada de lado
em detrimento de uma definição “social” – mais facilmente circunscrita aos interesses dos
países e grupos hegemônicos. Essa definição parte dos meios utilizados, dos fins objetivados e,
sobretudo, da identidade dos agentes envolvidos nos acontecimentos. Ora, se não é estabelecida
uma definição jurídica mais precisa dos atos, mas leva-se em conta uma série de variantes de
amplo espectro, como é possível dissociar as manifestações políticas, as revoltas populares e os
atos legítimos, nesse caso, de certas práticas nomeadas como terroristas?
O terror, assim, decorreria do dano real ou potencial à vida e aos objetos das pessoas ou
do patrimônio público, ao infundir medo e pânico generalizados. Visa-se, nesse sentido, à
alteração de determinada ordem política pelo emprego da força. De acordo com Eugênio Diniz:

85
TELES, Edson. A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção. In: GALLEGO, Esther
Solano (Org.). O ódio como política: A reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 71.
49

Com tudo isso em vista, portanto, podemos entender terrorismo como sendo o
emprego do terror contra um determinado público, cuja meta é induzir (e não
compelir nem dissuadir) num outro público (que pode, mas não precisa, coincidir
com o primeiro) um determinado comportamento cujo resultado esperado é alterar
a relação de forças em favor do ator que emprega o terrorismo, permitindo-lhe no
futuro alcançar seu objetivo político — qualquer que este seja.86

A amplitude dessa definição de terrorismo, todavia, contribui de maneira inequívoca


para seus (ab)usos. Sua definição genérica abre brechas a análises demasiado subjetivas, já que,
conforme atenta Derrida, “[...] quanto mais confuso o conceito, mais ele se presta a uma
apropriação oportunista”87. Subjacente à guerra armada, há uma querela de palavras que, à
primeira vista, poderia parecer bastante vã em certo sentido. Mas seria cometido um grande
erro em não dar importância a ela. Tomar o enunciado acima como definição unívoca do termo
“terrorismo” – e a maior parte deles possui formalização similar – implica em uma série de
consequências práticas a que temos visto nos últimos anos, como a caça desmesurada a um
“inimigo qualquer”88 e anônimo. Desse modo, essa definição tem orientado diversas estratégias
de governo, em cuja base está o emprego sistemático da coação e da violência, por meio das
táticas de “contraterror”. Como irá propor Deleuze em um dos ensaios de Crítica e Clínca,
“destruir, e destruir um inimigo anônimo, intercambiável, um inimigo qualquer, tornou-se o
ato mais essencial da nova justiça.”89
A polêmica tentativa de definição do terrorismo (do conceito e, consequentemente, dos
atos), entretanto, não chega a termo por uma acepção consensual ou um solo discursivo comum.
A ONU já examinou mais de cento e cinquenta definições, todas elas rejeitadas devido à sua
perspectiva unilateral. Se, hoje, organizações como HAMAS, ETA, JIHAD Islâmica ou o
ISIS/Estado Islâmico são classificadas como terroristas, sem contestação, por conta de suas
atividades, bastaria lembrar, com o intuito de apresentar o limite dessas definições, que Nelson
Mandela e o Congresso Nacional Africano (ANC), por exemplo, foram considerados por longa
data como terroristas pelo governo norte-americano e pelo governo do apartheid sul-africano;
ou mesmo o movimento da liberdade da Resistência Francesa face ao governo colaboracionista

86
DINIZ, Eugênio. Compreendendo o Fenômeno do Terrorismo. In: BRIGADÃO, C.; PROENÇA JR., D. Paz e
Terrorismo. São Paulo: Ed. Hucitec, 2002, p. 13.
87
BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: diálogos
com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 113.
88
Cf. VIRILIO, Paul. L´insecurité du territoire. Paris: Stock, 1976.
89
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 62.
50

de Vichy; bem como diversos movimentos de libertação nacional, que combateram ditaduras,
neocolonialismos e ocupações militares em seus territórios, no decorrer do século XX.
É desse modo que, segundo Foucault, “[...] quando se dá como expressão de uma
nacionalidade que não tem ainda nem independência nem estruturas estatais e reivindica obtê-
las, o terrorismo é finalmente aceito”90. A ressalva do filósofo pode ser compreendida quando
pensamos nas guerras de descolonização e, especialmente, na Guerra da Argélia, que tomou
curso entre 1954 e 1962, cujos membros de libertação nacional eram classificados pelo governo
francês como “terroristas”. Foucault parece ter em mente que, enquanto movimento
revolucionário ou nacionalista, todo movimento tipificado como “terrorista” tão logo obtenha
êxito em seus propósitos, deixa de sê-lo, segundo as “definições” oficiais. Movimentos de
independência nacional, nesse sentido, podem ser considerados “terroristas” segundo uma
perspectiva prévia à autonomização ou à fundação de um Estado – e exemplos históricos se
multiplicam, do reconhecimento do Estado de Israel à Guerra de libertação nacional da Argélia
ou à luta (em curso) pelo reconhecimento do Estado Palestino. Como lembra Chomsky, “[...]
até mesmo os nazistas condenaram duramente o terrorismo e promoveram atos que chamavam
de ‘contraterrorismo’ contra os partisans terroristas”91.
Caso deixemos para segundo plano a discussão sobre a legitimidade ou não dos fins a
que se destinam as ações, mas enfatizarmos as suas consequências, os terrorismos têm como
marca distintiva o uso repentino e desmedido da violência, com objetivos políticos e uso
enfático do medo para intimidação de civis, de instituições e de governos.
Ao romper o pacto de segurança firmado entre a população e o Estado, expondo os
governados aos riscos dos quais o pacto deveria resguardar, os terrorismos evidenciam a
vulnerabilidade e a tensão que atravessa toda uma prática de governamento, pautada em
modelos securitários, na gestão burocrática dos riscos e da letalidade estatal e na proteção
seletiva dos agentes públicos, com vistas a barrar eventuais ameaças. Assim, em entrevista
intitulada Segurança e Estado, concedida a R. Lefort em novembro de 1977, Foucault
ressaltaria que “[...] o que choca no terrorismo, o que suscita a cólera real e não o disfarce do
governante é que precisamente o terrorismo o ataca em um plano em que justamente ele afirmou
a possibilidade de garantir às pessoas que nada lhes acontecerá”.92 A fratura exposta resultante

90
FOUCAULT, Michel. “Michel Foucault: la sécurité et l’État”. In:_____. Dits et Écrits II. Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 383. Tradução minha.
91
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.
105.
92
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: la sécurité et l’État. In:_____. Dits et Écrits II. Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 385-386. Tradução minha.
51

dos atentados revela, por sua vez, a fragilidade de uma técnica de governo que, de cima a baixo,
revestiu a população em uma miríade de dispositivos de segurança, com a garantia de protegê-
la em troca de sua integração. Daí “[...] o caráter complementar da seguridade com a segurança,
e [...] o vínculo direto entre as duas modalidades de gestão das populações que trabalham em
prol da boa ordem social”93.
É notório, de outra via, que os terrorismos são fenômenos políticos que não se
circunscrevem exclusivamente a determinados grupos nacionais ou a redes transnacionais,
como se pretende instituir pela narrativa colonial hegemônica. A instabilidade semântica na
linguagem pública, perpetuada sobretudo pelos meios de comunicação de massa, revela um
problema irredutível que não se restringe aos limites dos conceitos.
Não deixa de ser curioso, como nota Heleno Fragoso94, que “[...] as razões pelas quais
o rótulo ‘terrorista’ é aplicado num caso, e não no outro, parecem ter pouco a ver com a natureza
dos atos: elas derivam dos interesses da reação oficial a tais atos”95. Analisar os terrorismos,
portanto, exige um olhar atento aos seus efeitos e aos “interesses” envolvidos em sua
designação. Desse modo, problematizar a noção de terrorismo significa empreender uma crítica
com objetivo de retraçar as estratégias levadas a cabo em sua construção como fenômeno
político difuso e dos usos discursivos a que ele se presta sem partir de uma suposta
autoevidência – que, ademais, como atenta Derrida, fortalece o propósito das causas terroristas,
em todos os seus âmbitos.
Judith Butler, em Quadros de Guerra, sintetiza a ambiguidade das tipificações de modo
interessante, trazendo para primeiro plano o problema dos enquadramentos que sustentam as
designações:

Como sabemos, o rótulo ‘terrorista’ pode ser aplicado de maneira indiferenciada


e irrefletida tanto a grupos de insurgentes quanto a grupos de contrainsurgentes;
tanto à violência patrocinada pelo Estado quanto à violência não patrocinada pelo
Estado; tanto àqueles que reivindicam formas de governo mais plenamente
democráticas no Oriente Médio quanto, até mesmo, aos que criticam as medidas
repressivas implementadas pelo governo norte-americano.96

93
CASTELO BRANCO, Guilherme. A seguridade social em Michel Foucault. Revista Ecopolítica, São Paulo, n.
6, jan./abr. 2013, p. 81.
94
A tese apresentada por Heleno Fragoso para concurso público de provimento do cargo de Professor Titular de
Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi publicada em 1981 pela Editora Forense. Em
Terrorismo e Criminalidade, Fragoso trata especialmente dos aspectos jurídicos e criminológicos do fenômeno do
terrorismo.
95
FRAGOSO, Heleno. Terrorismo e criminalidade política. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981. p. 5.
96
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 218-219.
52

O uso das tecnologias computacionais também significaria uma complexificação e um


adensamento dessas diferenciações. Isso porque a “era da informação” trouxe em seu bojo
outras modalidades de terrorismos: ciberterrorismo, ciberguerras, bioterrorismo ou terrorismo
nuclear são expressões que se difundiram amplamente para designar esses outros “territórios”
de ação do terror, seja pela via dos trânsitos virtuais ou mesmo pelo risco da utilização de armas
de destruição em massa – nucleares, químicas ou biológicas.
Se as bombas atômicas, por seu potencial destrutivo, já significavam o paroxismo do
poder devastador da tecnologia de guerra, por colocar em xeque o extermínio das condições de
vida do planeta97, tal como Hannah Arendt aponta em sua A Condição Humana, de 1958, o
risco de uma catástrofe total, hoje, redimensiona a antiga ameaça com o acréscimo de um fator:
a imprevisibilidade dos ataques, na medida em que eles se dissociam dos protocolos da
declaração de guerra entre Estados nacionais. Ademais, “capitalizando política e
economicamente o medo, em função dos mais diversos interesses – das indústrias bélicas e
petrolífera ao fomento das demandas por seguros, por lei mais rígidas de segurança”98, a
insegurança passa a ser disseminada de modo hiperbólico.

... E o bárbaro chegou

Na aulas de março de 1976 do curso Em Defesa da Sociedade, Foucault, ao tratar dos


dispositivos de saber e poder concernentes ao discurso histórico-político, aponta para um
deslocamento ocorrido no século XVIII em torno da discussão do elemento nacional. À escrita
da história pautada no paradigma historiográfico da realeza, cuja abordagem radicava em um
saber histórico dos direitos naturais, passa-se a se opor a ideia de uma tensão belicosa
permanente na formação dos saberes históricos.
Se as lutas e os enfrentamentos ganham primeiro plano na compreensão da história é
devido ao entendimento de que “[...] a guerra se trava, portanto, através da história, e através
da história que a narra”99. É o próprio campo das enunciações, da narratividade e da escrita da

97
“Os primeiros instrumentos da tecnologia nuclear – os vários tipos de bombas atômicas que, se deflagradas em
quantidades suficientes, que não precisam ser muito grandes, poderiam destruir toda a vida orgânica da Terra –
apresentam uma evidência suficiente da enorme escala em que tal mudança poderia ocorrer”. ARENDT, Hannah.
A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 186.
98
FERRAZ, Maria Cristina Franco (2006). Terrorismo: ‘nós’, o ‘inimigo’ e o ‘outro’. In: PASSETTI, Edson &
OLIVEIRA, Salete (Org.). Terrorismos. São Paulo: EDUC. p. 45.
99
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 206.
53

história que se concebe como atravessado internamente pelas relações de força que, longe de
se restringirem aos ofícios da história nacional, desempenham um papel importante no jogo do
poder, das suas estratégias, dos seus fluxos e refluxos.
É nesse contexto que emergirá a figura do bárbaro como tática política do discurso
histórico. O bárbaro, segundo Foucault:

É alguém que só se compreende e que só se caracteriza, que só pode ser definido


em comparação a uma civilização, fora da qual ele se encontra. Não há bárbaro,
se não há em algum lugar um ponto de civilização em comparação ao qual o
bárbaro é exterior e contra o qual ele vem lutar. Um ponto de civilização – que o
bárbaro despreza, que o bárbaro inveja – em comparação ao qual o bárbaro se
encontra numa relação de hostilidade e de guerra permanente. Não há bárbaro sem
uma civilização que ele procura destruir e da qual procura apropriar-se. O bárbaro
é sempre o homem que invade as fronteiras dos Estados, é aquele que vem topar
nas muralhas das cidades.100

Essa imagem do bárbaro, esboçada por Foucault, longe de ser uma descrição meramente
figurada, poderia bem definir a representação do estrangeiro a partir da constituição de certo
imaginário nacional, pois o medo desse que surge “contra o pano de fundo da história”101, como
símbolo da rapina e da dominação, não cessou de justificar desde então as medidas restritivas
e bélicas de que se desejou fazer recurso.
O bárbaro, como aquele que não suporta outras formas de vida, para além daquela que
rege o seu modo de existir, será categorizado, então, nos termos do estrangeiro. O estrangeiro,
enquanto estranho que chega a um território nacional e que traz em seu corpo uma lei
desconhecida, é, por extensão, a continuidade do bárbaro, exterioridade de fora dificilmente
assimilável às identidades internas das sociedades nas quais se encontram.
Forasteiros e “exóticos”, provenientes de mundos misteriosos e constituídos por lógicas
outras de pensamento e de organização social, serão logo associados aos bandos por um traço
comum: a “incivilidade” característica de quem não conhece os códigos, as leis e os costumes
nacionais.
Não conhecem e, ainda que assimilem certas características, serão sempre cultural,
racial e politicamente subordinados. Naturalmente inferiores, “o bárbaro, em compensação, não
pode não ser mau e maldoso, mesmo que se lhe reconheçam qualidades. Ele só pode ser cheio
de arrogância e desumano”102. Diante de sua “desumanidade”, cabem às polícias e aos exércitos

100
Idem, p. 233.
101
Idem, p. 235.
102
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 235.
54

o papel de vigiar e punir esses inimigos, senão declarados, pelo menos tácitos, que exigem a
guarda permanente das forças de ordem. Como o faz o tenente Giovanni Drogo, de O Deserto
dos Tártaros103, cuja espera converte-se numa espécie de fixação obsessiva: para combater
esses inimigos, deve-se dedicar a própria existência. Ou dela abdicar, custe o que custar.
Daí a compreensão que categoriza os povos islamizados, latinos, africanos ou asiáticos
como os “novos bárbaros”. Ou seja, povos primitivos e incivilizados, que transitam entre as
fronteiras nacionais e que materializam não apenas aquilo que não “somos”, mas também o que
não desejamos ser ou ter entre nós, haja vista que “[...] seu rosto nos parece hediondo, sua
inteligência nos parece limitada, seus gostos são vis; por pouco não o tomamos por um ser
intermediário entre a besta e o homem”104. Esse “nós”, plural e abstrato, tornado o paradigma
do sujeito autorreferenciado, irá instituir a voz plasmada da identidade nacional, cuja marca é a
redução das múltiplas formas e possibilidades de vida a um padrão único identitário, que tornará
possível o mútuo reconhecimento dos “iguais”. Não é à toa que o humanismo jurídico buscou
estabelecer pilares bastante sólidos que permitissem justificar o afastamento entre o humanum
e o barbarum e a sua exclusão absoluta. Ademais, como nos recorda Costas Douzinas, “[...]
não apenas de bárbaros estrangeiros, mas também de mulheres e pessoas não-brancas”.105
Há, contudo, nesse debate, um deslizamento semântico significativo. Hoje, diferente do
campo referencial enfatizado na epistemologia política europeia de guerra, o bárbaro não reflete
mais uma condição estritamente de natureza política ou linguística, mas uma subjetividade
hedionda, que suscita o temor por sua diferença orgânica. Ora, se o extremismo a que se deseja
conferir aos bárbaros é a impossibilidade de conviver com a diferença106, como justificar a

103
Cf. BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
104
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, vol. I – Leis e costumes. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 396.
105
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Trad. Luzia Araújo. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.
220.
106
Sobre a impossibilidade de conviver com a diferença do outro e a chancela do discurso democrático e
multiculturalista normativos, pode-se citar o intenso debate acerca do uso dos véus em locais públicos por
praticantes do islamismo, ocorrido na França. Este debate foi propulsionado pela Lei francesa de número 524/2010
que proibiu o uso do véu islâmico integral (burca e niqab), por conta da necessidade das autoridades “de identificar
aos indivíduos para prevenir atentados contra a segurança das pessoas e dos bens e lutar contra a fraude de
identidade”. Ora, que isso afete o direito à identidade cultural e religiosa, não é novidade. Pelo menos, tal como
colocado desde as discussões em torno da Lei francesa de número 228/2004, que proibiu o uso de signos ostensivos
de adesão religiosa nas escolas, colégios e liceus. Mas, o que há ainda de mais perverso nos debates posteriores,
nos termos da defesa da segurança e da democracia, é a estigmatização desse segmento social, marginalizado
segundo os estereótipos que ligam as práticas de violência política aos signos do islamismo. Além da França,
Bélgica (2011), Holanda (2015), Itália (2015), Bulgária (2016), Áustria (2017), Dinamarca (2018) e, em parte, a
Alemanha (2017) também adotaram essas medidas proibitivas. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, por sua
vez, considerou que a lei não feria a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Affaire S.A.S. c. France, nº
43835/11).
55

morte “racional” desses Outros, em contextos nos quais vigora o discurso democrático, sem ser
enredado em uma arapuca discursiva? É aqui que a erradicação dos indivíduos alocados nesse
grupo, sobretudo dos migrantes africanos e de cultura árabo-muçulmana (pejorativamente
alcunhados de towel-heads – os “cabeças-de-pano”) será chancelado pelo amálgama entre seus
traços étnico-culturais, suas características biológicas e o risco de futuros atentados terroristas.
Nesse âmbito, também, prefigurará, antecipadamente, o fundamentalismo identificado em todas
as suas práticas quando se tratar de documentar, de modo ordenado, as diferenças.
Em um quadro fundamentalmente desigual e hierarquizado, esse processo reitera um
mundo que “[...] em nada coincide com o nosso; em suma, não faz parte do nosso mundo e, por
isso, não poderia servir de base à experiência de uma cidadania comum”107. No limiar entre um
“nós” virtual e os “Outros”, abre-se um espaço de exceção. As políticas públicas de segurança,
desse modo, irão reconhecer nas migrações a porta de entrada desses “bárbaros” que, em busca
de asilo, trariam em si mesmos os perigos “que nascem em seu próprio corpo e de seu próprio
corpo”108. Não surpreende que as faixas de fronteira se tornem progressivamente “zonas de
segurança” altamente militarizadas e vigiadas para impedir a entrada dos “maus fluxos”. E que
capitais humanos inúteis ao sistema de produção econômica sejam imediatamente descartados
ou repatriados como “supérfluos”, “indesejáveis”, “supranumerários”. Mesmo que sejam
provenientes de zonas de conflito e que, de acordo com o direito internacional dos direitos
humanos, lhes seja previsto o direito de asilo e de migração:

E logo adiante da fronteira entre ‘nós’ e os ‘outros’ está o perigoso território do


não-pertencer, para o qual, em tempos primitivos, as pessoas eram banidas e,
onde, na era moderna, imensos agregados de humanidade permanecem como
refugiados ou pessoas deslocadas.109

Com essas práticas, reativa-se a seletividade das concessões de asilo político. Para
conter esses trânsitos, são realizados monitoramentos, barreiras de contenção são erigidas e os
velhos muros e arames farpados se transformam nos novos emblemas de um tempo que fez de
sua queda a promessa de uma nova ordem mundial. Não seria necessário inserir nessa nova

107
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
157.
108
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 258.
109
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 50.
56

ordem algumas aspas, pois, se há algo de novo nessa ordenação é o deslocamento da estrutura
civilizatória e o seu reenquadramento nos moldes da segurança e do progresso.
O barbarismo do migrante é a justificativa arbitrária para que se perpetre a barbárie sem
termo. Barbárie que, no corpo retesado das leis de segurança contemporâneas, irá ressoar a
lógica de muitos presidentes, primeiros-ministros e rainhas de copas, de matiz mais kafkiana
que o caleidoscópio colorido do espelho de Alice: “sentença, primeiro... veredito, depois.”110
Porque, no mundo das maravilhas, as histórias de terror prosseguem tiradas da cartola pelos
velhos chapeleiros e contadas, em tom imperativo, por aqueles que não deixaram de ordenar a
lei imperial do mundo. Dedo em riste, missiva em mãos, convite especial para, do lado de fora,
participar da grande festa da vitória: “I want you, my baby... I want you.”111

2.2 UM ENTRELAÇAMENTO: TERRORISMOS E BIOPOLÍTICA

O corpo é aquele que não aguenta mais.

David Lapoujade, O corpo que não aguenta mais

Não restam dúvidas de que a “ameaça terrorista” dos últimos anos tem sido amplamente
utilizada pelos Estados em função de seus interesses políticos e econômicos. A escalada
vertiginosa de ações individualizadas – dos chamados lobos solitários [lone wolfs] – e a
expansão de movimentos como o Salafismo, a Jihad islâmica e o Califado são consideradas as
razões para as intervenções bélicas, na tentativa de refrear o que se concebe como o grande
perigo do início do século.
Se, de um lado, historicamente, as duas Grandes Guerras do século XX foram
expressões paradigmáticas com relação à escala do poder bélico, de outro, os países beligerantes
se apoiavam nos protocolos de guerra declarada para levar a cabo a devastação de amplas
extensões territoriais e de seus contingentes humanos. É com base na lógica da destruição total

110
CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Cap. XII. Domínio Público. Disponível em
https://pt.wikisource.org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas/Cap%C3%ADtulo_XII. Acesso em: 30
jul. 2018.
111
Em 1917, o artista James Flagg desenha o cartaz que se tornaria mundialmente famoso com a personificação
nacional dos Estados Unidos da América na figura de Tio Sam [Uncle Sam]. No pôster, encomendado pelas Forças
Armadas dos Estados Unidos, que recrutava soldados para a Primeira Guerra Mundial, Tio Sam é representado
com o dedo em riste, com as cores da bandeira norte-americana, e com a sentença no topo do cartaz: "I Want You
for U.S. Army" ("Eu Quero Você para o Exército dos EUA").
57

do opositor até sua rendição, afinal, que o direito de guerra se consolida e se efetiva até o
momento da vitória de um dos agentes.
As duas Guerras, empreendida por meio da coligação de grandes blocos regionais,
antagonizariam ou uniriam nações segundo interesses geopolíticos comuns, e demonstrariam
visivelmente a potência efetiva das forças em jogo, na medida em que, de um lado ou de outro,
se produzissem mais rastros de destruição, de aniquilamento, de extermínio inclemente ou de
desenraizamento de parcelas expressivas de populações regionais, levadas ao êxodo forçado
para fugir dos percalços da guerra.
Hoje, porém, a despeito de muitos desses efeitos se manterem, uma outra economia da
guerra parece se esboçar. Pois, ainda que os blocos aliados operem de modo conjunto a partir
de diretrizes similares, não se pode deixar de notar as especificidades de projetos bastante
distintos como móbil dessas lutas – e mesmo nas transformações do que se concebe por direito
de guerra.
Esse quadro se deve ao fato de o discurso salvacionista já não dar mais conta de
apresentar, por si só, uma saída interventiva fácil, capaz de justificar a ingerência em outras
nações, em que pesem os marcadores discursivos característicos das intervenções em nome da
“democracia”, da “liberdade” e do “estado laico e republicano”. Em contrapartida, operações
militares localizadas são empreendidas com o objetivo de conter a “onda terrorista”. Muitos
desses regimes ditos violentos foram, a propósito, sustentados por longa data pelas potências
hegemônicas do Norte.
Por que razão, todavia, a violência do Boko Haram contra a população do norte da
Nigéria, ou os massacres contra as minorias cristãs e yazidi, no Iraque, para citar apenas dois
exemplos, não recebem a mesma atenção por parte das nações ocidentais e dos organismos
internacionais? No interior da guerra contra o terror, parecem se entrelaçar lógicas heterogêneas
de governo, com vistas à instauração de procedimentos de organização, gestão e eliminação de
parcelas das populações através de uma série de procedimentos direcionados tanto aos corpos
individuais quanto às massas.
Esses agenciamentos múltiplos e cada vez mais refinados – como os intrincados
sistemas biométricos de segurança, o controle ostensivo dos fluxos nas faixas de fronteira ou o
uso de alta tecnologia de guerra para contenção de conflitos nacionais – são levados a cabo em
prol da tentativa de impedir que a ameaça invisível dos terrorismos alcance os Estados
nacionais. Na prática, no entanto, eles produzem um revestimento autolegitimatório dos estados
excepcionais e a salvaguarda para matar em um contexto em que o medo encontra terreno fértil
para se disseminar.
58

Controles punitivos, fronteiras móveis

É nesse cenário que a governamentalidade pelo terror desponta como modo de governo
da e pela violência, por excelência, sob o signo redimensionado da cultura punitiva de
extermínio e da conformidade com a lei (ou, justamente, por meio de sua suspensão) na
justificativa da letalidade estatal em larga escala – e, aqui, é importante lembrar, por exemplo,
do papel da economia das penas e dos castigos desempenhado pelos tribunais penais, que,
frequentemente, oferecem subsídios jurídicos que, em nome da razão de Estado, apontam para
reafirmação do caráter de legítima defesa por parte dos agentes públicos contra aqueles que são
construídos como inimigos públicos do Estado.
Os tribunais penais internacionais, por sua vez, evidenciam no decorrer de seus
processos que “a segurança do Estado não teria sido superada, mas recondicionada à segurança
humana, o que articularia de modo inédito uma dimensão universal – os direitos humanos – a
um elemento particularista, a segurança de cada Estado”112. Essa noção de “segurança humana”,
em torno da qual o novo ordenamento securitário mundial parece gravitar, opera um rearranjo
institucional na gestão dos fluxos transterritoriais de segurança. Doravante, proteger significa
tanto corresponsabilizar os cidadãos nessa tarefa quanto zelar pelos fluxos positivos, isto é, que
maximizem os benefícios produtivos e diminuam os riscos para determinados grupamentos da
população enquanto expõem outras parcelas ao perigo.
É desse expediente burocrático e administrativo de que se vale, não raro, a justiça
criminal ao atuar na produção de um efeito de verdade pela via dos atos normativos da lei, que
unem o direito à violência legitimada no controle de territórios e da proteção da vida. Esse
paradigma de governo ata as relações de poder cotidianas ao aparato jurídico, de modo que, por
vezes, violência e direito aparecem intrincados no marco do estado de exceção. O “uso legal da
força” justificaria, assim, mesmo os massacres113, pois o estatuto jurídico e político dos
cidadãos ficaria dependente da decisão soberana (refletida em todas as suas instituições) das
vidas matáveis ou daquelas socialmente valorizadas. Ao analisar essa contradição que justapõe
em seu cerne direito e violência, Derrida salienta em Força de Lei que:

112
RODRIGUES, Thiago. Ecopolítica e segurança: a emergência do dispositivo diplomático-policial. Revista
Ecopolítica, São Paulo, vol. 1, n.º 5, p. 143-144, jan./abr. 2013. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/15217. Acesso em: 30 ago. 2016.
113
Segundo Zaffaroni, “[...] massacre é, antes de tudo, um homicídio múltiplo, embora na forma de prática, ou
seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de algum segmento. Assim, não entram no
conceito de massacre os casos de assassinatos policiais isolados que não sejam resultado de uma prática
sistemática”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: Conferências de criminologia cautelar. Rio de
Janeiro, Saraiva, 2012. p. 358.
59

[...] A violência não é exterior à ordem do direito. Ela não consiste,


essencialmente, em exercer sua potência ou uma força brutal para obter tal ou tal
resultado, mas em ameaçar ou destruir determinada ordem de direito, e
precisamente, nesse caso, a ordem de direito estatal que teve de conceder esse
direito à violência [...].114

Nenhuma incompatibilidade efetiva então se constitui se o Estado de direito é observado


não como oposto ao Estado de polícia, mas como dupla face de práticas concretas de exercício
do poder em que a normalização e o direito estão implicados. Mas, trata-se aqui de pensar,
também, como o nexo entre a vida e a política foi redimensionado diante da guerra declarada
ao terror.
Se desde o século XVIII, como investiga Foucault, o poder passa a ter por função a
administração da vida em seus aspectos mais ínfimos, mobilizando saberes como a estatística,
a demografia e a epidemiologia, para maximizar as forças do corpo social, recentemente essa
gestão biopolítica parece ter adquirido outros contornos com a emergência das práticas e dos
procedimentos preventivos ligados aos terrorismos, mesmo que esse modo de governo não seja
voltado efetivamente para o enfrentamento do terrorismo transnacional, mas sobretudo para
intensificação do estado de intervenção pública militarizado, outorgado em “defesa da
segurança nacional”.
O que não significa, porém, apresentar esse entrelaçamento como mera aglutinação de
técnicas da racionalidade biopolítica ressignificadas em uma governamentalidade do terror.
Porém, é preciso pensar quais inflexões foram operadas para a constituição dessa economia de
governo e de guerra em que o enquadramento necro-biopolítico e dos racismos de Estado se
justapõem às razões do decreto do estado de exceção e da guerra preventiva ao terror, no ponto
de contato entre o jurídico-institucional e o biológico-político.
Com os racismos de Estado e com a suspenção das liberdades fundamentais nos estados
de emergência, por duas vias distintas, mas não antagônicas, uma outra mecânica da inclusão
excludente tem se constituído. Mecânica cuja capacidade de produção de vestígios ostensivos
da morte é imensurável, gerando não apenas grupos mais vulneráveis às ações das instituições
coercitivas e punitivas do Estado, mas de sua identificação com a percepção do perigo
generalizado e dos riscos multifacetados que justificam discursivamente as próprias
intervenções.

114
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Trad. Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 81.
60

Para Foucault, o racismo de Estado seria caracterizado como “[...] um racismo que uma
sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios
produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões
fundamentais da normalização social”115. Ora, se nessa perspectiva a política é compreendida
como o desenrolar de uma guerra permanente contra indivíduos perigosos, que não cessariam
de se apresentar no interior dos Estados, uma economia política da vida estenderá de modo
indefinido o seu domínio de intervenção sobre eles, pois:

Se uma pessoa ou um grupo são considerados perigosos, e não é necessário provar


nenhum ato perigoso para estabelecer a verdade nisto, então o Estado converte
esta população detida em perigosa, privando-a unilateralmente da proteção legal
correspondente a qualquer pessoa sujeita às leis nacionais e internacionais.116

Privados da proteção jurídica contra violações dos direitos fundamentais ante às


instituições estatais e envoltos pelo medo fomentado no imaginário coletivo, esses segmentos
populacionais considerados perigosos serão construídos como “parte de um todo maligno”117.
Há uma distância considerável, nesse sentido, entre o viés jurídico formal da garantia dos
direitos e a realidade prática da vida social.
Inscritas no sistema social de modo criminalizado – frequentemente referidas como
populações vulneráveis ao crime – , materializado e difundido por meio de uma série de práticas
e políticas públicas estruturalmente diferenciadas, reintroduz-se continuamente o corte entre “o
que deve viver e o que deve morrer”. Butler atenta ainda para o fato de que “[...] a condição
precária também caracteriza a condição politicamente induzida de maximização da
precariedade para populações expostas à violência arbitrária do Estado que com frequência não
têm opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção”118. Ou seja,
se é o Estado que expõe de maneira diferenciada esses grupos à violência, à condição de
precariedade e à morte, é contra suas instituições que essas pessoas deveriam ser defendidas.
Não é de estranhar que os mecanismos médico-jurídicos das biopolíticas estatais e os
procedimentos soberanos de exceção da governamentalidade do terror se convertam, assim, na
face reversível de uma estratégia complementar de poder, em cujo interior a vida dos

115
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 73.
116
BUTLER, Judith. Vida precaria: El poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidos, 2009. p. 108.
117
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Rio de Janeiro,
Saraiva, 2012. p. 383.
118
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 46-47.
61

governados se torna o ponto de convergência de investimento ou de eliminação da “nova”


ordem política. Com a instauração dos estados de emergência, abre-se o espaço de vigência de
uma zona na qual as prerrogativas legais e as liberdades individuais são suspensas em nome da
ameaça fantasmal que ronda o Estado.
O necrobiopoder estatal que sustenta o regime de guerra (warfare) – das intervenções
militares urbanas à guerra global ao terror – confere as premissas materiais e político-jurídicas
para levar adiante o extermínio dos grupamentos étnicos e raciais desumanizados, o que, aliás,
constitui o paradigma histórico da dominação colonial. Afinal, “o exército é polícia
biopolítica”119 que operacionaliza a guerra social de extermínio das humanidades
desconsideradas ou indesejáveis, contra as quais os aparatos bélicos respondem retraçando os
limites das “fronteiras dos fluxos de sangue”120.
Soma-se a isso outros modos de exclusão, de controle e de instrumentalização da vida
que perpetuam lógica similar de modulação racista, como o regime de encarceramento massivo
da população pobre e negra121, que evidencia a administração penal da vida em “[...] zonas
inteiras das cidades, onde os poderes públicos só aparecem para reprimir, [e] são invadidas a
qualquer momento, sob qualquer pretexto, por uma polícia que pratica extorsões, falsifica
flagrantes, tortura e mata”122. Terror racial naturalizado, cromatismo da dominação, prática de
morte-em-vida: para que(m) serve o sistema penal quando não temos dúvidas de que “a gestão
penal da insegurança social alimenta-se de seu próprio fracasso programado”123?
Fracasso, ma non troppo. Isto porque “[...] a máquina mortífera de terror contra a ralé
livre”124, como define Vera Malaguti Batista, é exitosa no que se propõe: criar a arquitetura
legal e institucional de exclusão e de extermínio operada pelas forças militares/policiais e pelo
sistema de justiça criminal. E isso sob a ordem democrática, com os braços armados do Estado

119
NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe Mario. GloBAL: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada.
Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 143.
120
Idem, Ibd.
121
Vejam-se, por exemplo, os dados publicados em fevereiro de 2018 acerca do sistema prisional brasileiro, cuja
população carcerária chega a 686.594 mil pessoas, segundo o último balanço. Desse total, 236.058 mil pessoas
(34,4% do total) estão privadas de liberdade provisoriamente, isto é, não possuíam ainda condenação judicial. Mais
da metade do total de presos é composta por jovens entre 18 e 29 anos, e quase 65% são negros. Atrás dos EUA e
da China, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. A maior parte das acusações criminais
está ligada ao tráfico de drogas (28%), cuja política proibicionista funciona como alicerce da lógica da guerra e da
atuação do aparelho repressivo-policial do Estado.
122
KOLKER, Tânia. A tortura e o processo de democratização brasileiro. In: RAUTER, Cristina, PASSOS,
Eduardo; BENEVIDES, Regina (Org.). Clínica e política. Subjetividade e violação dos direitos humanos. Equipe
clínica do Grupo Tortura Nunca Mais. Rio de Janeiro: Ed. Te Corá-Instituto Franco Basaglia, 2002. p. 42.
123
WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 145.
124
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, p. 145.
62

mobilizados para a garantia da paz, da segurança e da ordem, pois o genocídio passa a ser
“condição necessária para que as hierarquias de humanidade se mantenham.”125

Matar ou morrer

Refigurada, a suspenção das liberdades não se traduz somente na constituição


temporária de políticas de reclusão ou de espaços de confinamento, salvo em contextos de
conflitos iminentes ou subsequentes a confrontos em que a restrição ao direito à mobilidade
urbana ou os toques de recolher, por exemplo, passam a ser impostos. A permanente exposição
ao risco e a eliminação sistemática de camadas marginalizadas e vulnerabilizadas, vistas como
intrinsecamente perigosas e improdutivas, é revestida pela profilaxia dos procedimentos
protetivos e regulatórios, redistribuídos em uma série de expedientes destinados à gestão
técnico-administrativa da vida. Como lembra Agamben,

Se ao soberano, na medida em que decide sobre o estado de exceção, compete em


qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser morta sem que se cometa
homicídio, na idade da biopolítica este poder tende a emancipar-se do estado de
exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o ponto em que a vida cessa
de ser politicamente relevante.126

As vidas politicamente relevantes serão aquelas dignas ou indignas de serem vividas127.


Se, desde os atentados de 11 de setembro, a tensão entre a esfera político-jurídica dos direitos
civis e o os mecanismos de controle voltados aos corpos se acentuou, o alargamento das
possibilidades de intervenção passou a ser revestido do argumento legal da “segurança interna”
e de “defesa nacional” para levar a cabo seus intentos. Esse projeto, sem dúvida, dilatado de tal
modo a abarcar toda a população, desloca os propósitos de uma biopolítica estritamente
centrada na majoração das forças das populações, cujo reverso, pela via dos racismos de Estado,
era a necessidade de aniquilação de elementos considerados inferiores. A “tecnologia de poder

125
PIRES, Thula; CASSERES, Lívia. Necropoder no território de favelas do Rio de Janeiro. In: I CONGRESSO
DE PESQUISA EM CIÊNCIAS CRIMINAIS, I, 2017, São Paulo. Anais [...] São Paulo: IBCCRIM, 2017. p. 1459.
Disponível em: https: www.ibccrim.org.br/docs/2018/ANAIS-CPCRIM2017.pdf Acesso em: 20 jul. 2018.
126
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 138.
127
“Mais interessante, em nossa perspectiva, é o fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida
corresponda imediatamente a fixação de um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto,
ser morta sem que se cometa homicídio. A nova categoria jurídica de ‘vida sem valor’(ou ‘indigna de ser vivida’)
corresponde ponto por ponto, ainda que em uma direção pelo menos aparentemente diversa, à vida nua do homo
sacer [...]”. Idem, p. 135.
63

que tem como objeto e como objetivo a vida”128 prescinde, então, dessa racionalidade no
exercício do poder de morte. A condição para que se possa exercer o direito de matar passa, na
atualidade, por um corte que reativa o poder soberano de decisão sobre a vida digna. Soberania
assegurada pela economia da guerra ao terror, afinal a aceitabilidade é garantida com vistas à
erradicação do perigo, afinal:

[...] a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria a
minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior
(ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia;
mais sadia e mais pura.129

Essas vidas matáveis, capturadas pelo discurso da guerra, são imediatamente


desumanizadas, pois é por meio desse processo de esvaziamento de qualquer traço humano que
a violência homicida encontra sua justificação. Essas vidas inominadas, senão como
materialização inconteste e hiperbólica do mal, de acordo com Butler, estão inseridas em um
enquadramento que opera “[...] por meio de um apagamento radical, como se nunca tivesse
existido um humano, nunca houvesse existido uma vida ali, e, portanto, nunca tivesse
acontecido nenhum homicídio”130. Acaba-se por reproduzir, portanto, justamente a violência
que se deseja impedir.
O fato é que a governamentalidade do terror e a necrobiopolítica se entrelaçam
libidinosamente, a ponto de, considerados os pontos de convergência, não conseguirmos
identificar com facilidade onde começa uma e termina a outra. Amalgamadas em uma história
de amor e fúria, ambas colocam em xeque a liberdade e a vida, fixando-as a partir de suas
premissas em uma trama complexa na qual a violência é a contrapartida de um discurso
psicótico, por meio do qual o Estado parece querer dizer: “matei, sim, mas por amor”.

2.3 NECROPOLÍTICAS

ninguém coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impunemente.


Aimé Césaire, Discurso sobre o colonialismo

128
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 303.
129
Idem, p. 305.
130
BUTLER, Judith. Vida precária. Trad. Angelo Marcelo Vasco. Contemporânea – Revista de Sociologia da
UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, n. 1, p. 13-33, 2011.
Disponível em http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18 Consultado em 20
fev. 2018.
64

Ou talvez uma história de cadáveres e de fantasmas insepultos. De corpos mortos


expostos à luz do dia no asfalto quente; da necrose que se alastra por sobre a política, desde a
política e a partir dela; de tempos sombrios em que tudo está, obscenamente, explícito.
Manifestos como imperativos categóricos, sem véus e às claras, os modos
contemporâneos de submissão da vida ao poder da morte redimensionaram o poder e o direito
de matar que caracterizavam a soberania. Inscrita na ordem de um poder que acarreta a
“instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos
humanos e populações”131, a política como prática de guerra e em nome da guerra espectral
contra o terror torna-se a manifestação de um poder de extermínio absoluto de corpos inimigos.
Mas, se a lógica do inimigo/desumano se articula à eliminação sistemática dos corpos
inferiorizados, a luta que se trava em nome da vida e que demarca as fronteiras entre povos
hostis e povos amigos, não pode ser dissociada do modo de representação que mobilizou o
projeto colonial da modernidade. Disso resulta a necessidade de racialização das lentes
analíticas de um conjunto de práticas interventivas voltadas para o corpo (do) outro, pois, se
não é difícil depreender do discurso necropolítico os nexos entre o argumento biologizante da
raça e sua consequente hierarquização, as técnicas de dominação e de extermínio não deixaram
de ter por alvo privilegiado, como bem nota Achille Mbembe, vastas populações “[...]
submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de mortos-viventes”132.
É desse modo que, ao revisitar criticamente o conceito foucaultiano de biopoder, em
diálogo ativo com seu tempo e com a realidade pós-colonial, Mbembe irá propor a noção de
necropoder para analisar os modos contemporâneos de submissão da vida ao poder da morte.
A reconfiguração na atualidade das relações entre biopoder, estado de exceção e estado de sítio
combinaria em uma forma singular de terror, segundo o filósofo camaronês, a biopolítica, o
poder disciplinar e o necropoder. O que teria por consequência um conjunto de relações sociais
que inscrevem os corpos de maneira diferenciada na ordem do poder e na necessidade
permanente de um estado de emergência no interior do qual os “mundos de morte” tornaram-
se possíveis.
Porque, se Foucault analisa, de um lado, o biopoder como racionalidade política que
opera uma cesura biológica entre os vivos e o racismo de Estado como aquilo que torna possível

131
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 10-11.
132
Idem, p. 71. Optei por modificar a tradução de “vivos” por “viventes”, a partir da consulta ao texto original em
língua inglesa.
65

“[...] a condição para a aceitabilidade do fazer morrer”133, de outro, seria preciso pensar, para
além de Foucault, os “dispositivos de racialidade”134 e de colonialidade operados pelas
biopolíticas como lentes privilegiadas de análise dessa tecnologia de poder. Daí a necessidade
de “colorir”135 as grades de inteligibilidade e de pensar a presença do corpo negro e da negritude
como signos de morte no âmbito do biopoder.
Apesar da análise foucaultiana136 não se centrar explicitamente em categorias críticas
da raça, mas na história do discurso da “guerra das raças” como operação primordial do racismo
de Estado (de uma perspectiva, diríamos, genético-genealógica e não fenotípica), grande parte
das incursões posteriores inspiradas nesses instrumentos conceituais sublinham tanto o corte
étnico-racial como o corte de gênero, não destacados pelo filósofo francês. Como ressaltaria
Sueli Carneiro, em tese defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo,
em 2005, em um horizonte biopolítico:

No que diz respeito ao gênero feminino, evidencia-se a ênfase em tecnologias de


controle sobre a reprodução, as quais se apresentam de maneira diferenciada
segundo a racialidade; quanto ao gênero masculino, evidencia-se, a simples
violência137.

Ora, se há algo de simples na violência talvez seja a identificação rápida por parte dos
agentes públicos da lei entre o perigo potencial, o estigma (histórico) do devir-criminoso da
população negra e o uso indiscriminado da força coercitiva endereçado a esses corpos matáveis.
É a partir dos atributos raciais que a “[...] produção de condições de vida diferenciadas”138 irá
funcionar como fator determinante de estratificação social e de extermínio, segundo
estereótipos racistas e criminalizantes.

133
FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1975-1976. Paris: Seuil, 1997.
p. 228.
134
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 75.
135
Agradeço à Profa. Thula Pires do Departamento de Direito da PUC-Rio pelas considerações extremamente
importantes no que tange a esta abordagem. A sugestão para que as lentes analíticas fossem “coloridas”, bem como
para que se articulasse a questão das biopolíticas estatais à teoria crítica da raça e da colonialidade, conduziu-me
a um outro horizonte de investigação. A interlocução mais ativa com filósofas e filósofos africanos, sul-americanos
e que problematizam a questão colonial, como Achille Mbembe, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez ou Franz Fanon,
é resultado também deste diálogo com Thula.
136
De acordo com Mbembe (2018, p. 189), “[...] é preciso compreender que, para Foucault, o termo “raça” não
tem um sentido biológico estável. Designa tanto clivagens histórico-políticas quanto diferenças de origem, de
língua, de religião, mas sobretudo um tipo de vínculo que só é estabelecido por meio da violência da guerra”.
137
CARNEIRO, Op. cit., p. 72
138
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 74.
66

Não é à toa o fato de que o racismo institucional oriente as políticas públicas de


segurança militarizadas e que atinja de modo diferenciado as populações subalternizadas e
periféricas, com notável virulência orientada aos corpos negros. Os mecanismos de
normalização da violência sistêmica são regulados pelas práticas racistas. Assim, “[...] apesar
da intensidade e profundidade de seus efeitos deletérios, o racismo produz a naturalização das
iniquidades produzidas, o que ajuda a explicar a forma como muitos o descreve, como sutil ou
invisível”139.
Nesse contexto, esses corpos subjugados são transmutados em expressões materiais do
terror e da suspeição disseminadas não apenas no imaginário coletivo – como inimigo ou mal
absolutos –, mas também como alvos privilegiados nos quais o direito soberano de matar se
articula explicitamente à racionalidade instrumental e à desumanização dos sujeitos. E, como
figuras de uma exceção permanente, convertem-se, enfim, em corpos reificados nos quais as
intervenções necrobiopolíticas encontram território fértil para suas operações.
Consequentemente, trata-se, nessa perspectiva histórico-política, de sublinhar o “[...]
instrumento de produção e reprodução sistemática de hierarquias raciais e mesmo produção e
distribuição de vida e de morte”140.
Quanto a isso, tanto os meios de comunicação de massa quanto o senso comum
fornecem provas numerosas. Não precisaríamos esperar por analistas políticos argutos para
constatar que a economia punitiva que fundamenta essa dinâmica de vida e morte clandestina
trabalha, simultaneamente, a partir da criação do inimigo, da produção do medo e do estado de
emergência. Essas trajetórias que unem estado de exceção e relação de inimizade são
examinadas por Mbembe como “[...] a base normativa do direito de matar”141. É um outro nome
para o necropoder, cujos efeitos – políticos, discursivos, de verdade – são deslocados para o
alijamento dos direitos de cidadania de extensos segmentos sociais e para a sua consequente
descartabilidade. Por isso, as políticas de direitos humanos e o debate racial precisam estar
imbricados, pois, enegrecer o programa de direitos significa considerar uma perspectiva
antirracista e recentrar as disputas nas narrativas das lutas políticas de grupos étnicos e raciais
historicamente discriminados e perseguidos.

139
WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. In: Saúde e Sociedade [online], 2016,
vol. 25, n.º 3, p. 541.
140
CARNEIRO, Op. cit., p. 92.
141
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 17.
67

É importante ressaltar que, nas economias neoliberais e na divisão atual do trabalho,


essas dinâmicas de poder e de necropoder caminham lado a lado à precarização dos direitos
trabalhistas e da não compreensão do ser humano em sua integralidade. Porque, se esses corpos
são encarados como partes potencialmente descartáveis de uma engrenagem maior de produção
e de reprodução, as forças econômicas atuam igualmente no processo de objetificação dos
sujeitos. Veja-se, por exemplo, como os saberes médico-jurídicos são mobilizados para a
extração máxima das forças produtivas na ordem do capital e como legitimam políticas públicas
de flexibilização de direitos dos trabalhadores que incidem diretamente sobre sua saúde.
Contudo, a análise em torno da necropolítica proposta por Mbembe vai além. Ainda que
o filósofo recue no tempo para pensar como as premissas materiais para a instauração do estado
de exceção e das experimentações biopolíticas já haviam sido fornecidas pelo modelo da
escravidão instituído nas Américas e pelo sistema colonial da plantation. E talvez mesmo o que
poderíamos compreender como terror moderno. Porque ali se operaria uma cisão entre a
humanidade da pessoa escravizada e sua objetificação corporalizada142 como mera força
(re)produtiva de um sistema mercantil.
Em um campo hierarquizado de dominação, desprovidos de estatuto político e reduzidos
a seus corpos biológicos, essas pessoas escravizadas – simultaneamente concebidas como
propriedades dotadas de valor a serem conservadas e objetos de todo tipo de violência –, estão
no lugar da mais absoluta “conditio inhumana”143. Estatuto similar àquele das pessoas
confinadas nos campos de extermínio do século XX, haja vista que, no sistema colonial, se está
continuamente fora do estado normal da lei e das garantias constitucionais do estado de direito.
Há, porém, uma ambiguidade que se institui nesse contexto. Mbembe irá ressaltar que:

De fato, a condição de escravizado resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”,


perda de direitos sobre seu corpo e perda do estatuto político. Essa tripla perda
equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte
social (que é expulsão fora da humanidade).144
Expulsos da comunidade dos sujeitos autônomos, dotados de razão e de consciência
para gozar os direitos e as liberdades cidadãs, os corpos negros escravizados só puderam se

142
FANON, Frantz. A experiência vivida do negro. In:____. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da
Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 103 et seq.
143
AGAMBEN, Giorgio. “O que é um campo?”. In:_____. Meios Sem Fim: Notas Sobre Política. Trad. Davi
Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015a. p. 41.
144
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 27. Modifiquei a tradução de “escravo” para “escravizado”, de modo a
demarcar conceitualmente uma diferença, já que se trata de um processo de dominação sem qualquer naturalização
que o vocábulo “escravo” parece supor.
68

constituir em mercadoria e instrumentos de trabalho enquanto alienados de si mesmos e de


qualquer traço de humanidade que os aproximassem da comunidade dos falantes/pensantes145.
Mantidos em “estado de injúria, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade
intensos”146, homens e mulheres foram mutilados à medida que a desigualdade do poder sobre
a vida do outro adquiria a forma comercial. Como manifestação do estado de exceção, a
plantation é o campo de anomia colonial que instaura uma forma singular de terror pela via da
raça e do racismo.
Com a finalidade de “civilizar”, dada a suposta “inferioridade” natural dos povos do
Sul, o extermínio, a seleção de raças e a miscigenação são levados a cabo por meio da
truculência e da submissão dos corpos a regimes exploratórios de todo tipo. Por um lado, todo
um modelo de gestão do trabalho e da maximização de suas forças, atrelado a uma série de
controles espaço-temporais; por outro, a regulamentação do potencial reprodutivo, segundo as
teorias médico-legais orientadas para a eugenia, para questões de hereditariedade e de
degenerescência.
A proximidade com o que seria mais tarde, nos séculos XIX e XX, amplamente
empregado no território dos colonizadores europeus não é de se estranhar. À margem da lei e
de toda ordenação jurídica em vigor, a colônia se configura como espaço de experimentação
biopolítico e de execução de um poder disciplinar e soberano que adquirem os contornos da
lógica da guerra entre raças distintas. Por isso, estado de exceção, conforme a definição tardia
e polêmica de Carl Schmitt em sua Teologia Política, se associaria à soberania, na medida em
que “[...] soberano é aquele que decide do estado de exceção”147. Essa “[...] decisão em estado
puro”148, que, nas colônias, se respalda na permanente “[...] zona em que a guerra e desordem,
figuras internas e externas da política, ficam lado a lado ou se alternam”, seria justificada como
operação do estado de exceção “a serviço da ‘civilização’”. 149
A análise necropolítica como tentativa de concatenar conceitualmente os diversos
procedimentos de submissão da vida à morte em uma perspectiva colonial e racial não poderia
deixar de constatar a consequente militarização da vida cotidiana. Porque, ao inscrever a vida e

145
Segundo Sueli Carneiro (2005, p. 99): “O Não-ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não-
ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser pleno: auto-controle, cultura,
desenvolvimento, progresso e civilização. No contexto da relação de dominação e reificação do Outro, instalada
pelo processo colonial, o estatuto do Outro é o de ― coisa que fala”.
146
MBEMBE, Op.cit., p. 28.
147
SCHMITT, Carl. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988, p. 15.
148
Idem, p. 23.
149
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 35.
69

a morte em uma esfera de relações sociais e espaciais específicas de submissão, tratou-se de


ocupar territórios, de estabelecer fronteiras, demarcar zonas de controle geográficos e de
enclaves periféricos, de modo a controlar os trânsitos dos corpos e a categorizar as pessoas
fixando-as territorialmente. Mas não sem uma dificuldade topográfica que explicita mesmo a
natureza do problema – a um só tempo, geográfico, político e epistemológico. Pois, entre a zona
do ser e do não ser, do sujeito e do objeto, do homem civilizado e do animal selvagem, o
colonizado parece ocupar uma margem: a fronteira onde as tensões alcançam um grau elevado,
sem síntese final.
Talvez por isso ainda hoje essas fronteiras geográficas sejam a expressão de um
entrelugar político e de uma zona de penumbra por excelência. Ali, onde as duas margens se
encontram e ficam evidentes as distinções simbólicas que colonizam, ainda, o imaginário
cultural de quem se coloca ao lado do Ser e relega à terceira margem aquelas e aqueles que são
vistos como radicalmente outros.
70

3 OS VELHOS E OS NOVOS TERRORISMOS

De ânimo muito audaz seria quem | então se regozijasse ao ver tal esforço de
guerra sem se penalizar.

Homero, Ilíada, canto XIII

Quando Foucault proferiu a conferência Omnes et singulatim: para uma crítica da razão
política, na Universidade de Stanford, em 1979, o mundo experimentava ainda a partilha
simbólica que se refletia nas disputas estratégicas entre duas superpotências e suas visões de
mundo. Mas, as análises de Foucault não se detinham somente no diagnóstico das tensões
daquele momento, tampouco nas disputas ideológicas ou econômicas, ainda que naquele
mesmo ano seu curso Nascimento da Biopolítica fosse dedicado a investigar a relação entre
economia política, liberalismos e biopolítica.
Foucault, logo de saída, ao tratar do papel da filosofia na atualidade, é enfático quando
pensa que, desde Kant, a tarefa a que ela se dedica seria a de “[...] impedir a razão de ultrapassar
aquilo que é dado na experiência”150. Completa ressaltando que “[...] desde esta época – isto é,
com o desenvolvimento dos Estados modernos e a organização política da sociedade –, o papel
da filosofia foi também de vigiar os abusos de poder da racionalidade política – o que lhe daria
uma expectativa de vida bastante promissora”151.
O vaticínio de Foucault parece apontar para o exercício permanente que a filosofia tem
por desafio no campo das práticas políticas. Com a fundação dos Estados nacionais na
Modernidade e com a racionalidade política que lhes é constitutiva, não são raros os sintomas
dos excessos e dos abusos de poder que se rastreariam direcionados às populações nacionais. A
ironia é que à filosofia caberia essa vigilância constante, esse olhar reflexivo e atento sobre o
que se passa no presente, sem que isso lhe desse qualquer garantia de interferência em
determinado estado de coisas. Esse olhar de modo vigilante, porém, segundo o filósofo francês,
indica algo que se avizinha a uma certa resistência à razão política e aos poderes políticos da
razão, haja vista a ligação entre a racionalização e o abuso de poder.
Se, naquele momento, falar dessa racionalização significava problematizar as estratégias
de governamento das vidas, apoiadas em uma série de procedimentos regulatórios e

150
FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: vers une critique de la raison politique [1979]. In:_____. Dits et
Écrits II (1976-1988). Paris: Gallimard, 2001f. p. 954. Tradução minha.
151
Idem, p. 954.
71

mecanismos normativos, seja via intensificação da percepção dos riscos, seja pela via da cultura
de autoinvestimento produtivo, centrada em uma construção liberal do self, na virada deste
século essa razão talvez tenha ganhado outros matizes. O que não significa negar a atualidade
dessas análises, sobretudo quando o neoliberalismo se apresenta como modo de gestão das vidas
por excelência, a se disseminar por todos os países do mundo. Trata-se, sim, de analisar a
economia política dos governos que, desde o alvorecer do século XXI, e de modo mais radical
após os atentados de 11 de setembro de 2001, redimensionariam a prática e o pensamento
político mundiais.
É nesse contexto que os chamados “novos terrorismos” têm reorganizado as estratégias
no campo das políticas públicas de segurança e das relações internacionais nos últimos anos.
Tanto do ponto de vista jurídico quanto político e institucional, medidas elaboradas de
“contenção” ao terror e aos terrorismos tensionam cada vez mais direitos civis individuais, o
pensamento democrático e o lugar da soberania do Estado-nação diante de ameaças
permanentes.
Em resposta a essas ameaças, inaugura-se um paradigma jurídico-político no qual as
fronteiras porosas entre norma e exceção tornam-se cada vez mais indistintas. Por não estarem
circunscritos territorialmente, esses novos fluxos de terrorismos transnacionais redefinem os
contornos do que se concebia até então pelo fenômeno do terror. Nesse contexto, é preciso
perguntar pela legitimidade das medidas adotadas nos atos de contenção do terror, sobretudo
quando a proteção jurídica e o direito subjetivo deixam de ser prerrogativas básicas da garantia
jurídica, diante da ameaça difusa, etérea e móvel.
Esse quadro não impede que se questione, além disso, a dinâmica das guerras de
combate ao terror e as suas tipificações criminalizantes. Como definir essas novas organizações
de difusão da violência política em rede para além das reconceituações jurídicas das guerras
terroristas, estabelecidas pelas potências hegemônicas, cujo fim é enquadrá-las em seu código
punitivo? Quais seriam as implicações disso no entendimento dos Estados nacionais hoje,
premidos entre o limiar de suas faixas de fronteiras e os delírios do combate ininterrupto ao
inimigo espectral?
Em diálogo com a psicanálise, seria interessante lembrar que é justamente nesse
horizonte da ameaça difusa, quando “[...] a fronteira entre fantasia e realidade é apagada,
quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico, quando um
72

símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado”152, de acordo com Freud, que o
efeito inquietante se dissemina mais facilmente. Ativado o imaginário do trauma, a compulsão
à repetição opera um retorno do que deve ser reprimido, mas reaparece de modo fantasmático
e obsessivo, desde o interior, como ameaça soberana capaz de irromper a qualquer instante.
Mas são esses novos atores das relações internacionais, entidades paraestatais de poder,
que redimensionam a função e o lugar do território, da terra e do terror. As distinções colapsam
diante de fenômenos polissêmicos e multifacetados, em que as tecnologias informacionais e
nanocientíficas aparecem, crescentemente, como elementos importantes na disseminação dos
terrorismos.
O medo, como afeto determinante de instauração da política estatal moderna e do pacto
social, a que atesta uma longa tradição explicativa, de Hobbes a Benjamin, de Locke a Schmitt,
parece ser ainda o afeto primordial que organiza a vida política, movida pelas ameaças e pelos
estados de violência apoiados nas instituições policiais. É nesse horizonte que a extensão das
modalidades de terrorismo encontra nas indefinições conceituais do fenômeno o terreno fértil
para a ampliação em larga escala de um outro terrorismo, mais sutil e subterrâneo à primeira
vista, mas não menos violento: o dos agentes estatais que, em nome da ordem e da segurança
públicas, recorrem à intimidação, sem peias, da população civil.
É isso que os estados de emergência viabilizam no plano jurídico-político. Os atos da
administração pública no campo da segurança, encetados sob o invólucro do poder
discricionário, tornam possíveis a execução de medidas privativas da liberdade individual sem
as formalidades legais, bem como a submissão dos cidadãos a constrangimentos, a ordenação
e o prolongamento de prisões temporárias sem que as arbitrariedades de conduta se configurem
como abuso de poder ou ilegalidade.
Entre atores estatais e paraestatais, combatentes da liberdade e organizações radicais, as
classificações das ações de enfrentamento como terroristas ou não talvez não possam ser tão
prontamente estabelecidas. Ao recorrer à legalidade dos atos governamentais, do uso da força
e das armas, o apelo legal parece igualmente não garantir a isenção dessas instituições públicas
e da natureza de suas ações de coercibilidade. Nesse campo, em que os combates discursivos e
os combates físicos se justapõem, coloca-se o problema do limite entre o defensivo e o ofensivo,
revelando, além disso, uma pluralidade de categorias e formas de intervenção “terroristas”
inéditas na história política do ocidente.

152
FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“O homem dos
lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 364.
73

Ora, se esse poder não é ilimitado, isto é, se o limite do emprego da força é o


cumprimento do dever e da integridade dos cidadãos, o risco de arbitrariedade,
desproporcionalidade e do excesso são inerentes à atuação em nome do zelo da segurança
coletiva. Não é de estranhar, por exemplo, que o Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940) ou
mesmo o Código Penal Militar (BRASIL, 1969), bem antes de qualquer legislação específica
voltada aos terrorismos transnacionais, já se ativessem a casos excepcionais praticados em
“estado de necessidade”153:

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

O uso da força, pois, em estado de necessidade, isenta o agente público da tipificação


criminal quando a intervenção ocorre em nome da manutenção da paz social e da ordem em um
contexto de emergência. Todavia, a questão de justiça aqui envolvida, bem como a ordem do
discurso criminalizante, está para além do texto da lei. Porque se os parâmetros de ação, no
limite, tocam à ponderação subjetiva daqueles que atuam em nome da segurança do Estado, a
truculência histórica das polícias nacionais, das forças armadas e das políticas de guerra,
levadas a cabo como intervenções justas em nome dos princípios democráticos ou de contenção
aos terrorismos, atestam algo contraditório. O uso letal da força e das novas tecnologias de
guerra para destruição em massa são exemplares nesse sentido. As fronteiras porosas entre
crime e castigo, guerra e paz, colônias penais e processos paranoicos revelam senão as balanças
parciais e mutáveis das relações de poder.
O que um conto como “Mineirinho”, de Clarice Lispector, publicado inicialmente em
1962 em forma de crônica na Revista Senhor, dá a ver na descrição penetrante do criminoso
objetificado, abatido com 13 tiros por um agente da lei:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro
com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo
eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está
trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo

153
Segundo o Código Penal Militar (BRASIL, 1969), elaborado em pleno curso da ditadura civil-militar brasileira,
instaurada em 1964, a exclusão do crime é apresentada no seguinte artigo: “Art. 42. Não há crime quando o agente
pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal;
IV – em exercício regular de direito.” (grifos meus). Caberia questionar o que se entende por “estado de
necessidade” e se este estaria relacionado com o estado de exceção formal ou com a situação de necessidade
conforme a avaliação do agente público.
74

segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou
o outro. Porque eu quero ser o outro.154

O misto de tremor, vergonha e terror, enunciado pela narradora, do alívio inicial pela
morte do bandido até sua total identificação e transformação no homem abatido, interpela
diretamente o poder legitimador da lei entendido como outra face de sua própria violência. O
meio da legalidade toma forma na violência desproporcional de uma “justiça estupidificada”,
no seio da qual a vingança, ao dilacerar o Outro e reduzi-lo a objeto de pura dominação, alcança
a expressão de uma força aniquiladora, em cuja interface direito e violência sádica se tocam.
O que nos remete também a muitos extermínios praticados no Brasil por agentes do
Estado, como a Chacina de Costa Barros155, de 2015, ou o Massacre do Carandiru156, que
resultou na morte de 111 detentos, em dezembro de 1992. Em Costa Barros, não se tratavam
mais dos 13 tiros que acertariam Mineirinho, “[....] inerte no chão, sem gorro e sem os sapatos”;
mas 111 tiros, disparados sem qualquer chance de defesa contra os cinco jovens negros que
estavam dentro do carro.
Os estereótipos raciais e étnicos, mobilizados na prática da contenção criminal,
desempenham papel incontornável na fundamentação das ações de violência policial. No
mundo europeu e norte-americano, o perigo, nos antípodas do discurso universalista
republicano, assume a corporalidade imaginária dos traços de populações migrantes, árabes ou
africanas, matáveis pelo que representam em sua generalidade. No Brasil, devido à herança
escravocrata e colonial, cujo corolário é o racismo institucional, praticado em todos os âmbitos
da administração pública, a ameaça fantasmagórica encarnada no corpo negro tem como
resposta um tipo violência profilática, física, psicológica e moral, desde o início
desproporcional. Como objeto de uma estigmatização sistemática, ignora-se “[...] a primeira
lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás”157.
Velhos terrorismos, é bem verdade, que essa história a contrapelo do conceito coloca
em questão, renomeando-os onde eles são esvaziados de sua implicação política pela difusão

154
LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: ______. Para não esquecer. Rio de janeiro: Rocco, 1999, p. 124.
155
O episódio conhecido como chacina de Costa Barros ocorreu em 28 de novembro de 2015, no subúrbio do Rio.
Na ocasião, cinco jovens negros foram violentamente assassinados dentro de um carro, por policiais militares do
Rio de Janeiro, com 111 tiros. Os jovens tinham entre 16 e 25 anos, e comemoravam o primeiro emprego de um
deles, Roberto de Souza Penha, como auxiliar de supermercado. Confundidos com traficantes que teriam roubado
um caminhão de cargas no entorno, eles foram alvejados sem qualquer chance de defesa.
156
O massacre do Carandiru ocorreu em 2 de outubro de 1992, à ocasião da intervenção da Polícia Militar do
Estado de São Paulo, liderada pelo Coronel Ubiratan Guimarães, para conter uma rebelião na Casa de Detenção
de São Paulo, o que resultou na morte de 111 detentos.
157
LISPECTOR, Op. cit., p. 123.
75

de emergências ou dos autos de resistência, a forma jurídica de que se reveste a letalidade


estatal. A parcialidade das definições operatórias permite ler na escrita recente dessa história
um problema de justiça mais terrível e aterrorizante que o conto de terror clariceano. Nela, a
violência contra o terror se reflete, para além do direito, no próprio terror, como um duplo diante
do espelho.
É para o problema do estatuto genérico e aberto das guerras contra o terror, justas ou
não, e humanitárias, que se pretende chamar atenção aqui. Pois se os “novos” e “novíssimos”
terrorismos, como são nomeados atualmente no vocabulário internacional, tipificam uma
variedade desmedida de recursos e modos de impingir danos por meio da força e da violência
com finalidade política, as fronteiras discursivas flutuam, não raro, no indecidível limiar entre
as “velhas” práticas de violência e as “novas” formas de combate – em que se reativam, como
política de Estado, as práticas de tortura, de extermínio direto, de conflitos assimétricos e toda
ordem de violações dos direitos humanos legadas diretamente da empresa colonial.
É preciso, portanto, colocar-se nessas divisas problemáticas se desejamos não somente
analisar os terrorismos – no plural –, mas o que o sintagma “novo” representa no curso dessa
“nova” ordem mundial. Como a emergência de uma “novidade”, ela talvez revele o potencial
mais devastador da guerra necrobiopolítica, posto que transformada em estratégia de defesa e
de resistência soberana. Ela forja a sua legitimidade por um “princípio constitutivo que
organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação”158 e insufla o ego conquiro do
ocidente esclarecido contra os povos inferiorizados do Oriente Médio e do Sul geográfico.

3.1 ESTADOS EM GUERRA: Olho por Olho, Bomba por Bomba

A guerra é, pois, um ato de violência destinado a forçar o adversário a


submeter-se à nossa vontade.

Clausewitz, Da Guerra

Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Quincas Borba, o


personagem-filósofo, apresenta, em dado momento da narrativa, as suas ideias filosóficas

158
GROSFOGUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.) Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 59.
76

“claras e distintas” acerca do humanitismo. A teoria de Quincas tem como ponto de partida uma
afirmação básica: a dor é uma ilusão, pois “a guerra, que parece uma calamidade, é uma
operação conveniente”159.
A identificação da guerra em sua função positiva, como “operação conveniente”
essencial para o sistema proposto pelo filósofo, seria advinda da ideia do combate como
“princípio universal, repartido e resumido em cada homem”160. A clareza da exposição de
Quincas, a lógica de seus princípios e o rigor das consequências depreendidas de cada princípio
enunciado não daria margem a dúvidas: a guerra seria a força movente, a grande luta que, para
além de qualquer equívoco diplomático, se constituiria como o pilar de uma virtude, em uma
espécie de heraclitismo redivivo.
Mas, as palavras mastigadas lentamente pelo filósofo e recontadas pelo narrador-
defunto, Brás Cubas, poderiam, sem grande polêmica, figurar em algum tratado contemporâneo
sobre a guerra. Isto porque a função da guerra vem sendo redefinida, de longa data, como algo
essencial na e para a política. Guerra, certamente, não entendida apenas como conflito voltado
à conquista de bens econômicos ou de novos domínios gerenciais, mesmo sob o viés expansivo
democrático-neoliberal, mas também como meio de reafirmar uma ordem global regida pelo
trinômio segurança internacional-democracia-colonialidade. trinômio que, ressoando Quincas
Borba, poderia ser determinado sem qualquer embaraço pelos agentes belicosos como
materializável somente pela “operação conveniente” da guerra.
Guerras coloniais, separatistas e de libertação nacional; as duas Grandes Guerras; o
holocausto e os lager nazistas; as bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki. O breve século
XX161, na expressão cunhada pelo historiador Eric Hobsbawn, foi atravessado por catástrofes e
crises que colocaram em xeque o ideal positivista do progresso e do projeto secular da
modernidade/colonialidade tardia. As catástrofes de um mundo em escombros, cujas ruínas
desnudaram as consequências dos anseios de um mundo “civilizado”, não seriam somente o
movimento final daquele “desencantamento do mundo” a que Max Weber aludia a propósito
da racionalização das forças ocultas, a partir do século XIX, pela ciência e pela técnica162.

159
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas – Obra Completa 1. São Paulo: Nova Aguilar, 2015. p.
170.
160
Idem, ibid.
161
Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
162
Sobre este tema, ver WEBER, Max. A ciência como vocação: In:_____. Ensaios de sociologia. Trad. Waltensir
Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 154-183.
77

Os bombardeios e os extermínios populacionais, insuflados pelo ímpeto da conquista,


culminam na materialização da assertiva algo paradoxal de Theodor Adorno e Max Horkheimer
no prefácio de sua Dialética do Esclarecimento, de 1947: “[...] o progresso converte-se em
regressão”163.
Assim, as duas Grandes Guerras do século passado redefiniram o traçado dos mapas e
das fronteiras nacionais, unindo países e desagregando impérios e nações. Se, como notaria
Benjamin, “[...] a violência da guerra, no entanto, procura desde logo alcançar os seus fins de
forma imediata e com a violência do assalto”164, sua contrapartida necessária seria o militarismo
e o armamentismo, “[...] a compulsão ao uso generalizado da violência como meio para atingir
os fins do Estado”165. Sob o pano de fundo da normalização do “direito à guerra”, previsto pela
regulamentação jurídica internacional, as guerras foram pautadas pelos rituais de declaração e
de suspensão dos conflitos e por uma série de disposições destinadas a resguardar o direito de
defesa dos Estados. Nessa perspectiva, a guerra seria “[...] a continuação da política por outros
meios”, conforme a máxima de Clausewitz, cujo estabelecimento dos limites éticos do uso da
força estaria submetido aos objetivos políticos almejados.
Ao problematizar o aforismo de Clausewitz, na aula de 21 de janeiro de 1976 do curso
Em defesa da sociedade, Foucault trabalha o modelo analítico da guerra segundo o crivo das
relações de poder. De acordo com Foucault:

[...] se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar
uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da
guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da
guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como função reinserir
perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa,
e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até
nos corpos de uns e de outros. Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta inversão
do aforismo de Clausewitz: a política é a guerra continuada por outros meios; isto
é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na
guerra.166

Da leitura às avessas do aforismo de Clausewitz resulta um aspecto significativo do


pensamento extraído sobre a guerra. Essa perspectiva está na raiz da compreensão do campo

163
ADORNO, Theodor W.; HORKEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antônio de Almeida.
Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 14.
164
BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In:_____. O anjo da história. Trad. João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013a. p. 65.
165
Idem, p. 66.
166
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
23.
78

político como relação de forças tensas, sem síntese ou recondução ao equilíbrio, mesmo nos
tempos de paz. E, sobretudo, no imbricamento entre a guerra e a questão racial, na medida em
que o conflito racial ou civilizatório deixa entrever que “[...] a guerra que se desenrola assim
sob a ordem e sob a paz, a guerra que solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário
é, no fundo, a guerra das raças.”167
A guerra das raças é aquilo que, em um horizonte necrobiopolítico, terá por função
instaurar a percepção da diferença e da hierarquia entre os indivíduos “perigosos” e os
“cidadãos de bem”. No que concerne aos indivíduos perigosos, o veredito é inequívoco: a sua
morte restituirá aos demais a tranquilidade da vida cotidiana168.
Se, por outra via, consideramos essa guerra de raças como o pano de fundo da contenda
entre as organizações ditas terroristas e os comandos de “caça” ao terror, é a lógica da
eliminação sistêmica do Outro, reduzido ao não-ser, que passa a funcionar como móbil das
ações, teoricamente, voltadas para a restituição da paz nos territórios ocupados. O alargamento
dos estados de violência engendrados pela guerra reforça, inclusive, essa percepção. Não é à
toa que a morte do indivíduo criminoso, refigurado como o terrorista radical, que traz em seu
corpo, em seus hábitos e em seu equipamento genético os miasmas inconfundíveis do terror
parasitário, será condição necessária de uma vida melhor.
Justifica-se, então, o fato de os assassinatos espetaculares dos supostos terroristas
circularem em ritmo acelerado e em fluxo lancinante de imagens difundidas pelos meios de
comunicação de massa. Esse ritmo vertiginoso da exposição da morte do “inimigo” não é mera
demonstração de crueldade regeneradora via lei de talião. Porque, nessas mortes, vingança,
justiça e castigo entrelaçam-se e sobrepõem-se na tarefa da restituição exemplar que não
encontra termo senão na aniquilação total do Outro, até a sua completa remissão. Bombardear
e destruir totalmente as cidades; invadir e devastar as comunidades periféricas, de modo que

167
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.
70-71.
168
No Brasil, para citar um exemplo paradigmático, os chamados “autos de resistência” (mortes com exclusão de
ilicitude) ou “resistência seguida de morte”, criados durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985),
configuram-se como verdadeiras penas de morte nas periferias urbanas. A existência de um procedimento
regulamentar que encobre massacres sistêmicos dão a ver como as políticas públicas, sob a forma da razão de
Estado, funcionam segundo uma cultura punitiva de extermínio daqueles que são construídos como inimigos
internos. A letalidade estatal, então, está diretamente associada à “cultura da matança”, apoiada não só na biografia
das vítimas, mas em fundamentações redutoras do Outro ao não-ser e ao mal radical que justificariam o seu
assassinato. A seletividade do exercício do poder punitivo reflete-se em dados alarmantes, como aqueles
produzidos pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O total de pessoas mortas por policiais só no ano
de 2014 foi de 3.022 – uma média de oito pessoas por dia. Entre 2008 e 2013, o número chega a 11.197 pessoas
assassinadas, segundo os dados da Anistia Internacional. 77% do total das vítimas eram negras, em sua maioria
homens jovens, com idade entre 15 e 24 anos. A “normalidade” desse cenário dificulta a percepção da “banalidade
do mau”, para usar a expressão de Arendt, por trás desse extermínio burocrático da juventude negra.
79

não reste senão os vestígios da “raça” inferior, torna-se o signo da purificação necessária da
consciência ocidental: hay que destruir, pero sin perder la ternura jamás169.
A Organização das Nações Unidas (ONU) denuncia, reiteradamente, a morte de civis;
a indústria cinematográfica comercializa o drama dos soldados ocidentais em meio às ruínas da
barbárie estrangeira. Nesses filmes, os bárbaros quase sempre falam de maneira estranha, ba-
belicamente, e não objetivam nada afora a matança generalizada em nome de seu Deus –
mártires prometeicos da fé – e da redenção dos ímpios. Oblitera-se, todavia, de que se trata
frequentemente de uma invasão ou ocupação territorial e, como tal, não há paz quando dois
projetos políticos distintos se confrontam e têm em comum somente o uso da força e da
violência, ainda que ambas as partes considerem a luta justa, santa e necessária.
Ao localizar a origem do terror noutro lugar, onde reinaria livremente o fanatismo
fundamentalista e a irracionalidade política, reitera-se a identificação entre alteridade e
violência, enquanto, simultaneamente, apagam-se as marcas das “[...] estruturas como os efeitos
injuriosos da opressão, colonialismo, globalismo e a reação do subjugado, lutas pela libertação
nacional, ressentimento”170, tal como aponta Bill Nichols. De um lado, os espectadores
identificam-se com o “nós” suposto e ativamente produzido nas narrativas midiáticas que
contrapõem o bem e o mal; de outro, divide-se o mundo a partir de uma visão maniqueísta
simplificada da realidade, onde a violência, justa ou injusta, terá seu lugar no espetáculo
moralizante da erradicação do mal. Narrador e espectador tornam-se cúmplices, a um só tempo,
dos traumas coletivos, da resposta imediata de intensidade superior e assimétrica, e da justa
destruição da causa exterior do mal.
O fato é que o poderio militar das nações do ocidente precisa se fazer visível. E, mais
do que isso, temível pela via dos efeitos espetaculares gerados não mais pela produção
audiovisual dos recursos especiais de laboratórios de cinema, mas do próprio real, difundido
pelas mídias digitais simultaneamente às ações de intervenção. Nas cidades arruinadas pelos
discípulos de Marte é preciso, pela força das imagens, ser mais incisivo que os pretensos
algozes, uma vez que o apelo visual adquire uma função profilática na cultura bélica do controle
e da dominação.

169
A citação de referência desta passagem (“hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”) é atribuída
a Ernesto Che Guevara (1928-1967), guerrilheiro argentino-cubano, ideólogo e um dos comandantes da Revolução
Cubana (1953-1959), que culminou, em 1959, na instauração do novo regime político socialista, em Cuba.
170
NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, M. D.; LABAKI, A. (Org.) O Cinema do Real. São Paulo:
Cosac Naify, 2014. p. 277.
80

Se a exceção se tornou a regra, como pensa Walter Benjamin em seu ensaio Sobre o
Conceito de História171, é preciso, no entanto, problematizar o estatuto e a dimensão expressos
por essa exceção. Pois se, de um lado, as regras podem ser mecanismos definidos pelo aparato
jurídico-legal, de outro, a exceção encontra-se também prevista neles, e até mesmo –
paradoxalmente – torna-se um de seus pilares de sustentação, com apelo ao recurso da
autoanulação dos ordenamentos jurídicos em situações de emergência.

3.2 GUERRA AO TERROR

Begbick: Toda guerra é suja, toda guerra é cega. Mata-se por engano, por
engano também se morre.

Brecht, Um Homem é um Homem

A hegemonia organiza sempre a repressão e, portanto, a confirmação de uma


obsessão. A obsessão pertence à estrutura de toda hegemonia.

Derrida, Espectros de Marx

Na entrevista Algumas semanas depois, concedida ao jornal italiano Il manifesto, em


outubro de 2001, a escritora Susan Sontag atenta para o fato de que:

Foram propostos dois modelos de compreensão da catástrofe do 11 de setembro.


O primeiro é que isso é uma guerra, iniciada por um ‘ataque traiçoeiro’
comparável ao bombardeio japonês da base naval americana de Pearl Harbor, no
Havaí, no dia 7 de dezembro de 1941, que empurrou os americanos para a
Segunda Guerra Mundial. O segundo, que tem ganhado aceitação tanto nos
Estados Unidos como na Europa Ocidental, é que se trata de uma luta entre duas
civilizações, uma produtiva, livre, tolerante e secular (ou cristã), e a outra
retrógrada, fanática e vingativa.172

As duas vias explicativas para os atentados de 11 de setembro têm em comum o reforço


da perspectiva da ameaça difusa e do fanatismo fundamentalista que, em um arroubo vingativo,
apontaria para a fratura existente entre duas culturas irreconciliáveis. Essa luta mítica,
entretanto, que opõe ocidentais e orientais, entre fatos e ficções, como dois polos de uma guerra

171
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b.
172
SONTAG, Susan. Algumas semanas depois. In:_____. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos. Trad. Rubens
Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 123.
81

imemorial, em cujos extremos se apresentam a liberdade do progresso versus o anacronismo do


arcaico, inconciliáveis, sobrepor-se-ia ao modelo imagético de compreensão dos terrorismos.
Sobretudo, quando o fenômeno político dos terrorismos adquire, quase que exclusivamente, os
contornos religiosos-sacrificiais, antiglobais e oportunistas.
Não é de surpreender que, alguns dias após os atentados de 11 de Setembro, em uma
sessão do congresso norte-americano, o ex-presidente George W. Bush lançasse o vaticínio
funesto: “[...] a guerra global contra o terror [global war on terrorism] começa com a AI Qaeda,
mas [...] não terminará até que todos os grupos terroristas de alcance global tenham sido
encontrados, detidos e derrotados”173. Mas, o que caracterizaria essa “guerra” contra o
terrorismo transnacional? Quais seriam os meios de intervenção de uma guerra justa, que
encontraria justificativa na “legítima defesa diante de um ataque futuro”174, ou ainda, como
direito de responder de modo preventivo contra as ofensivas do “Eixo do Mal”175?
Lá onde o ataque futuro mobiliza as potências bélicas e as técnicas jurídico-legislativas
de exceção, recompõe-se a figura do inimigo íntimo. E, se a cena do trauma é a compulsão à
repetição, o mecanismo defensivo será, paradoxalmente, operado pelo retorno do evento
traumático. Ora aflora o sintoma fóbico, com o afeto súbito do medo generalizado, ora a fixação
traumática assume o aspecto de uma tensão mórbida do estado de guerra. Em ambos os casos,
porém, a ferida se converte no narcisismo traumático ou em uma variante neurótica, agressiva,
delirante, que resultaria na elaboração do trauma como inclinação à agressão e à destruição,
assemelhando, por estranha identificação, quem combate e o que se deseja combater.
O investimento econômico e a abundância dos esforços de defesa termina por apagar
qualquer potencial autocrítico capaz de rastrear a origem histórica dos eventos ou sua causa
possível, para além da irracionalidade. E não é só isso. O ímpeto violento da dominação já não
satisfaz apenas os desejos destrutivos imediatos. É preciso aniquilar o inimigo íntimo atrelando
o seu modo de vida à realidade intolerável dos danos passíveis de atingir qualquer cidadão. A
guerra será, então, a via necessária para que a violência, pela força da lei, encontre a sua
legitimidade jurídica. Apagar os traços, riscar os nomes, traçar em linha dupla as fronteiras

173
BUSH, George. W. Address to a joint session of Congress and the American peopIe, Washington, D.C., 20 de
setembro de 2001. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/ news/reIeases/200 1/09/200 10920-8.html. Aceso
em: 08 jul. 2016.
174
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 157.
175
O “Eixo do Mal”, segundo a expressão adotada nos documentos e discursos oficiais do governo norte-
americano, a partir de 2002, seria formado pelo Iraque, pelo Irã e pela Coréia do Norte. Esses regimes que,
supostamente, apoiariam e exportariam o terror seriam a fonte principal da ameaça à segurança e à paz globais;
por isso, deveriam ser duramente combatidos pelos EUA e seus amigos e aliados.
82

entre “nós” e os “outros”: ir ao front, como quem vai aos mortos. Toda guerra é suja; toda
guerra é cega.

Estados inimigos

Segundo a teoria clássica de Carl Schmitt, uma guerra se caracteriza pela confrontação
direta entre dois Estados inimigos. O jurista, ao propor o par amigo-inimigo, pensa esse binômio
como a distinção que definiria, além disso, o específico da política:

Pois ele [o inimigo] é justamente o outro, o estrangeiro, bastando à sua essência


que, num sentido particularmente intensivo, ele seja existencialmente algo outro
e estrangeiro [...]. O caso extremo de conflito só pode ser decidido pelos próprios
interessados; a saber, cada um deles tem de decidir por si mesmo, se a alteridade
do estrangeiro, no caso concreto do conflito presente, representa a negação da sua
própria forma de existência, devendo, portanto, ser repelido e combatido, para a
preservação da própria forma de vida, segundo sua modalidade de ser.176

A guerra contra o terrorismo, entretanto, não se volta apenas contra a “negação da


própria forma de existência” ocidental ou à sua “forma de vida” específica. Ela, a guerra global
ao terror, a ultrapassa em muito, pois seu modo de operação redefine a economia bélica, embora
não se configure como guerra na acepção jurídica, por não identificar territorialmente o inimigo
contra o qual se luta. A guerra ao terror, pelo contrário, invocada desde o governo de Ronald
Reagan177, nos Estados Unidos, tem sido utilizada de longa data como premissa de intervenção
diplomático-militar e de racionalidade governamental. Cabe lembrar, no entanto, que os EUA
são o único país condenado pela Corte Mundial por uso ilegal da força com objetivos políticos,
ou seja, terrorismo. Conforme lembra Chomsky,

Em 1986, os EUA foram condenados pela Corte Mundial por ‘uso ilegal da força’
(terrorismo internacional) e então vetou uma resolução do Conselho de Segurança

176
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 32.
177
Ronald Regan foi presidente dos EUA entre 1981 e 1989, por dois mandatos, tendo por vice-presidente em seu
governo George W. H. Bush. Como último presidente dos EUA durante o período da Guerra Fria, os mandatos de
Reagan foram fundamentais para a sustentação da Guerra em seus últimos anos, bem como para a reativação da
corrida armamentista e nuclear norte-americana, alcunhada de “guerra nas estrelas” [star wars]. Em 1983, Reagan
projetou o ataque contra a Líbia, chamada de Operação El Dorado Canyon. A ofensiva visava a deter a capacidade
de Muammar al-Gaddafi, então presidente líbio, acusado de ”exportar o terrorismo” para além de suas fronteiras.
O bombardeio da Líbia, criticado por diversas instituições internacionais, foi condenado pela ONU em abril de
1986, por meio de uma resolução. Essa resolução sublinhava que os ataques constituiriam uma violação da Carta
das Nações Unidas e do direito internacional. Esse documento encontra-se disponível no site das Nações Unidas:
http://www.un.org/documents/ga/res/41/a41r038.htm. Acesso em: 27 ago. 2016.
83

da ONU que instava todos os países (referindo-se aos EUA) a aderir as leis
internacionais.178

Essa condenação por violação dos tratados internacionais em seu atentado terrorista à
Nicarágua179 – se utilizamos a própria definição de terrorismo proposta pelos norte-americanos
e os parâmetros similares daqueles usados para definir certas ações de inimigos de Estado
oficiais – evidencia as contradições envolvidas na guerra, que poderia ser compreendida como
como técnica de governo. E mais: o quanto as medidas jurídicas são suscetíveis aos jogos
políticos e de interesses de países centrais, que culminam frequentemente com a criminalização
dos imigrantes e na instauração do clima de medo e suspeição ideais para a restrição das
liberdades fundamentais.
As leis draconianas de contenção do terror funcionam como salvo conduto para que se
endureçam as medidas penais, se reforce a lógica do encarceramento em massa como
gerenciamento das populações indesejáveis, a criminalização de grupos “suspeitos”, bem como
a restrição à imigração e ao direito de asilo. As polícias são, nesse contexto orwelliano,
revestidas da autoridade soberana de decidir sobre a vida e a morte dos indivíduos que se
encaixam na seleção criminalizante: categorias designadas racialmente, submetidas a intenso
processo de diferenciação, classificação e exclusão.
Com a transformação do exercício do poder e a intensificação das penalizações, as lutas
que se travam contra opositores, inclusive internos, se redefinem na lógica dos combates
antiterroristas. O pensamento e as medidas que animam esses combates estão centrados nas
análises racionais dos riscos, que autorizam práticas inquisitoriais e autoritárias para obtenção
de informações desejadas.
Veja-se, por exemplo, o uso “legal” da tortura como medida excepcional, apesar de
constituir grave violação aos direitos da pessoa humana180. A permanência desse procedimento

178
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 25.
179
Segundo Chomsky (idem, p. 91), “[...] ainda nos anos 1980, os EUA entraram numa terrível guerra na América
Central, que resultou em 200 mil cadáveres torturados e mutilados, milhões de órfãos e refugiados, e quatro países
devastados. Um dos alvos principais visados pelos EUA era a Igreja Católica, que cometera o deplorável pecado
de adotar a ‘opção preferencial pelos pobres’”.
180
A prática da tortura foi proibida formalmente em 1929, pela Terceira Convenção de Genebra, e reiterada pela
Convenção das Nações Unidas em assembleia geral realizada em 10 de dezembro de 1984. Da Convenção contra
a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, consolidou-se a resolução n.º 39/46,
que dispõe sobre a prática da tortura como grave violação aos Direitos Humanos. De acordo com a parte 1, artigo
1 da resolução: “1. Para os fins desta Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma violenta
dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de
uma terceira pessoa informações ou confissão; de puní-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido
ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada
em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por
outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento
84

“veridicional” e a criação da categoria dos “combatentes inimigos”, desprotegidos pelo direito


de guerra, são exemplos notórios dessas novas figuras da exceção produzidas pela guerra ao
terror. As fronteiras entre a guerra e o terrorismo (de Estado, inclusive), nesse sentido, são
móveis e muitíssimo frágeis. É nesse espaço ambíguo, que se consolida como lugar de tensão,
de anomia e de relação intrincada entre os legalismos e os ilegalismos, o discurso do legítimo
e do ilegítimo, que o governo dos vivos se reconfigura pela economia da violência e pela
concepção totalizante da defesa e do ataque nos estados securitários.
Os imperativos da segurança nacional norteiam os discursos e as práticas dos chamados
contraterrorismos, tendo por contrapartida o explícito reforço da estigmatização de
determinados grupos étnicos, raciais, religiosos ou sociais, para os quais os efeitos violentos
dessas práticas são mais ostensivos. Além disso, a novidade de uma guerra global ao terror
como tecnologia de governo está na sua extensão indefinida e nos dispositivos de segurança a
que aciona, igualmente sem termo, em razão dos contextos de emergência. Essa guerra ao terror
“abstrato”, portanto, para além de um programa pontual de defesa nacional ou planetária,
redefine o exercício do poder e a dinâmica da guerra, pois, se todos se tornam potencialmente
culpados e perigosos ante ao perigo difuso, alguns, é bem verdade, são mais acossados e
matáveis do que outros.
A guerra ao terror converte-se, por uma estratégica inversão, sob o prisma securitário,
no terror praticado como governamentalidade de Estado. Por meio desse terror, que não cessa
de produzir dispositivos autolegitimadores no campo jurídico-político, os espaços de segurança
dilatam-se de modo tão amplo que suas tecnologias se integram ao cotidiano, das biometrias à
vigilância intensiva por meio das tecnologias eletrônicas; da supressão do direito individual à
privacidade à detenção preventiva. Se para além das relações de poder só se encontra a
violência, a novidade dessa guerra está em sua trama complexa e na velha tática de que lança
mão: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei – da exceção.

3.3 ATENTADO AO PODER

ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou
decorrentes de sanções legítimas.” Disponível em: http://www.ovp-sp.org/lei_resoluc_onuxtort.htm. Acesso em:
20 mai. 2018. Sabe-se, todavia, que a tortura continua a ser praticada por governos e instituições estatais, com
vistas à obtenção de informações ou confissões. As denúncias frequentes, sejam no Campo de Detenção da Baía
de Guantánamo – por onde já passaram mais de 775 prisioneiros sem acusação formada, sem processo constituído
e, obviamente, sem direito a julgamento –, ou as torturas praticadas pelas policias brasileiras com a assombrosa
conivência do poder judiciário em audiências de custódia, expõem como os abusos policiais são regularmente
ignorados e os relatos dos custodiados, deslegitimados.
85

O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto,
uma emanação da virtude.
Robespierre, Virtude e terror

“Doravante, a segurança está acima das leis”, declara Foucault em entrevista ao jornal
francês Le Matin, em novembro de 1977181. Naquele mesmo ano, uma pergunta atravessa o
curso Segurança, Território, População182, desde os momentos iniciais da primeira aula:
“pode-se dizer que em nossas sociedades a economia geral de poder está em vias de tornar-se
da ordem da segurança?”183. Ao tentar traçar algumas linhas reflexivas para essa questão,
Foucault propõe uma história das tecnologias de segurança, com vistas a investigar de que modo
os espaços securitários e a forma de normalização específica da segurança passaram a figurar
como preocupação central dos governos na modernidade.
Com a governamentalidade e a entrada da questão do Estado no campo de análise dos
micropoderes, concebendo o aparato estatal como “efeito móvel de um regime de
governamentalidades múltiplas”184, o problema da segurança e da economia das punições passa
a ser central na racionalidade política apoiada em uma arte governamental securitária e em seu
cálculo político-econômico.
Essa tecnologia contemporânea de governo, baseada no discurso das “razões de
segurança”, passaria a se ocupar da regulação dos efeitos político-econômicos advindos das
crises que irrompem de tempos em tempos no seio das democracias neoliberais. Crises, aliás,
que não cessam de reforçar o discurso da centralidade dos mecanismos de segurança, em meio
à suspensão da ordem “normal” do fluxo das coisas. E que intensificariam, em via de mão dupla,
o retroespelhamento entre o estado neoliberal e o estado penal185.
Gentrificação das cidades, privatização dos espaços públicos, políticas autoritárias de
controle e de segregação social materializam-se, assim, nas cercas, nos muros e nos territórios
fortificados, onde a patologização, a criminalização da pobreza e o medo eugenista mobilizam
fluxos financeiros significativos dos mercados de segurança pública e privada. A extensão do
paradigma bélico na própria dinâmica urbana reativa pela via da obsessão securitária a presença

181
FOUCAULT, Michel. Désormais, la sécurité est au-dessus des lois. In:____. Dits et Écrits. II. Paris: Gallimard,
2001. p. 366. Tradução minha.
182
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004.
183
FOUCAULT, Idem, p. 12. Tradução minha.
184
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008,
p. 106.
185
Cf. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan,
2003.
86

do inimigo interno, que precisa ser contido. É essa a razão das ocupações militarizadas cada
vez mais cotidianas e intensivas nos territórios de emergência, que culminam na política de
saneamento das populações periféricas e no disciplinamento que recria prisões, guetos e zonas
de exceção em diferentes escalas. Simultaneamente, os controles múltiplos e reticulares
operam-se a partir do paradigma repressivo, que pressiona incessantemente em direção à
redução de direitos individuais como salvaguarda operacional do modelo preventivo-penal.

As indústrias do medo permanente

A resposta virulenta aos atentados terroristas do início do século XXI expôs a fragilidade
na observação dos direitos fundamentais dos indivíduos, respaldados pelas legislações
internacionais. Ao se retraírem, em nome dos estados de emergência, os direitos individuais
dos cidadãos, marco da tradição política do ocidente, se flexibilizariam diante da ameaça
generalizada dos terrorismos e da desregulamentação de ordenamentos jurídicos como forma
de justificar, pela proteção, a contrapartida do encolhimento dos direitos historicamente
adquiridos.
Ora, se por um lado a implantação de medidas securitárias se refletiu na constante
inobservância dos direitos humanos, as “intervenções humanitárias enquanto responsabilidade
de proteger”, por outro, foram justificadas exatamente tendo em vista a salvaguarda desses
direitos. Não são poucos os discursos a circular como justificativa às vezes de cunho restritivo
dos direitos, noutras expansivo – como defesa da dignidade da pessoa humana186 –, cujos efeitos
reverberam na interface algo paradoxal da vida que necessita ser, a um só tempo, protegida e
destituída de suas garantias jurídico-políticas. Como propõe Agamben, “[...] o humanitário
separado do político não pode senão reproduzir o isolamento da vida sacra187 sobre a qual se
baseia a tirania, e, prossegue o filósofo, o campo, isto é, o espaço puro da exceção, é o

186
Segundo Kant, na segunda seção de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, “[...] o homem, e, duma
maneira geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se
dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim”. KANT,
Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 67-
68. Essa concepção de pensamento está na base da ideia jurídica da dignidade humana incondicional (Würdigkeit),
segundo a qual, em função de sua autonomia como ser racional, não se pode atribuir valor ao homem, entendido
como preço de mercado (Marketpreis) – isto é, os seres racionais não podem ser substituídos por equivalentes, na
medida em que são singulares e insubstituíveis.
187
A definição de Agamben de “vida nua” (nuda vita) é equivalente à de “vida sacra” (vita sacra), que o filósofo
italiano desenvolve a partir das considerações sobre a biopolítica, realizadas por Foucault, e da filosofia do direito.
Estas noções se referem à vida indiferenciada, matável e insacrificável. Segundo Agamben, ademais, é na vida nua
que se apoia o vínculo essencial entre a vida e a violência jurídica.
87

paradigma biopolítico para o qual ele não consegue encontrar solução” 188. Nesse horizonte,
o campo, fundamentado no autoritarismo e na ausência do ordenamento jurídico, torna-se, por
excelência, o lugar da anomia na contemporaneidade. Situação de exceção que se mostra como
limite do princípio da dignidade da pessoa humana, na ausência do qual, como definiu Arendt,
“tudo é possível”:

[...] os seres humanos, independentemente do que fazem ou aspiram, podem a


qualquer momento ser qualificados como inimigos objetivos e encarados como
supérfluos para a sociedade. Tal convicção explicitamente assumida pelo
totalitarismo, de que os seres humanos são supérfluos e descartáveis, representa
uma contestação frontal à ideia do valor da pessoa humana enquanto valor-fonte
da legitimidade da ordem jurídica, como formulada pela tradição, senão como
verdade, pelo menos como conjectura plausível da organização da vida em
sociedade189.

O que se presencia nos últimos decênios, no entanto, é justamente essa situação


excepcional para fora dos campos. Pelo menos dos campos compreendidos como cercos regidos
pela lógica do curral ou dos signos ostensivos de uma gestão concentracionária da violência
direcionada aos corpos. Como sugere Agamben em chave topológica, inspirado por Benjamin,
“[...] o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra”190.
Espaço aberto no limiar de indecisão entre interno e externo, lícito e ilícito, legítimo e ilegítimo,
que passa a vigorar tendo como lugar privilegiado de experimentação a vida dos sujeitos
políticos, premida entre a emergência e a custódia.
A politização da vida securitizada – no interior de inúmeros processos de sua inscrição
em uma security agenda globalizada – compreende estratégias de conjunto polimorfas, que
orientam os princípios de gestão dos Estados contemporâneos e, de modo mais explícito, os
estados de exceção. É na medida em que satura a vida biológica de inúmeros dispositivos
globais de controle voltados aos “perigos” cotidianos e que redefine o cidadão como “sujeito e
beneficiário da vigilância”191, que, na perspectiva do “governo pelo terror”, torna-se possível
subtrair progressivamente os direitos fundamentais, apesar de declarar as guerras em seu nome.

188
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 130.
189
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: A contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados,
vol. 30, n.º 11, 1997, p. 57.
190
AGAMBEN, Op. cit., p. 164.
191
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2018. p.
53.
88

A gestão dos riscos neste cenário é o imperativo categórico do estado de segurança: agir como
se a máxima da ação de todo Estado devesse tornar-se a lei universal da guerra.
Na dobra necrobiopolítica e governamental do Estado, a razão securitária assenta-se na
coexistência de lógicas heterogêneas: liberdade e insegurança são polos alternadamente
enfatizados que, em nome da imprevisibilidade do perigo, “condiciona a indeterminabilidade
dos critérios adotados pelos dispositivos securitários”192. Entre Estado e população, a relação
é mediada, portanto, por um pacto de segurança, que significa um princípio de exceção
permanente, que perpassa as democracias neoliberais contemporâneas. Neste pacto, seguridade
e insegurança são as duas faces de um mesmo processo: a produção de liberdade é análoga à
multiplicação dos riscos e dos dispositivos de segurança. Como lembra Agamben,

[...] os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu


conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma
tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim
uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejariam libertar-
se.193

Foucault, por sua vez, sugere de que se trata de “[...] uma racionalização das técnicas
políticas, das técnicas de poder e das técnicas de dominação"194. Veja-se então que o governo
da emergência não se resume à gestão política da violência ou a um estado de sítio definido
juridicamente. Ele opera uma série de inflexões nas prerrogativas dos direitos fundamentais que
são levadas a cabo no fato e no discurso democráticos pela via da construção da guerra ao terror
e à criminalidade, nômade e dissimétrica, contínua e onipresente.
Aqui se esboçam dois movimentos complementares. O primeiro tem por finalidade
analisar as categorias, as identidades e o modo como diferentes estratégias discursivas são
mobilizadas para compreensão do “terror”; depois, um movimento de investigação acerca dos
terrorismos, seus efeitos, sua expansão efetiva e categorial, em fins de século XX e XXI, e de
que modo a guerra ao terror redefine as figuras do pensamento filosófico no campo da política
(Estado-nação, fronteira, cidadania, democracia, cosmopolitismo) e dos direitos humanos
inalienáveis (dos liberalismos igualitaristas das teorias da justiça até os comunitarismos).

192
BAZZICALUPO, Laura. Produção de Segurança e Incerteza dos Critérios. In: AVELINO, Nildo; VACCARO,
Salvo. (Org.) Governamentalidade | Segurança. São Paulo: Intermeios, 2014. p. 83.
193
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
118.
194
FOUCAULT, Michel. La torture, c’est la raison [1977]. Entrevista com K. Boesers. Literaturmagazine, n°. 8,
dez. 1977. In :_____. Dits et Écrits II. Paris : Gallimard, 2001d, p. 392. Tradução minha.
89

Para realizar um diagnóstico crítico do que se passa hoje no ocidente, em termos


políticos, é preciso um confronto com as figuras forjadas como seu “Outro”, isto é, com as
alteridades radicais que se armam – em seu duplo sentido – em contraposição aos valores
morais, jurídicos e políticos erigidos pela modernidade como fundamentais de toda práxis
política e vida comunitária (liberdade de expressão e escolha; democracia; laicização dos
Estados e da máquina pública etc.).
Pensar, então, a validade e a legitimidade desses valores “em crise”, significa colocar
em questão a construção de uma contra-imagem (espetacular) do terror, cujas características
identitárias – notadamente, islâmica, oriental, teocentrada – apresentam-se como a origem do
mal radical. E mais: um terrorismo que precisa ser criado permanentemente e nutrido com o
“medo” das populações globais, de modo a garantir as intervenções estatais não somente
calcadas em uma necrobiopolítica e nos racismos de Estado, mas no escrutínio constante das
vidas; na regulação de condutas; nos controles intensivos e extensivos que reativam práticas
insidiosas de vigilância, normatização e disciplina, em prol da guerra preventiva e repressiva
ao terror.
Da figura do bárbaro à barbárie iminente, não é de estranhar que a passagem seja rápida.
E se a contradição da suspensão excepcional do ordenamento jurídico, por um lado, ocorre no
interior da própria dinâmica política segundo “as regras do jogo”, definidas pelas cartas
constitucionais, por outro, a crise passa a ser não mais episódica e temporária, mas alargada,
genérica e sem termo.
Foucault atentaria, já em 1982, para o fato de que:

Precisamos de uma nova economia das relações de poder – e eu utilizo aqui a


palavra 'economia' em seu sentido teórico e prático […] Gostaria de sugerir aqui
outra maneira de avançar sobre uma nova economia das relações de poder, que
seja ao mesmo tempo mais empírica, mais diretamente ligada à nossa situação
presente, e que implique uma relação maior entre teoria e prática.195

Na medida em que o poder não é algo estritamente de ordem repressiva ou uma relação
de interdição, seguindo a hipótese do filósofo francês, ele deve ser analisado como algo que
produz. Dessa feita, caso concebamos o poder sob o prisma produtivo, mas não como um
produto ou um bem transferível, essa economia do poder da guerra e da violência, que ora se

195
FOUCAULT, Michel. “Le sujet et le pouvoir” [1982]. In:____. Dits et Écrits II . Paris: Gallimard, 2001e. p.
1043-1044. Tradução minha.
90

investiga, irá configurar-se, também, a partir de procedimentos móveis e relacionais,


simultaneamente, discursivos, políticos e jurídicos.
Mas, o que um regime antiterror cria, em termos de relações de poder? Apoiado em
estratégias conjuntas de emergência, esses regimes produzem medidas excepcionais que, longe
de se configurarem como prerrogativas temporárias de exceção, seriam o próprio fundamento
de um estado de exceção permanente. Sem estabelecer uma relação entre estado de exceção e
as racionalidades securitárias ativadas por ele, em um horizonte necrobiopolítico196, não se
poderia compreender as práticas de governo e o nómos da teoria política contemporânea.
Os dispositivos biossecuritários e as medidas de segurança cada vez mais extensivas são
justificados pela insegurança difusa e pelas ameaças à ordem pública que rondam sem cessar
os indivíduos: “[...] transigência, instabilidade e incerteza são os ingredientes elementares do
governo [...], no qual a liberdade e o medo referem-se um ao outro”197. Em mútuo
espelhamento, ao forjar inimigos externos ou internos sob o signo da excepcionalidade, há
sanções diferenciadas que recobrem progressivamente todos os domínios da vida, cujo
paradigma securitário, do âmbito político ao social, inscreve-se na lógica reativo-defensiva que
legitima o poder de punição e a letalidade do Estado:

Ao revisitarmos o exercício real do poder punitivo, verificamos que este sempre


reconheceu um hostis, em relação ao qual operou de forma diferenciada, com
tratamento discriminatório, neutralizante e eliminatório, a partir da negação da
sua condição de pessoa, ou seja, considerando-o basicamente em função de sua
condição de coisa ou ente perigoso.198

Eis, então, a garantia de exclusão dos indesejáveis – sobretudo, imigrantes pobres,


refugiados e populações faveladas e periféricas – chancelada pelo discurso teratológico e pela
construção de uma rede coercitiva nacional e transnacional. O modelo securitário executado
pelas políticas de combate ao terror, em sua extensão, transforma a ameaça potencial aos
poderes constituídos na ameaça de qualquer sujeito adentrar o campo de anomia pela passível
culpabilidade prévia, a despeito de a criminalização pela via dos estereótipos operar
principalmente segundo critérios geográficos, fenotípicos, étnicos e raciais. É no interior dessa

196
Agamben (2008, p. 39) redimensiona o problema do seguinte modo: “[...] o estado de exceção não é nem
exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma
zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não
significa a sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída
de relação com a ordem jurídica”.
197
LEMKE, Thomas. “Os Riscos da Segurança: Liberalismo, Biopolítica e Medo”. In: AVELINO, Nildo;
VACCARO, Salvo (Org.). Governamentalidade | Segurança. São Paulo: Intermeios, 2014. p. 117.
198
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 115.
91

conjuntura, “[...] quando a vida e política, divididos na origem e articulados entre si através da
terra de ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a identificar-se, então
toda a vida torna-se sacra e toda política torna-se exceção”199.
O medo realiza, nessa modalidade de governo, uma importante função moral. Ao
recorrer à produção da insegurança e da incerteza, bem como à manutenção das zonas de risco,
com os ilegalismos tolerados pelo Estado e as ilegalidades perseguidas como infração,
dissemina-se a percepção da vulnerabilidade que faz de cada cidadão um alvo potencial da
barbárie. É aí que, aliadas à força moral, as práticas segregacionistas operam a partilha dos
grupos nos territórios ao demarcar, segundo pretensos “graus” de periculosidade, os que
estariam mais ou menos expostos à violência. Mas não é só. Igualmente, as linhas divisórias
definem topograficamente aqueles que são mais suscetíveis à criminalidade e que, por essa
razão, devem ser vigiados mais de perto.
As tecnologias de promoção e de contenção do medo, por sua vez, atuam na extensão
dos aparatos de segurança do Estado, cada vez mais com a ajuda das agências de segurança
privadas, de mercenários e de prestadores de serviço terceirizados. O medo movimenta a
economia, seja nas práticas de lançamento de bombas ou de alimentos em territórios em guerra.
Altamente rentável – e não apenas do ponto de vista econômico, mas no discurso moralizante
que justifica intervenções políticas e militares –, ele opera segundo a produção de emergências.
É na divisa entre o bem e o mal, no interior das diferenciações que remontam à fundação dos
Estados modernos, que se traçam as estratégias de governo distintas na regulação da
“desordem”. Talvez por isso a declaração de alguém como o Tenente-coronel Ricardo Augusto
Nascimento de Mello Araújo, comandante da polícia militar de São Paulo, a ROTA200, soe tão
natural aos ouvidos e às práticas cotidianas dos agentes de segurança do Estado. Em entrevista
concedida ao Portal Uol, em 24 de agosto de 2017, Mello Araújo distingue a atuação da polícia
militar nos Jardins – bairro de classe média alta paulistana – e nas periferias. Segundo o
comandante:

199
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
148.
200
A ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é a tropa do comando geral da polícia militar do estado de São
Paulo, o maior batalhão de polícia militar do Brasil. Em 1851, o batalhão, então conhecido como "Batalhão de
Caçadores", foi batizado com o nome de Tobias de Aguiar, adquirindo a denominação de "Batalhão de Caçadores
Tobias de Aguiar". Após diversas designações, passou a ostentar seu nome atual a partir de 1970, embora os
diferentes nomes nunca tivessem alterado a manutenção de sua função “caçadora” endereçada ao combate de
possíveis “desordens” urbanas. Não se pode esquecer, ademais, o papel crucial desta polícia no Golpe Militar de
1964, que derrubou o então presidente da República João Goulart, dando início ao governo interino de Ranieri
Mazzilli e, treze dias depois, ao governo do General Castelo Branco (1964-1967).
92

É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele
abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na
periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins
[região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado [...].
Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a
mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no
Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali,
andando. O policial tem que se adaptar àquele meio que ele está naquele
momento”201.

Quando política e polícia passam a se referir mutuamente no governo da exceção, as


fronteiras entre Estado e terrorismo são dissipadas. A cumplicidade entre as instituições e a
letalidade alimentada pela estrutura estatal, que legitima a pena de morte sumária, outorgada
pelos agentes da lei, fazem do terrorismo de Estado a justificação para o combate ao terror. É
no contorno dessa cultura permanente do medo que se disciplinam as massas empobrecidas e
se promovem a garantia da segurança vendida como produto àqueles que podem financiá-la.
Não à toa, os agentes do Estado poderão adaptar-se aos diferentes meios nos quais atuam e,
nas bordas da lei, continuar a operar a máquina que, na colônia penal, faz de cada corpo o lugar
de experiência de sua sentença. Uma sentença não mais secretamente inscrita na carne dos
condenados, como nas novelas de Kafka, mas explicitamente exposta nas redes nacionais como
duplo espelhamento do jogo da (in)segurança no qual a polícia nada mais é do que um espectro
do Estado202.
Efetiva-se, assim, por meio da chantagem, do medo e da intimidação, a gestão da vida
como objeto precípuo da política contemporânea. Torna-se, então, atentado ao poder tudo o
que ameaça desestabilizar os cálculos racionais das políticas gestoras da vida. Afinal, se o
governo político opera pela exceção, tudo é possível ainda.

3.3.1 Sob o Signo de Marte

O estado de exceção tornou-se a regra.

Walter Benjamin, Sobre o conceito de historia

201
Entrevista disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-
jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm. Acesso em: 20 jun. 2018. Grifos
meus.
202
Devo essa referência a um amigo querido, Victor Dias Maia Soares, e sua pesquisa doutoral acerca do perdão
e da pena de morte a partir de Jacques Derrida, intitulada Perdoar o imperdoável: uma leitura do perdão a partir
da desconstrução derridiana. Essa tese, orientada pela Profa. Dra. Dirce Eleonora Nigro Solis, foi defendida no
Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em junho de 2018.
93

As placas nas igrejas, nos museus e nos aeroportos não deixavam margem a dúvidas.
Embora as dúvidas se multiplicassem ali, no país onde uma tradição iluminista ganhou
espessura e se disseminou pelo mundo como a defesa teórica dos direitos dos cidadãos e cidadãs
e da garantia da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Assim ensinam nas escolas ainda. A
Revolução das revoluções, a francesa, inscreve-se na história como a insubmissão popular a
toda forma de autoridade tirânica e monárquica, que, em nome da manutenção do privilégio de
alguns, impôs rígidas restrições às massas empobrecidas.
Aquela, porém, não é mais a França do século XVIII. E, claro, não há qualquer resquício
nostálgico nesta afirmação. Também já não é a França da Comuna de Paris, de 1871, ou de
maio de 1968, com o movimento estudantil e operário nas ruas. As insurreições populares, hoje,
são duramente sufocadas pelas forças armadas. Essa é a França de 2017, sob a lei do estado de
emergência, integrado ao direito comum, e dos plenos poderes conferidos às polícias, a fim de
conter toda e qualquer possível ameaça terrorista.
Realizar parte da pesquisa doutoral em um país em estado de emergência, como
estudante estrangeiro, a quem foi concedido um visto temporário de permanência, é estranho.
Sobretudo, porque este estado coincide com o problema estudado: pensar de que modo os
estados de exceção instauram um novo modo de governo fazendo uso daquilo mesmo a que
pretendem combater – o terror.
Aqui, de algum modo, rasgando o princípio comunal de identificações linguísticas e
culturais do país, o estranho sou eu. O Outro, não-branco, latino, vindo de além-mar, também
sou eu. Se a condição de pesquisador de doutorado me confere alguma distinção diante das
instituições acadêmicas, na lida da vida comum eu sou apenas mais um estrangeiro. Estrangeiro
como muito outros, mas inscrito em lógica distinta daquela que marca ostensivamente e
epidermicamente os grupos racializados como inferiores, como os árabes ou os africanos do
Norte, que vejo serem parados e revistados em cada esquina – crianças inclusive.
Sob o signo de Marte, sob o signo da morte, a produção das emergências alarga a
extensão temporal e espacial desse estado de exceção. Nas bancas de jornais, no Parlamento
Europeu, nos cafés e nos cabarés, esse é o assunto comum: o medo dos atentados, que
rapidamente se converte em medo dos refugiados, no medo de frequentar lugares públicos em
horários de rush, no medo de estar no lugar errado e na hora errada e de experimentar o
infortúnio – quelle malchance! – de ser a próxima vítima desses “loucos”.
Não, não posso dizer que vivo uma situação nova ou extraordinária. Vindo do Brasil, e
mais especificamente do Rio de Janeiro, sabe-se bem o que isso significa. A sensação de estar
refém das forças de ocupação e de não ter mecanismos para se defender de possíveis excessos
94

do imperativo da lei do poder é realmente a percepção da impotência acima de tudo. No interior


de uma política de exceção, tudo transborda, no limite que torna indistinto o que é da ordem
política e o que a ultrapassa, como gesto da pura violência endereçada à fragilidade dos corpos.
A política confinada exclusivamente ao controle e à gestão dos corpos se converte em
instrumento de polícia, na face coercitiva do Estado que legitima a letalidade de suas
instituições e, no limite, no extremo do que excede, isto é, o abandono.
No Rio de Janeiro de 2018, ainda há exceção. A exceção militar, que se desdobra na
intervenção federal na cidade e nas cenas espetaculares das invasões das comunidades
periféricas ocupadas pelas forças militarizadas do Estado. Com o decorrer dos dias, os nomes
de civis, inocentemente assassinados no interior das comunidades, expande-se. Estudantes
uniformizados, crianças na rua, jovens e trabalhadoras acossados pela força assimétrica da
coerção que criminaliza a pobreza e propõe como medida médico-sanitária, profilática, a
eliminação dos corpos pretos e pobres203. No mesmo gesto, a coação, pela violência e pelo
medo, de tantos Silvas “que a estrela não brilha”204.
A Paris de 2017 e o Rio de 2018 se não se assemelham pela topografia, refletem-se
mutuamente como duas metrópoles urbanas ocupadas pelas forças de segurança. Sem limites,
no excesso, as forças são direcionadas à erradicação do Outro, à aniquilação de um corpo outro
que transita nas bordas da lei e no que, nela, também transborda a sua escritura.
Sob o signo de Marte é a guerra por outros meios que se arma. E se verte o sangue do
inimigo, derramado por entre becos, banlieues205 e vielas, no asfalto quente dos complexos e
das marés. Porque esses são os corpos que resistem, capazes, historicamente, de subverter a lei
do poder, no que nela há de mais instável. Por isso, as ruas queimam nessas duas metrópoles;
queimam-se pneus, carros e papéis, como se o fogo fosse uma interrupção; e o que queimasse,
um endereçamento ao porvir, que ressoa no grito das manifestações206: recusa e luta.
O Outro da política exige uma política destinada ao Outro, que não seja da ordem da
polícia nem do terror e do t(r)emor que inscreve esses corpos “suspeitos” como resto, como o

203
De acordo com Antonio Guimarães, é “o mesmo fenômeno de estereotipia negativa dos traços somáticos negros
fundamenta o mecanismo de ‘suspeição policial’, que torna os negros as vítimas preferenciais do arbítrio dos
policiais e dos guardas de segurança nas ruas, nos transportes coletivos, em lojas de departamento, bancos e
supermercados”. GUIMARÃES, Antonio. Combatendo o racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 14, n.º 39, p. 103-117, 1999.
204
MC BOB RUM. Rap do Silva. Rio de Janeiro: Furacão 2000, 1995. Disco sonoro.
205
Tratam-se dos subúrbios ou das periferias das capitais de província francesas, onde há alta concentração de
imigrantes, por conta das “habitações de aluguel moderado” (Habitation à Loyer Modéré – HLM) .
206
Cf. SAFATLE, Vladimir. Quando as ruas queimam: Manifesto pela emergência. São Paulo: N-1 Edições, 2016.
Disponível em: http://coleciona.mma.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/MERGULHANDO-3-Fragmento-de-
texto-de-Vladimir-Safatle.pdf Acesso em: 05 jan. 2017.
95

que resta nesse excesso a que seria preciso ordenar. Abordar a exceção, então, sem questionar
o que significa viver sob a lei da emergência não faz qualquer sentido, mesmo se os agentes da
lei e as instituições operam de modo muitíssimo diferenciado em relação à classe, à raça ou ao
gênero, quando fazem valer nessa lei o que nela há de mais violento, quer dizer, a sua
autoreferencialidade.
Como a justificação da violência de Estado pode se fundamentar nas prerrogativas da
exceção previstas pela própria lei? Daí o que transborda do texto ser aquilo que ele não diz, mas
está inscrito tacitamente lá como a lei muda de toda a lei, a rasura, o furo e a brecha que a
assombra de modo quase espectral: a inextrincável relação entre o excesso e a exceção como
dupla face de uma falta. De uma falta que só o que excede pode conter, nisso mesmo que ele
deixa escapar: o abuso do poder soberano e o vazio fundamental de toda exceção jurídica207.
É Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito da história quem recorda que “[...]
a tradição dos oprimidos nos ensina que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é a regra”. E,
conclui o filósofo, com o apelo a uma revisão autocrítica da história que fizesse jus à tarefa de
instaurar um verdadeiro estado de exceção: “[...] Temos então que chegar a um conceito de
história que corresponda a esta ideia”208. Ao apontar para o estado de emergência de seu
tempo, perpetrado pelos regimes totalitários em expansão – mas não dissociado da norma
histórica da violência dos vencedores –, Benjamin alertaria para o fato de que o espanto diante
das forças abruptas e opressoras do fascismo em nada se equipararia ao espanto que é fonte do
conhecimento filosófico. Isso porque a experiência da perplexidade traumática do entreguerras
e dos campos de extermínio estaria muito distante do thaumázein de que trata Aristóteles em
sua Metafísica, como disposição que origina o pensar filosófico.
Construir um conceito de história, como desafio à compreensão do terror totalitário,
apresentava-se, então, como tarefa do historiador interessado em “[...] escovar a história a

207
Mesmo o decisionismo (entscheidung) schmittiano é senão isso, quando afirma ser soberano “[...] aquele que
decide sobre o Estado de exceção”. Se soberano é o direito e não o Estado, a decisão do soberano será acerca das
medidas a serem tomadas para o estabelecimento da ordem, para além da legalidade e independente da lei. Para
Schmitt, “[...] a filosofia da vida concreta não pode subtrai-se à exceção e ao caso extremo, mas deve interessar-
se ao máximo por ele. Para ela, a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por causa da ironia
romântica do paradoxo, mas porque deve ser encarada com toda a seriedade de uma visão mais profunda do que
as generalizações das repetições medíocres. A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova
nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da exceção. Na exceção, a
força da vida real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada na repetição.” SCHMITT, Carl. Teologia política:
quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. In: _____. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês
Lobbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 94.
208
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b. p. 13.
96

contrapelo”209. Tarefa essa que, nas análises filosóficas de Giorgio Agamben, em seu Estado
de Exceção210, converteria-se em exercício crítico de pensamento acerca da suspensão da ordem
jurídica como paradigma de governo. E, de modo ainda mais pregnante, após as medidas
forjadas em resposta aos atentados de 11 de setembro de 2001, em escala planetária. Desde
então, os ordenamentos jurídico-políticos e a violência passaram a se relacionar intimamente
nos termos da segurança e da seguridade, via suspensão dos direitos civis e da instauração da
exceção jurídica permanente no seio dos Estados democráticos de direito.
Ao passo em que pensarmos, todavia, em um precedente legal para a instauração desse
recente estado de emergência, não se pode esquecer de que a perspectiva da nova ordem
internacional, pós-Guerra Fria, instaurou novos parâmetros na segurança internacional. A
segurança global, a dissuasão nuclear e a ideia de segurança humana211 em detrimento da
segurança nacional parecem redefinir ativamente os debates acerca da responsabilidade de
proteção, dos direitos humanos e do fenômeno da guerra. Nesse contexto, tensionam-se as
diretrizes políticas internacionais e o arcabouço conceitual de filosofias políticas amplamente
ancoradas em uma perspectiva da soberania nacional e dos direitos naturais, forjada pela
modernidade/colonialidade.
O fenômeno e o conceito da guerra ganhariam ainda outras margens e contornos,
deslocando em diversas escalas as análises de uma tradição da filosofia política que pensou a
guerra como grade de inteligibilidade, seja das relações sociais, seja de uma suposta natureza
humana, ou mesmo como continuação da política por outros meios212.
Não há dúvidas, contudo, que a guerra continua a ser uma realidade deste tempo. Se
levarmos em consideração as novas modalidades e agentes da guerra – que incluem, por
exemplo, as empresas militares privadas e a guerra com uso de veículos aéreos de combate não-

209
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In:____. O Anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b. p. 13.
210
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
211
Conforme notas 10 e 11 do Capítulo 2.
212
Em 1976, no primeiro tomo de sua Histoire de la Sexualité: La Volonté de Savoir, questiona-se Foucault:
“Deve-se então inverter a fórmula e dizer que a política é a guerra prosseguida com outros meios? Talvez, se se
quisesse manter sempre uma distância entre guerra e política, dever-se-ia adiantar ao contrário, que essa
multiplicidade das relações de força pode ser codificada – em parte e jamais totalmente – seja na forma da ‘guerra’,
seja na forma da ‘política’: essas seriam duas estratégias diferentes (mas prontas para cair uma na outra) para
integrar essas relações de força desequilibradas, heterogêneas, instáveis, tensas” (FOUCAULT, 1976, p. 123).
97

tripulados213 –, é patente a existência de estados expandidos de violência214. Esses estados se


configuram menos a partir de uma guerra sustentada por uma reivindicação de direito do que
por complexos sistemas globais de segurança direcionados à contenção de fenômenos
transterritoriais, como os terrorismos e os fluxos migratórios internacionais.
Nesse cenário, o recurso à guerra como defesa do direito de soberania ou de legítima
defesa parece se deslocar, na medida em que as guerras já não se fazem em nome de uma
injustiça cometida contra a qual se necessitaria, em prol da soberania do Estado, punir. Trata-
se, desde o alvorecer do século, do surgimento de uma estranha modalidade de guerra
preventiva, revestida pelo discurso autolegitimatório do uso da força, direcionada mais às
ameaças futuras do que aos danos passados. Como, porém, legitimar publicamente o ataque ou
a ocupação de territórios sem que, efetivamente, haja uma declaração formal de guerra entre as
partes? Porque se a guerra é, hoje, juridicamente considerada um ilícito internacional, as
disposições adotadas pela Carta das Nações Unidas e seguidas pelos países-membro preveem
uma exceção: elas autorizam a resposta bélica na sequência de um ataque armado, em caso de
legítima defesa.
É de se estranhar, porém, que, nos últimos anos, tenha sido visto um alargamento
exponencial de escala das ações resguardadas pelo uso da “legítima defesa preventiva”. E que
não haja reação mais enérgica contra uma “guerra ao terror”, tipificada como contraterrorista,
cujos mecanismos são tão ou mais destrutivos do que aqueles empregados pelos “terroristas”.
Essas práticas apontam para o fato de que, como nota Nilo Batista, “[...] as razões pelas
quais o rótulo ‘terrorista’ é aplicado em certos casos e não no outro, parecem ter pouco a ver
com a natureza dos atos: elas derivam dos interesses das reações oficiais a tais atos”215.
Reações oficiais que envolvem uma série de instituições, um conjunto de crenças, de
enunciados e operações, cuja parcialidade dá a ver as engrenagens de relações de poder que
hierarquizam os conflitos segundo o valor (social, cultural, político e racial) das vidas e dos
interesses que estão em jogo.

213
Como desenvolvido em UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia
pelas empresas militares privadas. Trad. Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. E por
CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do Drone. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
214
GROS, Fréderic. Estados de Violência: Ensaio Sobre o Fim da Guerra. Trad. José Augusto da Silva. São Paulo:
Editora Ideias & Letras, 2009. É Gros, em seu ensaio, quem elabora a hipótese segundo a qual a redistribuição da
violência em configurações inéditas, desde o início do século XXI, ocasionaria a emergência dos “estados de
violência” contemporâneos, que redefiniriam o traçado do pensamento e da prática da guerra tal como vigorou até
o século XX.
215
FRAGOSO, 1981 apud BATISTA, Nilo. Reflexões Sobre Terrorismos. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA,
Salete. (Org.) Terrorismos. São Paulo: EDUC, 2006, p. 16.
98

Seria, então, pertinente caracterizar essa guerra ao terror como um “[...] ato de violência
destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”216, tal como a clássica
definição da “guerra” proposta por Clausewitz? Para além disso, que adversário seria esse
contra o qual se luta, o terror, desterritorializado? A guerra ao terror se caracterizaria, assim,
como um novo “governo da emergência”, chancelado pelo medo do Outro?
É isso que o discurso e a prática da neutralização profilática dos “inimigos” indicam.
Como medida mais eficiente e eficaz de contenção dos riscos próximos, instaura-se uma intensa
caçada, com vistas não só ao encarceramento e ao abate dos adversários presentes, mas também
a prefigurar alvos futuros, antecipar e desarticular, por meio dos mapeamentos, dos cálculos e
da vigilância ostensiva, as ameaças potenciais.
Na institucionalização das estratégias políticas de abrangência planetária, em nome da
necessidade de viver, “os massacres tornaram-se vitais”217, como afirmaria Foucault em
relação ao modo de operação dos racismos e de sua inscrição nos mecanismos do Estado, no
curso Em Defesa da Sociedade. Uma outra economia da violência parece se esboçar, pois se
doravante “no quadro de uma guerra justa, matar não é um crime”218, em nome da urgência
da hora histórica as medidas de exceção são aderidas à estrutura jurídico-política e passam a ser
integradas ao direito comum, apesar de sua ambivalência notória, pois “[...] coincidindo com a
regra, ameaça hoje torná-las indiscerníveis”219. Instrumentalizadas e refletidas nas diversas
formas de violência sistêmica e institucional, a lógica da guerra estará na base da estrutura dessa
necrogovernança, por meio da qual o quadro de violência – com sua maquinaria bélica e com
suas tecnologias de controle de massa – estabiliza como normalidade cotidiana a manutenção
dos modos de dominação.

Paz (liberal) e terror

Mas não será somente no campo da guerra e dos conflitos geopolíticos que as
transformações decorrentes das medidas de exceção se fazem sentidas. Há, mesmo nos
processos de pacificação, mudanças radicais em suas operações e no que se compreende pelas

216
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. Trad. Carlos Francisco S. Gomes. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2010, p. 7.
217
FOUCAULT, 1976, p. 179-180. E, igualmente, no primeiro volume de sua História da Sexualidade: A Vontade
de Saber, publicado também em 1976.
218
GROS, Fréderic. Estados de Violência: Ensaio Sobre o Fim da Guerra. Trad. José Augusto da Silva. São Paulo:
Editora Ideias & Letras, 2009. p. 251.
219
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 132.
99

intervenções humanitárias com o objetivo de instauração de uma “paz liberal”220. Em defesa da


liberdade e da expansão da democracia liberal do ocidente, justificada como ampliação da tutela
dos direitos humanos em direção ao oriente e ao sul geográficos, duradouras e truculentas
ocupações empregam a força como recurso necessário a uma “liberação” de povos sob a égide
de governos presumidamente autoritários ou teocráticos.
Assim, a difusão do modelo político das democracias ocidentais, como um sistema de
regras universalizáveis, culmina em uma crise de soberania e no equívoco de supor a
democracia participativa como regime político fixo, prêt-à-porter, a ser exportado em série para
o mundo. Ademais, atores, processos e agendas da promoção dos direitos humanos, via
organizações intergovernamentais, colocaram na ordem do dia o desenvolvimento, a
cooperação e a integração de blocos regionais em direção a horizontes comuns da
universalização dos direitos fundamentais. O que não deixou de gerar uma série de tensões no
que diz respeito à política de aplicação dos direitos humanos, ora exaltados e defendidos como
prioridade máxima na agenda internacional, ora rechaçados e miniaturizados diante das novas
ameaças globais.
Não é difícil constatar que a lógica dos estados de violência coloca em xeque os
princípios norteadores dos direitos dos governados, ao permitir a realização de operações que
expõem ao risco a vida de civis não-combatentes; ao suprimir a garantia de direitos
fundamentais; ao autorizar que sejam realizados interrogatórios sem aviso prévio – e até ao
chancelar a prática da tortura como medida recorrente nas operações militares “humanitárias”.
Tensão, portanto, entre valores considerados “universais” e os interesses nacionais, que
transformam o estrangeiro em inimigo absoluto e o paradigma da exceção em governo pelo
terror.
É desse modo que a produção discursiva da ameaça islâmica, pós-11 de Setembro, seria
sustentada, na construção lenta e sistemática no imaginário coletivo da ligação direta entre o
islã e o terrorismo, porque o terrorista adquiriu faces, traços e perfis bem nítidos. A
identificação, nesse contexto, do muçulmano com o terrorista forjou, com ajuda maciça do fluxo
de imagens midiáticas, um tipo, o Outro radical, que se apresenta como impasse indissolúvel e
diferença abissal, a qual é preciso se não eliminar de imediato, pelo menos, suspeitar:

Nosso governo jura solenemente destruir a causa desse ataque terrível e encontrar
esses “traços característicos” (fanatismo, disposição para ocultar, isolamento,
fontes de recursos misteriosas etc., até mesmo “árabes” de qualquer tipo e

220
CHANDLER, David. The responsibility to protect? Imposing the 'Liberal Peace'. International Peacekeeping,
vol. 11, n.º 1, Spring 2004, p. 59–81.
100

“islâmicos” de qualquer espécie) que “revelam” uma presença estranha onde quer
que ela possa ser encontrada.221

Essa alteridade, insondável e inapreensível, suscita o medo generalizado e a


desconfiança permanente daqueles que reconhecem neles as marcas do terror e da violência
oportunista, a espera para desferir o golpe extremo ao país que a acolhe. Trata-se, então, de dar
uma resposta eficaz que expõe, por seu turno, um profundo ressentimento mais ou menos latente
das minorias, das alteridades e dos estrangeiros. Com isso, erguem-se as políticas públicas
restritivas e hostis, que fomentam o reforço da xenofobia e do nacionalismo atávico, e o ódio
às diferenças. Esse ódio infunde-se, notadamente, nos discursos da segurança pública, como
afeto mobilizado para responder ao que assombra. Assim, Butler notaria que:

Um ser é ferido, e o vocabulário que emerge para moralizar esse sofrimento é um


vocabulário que isola um sujeito como a origem intencional de um feito injurioso.
[...] O sujeito não é apenas fabricado como a origem anterior e causal de um efeito
doloroso reformulado como uma injúria, mas a ação cujos efeitos são injuriosos
não é mais uma ação, a presença contínua de um “ato”, mas é reduzida a um “ato
singular”.222

Não é fortuito que, nas últimas décadas, conflitos étnicos e raciais tenham se ampliado,
cindindo países e povos, e reverberando na escalada política vertiginosa das direitas
extremistas. Esses grupos reforçam o discurso conservador, com suas figuras fortemente ligadas
à pátria, à terra e às identidades – linguística, religiosa, racial, sexual, nacional –, em resposta
ao que julgam ser fruto do extremismo islâmico ou do perigo estrangeiro. Porém, como nos
lembra Derrida, “[...] o extremismo político-religioso não é o islã, mesmo que os extremistas
falem em seu nome. É uma usurpação. Tanto que as vítimas mais numerosas desta
monstruosidade são os próprios muçulmanos”223.
Seria preciso, portanto, recusar essa ligação instantânea, disseminada no senso comum
como verdade secreta que religa a crença islâmica ao extremismo político. E não se pode
esquecer, igualmente, o quanto essa “verdade” está apoiada em uma cisão epistemológica, que
tem na “teoria do choque das civilizações”224 a sua expressão mais bem-acabada. Essa leitura,

221
NICHOLS, Bill. O evento terrorista. In: MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir. (Org.) O Cinema do Real.
São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 288.
222
BUTLER, Judith. Excitable Speech: A politics of the performative. Nova Iorque: Routledge, 1997. p. 45.
Tradução minha.
223
In: CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 88.
224
Teoria proposta pelo cientista político Samuel P. Huntington no artigo The Clash of Civilizations?, publicado
na revista 'Foreign Affairs' , de 1993. Esse artigo ganhou repercussão ao afirmar que as identidades culturais e
101

que opõe oriente e ocidente como forças irreconciliáveis, tem por consequência o reforço das
fronteiras binárias e maniqueístas, por meio das quais o irracional é identificado nesse “outro
lugar”. Lugar fronteiriço onde, no limiar entre humano e inumano, o terrorismo de Estado pode
se instalar sem se preocupar com a aplicação dos rituais democráticos.
Por isso, pensar a atualidade e a questão dos terrorismos desde outras lentes, no
momento em se instala essa “zona de indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um estado de
exceção”225 torna-se tarefa de suma importância para problematizar os limites da jurisdição do
Estado. Além disso, enquanto paradigma efetivo de governo, a constituição dessas
representações é indissociável dos efeitos hostis que se apoiam não apenas no desprezo da lei,
mas na nulificação do ser – essencial para que se exerça a letalidade estatal. A propósito disto,
Foucault constata que:

Essa vontade de golpear faz parte do jogo do medo mantido há anos pelo poder.
Toda campanha sobre a segurança pública deve ser apoiada – para ser credível e
rentável politicamente – por medidas espetaculares que provam que o governo
pode agir rápido e forte acima da legalidade. Doravante, a segurança está acima
das leis. O poder quis mostrar que o arsenal jurídico é incapaz de proteger os
cidadãos.226

Governar por meio do “jogo do medo”, nas bordas da legalidade, é instituir como técnica
de governo o paradigma da exceção. É o que notaria Agamben, atento para o fato de que “[...]
o estado de exceção cessa, assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo
factício e tende a confundir-se com a própria norma”227. Desse modo, governar pela exceção,
instituindo como parâmetro não a norma legal, mas a segurança, resultará, não à toa, no vazio
jurídico que parece caracterizar as situações de anomia social dos estados de emergência atuais.
E que realiza, perversamente, o prognóstico enunciado por Benjamin: o estado de exceção
normaliza-se como medida desejada de governo.
No reforço dos mecanismos de exceção com existência jurídica, sob sua vigência, é que
se poderá, dispor da vida e da morte dos sujeitos. Porque, se “toda palavra guarda uma

religiosas dos povos seriam a principal fonte de conflito no mundo pós-Guerra Fria, haja vista “as falas geológicas
entre as civilizações”. Evidentemente, trata-se de uma perspectiva apressada, segundo a qual oriente e ocidente
são polos heterogêneos e irreconciliáveis, fadados a conflitos intercivilizacionais.
225
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 64.
226
FOUCAULT, Michel. “Désormais, la sécurité est au-dessus des lois”. In:____. Dits et Écrits II. Paris:
Gallimard, 2001. p. 367. Tradução minha.
227
AGAMBEN, Op. cit., p. 164.
102

cilada”228, toda medida de segurança pública guarda também uma emboscada: a ordem das
coisas é a violência como ordem – experiência primeira e última do terror.

3.3.2 O Islã dos contos de fábulas: as mil e uma noites da guerra

Creio que a relação com o outro é a condição da justiça.

Jacques Derrida

Não se quer ver que o Daech é um produto da nossa Modernidade.

Olivier Roy

As mil e uma noites de terror que assombram o mundo ocidental bem poderiam ter sido
relatadas por Sherazade, cuja paixão em narrar contos fantásticos aponta para a luta que se
trava, secretamente, por sua própria sobrevivência. A interrupção matinal da narração dos
contos, que recomeça pela noite, é senão, como sabido, um subterfúgio para aguçar a
curiosidade do rei e evitar que a execução sumária se abata sobre ela, fruto da fúria insaciável
de vingança do rei traído229.
Os contos de terror ocidentais, entretanto, seriam estranhos à pretendente do rei.
Sobretudo, quando o cenário, para além do pacto ficcional, é o próprio território da protagonista,
em que escombros, ruínas e destroços compõem a paisagem urbana devastada. As bombas que
caem aos montes nos subúrbios das cidades, distantes dos contos mágicos, fazem parte do
cotidiano de centenas de milhares de pessoas que vivem em cidades do Oriente Médio e da
África, cuja rotina de destruição e de intimidação engendra um modo de vida marcado pelo
nomadismo e pelos riscos multiplicados de morte.
A imagem do mundo árabe que se tornou paradigmática no pensamento ocidental oscila
entre o exotismo de seu modo de vida e a suspeita de que todo indivíduo de cultura árabe-
muçulmana é fundamentalista religioso – pronto para sacrificar a sua vida em nome de seus
valores teológico-políticos e do islamismo extremista. Por outro lado, tem-se em mente que o
retrato ocidental no Oriente, por conta dos fluxos acelerados de informações, da produção e do
consumo de mercadorias é aquele de um mundo globalizado, secular e blasfemo.

228
NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982. p. 369.
229
ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites – vol. I: ramo sírio/anônimo. Trad. Mamede Mustafá Jarouche. São
Paulo: Globo, 2005.
103

Essa visão do choque de civilizações foi adensada nos anos da década de 1990 por um
intenso debate em torno das identidades culturais e religiosas dos povos como origem dos
conflitos pós-Guerra Fria. Esse modo de compreensão, reforçado pelo livro do cientista político
Samuel P. Huntington, O Choque de Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem
Mundial230, prioriza a esfera cultural como fonte dos conflitos mundiais, em detrimento do
campo ideológico ou econômico. Para Huntington, nos antípodas do que argumentava Francis
Fukuyama, os conflitos culturais envolvendo o islã seriam o paradigma dessa concepção
centrada no choque. Nas trilhas do que se chamaria “nova ordem mundial”, na década de 1990,
sob o fragor dos ventos da globalização, Huntington sustenta que a democracia liberal, o sistema
capitalista de livre mercado e os direitos humanos seriam, de modo inequívoco, a única
alternativa ideológica possível após a Guerra Fria.
A chave de compreensão dos conflitos intercivilizacionais não parece dar conta, todavia,
das especificidades das tensões geopolíticas que envolvem os povos orientais e ocidentais, além
de homogeneizar as diferenças intraculturais. Sob a ótica do binarismo irreconciliável, a
consequência imediata é a instituição de uma polarização redutora, incapaz de lançar um olhar
crítico mais denso, tanto para o fenômeno cultural quanto para o político, de modo integrado.
E, ainda de forma mais restritiva, essa perspectiva fomenta a percepção homogeneizante
segundo a qual a política oriental seria intrínseca ao sectarismo e ao obscurantismo religioso,
por oposição à prática política do ocidente, livre e democrática, amparada pelo sufrágio
universal. Se levarmos em consideração que a gramática política do ocidente, apesar da perda
progressiva de valores religiosos, é definitivamente devedora do vocabulário judaico-cristão –
bastaria ver, para citar apenas um exemplo, como se apropria de conceitos como “tolerância”231
–, a fronteira entre o político-racional e o mítico-religioso se apresentaria mais porosa e
permeável do que se supõe. É o que o clássico ensaio A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, de Max Weber, tentava demonstrar ao pensar as relações entre conduta econômica

230
HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Trad. M.H.C.
Cortês. Rio de janeiro: Objetiva, 1997.
231
Ao se opor à noção habermasiana de “tolerância”, como terreno para um universalismo puro das sociedades
pluralistas modernas, Derrida indica o caráter paternalista e violento deste conceito. Isto porque, segundo o
filósofo, a tolerância seria uma virtude cristã e, apesar de vislumbrar uma “coabitação” tolerante, supõe “[...] uma
espécie de concessão condescendente” (BORRADORI; DERRIDA, 2004, p. 137). Como forma de caridade, a
tolerância estaria sempre do lado da “razão dos mais fortes”, em sentido oposto à hospitalidade sem condição. Em
suma, a tolerância demonstra a unilateralidade de um princípio que não pode se reduzir a uma regra aplicável, pois
serve frequentemente à causa da opressão e da hierarquização entre quem tolera e o que é tolerado.
104

do “espírito do capitalismo” e a ética protestante232, desde sua formação político-econômica


estruturada nos moldes religiosos.

Estado de graça

“É preciso ver no capitalismo uma religião”233, afirmaria categoricamente Benjamin.


É lá onde as análises weberianas postulariam a secularização progressiva do capitalismo, que
Benjamin relê nele os traços mais bem delineados do reforço das práticas cultuais, de modo
“imediatamente prático”, cujo objeto-ídolo de adoração seria o dinheiro. Sem se ancorar em
uma teologia, o espírito do capitalismo opera segundo a duração sem trégua do culto espectral;
sua liturgia, em expansão global como sistema dinâmico, institui “[...] um culto que não é
expiatório (entsühnenden), mas culpabilizador”234.
À proporção que a culpa e a dívida partilham do mesmo conjunto de referências, o ato
religioso de fazer a culpa “entrar à força na consciência”235 tem por equivalência o
endividamento forçado e “universalizado”. Excluídos da graça, os pobres e os povos periféricos
são culpados por sua condição; e o mistério oculto da fé justifica a sua exclusão como a vontade
de Deus, interpretado como novo testamento de seu gesto, oferecido pelo dinamismo da vontade
dos mercados.
O que o capitalismo como religião concede, desse modo, não é a salvação, mas o
desespero e o fatalismo sem qualquer esperança de redenção. É nesse contexto que a conversão
compulsória é levada a cabo para redistribuir, igualmente, a culpa/dívida entre todos. A ação
de graças se transforma no sacrifício do corpo mortificado, penitenciado e ofertado como
cordeiro aos lobos de Wall Street. Essa comunhão, cujos juros são cobrados implacavelmente
em caso de recusa, retira o caráter dogmático do culto e o caráter transcendente do oculto ao
colocar, em seu lugar, a moral do devedor e a primazia do livre-arbítrio, diante do qual “[...]
tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”236.
Se o sistema capitalista pode ser lido como adesão de certos valores do cristianismo
convertidos nas práticas de mercado, de outro lado, é preciso problematizar uma visada que se

232
Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Ainda, neste sentido, cf. BENJAMIN, W. O capitalismo como religião.
Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013.
233
BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 21.
234
Idem, p. 22.
235
BENJAMIN, Op. cit., p. 22.
236
1 Coríntios 6:12.
105

tornou paradigmática na análise da questão islâmica. Esta abordagem pretende ler em todo
islamismo uma conexão necessária entre o fanatismo irracional e o dogmatismo cego ligados a
valores intrínsecos da religião muçulmana exportados para a ordem política. A estratégia de
deslegitimação epistêmica e religiosa, que marca os discursos hegemônicos, consiste em traçar
uma linha genealógica direta entre a ausência de liberdade de escolha e a violência
constrangedora, que justificaria o seu caráter originariamente violento.
Isto explicaria a razão pela qual as determinações pré-fixadas na política ocidental-
cêntrica, de longa data, têm obtido êxito ao fixar o adversário islâmico como o polo negativo
de toda mediação ou negociação possível. Difícil não iniciar o debate, então, sem notar que, por
meio dessas figurações, populações inteiras são eliminadas imediatamente por serem
reconhecidas como lugar de origem do mal. Origem de um mal sem nome próprio, silencioso,
arcaico e tentacular. Mal que se expande difuso, em territórios outrora traçados a régua e
compasso pelas sucessivas ocupações colonialistas e neocolonialistas, que não cessaram de
fragmentar o Oriente Médio, a Ásia e a África em sua corrida pela partilha do mundo entre as
nações do Norte.

Missionários e cordeiros

A partilha do mundo entre as nações do Norte se fundamenta não apenas na dominação


territorial e populacional via ocupação militar estrangeira, mas também por meio de pactos,
acordos e alianças que opõem grupos e aprofundam diferenças culturais, políticas, étnicas e
religiosas. É com base na narrativa eurocêntrica da modernidade/colonialidade e na lógica
civilizatória como técnica de dominação que grupos e entidades políticas são aniquilados,
reunidos ou dissolvidos, de acordo com os interesses geopolíticos dos blocos ocidentais, que
deixam para trás os rastros de destruição e de ruínas, como se tem visto ao fim de determinadas
ocupações pacificadoras237.

237
E não apenas no contexto internacional, se pensarmos na crítica à prática das pacificações que norteou, por
exemplo, a política de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, que se iniciou
em dezembro de 2008, na Favela Santa Marta. Ao aprofundar a segregação socioespacial, por meio de dispositivos
criminalizantes e de uma política de administração repressiva, vigilante e de controle, a pacificação não se
configuraria como uma política comunitária de garantia da ordem e de “reconquista territorial”, mas funcionaria,
antes, como um reforço das fronteiras que aprofundam a estratificação social nos espaços urbanos e a
governamentalidade de seus moradores. Soma-se a isto o papel desempenhado pelas forças armadas com vistas
ao controle do território, que culmina na militarização da questão urbana e nas intervenções policiais violentas,
frequentemente em promíscua negociação com grupos paramilitares, como as milícias, e com as próprias forças
do chamado “poder paralelo”. O discurso de integração e da contrapartida de promoção do acesso aos
equipamentos e políticas sociais, desse modo, colide com a prática efetiva de ocupação, ancorada no modelo
belicoso. Daí as reações hostis, truculentas e arbitrárias por parte dos agentes do Estado, direcionadas aos
106

O fato é que, por vezes, algo parece fugir dos cálculos. Inesperadamente, antigos aliados
passam a figurar no papel pouco honroso do inimigo, não raro utilizando as mesmas estratégias
bélicas aprendidas com seus coachings internacionais. Assim, velhos parceiros estratégicos se
voltam contra as nações outrora “amigas”, sob a tutela das quais permaneceram por longa data,
submetidas a todas as relações de dominação – identitárias, linguísticas, intersubjetivas, de
autoridade política ou epistemológica.
Como escreve Freud, em ensaio de 1919, dedicado ao estranho238, o duplo é nomeado
como o íntimo familiar, “[...] que experimentou uma repressão e dela retornou”239. O estranho
não é o novo, mas o familiar que retorna na expressão de algo oculto (ou ocultado), que se
manifestaria de modo ainda mais assombroso. Os fundamentalismos e o eurocentrismo seriam
duas faces de uma mesma moeda. Ambos partilham da ideia da pureza identitária do “Estado-
nação”, ideia moderna do ocidente em cuja raiz está o esforço de homogeneização das
identidades da população no interior das fronteiras territoriais da Nação.
É desse modo que investigar os terrorismos permite encontrar, a um só tempo, o Outro
e o Mesmo, em suas figurações espectrais e fantasmagóricas. Nas explícitas manifestações de
islamofobia240, negrofobia e de xenofobia em geral, revestidas pelo caráter autoindulgente e
racista das medidas de exceção, o espelhamento analógico revela no medo do outro a outra face
de uma identidade e de uma identificação: a aparição do estrangeiro racializado como
duplicação fantasmática do terror potencial e da lógica racista/sexista/colonial que organiza as
estruturas da violência sistemática, da expropriação e do ódio como política.

Os demônios da fé

À ocasião de um encontro em Paris que reuniu o filósofo Jacques Derrida e o professor


argelino Mustapha Chérif para um diálogo em torno do islã e do ocidente, em 2003, Chérif
destacaria um ponto importante no que diz respeito à perspectiva ocidental do islamismo.
Constata o professor que, “[...] do lado europeu, os estudos sobre o islã são vistos sob o ângulo

habitantes das zonas ocupadas, como as favelas, imediatamente identificadas como “espaços de ilegalidade”
povoados por inimigos potenciais.
238
FREUD, Sigmund (2010 [1919]). O Inquietante. In:____. História de uma neurose infantil: (“o homem dos
lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 328-376.
239
Idem, p. 366.
240
Cf. PASSETTI, Edson. Limites da Tolerância. Zero Hora, Porto Alegre, 10/01/2015. Disponível em:
http://www.nu-sol.org/agora/agendanota.php?idAgenda=598. Acesso em: em 29 ago. 2016.
107

da segurança: esse olhar redutor favorece o amálgama e o descrédito, e reduz o terceiro ramo
do monoteísmo a uma miríade de ínfimos grupos”241.
Encarar o islã como bloco monolítico e considerá-lo estritamente em sua interface com
as questões de segurança pública internacional, significa, com efeito, distorcer seus
pressupostos éticos e religiosos como se a prática do terrorismo fosse uma premissa religiosa.
Quanto a isso, pergunta-se Derrida:

Por que alguns no ocidente fecham-se ainda na construção de uma figura redutora
do islã e de sua cultura do oriente, que consideram “subdesenvolvida”, à do
ocidente, dita “desenvolvida”, segundo seus critérios arbitrários, procurando
sempre impor pela força os seus valores?242

“Há islãs, há ocidentes”, ressaltaria, por fim, o filósofo franco-argelino. Com a


multiplicidade de facetas que o islã adquire e com o uso que se faz de cada uma delas, é
imprescindível questionar a que interesses servem as cristalizações unívocas dessas figuras, na
medida em que a reprodução de determinados avatares tem por consequência, notadamente, o
reforço e a legitimação da lógica interventiva. Cria-se uma imagem e projeta-se nos grupos
criminalizados uma coerência e uma homogeneidade étnica que eles não possuem. Isso facilita,
como se sabe, a aniquilação não só do diferente, mas da diferença, travestida como origem do
mal. Uma diferença, simultaneamente, abissal e bestial, como se esses grupos pudessem ser
descritos monotonamente em uma espécie de livro borgeano dos seres monstruosos imaginários
– duplos entre o homem e os animais fantásticos – ou, ainda, catalogados em um dos bestiários
de Cortázar.
É contra essa (con)fusão interpretativa que a analista política italiana Loreta Napoleoni
destaca em entrevista recente concedida ao jornal Avvenire que “[...] a religião não é o elemento
cultural que distingue o Califado243, mais que isso, é um pretexto para fazer dele um motivo de
extermínio”244. O revestimento de princípios teológicos dos movimentos extremistas, pautados

241
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 11.
242
Idem, p. 43-44.
243
O califado é a forma islâmica monárquica de governo. Representa a unidade e liderança política do mundo
islâmico. A posição de seu chefe de Estado, o Califa, baseia-se na noção de um sucessor à autoridade política do
profeta Moḥammed. Importante lembrar que, no passado, os califados foram multiespirituais e multiculturais,
diferente da compreensão contemporânea dos grupos que reivindicam, hoje, a sua refundação.
244
NAPOLEONI, Loreta. “Califado. A sede corporativa do terror”. Entrevista publicada pelo Jornal Avvenire,
18.11.2014. Trad. Ivan Pedro Lazzarotto. IHU On Line. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537616califadoasedecorporativadoterror?tmpl=component&print=1&page=
Consultado em 10 ago. 2016.
108

por um viés fundamentalista do islã, não significa que a ancoragem teológica para a
radicalização da violência esteja, de fato, inscrita na religião. O califado islâmico atual, que
pode ser considerado um projeto teológico-político por meio do qual algumas organizações
fundamentalistas travam uma luta sangrenta para impor um certo modelo de governo, é extraído
menos das escrituras sagradas do que de um ideal tático utilizado como argumento nos conflitos
em nome de interesses econômico-territoriais e de dominação étnica.
É interessante ressaltar, como aponta Grosfogel, que:

[...] o pensamento colonial não é somente o que impõe o Ocidente. Pode muito
bem ser internalizado pelos colonizados, e em nome de uma alternativa ao
Ocidente, pode reproduzir uma visão completamente ancorada na modernidade
ocidental-cêntrica.245

Assim, de um lado, “o Estado Islâmico na Síria e no Iraque toma uma categoria do


passado como a noção de ‘califado’ e a coloniza com a ideia moderna de pureza identitária do
‘Estado-nação’”246. De outro, a intrincada economia política desta guerra e, de modo especial,
à da guerra ao terror, opera traçando uma equivalência entre religião e radicalismo, com o
amálgama que liga o arcaico, o incivilizado e o radical à identidade do povo de língua árabe.
Segundo esse modelo, o islamismo seria a religião do imperialismo selvagem; a Sharia, a lei
islâmica, a expressão por excelência de sua essência bélica; e aqueles que professam a sua fé,
instrinsecamente violentos. Ao examinarmos a formação histórica de certas organizações
islâmicas ligadas à prática da violência em larga escala, por outro lado, é curioso o fato de que,
como nota Chomsky:

Esses Estados [islâmicos] têm sido, na verdade, alvo de ataques pelas forças
radicais do islamismo que foram organizadas e treinadas para lutar uma Guerra
Santa contra a URSS, vinte anos atrás [i.e. no final da década de 70 e início da
década de 80], e logo a seguir começaram a traçar suas próprias prioridades, ou
seja, disseminar o raio de alcance do terrorismo que praticavam, iniciando pelo
assassinato do presidente egípcio, Sadat [1981].247

E, prosseguiria o filósofo, noutra entrevista:

245
GROSFOGEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 67.
246
Idem, ibid..
247
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.
87. Ressalte-se que, aqui, Estados islâmicos não se referem à organização do Estado Islâmico (ISIS).
109

Os EUA, juntamente com seus aliados, reuniram um enorme exército mercenário,


composto talvez de 100 mil homens, arregimentados dos setores mais radicais que
puderam encontrar, que eram justamente islâmicos radicais, também chamados
de ‘islâmicos fundamentalistas’, e isso trazendo homens de todas as partes,
principalmente de fora do Afeganistão. São chamados afeganis, mas, assim como
Bin Laden, muitos deles vêm de outros países.248

Os grupos islâmicos radicais, aos quais Chomsky se refere, foram formados em 1979,
devido aos conflitos de interesses geopolíticos, que levaram à criação de protetorados no
Oriente Médio pelos países do Norte, com vistas à formação de uma “barreira ideológica”. Para
deter o avanço soviético no Afeganistão, milhares de soldados foram treinados pela CIA
[Central Intelligence Agency], de modo a combater a expansão dos sovietes. Em que pese o
momento histórico da Guerra Fria que se desenrolava, muitos dos atuais inimigos de Estado
das potências ocidentais foram aliados importantes que receberam, além de treinamento,
financiamento direto e uma série de informações privilegiadas de agências de inteligência no
que foi batizado, estrategicamente, de “guerra santa”.
Com o objetivo de conter a expansão e de conferir ao conflito um cunho religioso-
territorial, a guerra dividiu as nações árabo-islâmicas e a força aliada dos comunistas soviéticos,
que se retiraram após a ofensiva. Naquele momento, figuravam como aliados importantes do
ocidente e dos EUA, nomes como Sadam Hussein e Osama Bin Laden, para citar apenas dois,
que seriam considerados posteriormente lideranças de grupos terroristas contra as quais a
“guerra ao terror” se destinaria.
A multipolarização do mundo pós-Guerra Fria deslocou interesses geopolíticos e
resultou em novas alianças e divergências. A guerra santa, neste cenário, foi redefinida como
uma espécie de niilismo apocalítico que assumiu os traços arcaicos do terror. A perspectiva
ocidental da teologia política do islã, aproximada ao jihadismo e ao fundamentalismo religioso,
transmutou a imagem do muçulmano em radical-religioso. Em consequência, os muçulmanos
estariam fadados ao fatalismo irracional. Mesmo Max Weber, em suas considerações
sociológicas eurocentradas, já via no muçulmano um desvio “[...] por completo de qualquer
conduta de vida racional”.249
A islamofobia epistêmica transmuta-se, então, no veredito racista que desconsidera
completamente as contribuições islâmicas para a formação dos saberes modernos do ocidente
e produz amplas reservas de imaginários culturais a fim de desqualificar qualquer traço

248
CHOMSKY, Op. cit., p. 95.
249
SUKIDI, Mulyadi. “Max Weber’s remarks on islam: The Protestant Ethic among Muslim puritans”. Islam and
Christian-Muslim Relations, Birmingham, vol. 17, n.º 2, 195–205, 2006. p. 200. Tradução minha.
110

histórico que confira relevância a essas culturas. Veja-se, por exemplo, a importância histórica
da Escola de Bagdá (a Bayt al-Hikmah, conhecida como a “Casa da Sabedoria”) como centro
de irradiação intelectual e de circulação de saberes – inclusive, pela via institucional, com a
fundação das universidades mais antigas do mundo250, enquanto a Europa mergulhava no
processo inquisitorial.
Talvez esse estranhamento tenha lugar porque o islã traz consigo outra concepção de
religião, distinta do sentido ocidental, que a considera uma prática cultural dissociada da
política, da economia ou da vida pública – embora essa laicidade republicana possa ser
contestada sem muita dificuldade. Sem ser uma esfera separada, a visão cosmológica do mundo
islâmico rompe com o modelo dualista, seja cristão ou cartesiano, sem que a religião se oponha
às ciências ou ao pensamento racional, como o secularismo cientificista moderno/colonial
postulou. Não se deve esquecer, todavia, o quanto esses valores (atrelados ao discurso
civilizatório) estão implicados no projeto colonial, que não pode prescindir do epistemicídio
que deslegitima formas de conhecimento não ocidentais ou periféricas. É apontando o reino das
“trevas” e dos “demônios da fé” que o epistemicídio e o “espiritualicídio” tonaram possíveis a
colonização das mentes e dos corpos dos sujeitos coloniais.251
Há, ainda, a inconciliável aliança entre a democracia política e o islã. Evidentemente,
essa incompatibilidade tem como pedra angular o descrédito epistêmico e político conferido a
qualquer prática de governo que não seja pautada pela suposta primazia do regime democrático
liberal – entendido como forma de organização social e de governo “autorregulatório”, isto é,
em tese, aquela em que o Estado se abstém de intervir no que concerne ao direito dos cidadãos
e de sua responsabilidade de escolha pela via do sufrágio universal. Em relação a essas visões
parciais dos orientalistas anglo-eurocentrados e do que fazem circular como imagem canônica
do islã, quase coercitiva pela sua força impositiva, Edward Said remarca que:

As generalizações maliciosas sobre o islã se converteram na última forma


aceitável de difamação da cultura estrangeira no Ocidente. O que se diz sobre a
mente, o caráter, a religião ou a cultura muçulmana como um todo, não se pode
dizer agora na discussão imperante sobre africanos, judeus, outros orientais ou
asiáticos... Minha opinião... é que a maior parte disso é uma generalização
inaceitável do tipo mais irresponsável e nunca poderia se usar isto para qualquer
outro grupo religioso, cultural ou demográfico sobre a Terra. O que esperamos do

250
A Universidade de Al-Karaouine, em Fez, no Marrocos, fundada no ano 859, é reconhecida como a instituição
universitária mais antiga do mundo. É significativo também que a Universidade Al-Azhar, no Cairo, já oferecia
desde sua fundação, no século X, uma ampla variedade de graduações acadêmicas e é considerada como a primeira
universidade global.
251
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n.º 14, p. 341-355, janeiro-junho 2011b. p. 352. Tradução minha.
111

estudo sério das sociedades ocidentais, com suas teorias completas, suas
enormemente diversas análises das estruturas sociais, históricas, as formações
culturais e as linguagens sofisticadas da investigação, deveríamos esperar também
do estudo e da discussão sobre as sociedades islâmicas no Ocidente.252

A islamofobia epistêmica, uma das formas do racismo colonial, tem por função difundir,
na geopolítica do conhecimento, um esquema referencial determinado e determinante por meio
do qual o “[...] sistema mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial
ocidentalizado/cristianizado”253 justifica sua superioridade pela via do essencialismo identitário
hegemônico, que visa apagar os lugares desde os quais os discursos são produzidos, fazendo-
os circular como formas neutras, objetivas e, por isso, fora das relações de poder.
Mas não é apenas isso. O fluxo de imagens, que opera via interseção entre os
significantes do mal, o terror e a religião islâmica, teria por contraponto a constituição e a
disseminação de uma autoimagem estratégica: a do ocidente heroico, que elege o mundo
desencantado da razão, da tecnociência e da democracia liberal como o modo de vida legítimo
a ser difundido planetariamente. Vê-se, então, a circulação planificada da imagem do
muçulmano como criatura violenta e racialmente inferior, tal qual vilão dos filmes da Disney.
Associado à representação do terrorista, esse estereótipo, simultaneamente significante racial e
maquinaria de desumanização, funciona como razão suficiente para justificar a prática dos
terrorismos de Estado transnacionais e como alicerce no qual se apoia o projeto de dominação
colonial.
A guerra santa, agora não mais circunscrita nos confins do Oriente Médio e da África
do Norte, mas expandida em direção ao mundo todo, consolidou uma única vertente possível
do islã, idêntica à produção massiva do inimigo indisponível ao diálogo, à diplomacia e ao
reconhecimento do Outro. Essa tática, aliás, não seria uma novidade, se considerarmos a crítica
à visão onírica e exótica do “orientalismo”, apresentada por Edward Said. Por outro lado, dentro
dos princípios religiosos, ignora-se uma outra interpretação possível, mais nuançada, segundo
a qual “a grande guerra santa [jihad] não é a do muçulmano contra o infiel, mas aquela – de
renúncia – que lhe é necessário conduzir incessantemente contra ele próprio”254.

252
SAID, Edward. Covering islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the World.
Nova Iorque: Vintage Books, 1998. p. xi-xvi. Tradução minha.
253
GROSFOGEL, Ramón. “Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales”. Tabula
Rasa. Bogotá, Colombia, n. 14, p. 341-355, janeiro-junho 2011b. p. 343. Tradução minha.
254
BATAILLE, Georges. A parte maldita – Precedida de “A noção de dispêndio”. Trad. Júlio Castañon Guimarães.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 90.
112

Esse mal radical, portanto, mais íntimo e próximo do que se desejaria não parece tão
estrangeiro às negociações e às alianças do ocidente. Interessa, sim, construir criminalmente a
figura do fundamentalista religioso como salvaguarda de instauração de uma arte de governo
que passa, simultaneamente, pelo discurso da (in)segurança e pela expansão dos fluxos de
capitais humanos, bens e serviços. Com o radical livre a ser destruído, efetiva-se a fusão de
uma identidade étnico-religiosa com os valores arcaicos e sectários da exterioridade a ser
combatida. O que, desde a modernidade europeia, tem sido o móbil da empresa colonial, que
não deixou de tentar erradicar, com o ethos racialista de sua força expansiva e militarista, a
todos aqueles cuja vida atentariam não apenas contra a humanidade, mas contra a natureza.
Vemos esboçar-se o revés de uma tecnologia política que, “[...] no silêncio de uma
justiça um tanto outra, nas telas dessa obscura instância”, profere o veredito de antemão: ‘ser é
ser culpado’”.255 A esses bárbaros sem conversão, restaria o banimento ao último círculo do
inferno dos homens: as mil e uma noites de terror ainda, ao longo das quais nem a narrativa da
guerra é capaz de refrear o ímpeto do exterminador.

3.3.3 A África espectral e o terrorismo epistêmico

Enquanto o leão não tiver os seus historiadores, a glória vai sempre para o
caçador.
Provérbio africano

O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente


gerados de ver o mundo e viver nele.
Frantz Fanon

Um espectro ronda o continente africano: o espectro do imperialismo colonial. Espectro,


é bem verdade, com traços bem menos etéreos, translúcidos e evanescentes se comparados aos
fantasmas mais clássicos dos contos fantásticos. Pois, nele não há nenhum sinal da
transparência, da duplicidade terrível ou do pedido de vingança por um crime cometido a ser
justamente restituído no mundo dos vivos.

255
BECKETT, Samuel. Textos para nada. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 22.
113

Mas, o espectro, alvo e tão assustador quanto os demais, tampouco se compara aos bons
fantasmas dos contos de Oscar Wilde ou às visagens sobrenaturais mais folclóricas das
Assombrações do Recife Velho, descritas por Gilberto Freyre. Sua presença, signo também de
uma ausência, é assombrosa; incapaz de compreender a língua do Outro, atordoado pelo ímpeto
devastador que o impede de ver o que lhe olha por um singular autocegamento, o branco
espectro dissemina a estranheza em sua distância infinita. Ali, tudo o que se vê nele encarnado
é, a um só tempo, a decomposição que escancara a sua instabilidade ontológica e o desejo
irrefreável de terra arrasada.
Não é à toa que a escrita da história recente do imperialismo colonial, sobretudo dos
séculos XIX e XX, seja saturada de sombras, de cadáveres e de sangue, bem diferente da
alegoria romanesca do progresso emancipador e da luz da razão que libertaria todos os povos
de seus grilhões em direção à paz perpétua, como postulavam outrora os teóricos europeus.
Porque se o racional e o real coincidem256, como enunciaria Hegel, é a mesma fantasia do
controle total que toca o pensamento racional e seus desdobramentos empíricos mais violentos,
lá onde a hierarquização, a subalternidade e a dominação sobrepõem-se nos termos do terror
racial.
Daí a tentativa de apagamento e o reiterado processo de silenciamento dessa ferida
recente e ainda não suturada. Para justificar os atos criminosos, os executores – poderíamos
dizer também, os executivos – apontam em suas vítimas uma outra ausência – e que não deixa
de ser mais um assassínio: a do próprio pensamento (ou da “civilidade”, conforme o nome
adotado pela política do império). Selvagens, canibais e feiticeiros: como não perpetrar a morte
diante desse Outro tão radical que, por estranha lógica não cartografada, ataca justamente
aqueles que levam o espírito de liberdade ao continente das trevas257? No coração de todo
colonialismo habita esse segundo gesto de fúria e de pretensa caça aos fantasmas: o
epistemicídio que legitima o assassinato pelo não-reconhecimento do Outro e inaugura, nos
termos do vocabulário bélico, o próprio antídoto contra a má-consciência coletiva do ocidente:
tratam-se apenas de danos colaterais de um projeto maior.

256
Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. São
Paulo: Ícone, 1997.
257
“O continente [africano] se tornou, desde o início do tráfico atlântico, um inesgotável poço de fantasias, matéria
de um gigantesco trabalho imaginativo, cujas dimensões políticas e econômicas jamais serão suficientemente
ressaltadas e do qual jamais se dirá o bastante que continua a informar, até o presente, as nossas representações
dos africanos, de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem”. 257 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra.
Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 131.
114

Assim, opera-se não somente a invisibilização de quem se mata. No mesmo ato, produz-
se, quase de modo benevolente e missionário, o salvo conduto de quem aponta em seu próprio
trabalho de desbravamento uma espécie de gesto pedagógico irrepreensível: “ide e educai os
povos!”. Onde houver resistência à operação modelar de ensinamento dos valores do trabalho,
do pensamento lógico-científico, do modo de vida livre e autodeterminado do homem branco,
que cantem fuzis e baionetas a profissão de fé da liberdade.
Foi desse modo que a África se constituiu como o continente fantasmagórico de uma
terra a ser explorada. Terra, ao mesmo tempo, fértil e impotente, trágica e carnavalesca, pronta
para receber, como salvação de seu estado de pobreza, a tutela dos governos estrangeiros258:

“África” é, portanto, a palavra com a qual especialmente a era moderna se esforça


para designar duas coisas. Primeiro, uma determinada figura litigiosa do humano
emparedado na precariedade absoluta e no vazio do ser. E, a seguir, a questão
geral da inextrincabilidade do humano, do animal e da natureza, da morte e da
vida, da presença de uma na outra, da morte que vive na vida e que lhe dá a rigidez
de um cadáver – o ensaio da morte na vida pela via de um jogo de desdobramento
e de repetição, no qual a África seria a máscara e o plexo solar.259

Onde se lê “precariedade absoluta” e “vazio do ser”, leiam-se as alegações para a


barbárie colonial praticada pelos povos europeus e anglófonos além de suas fronteiras e a
atribuição aviltante, como lembra Sueli Carneiro a partir do contexto brasileiro, do não-ser aos
povos colonizados segundo a designação racial. A mitologia ocidental se reafirma pela
promoção da homogeneização cultural e pela destituição de outras formas de pensamento,
principalmente pela via de um “processo persistente de produção da indigência cultural”.260 A
anulação sistemática da capacidade cognoscente do Outro, assim, diante da matriz hegemônica
do conhecimento difundido como superior, é naturalizada. Afinal, o modo de conhecimento

258
Note-se que o projeto de exploração na África e na Ásia levado a cabo pelas potências europeias no decorrer
do século XX encontrava nos “protetorados” a figura jurídico-política para justificar a ocupação territorial e o
domínio colonial. Esse misto de paternalismo, cobiça e de desfarçatez, que está na raiz de diversos conflitos
etnicidas até hoje, mobilizou a prática política que recortou a geografia dos continentes subjugados e alçou seu
regime autoritário e repressivo como modo de administração legítimo das colônias. Sobre isso, remeto ao livro de
Chinua Achebe A educação de uma criança sobre o protetorado britânico, publicado em língua inglesa em 2009.
Escreve a ensaísta, logo nas linhas iniciais dos ensaios: “A meu ver, é um grave crime qualquer pessoa se impor a
outra, apropriar-se de sua terra e de sua história, e ainda agravar esse crime com a alegação de que a vítima é uma
espécie de tutelado ou menor de idade que necessita de proteção. É uma mentira total e deliberada. Parece que até
o agressor sabe disso, e é por essa razão que ele às vezes procura camuflar seu banditismo com essa hipocrisia tão
descarada.” ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sobre o protetorado britânico: Ensaios. Trad. Esa
Mara Lando. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 17.
259
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
96.
260
Idem, p. 97.
115

socialmente valorizado será aquele atrelado ao poder expansivo da ordem colonial: “[...] fora
das suas fronteiras está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem-sentido”.261
É o que a filósofa Susan Buck-Morss, em ensaio intitulado Hegel e o Haiti262, remarca
ao analisar a recorrência da metáfora política da escravidão no iluminismo filosófico europeu.
E, de modo paradigmático, a partir da dialética do senhor e do escravo, tal como proposta por
Hegel em A Fenomenologia do Espírito. O que surpreende mais no filósofo alemão, porém, é
a brutalidade argumentativa com que nega qualquer contribuição para a história mundial dessa
“terra de crianças”, de “barbárie e selvageria”, como encarava a África subsaariana263. A razão
disso seriam as deficiências próprias do “espírito” africano e o fato de que “na África, todos são
feiticeiros”.264 Essa filosofia da história ofereceu, por dois séculos, subsídios teóricos para
justificar não só o eurocentrismo, mas também a escravidão, visto que, como argumenta Hegel,
“[...] a única conexão essencial entre os negros e os europeus é a escravidão”265.
A alienação colonial e o terror epistêmico consistem então no triplo movimento de
expropriação. Primeiramente, de uma língua nativa, ao compelir o uso da língua do colonizador
aos autóctones; depois, expropriação de uma origem histórica comum e do transplante de todo
um sistema-mundo exterior, imposto pelo ferro das conquistas, e que restringe as heranças
ancestrais ao vocabulário comum de uma história na qual os sujeitos coloniais participam senão
como corpos inferiorizados, residuais e à margem do corpo político. A isso Frantz Fanon
nomearia de “epidermização dessa inferioridade”266, cuja semiótica visível da cor da pele
“deve tornar-se ódio”267. Destaca-se, por fim, a instituição de uma ordem jurídico-econômica

261
DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação na América Latina. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1986. p. 11.
262
BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Trad. Sebastião Nascimento. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo , n.º
90, p. 131-171, julho 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002011000200010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 23 jul. 2018.
263
Kant, em sua Lógica, partilha de perspectiva similar em relação a outras formas de racionalidade não-europeias:
“[...] o mesmo vale também da tão louvada sabedoria egípcia, que, em comparação com a filosofia grega, não
passou de um jogo de crianças”. KANT, Immanuel. Lógica. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1992. p. 44 (grifos do autor).
264
Sobre esse aspecto, Buck-Morss cita uma passagem importante de Hegel no rodapé de seu texto: “Nessa maior
parte da África, nenhuma história real pode acontecer. Existem apenas acidentes ou surpresas que se sucedem.
Não há objetivo, nenhum estado digno de observação, nenhuma subjetividade, mas apenas uma série de sujeitos
que se destroem uns aos outros” (Hegel, Die Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 216-7). Hegel cita Heródoto,
implicando que nada havia mudado ao longo dos séculos: "Na África, todos são feiticeiros"; e repete a história dos
africanos como "adoradores de fetiches" que já se encontrava em Charles de Brosses, o contemporâneo iluminista
de Voltaire.” HEGEL apud BUCK-MORSS, Op. cit., p. 154.
265
GILROY, Paul. Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Editora 34, 2012. p. 101.
266
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 28.
267
Idem, p. 61.
116

que classifica hierarquicamente os limites intransponíveis e fixa as diferenciações da sujeição


e da despossessão material.

A infância do mundo

Não são poucas as narrativas etnográficas, literárias ou históricas que dão margem a
leituras mais ou menos empáticas às práticas colonialistas. Se tomarmos por referência A África
Fantasma268, de Michel Leiris, para citar somente um exemplo no qual os três registros estão
interpostos, não será difícil observar como o imaginário de todo um continente se choca com a
realidade do narrador, esse viajante estrangeiro que nomeia, admirado, tudo o que vê.
Bem menos heroica, no entanto, é a empresa do colonizador, cuja imagem de nobreza
dissipa-se na violência crônica contra os povos nativos; na espoliação de bens culturais,
saqueados e expostos nos grandes museus europeus; na incapacidade de compreensão de um
modo de vida pautado por outros valores e devastado pelos administradores provincianos
delegados pelos impérios coloniais:

Na origem e em se tratando do além-mundo, cada vez que a Europa evocava o


princípio da ‘liberdade’, era a isso que se referia, sobretudo à ausência de direito,
de estado civil ordenado, e por conseguinte ao livre e inescrupuloso uso da força.
O pressuposto era o seguinte: quer se trate de nativos ou de outros rivais, o além-
mundo é o lugar onde o único princípio de conduta é o direito do mais forte. Em
outras palavras, tudo o que se passasse do lado de lá das muralhas europeias,
situava-se diretamente ‘fora das apreciações jurídicas, morais e políticas que eram
aceitas aquém da linha’269.

Ora, não se trataria de pensar nessas experiências sob as lentes de uma violência não
fortuita e casual, mas fruto de um projeto racional de governo, cuja técnica de dominação é o
terror? Invisibilizado em sua singularidade, homogeneizado como um todo informe e sem lei,
o continente Africano, ao lado das Américas, foi o campo perfeito de experimentação do
exercício soberano, do governo necrobiopolítico e do terror como projetos políticos de
subalternização. Porque se o racismo é a base da instituição colonial, é a partir dela que a
estatização do biológico e o discurso da economia se aliam concretamente na dilatação das

268
Trata-se do diário pessoal que Michel Leiris manteve ao longo da Missão Etnográfica e Lingüística Dacar-
Djibuti, da qual fez parte como secretário-arquivista. Missão delegada pela França ao também antropólogo Marcel
Griaule, entre 1931 e 1933, cujo objetivo era o de coletar dados sobre o Império Francês na África e peças para o
Museu do Homem em Paris. Cf. LEIRIS, Michel. A África Fantasma. Trad. André Pinto Pacheco. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
269
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
p.112.
117

condições de exceção, na captura e no embrutecimento do que, desprovido de sua humanidade,


é reificado como mercadoria viva.
O altericídio se enforma nas fronteiras dúbias entre o valor de uso dessas “coisas vivas”
– e, portanto, na exploração da riqueza gerada pelo seu trabalho –, ou em sua mera destruição,
na medida em que, não sendo semelhante e destituído dos direitos fundamentais, a violência
aniquiladora passa a assumir um viés moral da luta contra a degradação.
Cada relato, cada carta, cada documento produzido fruto dessas incursões coloniais dá
prova da barbárie institucionalizada como prática política de governo e de Estado. Não será
difícil detectar nelas, aliás, o rastro das marcas óbvias de diferenciação assassina que se
produzia e se reproduzia incessantemente em meio ao trânsito dos decretos, expedições,
crônicas, leis e tratados. A diferença básica se traçava nas linhas de um marco temporal: no
ideal progressista de povos mais ou menos evoluídos de forma analógica às distintas fases
etárias do ser humano, cuja figuração passa a se fundir cronologicamente com a história da
humanidade. Nela, a Europa ocuparia a maturidade do indivíduo autonomizado, em plena posse
de suas faculdades morais e cognitivas, enquanto os povos do Sul, por sua vez, “pitorescos”,
“indignos”, “naïfs”, estariam na “infância do mundo”, desprovidos da capacidade de falar em
nome próprio e, por isso, sob a dependência de seus superiores.
O colonialismo epistemológico e o racismo são, desse modo, os pilares da instituição
colonial. É na deslegitimação dos saberes e das práticas do Outro, no lugar da sua suposta
incapacidade de realização e de pensamento crítico, que vem se instalar – transplantada – uma
cultura cuja autoimagem de universalidade republicana lhe outorga o direito de intervenção
alhures. Por causa disso, o humanismo e o iluminismo, nessa perspectiva, foram mobilizados
como justificativas teóricas de negação de identidades distintas dos povos europeus e que, por
isso, seriam colocados em discrepância com as categorias privilegiadas das filosofias que
definiam o ser humano: autodeterminação da vontade, essencialismo a-histórico e razão
científica.
Ao refirmar a racionalidade de seu discurso e propor a si mesma uma narrativa para
além do domínio mítico ou religioso, a filosofia ocidental passa a operar como centro positivado
que exclui não só uma série de outros discursos distintos de suas matrizes hegemônicas, mas
também funciona como medição dos graus de racionalidade que definem humanos e não-
humanos. Segundo Mogobe Ramose,

A definição de Aristóteles de ̳homem ‘como um animal racional’ formou a base


filosófica para o racismo no Ocidente. Para poder ser considerado como um ser
humano era necessário ser racional. O colonizador encontrou no colonizado uma
118

impressionante semelhança em certos traços fisiológicos. Ao mesmo tempo, teria


diferenças físicas discerníveis. Estas foram usadas como motivo para excluir o
colonizado da categoria de humano. Afirmou-se que o colonizado não foi e nunca
tinha sido um ser humano porque carecia de racionalidade. Nem a razão nem a
racionalidade formavam parte de sua natureza, embora se exibisse como humano
na aparência. O selo do racismo, portanto, é a afirmação de que outros animais de
aparência humana não são verdadeiramente e plenamente humanos.270

Datas precisas, fatos documentados, citações exemplares: histórias e mais histórias da


filosofia nas quais o racional e racial se contraporiam de modo irreconciliável. Pois, se o
conceito de raça advém da esfera animal271, a designação racial torna concreta a “exterioridade
selvagem”272, intrínseca à “mentalidade primitiva”273, reduzindo o diferente ao estado de
menorização e à desumanização objetiva. Logo, extraditados da categoria humana, esses seres
“anormais” podem ser instrumentalizados e assujeitados moralmente, pois, ontologicamente,
não seriam idênticos ao que se chamava de “homem racional”. Lembre-se, nessa linha, das
observações categóricas de Kant:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve
acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo
em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos
que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos

270
RAMOSE, Mogobe. An African Perspective on Justice and Race. Polylog, Forum for Intercultural Philosophy.
Tübingen, vol. 1, n. 3, 2001. p. 4. Disponível em: https://them.polylog.org/3/frm-en.htm. Acesso em: 20 abr. 2018.
Tradução minha. Na versão original, em inglês: “Aristotles definition of "man" as a rational animal constituted the
philosophical basis for racism in the West. In order to qualify as a human being one had to be rational. When the
colonizer encountered the colonized there was a striking similarity in some physiological features. At the same
time there were discernible physical differences. These were then used as a reason to exclude the colonized from
the category of being human. The colonized were no and never had been human beings, it was claimed, because
they lacked rationality. Reason or rationality was not part of their nature even though in appearance they looked
like human beings. The hallmark of racism then is the claim that other human-like animals are not truly and fully
human”.
271
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
41 et seq.
272
Idem, p. 61.
273
Esse conceito, forjado pelo filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl em livro homônimo de 1922,
designava o estágio das pessoas nas chamadas “sociedades pouco diferenciadas”. De acordo com Lévy-Bruhl,
essas pessoas teriam uma mentalidade pré-lógica, baseada em representações míticas, e não submetida ao princípio
de não-contradição e de causalidade. Para um aprofundamento da construção argumentativa desta
psicologia/antropologia eurocêntricas, remeto ao livro do autor: LÉVY-BRUHL, L. (1922) La mentalité primitive.
Paris: PUF, 1947. Particularmente, ao capítulo II, intitulado As potências místicas e invisíveis, no qual, logo de
saída, expõe-se que “[...] a mente dos europeus – mesmo aquela dos mais imaginativos, a dos mais puros poetas
ou metafísicos – é prodigiosamente positiva, em comparação com a dos primitivos. Para nos curvarmos a uma
atitude tão contrária àquela que nos é natural, seria preciso violentar nossos hábitos mentais mais enraizados, fora
dos quais – achamos – não poderíamos mais pensar”. Outra leitura das obras de Lévy-Bruhl é apresentada em:
GOLDMAN, Marcio. Razão e diferença: Afetividade, racionalidade e relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora Grypho, 1994.
119

em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso


na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão.274

O Estado escravagista foi nutrido por esses fundamentos, em toda sua extensão e
amplitude. Expulsos da ratio humana, esses Outros seriam, como os animais, reduzidos ao puro
instinto e passíveis, portanto, de serem inscritos no “círculo da extração”.275 No limite, essas
formas de subvidas podem ser abatidas, pois a esses proto-sujeitos racializados não serão
atribuídos marcadores públicos de reconhecimento: se os selvagens parecem com os
colonizadores é menos por sua humanidade do que por uma estranha coincidência de traços
comuns que faz desses animais, dentre os outros, o animal que mais se avizinha do homem.
O colonizado tem, por conseguinte, a sua humanidade sustada. E se “[...] é o racista que
cria o inferiorizado”276, segundo Fanon, o recurso bioracista à hierarquia natural das espécies
terá por função fixar numa armadura histórica essa assimetria instituída, no tempo, como
distinção originária. Esse desequilíbrio referenda a funcionalidade tática de uma história todo-
poderosa, de mira supostamente “imparcial”, que apaga silenciosamente de suas páginas o traço
de sangue deixado pelo caminho. Assim,

O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É


a violência em estado bruto e só pode inclinar-se diante de uma violência maior.
[...] Para o colonizador, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do
colono.277

Figura viva da dessemelhança, do assombro e da privação, a “consciência ocidental do


negro” será o locus de sua segregação necessária, de sua origem excêntrica, de seu
aprisionamento pedagógico, e do contínuo auto de resistência à partilha de um mundo comum.

Terrorismos Epistêmicos

Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault apresenta a tese segundo a qual a


reflexão crítica sobre a loucura aparece, no alvorecer do século XVI, como a prática discursiva
que possibilita a afirmação das bases da razão moderna. Objetivados por meio de discursos e

274
KANT, Immanuel. Observações sobre o belo e o sublime. Ensaio sobre as demências mentais. Trad. Vinícius
de Figueiredo. São Paulo: Editora Papirus, 1993. p. 75.
275
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
67.
276
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 90.
277
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. p. 46 e 73.
120

práticas de epistemes estabelecidas no bojo da Modernidade/Colonialidade, a categoria dos


loucos seria formada como contraponto ao homem racional, de cujo saber a loucura passa a ser
a outra face278.
A ligação operada em meados do século XVII entre a loucura e o internamento, por sua
vez, fundamentada em uma racionalidade semijurídica muito mais do que médica, naturalizaria
a segregação desses Outros, diante de uma nova sensibilidade da miséria, dos problemas
econômicos e das formas autoritárias de coerção e de correção mobilizadas contra as massas
empobrecidas e moralmente desviantes.
Mas, não seria somente essa clivagem que marcaria, no começo da
modernidade/colonialidade, a “positividade” do discurso racional e humanista europeu. O
modo como se prefigura a temporalidade; a divisão geopolítica de um mundo cartografado a
grafite, régua e compasso a partir das grandes navegações e do tráfico atlântico; o papel
desempenhado pela ciência moderna e pela tecnologia como suportes de uma racionalidade
quantitativa, técnica e instrumental; e, finalmente, a reconfiguração do modelo político-
institucional que adquire os contornos do Estado-nação, constituído como centro de soberania
e de legitimidade política, com seu emaranhado jurídico e com o monopólio do uso da força e
dos aparatos coercitivos, todos esses fatores contribuem para redimensionar em torno de um
centro global a produção, a circulação e a difusão de uma matriz epistemológica de extração
europeia, marcadamente etnocêntrica.
Não se trataria somente de um traço exclusivista ou de mera autorrepresentação
atravessada pelas relações econômicas ou ideológicas. Antes, seria preciso situar esse
movimento em um intrincado conjunto de fatores mais amplos e complexos, se partimos da
hipótese de que a bipartição do mundo entre metrópole e colônia, centro e periferia, e a
imposição violenta de um sistema de pensamento eurocentrado não seriam consequências
inevitáveis da modernização promovida pelos avanços científicos e tecnológicos, mas condição
de possibilidade de consumação do projeto moderno/colonial.
Significa dizer que a subordinação e a dominação daqueles que não se enquadram nos
parâmetros definidos como único modo possível de aceder à verdade – uni-versal e não
pluriversal – é a contrapartida para afirmar, em âmbito planetário, a racionalidade inseparável

278
“É que, de um modo geral, a loucura não está ligada ao mundo e a suas formas subterrâneas, mas sim ao homem,
a suas fraquezas, seus sonhos e suas ilusões. [...] ela é um sutil relacionamento que o homem mantém consigo
mesmo. [...] De todos os modos, a loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão.” FOUCAULT,
Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2010.
p. 24 et seq.
121

da relação de ser, de poder e de saber que ela produz. “Saber”, aqui, tal como a máxima de
Francis Bacon, “é poder”; mas significa também silenciar tudo o que, sob o manto do
“obscurantismo”, do “primitivismo” e do “paganismo” apresente-se como contraponto ao modo
de operação, aos princípios e aos conceitos erigidos como referenciais incontornáveis do
pensamento branco-ocidental279.
O uso da força, por sua vez, justificado como instrumento necessário e legítimo para
assegurar a hegemonia do Estado, as relações de produção e de penalização dos corpos e das
mentes “outros” adquire os contornos do extermínio físico e cultural – entendido aqui em sua
acepção mais ampla – quando não do encarceramento massivo e das formas institucionalizadas
de violação. Esse genocídio cultural, que visa a liquidar sistematicamente qualquer traço das
práticas e dos saberes do Outro, apesar da assimilação tensa de elementos “exóticos” à cultura
“civilizatória” e dos trânsitos das realidades simbólicas, opera pela negação de perspectivas e
de matrizes epistemológicas que fujam à configuração do complexo político e social dominante.
O que lembraria Fanon ao se referir a

Essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a
parte onde o encontra [...]; essa Europa que nunca parou de falar do homem, de
proclamar que só se preocupava com o homem, sabemos hoje com que
sofrimentos a humanidade pagou cada uma das vitórias de seu espírito280.

A dinâmica das relações de poder, nesse sentido, funciona de modo a reforçar as normas
sociais – não sem conflitos, é bem verdade, mas a partir de uma negociação desigual do ponto
de partida e dos termos adotados. O suporte das instâncias jurídicas e político-institucionais é
fundamental para legitimar a empreitada “salvacionista” que, historicamente, revestiu o
discurso dos colonialismos, dos imperialismos e das relações de dependência entre o centro
(metrópole) e suas periferias (colônias). Ao se valer do direito socialmente e legalmente
reconhecido são auferidas vantagens, mesmo em um cenário de disputas, a determinados
grupamentos sociais. O aparato legal, é preciso ressaltar, não afeta de modo semelhante os
corpos e as identidades, e o direito, a despeito de seu revestimento positivo e supostamente
“neutro” e “objetivo”, pode ser operado, sem grande dificuldade, de modo a privilegiar aqueles

279
“De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou,
menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição
com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta”. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad.
José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 104.
280
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968. p. 271-272.
122

que dominam não somente o seu léxico (e as suas lacunas), mas também aqueles que se valem
de dispositivos inscritos no corpo da própria lei para justificar seus atos.
Não deixa de ser significativo que “[...] o direito foi, nesse caso, uma maneira de fundar
juridicamente uma determinada ideia da humanidade dividida entre uma raça de conquistadores
e outra de escravos”281. À “raça” dos conquistadores, legitimamente, poderia se atribuir
qualidades humanas; os colonizados, por seu turno, estariam legalmente barrados desse campo,
abandonados à indigência do espírito e das leis. Em relação a essa “ordem do discurso” jurídico
e o modo como sua ativação produz efeitos práticos, é interessante notar, conforme ressalta
Foucault, que:

As práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de


discursos. Elas tomam corpo em conjuntos técnicos, em instituições, em
esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e de difusão, em formas
pedagógicas que ao mesmo tempo as impõem e as mantém.282

A produção desses efeitos de verdade atua, simultaneamente, como meio de manutenção


de determinados jogos de poder e como reforço no estabelecimento das regras de
funcionamento do saber legítimo, que, em nome da “lei”, da “justiça”, da “democracia” ou da
“cidadania” – em suma, os significantes privilegiados da economia dos “valores civilizatórios”
e do esquema colonial –, opera como imperativo categórico que se mantém, pela sua suposta
evidência, inquestionável. A reivindicação dos Estados, desse modo, como fator inseparável de
sua soberania política, é o direito aos massacres genocidas, quer os Estados subalternos estejam
sob sua tutela, quer estejam, para além de sua esfera administrativa, antecipadamente
condenados por não partilharem dos princípios, práticas e valores europeus e ocidentais.
Nesse caso, é importante a tentativa de elaboração conceitual de uma história que
recobre, em duplo movimento, o modo de constituição da hegemonia do pensamento ocidental
– de um ponto de vista diacrônico, com seus fluxos simbólicos, apropriações, ressignificações,
traçado de fronteiras e exclusões –, bem como as relações (sociais, políticas, culturais,
epistemológicas) instituídas na demarcação das identidades e das diferenças nesta geopolítica
do conhecimento colonial/moderno:

É na Modernidade que vemos surgir um específico modo de exercício de poder,


que tem uma específica maneira de articular conhecimentos para a validação desse

281
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
115.
282
FOUCAULT, M. História dos Sistemas de Pensamento – 1970-1971. Lisboa: Editora Centelha Viva, 2007. p.
6.
123

modo de exercer o poder, fundado em uma geopolítica, o que indica que esses
modos de produção de conhecimento e de exercício de poder têm um local
privilegiado de irradiação e atuam de modos diferentes em diferentes lugares do
mundo.283

Ou seja, as identidades nacionais, de classe, de gênero ou étnico-raciais são


indissociáveis das exterioridades necessárias para que se defina uma comunidade dos
“mesmos” por oposição aos Outros. É nesse sentido que “[...] a cena racial é um espaço de
estigmatização sistemática”284. Se, como apresentado no capítulo anterior, a construção da
ameaça terrorista transnacional requer a constituição de um inimigo externo e interno, cuja
presença espectral deve mobilizar a exceção permanente no governo das populações, o
terrorismo epistêmico, por sua vez, não é senão, no que concerne aos saberes, práticas e
instituições culturais, o extermínio de perspectivas que instabilizem ou disputem com os
sistemas de pensamento hegemônicos.
É notório que a aniquilação desses Outros não terá somente uma finalidade epistemicida,
se levarmos em considerações as implicações econômico-políticas, indissociáveis dessas
“cruzadas” civilizatórias. Porém, antes mesmo da emergência do terrorismo político, talvez o
que aqui chamamos de terrorismo epistêmico seja inseparável da própria história do
pensamento ocidental e das “amarras da colonialidade”285. Nesse contexto, a filosofia e as
ciências humanas talvez sejam campos paradigmáticos da expressão deste contrato
epistemológico-racial.
Se a antropologia do século XX tornou o “pensamento selvagem” objeto privilegiado
para formação de seu campo discursivo de atuação, no que concerne à filosofia, não foram
poucas as tentativas de apagamento de qualquer traço legível do que, proscrito da própria
definição de “pensamento”, buscou-se reduzir a um conjunto de práticas discursivas
eminentemente ligadas aos mitos cosmogônicos, aos ritos religiosos e aos saberes sem alcance
extensivos. Não é de estranhar, por exemplo, que a discussão acerca da possibilidade de uma
filosofia latino-americana, asiática ou africana só tenha ganhado densidade crítica na década de
1950 e de 1960 do século XX, justamente quando a problematização da política neocolonial e
imperialista dos países do Norte passa a ecoar nas vozes de pensadores como Aimé Césaire,
Franz Fanon, Stuart Hall e Albert Memmi.

283
FLOR DO NASCIMENTO, Wanderson. A modernidade vista desde o Sul: perspectivas a partir das
investigações acerca da colonialidade. Padê: Est. em Filos., Raça, Gên.e Dir. Hum., Brasília, v. 1, n. 1/2, p. 1-19,
jan./dez 2009. p. 2.
284
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.70.
285
FLOR DO NASCIMENTO, Op. cit., p. 10.
124

Fraturas epistemológicas, representatividade, questão de raça e de gênero em pauta: uma


guerra declarada ao terror epistêmico, sem concessões, na ordem do dia. O que se passa desde
então é a emergência de uma série de movimentos contestatórios que não cessam de apontar os
lugares não-neutros e parciais desde os quais a colonialidade do ser, do poder e do saber não
deixou de encontrar novas formas e justificativas “modernizadoras”. Democratização política,
neoliberalismo e tecnocracia se convertem nos signos materiais do discurso de dominação e do
emprego da violência estatal em escala ampliada.
De outro lado, o questionamento do dualismo no qual a perspectiva histórica
eurocêntrica se situa, dissociando corpo e razão, natureza e sociedade, destaca a unilateralidade
dessa visão e reescreve a história do outro com recurso a outro recorte historiográfico, mais
plural e diverso. Essa tentativa de dessujeição dos saberes e dos corpos é levada a cabo na recusa
à internalização da subalternidade pelos colonizados e contra as desigualdades geradas por
práticas cujas categorias explicativas normativas foram naturalizadas:

Nesse sentido, colonialismo/racismo se constituíram num aparato global de


destruição de corpos, mentes e espíritos. De vinculação e subordinação da
sobrevivência cognitiva do dominado aos parâmetros da epistemologia
ocidental.286

O terrorismo epistêmico teve a função histórica de, ao negar a possibilidade de


pensamento de outros povos, asfixiar a sua potência criativa. Ao rejeitar a capacidade de
elaboração de um pensamento sobre o mundo (em suas variadas vertentes: artística, científica,
filosófica), com a consequente desumanização dos sujeitos, fixados em sua heteronomia,
tornou-se possível a tutela subordinadora do conhecimento e a violência física e simbólica
inextrincáveis ao não reconhecimento dos traços diferenciais de povos que não se enquadravam
na lógica dicotômica do pensamento europeu; no modo de organização político-institucional
moderno; ou mesmo nos sistemas sociais vinculados à economia dos bens e dos meios de
produção capitalistas.
Concepções hegemônicas em xeque, epistemologias decoloniais assentadas, lógicas
binárias em decomposição. Nas margens ressignificadas do conhecimento, outros centros,
repertórios e narrativas são produzidos. A ordem monocultural é subvertida pela encruzilhada
aberta e pluriversal do pensamento. Surgem outras dicções que parecem apontar para o esforço
de desdobramento em diversas direções e itinerários, e para a resistência ativa em face da

286
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de
doutoramento em Educação. São Paulo: FEUSP, 2005. p. 102.
125

historiografia positivista e do retorno do que se repete, de tempos em tempos, como tragédia e


como farsa.
126

4 OS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos têm apenas paradoxos a oferecer.

Costas Douzinas

Todo discurso expõe um lugar de enunciação definido a partir do qual se fala. Talvez
por isso todo lugar de fala seja também atravessado por essa estranha topofonia, que revela um
duplo movimento de enunciação e de escuta políticos. De um lado, a produção de um discurso
parcial, situado, às vezes vacilante, em sintonia com o repertório enunciado por uma
coletividade; de outro, a trincheira discursiva que se dispõe como último refúgio – e talvez o
primeiro – de defesa em meio às batalhas da linguagem, cujas brechas permitem entrever, nas
entrelinhas, a mobilização ativa – questão de sobrevivência – pelo reconhecimento e contra a
precarização e o assassinato sumário que toca muitos corpos igualmente precários.
Por isso, aqui não há qualquer neutralidade discursiva. Ou mesmo uma abordagem que
não parta do arsenal dessas vulnerabilidades rastreadas não apenas nas vítimas diretas de um
processo predatório da negociação política internacional, mas também cotidiano e prosaico, que
não cessa de mostrar a mobilidade de certas fronteiras discursivas, a intransponibilidade de
outras, enquanto marcha sem refluxo a agenda genocida dos Estados.
Nos fóruns internacionais, discutem-se os mecanismos de proteção da vida humana;
simultaneamente, autorizam-se bombardeios, chacinas, extermínios e encarceramentos em
massa como modo de prevenção de crimes possíveis. Desviantes, terroristas, delinquentes e
marginais são suspeitos facilmente identificáveis como inimigos. Inimigos da espécie humana,
criminalizados e designados racialmente, proscritos de toda humanidade. Se o discurso da
guerra é uma constante nessas questões políticas, há de se definir de qual lado das fronteiras se
quer estar. Porque os fronts de batalha não cessam de se multiplicar. Como as vozes, corais e
coletivas, a questionar o que é isso. O que é isso, o direito do homem? O direito do homem
engloba o da mulher? Das mulheres negras da Nigéria nas fronteiras italianas? Das parturientes
sudanesas na rota do Mediterrâneo? O direito humano, de que humanidade? E de qual
paradigma humanitário se parte?
Não é novidade. Os direitos humanos, demasiado humanos, são repletos de fissuras
indefinitórias, inclusive do que vem a ser esse humano suposto e seu reverso. Não à toa, essa
concepção abstrata e idealizada tem sido taticamente instrumentalizada para subjugação de uns
e de outros. Assumir um referencial teórico, nesse contexto, é escolher as vozes que podem
127

potencializar criticamente o nosso exercício, em meio a tantos exércitos, tiro, porrada e bomba,
que constrangem o mundo à reprodução dos monólogos que não ressoam as realidades
regionais, os múltiplos modos de vida a que se prometem resguardar, a polifonia das multidões
que denunciam, em todo o mundo, os perigos da universalização, os limites da representação e
da agenda política internacional de direitos humanos.
Adota-se aqui uma perspectiva crítica à concepção hegemônica dos direitos humanos e
indissociável do debate acerca das novas formas de colonialismo, de genocídio e de opressão
atuais. Mas será preciso, antes de tudo, apresentar duas considerações importantes, talvez as
únicas essenciais, deste capítulo.
Logo de saída, não se trata de pensar por meio da crítica tecida a essas concepções a
irrelevância da defesa dos direitos humanos. Muito pelo contrário. Garantir as lutas por direitos
e propor que sejam observadas com rigor as garantias fundamentais dos direitos previstas pelos
ordenamentos jurídicos significa tratar os direitos não como privilégios inerentes à
branquitude287 ou válidos somente para assegurar a proteção legal de algumas vidas. Como
abordaremos a seguir, a questão dos direitos humanos deve ser compreendida como fruto de
lutas históricas e não como concessões filosófico-jurídicas diante do reconhecimento de
qualquer natureza humana a-histórica.
Não se propõe, tampouco, qualquer espécie de reformismo do direito, estritamente no
âmbito dos textos escritos e das disposições abstratas, com vistas a dar conta de suas lacunas
discursivas e a ser prontamente difundido em escala planetária a qualquer custo. Uma vez mais,
a produção discursiva deveria ser sempre situada e os mecanismos de elaboração desses
arquivos com força de lei, discutidos para além da defesa da universalidade ou dos direitos
naturais que ganham os contornos das missões civilizatórias contemporâneas. Afinal,

O “direito” dos direitos humanos, é portanto, um meio – uma técnica, entre muitos
outros, na hora de garantir o resultado das lutas e interesses sociais e, como tal,
não pode se afastar das ideologias e das expectativas dos que controlam seu
funcionamento tanto no âmbito nacional como no âmbito internacional.288

287
No que concerne à crítica da identidade racial branca constituída como norma, Richard Dyer destaca que:
“Olhar com tamanha paixão e unicidade de propósito para os grupos não dominantes teve o efeito de reproduzir o
sentimento de estranheza, diferença e excepcionalidades desses grupos, o sentimento de que eles constituem
desvios da norma. Entrementes, a norma seguiu adiante, como se fosse a maneira natural, inevitável e comum de
sermos humanos”. DYER, Richard. White: Essays on Race and Culture. London and New York: Routledge, 1997.
p. 44.
288
HERRERA FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia,
Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 23-
24.
128

Na medida em que eles partem de um repertório monocultural, cuja proveniência dos


conceitos pode ser geograficamente localizada, a estruturação dos parâmetros e seus termos
precisam ser contextualizados, sob o risco de deslegitimar aquilo mesmo a que se propõem:
responder aos excessos dos governos e proteger a dignidade de toda pessoa humana diante das
arbitrariedades temerárias, inclusive daquelas que, hoje, estão submetidas às relações de terror
ocasionadas pela própria defesa dos direitos humanos e do direito humanitário. Também devem
assegurar a proteção daqueles que, historicamente, são acossados pelo terror de Estado e sua
seletividade protetiva ou genocida.
É uma questão metodológica, sim, mas empírica também, pois, se as categorias
fundantes das diferenciações que norteiam a aplicabilidade das disposições jurídicas
internacionais e suas implicações políticas são obliteradas, logo a incompreensão das estruturas
de poder só reforça a naturalização de práticas que engendram outras violações.
A defesa desse posicionamento pretende se situar nos antípodas da retórica positiva e
polida da modernidade, em um front mais crítico que considera os efeitos destrutivos
produzidos por tais enunciações e pela omissão deliberada de acordo com interesses
particularistas. Dissociadas da realidade, as palavras de ordem forjam a imagem mítica de uma
humanidade dividida e da necessária sustentação jurídica de documentos que encriptam usos e
abusos de toda espécie. Com o agravante de, nessa cisão, traçar os limites raciais da zona do
ser e do não ser que definem a escala de violência ou o recurso a meios legais e diplomáticos
como ferramentas políticas operatórias. Pois, essas zonas demarcam, como lembra Grosfogel,
“[...] uma posicionalidade nas relações raciais de poder que ocorrem em escala global entre
centro e periferia, porém que ocorre também em escala nacional e local contra diversos grupos
racialmente inferiorizados”289.
Abaixo da linha do Equador, o padrão jurídico-legal é ressignificado por meio do
subterfúgio e dos subterrâneos do imaginário epistêmico da universalidade, materializado na
plataforma de aniquilação que sustenta a subalternização dos povos do Sul geográfico e do
Oriente pela via da perpetuação da lógica da colonialidade. O braço armado dos Estados, nessas
missões humanitárias, pode se tornar instrumento de intensificação dessa lógica, altamente
calcada no paradigma colonizador e no modelo antropológico etnocêntrico, para além do
invólucro pacifista com o qual é revestido.

289
GROSFOGEL, Ramón. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la visión descolonial de
Frantz Fanon y la sociología descolonial de Boaventura de Sousa Santos. In: Formas-Otras: Saber, nombrar,
narrar, hacer. Barcelona: CIDOB Edicions, 2011. p. 99. Disponível em:
http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/Formas-Otras_Dec2011.pdf. Acesso em: 02 ago. 2018.
129

Sem se atentar a isso será difícil perceber todas as consequências extraídas da “ordem
do discurso” dos direitos humanos, e a estratégia punitiva que seu uso tem adquirido no âmbito
da política internacional. “‘Humanidade’ – remarcaria Foucault noutra ocasião – é o nome
respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos”.290 Se a economia penal passa a
revestir a defesa dos direitos segundo cálculos políticos, o risco é que a disputa política em
torno das garantias de vida, liberdade e segurança se metamorfoseie em mero empreendimento
formal e utilitarista, incapaz de proteger a integridade dos seres humanos, “[...] sejam eles
jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos ou
imigrantes indesejáveis no hemisfério norte”291.
A reflexão filosófica acerca dos direitos humanos deve interrogar os fundamentos desses
empreendimentos políticos e o rastro de dominação – colonial, burocrática, patriarcal,
autoritária – que trazem consigo. Pois, se as relações sociais foram forjadas no seio de
sociedades transpassadas pelas experiências de violência política e organizadas sobre esse
legado – frequentemente não reparado –, colocar em questão essas estruturas é se perguntar
também pelos pressupostos raciais inscritos nos termos e na lógica de um “sistema de
supremacia branca”292, que categoriza hierarquicamente os sujeitos de direitos humanos.
Tem-se, então, o motivo de essas demandas e o efetivo exercício da dignidade humana,
seja qual for o modo de ser dos indivíduos e dos povos, não poder serem pautadas pelo ideal
globalizante dos mercados liberais, como se a produção destes direitos fosse correlata à criação
de zonas livres de consumo. Os sujeitos que reivindicam os seus direitos são indissociáveis
destes processos, pois as contribuições de seus saberes, situados e vividos, partem de suas
realidades sócio-históricas, irredutíveis aos saberes/práticas jurídicos universais, e que apontam
para a pluralidade de modos de vida, de concepções culturais, sociais, morais e jurídicas.
Trata-se de adotar, assim, a perspectiva da interculturalidade, cuja abordagem ensaia
uma alternativa para que essas realidades sejam reconhecidas não como periféricas,
marginalizadas ou estigmatizadas, mas como o nódulo de organização dos direitos humanos. E
isso sem que se recaia no festim multiculturalista, que celebra a heterogeneidade cultural, mas
escamoteia as relações de dominação, exploração e de poder que enformam a sua compreensão
social. Antes, essa concepção teria como referência o paradigma liberal, ancorado na

290
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 2009. p. 88.
291
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 20-21.
292
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 105
et seq.
130

administração – fetichizante e reificadora – da diferença tolerada, visando à expansão do


mundo de significados forjados no cerne da modernidade/colonialidade europeia293.
A colonialidade do ser, do saber e do poder não se separam, portanto, da armadura
jurídica construída em torno dos direitos humanos, de extração liberal. Mas, a crítica decolonial
e intercultural irá questionar os dispositivos de poder e de racialidade que conservam os
paradigmas dominantes e a gramática jurídico-moral da modernidade/colonialidade. Pois, será
pela via desse vocabulário que as dicotomias estarão inscritas no léxico do conhecimento
validado e legitimado epistemologicamente294. Ora, é esse arcabouço teórico que sustenta a
divisão entre os defensores ocidentais dos direitos universais, prêt-à-exporter para o resto do
mundo, e seus detratores como os demais.
Todavia, se o resto do mundo é o mundo do resto, resta ainda um desvio, uma
insubordinação gestada no interior de outros sistemas-mundo possíveis e que questionam as
fronteiras alocadas entre humanos e inumanos. É no grito das mães das favelas do Complexo
de Manguinhos que clamam por justiça pelo assassinato brutal de seus filhos; nas parturientes
que denunciam a violência obstétrica nos hospitais públicos; ou mesmo nos muçulmanos
encarcerados sem direito à defesa na base de Guantánamo, que ficam mais evidentes os abismos
existentes entre os discursos formais e as condições materiais efetivas de sua aplicabilidade,
quando se tratam de segmentos sistematicamente desumanizados no quadro hierárquico
instituído pela modernidade/colonialidade.

Direito dos governados

Em entrevista295 concedida a Jean François e John de Wit, em 22 de maio de 1981,


questionado sobre a possível contradição entre o movimento de defesa dos direitos humanos e
as críticas contra a concepção do sujeito humanista, Foucault salienta:

293
Ressaltemos, porém, que essa não é a perspectiva adotada por Boaventura de Souza Santos, que toma de
empréstimo do interculturalismo para sustentar o que chama de “multiculturalismo policêntrico”. Para ele, esse
poderia enfatizar o projeto contra-hegemônico e emancipatório com vistas a fazer frente a concepções
eurocêntricas e ao processo de decolonização das relações de poder desiguais entre culturas. Cf. SOUSA SANTOS,
Boaventura de. Reconhecer para libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
294
Como recorda Gilroy (2012, p. 353): “[...] os racismos operam de forma insidiosa e consistente para negar
historicidade e integridade cultural aos frutos artísticos e culturais da vida negra.”.
295
FOUCAULT, Michel. Mal faire, dire vrai : Fonction de l’aveu en justice (Cours de Louvain, 1981). Édition
établie par Fabienne Brion et Bernard E. Harcourt. Belgique: Presses Universitaires de Louvain/Chicago:
University of Chicago Press, 2012. Tradução minha.
131

Eu tento considerar os direitos humanos [droits de l’homme] em sua realidade


histórica, sem admitir que há uma natureza humana. Os direitos humanos foram
adquiridos ao termo de uma luta, uma luta política que colocou um certo número
de limites aos governantes, e que tentou definir os princípios gerais que nenhum
governo deveria ultrapassar. Ora, é muito importante ter contra os governos,
quaisquer que eles sejam, os limites cuidadosamente definidos, as fronteiras bem
marcadas que, quando são ultrapassadas, suscitam a indignação, a revolta, e
permitem a luta. Como fato histórico e como instrumento político, portanto, os
direitos humanos me parecem algo importante. Todavia, eu não os associaria nem
a uma natureza humana nem a uma essência do ser humano em geral. Nem mesmo
a nenhuma forma de governo, pois, por definição, nenhuma forma de governo tem
vocação para respeitar os direitos humanos. Eles têm, ao contrário, vocação a não
respeitá-los. Eu diria, no limite, que os direitos humanos são os direitos dos
governados.296

O depoimento do filósofo talvez sirva de referência para o entendimento não apenas


das tensões constitutivas que irrompem na discussão acerca dos direitos humanos, mas para a
compreensão da dificuldade de se articular ainda hoje uma defesa dos direitos dos governados
que não seja pautada por humanismos epistêmicos, de extração essencialista, ou pelas
concepções hegemônicas ancoradas em perspectivas anglo e eurocentradas.
A magnitude das catástrofes humanitárias das últimas décadas tem impactado
profundamente o cenário político internacional e tem trazido à tona, nos debates políticos, a
questão dos direitos humanos atrelada ao problema das migrações, dos refugiados de guerra e
dos apátridas. A orientação dupla que percorre a “crise dos refugiados” parece marcar ainda
mais intensamente esse campo conflitivo, cujas dissensões nas páginas jurídico-políticas expõe,
simultaneamente, a fragilidade da garantia dos direitos fundamentais diante da soberania
nacional.
Nesse campo aberto por discussões em cujo centro estão os elementos nacionais e os
direitos humanos inalienáveis, para além de toda filiação pátria, há, sim, patentes contradições.
Isto porque, de um lado, há princípios éticos e normas jurídicas a serem cumpridos voltados
aos cidadãos nacionais, ou seja, membros de um determinado Estado-nação cujos direitos
devem ser resguardados. De outro, princípios que definem a vida humana como instância a ser
protegida pelo direito internacional dos direitos humanos, que são inscritos em uma
normatividade superior e são pautados na construção de um modelo universal de humanidade.
Nessa linha, a professora e pesquisadora Thula Pires ressalta, em sua abordagem
afrocentrada dos direitos humanos, que:

296
FOUCAULT, Michel. Mal faire, dire vrai : Fonction de l’aveu en justice (Cours de Louvain, 1981). Édition
établie par Fabienne Brion et Bernard E. Harcourt. Belgique: Presses Universitaires de Louvain/Chicago:
University of Chicago Press, 2012. p. 258-9. Tradução minha.
132

A universalidade, pressuposta como única possibilidade de natureza humana


desencadeou a busca por proteção suficiente e adequada para um determinado tipo
de experiência humana plena. Esse ideário propiciou a construção de um padrão
de humanidade que não foi capaz de acessar as múltiplas possibilidades de ser,
nem dentro nem além das fronteiras europeias [...]. O padrão de normalização da
condição humana eleito pela modernidade relaciona-se ao modelo de sujeito
soberano de origem europeia, masculino, branco, cristão, heteronormativo,
detentor dos meios de produção e sem deficiências.297

Foucault se opõe, de maneira similar, à concepção do ser humano como dotado de uma
natureza imutável ou constituída a priori, ou seja, como portador de qualquer essência inata
dissociada das lutas históricas emancipatórias. Essa posição interpela diretamente o
sustentáculo das declarações liberais que serviram – e servem – de referência para a própria
definição de humanidade, de cidadania e de direitos humanos, tal como formulados pela
filosofia iluminista do século XVIII, e que referendam inúmeros pactos até hoje. Porque se não
há uma essência prévia às reivindicações históricas, como instituir um referencial que parta não
do essencialismo normativo, mas do factual? Em outras palavras, na medida em que as lutas
são localizadas e pontuais, seria possível pensar os direitos humanos por um enquadramento
não estático, mas como uma forma de resistência aos excessos de poder e da
modernidade/colonialidade impostas às culturas periféricas?
A paisagem que tem se constituído nos últimos anos, por seu turno, parece apontar para
a transformação dos direitos humanitários em meio para legitimar o intervencionismo em nome
do capitalismo liberal-democrático, da inserção coercitiva de nações recalcitrantes à economia
de mercado neoliberal e da manutenção da estrutura desigual de matriz colonial. A política
humanitária é, assim, frequentemente mobilizada para fins distanciados daqueles estabelecidos
pelos regulamentos jurídicos das diversas modalidades de violência estatal – quando não se
converte em âmbito estrito de caridade, assistencialismo e filantropia.
Nesse contexto, o diagnóstico de Arendt em seu Origens do Totalitarismo seria incisivo:
“[...] ao se tornarem objeto de uma organização de caridade ineficaz, os Direitos do Homem
caíram em descrédito ainda maior”298. A observação da filósofa reforça a necessidade de pensar
os direitos humanos em outra chave, para além da compaixão ou da tarefa de tutela dos povos

297
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês. In: 13º. MUNDO DE
MULHERES & FAZENDO GÊNERO 11, 2017, Florianópolis. Anais eletrônicos do Seminário Internacional
Fazendo Gênero 11 & 13th. Women’s Worlds Congress. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 1-12. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499473935_ARQUIVO_Texto_completo_MM_FG
_ThulaPires.pdf. Acesso em: 23 jul. 2018.
298
ARENDT, Hannah. “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. In:____. Origens do
Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 706 (nota 27).
133

primitivos a que se atribuem as nações ocidentais. Nem prática filantrópica nem ações
assistenciais, os direitos humanos são constituídos como frutos de disputas históricas, de lutas
políticas e sociais contra a violação de direitos.
A seletividade das ações políticas humanitárias, no que tange aos direitos humanos,
merece especial atenção aqui, já que uma análise mais detida dessas lutas específicas deixam
entrever que os engajamentos são diferenciados quer se trate da “liberação de pessoas em
situação análoga à escravidão”; quer se trate dos impasses que envolvem direito ambiental
global e a prevenção da degradação; ou mesmo, as práticas diplomático-militares com a
finalidade de reestruturação democrática de países arruinados por guerras e conflitos.
Em um contexto ampliado, caberia, ainda, questionar a tensão entre os direitos humanos
universais e os direitos políticos específicos dos cidadãos nacionais. Como lembra Hannah
Arendt,

A concepção dos direitos humanos baseada na suposta existência de um ser


humano como tal rompeu-se no exato momento em que aqueles que declaravam
acreditar nesta concepção foram, pela primeira vez, confrontados com pessoas
que tinham perdido, de fato, todas as demais qualidades e relações específicas,
exceto a de seguir sendo humanas.299

Essa perspectiva pode ser complementada pelas considerações de Agamben, em seu


Homo Sacer300, no que concerne à redução do ser humano à “vida nua” quando destituído de
uma identidade. De modo específico, a antinomia entre direitos humanos e direitos dos cidadãos
reforça a visão estadocêntrica que norteia a proteção jurídica, que restringe as garantias políticas
aos autóctones detentores de uma cidadania nacional. Esse problema, discutido por Arendt no
capítulo “O declínio do Estado-nação e o fim dos Direitos do Homem”, de Origens do
Totalitarismo, evidencia os paradoxos da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948. Se a Declaração, de um lado, sistematizava uma série de normativas reguladoras a
serem alcançadas por todas as nações do globo, de outro, do ponto de vista da universalidade
dos direitos humanos, não levava em consideração aqueles que, tendo perdido uma filiação
nacional, estavam à margem do direito e da própria ideia de “humanidade” como parte
integrante da tríade terra-território-Estado.

299
ARENDT, 1958 apud ZIZEK, Slavoj. Contra os Direitos Humanos. Mediações: revista de ciências sociais,
Londrina, vol. 15, n.º 01, p. 11-29, 2010. p. 24. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/6541/5947. Acesso em: 15 jun. 2017.
300
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002.
134

Desde a Declaração da Independência dos Estados Unidos, de 1776, e da Declaração


dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, os direitos humanos passaram a ser tematizados
pela jurisprudência de origem europeia, ao alçar o ser humano como detentor de direitos
fundamentais inalienáveis, irrevogáveis e invioláveis. Com base na argumentação de filósofos
modernos – sobretudo Locke, Kant e Rousseau –, a instituição desses princípios enfatiza os
direitos essenciais dos indivíduos que seriam advindos de sua natureza humana. No contexto
histórico do final do século XVII, é o próprio Estado que, em decorrência da justificação
jurídica de sua emergência, adquire a função de garantia desses direitos naturais, dada a
igualdade formal e o consentimento pactuado nos termos do contrato social.
Se na cena política europeia do século XVIII a soberania popular é o que poderia
garantir a legitimidade de um governo, a ideia de nação concebida como corpo político uno e
de identidade compartilhada passa a vigorar e a redefinir os contornos da política interna por
oposição às nações estrangeiras. É nesse contexto que algo paradoxal emerge pois, de um lado,
os direitos humanos são considerados “naturais” da pessoa humana; de outro, fora dos limites
da sociedade política europeia, justifica-se teoricamente as estruturas de dominação e o
exercício de poder violento e excludente. Trata-se, então, de pensar na instituição desse marco
histórico da epistemologia política ocidental como um problema que, ainda hoje, coloca-se
nesse campo a partir de uma visada decolonial.
Talvez valha, ainda, uma questão suplementar, porque direitos humanos, após as
experiências bélicas do século XX, tornam-se indissociáveis dos direitos dos cidadãos nacionais
e, desse modo, territorializam-se nos contornos do pertencimento a um Estado-nação. Na esfera
internacional, os valores defendidos nos documentos oriundos das principais convenções e
assembleias, reproduzem o imaginário epistemológico dominante e não o redimensionamento
efetivo com vistas à reconceitualização do que se compreende por “humano” e à promoção da
agência dos povos subalternizados.
Os cataclismas da história recente, porém, trazem à tona os limites dessa concepção. E
se desde as considerações de Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo isso é
problematizado, pelo apontamento das linhas restritivas dos direitos humanos, o fato é que,
ainda hoje, a discussão dos direitos humanos tem se centrado na figura do Estado, da autoctonia
e da ingerência internacional em assuntos regionais. O exemplo da Segunda Grande Guerra e
da questão dos apátridas, desse modo, não parecem ter bastado para suscitar debates pautados
por outros núcleos conceituais, que tomassem por ponto de partida o reconhecimento de um
direito que prescindisse do pertencimento territorial, do essencialismo universal e da
desumanização dos segmentos encarados como desviantes.
135

Os tratados pactuados entre os países-membros de organizações internacionais,


tampouco garantem a efetivação da agenda de políticas públicas comprometidas com a
promoção dos direitos individuais, civis e políticos. Cabe ressaltar, além disso, que os direitos
humanos são uma tentativa ideal de comprometer as nações em torno de uma causa comum,
isto é, inviabilizar a emergência de desastres humanitários. Pode-se questionar, sem dúvidas, o
real alcance desse ideal, carente, por vezes, de mecanismos que o tornem efetivo. Pois, como
aponta Thula Pires,

Diante da cruel realidade que desumaniza todos aqueles que fogem à condição de
sujeito de direitos humanos e da constatação de que as grandes declarações de
direito cumpriram o papel de manutenção e legitimação dessa mesma ordem,
objetiva-se refundar os pilares de sustentação dos direitos humanos a partir de
uma noção de humanidade que nos diga respeito, que seja capaz de nos acessar e
que não reproduza a colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza.301

Se deslocamos a perspectiva do campo do direito para aquela das relações


internacionais, poderíamos remarcar o tensionamento entre o ideal de universalidade dos
direitos humanos e a consolidação de seus parâmetros nas legislações nacionais. Fausto Brito
sublinha que “[...] o indivíduo, em tese, detém a titularidade dos seus direitos, mas a sua
realização no plano internacional se subordina à soberania de cada país, que é o principal titular
no direito público internacional”302. É necessário se perguntar, pois, se essa lógica oposta entre
a universalidade e o relativismo não estaria destinada a instituir valores estabelecidos por um
projeto político específico como cosmovisão a moldar todas as outras concepções. O que
neutralizaria o que há de mais potente na instituição desses ordenamentos, a saber, o que Arendt
chamou de “direito a ter direitos independentes das fronteiras nacionais”. Isso, para além do
cosmopolitismo político, demandaria repensar não somente o campo do direito e sua
aplicabilidade, mas o que se compreende por “humano” e “humanidade”, quando o humanismo
dos “direitos naturais” também já passou por intensa problematização, sobretudo após a década
de 1960. Agamben atentará para o fato de que:

Mas é chegado o momento de cessar de ver as declarações de direitos como


proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que tendem (na verdade

301
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês. In: 13º. MUNDO DE
MULHERES & FAZENDO GÊNERO 11, 2017, Florianópolis. Anais eletrônicos do Seminário Internacional
Fazendo Gênero 11 & 13th. Women’s Worlds Congress. Florianópolis: UFSC, 2017. p. 1-12. Disponível em:
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499473935_ARQUIVO_Texto_completo_MM_FG
_ThulaPires.pdf. Acesso em: 23 jul. 2018. p. 6.
302
BRITO, Fausto. “Os Direitos Humanos e a Soberania Nacional”. In: BIGNOTTO, Newton, STARLING,
Heloísa et alli. Dimensões Políticas da Justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 227.
136

sem muito sucesso) a vincular o legislador ao respeito pelos princípios éticos


eternos, para então considerá-las de acordo com aquela que é a sua função
histórica real na formação do moderno Estado-nação. As declarações dos direitos
representam aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-
política do Estado-nação.303

A crise do Estado-nação ao longo do século XX faria emergir uma questão inédita em


relação à cidadania nacional e ao ordenamento dos direitos do cidadão. Em contradição com a
letra das declarações, a compreensão da garantia dos direitos circunscrita aos contornos do
Estado torna-se um problema quando em questão está a vulnerabilidade de pessoas desprovidas
de pertencimento, identidade nacional ou cidadania política, como bem apontaria Arendt. Esse
conjunto de minorias não se acomoda à lógica da soberania estatal, por estarem inseridas
justamente em comunidades sem Estados, e, por extensão, sem lugar no mundo. Vidas
descartáveis, aqueles que deveriam “encarnar por excelência os direitos do homem”, cita
Agamben revisitando Arendt, “assinala, ao contrário, a crise radical desse conceito”304.
Hoje, com o recrudescimento dos terrorismos transterritoriais e com as chamadas
“ameaças emergentes” no cenário internacional, novos desafios se colocam aos direitos
humanos, ainda pautados por uma concepção estadocêntrica, apesar do contingente expressivo
de apátridas e refugiados, a quem são negados qualquer direito.
Em contrapartida, a expansão da tutela dos direitos humanos e a responsabilidade de
proteção das populações vulneráveis, outorgam o direito de intervenção humanitária
internacional em nome da difusão dos valores democráticos/republicanos. Ora, a lógica da
guerra não contraria o fundamento dos direitos humanos, quando expõe populações civis ao
risco de morte? Não por acaso, essa “responsabilidade” de proteção e ampliação da democracia,
faz com que “essa nova normatividade emergente dos direitos humanos” – afirma Zizek – seja
“entretanto, a forma que aparece o seu exato oposto”.305 Nas palavras de Hobsbawn:

A democracia, os valores ocidentais e os direitos humanos não são como produtos


tecnológicos de importação, cujos benefícios são óbvios desde o início e que são
adotados de uma mesma maneira por todos os que têm condições de usá-los, como
uma pacífica bicicleta ou um mortífero AK-47, ou serviços técnicos, como os
aeroportos. Se fossem – continua o autor – haveria maior similaridade política

303
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
124.
304
AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In:______. Meios sem fim: Notas sobre a política.
Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015b. p. 27.
305
ZIZEK, Slavoj. Did somebody say totalitarianism? Five interventions in the (mis)uses of a notion. Nova
York/Londres: Verso, 2001. p. 244-245.
137

entre os numerosos Estados da Europa, da Ásia e da África, todos vivendo


(teoricamente) sob a égide de constituições democráticas similares.306

Tal como na concepção de Foucault, pensar os direitos humanos não como algo
essencial, natural ou pré-político, mas como efeitos de lutas políticas e sociais, indissociáveis
dos processos históricos, talvez seja a condição de repolitizá-los como instrumento de
resistência dos governados. É preciso atentar, conforme ressalta Derrida, que “[...] os direitos
humanos jamais são suficientes. O que já é o bastante para nos lembrar que eles não são naturais.
Possuem uma história – uma história recente, complexa e inacabada”.307 Essa história-em-
construção demanda que se analise os processos de pacificação e os jogos políticos nos quais
se inscrevem estas lutas e suas fronteiras.

4.1 A INTERVENÇÃO ARMADA POR RAZÕES HUMANITÁRIAS

Eles praticam um massacre e o chamam de paz.

Tácito

A paz será uma forma de guerra e o Estado uma maneira de conduzi-la.

Foucault

A emergência do direito internacional dos direitos humanos, no século XX, gerou uma
série de discussões no campo filosófico sobre os limites e as articulações entre o humanismo
teórico, a universalidade dos direitos e a sua aplicabilidade. Os impasses desse debate,
entretanto, não são novos. É o que atestam as calorosas disputas já na primeira metade do século
XX, que opunham pensadores de extração humanista crítico-dialética, como os marxistas, de
um lado, e os humanistas essencialistas de outro.
Se as discussões se travavam, especialmente, sustentadas por paradigmas filosóficos
que reverberavam na divergência de interpretação de obras seminais para a tradição político-
filosófica, é notório que, na prática, o repertório que lhe servia de referência seria marcado pela
epistemologia produzida no contexto europeu e segundo sua compreensão geopolítica.

306
HOBSBAWM, Eric. Prefácio. In:_____. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 18-19.
307
BORRADORI, Giovanna; DERRIDA, Jacques; HABERMAS, Jüngen. Filosofia em Tempo de Terror: diálogos
com Jüngen Habermas e Jacques Derrida. Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 142.
138

Relações de espaço, de identidade e de poder seriam caracterizados pela dupla estrutura de


moldura colonial de dentro e do contra, cujo reflexo seria expressado na defesa e na expressão
de uma identidade humana abstrata, totalizante e genérica.
Evidentemente, os limites da “abstração” identitária – e do igualitarismo formal –
podem ser rastreados sem muita dificuldade. Essa identidade genérica, tomada como critério de
referência universal, tem seus marcadores bem delineados no conjunto de características e
valores do grupo que, historicamente, constituiu-se como cultural e humanamente superior aos
demais. Esses marcos, como se pode imaginar, são aqueles do indivíduo masculino, branco do
hemisfério Norte, heterossexual e proprietário, cujos representantes estavam diretamente
envolvidos na formulação das políticas públicas internacionais e nas esferas deliberativas dos
conselhos mundiais.
Não se pode deixar de mencionar, por outro lado, os distintos modos de reflexão em
contraposição ao humanismo que marcariam a singularidade das linhas interpretativas e dos
aportes teóricos após a Segunda Guerra e no curso da Guerra Fria. É bastante conhecida, nesse
sentido, a contribuição do estruturalismo para esse debate. Pois se, de um lado, durante a década
de 1950 e 1960 os principais pensadores estruturalistas elaboram uma abordagem que
problematiza a categoria do sujeito pela via do anti-humanismo epistemológico, é nesse
momento pós-Guerra, de outro, que a comunidade internacional discute as implicações dos
direitos universais do homem, chancelados pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 1948.
Debate prolongado no confronto das perspectivas divergentes que, longe de alcançar
qualquer consenso, expunham as crescentes tensões no entendimento da relação entre
humanidade e direito. Enquanto os liberais e socialistas argumentavam que o humanismo
jurídico seria fundamental para a proteção da liberdade e do desenvolvimento de uma
concepção efetiva de dignidade humana, para os multiculturalistas, ele daria suporte na defesa
dos distintos modos de vida e da ênfase que se conferia à liberdade de cada comunidade na
perpetuação das tradições locais e de seus valores.
Mais próximos do que se imaginam, liberais de direita, de esquerda e multiculturalistas
têm em comum o fato de partirem de um axioma: o que significa ser humano é pré-determinado
e autorreferenciado, sem que a categoria universal historicamente produzida e situada fosse
efetivamente questionada; enraizada no fato de existir, encarada como dado fora de qualquer
temporalidade histórica. Os direitos humanos seriam inerentes aos sujeitos, ainda que realidades
materiais distintas dessem ensejo a diferentes comunidades, grupos ou classes sociais.
Mas, o tensionamento da categoria do sujeito e a emergência de modelos políticos e
filosóficos contra-hegemônicos, fundados na diferença, colocariam em questão tanto o
139

argumento da indiferenciação da natureza humana inata quanto a ortodoxia de um


universalismo abstrato. O caráter processual e inacabado de identidades forjadas a partir de uma
série de práticas de normalização das condutas, de economias discursivas e técnicas
institucionais é sublinhado ao mesmo tempo em que se traçam linhas de fuga e o horizonte
emancipatório nas lutas disseminadas de Norte a Sul.
Enquanto esforço de reorganização do campo conceitual, romper com a concepção de
natureza humana significava reforçar o lugar dos processos históricos e sua contingência,
despojando-os de qualquer necessidade transcendental ou determinação a priori. Mas, como
sustentar o ocaso dessa ideia no momento em que se pretende justamente fixar uma ideia de
homem e de humanidade na perspectiva jurídica, capaz de funcionar como referencial comum
na defesa da dignidade humana e dos direitos fundamentais?
É aí que uma questão complementar se impõe quando se trata do ideal de defesa dos
direitos “autoevidentes” dos indivíduos e da ideia de “humanidade” historicamente construída
pelo discurso hegemônico. Questão que será crucial para justiçar o uso da força no processo de
subordinação dos particulares à norma universal: quem são os humanos dos direitos? E em que
medida será legítimo intervir em um Estado, para além de seu consentimento, quando se tratar
de proteger esses indivíduos contra a infração e a arbitrariedade dos agentes estatais ou
paraestatais?
Humanos demasiado humanos a serem protegidos, de um lado; indivíduos destituídos
de direitos por sua condição exterior à humanidade e à cidadania, de outro. Má-fé ou
maleabilidade interpretativa? Talvez um “e” coubesse melhor a essa pergunta. Porque se a
flutuação terminológica muitas vezes beira a contradição, segundo os objetivos a que se deseja
alcançar, as diferentes visões em torno dos direitos humanos é o que possibilitam, além da
pluralidade, o reconhecimento de demandas em seus contextos específicos e não
homogeneizáveis, bem como o reconhecimento de medidas de reparação necessárias nos
termos de direitos diferenciados quando se tratam de grupos historicamente inferiorizados, cujo
acesso às instituições e aos direitos se deram (e se dão) de modo desigual.
Assim, adotar uma perspectiva decolonial na análise dos direitos humanos, tal como
assumida neste capítulo, tem três implicações imediatas. A primeira parte do lugar de
enunciação que não desconsidera a herança de violência colonial dos países do Sul e os (ab)usos
do discurso para justificação das violações cometidas. Em segundo lugar, não dissocia o caráter
da colonialidade do ser, do saber e do poder nas questões políticas e de direito, cujos conceitos
são instrumentalizados de acordo com relações de poder bastante específicas e depreendidos de
uma historiografia eurocêntrica. Por fim, questiona a metafísica do sujeito e a ontologia de base
140

supra-histórica, que define a humanidade segundo uma disposição essencialista, evidente e


irrefutável no que diz respeito à globalidade dos princípios universais que definem o que (e
quem) são seres humanos.
A primazia do ser humano empírico face àquele abstrato das declarações redefinem as
linhas de análise e se convertem nas referências diretas para se repensar os contratos sociais em
funcionamento e seus efeitos diretos. Sobretudo, quando se tratam de violações sustentadas pelo
“imperialismo liberal” sob a alegação da incapacidade dos governos (ou da ausência deles em
determinados territórios) de garantir a ordem. Por isso, haveria a óbvia necessidade das
operações de construção da paz e das instituições estatais sob a tutela das grandes potências.
Daí a leitura em zigue-zague dos tratados, pactos e acordos internacionais, que não perde
o horizonte de que os direitos humanos são “produtos culturais” do Ocidente, como propõe
Herrera Flores308, inseparáveis da expansão imperialista, do neocolonialismo e das relações
históricas de opressão epistemológica e geopolítica. Porque, se a tentativa de resguardar os
indivíduos do autoritarismo estatal e dos fascismos históricos está na base da historiografia
europeia da gênese dos direitos humanos, é preciso atentar para as contradições existentes em
um modelo para o qual a violência genocida instaurada no mundo periférico e a matriz colonial
do poder permanecem insuficientemente tematizadas e largamente praticadas por quem está
autorizado a pacificar, com armas, o mundo todo. Doa a quem doer.

Missão Impossível

Mas os discursos não se reduzem à tradução das relações de poder ou dos sistemas de
dominação. Eles mesmo, enquanto discursividades em disputa, são expressões daquilo “[...]
pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar”309. A apropriação social dos discursos,
sua circulação e os procedimentos de sujeição que fazem funcionar envolvem regimes no
interior dos quais se criam campos de tensão e de concentração de poderes e saberes, segundo
escalas variadas, conforme a efetividade/legitimidade que esses regimes discursivos encontram
nas esferas institucionais até sua validação como verdadeiros.

308
HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria Crítica dos Direitos Humanos. Os direitos humanos como produtos
culturais. Trad. Luciana Caplan, Carlos Roberto Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson
Aparecido Dias. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009b.
309
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 10.
141

Dessa feita, a responsabilidade de proteção definida na defesa dos direitos humanos


pelas nações signatárias da Declaração de 1948310 foi erigida, no campo belicoso dos debates
humanitários, como pilar central na difusão dos valores democráticos. O novo humanitarismo,
assim, autorizado e materializado como imperativo nas ações de ajuda humanitária teve por
consequência a criação de um espaço ambíguo entre o dever ético de proteção dos direitos das
vítimas de arbitrariedades e os interesses que envolvem as agendas políticas de segurança
internacional.
É curioso notar, por exemplo, que a justificativa de intervenção armada por razões
humanitárias tenha sido apresentada à ocasião da invasão da Etiópia por Mussolini, em 1935,
ou para a tomada da região dos Sudetos por Hitler, em 1938. Ambos reivindicavam para suas
empreitadas fundamentação de ordem humanitária. Se algumas décadas mais tarde, durante a
Guerra do Kosovo, em 1999, na intervenção militar na Iugoslávia pela Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN), que reunia forças de países europeus e dos EUA, a mesma razão
seria aventada, malgrado a condenação internacional, nenhuma oposição efetiva foi capaz de
barrar a operação bélica. Mas, como recorda Chomsky, não há grande novidade nisso, haja vista
que: “[...] o bombardeamento da Sérvia foi denominado ‘intervenção humanitária’, de maneira
alguma uma utilização inédita. De fato, era a descrição padrão dos empreendimentos
imperialistas europeus do século XIX”.311
Empreendimentos imperialistas europeus do século XIX e norte-americanos no século
XX. Contra a República Federal Iugoslava, em auxílio da minoria kosovaro-albanesa, a guerra
de agressão travada pela OTAN infligiria, a despeito da alegação humanitária, os princípios
fundamentais da Carta das Nações Unidas. O saldo seria o genocídio de uma parcela
significativa da população nativa e a instauração da base militar de Camp Bondsteel, por parte
dos EUA e dos países aliados.
Apesar de seu inconteste potencial destrutivo e intimidatório, essas intervenções não
foram consideradas, do ponto de vista das relações internacionais hegemônicas, como formas
de terrorismo. Isto porque a “diplomacia coercitiva” que elas mobilizam, ao defender o
propósito de reconstrução de instituições estatais, da gestão de conflitos domésticos e de
implementação da paz funciona como armadura jurídico-política de operações verticalizadas
de processos normalmente violentos, mas necessários para o que, no sistema internacional,

310
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (Paris, 1948). Disponível em:
http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf . Acesso em: 10 ago. 2018.
311
CHOMSKY, Noam. 11 de Setembro. Trad. Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 15.
142

opõem os guardiões da ordem mundial (rogue states) e os estados falidos infratores312 (failed
states).
Missões impossíveis, plantas, planos de ataque, exterminadores a postos. O uso
unilateral da força bélica, justificado a partir da defesa da dignidade humana, é recorrente nessas
operações de pacificação. Essa situação, nos últimos anos, tem gerado um sem número de
controvérsias e contendas nos tribunais internacionais, dado o uso desmedido e desproporcional
das forças de intervenção. Além disso, esse quadro tem apontado as contradições que a guerra
traz quando as armas são empunhadas à frente das bandeiras da paz.
Mas, o Haiti é aqui também. Veja-se, para citar um exemplo mais próximo
geograficamente, os paradoxos da política de segurança de confronto humanitário que figuram
na raiz da polícia de pacificação de territórios conflituosos no Rio de Janeiro. O paradigma
estadunidense de ocupação territorial resulta da instrumentalização da ideia das áreas
desgovernadas (ungoverned areas) e do uso da força com vistas a restaurar a autoridade do
Estado. Por conseguinte, estabeleceu-se o processo de militarização da segurança pública e das
forças armadas, transformadas em salvadoras da pátria, e o consequente salvo conduto para os
assassinatos decorrentes dos “danos colaterais” da guerra levada a cabo nesses enclaves
urbanos. Justifica-se, igualmente, todo o discurso contra a “desordem urbana” que sustenta a
ação espetacular das tropas de elite e suas práticas de coercibilidade e letalidade.
Ao passo em que “[...] onde há guerra não pode haver direito”313, como afirma Nilo
Batista, os crimes de guerra são cometidos frequentemente apoiados nessa prerrogativa de
legítima defesa, em nome da qual, paradoxalmente, a vida de civis é ameaçada e territórios
estrangeiros são invadidos e devastados:

Pode-se, portanto, falar da “governança da segurança” para designar um conjunto


de instituições, formais ou informais, governamentais ou privadas, que
proporciona certos meios para o controle social e para resolução de conflitos, e
que tenta promover a paz diante das ameaças que surgem da vida coletiva.314

312
Poderíamos questionar se essa construção do “Estado-nação falido” e do “Estado-nação fraco” não seriam
modos de forjar, no vocabulário da soberania imperial, os contornos das figuras biopolíticas da existência – e dos
modos dignos ou não de vida –, moduladas pelo Estados hegemônicos. “Estados fracos” requerem intervenções
constantes e tutela, o que significa gerir a vida das populações subalternizadas segundo os parâmetros reguladores
da modelagem da exclusão racial.
313
BATISTA, Nilo. Ainda há tempo de salvar as forças armadas da cilada da militarização da segurança pública.
In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p. 51.
314
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 49.
143

Ora, quando a paz democrática se torna razão para a guerra, é preciso questionar o que
se compreende por esse conceito e pelos procedimentos adotados para sua efetivação, pois,
como salienta Foucault:

[...] a noção de ‘paz’, no singular, me parece uma noção duvidosa, parece-me que
a própria noção de ‘pacifismo’ deve ser reexaminada desse ponto de vista. O
pacifismo para qual a paz? O pacifismo em relação a qual paz ou em relação a
qual guerra escondida pela paz que foi decretada?315

Essas operações de paz que têm por “inevitável” dano colateral a morte das parcelas
mais vulneráveis das populações, não deixam de expor as engrenagens complexas nas quais se
enredam discursos humanitaristas, propósitos expansionistas e modelos de gestão policial da
vida cotidiana. Seus efeitos letais, todavia, não são enquadrados como assassinatos em massa
ou massacres, mas como preço a ser pago pela implementação das políticas de pacificação. Por
isso, elas se prestam tão bem a fins necrobiopolíticos, quando: “[...] as intervenções militares
por motivos humanitários, nas quais operações bélicas se propõem fins biológicos, como a
nutrição ou controle das epidemias” se tornam – prossegue Agamben – “[...] exemplo
igualmente patente da indecidibilidade entre política e biologia”316.
Estratificação social reforçada de um lado, ódios, paixões e medos convocados de
outro. E que não venham chorar os cadáveres espalhados. É preciso estabelecer via intervenção
e ocupação territorial os controles sociais e penais imprescindíveis para o bom funcionamento
do sistema: “braço forte, mão amiga”317.
Se as operações de manutenção de paz (peacekeeping) assumem os contornos da
guerra é em prol da “[...] legitima atuação das forças de segurança para além do marco da
legalidade sob o pretexto da reconquista de territórios”318. Enquanto agentes mediadores da
pacificação, a atuação dos exércitos “pacificadores e humanitários” é a expressão perfeita do
lema orwelliano: guerra é paz. O que, em nome dos direitos humanos, mobiliza uma série de

315
FOUCAULT, Michel. “...ils ont déclaré... sur le pacifisme, sa nature, ses dangers, ses illusions” [1983]. In:____.
Dits et Écrits II. Paris: Éditions Gallimard, 2001c. p. 1357. Tradução minha. Na versão original: “[...] la notion
de paix au singulier me paraît une notion douteuse, il me semble que la notion même de pacifisme doit être
réexaminée de ce point de vue. Le pacifisme pour quelle paix ? Le pacifisme par rapport à quelle paix ou par
rapport à quelle guerre cachée par la paix qui a été décrétée ?”.
316
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
181.
317
Este é um dos lemas da missão do Exército brasileiro no Haiti.
318
SERRA, Carlos Henrique Aguiar; ZACCONE, Orlando. Guerra é paz: os paradoxos da política de segurança
de confronto humanitário. In: BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.
p. 44.
144

contradições. Afinal, até que ponto o universalismo dos direitos humanos confere legitimidade
a uma guerra para protegê-lo? Até que ponto o uso das armas de destruição em massa (leia-se
de assassinatos em massa) pode ser autorizado nesses processos de paz como medidas de
segurança global? Slavoj Zizek nota que “[...] a principal imagem do tratamento das
‘populações locais’ como Homo Sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o
Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou alimentos”319.
O buraco, porém, é mais embaixo. Não são poucas as denúncias, nesse contexto, de
violação dos direitos humanos por parte das tropas em missão de paz. Tráfico humano,
prostituição forçada, sexo com menores, tortura, estupro e troca de sexo por alimentos320 são
relatos comuns nestas operações321. Elas evidenciam os abusos que se proliferam nas ocupações
e a precariedade dos corpos explorados quando a responsabilidade de proteção se choca com o
tratamento degradante das populações locais.
Capacetes azuis, camisas-pretas e caveiras. Poder militar e poder punitivo
transmutam-se na dupla face de forças sobrepostas e complementares. O que resulta tanto no
aprofundamento das desigualdades e segregações socioespaciais quanto no estado de polícia
que se infiltra e se superpõe ao estado de direito. Como define Zaffaroni e Batista: “[...] o estado
de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de
polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam”322.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Porque, no estado de polícia, os
genocídios estão longe de serem exceções. Muito pelo contrário. Eles engendram formas
autocoloniais de governo nas quais as agências executivas, legislativas e jurídicas do sistema
penal justificam os massacres, dando continuidade a uma longa tradição de ocupação territorial
militarizada seja nos engenhos, nas favelas ou nas ungoverned areas com potencial exploratório
(recursos naturais e minerais, mercados de consumo, mão de obra barata etc).

319
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas.
Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 114.
320
Cf. NDULO, Muna. The United Nations Responses to the Sexual Abuse and Exploitation of Women and Girls
by Peacekeepers During Peacekeeping Missions. Berkeley Journal of International Law, vol. 27, n. 1, p. 127-161,
2009. Disponível em: http://scholarship.law.berkeley.edu/bjil/vol27/iss1/5/&gt. Acesso em: 15 ago. 2018.
321
Veja-se, por exemplo, o estudo recente realizado por antropólogos da Brown University, no que concerne casos
de abuso e de exploração sexual. A pesquisa aponta um aumento significativo da prostituição infantil com a
chegada das forças de paz da ONU em diversas zonas de conflito, com mais de 2.000 casos reportados de violência
sexual. Cf. LUTZ, Catherine; GUTMANN, Matthew; BROWN, Keith (2009). Conduct and Discipline in UN
Peacekeeping Operations: Culture, Political Economy and Gender. Watson Institute for International Studies
Research Paper. Out. 2009. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2323758.
Acesso em: 15 ago. 2018.
322
ZAFFARONI et al, 2003. apud BATISTA. O Alemão é muito mais complexo. In: BATISTA, Vera Malaguti.
(Org.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p. 65.
145

Meu povo, minhas regras

Há, ainda, um mecanismo de defesa perverso na naturalização das guerras pela paz.
Talvez, coubesse melhor aqui a expressão mecanismo de ataque, visto que o uso desenfreado
das armas e tecnologias de guerra nas intervenções culmina com o assassinato de largo
contingente de civis, inocentes, mas que estavam “no lugar errado e na hora errada”. Ou, pelo
menos, são alçados à categoria dos “suspeitos de envolvimento”, cuja morte legítima se dá em
função da possibilidade de integrarem o grupo dos “criminosos de guerra”.
Os civis mortos em decorrência dos conflitos, enquanto “danos colaterais”, seriam
excedentes populacionais de humanidades subalternas, cujas mortes são sacrifícios necessários
na lógica da segurança e da razão humanitária. É preciso conter a contrainsurgência, e disso
ninguém poderia duvidar. Esse modelo comum tanto às UPPs quanto às premissas que norteiam
as guerras do Iraque, do Afeganistão ou da Síria são fundadas no programa de “limpeza,
manutenção e construção”, que faria frente à desordem e à insegurança. Cidade-de-exceção,
território militarizado, práticas de zoneamento. Tudo se passa como se o que estivesse em jogo
fosse a rebalcanização do mundo em subcampos de pobres e em condomínios de uma classe
média que deseja segurança, quadra poliesportiva, biometria e piscina aquecida.
O custo-benefício dessas comodidades é o que está em questão. Sobretudo, quando o
valor-mercadoria a ser pago são os corpos marcados pela negatividade nos processos de
colonização323 ou degredados à zona do não-ser e da indigência sob a gestão penal da pobreza
por parte dos agentes do Estado. A instauração das tecnologias de penalização a céu aberto,
como situou Edson Passetti324, produz modos de vida policialescos e policiais, em seus menores
detalhes, com controles penais ininterruptos, recurso sistemático a práticas extrajudiciais e
medidas repressivas.
E não é tudo. Produto de um maquinário construído nas bordas jurídicas do estado de
emergência, os prisioneiros detidos no curso das guerras humanitárias e os centros de detenção
de “combatentes inimigos” não deixaram de se proliferar. Guantánamo, Abu Ghraib, Bagram,
para citar apenas alguns dos mais notórios e polêmicos, são reconvertidos em espaços de
exceção jurídica onde torturas, execuções, violências físicas, sexuais e psicológicas são

323
A inscrição destes processos nos corpos e nas humanidades inferiorizadas é resultado de uma “[...] conquista
militar continuada e reforçada por administração civil e policial”, como apontaria Fanon (1980, p. 90). Porque a
matriz dessa técnica de dominação é a guerra, que adquire a função de manutenção das múltiplas violência ao
longo do tempo. FANON, Franz. Em defesa da revolução africana. Trad. Isabel Pascoal. Lisboa: Sá da Costa,
1980.
324
PASSETTI, Edson. Poder e anarquia. Apontamentos libertários sobre o atual conservadorismo moderado.
Revista Verve: Revista Semestral Autogestionária do Nu-Sol, São Paulo, n.º 12, p. 11-43, 2007b.
146

praticadas com vistas à degradação das pessoas detidas, muitas vezes, sem mandado judicial ou
direito à legítima defesa. Em tempos de guerra em nome dos direitos humanos, suspendem-se,
ironicamente, os direitos humanos dos presos de guerra. Isso só é possível na condição de, uma
vez mais, desumanizar os “sujeitos do terror”, transformando-os em objetos de ameaça
monstruoso; do puro poder do negativo seguido do estado de degradação de natureza
ontológica.
Instituídas em zonas fronteiriças, à margem das leis, essas prisões constituem-se como
espaços subtraídos das instituições formais, atreladas a uma lógica punitivista e a uma malha
transnacional que, na ausência de limitação jurídica em tempo de guerra, faz valer a lei do uso
inescrupuloso da força. Esses espaços refiguram, como no imaginário colonial, zonas de
exceção inseridas, simultaneamente, na ordem global e no “além-mundo”, isto é, “[...] o lugar
onde o único princípio de conduta é o direito do mais forte”325.

Mercenários, milicianos, terceirizados

Não é raro então que as fronteiras sejam esboroadas entre ação humanitária, ação
política e ação militar. Enquanto a economia bélica da pacificacão exige que se usem todas as
armas debaixo da manga, os mercados globais da violência sentam-se à mesa de negociação
para ofertar produtos, serviços e soluções sob medida, a gosto do cliente.
A guerra não é a exceção econômica da política mundial. Pelo contrário. As cifras que
envolvem as operações militares e o contingente de pessoas envolvido nas mais diversas
funções são exorbitantes. No que concerne às missões de paz, não poderia ser diferente:
nenhuma escapatória ao fluxo internacional de capitais é permitida. Pois estão expressas nas
premissas mesmas norteadoras dos processos de manutenção (peacekeeping), de promoção
(peacemaking) ou de imposição da paz (peace enforcement) a introdução do modelo de livre
mercado nos Estados em reconstrução.
Ao afirmar que os Estados liberais democráticos seriam mais pacíficos em suas relações
internas e exteriores, o processo de pacificação encontra o seu respaldo nas teorias econômicas
liberais. Pacificar se transmuta na implementação de um modelo de desenvolvimento
econômico orientado pelas escolhas de consumo, pela livre concorrência e pela defesa
intransigente da propriedade privada como direito fundamental a ser resguardado.

325
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
112.
147

As intervenções refiguram o modelo neocolonial verticalizado, segundo o qual as


realidades locais dos territórios não são levadas em conta e, claramente, os interesses
econômicos e geopolíticos voltam-se à extração de recursos naturais e ao jogo das companhias
transnacionais no zoneamento comercial desses países. Por isso a política de intervenção é tão
marcada pela ótica militar da “paz vindo de cima” e da “retomada de territórios”, que envolvem
processos de reestruturação urbana e rural em larga escala, desenhados pelo setor empresarial,
e de um novo modelo de orientação social fortemente “policializado”326.
Lógica dos massacres e da espoliação, colonialidade do poder rediviva, por outros
meios. Ora, um deslocamento importante tem lugar no interior dessa economia bélica. Na
gestão dos conflitos armados, em nome da paz, as guerras paulatinamente seriam privatizadas.
E se os empreendimentos militares passam a ser alocados como prestação de serviços, os
gerenciadores de riscos, milicianos e mercenários passam a desempenhar funções cruciais no
âmbito das batalhas.
Pacificar e punir convertem-se na lei universal das empresas militares privadas. Essas
empresas adquirem funções de segurança outrora exclusivamente públicas e avançam, sem
peias, no “território soberano” do Estado. Inserção cada vez mais acentuada, com a vantagem
política de obstaculizar os mecanismos de responsabilização dos Estados pelos tribunais penais
internacionais. Afinal, qual seria exatamente o status de um “soldado privado”, combatente em
solo estrangeiro? É curioso, assim, que “[...] um número cada vez maior de missões seja
encomendado por instituições e associações tais como a ONU, a OUA327 ou a OTAN no quadro
de missões de paz ou de ‘construção de nações’”328.
Curioso, mas não surpreendente, em um quadro no qual a segurança tornou-se um
produto rentável nos negócios de guerra e paz. Para os Estados, a terceirização é um modo de
realizar um maior número de tarefas com menos dispêndio financeiro; para os empreendedores
privados da guerra, por sua vez, diminuir custos e maximizar os lucros significa a garantia de
rentabilidade dos investimentos de risco, com a eficácia garantida em relação aos objetivos do
contratante.

326
É nessa linha, por exemplo, que Sonia Fleury elabora suas considerações acerca da militarização do social como
estratégica de integração no caso das Unidades de Polícia Pacificadoras do Rio de Janeiro e as contradições geradas
pela “nova ordem policial coercitiva” em face da ampliação dos direitos por cidadania. Cf. FLEURY, Sonia.
“Militarização do social como estratégia de integração – o caso da UPP do Santa Marta”. In: Sociologias. Porto
Alegre, ano 14, n.º 30, mai./ago. 2012, p. 194-222.
327
A OUA é a sigla da Organização da Unidade Africana, criada em 1963, para enfrentar o colonialismo e o
neocolonialismo nos países africanos e promover a unidade e a cooperação entre os Estados nacionais. Em 2002,
a OUA foi substituída pela União Africana (UA), que congrega, em 2018, 54 Estados-membro.
328
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviço. A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. p. 68.
148

Assistência antiterror, com emprego da violência e desrespeito aos princípios


humanitários; recurso à tortura e a violações físicas, psicológicas e morais. Em “situações de
emergência”, as empresas privadas se inserem no modo de gestão da segurança internacional
como solução de mercado mais eficiente. Mas, entre o direito empresarial dos contratos e o
direito militar da guerra, vige uma zona de indefinição. Não à toa:

[...] as empresas privadas militares de segurança são entidades privadas


transnacionais que vendem serviços militares legalmente registrados por meio de
contratos com governos, organizações intergovernamentais e não
governamentais. Os empregados que trabalham para essas empresas privadas de
segurança, protegendo as corporações multinacionais extrativas, encontram-se
frequentemente envolvidos em conflitos com as populações locais, mas a
existência de um vácuo jurídico dentro desse domínio crítico permanece como um
dos maiores desafios à crença na eficácia de normas legais que regulamentariam
a proteção dos Direitos Humanos na arena internacional.329

Zonas cinzentas às margens das leis, criação de redes ilícitas, visão expansionista. Por
trás dos lemas de paz, os mercados de armas, cartéis de drogas, a demarcação de áreas de
influência, o tráfico de pessoas e de bens naturais, o dinheiro não declarado de máfias, lavado
com sangue das populações civis mais precarizadas.
Grupos paramilitares, milícias e mercenários revezam-se como “civis armados” nos
conflitos intermináveis e na extensão indefinida da violência privatizada. É importante ressaltar
que essas empresas militares privadas e os programas políticos de “paz armada” são
indissociáveis da emergência das redes de (in)segurança e de terror transnacionais. Porque se a
“ética” da empresa é movida pelos interesses do contratante, os Estados com pretensão coloniais
disputam com senhores da guerra, grupos insurgentes e de libertação nacional ou estados
ditatoriais a hegemonia sobre determinados territórios. A indicação não deixa margem a
dúvidas: Quem pagar mais, leva. É o que os próprios relatórios da Comissão de Direitos
Humanos das Nações Unidas para o combate aos mercenários mostram, pois:

No mercado desregulado e aberto, as empresas militares privadas desempenham


um papel cada vez maior na mediação de compras de armas e nas prestações de
serviços de guerra [...]. Não se consegue definir, por fim, quem é realmente o
responsável pelo fornecimento de armas às tropas de guerrilha ou à rede
terrorista330.

329
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 50.
330
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços – A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 90.
149

Foi isso que o escândalo na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, em 2004, revelou acerca
das tramas complexas que envolvem as parcerias público-privadas. Alguns desses prestadores
de serviço que atuariam em prol da democratização, da liberdade e da paz, aparecem, aliados a
militares do exército dos Estados Unidos da América, como torturadores violentos no
tratamento de “suspeitos” sob custódia e de presos locais. As fotos e gravações que se
disseminaram rapidamente pelo mundo, em sua brutalidade, “[...] constituíam uma clara
evidência representacional dos crimes de guerra”331. Detidos por tempo indefinido, os
prisioneiros iraquianos eram interrogados por profissionais especializados em “quebrar sua
resistência”, pois, se não eram permitidos aos interrogadores infligir diretamente sofrimentos
aos presos, eles poderiam, porém, provocar “desconfortos moderados” – segundo atestam os
documentos publicados – nos detentos: desorientação, medo, vergonha, esgotamento.
Os militares envolvidos nos casos de tortura e humilhação em Abu Ghraib foram
condenados; mas não “[...] a metade dos trinta especialistas em interrogatórios naquela
prisão”332 composta por funcionários de empresas militares privadas. Em tese, eles teriam sido
apenas contratados como tradutores internacionais. Mas, efetivamente, tratavam-se de
especialistas na aquisição de informações e na guerra psicológica, isto é, torturadores
profissionais.
Nada de novo no front. Na vigência do governo da emergência deflagrado em todo o
mundo, consolida-se, por todas as vias, a ordem política da “guerra ao terror”. Nesse âmbito,
na prática:

A proteção da lei internacional de guerra e dos direitos humanos perde validade


para os cidadãos não americanos: persiste a negação do recurso de habeas corpus
aos detidos em Guantánamo com a tentativa de “legalização” da detenção
indefinida; formam-se comissões militares para julgar e condenar supostos
“combatentes ilegais”, sem as devidas garantias do direito processual, e se
reconhecem provas obtidas por meio de tortura e maus-tratos.333

Instrumentalizada a ideia das “áreas ingovernadas” devido à incompetência na proteção


dos Direitos Humanos por parte dos governos locais, as intervenções coercitivas são autorizadas
nos territórios colonizáveis e praticadas, então, com número expressivo de pessoas e serviços

331
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 120.
332
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 49.
333
NASSER, Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas
perspectivas sobre os conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 44.
150

contratados de empresas terceirizadas de segurança. Seguem, aliás, a tendência dominante das


políticas trabalhistas contemporâneas, com vistas à flexibilização dos serviços, à polivalência e
à minimização de custos. O que ocorre, cada vez mais, é a descentralização dos poderes
públicos no âmbito prático das intervenções, que passam a se configurar como operações
puramente técnicas, apesar de o âmbito das decisões políticas permanecer na cúpula
hegemônica de quem pode definir onde intervir. Por isso, os novos mercenários, milicianos e
exércitos terceirizados são cada vez mais comuns nos cenários beligerantes das intervenções,
que não conhecem “nem vitórias, nem derrotas, mas apenas graus de eficácia e de sucesso”334,
como define o vocabulário militar-empresarial.
Mas onde se lê “eficácia” e “sucesso”, leiam-se assassinatos de inimigos políticos e solo
fértil para a “democratização” econômica dos “Estados falidos” ou “patrocinadores do
terrorismo transnacional” via estabelecimento de mercados, de redes empresariais e econômicas
sob a tutela das grandes potências hegemônicas.
A questão do envolvimento de atores não-estatais nesses conflitos recai, finalmente, no
imbróglio jurídico das penas diante dos excessos e ilegalismos comprovados nas intervenções.
De quem é a responsabilidade pelo assassinato de milhares de dezenas de civis perpetrado por
veículos aéreos não-tripulados e que são pilotados por prestadores de serviço contratados, que
vendem suas “habilidades” no mercado livre?335
“Toda segurança é uma biopolítica”336, dirá Foucault. Como necrobiopolítica, a
discussão em torno das vidas daqueles que podem viver e dos que devem morrer não é
desconsiderada quando se racializa essa indagação na perspectiva contra-hegemônica. A chave
para que se alcance a eficiência, nesse quadro, exige diminuir os riscos de agressão endereçados
a certos grupamentos sociais – mas não a todos. Se as disputas no interior de certas comunidades
políticas ameaçam erodir o sistema de segurança ou das trocas econômicas vigentes no mundo,

334
GROS, Frédéric. Estados de Violência: ensaio sobre o fim da guerra. Trad. José Augusto da Silva. Aparecida,
SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 244.
335
Segundo Nasser (2010, p. 47), “no caso Nicarágua versus Estados Unidos, por exemplo, a Corte Internacional
de justiça considerou que, quando o Estado intervém enviando bandos armados, grupos irregulares ou mercenários,
seus atos são considerados tão graves como aqueles cometidos pelas Forças Armadas regulares. A intervenção
equivaleria a um ataque armado e, portanto, justificaria uma resposta. [...] Em 2001, a Comissão de Direito
Internacional da ONU emitiu novas diretrizes sobre as atribuições e responsabilidades dos Estados, considerando
que o comportamento de um grupo que age com base nas instruções , ou sob a direção e controle de um Estado,
pode ser atribuído a esse Estado; e que o comportamento de um grupo que exercer elementos da autoridade do
Estado, na ausência ou omissão das autoridades oficiais, poderia também ser atribuído a um Estado”. NASSER,
Reginaldo Mattar. Direitos Humanos e a privatização da violência. In: ____. (Org.) Novas perspectivas sobre os
conflitos internacionais. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
336
FOUCAULT, 2004 apud GROS, Frédéric. Estados de Violência: Ensaio sobre o fim da guerra. Trad. José
Augusto da Silva. Aparecida, SP: Editora Ideias & Letras, 2009. p. 245.
151

as intervenções cirúrgicas são meios de dissuasão e de restauração de uma dinâmica de


equilíbrio que não necessariamente visa à dessubalternização dessas comunidades. Antes,
reforçam, não raro, a submissão e o subdesenvolvimento; a continuidade de estados perpétuos
de violência nos quais vigoram a lógica da racionalidade do risco desigualmente distribuído
entre os cidadãos.
Das fronteiras do Estado às margens dos sistemas de segurança, os grandes circuitos dos
fluxos econômicos precisam ser preservados. À vista disso, as intervenções estendem-se cada
vez mais no tempo e com operações mais abrangentes, que acirram as divisões de classe, a
precarização dos corpos, as proibições e as regulamentações militares e policiais na gestão
global da vida: se o inimigo não tem rosto, matar não é crime, quando a ação for sustentada por
uma reivindicação de direito.
A incompatibilidade entre as organizações de ajuda humanitária e a atuação das
empresas militares privadas é patente. De modo diverso, como legisla o Direito Internacional,
as intervenções armadas transformam-se em guerras de ataque. Aliás, é bem certo, se o setor
privado vende a segurança como produto negociável, é preciso produzir seu contraponto: a
percepção contínua da insegurança. Por outro lado, seria possível perguntar se os custos dessas
intervenções não seriam demasiado altos, tendo em vista a finalidade declarada. Poderia ser
questionado, ainda, se o caráter autoritário e truculento dessas operações não recairia
exatamente naquilo que elas visam a combater: no reforço do terror soberano e na disseminação
das “milícias institucionalizadas”, como braços estendidos dos estados de violência.
É que a paz exige sacrifícios, dizem. Investimentos, soldados, bombas, acordos
provisórios, “danos colaterais”. O que é certo das operações de pacificação é que “[...] em
nenhum dos casos se conseguiu, através de meios militares, alcançar uma solução duradoura de
paz para os conflitos”337. A transferência da competência da segurança do Estado para agentes
privados, a despeito dos “fins humanitários”, culminam com a intensificação das arbitrariedades
endereçadas à população civil e em uma série de ilegalidades em relação à provisão de
assistência humanitária e à proteção dos direitos humanos que alegam defender.
Além disso, ao se tornarem a versão contemporânea das “missões civilizatórias”, a
defesa dos direitos humanos e seus ideais “[...] perdem seu valor quando chamam a polícia e a
força aérea para promovê-los”338. Intervenções animadas por concepções universalistas

337
UESSELER, Rolf. Guerra como prestação de serviços: A destruição da democracia pelas empresas militares
privadas. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. p. 88.
338
DOUZINAS, Costas. Os ideais perdem seu valor quando chamam a polícia e a força aérea para promovê-los.
Revista do Instituto Humanitas UNISINOS/IHU on-line. São Leopoldo: 18 mai. 2009. Entrevista concedida a
152

(liberais-individualistas) e descontextualizadas dos direitos humanos resultam, senão, na


instituição de modelos desenvolvimentistas etnocidas e injustos, longe de materializarem “[...]
o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais,
econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e todos para poder
lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida”339.
Os casos de abusos corporais, intimidações, perseguições e chantagens não são
infrequentes. Não se pode desconsiderar que o recorte racial desempenha um papel
preponderante nessas violações, na medida em que a raça é um elemento estruturante que marca
a desigualdade no tratamento dessas situações. A economia criminal dos mercados de violência
encontra na esfera estatal a legitimidade que resulta na indistinção entre legalidade e ilegalidade
e no salvo conduto para matar que tem caracterizado as operações de “limpeza étnica e racial”,
sobretudo em sociedades nas quais a violência sistêmica, o racismo estrutural e luta histórica
por direitos e reconhecimento caminham lado a lado com os processos de dominação,
segregação e disciplinamento da diferença levados a cabo pelas instituições estatais. Porque os
fuzis que fazem as guerras são os mesmos que garantem a paz. Salvo quando não garantem.

4.2 O DESUMANISMO DO OUTRO HOMEM: REFUGIADOS, APÁTRIDAS, CLANDESTINOS

Assim como a cal desprende da parede

(Nada faça quanto a isso!)

Apodrecerá a cerca da violência

Que foi erguida na fronteira

Para manter longe a justiça.

Bertolt Brecht, Pensamentos sobre a duração do exílio

Excerto – Ítacas e Damascos: novos infames

Pendurado em um arame farpado, um homem iça uma criança. Assustada, ela olha longa
e fixamente em direção a um ponto distante. Outro homem, possivelmente seu pai, levanta a

Márcia Junges. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/2563-costas-douzinas. Acesso em: 15 jul.


2018.
339
HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria Crítica dos Direitos Humanos. Os direitos humanos como produtos
culturais. Trad. Luciana Caplan, Carlos Roberto Diogo Garcia, Antonio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson
Aparecido Dias. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009b. p. 193.
153

menina pelas pernas – curtas e frágeis –, para garantir que ela seja alcançada pelo rapaz, do
outro lado da rede de arame, agarrado em estacas de ferro. A tentativa, talvez a última e mais
radical, é de transferir a pequena criança de lado, de modo a conduzi-la a um campo de
refugiado da outra margem.
O homem, desolado, suspende a filha como quem entrega um sacrifício aos deuses,
torcendo para que a imolação não se complete e uma segunda chance lhe seja concedida. Pelos
braços finalmente pescada, a criança tem a expressão serenamente imóvel. Não chora. Não
resiste. Sequer dificulta a ação, impassível diante de tanto temor e tremor. Pelo contrário, a
serenidade melancólica que lhe dá a aparência envelhecida – talvez tenha apenas três ou quatro
anos –, direciona o seu olhar para trás, como se fixasse pela última vez o seu povoado, o seu
país, a estranha familiaridade com uma língua e com uma paisagem já completamente devastada
pelos bombardeios. O que procura a menina? O que busca este olhar inquieto e inquietante,
inalterável?
Um horizonte de estrangeiridade parece se imprimir no rosto arredondado. Já não se
assemelha às outras crianças sírias de sua idade que, de longe, observam a filha erguida pelo
pai ou por um parente próximo. Talvez fosse tio ou irmão. Sua face é de quem, inegavelmente,
experimenta a duras penas o trabalho de um luto antecipado. Um luto ambíguo, cujo objeto é
entregue, perdido em meio a uma deriva de pernas e braços e gritos altos, aos quais vem se unir
o desejo profundo de que a sorte da pequena seja diferente daquelas que restam em Suran, a
cidade síria.
O longo périplo em direção à fronteira turca obriga a passagem pelo cruzamento de Bob
Salama, onde outros pais e mães aflitos lançam, igualmente, meninos e meninas à própria sorte.
Do outro lado, o exército turco e seus homens armados, de tempos em tempos, abrem fogo
contra o grupo de pessoas que se aglomeram à espera de poder entrar na parte turca.
Deslocadas de áreas sob o controle do Estado Islâmico/EL, a multidão foge da província
síria de Alepp, limítrofe com o país vizinho. Ali, naquela fronteira, o perigo torna-se
estranhamente duplicado: adiante, do outro lado, a estrangeiridade; desse, em seu próprio país,
a terra fraturada e tomada pelos confrontos entre o Exército Livre Sírio e o ISIS/EL.
Já desidentificados na veiculação das notícias ao redor do globo, em tempo real, os
meninos e meninas perdem seus nomes, como as identidades que deixam para trás, nos
escombros das casas de barro. Em meio ao volume e à densidade de ferros retorcidos e arames
farpados, esperam avidamente pela oportunidade de serem transferidos de lado, com a
benevolência da guarda turca, pouco amistosa. Desamparados e sem nome, os corpos frágeis
cambaleiam em direção aos grupos de assistência internacionais e às organizações não-
154

governamentais de direitos humanos, aos gritos distantes dos pais e mães, para que prossigam,
mesmo reticentes, a lenta caminhada em rumo ao desconhecido. Às vezes, caem; noutras
choram longamente até completar a odisseia inversa. A imagem fixada na memória das
crianças, como a pequena Sena, é tão forte quanto à que os observadores presenciam. O que
resta, de modo fantasmal, é a dor inexplicada do abandono; são as figuras recortadas em
pequenos mosaicos irregulares pelas grades; as sandálias amontoadas pelo caminho, duro
caminho, de lágrimas e terras secas.340

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos

O exílio é buscar saídas.

Taís Bravo, Essa cidade

O destino de Sena, todavia, é comum ao de um grupo expressivo de pessoas que, nas


últimas décadas, tem experienciado o êxodo político ou econômico em virtude das guerras e
dos estados de exceção. Nesses cenários de emergência e de terror, o exílio apresenta-se como
último recurso de sobrevivência, quando o caos social e a violência se tornam constantes em
um mundo de incertezas, de inseguranças e do risco acentuado de morte. A condição
diaspórica341 e o fenômeno dos deslocamentos massivos em decorrência dos conflitos
geopolíticos redefinem acordos e tensionam as premissas centrais dos direitos humanos, com
repercussões consideráveis no desenho da cartografia mundial.
Pois, no debate político recente, o que parece estar em questão, mais do que o direito de
asilo previsto pela Carta das Nações Unidas, de 1948, e pelo Estatuto do Refugiado da
Convenção de Genebra, de 1951, é a tentativa de legitimar, com o argumento da ameaça difusa,
o fechamento das fronteiras e a recusa de proteger as pessoas cujas vidas estão em perigo em
seus Estados natais, por conta de conflitos armados nos quais, frequentemente, os países que
deveriam conceder asilo estão envolvidos. Evidentemente, por trás do argumento antiterror,

340
Remeto ao Anexo A desta tese (p. 250), no qual constam as fotografias da pequena Sena, cuja expressão é aqui
descrita, e do campo de refugiados de Osmaniye, na Turquia.
341
Sobre este tema, cf. HALL, S. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In:____; Liv Sovik
(org). Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003.
155

reverberam o pensamento e a prática racista de Estados, que expõem à morte os grupos


subalternizados do Sul global e do Oriente.
Cortázar e Benjamin, Arendt e Brecht, Kaputu e Said, refletiram, na política e na
poética, em sua escrita de intervenção, acerca do exílio como experiência de clandestinidade,
de estranhamento e de descontinuidade causada pela fuga. Consequência do trânsito forçado, o
exílio impõe uma reordenação de identidades; uma redefinição das noções de pertença e de
alteridade; e, enfim, uma tensão altíssima entre modo de vida, memória e in/exclusão, na
medida em que as trocas políticas, simbólicas e culturais, no contato com o Outro, são marcadas
por uma distância peculiar: a intransponível fronteira do ser fora do lugar.
Mas este campo de visão do estrangeiro – e, especialmente, do refugiado – pode ser
também o lugar de constituição de uma outra voz e de revisão das categorias jurídico-políticas
modernas. Isto porque as tensões e as contradições geradas pelo conflito de interesses, e
manifesta nas políticas públicas e na ordenação jurídica, não ocorrem sem a emergência de um
simultâneo efeito de estranheza. Como afirma Agamben a partir das considerações de Arendt,
“[...] o paradoxo, aqui, é que justamente a figura – o refugiado – que deveria ter encarnado por
excelência os direitos do homem assinala, pelo contrário, a crise radical desse conceito”342.
Insólitos deslocamentos, estranha viagem de sujeitos ora desterrados, cujas “[...]
realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para
sempre”343. Refugiados, exilados, deportados ou emigrantes, o degredo e o estado de trânsito
forçado necessitam ser pensados desde uma perspectiva crítica, como um dos desafios políticos
de nosso tempo. Não precisaríamos esperar pelo endurecimento das leis restritivas do trânsito
de pessoas em determinados países para dimensionar a amplitude de escala dessa questão, em
um momento no qual o contingente de refugiados, segundo o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), ultrapassa 65 milhões de pessoas em todo o mundo344.
Como afirma Bourdieu, “[...] nem cidadão nem estrangeiro, nem totalmente do lado do Mesmo,

342
AGAMBEN, Giorgio. Para além dos direitos do homem. In:______. Meios sem fim: Notas sobre a política.
Trad. Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015b. p. 27.
343
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. p. 46.
344
Segundo o ACNUR, em 2015, o total de pessoas deslocadas em razão das guerras, de conflitos étnico-políticos
e das perseguições chegou a 65,3 milhões. Ou seja, 1 em cada 113 pessoas no mundo é solicitante de refúgio,
deslocada interna ou refugiada. Com este quadro alarmante, fica configurada a maior crise de refugiados e
migrações desde a 2ª. Guerra Mundial. Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/
Acesso em: 15 ago. 2016.
156

nem totalmente do lado do Outro, o ‘imigrante’ situa-se nesse lugar ‘bastardo’ [...] a fronteira
entre o ser e o não-ser social”345.
Os fluxos migratórios em expansão e a criação de grandes enclaves de refugiados, que
rasgam a paisagem com suas tendas e lonas, concretizam, de modo aterrador, a consideração
de Arendt, quando via nos campos – de internamento, de refugiados e de extermínio – um
símbolo político da modernidade346. O refugiado torna-se, assim, o emblema de uma condição
excepcional347, que poderia ser proposta como o “[...] paradigma de uma nova consciência
histórica”348.
Essa condição exprime, no ordenamento do Estado-nação, um problema político dos
mais relevantes, haja vista que “[...] rompendo a identidade entre homem e cidadão, entre
natividade e nacionalidade, põe em crise a ficção originária da soberania”349. Pois se é o
nascimento (autoctonia) o elemento que define a ligação à cidadania nacional e, por
conseguinte, o pertencimento a um Estado, aos sujeitos que não são nacionalizados é negado o
pertencimento a uma comunidade política e o direito a ter direitos, isto é, o direito dos cidadãos.
Salvo, de modo provisório e segundo um ordenamento jurídico específico, a quem conseguir
obter o estatuto político de asilado ou refugiado.
Com a recente saída350 do Reino Unido da União Europeia, em 2016, acirrou-se o
debate acerca do livre trânsito de pessoas pelas fronteiras nacionais e a responsabilidade de
acolhimento dos países do bloco para os quais os migrantes se deslocam. A saída estratégica do
Reino Unido tem como razão principal a reiterada recusa de abertura de fronteiras a refugiados
e imigrantes, tal como é definida pelos tratados da União Europeia.

345
BOURDIEU, Pierre. Prefácio. In: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São
Paulo: Edusp, 1998. p. 11.
346
Agamben partilha também dessa visão de Arendt e desenvolve suas considerações na 3ª. parte de seu Homo
Sacer I, intitulada “O campo como paradigma biopolítico do moderno”. Aqui, as análises de Arendt são justapostas
às de Foucault, com vistas a pensar a politização da vida e os direitos do homem em sua interface com as
biopolíticas.
347
É interessante lembrar o que Agamben chama de relação de exceção, no Homo Sacer, a propósito da norma e
da regra versus a exceção. Segundo o autor, uma relação de exceção é “[...] esta forma extrema da relação que
inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano
e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 25.
348
AGAMBEN, Giorgio. De l’État de droit à l’État de sécurité. Le Monde, Paris, 23 dez. 2015. Idées. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2015/12/23/de-l-etat-de-droit-a-l-etat-de-securite_4836816_3232.html.
Acesso em: 05 nov. 2018. p. 23.
349
Idem, p. 29.
350
O Brexit, processo de desintegração da comunidade europeia, resultou em um referendo aos cidadãos do Reino
Unido com vistas a deliberar sobre a permanência ou pela saída da União Europeia. Por uma pequena vantagem
percentual, os cidadãos optaram pela saída, reivindicando, sobretudo, maior autonomia para negociar com outros
países e blocos econômicos, e uma forte resistência aos imigrantes europeus, considerado um peso para a economia
britânica.
157

A hostilidade no que concerne às políticas de asilo e de hospitalidade de estrangeiros


não se circunscrevem, porém, ao Reino Unido. Tampouco se direcionam exclusivamente aos
refugiados de guerra e aos imigrantes pobres. Ela é, antes de tudo, um sintoma da atomização
social nas sociedades de massa e da criminalização ligada à representação do estrangeiro
racializado, com a consequente contração do direito de asilo nas legislações nacionais que
vigem em nosso tempo. E que evidenciam a permanência das tensões raciais que, ao reforçar
os padrões de humanidade, nega a vitimização genocida dos grupos em diáspora, de um lado,
e não reconhecem expressões do sofrimento que se situem para além das fronteiras europeias,
de outro.
Não é à toa que a expansão da onda ultraconservadora que tem se disseminado por
todo o mundo traz em seu bojo bandeiras que expressam medos atávicos e que resultam em
medidas ainda mais hediondas e restritivas. Linhas regressivas que têm redimensionado as
políticas de Estado e que, diante dos atentados mais recentes nos países do Norte, reforçam os
racismos e imprimem suas marcas nos ordenamentos jurídicos e nos estados de emergência
formalmente decretados. Nesse processo, a vulnerabilidade acentuada em torno de vidas
matáveis é “[...] cultivado por atos de incontestável terror patrocinados e sancionados pelo
Estado, que visam a controlar o que são categorizados como ‘corpos indomesticáveis’.”351
A falência do projeto de integração europeu nos últimos anos decorre das inevitáveis
tensões que têm lugar na paisagem geopolítica mundial. Mas, talvez não seja apenas por conta
disso. Porque, hoje, esse modelo de integração, pautado na centralização dos polos de decisão
e da dominação epistêmica e política dos países periféricos, é questionado em toda sua extensão,
sobretudo quando pretende aprofundar as relações desiguais que caracterizam a matriz colonial
do poder e a desumanização ontológica de povos não-europeus.
O fortalecimento das fronteiras nacionais como mecanismo de proteção e de exclusão,
além de regular os fluxos de entrada e saída segundo critérios arbitrários, reforça a percepção
da criminalização da exterioridade e da pobreza, à deriva nas margens do corpo social. Não
causa admiração que, nesse cenário, os racismos de toda ordem estejam na raiz dos discursos
de ódio direcionados aos estrangeiros e que se refletem no aumento vertiginoso de escala dos
nacionalismos xenófobos, das associações fascistas, dos crimes de ódio e injúria raciais.
Como questão social, a xenofobia não se resume, porém, às manifestações mais
explícitas de violência física. Uma série de medidas institucionais são levadas a cabo

351
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. As fronteiras raciais do genocídio. Direito – UnB, Brasília, vol. 01, n.º 01,
p. 119-146, jan./jun. 2014. p. 135.
158

transmutadas em políticas de segurança “preventiva”, causando, na prática, uma cisão entre


cidadãos nacionais e os “outros”. Essa tendência isolacionista e os argumentos protetivos
culminam por associar imigração e terrorismos, em um falso continuum. Dessa perspectiva para
o discurso fóbico, que fomenta a compreensão vulgar de que cada imigrante é virtualmente um
terrorista, é um salto direto. De maneira ainda mais acentuada, com a difusão da “ameaça
islâmica” no discurso e no imaginário social, em resposta à qual se cria uma gama de
mecanismos restritivos, com vistas a dificultar a entrada e a permanência de estrangeiros –
especialmente, dos corpos negros de cultura árabo-islâmica.
Ora, em face da xenofobia, da islamofobia e do racismo, um desafio ético se impõe:
“[...] como se pôr de maneira mais adequada à escuta do sentido, senão falando com este outro
diferente, dessemelhante, que é por excelência o muçulmano, figura do próximo e do
longínquo?”352, indaga o islamólogo Mustapha Chérif.
Hoje, milhares de povos sem Estado atravessam o limbo das fronteiras em busca de
reconhecimento e território. Armênios, palestinos, chechenos e curdos são sistematicamente
eliminados pelos mesmos braços que lutam pela expansão da democracia liberal e pelo
reestabelecimento da “paz cidadã” em territórios em guerra. Sem cidade e sem cidadania, longe
da proteção de qualquer governo, a realidade dos extermínios não encontra ressonância nas
altas cortes internacionais, sendo relegada a mero factum globalis, fruto das dinâmicas de
relações de poder e de domínio locais, ou da intrincada negociação geopolítica e geoeconômica
de grupos em disputa.
Disputas que, somadas aos movimentos neocolonialistas, às ditaduras e às políticas de
governo autoritárias e austeras, no decorrer dos séculos XX e XXI, resultariam em uma massa
inédita de refugiados, exilados, apátridas e clandestinos em todo o mundo. E que colocariam
em xeque uma série de tratados, acordos e códigos internacionais voltados à proteção da pessoa
e da dignidade humanas.
Às margens do Estado-nação, “[...] a separação entre humanitário e político, que
estamos hoje vivendo, é a fase extrema do descolamento entre os direitos do homem e os
direitos do cidadão”353. A massa de refugiados em trânsito pelo mundo, atualmente, apesar de
“resguardados” pelas convenções internacionais dos direitos humanos e pela evocação dos

352
CHÉRIF, Mustapha. O Islã e o Ocidente: Encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 15.
353
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
130.
159

direitos “inalienáveis” e “intransferíveis”, encontra-se à deriva no espaço da excepcionalidade.


É devido a isso que, segundo Agamben, os refugiados:

[...] representam, no ordenamento do Estado-nação moderno, um elemento tão


inquietante [...], porque rompendo a continuidade entre homem e cidadão, entre
nascimento e nacionalidade, eles põem em crise a ficção originária da soberania
moderna.354

Essas vidas matáveis, sem valor jurídico, e que “[...] pode[m], portanto, ser[em] morta[s]
sem que se cometa homicídio”355, são signos patentes de que a politização e a eliminação da
vida são duas faces de um mesmo processo. Em um enquadramento necrobiopolítico, o
revestimento político do corpo e da vida “natural”, nos quais os direitos vêm a se inscrever, tem
por contrapartida o extermínio sistemático de grupos que não são “dignos” de viver.

Corpos em diáspora

Apesar de atual, esse quadro não é inédito na história do ocidente. Interrogar as zonas
de anomia e de excepcionalidade nas quais se inserem os refugiados requer repensar o conceito
e a condição da diáspora. Como deslocamento forçado de grandes massas humanas, a diáspora
está fundada na “construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um 'outro'
e de uma oposição rígida entre o de dentro e o de fora”356. Essa fronteira de exclusão nada mais
é do que uma fronteira racializada, quando envolve processos de extermínio – ativo ou por
omissão deliberada – movidos pela aliança entre violência, desigualdade e exclusão de base
étnico-racial.
Destituídas as pessoas do círculo da humanidade, a diáspora marca a condição de
indigência inextrincável dos rastros da colonialidade do poder, do ser e do saber. Identidades
fragmentadas, laços desfeitos e recentramentos impostos, cuja violência coloca em xeque o
ideal dos cosmopolitismos e da posse comunal da terra – cada vez mais demarcada por muros
e arames farpados.
É preciso lembrar, nesse sentido, como o tráfico atlântico e as dezenas de milhões de
pessoas africanas trazidas ao Novo Mundo na condição de escravidão foram identificadas na

354
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p.
128.
355
Idem, p. 135.
356
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo
Horizonte: UFMG, 2008. p. 32.
160

história recente do colonialismo, como aquelas que, por excelência, encarnavam a fronteira
para além da zona do ser. Exilados de sua condição humana, antes mesmo da diáspora, os
corpos negros como lugar de inscrição do perigo e da subalternidade poderiam, finalmente, ser
espalhados pelo mundo sem que o “direito a ter direitos” lhes fosse concedido.
O sistema escravocrata, que desarticulou as sociedades africanas, até hoje produz
consequências nefastas, na medida em que perduram as relações de dependência, de
subordinação e a ausência de estruturas administrativas autônomas nesses Estados. A alienação
imposta a expressivos contingentes de pessoas expropriadas de um lar talvez seja um dos gestos
do terror colonial de Estado mais patentes, pois a subordinação racial opera também pela
desintegração das culturas via dispersão, movendo as estruturas do racismo por meio do
bloqueio à aquisição de uma cidadania substantiva. Essa designação racial constitui-se como
“[...] o meio pelo qual certas formas de subvida são produzidas e institucionalizadas, a
indiferença e o abandono justificados, a parte humana no outro violada, velada ou ocultada e
certas formas de encarceramento e até mesmo de abate toleradas”357.
À comunidade fundada na lembrança de uma perda e no desenraizamento, responde-se
com a fabricação sistemática da diferenciação subordinadora, de modo a produzir a
inadequação e a percepção da “excedência”, em cujo centro está o corte racial. Essas vidas
humanas que integram os povos em diáspora são, assim, consideradas “sintomas de uma
condição-limite” que podem, por isso, ser associadas “ao desperdício e ao dispêndio, sem
reservas”358.
Os grupos populacionais assim identificados são marcados pela assimetria das relações
de poder que fixam, na mobilidade dos corpos expostos e em deslocamento, os signos visíveis
da identidade (des)territorializada e da geografia racializada. A violência tem, então, duas faces
não excludentes, mas complementares: por um lado, na via para a modernidade/colonialidade,
se direciona à expropriação in loco, ao sequestro político das pessoas de grupos subordinados
e à dominação pela lógica da disjunção, que caracteriza o empreendimento escravagista-
colonial; por outro, se destina aos povos em dispersão forçada como gesto político refletido,
com vistas a obstaculizar a sua integração e como tentativa de regular entradas e saídas de
fluxos – expulsando os desqualificados, marginais e racialmente estigmatizados.
Esses dois processos de transplante são orientados por uma lógica comum. Em ambos,
o extermínio é justificado ou permitido pelo status dos sujeitos em questão e o deslocamento é

357
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.70.
358
Idem, p. 73.
161

forçado devido às pressões pela sobrevivência ou pela força coercitiva de apreensão, que toma
de assalto os indivíduos inferiorizados pelo racismo e inscritos racionalmente na ordem do
poder como farrapos sub-humanos.
Os padrões de brutalidade estabelecidos durante o tráfico atlântico são continuados por
outros meios. O terror etnocida e racial da dominação colonial é reatualizado a partir de formas
eminentemente modernas da subordinação pela via dos conflitos geopolíticos e das pressões
econômicas que forçam milhões de pessoas ao êxodo, com alto nível de exposição à morte. E
que expõe a indiferença do sistema legal e a recusa obstinada de “consolidação dos
mandamentos da supremacia branca como bases fundamentais para a exclusão do genocídio
como uma categoria viável na Diáspora.”359

As veias abertas do Mediterrâneo

A quem sobra olhos resta ver

um ser nu a vida pouca

Só dentes e sapatos

de volta para casa

Francisco Alvim, Sol dos Cegos

“Temo que o que se passa no Vietnã não seja, somente, uma sequela do passado, mas
que constitua um presságio do futuro”360. Assim Foucault encerra a entrevista concedida em
17 de agosto de 1979 a um jornal japonês. A conversa, intitulada O problema dos refugiados é
um presságio da grande migração do século XXI, tratava, comparativamente, da questão dos
refugiados no Camboja e no Vietnã, alertando ao êxodo pelo mar, no qual 80 mil refugiados se
lançavam às portas da morte.
Em sua análise, no calor da hora histórica, o filósofo ressaltaria que:

359
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. As fronteiras raciais do genocídio. Direito – UnB, Brasília, vol. 01, n.º 01,
p. 119-146, jan./jun. 2014. p. 136.
360
FOUCAULT, Michel. O problema dos refugiados é um presságio da grande migração do século XXI (1979).
In:____. Ditos e Escritos VI – Repensar a Política. Trad. Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013. p. 285-288. Interessante notar que Hannah Arendt, em seu Origens do Totalitarismo, de 1949,
afirma, de modo bastante similar, que o problema dos refugiados seria a grande questão do século XX, “o fardo
de nossa época”.
162

No século XX, houve frequentemente, genocídios e perseguições étnicas. Penso


que, em um futuro próximo, esses problemas e esses fenômenos se manifestarão
de novo sob outras formas. Pois, primeiramente, nestes últimos anos, o número
de Estados ditatoriais aumenta mais que diminui. Visto que a expressão política é
impossível em seu país e que não têm a força necessária para resistir, os homens
reprimidos pela ditadura escolherão escapar do inferno.361

Ora, pensar esses trânsitos problemáticos do século XXI, alargando essas considerações
de Foucault, requer, antes, um passo atrás. Senão atrás do ponto de vista temporal, pelo menos
um olhar desconfiado e suspensivo em relação à grande metarrativa da globalização que
mobilizou os últimos esforços da década de 1990 em direção a um mundo “sem fronteiras”.
Porque se hoje a questão das migrações parece atravessar uma gama de outras discussões no
âmbito da política e da segurança internacionais, há de se atentar não somente para o léxico
empregado, mas para um deslocamento discursivo que reafirma, sobretudo pós-11 de Setembro
de 2001, as linhas e os limites fronteiriços que distinguem “nós” e “os outros”. E,
consequentemente, para o fortalecimento de identidades nacionais e do funesto Estado-nação,
redivivo, apesar dos atestados de óbito finisseculares.
Essa linha imaginária das fronteiras, que demarcam não apenas o traço de um território,
ganha uma concretude insuspeita quando se trata dos dispositivos militares da segurança
internacional. É no plano simbólico do pertencimento e de tudo o que escapa ao seu traçado
que se operam os efeitos de poder mais sensíveis. Talvez, pode-se objetar, isso não seja um
problema tão “contemporâneo”. E, para confirmar isso, bastaria se lembrar da instituição do
ostracismo na Grécia Antiga, a maior pena de desagravo passível a um cidadão, condenado à
vida errática extra-muros. Como o Édipo, sentenciado a vagar sem identidade pelas cidades.
Esse Édipo, cego e expatriado, reconvertido em bárbaro, isto é, à estranheza de si mesmo e de
sua língua no contato com outros povos, poderia ser considerado o símbolo do estrangeiro hoje.
Ao passo que, do ponto de vista das figurações imagéticas, esse parece ser um símbolo
um pouco gasto, da perspectiva das tensões políticas que suscita não é difícil reconhecer as
similitudes, se transformarmos o destino maldito de um homem em destino errático de povos
inteiros. Povos comprimidos sobre o platô de barcos à deriva, que cruzam o Mediterrâneo, o
Mar Negro e o Mar Egeu, deixando pelo caminho os corpos, as narrativas individuais e
coletivas, e um questionamento renitente: como falar em dignidade humana e direito dos povos

361
FOUCAULT, Michel. O problema dos refugiados é um presságio da grande migração do século XXI (1979).
In:____. Ditos e Escritos VI – Repensar a Política. Trad. Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2013. p.287.
163

quando as contendas travadas nos tribunais internacionais são insuficientes para salvaguardar
essas vidas?
Não é de estranhar que em junho de 1981, em uma pequena intervenção intitulada Os
direitos dos homens em face dos governos, Foucault ressalte as iniciativas humanitárias das
organizações internacionais, como os Médicos do Mundo, Anistia Internacional e o navio-
hospital Île-de-Lumière, que socorreu os boat-people no mar da China, em 1979, como
promoção de um novo direito de livre acesso às vítimas de todos os conflitos. Ademais, segundo
Foucault, essas iniciativas criaram um direito inédito: “[...] aquele dos indivíduos despojados
de intervirem, efetivamente, na ordem das políticas e das estratégias internacionais”362.
Por outro lado, há quem aponte que a defesa dos direitos humanos tornaria contraditório
o projeto de um filósofo que, da célebre morte do homem em As Palavras e as Coisas ao
manifesto anti-humanismo teórico363, recusou sistematicamente qualquer essencialismo ou
ideia de uma natureza humana anterior às práticas e às instituições sociais, econômicas e
políticas que formam os sujeitos. Todavia, conforme Foucault,

Através dessas diferentes práticas – psicológicas, médicas, penitenciárias,


educativas – formou-se uma certa idéia, um modelo de humanidade; e essa idéia
do homem tornou-se atualmente normativa, evidente, e é tomada como universal.
Ora, é possível que o humanismo não seja universal, mas correlativo a uma
situação particular. O que chamamos de humanismo foi utilizado pelos marxistas,
pelos liberais, pelos nazistas e pelos católicos. Isso não significa que devamos
rejeitar o que chamamos de ‘direitos do homem’ e de ‘liberdade’, mas implica a
impossibilidade de dizer que a liberdade ou os direitos do homem devem estar
circunscritos dentro de certas fronteiras.364

Em novembro de 1977, Foucault escreve ao Nouvel Observateur, evocando os


“perpétuos dissidentes”365 e defendendo o direito dos governados. Em seu artigo, ressalta,
sobretudo, o direito daqueles que estão em “desacordo global” com o sistema no qual vivem,
pois esse direito “[...] não é nem uma abstração jurídica, nem um ideal de sonhador” – diz o
filósofo –, mas “parte de nossa realidade histórica e não deve ser apagado”.

362
FOUCAULT, Michel. O Direito dos Homens em Face dos Governados. In:____. Ditos e Escritos VI. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2013. p. 370.
363
Cf. CASTELO BRANCO, Guilherme. Foucault: anti-humanista, libertário. Kalágatos. Revista de Filosofia.
Fortaleza, Fortaleza (CE), vol. 4, n.º 7, p. 97-114, 2007.
364
FOUCAULT, Michel. “Vérité, pouvoir et soi” [1982]. In:___. Dits et Écrits II. Paris: Gallimard, 2001h. p.
1601. Grifos meus.
365
FOUCAULT, Michel. “Va-t-on extrader Klaus Croissant?” [1977]. In:____. Dits et Écrits II. Paris: Gallimard,
2001g. p. 361-365.
164

Seria possível, à luz das inúmeras intervenções de Foucault com relação a esse caso e
dos exilados políticos, pensar a questão dos direitos humanos a partir de outra lente de análise?
Porque, hoje, para além de casos políticos específicos, com a emergência da figura do imigrante
na política global, as tensões entre as ideias de cidadania, identidade nacional e direitos do
homem e seus desdobramentos “marginais”: apátridas, exilados, imigrantes ilegais, enfim, “o
bárbaro”, “o estrangeiro”, “o não-cidadão” parecem se recolocar com força. Isto porque esses
passam a ser vistos como ameaças permanentes ligadas ao terror. Tendo em vista que o migrante
econômico e o refugiado político são categorias distintas de exilados, sem dúvida, hoje, as
maiores tensões advêm dos refugiados pobres de guerra.
A declaração do ex-Primeiro Ministro francês, Manuel Valls366, por exemplo, quando
anuncia que os países europeus “não podem aceitar mais refugiados”, não deixa qualquer
dúvida com relação a isto. A terceira margem é cada vez mais distante entre a Europa, a África
e o Oriente Médio. Reverso da globalização alardeada pelos países do Norte, a livre circulação
de migrantes encontra resistência de todos os níveis e dimensões, que culminam, no limite, com
o fechamento das fronteiras e com o “deixar morrer” à deriva em mares internacionais, a que
assistimos, perplexos, todos os dias.
É nesse contexto de trânsito de refugiados, além disso, que se aprofundam os
nacionalismos xenófobos. A República Tcheca, para citar um exemplo, adotou procedimentos
de marcação numérica na pele dos refugiados – tal como faziam os nazistas do Terceiro Reich.
Por isso, afirma Agamben:

A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano
como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao
contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a
sua irreparável exposição na relação de abandono.367

Os caminhos da clandestinidade reativam de modo perverso as imagens construídas por


Julio Cortázar, nos naufrágios de seu Último Round368: “[...] y recomienzan los naufragios, la
lenta natación hacia las playas, / el sueño boca abajo entre medusas muertas y cristales de sal
donde arde el mundo”. Diariamente, milhares de imigrantes morrem na tentativa de cruzar
mares e muros em direção ao continente europeu. A recusa de aceitação de sua entrada em
países estrangeiros coloca em xeque os acordos de livre-circulação e o compromisso com o

366
Manuel Valls foi nomeado Primeiro-ministro da França em 31 de março de 2014, pelo ex-presidente François
Hollande, tendo ocupado esse cargo até 6 de dezembro de 2016.
367
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 85.
368
Cf. CORTÁZAR, Julio. Último Round. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2009. 2. vol.
165

direito internacional dos direitos humanos, do qual são defensores privilegiados, quando os
refugiados adquirem o semblante corporificado do terrorista potencial.
Na esperança de aportar em terras seguras, os refugiados da guerra e da fome lançam-
se aos mares, literalmente abatidos às portas de uma Europa que se fecha cada vez mais –
encalhada em suas crises, mas obstinada na defesa de sua “europeidade”. Milhões de refugiados
que, à deriva, aguardam a boa-vontade dos planos internacionais e do fim das vexaminosas
cercas de arame farpado que dividem os protegidos daqueles relegados a tingir com o próprio
sangue as areias desertas das praias europeias. Ou, como a pequena Sena, a serem separados de
suas famílias, nas cotas arbitrárias de asilo político estabelecidas. Ironicamente, por aqueles que
se outorgam o compromisso de zelar pela defesa dos direitos humanos369 em todo o mundo.
Aqui, há uma margem intransponível: a retórica política esbarra na muralha erguida
contra os “marginais”. Às margens do texto, emerge, em meio à correnteza, a violência
vertigionosa do que escapa a seus limites. Para fora dos tratados, dos acordos e dos pactos
internacionais, os navios negreiros ou os barcos repletos de imigrantes navegam nas bordas da
lei. Porque esses corpos transbordam toda a lei. Como excedentes, excessivos e excepcionais,
eles desafiam a estabilidade de tudo o que é sólido e que, liquidado, desmancha no (m)ar.

369
Como afirma Douzinas, em ensaio publicado no The Guardian, em março de 2009: “Isso também significa que
os direitos humanos não pertencem aos seres humanos. Os direitos humanos ajudam a construir quem e como se
é humano. [...] Porém, os únicos direitos efetivos são dados pelos Estados a seus cidadãos. Estrangeiros,
refugiados, apátridas, os que não têm estado ou governo para protegê-los e que poderiam esperar ser os
beneficiários dos direitos de humanidade, tem muito poucos direitos, quando tem”. DOUZINAS, Costa. What are
Human Rights? The Guardian, Londres, n. p. mar. 2009. Disponível em:
https://www.theguardian.com/commentisfree/libertycentral/2009/mar/18/human-rights-asylum. Acesso em: 20
ago. 2018.
166

5 DEMOCRACIA, NEOLIBERALISMO E RAZÃO (BA)BÉLICA

E as máquinas de entranhas abertas,

e os cadáveres ainda armados

e a terra com suas flores ardendo

Cecília Meireles, Guerra.

And he war.

James Joyce, Finnegans Wake

Razão Babélica: o sagrado e o segredo, o divino e o profano, o duelo sem fim das
línguas, dos símbolos e das verdades. Em meio a tanta confusão, a tantos restos caídos do céu
e dos rastros de guerras em nome do poder de definir os nomes e as versões dos conflitos,
impõem-se um problema de tradução370. Ou melhor, de enunciação dos modos de vida mais
verdadeiros e de idiomas mais universais que pretendem se instituir como o paradigma da
gramática política contemporânea.
Razão babélica é outro nome para a mitologia contemporânea das torres – de Babel ao
World Trade Center –, que se traduz, de modo imperfeito como toda tradução, nos abismos e
trincheiras multiplicados, porque o fosso da impossibilidade de compreensão de forças
antagônicas, mas menos contraditórias do que se supõem, é mais fóssil do que se poderia crer.
Nos termos da acusação de fundamentalismo – religioso ou econômico –, da oposição entre
modernidade e antimodernidade ou de duas ortodoxias distintas, jorra explosivamente o sangue
negro e viscoso cujas ações na bolsa de valores não cessam de aumentar. Majora-se o valor das
ações e cresce o confronto de forças que investem uma contra a outra – em nome da verdade
do poder ou do poder da verdade.
Mas, na verdade, longe dos pactos, dos aliados, dos adversários e dos inimigos, a massa
empobrecida desconhece outra língua que não seja a da guerra. Babel é o nome de Deus; Babel
é também confusão. Instaurado o caos, soldados, mercenários, milicianos e nacionais se
digladiam por todos os lados. Mas, a língua de babel é o ranger dos fuzis, das metralhadoras e
das bombas lançadas, de tempos em tempos, pelos drones que trazem dos céus não a salvação
e sim o fogo que se reflete nos olhos do povo. Ardem o chão, as casas, os corpos dos infantes e

370
Cf. DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
167

das infantarias, na luta pelo que afunda e aprofunda as diferenças. Tudo milimetricamente
previsto por estrategistas e políticos ciosos na partilha da terra. A terra prometida. A terra
arrasada de babel, tomada pela guerra santa, quente, morna e fria. Pela afonia e esterilidade dos
campos; pelas veias abertas das entranhas da terra, que ora servem para prospecção de riquezas
ora para deitar os restos de corpos estraçalhados.

Fé cega, faca amolada

A tese de Francis Fukuyama acerca da morte do marxismo como o fim da história,


apresentada em seu livro O Fim da História e o Último Homem371, disseminou-se rapidamente
nos meios acadêmicos da década de 1990 como o veredito do triunfo das forças de mercado em
detrimento dos dirigismos econômicos. Como última via de encaminhamento do mundo em
direção à democracia liberal, finalmente o capitalismo desregulado poderia se apresentar como
último capítulo de uma história cujo telos seria o progresso e a inserção do mundo das finanças
em todas as esferas da vida social.
À hegemonia do capital financeiro e ao “progresso” orientado para liberdade dos povos
de todo o mundo, fez-se seguir “[...] uma revolução liberal no pensamento econômico”372,
essencial para o vínculo entre livre mercado e democracia liberal. Sob as ruínas do muro de
Berlim, eis então que surgia, como fênix renascida, a nova diretriz geopolítica do mundo,
gravada nos escombros de sangue e concreto. As ilusões perdidas da esquerda pareciam
degringolar diante do triunfo da direita liberal, cujo pensamento seria apresentado adiante nos
marcos da “nova ordem mundial”.
Essa condução “natural” em direção ao modelo democrático liberal de governo não se
daria, todavia, a todos de forma similar. A recalcitrância de determinados povos e regiões
evidenciariam as amarras atadas a tempos de sombras, pré-iluministas, com o estreito vínculo
entre governo e pensamento religioso. Não haveria outro modo de libertá-los das trevas senão
por meio da guerra inclemente travada em nome do direito internacional, do Estado-nação laico,
dos imperativos categóricos do mundo democrático e ordenado:

[...] Esperamos, de tal modo, que o futuro nos traga novidades catastróficas a
propósito da saúde e da segurança das políticas democráticas, que temos, às vezes,

371
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992.
372
Idem, p. 14.
168

dificuldades em reconhecer as boas novas, quando estas nos chegam. E, no


entanto, a boa nova chegou.373

A linguagem messiânica e redentora com que é anunciada a boa nova não é fortuita. E
se assume os traços linguísticos de uma dicção religiosa é justamente por apresentar como um
novo testamento o conjunto de princípios norteadores a serem seguidos pelas potências já
convertidas ou em vias de conversão. O caminho, a verdade e a vida da redenção ganham os
matizes do neoliberalismo democrático. Teria chegado, enfim, o tempo de anunciar ao mundo
a boa nova: sacrifício, luta e tempos levíticos.
Desencaminhados, caberia providenciar aos infiéis o retorno ao caminho da salvação.
Alguns, porém, obstinados em permanecer no erro, não teriam olhos para enxergar o caminho
das luzes: “[...] hoje em dia, afora o mundo islâmico, um consenso geral parece emergir, que
aceita a legitimidade das pretensões da democracia liberal em ser a forma mais racional de
governo...”.374 A exceção islâmica de que fala Fukuyama, se, por um lado, dá a ver o seu
equívoco, por outro revela traços sectários. Tudo o que impede o acesso à “Terra Prometida
dos liberalismos econômico e político”375 é rechaçado, por desviar do telos liberal.
Os limites à narrativa triunfante do capitalismo desregulado como fim da história se
apresentariam no desenrolar dos acontecimentos históricos dos anos que se seguiram à década
de 1990. Os conflitos, ressignificados, não se dissolveram como os arautos da boa nova
imaginavam. Eles reiteram, às avessas, que ante à imposição de uma nova ordem mundial, as
resistências igualmente se proliferam, apontando as contradições de uma pretensa história
reconciliada e da violência inerente a uma escrita da história que não cessou de silenciar os seus
outros para validar, de modo unívoco e universal, a narrativa vitoriosa de sua marcha
progressiva rumo à auto-superação.

Morreu de burocracia

Enquanto o princípio da diferença e da hierarquia das raças funcionou como mecanismo


de domínio dos povos erradicados na zona do não-ser por aqueles que definiam, diante do
espelho, as marcações determinantes do humano universal, a burocracia foi o dispositivo

373
FUKUYAMA, Francis. The End of History and the Last Man. New York: The Free Press, 1992. p. 13.
374
Idem, p. 245.
375
BORRADORI, Giovanna. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida.
Trad. Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 98.
169

descoberto pela intelligentsia europeia como estrutura de administração inseparável da forma


liberal do Estado e de inscrição das vidas na racionalidade moderna.
Porque se os neoliberalismos tornam rentáveis as relações de
dependência/colonialidade, “fazendo render” em termos financeiros as desigualdades e as
relações de subordinação entre as nações e as pessoas, a burocracia atrelada ao dispositivo de
racialidade torna-se “[...] a base organizacional do grande jogo da expansão, no qual cada zona
era considerada um degrau para envolvimento futuros, e cada povo era um instrumento para
futuras conquistas”376, como notou Arendt. Ao unir os princípios de impessoalidade, a
disciplina dos decretos e dos regulamentos e o caráter racional da gestão política, a burocracia
tornou possível escoar o resíduo inevitável do sistema capitalista, cuja produção de riquezas e
de valor é simultânea à produção de seres “supérfluos”. Será via “massacre administrativo” que
se poderá exercer o poder soberano de morte e eliminar, racionalmente, o “subproduto”
identificado às raças inferiorizadas e às massas desfuncionalizadas:

Um processo de burocratização que implica uma certa rotina, “naturaliza as


atrocidades e, pelo mesmo, dificulta o questionamento das ordens. Na larga cadeia
de mandos, cada subordinado é um executor parcial, que carece de controle sobre
o processo em seu conjunto. Em consequência, as ações se fragmentam e as
responsabilidades se diluem.377

É desse modo que a tecnoburocracia como forma de governo se ajusta perfeitamente ao


modelo necrobiopolítico da governança neoliberal, na medida em que, sob o anonimato do
“sistema”, operam-se os cortes e a manutenção da violência racial como técnica de dominação.
Nesse sistema sem rosto e impessoal, o terror “administrativo” adquire os contornos das práticas
políticas institucionais, seja pela desvantagem no acesso a serviços e bens estatais, seja pelo
sistema de desigualdades legitimado, baseado no princípio racial e colonial. A governança
torna-se, então, “[...] a língua franca do establishment político e comercial”378.
Língua franca de uma necrogovernança, tal como propõe a antropóloga Adriana
Vianna379, “[...] tecida nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz de
deslocar morbidamente a conhecida fórmula foucaultiana do ‘fazer viver/deixar morrer’ para

376
ARENDT, Hannah. “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. In:____. Origens do
Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. p. 268.
377
CALVEIRO, Pilar. Poder y desaparición: los campos de concentración en Argentina. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Colihue, 2014. p. 12.
378
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 21. Disponível também em: www.zazie.com.br.
379
VIANNA, Adriana. As mães, seus mortos e nossas vidas. Revista Cult, São Paulo, n.º 232, p. 36-39, 2018.
170

um ‘fazer morrer alguns’ e ‘deixar morrer outros (e outras) tanto(a)s’”380. O caráter sistemático
da destruição compreendida nessa modalidade de governo é instrínseco às políticas de
extermínio, encarceramento em massa e às ações cotidianas de terror estatal, que alia o discurso
da liberdade e da democracia aos mecanismos de criminalização, precarização e exceção com
existência jurídica.
A exclusão de estratos populacionais que estão à deriva dos jogos de mercado não seria,
assim, simples consequência das dinâmicas econômico-financeiras, mas produto, estrutural e
estruturante, de sustentação das disparidades que movem os mercados e as dinâmicas dos
desejos, das inseguranças, das individualidades. Por isso, sublinha Foucault em uma entrevista,
que “[...] são evidentes as relações que existem entre a racionalização e os excessos de poder
político. E não deveríamos esperar pela burocracia e pelos campos de concentração para
reconhecer a existência de tais relações”381. Ao justapor a burocracia aos campos de
concentração, ressalta-se o potencial de extermínio desses sistemas, com a vantagem de a
economia de produção de cadáveres nas burocracias estatais ser menos ostensiva.
Ao fim e ao cabo, assim como o modelo neoliberal propõe o governo do mundo como
se gere uma empresa, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso na gestão da empresa-vida
individual de cada um é totalmente creditada ao sujeito convertido em capital humano. Ou
talvez debitada como dívida assumida por um contrato tácito de gestão dos riscos em um estado
de mal-estar social no qual a burocracia se faz lei.
Daí o modo de operação da responsabilização como “injunção moral exterior”382, por
meio da qual o sujeito é, a um só tempo, responsabilizado individualmente e inserido em uma
cadeia causal na qual se torna um elemento dentre outros no circuito administrativo da
governança – e, por isso mesmo, um “elemento dispensável para o todo”383. Esse regime
enfatiza a responsabilidade enquanto processo que torna possível aferir condutas, decisões,
comportamentos e ações do sujeito “responsável”, cujos efeitos sociais das relações de poder
são os próprios sujeitos reconstruídos para o “mundo administrado” e imputáveis moralmente.

380
VIANNA, Adriana. As mães, seus mortos e nossas vidas. Revista Cult, São Paulo, n.º 232, p. 36-39, 2018. p.
37.
381
FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir [1982]. In:_____. Dits et Écrits. II (1976-1988). Paris: Éditions
Gallimard, 2001. p. 1043-1044.
382
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 21. Disponível também em: www.zazie.com.br.
382
VIANNA, Op. cit., p. 39.
383
BROWN, Wendy. Revisitando Foucault: homo politicus e homo oeconomicus. Trad. Danielle Guizo Archela,
Gustavo Hessmann Dalaqua e Sibele Paulino. Dois Pontos: Revista dos Departamentos de Filosofia da UFPR e
da UFSCar, Curitiba, São Carlos, vol. 14, n.º 1, p. 265-288, abr. 2017. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/download/48108/34036. Consultado em 25 mar. 2018. p. 282.
171

Mas, como nada do “[...] mundo administrado funciona sem solavancos”384, como
afirmaria Adorno, é preciso avançar com reservas. Pois, nesse regime, a instância deliberativa
sobre a própria vida funciona de modo fraturado e parcial. É preciso atentar para a aparência de
decisão do que já se encontra, muitas vezes, formatado em orquestrações prévias e que liquida,
verdadeiramente, com a capacidade de agência do indivíduo inserido em condições reais e
materiais específicas, bem diferente daquelas idealizadas para o “cidadão-consumidor” padrão
não marcado do neoliberalismo385. Por isso, na escolha que se efetua, perpetua-se o já instituído
e a ordem hegemônica, que permite sacrificar em nome do todo aqueles que ameaçam o bom
funcionamento da empresa.

5.1 O FUNDAMENTALISMO ECONÔMICO

As regras autodestrutivas da finança são capazes de apagar o sol e as estrelas


porque não pagam os dividendos.

John Maynard Keynes, 1933.

Pensar as figuras da política contemporânea requer redimensionar as perspectivas de


análise e os objetos no contexto das modificações históricas dos últimos decênios. Sobretudo,
por conta do alargamento das linhas regressivas e das tensões que atravessam esse campo, em
um momento no qual se adensam os debates nos termos propostos por movimentos sociais, de
raça, de gênero, de classe e se questionam as bases materiais da manutenção do domínio das
discussões pautadas no léxico standard da esfera político-partidária.
Refletir sobre os modos de organização social da vida política hoje, portanto, é colocar
em questão os seus processos e suas operações, tendo por horizonte que a política sem conflito

384
ADORNO, Theodor W., 1966 apud DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Mímeses e Racionalidade: a concepção
de domínio da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo: Loyola, 1993. p. 190.
385
Interessante atentar, nesse sentido, para a crítica traçada por Brown (2018, p. 54): “O capital humano, no
linguajar neoliberal, não possui gênero, sexualidade, raça ou qualquer outra posição subjetiva. Porém, é claro, o
neoliberalismo se intersecciona com poderes existentes de estratificação, marginalização e estigmatização,
reconfigurando e reafirmando esses poderes”. A necessidade de marcação desse sujeito “sem rosto”, na contramão
do que é defendido pelos teóricos neoliberais, é essencial para se ressaltar as disparidades estruturais e os efeitos
diferenciados que atingem mais determinados segmentos do que outros. E que inserseccionam vulnerabilidades e
violências no discurso e na prática da “cidadania sacrificial” vigentes na racionalidade neoliberal. BROWN,
Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi
Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018.
172

e dissensão é consenso esterilizante, fadado a conservar os privilégios e os interesses das elites


que definem as pautas da agenda nacional.
Em sua forma neoliberal, a democracia, cujas virtudes comumente são elencadas em
contraposição aos perigos e desvios dos totalitarismos, institui-se na contemporaneidade como
único modelo legítimo de governo social. Enquanto países hegemônicos se preocupam em
disseminá-la pelos quatro cantos do mundo, quer pela retórica oficial de chefes de governo e
ministros ciosos de potenciais extensões de mercados, quer pela força das armas e das “guerras
humanitárias, justas e preventivas”, a democracia liberal do ocidente consolida-se como modelo
por excelência da governança política mundial. Modelo, com efeito, em consonância com os
princípios de certo “individualismo democrático”, segundo o qual a igualdade formal, que deve
orientar o sistema jurídico-político, garantiria – em tese – a salvaguarda das liberdades
individuais e a equidade dos cidadãos.
A conjuntura política pós-Guerra Fria, com o desmonte da partilha simbólica que
marcava a fronteira entre o mundo democrático ocidental e o mundo comunista de além-mar
(alteridade política em oposição à qual a própria democracia liberal definia-se em sua
especificidade), coloca em questão o conceito e o fato da democracia. O triunfo do discurso
democrático, todavia, e o novo consenso que se constituiria desde então, em torno de um pacto
internacional pela “democratização” do mundo – com suas organizações supranacionais e as
prerrogativas de desenvolvimentismo, progresso econômico e efetivação dos direitos humanos
–, implicou no estabelecimento de outro arranjo político, acomodado à nova disposição
geopolítica das potências hegemônicas e a seus interesses.
Por esse motivo, estabelece-se a naturalidade com que, em contextos de estados de
violência expandidos, pode-se estampar nas revistas e nos jornais, em tom apoteótico, que “[...]
a democracia ergue-se no Oriente Médio”386. A política da “salvação” enfim chegou, com o
toque angelical dos trompetes. Mas, poderia ser também o batucar das panelas ou o estampido
dos tiros de fuzil, sempre em riste: batidas ou abatidas, eles compõem a paisagem acústica dos
golpes de todos os tempos. Em meio a tantas sobreposições sonoras, o arriscado lance de dados
das razões democráticas converte-se na cara ou coroa de um mesmo processo: democracia ou
morte.

Deus e o Diabo na terra da democracia

386
DEMOCRACY STIRS IN THE MIDDLE EAST. The Economist, 3 mar. 2005.
173

Identificada ao consumo de massa, como sustenta Jacques Rancière em seu livro-


manifesto O Ódio à Democracia, a ideia de uma democracia em construção e sempre por vir387
– isto é, inacabada no tempo presente, mas que se reconfigura continuamente em nome de sua
perfectibilidade –, é substituída pela incorporação de postulados técnicos e tecnocráticos no
governamento racional da população e na representatividade como forma, por excelência, de
exercício do poder político. Os “indivíduos democráticos” conceberiam essa forma de governo
como garantia da defesa de seus direitos e interesses individuais, limitando o escopo de ação
do Estado, que deveria se abster de intervir em domínios nos quais seus mecanismos entrariam
em conflito com esferas da vida individual.
Ao tratar os viventes como conjuntos populacionais objetiváveis, cujos fluxos podem
ser monitoráveis, o governo neoliberal da vida apropria-se do discurso democrático,
convertendo-o em uma técnica de governamento econômico-política, em virtude dos
imperativos que faz funcionar. Ser livre em uma democracia, assim instituída, significa a
possibilidade que os atores do mercado têm de escolher o que consumir em meio à oferta plural
das coisas a serem compradas. A cidadania se esboça nos contornos do mercado, como modo
de vida alinhado para esse fim, por meio do qual reina o “[...] indivíduo igualitário, subsumindo
nesse conceito todo tipo de propriedades distintas, desde o grande consumo até as
reivindicações dos direitos das minorias, passando pelas lutas sindicais”388.
A lógica econômica do capital neoliberal supõe justamente a identificação da
democracia com a sociedade individualista de massa, em que os laços sociais e os vínculos de
solidariedade pactuados entre as diferentes classes são fruto da personalização ancorada nos
processos de consumo “democráticos”. Esse será o terreno ideal para proliferação, reprodução
e justificação das desigualdades sociais, da meritocracia e da suposta neutralidade institucional
do Estado, sob a ótica dos princípios econômicos, que oculta os acessos diferenciados aos
direitos, aos bens materiais e às conquistas sociais. O que cria novas formas de precariedade,
sobrepostas à marginalização social “clássica”, daqueles cujo acesso aos fluxos da globalização
é limitado pela dinâmica excludente dos mercados.

387
Jacques Derrida, ao vincular desconstrução e a democracia, também partilha dessa ideia, segundo a qual é em
nome da “democracia por vir” que a democracia deve ser questionada, bem como suas instituições, princípios e
conceitos-chave. Segundo o filósofo, essa é a promessa de revolução do político e do exercício da política em
direção à sua gradativa perfectibilidade.
388
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
31.
174

Enquanto prática administrativa, a “[...] redução da democracia a um estado de


sociedade”389, como caracteriza Rancière, nos moldes do neoliberalismo, mitiga os esforços de
redefinição conceitual e a reinserção crítica da discussão na esfera pública, no concernente às
suas instituições, princípios e aporias. Como remarca Wendy Brown:

A racionalidade neoliberal forma cada ser humano, cada instituição, incluindo o


Estado constitucional, sob o modelo da empresa, e substitui os princípios
democráticos por aqueles da conduta empresarial em toda a vida política e social.
Após ter reduzido a migalhas a substância política da democracia, o
neoliberalismo monopolizou o termo para servir a seus objetivos, com a
consequência de que a “democracia de mercado”, antiga expressão de escárnio,
tornou-se a maneira ordinária de descrever uma forma que não tem mais nada a
ver com o poder do povo.390

É problematizando igualmente o sentido ambíguo do conceito de “democracia”, por sua


vez, que Agamben, no pequeno ensaio intitulado Nota introdutória sobre o conceito de
democracia [Note liminaire sur le concept de démocratie], chama atenção para a dupla acepção
do termo, fraturado semanticamente, podendo se referir tanto à forma de legitimação do poder
quanto às modalidades de seu exercício:

O sistema político ocidental resulta da ligação de dois elementos heterogêneos, os


quais se legitimam e dão-se mutuamente consistência: uma racionalidade político-
jurídica e uma racionalidade econômico-governamental, uma “forma de
constituição” e uma “forma de governo” [gouvernement] 391.

Direito internacional público de um lado; técnica de governo de outro. A democracia,


em sua polissemia conflitiva, metamorfoseia-se em um sistema de governança pautado pelos
mecanismos de representação e pela mediação. Não é de se estranhar, pois, que ao ser tomada
primordialmente como técnica de governo pela racionalidade neoliberal, a gestão
coparticipativa da máquina pública reduza o Estado a “[...] uma empresa a serviço das
empresas”392. A cultura de empresa e da adesão voluntária, embasada pelo discurso da
cooperação e da free trade faith (a fé no livre comércio), cujos pilares são a eficácia, a eficiência

389
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
31.
390
BROWN, Wendy. “Nous Sommes Tous Démocrates à Present”. In:_____ et al. Démocratie, dans quel état?
Paris: La Fabrique Éditions, 2009. p. 63.
391
AGAMBEN, Giorgio. “Note Liminaire sur le Concept de Démocratie”. In: ______ et al. Démocratie, Dans
Quel État? Paris: La Fabrique Éditions, 2009. p. 9.
392
DARDOT, Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 370.
175

e a maximização de efeitos com o menor dispêndio possível, despolitiza massivamente o debate


social, assentando em foros estritamente econômicos o que seria de ordem política e popular.

Apocalípticos & integrados

É no bojo dessa democracia “plural de individualidades” que temos visto, por exemplo,
a escalada vertiginosa dos grupos de extrema-direita, que rejeitam, na pretensa defesa da coesão
do mesmo, alteridades vistas como perigosas à manutenção da ordem social e das identidades
nacionais constituídas. Nesse sentido, a democracia, em vez de significar um alargamento do
exercício político sob os pilares da igualdade no Estado democrático de direito, volta-se contra
si mesma – de modo auto-imune –, pois, sob a acusação da “tirania das maiorias” e da crise da
representatividade em curso, reduz-se ao ritual eleitoral periódico: a “festa da democracia” –
que evidencia, às avessas, a opacidade da efetiva participação nos processos políticos.
Assim, promover a integração está na ordem do dia, não obstante as dinâmicas de
in/exclusão serem eficientes modos de normalização de segmentos sociais marginalizados ou
“integrados” conforme sua funcionalidade. A lógica de expansão dos mercados consumidores
pressupõe a intensificação do discurso democrático, mas com limitações claras – como uma
espécie de bloco unívoco do exercício político legítimo –, pois, para os pensadores neoliberais,
“[...] a democracia deve somente criar condições viáveis para que o mercado funcione bem e
segundo suas próprias regras”393. Na medida em que o mercado passa a realizar a paridade entre
os indivíduos, “iguais” na possibilidade de adquirir seus produtos e realizar trocas comerciais,
é o Estado que se torna a instância que deve dar as garantias de que o “jogo” transcorrerá sem
interrupções, de maneira ordenada em todas as suas regras procedimentais.
Doravante, a democracia mínima ou limitada, tal como defendida por Hayek394, ganha
a função de mediadora do ambiente das trocas e de constituição de uma cidadania administrada
no campo da autonomia e das liberdades de mercado. O mesmo Hayek que apoiou e assessorou
regimes ditatoriais no Cone Sul, como o do General Augusto Pinochet, durante a ditadura
chilena. Ora, nessa perspectiva, há uma clara incompatibilidade entre governos autoritários e a
preservação da liberdade, apesar de considerar que a democracia não é um fim último, válido
por si mesma, mas que deve ser julgada pelo que realiza. É justamente por não ser absoluta que,
em entrevista ao jornal El Mercúrio, em abril de 1981, Hayek podia afirmar sem meias palavras:

393
CANDIOTTO, César. Neoliberalismo e Democracia. Princípios: Revista de Filosofia da UFRN, Natal (RN),
vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2012. p. 164.
394
Assim é apresentada em HAYEK, F. A. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura: Instituto
Liberal, 1987.
176

Uma sociedade livre requer certas morais que, em última instância, se reduzem à
manutenção das vidas; não a manutenção de todas as vidas, porque poderia ser
necessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de
outras vidas. Portanto, as únicas normas morais são as que levam ao “cálculo de
vidas”: a propriedade e o contrato395.

A corrida pela inclusão no mercado da cidadania vai pautar a construção de relações


materiais bastante específicas, que garantam a função de domínio das elites e as barreiras da
exclusão racial – sustentadas pelos ideogramas do necrobiopoder e que tem como contraponto
a produção e a naturalização de uma série de identidades, cujos efeitos de poder são reguladores
da própria inserção democrática ou, ao contrário, das penas imputadas pelo instrumental
jurídico-legal.
O “bom cidadão” que se pretende forjar, aquele que gere com competência a sua
empresa-vida, de acordo com as “boas práticas”, credenciais requeridas para inclusão na
realidade homogênea da comunidade assegurada, torna evidente o uso a que está submetido o
discurso das democracias avançadas para subjugação das alteridades ameaçadoras e exclusão
dos estratos racialmente inferiorizados. Aquelas existências mesmas de que fala Hayek quando
lembra que, para os neoliberais, “[...] a exigência de se preservar o maior número de vidas não
significa que todas as vidas sejam consideradas igualmente importantes”396. Isto é, a cidadania
neoliberal não é desarticulada da produção de uma subjetividade, cujo avatar é, por excelência,
o homo oeconomicus – autoinvestidor de risco e empresário de si. Não será supérfluo notar que:

Afirmar que não existe democracia sem mercado não supõe, reciprocamente, afirmar
a impossibilidade do mercado sem a consequente existência da democracia. A
‘verdadeira’ democracia precisa do mercado; embora o mercado não precise
inevitavelmente dela.397

A defesa de uma esfera pública ampliada não tem por consequência a superestimação
do Estado ou sua representação como modo último de resistência à racionalidade de governo
neoliberal. Pois, ao encarnar o ideal desenvolvimentista da necrobiopolítica, o Estado é
instância que regula igualmente os fluxos e sua construção – como sabemos bem desde o Sul

395
HAYEK, 1981 apud MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo: Editora
SENAC, 2001. p. 83. Grifos meus.
396
Idem, ibid.
397
GENTILLI, 1998 apud CANDIOTTO, César. Neoliberalismo e Democracia. Princípios: Revista de Filosofia
da UFRN, Natal (RN), vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2012. p. 165.
177

geográfico398 – está longe de significar efetiva democratização e justiça social para as classes
subalternizadas. Os Estados construídos fora do eixo hegemônico, pela via de longos processos
de soberania colonial, autoritarismos e formas híbridas devem se adequar perfeitamente, em
sua governança, às hierarquias formuladas e erigidas de dentro do mercado global. Inclusive,
hierarquias de humanidade, que instauram cesuras essenciais na administração de forças (de
modo mais ou menos coercitivo) e na ação sobre a subjetividade que produz uma sociedade
mais ou menos forte e competitiva. E que, já em Os Sertões de Euclides da Cunha, no alvorecer
do século XX, confiava na “[...] força motriz da história no esmagamento inevitável das raças
fracas pelas raças fortes”.399
Porém, é na esfera pública que a luta contra a privatização da vida torna visíveis os
privilégios e a dominação dos grupos oligárquicos na sociedade e na pressão que exercem no
Estado. Como deslocamento permanente dos limites, o processo democrático não se reduz à
“democracia militar”, imposta segundo a lógica verticalizada da colonialidade e dos
colonialismos. Esse processo exige a “invenção de formas de subjetivação”400 e da recusa à
divisão “por competência” nas esferas deliberativas, que desaguam nos controles punitivos e
policialescos que guardam as fronteiras da propriedade privada, das formas sociais do poder
das elites e da atomização dos indivíduos devidamente estratificados.
A expansão dos mercados e a incorporação do discurso dos direitos humanos401 e
sociais confere novo fôlego ao ideário de universalidade do exercício da política, que tende a
fazer da democracia liberal a única ordem legítima. Em contrapartida, analogamente, há a
ampliação sem precedentes na história ocidental das sociedades de controle, assim
conceituadas por Deleuze a partir de seu diálogo com Foucault, vetores de circulação dos
racismos de toda espécie, que cindem o mundo entre “nós” e os “Outros”, entre os

398
No caso latino-americano, por exemplo – e do Brasil em especial –, é patente a existência de “um pacto
corporativo interno à própria estrutura do Estado, com o objetivo de manter as dimensões neo-escravistas que
oprimem grande parte da população: os negros, os pobres, os mestiços”. NEGRI, Antonio; COCCO, Giuseppe
Mario. GloBAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2005. p. 249.
399
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1999 [1901]. p. 8.
400
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. p.
81.
401
Como afirmam Gilles Deleuze e Félix Guattari, “[...] os direitos do homem não salvam nem os homens, nem
uma filosofia que se reterritorializa no estado democrático. [Pois] os direitos do homem nada dizem sobre os
modos de existência imanente ao homem dotado de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a sentimos
apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, diante da baixeza e da
vulgaridade da existência que ameaça a democracia, diante da propagação desses modos de existência e de pensar-
para-o-mercado, diante dos valores, dos ideais e das opiniões da nossa época. A ignomínia das possibilidades de
vida que nos são oferecidas aparece por dentro”. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la
philosophie? Paris: Ed. Minuit, 1991. p. 103. Tradução minha.
178

“sacrificáveis” ou não. Acresce-se a isso a mutação atual do capitalismo digital nos termos da
governabilidade algorítmica, por meio da qual o conjunto dos dados do big data402 pode ser
mercantilizado, pela via da “mão invisível” da circulação da informação e do consequente
controle das condutas dos indivíduos.
É notório como esta cisão, em nome da democracia liberal, esteve na raiz de dois tipos
de discursos que embasaram práticas políticas distintas, mas com muitos pontos de contato.
Para citar somente dois exemplos, primeiramente, na década de 1980, com a invocação do papel
do neoliberalismo, no governo norte-americano de Reagan, nas cruzadas contra o “império do
mal”, materializado na figura dos comunismos; depois, na famigerada “Doutrina Bush”,
sintetizada nas “Estratégias de Segurança Nacional dos Estados Unidos”, de 2002, um dos
bastiões do discurso democrático liberal e das “guerras contra o terror” do século XXI.
Ao estabelecer as bases da “democracia efetiva”, tornando indissociáveis as liberdades
econômicas e políticas, o dogmatismo de mercado toma as rédeas de condução das intervenções
políticas globais. Lideradas pelos países hegemônicos, o objetivo é a instituição do único
modelo sustentável para o sucesso das nações: “liberdade, democracia e livre mercado”.403
Estranho paradoxo, não se pode deixar de notar, quando em nome da “dignidade
humana” e contra os excessos do poder cometidos alhures, a força e a truculência exportadas
passam a ser as armas que servem como instrumentos de regulação para que se reestabeleçam
os princípios de agência humana. Em nome da vida, da restruturação da ordem e dos valores
democráticos será preciso intervir nos países “em risco” – como outrora o discurso teológico-
salvacionista legitimou os colonialismos –, justificando em prol dos direitos humanos, as ações
bélicas mais truculentas.
Os interesses geopolíticos e geoestratégicos são, frequentemente, subjacentes aos
ideais humanitários, que assumem o discurso da vida e da liberdade para justificar, inclusive, o
extermínio de populações inteiras. No interior das contradições dos programas políticos de
abrangência planetária, em nome da necessidade de viver, “os massacres tornaram-se

402
Em tecnologia da informação, o termo Big Data refere-se a um grande conjunto de dados armazenados. A
chamada “governamentalidade algorítmica”, conceito cunhado por Antoinette Rouvroy e Thomas Berns, é a
condução da ação dos indivíduos por meio de funções, em torno dos Big Data. E que participam da “emergência
de novas formas de controle”. Cf. “Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como
condição de individuação pela relação?” In: Revista Eco Pós. vol. 18, n. 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015, p. 36-56.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/2662. Acesso em: 4 set. 2018.
403
National Security Strategy of the United States, 2002, p. 3-4. Ademais, o documento apresenta, logo de saída,
seu objetivo principal: “We will actively work to bring the hope of democracy, development, free markets, and
free trade to every corner of the world”. Isto é, “Trabalharemos ativamente para levar a esperança da democracia,
desenvolvimento, mercados livres e livre comércio a todos os cantos do mundo”. (Tradução minha).
179

vitais”404, como diagnosticaria Foucault, com a nuance, hoje, de serem considerados


“massacres administrativos”405 ou “danos colaterais”.
É Agamben, em seu Estado de Exceção406, quem desenvolve uma análise mais detida
em relação ao funcionamento dos Estados democráticos de direito e a adoção de mecanismos
extrajurídicos como regra dos governos contemporâneos. Estes estados democráticos seriam
pautados, permanentemente, pelo “[...] paradigma da segurança como técnica normal de
governo”407. Não é de estranhar que os estados de exceção, apoiados nessa prerrogativa, sejam
dispositivos contemplados pelas cartas constitucionais da maior parte das nações ao redor do
globo, como mecanismo de salvaguarda e manifestação de sua própria razão soberana. Estado
e crime de Estado, desse modo, “[...] coabitam na paradoxal interface entre legalidade e
violência”408, modulada nas intervenções de saneamento pontuais ou nas medidas generalistas
de conjunto, de caráter legal ou extralegal. A própria chantagem do terror de Estado na cena
política em face da determinação democrático-liberal apresenta-se eivada de contradições.
E isto sem que haja maiores tensionamentos entre essa prerrogativa e a razão
neoliberal, para a qual a democracia é extensão do mercado e garantia para que se estabeleçam
espaços de livre competição entre setores público e privado. A democracia passa a desempenhar
uma função meramente protetiva entre os diferentes atores políticos no mercado livre, dando
garantias aos parceiros409, no que diz respeito ao funcionamento desregulado do jogo.
A democracia, entretanto, como possibilidade de uma vida política não é um Estado
acabado, mas em permanente e tensionado alargamento, irredutível às técnicas de governo, ou
a determinadas instituições que lhe dão suporte. Reinventar a democracia, nesse sentido, para
além dos marcos estabelecidos pela racionalidade neoliberal torna-se fundamental para que se
redefina, nas bases do comum, a sua força disruptiva, ou mesmo escandalosa, como propõe

404
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 149.
405
A expressão é de Hannah Arendt em seu Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal.
Zaffaroni (2012, p. 358), em A Palavra dos Mortos, define também o massacre como “antes de tudo, um homicídio
múltiplo, embora na forma de prática, ou seja, de exercício de decisão política e não de ação isolada emergente de
algum segmento.”
406
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
407
Idem, p. 27-28.
408
CASTELO BRANCO, Guilherme. Estado e Crime: extermínio, intimidação, exclusão. In:______. (Org.)
Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b. p. 150.
409
Se consideramos, por exemplo, as famigeradas parcerias público-privadas, vemos como esse amálgama entre
iniciativa privada, capital corporativo e Estado evidencia a dependência do setor financeiro ao aparato e às
instituições públicas. Conforme sublinha Brown (2018, p. 22): “Diferentemente de uma mera terceirização, tais
parcerias privatizam os ganhos enquanto socializam os riscos e, na medida em que precisam ser lucrativas para
os investidores, sujeitam os cidadãos a mais apertos.” BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo,
capital humano e políticas de austeridade. Trad. Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018.
180

Rancière410, ainda que para isso seja preciso reconquistar os espaços açambarcados pelo
mercado. O que exige refutar também a estratégia da negatividade, que visa a recompor um
consenso reacionário pela afirmação de que, fora do neoliberalismo, nada mais seria possível.
Pois,

[...] A democracia não é a “ilimitação” moderna que destruiria a heterotopia


necessária à política. Ao contrário, é a força fundadora dessa heterotopia, a
limitação primeira do poder das formas de autoridade que regem o corpo social.411

Heterotopia que não deixa de revelar o neoliberalismo não apenas como doutrina
econômica, mas como cosmovisão integrada que regula os modos de vida em uma chave
econômica. Assim, com o respaldo do discurso da regulação democrática, neutraliza-se o “[...]
ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se
fundamentado”412. Ingovernável capaz de ativar os diferentes modos de resistência e de
redimensionamento das práticas através das lutas intestinas e da recusa cotidiana em de-cifrar
a vida a partir do esquema valorativo das finanças, do modelo do capital humano
responsabilizado e da razão normativa neoliberal.
É o que Jean-Luc Nancy argumenta quando sublinha que:

O que “democracia” quer dizer aqui é a admissão – sem assunção – de todas as


diversidades em uma "comunidade" que não as unifica, mas que implanta, ao
contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as
formas inomináveis e inacabáveis.413

O que a perspectiva das formas inacabadas e inacabáveis da democracia privilegia é o


caráter processual, histórico e crítico de uma construção que não pode tomar a “verdade” da
democracia em sua transparência factual, tampouco considerá-la como estrutura rígida
redentora dos (des)governos mundiais. O que é tecido nas redes de constituição do “em-
comum”, em sua multiplicidade de sentidos, ultrapassa as estratificações discursivas dos
“governos democráticos” que se autoproclamam os porta-vozes das boas novas. Como atestam
os movimentos sociais, as ocupações e os levantes populares contra a hegemonia da ordem

410
RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
411
Idem, p. 61.
412
Idem, p. 66.
413
NANCY, Jean-Luc apud HONESKO, Vinícius Nicastro. Democracia e/ou Democracias: Vozes insistentes
sobre “insistências democráticas” (Entrevista com Miguel Abensour, Jean-Luc Nancy & Jacques Rancière).
Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), Natal, vol. 19, n.º 32, jul./dez. 2015, p. 512. Disponível em:
https://periodicos.ufrn.br/principios/issue/view/449 Acesso em: 15 jun. 2018.
181

financeira na existência. Pois, não é possível separar o princípio democrático do exercício do


poder da luta pela emancipação contra as formas de dominação hierarquizadas e as fronteiras
da anomia social concebidas por elas.
Se os “apocalípticos e integrados” marcam os dois eixos de refutação ou adesão
inquestionável do programa democrático neoliberal, talvez seja preciso ensaiar outros lugares
de articulação que não sejam balizados pela polarização dual. Eis, então, a necessidade de
tensionar tanto a voz que reitera o processo neoliberal-democrático, orientado por um modelo
cultural próprio ao individualismo igualitário liberal; quanto as vozes que recusam, em nome
da manutenção dos privilégios das elites e do caráter oligárquico do Estado, qualquer meio de
construção de sociedades mais equânimes.
Porque não há engano. Ambas se equalizam em uníssono, estrategicamente, diante de
qualquer tentativa concreta de efetivação da igualdade democrática. As vozes que clamam pela
primazia do mérito, do esforço e até de uma certa disparidade sadia, estão dispostas, no coro
dos descontentes, a recorrer a quaisquer medidas para manter a estabilidade necessária.
Cassam-se governantes ineficientes; fecham-se as fronteiras aos imigrantes; traçam-se planos
de austeridade com consequências nefastas para as massas empobrecidas: “exceção, sim;
recessão, jamais”.

Os nomes da (r)exceção econômica

Há nessas razões normativas do modo de governo neoliberal outra especificidade. Ela


diz respeito à possibilidade de decreto do estado de exceção devido à recessão, isto é, mediante
à contração do ciclo econômico e aos efeitos gerados por ela. Convertida em razão suficiente
para suspensão da normalidade, a recessão é outro nome para a exceção que se tornou a regra
nos jogos financeiros de risco, nos quais Estados, mercados e políticas de austeridade estão
cada vez mais implicados. Isso quando não se atiram ao abismo das depressões, com a falência
múltipla dos órgãos e hiperinflação generalizada.
Negócios imperdíveis; prejuízos incalculáveis. Estouram-se as bolhas, decaem os
“booms” e os corifeus anunciam o pânico generalizado. A exceção fiscal enquanto medida de
recessão “exige” cortes expressivos em uma série de investimentos públicos, sobretudo na
esfera dos serviços e dos bens coletivos, cuja consequência é tanto a moralização da cidadania
(nos termos da responsabilização e do merecimento) quanto a ausência da oferta de prestação
de serviços que competiriam ao Estado. Daí a pressão “privatizante” que segue lado a lado às
182

políticas de austeridade e que transfere competências da esfera estatal aos experts e aos cartéis
do setor privado.
E não é só isso. Sabe-se bem como isso funciona, como um funil entre aqueles que
poderão acessar esses bens e serviços e aqueles que estarão à margem das transações de compra
e venda que transformam o cidadão em cliente. Pois, é certo que na leitura despolitizante na
qual a economia circunscreve a sociedade, quem não é consumidor que pague o pato. Como
ressalta Wendy Brown,

Enquanto discursivamente denigre a dependência e praticamente nega o


provisionamento coletivo para a existência, a responsabilização solicita o
indivíduo como único ator relevante e completamente imputável. Mais uma vez,
a governança neoliberal – com sua ênfase no consenso, na antipolítica e na
integração de esforços individualizados a fins harmônicos – facilita tanto a prática
como a legitimidade da responsabilização. Como argumenta Ronen Shamir,
“assim como a obediência foi a chave-mestra prática das burocracias
hierarquizadas, a responsabilidade é a chave-mestra prática da governança”.414

Responsabilização moral de um lado, que desconsidera as posições díspares e as


condições materiais de partida de cada indivíduo; intensificação das desigualdades, de outro,
com a invisibilização de vidas e espaços periféricos, como duas faces de um mesmo processo.
Em nome do crescimento econômico e das restrições fiscais, é preciso estar pronto ao sacrifício.
E a sacrificar, sem consternação, os segmentos improdutivos e onerosos da população que, se
não contribuem devidamente, não podem gerar gastos a mais para a máquina pública. Só o
cidadão de bem pode redimir o Estado; só o Estado pode, com suas mãos nada invisíveis, mas
fortemente armadas, oferecer uma vida mais “segura” a seus “clientes”. Afinal, se “o seguro
morreu de velho”, o inseguro aceitou o risco e morreu de negligência.
Mas, o desconfiado ainda vive, como bem recorda Jackson do Pandeiro.
Porque as regras reiteradas de uma estratificação social injusta não deveriam ser
relegadas às proposições de quem toma como ponto de partida que “a carga é pesada demais”
e de que é preciso, por isso, “apertar os cintos”. Entre mortos e afogados, vicejam nesta lógica
os interesses empresariais contra os quais o coletivo e a partilha do comum aparecem como
impacto de gastos crescentes quando somente os riscos devem ser socializados.
Por isso, elaborar tetos orçamentários passa a ser prioridade da administração pública,
em sua função de governança, com o congelamento de despesas e restrição de recursos para
políticas sociais. Nesse governo das desigualdades, estruturante da racionalidade neoliberal,

414
BROWN, Wendy. Cidadania Sacrificial: Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Trad.
Juliane Bianchi Leão. Rio de Janeiro: Zazie Edicões, 2018. p. 38.
183

caberia aos setores públicos e privados o bom gerenciamento e o exercício de contenção; a


flexibilização das finanças e das relações laborais; e a austeridade como os pilares de um
neodesenvolvimentismo que reafirma papéis e funções geograficamente atribuídos. Além das
diferenciações hierarquizantes de gênero415, sexualidade, étnica e social, que limitam
oportunidades, o acesso à proteção social, à prestação de bens e serviços.
No laboratório dos economistas, os “analistas de símbolos”416 contabilizam custos,
cadáveres, escalas e variações aceitáveis. Inclusive do empobrecimento de massa, da
insegurança e da criminalidade toleráveis. Porque nestes “descaminhos da virtude” e nos
editoriais da catástrofe, se reivindicam as medidas interventivas ainda mais austeras e
precarizantes, às quais se respondem mutuamente insegurança econômica e incremento do
punitivismo na segurança pública.
Neste contexto, onde o arranjo social, refém da estagnação, preconiza o reforço do poder
soberano (pelas lentes de um darwinismo social redivivo), a exclusão racial da ordem social e
a manutenção das velhas oligarquias autoritárias, a razão criminológica virá ratificar os cortes
que dividem, na carne, casa grande e senzala, Casa Branca e terceiro mundo. Arma do terror
político de massa, a razão econômica institui hierarquias e diferenças, consensos e depressões
que, para além de qualquer democracia, consagra a desigualdade do “abominável mundo novo”
inscrita nos jargões da economia política neoliberal.

5.2 A RAZÃO CRIMINOLÓGICA NA ERA NEOLIBERAL

A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma.


Margareth Thatcher

Em Nascimento da Biopolítica, Foucault analisa as afinidades biopolíticas das artes de


governo liberais e neoliberais. Tratava-se, naquele momento, de pensar o desafio específico do

415
Tome-se, por exemplo, como lembra Brown (2018, p. 29), o processo coletivo movido por um grupo de
trabalhadoras contra a rede Wal-Mart Stores, nos EUA, no que foi considerado o maior caso de discriminação
laboral da história. Em junho de 2011, a Suprema Corte americana rejeitou o processo por meio do qual as mulheres
reivindicavam a paridade salarial, além do pagamento da diferença entre o salário dos funcionários e o pagamento
delas. De acordo com a alegação da Corte, não haveria nada que ligasse as milhões de decisões empregatícias e o
salário mais baixo generalizado pago pela empresa, além de rejeitar “o posicionamento das mulheres enquanto
classe”. Não seria supérfluo lembrar dessa premissa básica das análises de Foucault em Nascimento da Biopolítica,
quando ressaltava que, na racionalidade neoliberal, “o jurídico dá forma ao econômico”. Idem.
416
REICH, Robert, 1993 apud FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo:
Editora Unesp, 1997. p. 26.
184

neoliberalismo enquanto racionalidade governamental e de que modo o exercício do poder


político seria regulado com base nos princípios de uma economia concorrencial de mercado.
Se em fins da década de 1970, a questão ainda não suscitava consideráveis dissensões
à sua recepção, dado a insuspeita escalada das políticas neoliberais, em 2004, quando o curso
do filósofo foi publicado em livro, refigurou-se toda uma dimensão despercebida destas
análises. Como lembra Eric Aeschimann em ensaio publicado no Le Nouvel Observateur417, o
título Nascimento da Biopolítica não facilitou a difusão dessas análises nos meios de discussão
da economia, devendo-se esperar até 2009, à ocasião da publicação de A Nova Razão do Mundo
[La Nouvelle Raison du Monde: Essai sur la société néolibérale]418, de Pierre Dardot e
Christian Laval, para que emergisse uma leitura capaz de ativar o potencial crítico de certos
aspectos levantados por Foucault.
O trabalho de Dardot e Laval explicitaria as condições por meio das quais a
governamentalidade neoliberal se efetivou, historicamente, e como ela operaria um
redimensionamento conceitual dos termos da economia política, ao estender o crivo econômico
a todas as esferas da vida. Já em Segurança, Território, População, ao pensar nas questões
centrais que seriam debatidas ao longo do curso, nos marcos da razão de Estado, da
governamentalidade e da biopolítica, se antevê a abordagem crítica de Foucault aos efeitos de
verdade, à subjetivação na esfera política e aos modos de vida suscitados por essas estratégias
de governo.
Atravessada pela ideia de que “governa-se sempre demais”, a governamentalidade de
Estado no pensamento e na prática neoliberais não deixou de ser questionada em toda sua
extensão. Convertidas em premissas dominantes da experiência política no mundo ocidental,
sob a chancela do modelo hegemônico norte-americano, a compressão do Estado em detrimento
dos mercados desregulamentados – sobretudo o financeiro – e a centralidade das relações
pautadas pelos operadores econômicos constituem, ainda hoje, injunções de ajustamento que
parecem atribuir aos mercados a função simultânea de paradigmas e de crítica permanente da
ação governamental no interior dos processos político-econômicos a que se encontram
vinculados.
Não precisaríamos aludir às crises recentes do capital financeiro para compreender que
essa razão de governo não opera fora de um campo de tensões que lhes são constitutivas. Desses

417
AESCHIMANN, Éric. Pourquoi Michel Foucault est partout?. Le Nouvel Observateur, 21/12/2013. Disponível
em: http://bibliobs.nouvelobs.com/essais/20131220.OBS0394/pourquoi-michel-foucault-est-partout.html. Acesso
em: 21 abr. 2017.
418
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009.
185

embates, novos atores e subjetividades políticas emergem, em rearranjos político-econômicos


e jurídico-institucionais que conferem ao neoliberalismo o frescor de permanente novidade –
imprescindível para alavancar o capital especulativo.
O modelo do capital neoliberal, como forma de gestão das massas e da máquina
pública, apoia-se em um pacto entre governo e segurança, que funciona normativamente como
quadro de referência para todos os aspectos da vida. Não é de admirar que o neoliberalismo se
apresente como a razão do capitalismo contemporâneo419, tal como afirmam Dardot e Laval,
plenamente assumido como construção histórica e como norma geral da vida.
Caracterizado, de modo geral, pela verve crítica em relação a medidas políticas e
teorias de inspiração social, como marxismos, comunismos e keynesianismo, o neoliberalismo
vinculou-se historicamente a tradições de pensadores conservadores, que sustentam o discurso
ideológico-político de um projeto de privatização do social, de redução das políticas
assistenciais e de contração do Estado.
Foucault afirma que “[...] o liberalismo se apresentou, num contexto bem definido,
como uma crítica da irracionalidade própria do excesso de governo e como um retorno a uma
tecnologia de governo frugal”.420 O liberalismo, nessa via, constitui-se como um “[...] esquema
regulador da prática governamental”421 e, sobretudo, como um tipo de racionalidade acionada
que é indissociável dos procedimentos por meio dos quais a conduta dos indivíduos é
direcionada a determinados fins.
A atualidade dessas discussões, porém, não remete apenas à emergência de uma razão
de governo que foi capaz de alterar profundamente os cálculos políticos e gestão das populações
em escala mundial. Desde o raiar do século XXI, estão em vias de se agravar os mecanismos e
os procedimentos forjados no bojo das políticas neoliberais, entendidas não como uma
ideologia ou uma doutrina econômica, mas como um projeto de sociedade, uma cosmovisão
universalizante, que visa a instituir os mercados como centros referenciais e a concorrência
como princípio de verdade das práticas, dos discursos e das condutas. É o advento da empresa
e do empreendedorismo de si, tal como sugeririam Foucault e Deleuze422, como figuras

419
“O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo liberto de suas referências
arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e como norma geral da vida”. DARDOT, Pierre ;
LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris: Éditions La
Découverte, 2009. p. 6. Tradução minha.
420
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 437.
421
Idem, p. 434.
422
Cf. DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013.
186

referenciais na formação cidadã e do capital humano de maior valor. Não à toa, o molde do
sujeito neoliberal será o do indivíduo empreendedor, na medida em que ele:

É o indivíduo eficiente e competitivo que busca a maximizar seu capital humano


em todos os domínios, que não busca somente a se projetar no futuro e a calcular
seus ganhos e seus custos como o velho homem econômico, mas que procura,
sobretudo, trabalhar sobre si-mesmo a fim de se transformar permanentemente,
de melhorar, de se tornar sempre mais eficiente.423

No nexo entre ação dos efeitos políticos e a cadeia de responsabilidade individual, há


um alinhamento entre “escolhas singulares dos cidadãos com os objetivos do governo”, pois
“[...] a sua liberdade e a sua subjetividade podem de tal modo se tornar aliadas, e não
desconfiadas”, que se traduzem em “[...] uma boa ordem que governa tanto a política quanto a
sociedade”. 424 Com o advento dessa arte de governo neoliberal, em nome da máxima eficiência
administrativa, o saber da economia política e o limite das práticas governamentais serão os
marcos privilegiados.
Tratou-se, então, da emergência de uma racionalidade política ancorada no
conhecimento de um suposto “naturalismo” dos fenômenos econômicos, com a ampliação da
racionalidade de mercado e a aplicação da grade econômica ao conjunto de relações sociais,
políticas, trabalhistas e afetivas. Nada escapa às redes do pensamento econômico, nem mesmo
o conjunto das relações sociais ou os fatos comportamentais individuais, que passam a ser
decifrados sob o prisma da economia de mercado.

Tolerância zero?

É o enfoque econômico que permitirá pôr à prova a eficácia da ação governamental,


conforme sustentam os teóricos neoliberais, a partir da avaliação do custo/benefício das
intervenções na esfera do mercado e da sociedade. Essa crítica mercantil direciona-se ao que se
concebe como “dispêndio” das ações econômicas do poder público, dado que o mercado se
torna “[...] uma espécie de tribunal econômico permanente em face do governo”425. Tribunal

423
DARDOT Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 414.
424
ROSE, Nikolas; MILLER, Peter. Political Power Beyond the State: Problematics of Government. The British
Journal of Sociology, vol. 43, n.º 2, p. 271-303, 1992. p. 188-189.
425
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 339.
187

impiedoso e burocrático, pronto para fabricar delinquentes quando for necessário, “[...]
carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos”426.
Afinal, será preciso justificar os investimentos no sistema e na aplicação penal
excludente, nesse contexto de tamanha “liberdade” e de cortes nas políticas sociais. Além, é
bem verdade, da produção permanente de medos tangíveis, afeto que impossibilita que se
constitua um mundo comum e justifica a guerra contra as massas miseráveis: as únicas
responsáveis pelo seu fracasso. É aí que, como afirma Loïc Wacquant, “[...] o encarceramento
reelabora sua missão histórica dirigindo-a à ‘regulação da miséria (talvez sua perpetuação’) e
ao armazenamento dos refugos do mercado”427. Demandas punitivas em resposta aos conflitos
sociais, normalização da ação violenta do sistema de segurança pública, “[...] acumulação social
da violência”428 distribuída de forma desigual. Como gerir a massa periférica, produzida como
resíduo imprescindível de uma ordem social pautada pelo individualismo democrático, pela
flexibilização dos direitos sociais e pela aposta no jogo de risco do empreendedorismo de si?
Refugos do mercado, laranjas podres, raspas e restos que não interessam. Questão de
seletividade: o circo da liberdade que movimenta a engrenagem dos hipermercados; o cerco dos
horrores das xepas de feira dos territórios militarmente ocupados, à margem das cidades.
Hiperinflação carcerária das populações desviantes, precárias e perigosas; ostracismo étnico-
racial e uma ode à liberdade: recompensar os bons investidores e glorificar o sistema penal na
contenção dos indisciplinados.

Crime e castigo

Nesse cenário, no qual se ampliam as demandas punitivas, a eficiência de atuação do


sistema de justiça criminal dos Estados será medida pela avaliação do mercado e da economia,
tendo em vista os seus efeitos. É isso que norteará as análises neoliberais acerca da justiça penal
e da criminalidade, principalmente as de Ehrlich, Stigler e Becker, que Foucault analisa na aula
de 21 de março de 1979 de Nascimento da Biopolítica.
Aludindo aos reformadores do direito penal do século XVIII, Cesare Beccaria e Jeremy
Bentham, os teóricos neoliberais elaboram sua reflexão sobre o funcionamento do poder

426
FOUCAULT, Michel. Sobre a prisão. In:_____. Microfísica do Poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 133.
427
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan,
2003. p. 12.
428
MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, n.º 3,
p. 371-385, set./dez. 2008.
188

punitivo em moldes econômicos, isto é, pela via da problematização dos custos da delinquência
e dos modos de torná-los o menos dispendioso possível e com a máxima eficiência. O recurso
mobilizado pelos reformistas é uma saída legalista. A boa lei, tal como concebida por eles,
estabeleceria um princípio universal de funcionamento de modo mais econômico, com vistas à
punição eficaz dos crimes prescritos por ela. Dado que o crime é uma falta contra uma regra
jurídica instituída, se não há lei também não há crime. Por isso, seria imperativo a definição das
penas e das punições pelas leis, de acordo com modulações que refletissem o nível de
“gravidade” dos delitos.
Quanto aos tribunais penais, caberia a eles aplicar a lei previamente estabelecida aos
crimes, de modo “objetivo”. A consequência desses princípios é que se trama, com extrema
concisão, toda uma rede de política penal, cuja mecânica funciona, sob a ótica neoliberal,
baseada em princípios econômicos. Política penal e economia se encontram, finalmente, na
forma dos mecanismos legais: “o homem que é penalizável, o homem que se expõe à lei e pode
ser punido pela lei, esse homo penalis é, no sentido estrito, um homo oeconomicus”429.
Um paradoxo atravessaria, porém, a economia penal. Pois se, de um lado, a lei só pune
o ato, é preciso levar em consideração, de outro, a função de exemplaridade da punição dos
infratores para os demais. A tendência individualizante da lei e a inserção de saberes médicos,
psicológicos e das ciências humanas na avaliação do criminoso e no traçado de seu perfil, assim,
indicaria um deslocamento operacional do homo penalis para o homo criminalis. O sinal dessa
modificação pode ser lido na própria formação do campo da criminologia no final do século
XIX, que se ocupa, em sua gênese, do grau de periculosidade, da personalidade e da forma de
ressocialização do criminoso430. Nesse momento, a criminologia adquire os contornos de uma
“antropologia criminal”, que acaba por contribuir para o enxerto de uma série de elementos que
inflam, via mecanismos próprios da norma, a mecânica econômica da lei.
Essa antropologia do criminoso que se cria com recurso à biologia, à psicologia e à
genética irá trazer em seu cerne os traços do racismo científico, responsável por justificar a
ligação direta entre determinados fenótipos raciais e a propensão à criminalidade. Assim, tratou-
se cientificamente de legitimar a exclusão de determinadas parcelas da população com apelo à
ameaça que elas poderiam representar aos demais, demonstrada pela sua tendência inata para o

429
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 341.
430
A tese de Cesare Lombroso, L’Uomo Delinquente, de 1876, é paradigmática em relação à investigação em
torno do “criminoso nato”, figura forjada pelo italiano para explicar o caráter hereditário do crime e que em muito
contribuiu para o chamado racismo científico do século XIX. Cf. LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente.
Trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone Editora, 2007.
189

crime. Esse biodeterminismo, de corte racial e social, contribuiria para estigmatizar,


principalmente, os corpos negros, que eram vistos como delinquentes devido à herança atávica
de seus ancestrais primitivos. E, por isso, em defesa da sociedade, deveriam ser detidos e
aniquilados, pois o discurso do medo passa a validar a segregação social e a intervenção
necessárias:

A partir do momento em que se naturaliza uma imagem depreciativa, subalterna


e inumana do outro, estão autorizadas medidas as mais radicais para afastar do
convívio social a ameaça representada por aquele ser. Fazer da diversidade sinal
de ameaça e do medo o condutor das relações intersubjetivas é produzir um
desenho institucional do extermínio da diferença. Assim atua o sistema penal
desse tempo. Produz e reproduz uma horda de inumanos que, aos olhos da
população e das instituições não passam de ameaças à realização de seus projetos
individuais acerca da boa vida.431

É na figura do homo economicus que os neoliberais irão se concentrar, com vistas à


compreensão do crime e da criminalidade pelo viés econômico, depurado de análises
antropológicas. A definição de Gary Becker indica os termos nos quais o problema do crime
será colocado: “[...] chamo de crime toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser
condenado a uma pena”.432 Essa definição é próxima daquela adotada por diversos códigos
penais, inclusive o francês, para o qual Foucault lança um olhar analítico: “[...] o delito, diz o
código penal francês, é o que é punido por penas correcionais. [...] Crime é o que é punido pela
lei, e ponto final”433. Definição genérica, é bem verdade, mas que se diferencia daquela de
Becker em função da perspectiva que adota: a descrição do código diz respeito ao ato, enquanto
o entendimento neoliberal define o crime do ponto de vista do “sujeito de uma ação, do sujeito
de uma conduta ou de um comportamento”, interpretando-o como “[...] aquela coisa que faz
[com] que ele corra o risco de ser punido”434.
A grade analítica neoliberal desloca-se para o sujeito individual, ou seja, o sujeito de
decisão que toma para si o ônus da ação e dos efeitos de seu comportamento em termos
econômicos, esperando sempre algum lucro435:

431
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: Entre política de reconhecimento e meio de
legitimação do controle social sobre os negros. Brasília: Brado Negro, 2016. p. 200.
432
BECKER, 1968 apud FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. 344.
433
FOUCAULT, Op. cit., p. 344.
434
Idem, p. 344-345.
435
Foucault (2008, p. 353) precisa em uma nota na página 19 de seu manuscrito que “um sujeito econômico é um
sujeito que, no sentido estrito, procura em qualquer circunstância maximizar seu lucro, otimizar a relação
ganho/perda; no sentido lato: aquele cuja conduta é influenciada pelos ganhos e perdas a ela associados”. Idem.
190

O criminoso não é nada mais que absolutamente qualquer um. O criminoso é todo
o mundo, quer dizer, ele é tratado como qualquer outra pessoa que investe numa
ação, que espera lucrar com ela e aceita o risco de uma perda. O criminoso, desse
ponto de vista, não é nada mais que isso e deve continuar sendo nada mais que
isso. Nessa medida, vocês percebem que aquilo de que o sistema penal terá de se
ocupar já não é essa realidade dupla do crime e do criminoso. É uma conduta, é
uma série de condutas que produzem ações, ações essas cujos atores esperam um
lucro, que são afetadas por um risco especial, que não é simplesmente o da perda
econômica, mas o risco penal, ou ainda, o risco da perda econômica que é infligida
por um sistema penal.436

Jogo de riscos e perigos que fará com que o sistema penal tenha que “[...] reagir a uma
oferta de crime”437. De maneira distinta, porém, daquela proposta por Beccaria e Bentham, pois,
para esses reformadores, a punição encontrava sua justificativa no efeito daninho de um ato
praticado, para o qual, em nome de um princípio de utilidade, se deveriam buscar medidas de
reparação. Ao passo que, para os neoliberais, trata-se de, face a um mercado do crime, fornecer
os instrumentos de ação e de discurso, os mecanismos e os procedimentos necessários para se
gerar uma demanda negativa do crime, ou seja, que se coloque nos antípodas da oferta.
Não se objetiva, por essa via, a supressão exaustiva dos crimes, como sonhavam com
seu cálculo penal os reformadores do século XVIII. Antes, visa-se a propor medidas capazes de
intervir no mercado do crime – quer dizer, sobre o jogo de ganhos e perdas possíveis –, e que
sirvam como limites à oferta, elas mesmas circunscritas por um cálculo racional que não deve
ultrapassar o custo da criminalidade de que se deseja barrar.
Vemos esboçar-se uma concepção que gravita em torno da ideia de gestão e economia
política dos ilegalismos438. Conforme interpreta Foucault439, “[...] a boa política penal não tem
em vista, de forma alguma, uma extinção do crime, mas sim um equilíbrio”440. A busca por esse
ponto de estabilidade faz com que certas curvas de oferta de crime sejam absolutamente
toleradas – e até desejáveis – para a manutenção da estabilidade e da regulação das políticas

436
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 346.
437
Idem, ibd.
438
Para uma precisão do termo utilizado por Foucault na língua francesa, as considerações do prof. Márcio Alves
da Fonseca são valiosas: “É certo que, por vezes, illégalisme e illégalité são aparentemente utilizados com um
mesmo sentido nos escritos de Foucault em que aparecem, entretanto, há uma predominância, nesses escritos, no
emprego da palavra illégalisme em detrimento de illégalité e, a nosso ver, existe uma diferença importante entre
ambas. O próprio fato de o termo illégalisme não ser veiculado correntemente na língua francesa parece
demonstrar, por parte do autor, a intenção de marcar uma especificidade do mesmo em relação ao termo mais
corrente, illégalité”. FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.
p. 130.
439
Diversas considerações nessa direção já haviam sido tecidas por Foucault em Vigiar e Punir. Ver FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 37. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 243-277.
440
FOUCAULT, Op. cit., p. 350.
191

penais. Sabemos, ademais, a importância disso para a legitimação do próprio funcionamento


dos aparatos e das políticas de repressão, que, em nome da segurança dos “cidadãos de bem”,
perpetram as maiores barbaridades contra grupos que ocupam a base da pirâmide social.
Essa situação é patente ainda hoje quando se trata, por exemplo, da política de “guerra
ao tráfico de drogas”, porque ninguém duvida da ineficácia do combate ao narcotráfico pela via
das operações espetaculares em guetos, favelas e comunidades periféricas. Essas incursões não
pretendem extinguir o tráfico de entorpecentes pela repressão exercida sobre o varejo,
evidentemente ineficaz, mas são vetores de uma direção punitiva e seletiva endereçada àqueles
que compreendem uma maior incidência de marcadores corporais da diferença. Daí a política
de encarceramento massivo de certos segmentos populacionais, a pena de morte
institucionalizada e a seletividade punitiva orientada pelo racismo de Estado e pela “sujeição
criminal”441.
Em linhas gerais, a interpretação dos teóricos neoliberais comporta uma série de
deslocamentos que abalizam as análises a partir do comportamento econômico dos indivíduos,
e, particularmente, do indivíduo criminoso. O programa neoliberal inclui uma gama de
diferenciações operatórias e uma rede de “intervenção do tipo ambiental”442, em prol dos
processos econômicos e segundo o cálculo racional de custos e benefícios. Não é fortuito que
as punições são moduladas e diferenciadas de acordo com limites de tolerância concedidos a
alguns e negados a outros, pois a gestão dos ilegalismos, simultaneamente, promove a economia
das diferenças e a penalização insidiosa das disparidades, visto que realiza a “contenção
punitiva como técnica de governo”443.

441
Segundo Misse (2008), “[...] para distinguir esse processo social de um processo de incriminação racional-legal,
chamo-o de ‘sujeição criminal’. Nele, primeiramente, busca-se o sujeito de um crime que ainda não aconteceu. Se
o crime já́ aconteceu e se esse sujeito já́ foi incriminado antes, por outro crime, ele se torna um ‘sujeito propenso
ao crime’, um suspeito potencial. Se suas características sociais podem ser generalizadas a outros sujeitos como
ele, cria-se um “tipo social” estigmatizado. Mas a sujeição criminal é mais que o estigma, pois não se refere apenas
aos rótulos, à identidade social desacreditada, à incorporação de papéis e de carreiras pelo criminoso (como na
“criminalização secundária” de Lemert). Ela realiza a fusão plena do evento com seu autor, ainda que esse evento
seja apenas potencial e que efetivamente não tenha se realizado. É todo um processo de subjetivação que segue
seu curso nessa internalização do crime no sujeito que o suporta e que o carregará como a um “espírito” que lhe
tomou o corpo e a alma.” Assim, a construção social do sujeito “bandido” é um processo por meio do qual se
constituem os sujeitos e os tipos sociais “mais propensos” ao crime, estigmatizados pelos traços raciais e pela
classe social. O efeito mais perverso desse processo é lógica segundo a qual “bandido bom é bandido morto” e do
suspiro aliviado de “menos um”, repetido exaustivamente quando esses “suspeitos” ou “criminosos” potenciais
são executados. MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre,
vol. 8, n.º 3, p. 371-385, set./dez. 2008. p. 341.
442
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 355.
443
WACQUANT, Loic. Foucault, Bourdieu et l’état pénal à l’ère néolibérale. In: ZAMORA, Daniel (Org.).
Critiquer Foucault : Les Années 1980 et la Tentation Néolibérale. Bruxelles: Ed. Aden, 2014. p. 121.
192

A partir desse cálculo, a vida passa a ser pautada extensiva e intensivamente pelos
domínios securitários e previdenciários. Esses domínios, compreendidos em sentido alargado
como conjunto de cálculos que movem as engrenagens da dinâmica de riscos e seguros,
periculosidade e vigilância, custos e benefícios, serão os moldes de organização das sociedades
securitárias-empresariais, para as quais vigiar e punir são contrapartidas indispensáveis do
guardar, acumular e proteger.
Instrumentos provenientes da estatística são assimilados e tornam-se, por excelência, os
indicadores de compreensão das variáveis sociais e econômicas, cujos referenciais são as grades
analíticas e os gráficos matemáticos. Com base neles, toda uma rede de ajustes modulados,
imprescindíveis para o governo das vidas e para economia das punições são planejados.
Modelar a realidade, traçar limites e estabelecer balanços, com o objetivo de tornar mais efetiva
sua assertividade, convertem-se em imperativos no tratamento de problemas que estão na lista
de prioridades dos Estados.
Por esse motivo, os dispositivos de segurança mobilizados para o controle, o
monitoramento e a gestão de campos estratégicos são, atualmente, alvos prioritários de atenção
e investimento por parte de todos os governos. É preciso governar os corpos, mas
principalmente, as subjetividades e os interesses. Configura-se, assim, uma preocupação
constante de investimento na securitização da vida cuja contrapartida é o “fazer morrer”
daqueles cujas condutas são identificadas, no contrato racial e social do neoliberalismo, com a
periculosidade orgânica.
Ora, é sintomático, todavia, que os campos da segurança pública e criminal sejam
investigados de modo secundário nas análises políticas neoliberais, quando é patente o papel
capital que desempenham hoje – quer da perspectiva das elevadas quantias movimentadas nos
orçamentos público-privados, quer nas intervenções militarizadas em prol da “segurança
cidadã”, ou na complexidade dos modos de subjetivação a que ensejam. Os mecanismos
modulados e diferenciais, as ameaças e a judicialização permanente da vida, nesse sentido,
constituem uma “[...] verdadeira inflação legal, inflação do código jurídico-legal para fazer esse
sistema de segurança funcionar”.444
Porque, para a manutenção da ordem social e da seletividade do sistema penal, exigem-
se sacrifícios. Daí, a outra face da segurança, nas formas da razão de Estado, ser o controle
social violento, que tem como paradigma securitário o incremento da letalidade do sistema
penal. Segundo Zaffaroni,

444
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 9.
193

[...] Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de criminalizar


reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal
está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim,
para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida,
naturalmente aos setores vulneráveis. Esta seleção é produto de um exercício de
poder que se encontra, igualmente em mãos dos órgãos executivos, de modo que
também no sistema penal ‘formal’ a incidência seletiva dos órgãos legislativo e
judicial é mínima.445

Esse sistema estigmatizante encontra sua legitimidade no discurso de ressocialização


do criminoso quando, na verdade, atua de forma embrutecedora e degradante em relação à
figura social dos grupos encarcerados. O processo de marginalização social, pela via da
intervenção penal, culmina por desumanizar os inimigos construídos e produzir a exposição à
morte e o extermínio de corpos naturalmente descartáveis, residuais. O que reproduz,
finalmente, a violência contra a qual imagina reagir446.
Interessante ressaltar não apenas o papel significativo desempenhado pelas instâncias
jurídicas e penitenciárias no contexto penal, mas também aquele realizado pelas polícias, que
definem cotidianamente quais as condutas desviantes serão enquadradas como tais, de acordo
com os estereótipos de raça, de classe e de posição social em questão, mediante a leitura dos
signos corporais. Há, então, indivíduos mais ou menos vulneráveis ao sistema penal, de modo
que, nas sociedades “livres” neoliberais, são reforçados os mecanismos de segregação social e
racial. Por isso, a resposta criminalizante dos desvios “[...] requer, sem dúvida alguma, uma
referência direta e personalizada ao autor, em sua condição pessoal e na situação particular em
que teria levado efeito tal conduta”447.
Não deixa de ser curioso, igualmente, o debate suscitado em torno da privatização das
prisões quando o superencarceramento passa a ser uma realidade. Se a liberdade é um dos
valores centrais do mercado neoliberal e a segurança o seu produto rentável, a pena privativa
de liberdade, em contrapartida, se torna o mecanismo privilegiado da burocracia penal em
resposta às desordens inerentes à disseminação da insegurança social e da consequente

445
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2001. p. 27. Grifo do autor.
446
Em um debate com militantes maoístas, publicado em 1972 na revista Les Temps Modernes, Foucault articula
a questão racial intrínseca ao modelo “extrativista” da colonização à barreira ideológica erigida pelo racismo, com
o objetivo de impedir que entre “pequenos brancos” e os colonizados se instituíssem alianças ou vínculos de
solidariedade. Foucault sugere, ademais, que a manutenção dessa barreira, nas sociedades modernas, seria
assegurada pelas prisões, que teriam “estreita relação com o racismo”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 52.
447
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: A perda da legitimidade do sistema penal. Rio de
Janeiro: Editora Revan, 2001. p. 258.
194

marginalização urbana. Se “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”448, ele aporta
diretamente nas instituições de confinamento penal.
Nas brechas da discussão acerca da legitimidade de punir, na fenda instaurada entre a
função da prisão e o objetivo da empresa, multiplicam-se as situações violatórias e se reiteram
as críticas ao cárcere como instrumento de controle social e de manutenção do status quo. Com
o agravante de, associado à lógica das empresas, ser revestido da operação inerente ao capital
privatista: gerar lucro por meio da expansão de sua clientela. Daí a prevalência da defesa do
encarceramento em detrimento de alternativas penais, que agravam a superlotação das unidades
prisionais, acentuam as práticas autoritárias no controle da violência e o racismo institucional
que impõe penas mais duras e rigorosas aos segmentos historicamente subalternizados: negros
e pobres449. Como nota Julita Lemgruber, a privatização das prisões:

É um negócio impulsionado pela caríssima política de “endurecimento” penal,


cujo suposto objetivo é reduzir a criminalidade e aumentar a segurança da
população, mas cujo real benefício acaba sendo uma maciça transferência de
recursos públicos para os que exploram a chamada “indústria de controle do
crime”: como se ouve freqüentemente entre empresários do setor, “é só construir
[as prisões] que eles [presos] virão” (“build and they will come”). O que significa
também uma crescente subordinação do Sistema de Justiça Criminal aos
interesses dessa “indústria”: quanto mais repressivo o sistema, mais ela cresce;
quanto mais alta a taxa de encarceramento, melhor.450

Endurecimento dos castigos, o terror do espetáculo penal, lucros garantidos. Afinal, a


“defesa social” e a luta contra a criminalidade movimentam montantes expressivos dos
orçamentos públicos e privados. Elas reafirmam a estratégia repressiva, distribuem e regulam
a violência do Estado, ao qual caberá decidir pela “[...] difusão de emergências vinculadas ao
medo e ao caos”451. Extrair o lucro político e econômico do crime e da criminalidade é o

448
O RAPPA. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Rio de Janeiro: Sony. 1994. Disco sonoro.
449
Segundo o IPEA, em relatório de pesquisa divulgado em 2015 e intitulado A aplicação de penas e medidas
alternativas no Brasil, o rigor da Justiça Criminal com negros é maior comparado aos brancos, que têm mais
acesso às penas alternativas: "Existe um maior número de réus negros nas varas criminais, onde a prisão é a regra,
e maior quantidade de acusados brancos nos juizados, nos quais prevalece a aplicação de alternativas penais",
informou o estudo. Pode-se concluir, sem dificuldade, que há nas próprias instâncias do direito penal “processos
de construção de desigualdades e de reprodução de opressões nas instituições brasileiras, que conferem a cor negra
aos nossos cárceres”. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150325_relatorio_aplicacao_penas.pdf.
Acesso em: 1 out. 2018.
450
LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Think Tank. São Paulo, vol. 15, p. 1-29, jun.
2011. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2011/06/Controle-da-
criminalidade_mitos-e-fatos.pdf. Acesso em: 24 set. 2018.
451
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:
Revan, 2003. p. 51.
195

imperativo do governo da emergência e da produção ativa de ambientes seguros pela regulação


e gestão do extermínio calculado.
Pois, esse governo, enquanto desdobramento da governamentalidade necrobiopolítica
neoliberal, não substituiu, como uma linha contínua de sucessivas evoluções, o poder soberano
e o disciplinar. Muito pelo contrário. É no bojo dessa racionalidade que se constata, junto às
tecnologias de vigilância, a proliferação das ações do poder soberano dos Estados, quando
estabelecem o corte e decidem quem pode viver e quem deve morrer. Em relação a isso, atenta
Foucault:

Vocês não têm mecanismos de segurança que tomam o lugar dos mecanismos
disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurídico-legais. Na
verdade, vocês têm uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar,
claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se
complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais
exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os
mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança.452

A segurança se torna, desse modo, uma das principais preocupações normativas da vida
nos regimes democráticos da atualidade. A experiência habitual evidencia que essa preocupação
tem um fundamento real, na medida em que se vê um alargamento crescente do uso das
tecnologias de segurança, cada vez mais recorrentes, que perscrutam de cima a baixo a vida dos
governados. Elas operam pela via das medições e aferições biométricas, da vigilância
ininterrupta das câmeras de segurança, dos identificadores digitais e das nanotecnologias, dos
monitoramentos algorítmicos, enfim, de uma gama de controles computo-informacionais e
institucionais, que visam ao governo e à normalização das condutas. Vinculado a isto:

No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de
distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em
serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos
muros das prisões assomam entre os principais fatores de “confiança dos
investidores” e, portanto, entre os dados principais considerados quando são
tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor
policial possível é a melhor coisa (talvez a única) que o Estado possa fazer para
atrair o capital nômade a investir no bem-estar dos seus súditos; e assim o caminho
mais curto para a prosperidade econômica da nação e, supõe-se, para a sensação
de “bem-estar” dos eleitores, é a da pública exibição de competência policial e
destreza do Estado.453

452
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 10. Tradução minha.
453
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 128.
196

Constata-se como a governamentalidade neoliberal intensificou o gerenciamento das


populações se apoiando em práticas concorrenciais e de autoinvestimento produtivo. Se, por
um lado, essa arte de governo produz as liberdades de que necessita, dispondo delas, por outro,
consome e anula permanentemente essas mesmas liberdades. Não é de se estranhar, portanto,
que essa dinâmica de produção-destruição contínua necessite recorrer a uma série de coerções,
chantagens e ameaças que recolocam continuamente os indivíduos, em diversos graus, em
contato com a insegurança. Sob o signo do perigo, a liberdade se erige como sustentáculo
fundamental de um modelo societário que não cessa de recolocá-la em jogo permanente.
O que tem se trazido à tona, ademais, são as novas formas ainda mais complexas de
controle, assujeitamento e disciplina que passam por instrumentos de vigilância
individualizados, coleta de dados e classificação dos sujeitos que vão muito além do modelo do
“panóptico” como paradigma para se pensar a vigilância hoje. Porque o que se discute
atualmente nos termos da governamentalidade algorítimica indica que as práticas de perfilação
e categorização com o apoio de “metadados”, fornecidos pelas tecnologias digitais,
protagonizadas tanto por grandes empresas quanto pelos Estados, operam pela “digitalização
da vida própria”, segundo Antoinette e Rouvroy e Thomas Berns454.
Isso consiste em uma forma de controle que articula, simultaneamente, dispositivos de
detecção, de classificação e de orientação de comportamentos – passíveis de serem antecipados,
devido a interpretação de dados gravados. O que se constitui como “[...] um poder que reside
nos algoritmos de correlação estatística, articulado para um ‘controle’ ou mais ainda, uma
antecipação de um novo tipo”455 nas sociedades “digitais”. E que redimensionaria as
configurações de governo e modulação das condutas, cujos efeitos e tecnologias não deixam de
afetar as instituições e as práticas sociais.
É a partir dessa dinâmica de promoção da liberdade e de penalização acentuada que se
privilegiam os dispositivos de segurança como instrumentos técnicos essenciais da
governamentalidade política, haja vista que:

A todos esses imperativos – zelar para que a mecânica dos interesses não
provoque perigo nem para os indivíduos nem para a coletividade – devem
corresponder estratégias de segurança que são, de certo modo, o inverso e a
própria condição do liberalismo. A liberdade e a segurança, o jogo liberdade e
segurança – é isso que está no âmago dessa nova razão governamental cujas
características gerais eu lhes vinha apontando. Liberdade e segurança – é isso que

454
ROUVROY, Antoinette; BERNS, Thomas. Le nouveau Pouvoir Statistique: ou quand le controle s’exerce sur
un réel normé, docile et sans événement car constitué de corps “numériques”... Multitudes, n.º 40, p. 88-103. 2010.
455
Idem, p. 88-9.
197

vai animar internamente, de certo modo, os problemas do que chamarei de


economia do poder própria do liberalismo.456

Vê-se formar, desse modo, um nexo inextrincável entre liberdade e segurança no


interior dos neoliberalismos, que tornam o Estado, apesar dos pretensos esforços de
minimização da interferência no âmbito econômico, altamente intervencionista do ponto de
vista político-penal. O tratamento da criminalidade, sob o prisma de uma análise disciplinar que
precede ao crime, acarreta na consolidação de uma cultura punitiva, estruturalmente e
institucionalmente racista.
A economia das penas e dos castigos que acompanha a governamentalidade neoliberal
demonstra a expansão das “[...] funções instrumentais e simbólicas do aparelho penal”457, que
reorienta o Estado social em direção ao Estado penal. Essa refuncionalização é levada a cabo
por meio da burocracia beligerante e da lógica punitiva que justifica a letalidade estatal e a
dominação étnico-racial. Porque a penalização insidiosa que acossa os governados como
contenção punitiva atinge, de modo diferenciado, os sujeitos econômicos. Há os capitais
humanos de maior valor e outros menos valorados, pois os critérios étnico-raciais, de classe e
de nacionalidade são fatores que mobilizam distintas estratégias das políticas de segurança
pública. É para esse fato que atenta o professor Trent Hamann, da St. John’s University, quando
lembra que “[...] a abordagem neoliberal para lidar com a pobreza, o desemprego e a falta de
moradia crescentes não é simplesmente ignorá-los, mas impor julgamentos punitivos por meio
de efeitos moralizantes de sua racionalidade política”.458 Assim, a gestão social dos estados
desloca-se para a gestão punitiva da miséria, dos corpos racializados e da marginalidade urbana,
identificadas pelo Leviatã neoliberal como mais propensos ao crime.
Despolitizam-se, de outro lado, os conflitos sociais e consagram-se os controles
punitivistas, cujos efeitos moralizantes refletem-se no aumento avassalador das populações
carcerárias ao redor do globo. Tratadas como criminosas, populações precarizadas e em
situação de vulnerabilidade social são alvos fáceis de um poder que ainda exerce seu direito de
morte e poder sobre a vida, em nome da segurança e da ordem coletivas contra alteridades
portadoras do perigo imanente.

456
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p.89.
457
WACQUANT, Loic. Foucault, Bourdieu et l’état pénal à l’ère néolibérale. In: ZAMORA, Daniel (Org.).
Critiquer Foucault: Les Années 1980 et la Tentation Néolibérale. Bruxelles: Ed. Aden, 2014. p.114-131.
458
HAMANN, Trent. H. Neoliberalismo, Governamentalidade e Ética. Revista Ecopolítica, São Paulo, n.º 3,
mai./ago. 2012. p. 112. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/issue/view/755/showToc.
Acesso em: 20 jun. 2018.
198

“No pain, no gain”

Acrescenta-se a essa criminalização, salienta Foucault, que “[...] não há liberalismo sem
cultura do perigo”459. Ser uma unidade-empreendedora de si exige viver inteiramente e
intensamente no risco. E são os riscos de mercado que demandariam, por sua vez, recurso às
tecnologias securitárias, na medida em que, “[...] em seu discurso, o risco é dado como uma
dimensão ontológica”460, isto é, correr riscos passa a ser inerente a uma vida de investimentos,
empreendimentos e atividade:

Isso, claro, acarreta certo número de consequências. Podemos dizer que, afinal de
contas, o lema do liberalismo é “viver perigosamente”. “Viver perigosamente”
significa que os indivíduos são postos perpetuamente em situação de perigo, ou
antes, são condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu
futuro como portadores de perigo. É essa espécie de estímulo do perigo que vai
ser, a meu ver, uma das principais implicações do liberalismo461.

Interessante sublinhar, porém, que a gestão social e política dos riscos, na concepção
neoliberal, é individualizada. É assim que os perigos são perpetuamente (re)produzidos,
atualizados e colocados em circulação. Se o risco é englobado pelas esferas de mercado,
tornando-se comercializável – e rentável –, não há grande novidade em constatar que a
produção do sujeito do risco tem como contraface a geração do sujeito da segurança privada.
Todos se tornam responsáveis individuais pelo seu futuro, às expensas do comum e da dimensão
coletiva da existência, e transformam-se em unidades “autorreferenciadas”, ou no que Ulrich
Beck chama em A Sociedade do Risco, de “[...] agentes de sua própria subsistência, mediada
pelo mercado”.462

A ideia de uma privatização dos mecanismos de seguro, em todo caso a ideia de


que cabe ao indivíduo, pelo conjunto das reservas de que ele vai poder dispor, seja
a título simplesmente individual, seja por intermédio das sociedades de ajuda
mútua etc., [proteger-se dos riscos] esse objetivo é, apesar de tudo, o que vocês

459
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 91.
460
DARDOT Pierre ; LAVAL, Christian. La Nouvelle Raison du Monde: Essai Sur la Société Néolibérale. Paris:
Éditions La Découverte, 2009. p. 428. Tradução minha.
461
FOUCAULT, Op. cit., p. 90. Grifos meus.
462
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2011. p. 133 et seq.
199

vêem em ação nas políticas neoliberais [...] É a essa tendência: a política social
privatizada.463

Com a governamentalidade e a entrada da questão do Estado no campo de análise do


micropoder, concebendo esse último como “[...] efeito móvel de um regime de
governamentalidades múltiplas”464, o problema da segurança e da economia das punições, no
interior de uma arte neoliberal de governo, chegará a certos impasses. A questão da vigilância
disciplinar, é bem verdade, não desaparece desse horizonte, como se mostrou anteriormente,
pois a racionalidade política que se liga ao gerenciamento estatal dos problemas próprios às
populações demanda a normalização disciplinar. Porque se essa tecnologia de governo se
preocupa, de um lado, com as variáveis globais que envolvem os planos sanitário,
epidemiológico e econômico, permanece indispensável, de outro, o investimento e a
intervenção, em profundidade, no nível dos comportamentos.
Será preciso, então, não punir menos, porém punir melhor. Vê-se surgir uma concepção
que funda o programa de gestão e da economia política dos ilegalismos. Conforme afirma
Foucault465, “[...] a boa política penal não tem em vista, de forma alguma, uma extinção do
crime, mas sim um equilíbrio”466. Nesse cenário, curvas de ofertas de crime serão toleráveis,
pois é preciso governar a desordem e seus efeitos mais do que buscar “a solução final” para a
questão do crime. Antes disso, é no bojo de um cálculo político-econômico e da gestão ótima
das ilegalidades que repousa a questão da permissão-repressão dos delitos, da penalização e de
seu reverso, a impunidade:

O ilegalismo não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. É


um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel está
previsto na estratégia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo organizou
espaços protegidos e aproveitáveis, em que a lei pode ser violada, outros, em que
ela pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infrações são sancionadas. No
limite, eu diria, simplesmente que a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de
comportamento, mas para diferenciar as maneiras de burlar a própria lei.467

463
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 198-199.
464
Idem, p. 106.
465
Diversas considerações nesta direção já haviam sido tecidas por Foucault em Vigiar e Punir. Ver FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 37ª. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 243 et seq.
466
FOUCAULT, Michel. Op. cit, p. 350.
467
FOUCAULT, Michel. “Gerir os Ilegalismos” [Entrevista, 1975]. In: POL-DROIT, Roger. Michel Foucault :
Entrevistas. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. São Paulo: Edições Graal, 2006. p. 50.
200

A arte governamental securitária consiste, sobretudo, em um controle de fluxos, baseado


no discurso das “razões de segurança”, com vistas a governar os efeitos advindos das crises que
irrompem, de tempos em tempos, no seio da racionalidade neoliberal. Crises, aliás, que das
catástrofes ambientais aos terrorismos transnacionais, reforçam o discurso da centralidade dos
mecanismos de segurança em meio à suspensão da “ordem normal” do fluxo das coisas.
O paradigma necrobiopolítico da segurança traz para o primeiro plano “[...] o problema
da circulação e da regulação dos fluxos”468. Intervir no meio e controlar os processos de
produção e de captação das forças exige a produção simultânea da liberdade e seu
cancelamento, pois a segurança é a síntese de todos os medos. Maximizar a imprevisibilidade
e redistribuir de modo desigual os riscos socialmente reconhecidos significa tanto diferenciar
segundo a capacidade de prevenção de cada um, que escalona os grupos de acordo com uma
escala de exposição diferenciada aos danos, como operar a regulação específica de raça e de
classe que multiplica os riscos de morte a uns mais do que a outros.
É assim que a securitização da vida, em suas variadas estratégias de conjunto, da
seguridade social à segurança pública, destina-se a gerir os riscos voltados aos “perigos” da
vida cotidiana e que tendem a “[...] conceder a cada um uma espécie de espaço econômico
dentro do qual podem assumir e enfrentar os riscos”469. É certo que isto desempenha um papel
fundamental para a progressiva “governamentalização” do Estado, com seus programas de
gerenciamento dos riscos sociais passíveis de atingir as diferentes camadas da população470.
Sob o paradigma da segurança, é necessário:

Proteger o interesse coletivo contra os interesses individuais. Inversamente, a


mesma coisa: será necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que
puder se revelar, em relação a eles, como um abuso vindo do interesse coletivo. É
necessário também que a liberdade dos processos econômicos não seja um perigo,
um perigo para as empresas, um perigo para os trabalhadores. A liberdade dos
trabalhadores não pode se tornar um perigo para a empresa e para a produção. Os
acidentes individuais, tudo o que pode acontecer na vida de alguém, seja a doença,

468
GROS, Fréderic. Direito dos Governados, Biopolítica e Capitalismo. In: NEUTZLING, Inácio & RUIZ, Castor
M. M. Bartolomé. (Org.). O (des)governo biopolítico da vida humana. São Leopoldo: Casa Leiria, 2011. p. 121.
469
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 198.
470
Nesse sentido, Cf. CASTELO BRANCO, Guilherme. A Seguridade Social em Michel Foucault. Revista
Ecopolítica, São Paulo, n.º 5, p. 40-53, jan./abr. 2013. Disponível em:
http://www.pucsp.br/ecopolitica/revista_ed5.html. Acesso em: 01 jul. 2017. Igualmente, Foucault, na aula de 14
de fevereiro de 1979 do curso Nascimento da Biopolítica, irá afirmar que, no que concerne à razão neoliberal:
“Uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo. Ao contrário, ela deve deixar a desigualdade agir
[...] o jogo econômico, com efeitos desigualitários que ele comporta, é uma espécie de regulador geral da
sociedade, a que, evidentemente, todos devem se prestar e se dobrar.” (FOUCAULT, 2008, p. 196).
201

seja esta coisa que chega de todo mundo, que é a velhice, não podem constituir
um perigo nem para os indivíduos nem para a sociedade.471

Nesse pacto de segurança, em que seguridade e risco são complementares, a produção


de liberdade é análoga à multiplicação dos dispositivos de segurança, de vigilância e de
controle. No horizonte da modernidade/colonialidade tardia, governar de modo eficiente a
realidade centrada no mercado tornou-se um problema capital.
Ou, talvez, o problema do capital global conectado à emergência de uma arquitetura
transnacional da segurança. Não é de admirar, assim, que a razão (ba)bélica e a razão
criminológica estejam imbricadas e que se organizem em torno do significante da democracia,
cuja definição se coloca perenemente em disputa, atravessada, no modo de governo neoliberal,
pela linha de corte necrobiopolítica e pela cisão entre os inimigos/delinquentes/suspeitos e os
“cidadãos de bem”.
E não é apenas isso. Os fluxos securitários de controle dos corpos se materializam nas
redes capilares de individuação e de subjetivação pelo medo. Eles culminam na paranoia
generalizada da constituição de faixas de fronteira, muros e zonas de segurança, no interior das
quais os antagonismos rearticulam a selvageria “natural” dos mercados ao modo de ser
fundamentado na regulação moral pela economia e modulada pela insegurança experimentada
em graus diferenciados por cada indivíduo.
Pois, tudo se torna fundamentalmente rentável no mercado dos afetos neoliberais: a
solidão, o amor, o medo. E, até mesmo, os bois de Guimarães Rosa podem perceber com
acuidade o que se passa: “Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a
pressa… O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho…”472.
Pressa sem caminho ou todas as veredas numa via só, com “arrocho de autoridade”473: – o
caminho da servidão.

471
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
p. 89.
472
GUIMARÃES ROSA, João. Conversa de bois. In:_____. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
473
GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 19.
202

6 TREMOR E TERROR: DO ESTADO DE TERROR AOS TERRORISMOS DE


ESTADO

Na verdade existem muitos jeitos de fazer cadáveres.

Juan Pablo Villalobos, Festa no covil

Nas neuroses de guerra, [...] o que se teme é, afinal, um inimigo interno.

Sigmund Freud, Introdução à psicanálise das neuroses de guerra

Quando ver é perder: 1964...2016...

Diante de um arquivo inquietante, que nos interpela do fundo de seu silêncio, como
resistir? Como resistir a essa febre que devora identidade e pertença, como papel lambido
descuidadamente pela chama, e o “mal de arquivo” que nos denuncia muito mais próximos da
violência de Estado do que supúnhamos?
No alto da estante de ferro, não havia caixa de Pandora. Havia uma velha pasta verde
de fotografias, quase esquecida, de elástico frouxo e laterais carcomidas. Há alguns anos,
resolvi abri-la, fascinado por esse inventário de fragmentos temporais que, por um misterioso
traço consaguíneo e espectral, significa simultaneamente a presença do passado e o futuro de
uma destinação secreta, arquivos do resto. Talvez esse fascínio fosse sobretudo pelo mal-estar
diante da morte; ou, ainda, o contínuo trabalho de um luto em atividade que nos lança em
direção ao que perdemos e que se releva como parte de um mundo comum ausente, a uma
língua morta.
A pasta, como sarcófago, guardava relíquias em seu interior. Eram as poucas fotografias
dos mortos da família: indícios de desaparecimento de fantasmas de rostos variados, de nomes
desconhecidos, de identidades perdidas, rastros de narrativas que já não podemos reconstruir.
Se a fotografia indica a suspensão do tempo, como escreveria Barthes em A Câmara Clara, não
deixa de ser curioso como as imagens, por estranha magia, podem operar à distância em sua
obra de perda, “o retorno do morto”474 – o vestígio, o traço, a ruína.
Ao escavar as camadas da pasta, descubro ao fundo uma foto em especial. Um spectrum
me olha fixamente. Vi, com um espanto irredutível, aquele homem de terno preto que marchava
na rua do Centro num dia 1º. de abril de 1964. Assombrado, leio no verso seu nome “Camilo

474
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 20.
203

Monteiro dos Santos”. Camilo foi um tio, que não conheci, e que trabalhou como advogado e
despachante do Estado da Guanabara na década de 1960. Na dedicatória da foto, que se
endereça a seu pai de criação, o orgulho de defender a pátria brasileira é manifesto. Paro diante
da imagem por longo tempo. Examino. É como se descobrisse nessa fotografia um vínculo
estranho e secreto que me ligasse, violentamente, àquilo contra o que grande parte do meu
trabalho de pesquisa se direciona. Espectador dessa imagem, perco o chão. Princípio mesmo
da dialética do olhar, nas palavras de Didi-Huberman, “[...] quando ver é sentir que algo
inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí.”475
Tudo estava lá, ali. A marcha do dia 1º de abril no Centro da cidade do Rio de Janeiro
objetivava expressar o apoio da sociedade civil ao regime excepcional que destituiria o
presidente democraticamente eleito, João Goulart, e instauraria uma ditadura militar no país.
“Marcha da vitória”, em sua expressão celebrativa, a passeata no Rio era um desdobramento
das Marchas da Família com Deus pela liberdade, que se multiplicaram por todo país a partir
da marcha paulista de 19 de março daquele ano.
Camilo não pôde ver o que se passou ao longo dos vinte e um anos que se seguiram ao
Golpe de 64. Eu nasceria no início da década de 1990, já no período democrático do país. Entre
sua morte e meu nascimento, há um hiato. Um triste entreato. Nenhum de nós foi testemunha
ocular do regime de exceção brasileiro. Mas, como dois espectros, olhamo-nos longamente, à
distância, em perspectiva.
Fecho a pasta e encerro as fotografias novamente em seu sepulcro. A imagem, porém,
me acompanha obstinadamente, grita em silêncio – persiste. Sobretudo, porque não se trata
apenas do que foi; mas, do que, estranhamente, permanece como restância nesse tempo, vivo
no presente como semente pronta a germinar diante do menor descuido, fruto da amnésia
histórica de um tempo encerrado em pastas e arquivos não exumados. Como a face oculta de
nossa própria história, cuja dívida permanece em aberto, sem perdão, sem anistia.
Quando o passado de opressão está no plano coletivo, com reverberações autoritárias
evidentes no tempo presente, é preciso rememorar o que nos encara de frente. Os gregos,
recorda Barthes, “[...] entravam na morte caminhando para trás: o que tinham diante deles era
o passado”476. Diante da morte, das imagens ou do tempo perdido, é preciso despertar do

475
DIDI-HUBERMAN. Georges. O Que Vemos, O Que nos Olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010.
p. 34.
476
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984. p. 106-107.
204

passado, “[...] pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes?”477. Ouvir
essas vozes talvez seja uma das tarefas políticas mais urgentes da atualidade. Principalmente
quando se somam às marchas do passado os gritos pela intervenção militar no presente, que nos
desafiam, nesse rumor, a abrir uma vez mais os nossos próprios arquivos478.

Apesar de vocês

O legado da violência de Estado nos países latino-americanos, fruto dos regimes


ditatoriais e da experiência colonial, marcou profundamente a singularidade das expressões
políticas que se seguiram à restauração democrática. Os golpes de Estado deixaram cicatrizes
abertas no corpo social e permanências de práticas violentas e autoritárias facilmente rastreáveis
na dinâmica política subsequente, com a convivência simultânea dos Estados democráticos de
direito, formais, e dos estados de polícia.
A herança das violências políticas que se discute hoje, principalmente nos termos da
justiça de transição (direito à memória, verdade, justiça e reparação), dos direitos humanos e
dos terrorismos de Estado, materializou-se nas investigações conduzidas pelas Comissões da
Verdade479 ou de Desaparecimento de Pessoas de diversos países latino-americanos480. As
graves violações aos direitos humanos cometidas sob a chancela dos regimes autoritários foram
e são paulatinamente trazidas à luz, não só acolhendo e conduzindo para o espaço público de

477
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol. I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.
223.
478
A fotografia consta no Anexo B desta tese (p. 251).
479
Para aprofundar essa discussão e acessar os documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV)
brasileira, cf. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php Acesso em: 20 dez. 2018.
480
Desde sua primeira sentença, no caso Velasquez Rodrigues vs. Honduras, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) afirma o caráter pluriofensivo do desaparecimento forçado de pessoas: “O desaparecimento
forçado de seres humanos constitui uma violação múltipla e continuada de numerosos direitos reconhecidos na
Convenção [...]. O sequestro da pessoa é um caso de privação arbitrária da liberdade que compromete,
adicionalmente, o direito da pessoa detida de ser conduzida sem demora à presença de um juiz e a impetrar os
recursos adequados para controlar a legalidade de sua detenção, o que infringe o artigo 7 da Convenção. [... ] Além
disso, o confinamento prolongado e a incomunicabilidade coativa a que se vê submetida a vítima representam, por
si mesmos, formas de tratamento cruel e desumano, que lesam a [integridade] psíquica e moral da pessoa e o
direito de todo detido ao respeito da dignidade inerente ao ser humano, o que constitui, por sua vez, uma violação
das disposições do artigo 5 da Convenção [...]. Ademais, as investigações realizadas em casos de desaparecimentos
e os depoimentos das vítimas que recuperaram sua liberdade demonstram que tal prática abrange ainda o
tratamento desumano outorgado aos presos, os quais se veem submetidos a todo tipo de vexame, tortura e outros
tratos cruéis, desumanos e degradantes, violando também o direito à integridade física, reconhecido no mesmo
artigo 5 da Convenção. A prática dos desaparecimentos, enfim, tem resultado, com frequência, a execução dos
presos, em segredo e sem submetê-los a julgamento, seguida da ocultação do cadáver com o objetivo de apagar
todos os vestígios materiais do crime e buscar a impunidades daqueles que o cometeram, o que implica uma brutal
violação do direito à vida, reconhecido no artigo 4 da Convenção.” CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. Sentença de 29 de julho de 1988, par. 155-157.
205

rememoração e de elaboração dos traumas sociais os testemunhos das vítimas envolvidas, mas
aprofundando o debate sobre a construção permanente da democracia e do Estado de direito.
A resistência a esses processos jurídico-políticos expõe as tensões que envolvem a
sociedade civil, as instituições políticas e o Estado, e as versões em disputa a serem legitimadas
por uma escrita da história que não cessa de “[...] unir o estudo dos mortos ao tempo dos
vivos”481 e de apresentar os conflitos entre memória e história, testemunho e relato,
descontinuidades e permanências que não se separam da dor política e do exercício do poder
no nível da vida.
Em campos distintos, tem-se, de um lado, a massa discursiva, os aparatos
administrativos e burocráticos produzidos pelos agentes e instituições do Estado, com a
pretensão de recobrir todo âmbito da vida política e social, sem resíduos; de outro, os
testemunhos traumáticos, os relatos singulares de sujeitos cujas vidas foram atravessadas pelos
efeitos violentos do poder, do choque entre suas existências singulares e o terror de Estado.
Que a violência física e o assassinato político sejam os gestos mais emblemáticos da
experiência do terror, não há dúvidas. Mas, há ainda uma violência suplementar, simbólica, que
faz desaparecer mesmo “[...] a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar o
nome”482. Apagados “a memória do nome” e o “nome como memória”, resta o inominável “[...]
cuja voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referência alguma”483.
Exilados do universo simbólico, os fantasmas retornam no real como lembrança do que não
pode ser esquecido. Como aparência do que, redivivo, resiste a uma segunda morte, na “[...]
tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado
desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um
presente evanescente.”484
Mosaico de notas, fotografias, inquéritos, boletins, registros orais, documentos secretos
e censurados. Os processos de negociação e de repactuação das memórias em disputa justapõem
versões que colocam em campos opostos os agentes estatais e os sujeitos privados de direitos
pela via da exceção jurídica. Mas se “[...] cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
‘política geral’ da verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como

481
BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. Paris: Armand Colin, 1993. p. 97.
482
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Tradução Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 140.
483
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson.
(Org.) O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 238.
484
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 44
206

verdadeiros”485, como ressaltaria Foucault, as estruturas políticas do Estado atuam de modo a


formalizar as narrativas oficiais produzidas por seus agentes, muitas vezes com recurso a
práticas, como a tortura, que aniquilam a possibilidade de existência social da verdade.
Se o estado de exceção atua de modo a “[...] reduzir a legalidade à dimensão de
aparência”486, o poder soberano se exerce por meio da submissão do ordenamento jurídico à
decisão arbitrária que suspende a lei e modifica as regras do jogo conforme interesses políticos.
Flexibilizar ou endurecer a aplicação da lei segundo a conveniência torna-se o mecanismo de
funcionamento de uma economia penal e jurídica que conjuga lei e anomia; aparatos
securitários e ilegalismos; o dispositivo de terror estatal e o discurso da segurança.
Se, como propõe Safatle lendo Schmitt a contrapelo, “é soberano aquele que define
quem é terrorista”487, o caráter político do uso do termo pelo Estado será o marco de exclusão
que determina quem será sujeito de direitos ou não. Sustenta-se, assim, o argumento da defesa
interna e da violência de Estado serem ativados tanto como modo de resguardo da segurança
diante de ameaças exteriores como para “impedir ou repelir as atividades subversivas”488
praticadas em seu interior. Essa designação evidencia o subjetivismo que fixa a etiqueta de
terrorista a uns e a outros, não somente de acordo com a natureza dos atos, mas com a identidade
racial, social e ideológica dos sujeitos envolvidos.
Nesse contexto, cada indivíduo é considerado cidadão ou inimigo conforme os
parâmetros necrobiopolíticos e raciais que definem aqueles a serem combatidos belicamente ou
protegidos pelos atos de governo. Ainda que o estado de emergência vigore para todo corpo
social, as modulações da violência atingirão os corpos em graus diferenciados, de acordo com
o perigo biológico e racial representado por eles. O “Terror constitui, assim, o dispositivo
estatal de binarização total do corpo político, a politização total deste”489.

485
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: ___. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 2011. p. 12.
486
SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010. p. 11.
487
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson
(Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 239.
488
Segundo o Artigo 1º. da Emenda Constitucional N.º 11 de 1978, que alterou o disposto no Artigo 158 da
Constituição autoritária de 1967 e a sua Emenda Constitucional N.º 1 de 1969: “O Presidente da República ouvido
o Conselho Constitucional (artigo 159), poderá decretar o estado de emergência, quando forem exigidas
providências imediatas, em caso de guerra, bem como para impedir ou repelir as atividades subversivas a que se
refere o artigo 156.” BRASIL, 1978. Cabe ressaltar que a Constituição Federal de 1988, vigente no Brasil, dispõe
em seu Artigo 84 como uma das competências privativas do Presidente da República: “[...] IX – decretar o estado
de defesa e o estado de sítio; X – decretar e executar a intervenção federal”. É possível notar, assim, os rastros do
legado autoritário, apesar dos avanços democráticos consolidados na Carta Cidadã de 1988.
489
NODARI, Alexandre. O que é o Terror? (Notas a partir de Giorgio Agamben). Revista Diálogos
Mediterrânicos, Curitiba, n. 14, jun. 2018. p. 106.
207

Binarização, polarização e exclusão. Não é fortuito que o terror de Estado se torne o


modus operandi dos regimes excepcionais alçados a paradigma de governamentalidade em todo
o mundo. Ele é o alicerce das práticas políticas justificadas em nome da segurança de um
coletivo cindido e das técnicas de exclusão, intimidação e genocídio gestadas no interior de
regimes que fizeram da anomia e da violência “legal” a sua pedra angular.
O estado de exceção, sob a forma do estado de emergência ou do estado de sítio, já não
é apenas a prerrogativa constitucional diante de um estado de (des)governo e de urgência. Ele
é a técnica de governo de estado que não cessa de se apresentar como a forma por excelência
das práticas governamentais, fundida à normalidade do direito comum, no limite entre o estado
de direito e a pura imposição de um poder estabelecido.
A atuação estatal preventiva contra os riscos orienta o poder de polícia, justificando a
atividade coercitiva em razão dos acontecimentos emergenciais efetivamente ocorridos. O
emprego dos instrumentos de exceção nas democracias de corte neoliberal converte-se em “[...]
forma específica de organização do poder”490 dentro de um mercado global da violência,
especialmente voltado à marginalização e à produção serializada de morte dos corpos marcados
pelos estigmas raciais. Como aponta Thula Pires, “[...] a militarização da polícia e a banalização
de direitos e garantias fundamentais em nome da segurança nacional fortaleceram a verve
punitiva do Estado e, a despeito das narrativas hegemônicas, recaíram desproporcionalmente
sobre corpos não brancos”491.
Soma-se a isso o fato de que o terror de Estado passa a configurar uma estrutura que
mobiliza instituições e agentes estatais direcionada à prática e ao encobrimento da violação dos
direitos humanos, não-oficializada, mas tornada política pública pelas redes de repressão,
chantagem, intimidação e assassínio generalizadas. “Legalidade” extraordinária, o
autoritarismo e a violência adquirem as formas de uma normatividade excepcional, cujos
resquícios no ordenamento jurídico são positivados como instrumentos de defesa.
Mas não é apenas pela via dos instrumentos excepcionais que regulam situações de
emergência que os mecanismos suspensivos e relativizantes das garantias fundamentais são
ativados. As práticas de terror difusas, as violações sistemáticas dos direitos humanos e o legado
de violência institucional funcionam como “organizadores da vida política”, cabendo às forças
armadas o papel de “baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas” e “[...] o poder

490
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 14.
491
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de Janeiro. Revista Direito
& Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, n.º 2, 2018. p. 1063.
208

soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se


legalmente fora da lei”492.
Não admira assim que “[...] o terror se converte numa forma de marcar a aberração no
corpo político”493 e que a excepcionalidade levada a cabo pelos agentes estatais, sobretudo na
práxis das polícias urbanas militarizadas, normalize-se nos moldes do combate profilático aos
“anticorpos” desalinhados às condutas e aos modos de ser “dignos” de serem vividos. Pois “[...]
da perspectiva do Terror, todo não-amigo é não apenas um inimigo, como também um suspeito,
um terrorista – e todas as guerras se dão em nome da humanidade. Só pode haver Um – esse é
o horizonte da política quando o Terror entra em cena.”494
O terror de Estado é a negação radical do outro. Aniquilação física e ontológica do ser
outro, ele reduz a pluralidade dos modos de vida e de pensamento à paisagem plana, monótona
e sem contradições de um consenso forjado para a manutenção de privilégios e de hierarquias
incapazes de tensionar a ordem hegemônica. Todo corpo que opere resistência a esse estado de
coisas falsamente naturalizado pelo ideário do progresso, da nação e da segurança é passível de
ser neutralizado como inimigo – desordeiro, subversivo, criminoso. Fora do “um-só-corpo”,
aquele que se desprende do todo não se torna apenas adversário do Estado, mas de todos e da
própria espécie.
Enquanto inimigos, a linha de corte necro/biopolítica traçará nesses corpos os
contornos das fronteiras a serem conquistadas – na zona lodosa entre o vivível e o matável.
Território hostil, sua ultrapassagem irá requerer acesso truculento, absoluto e impetuoso. Pois
será preciso “tirá-los de cena, apagá-los do mapa”495 e retraçar as fronteiras entre a vida e a
morte à margem da legalidade, no limite das velhas periferias onde a exceção sempre foi a
regra.

Entre Kafka e Osama Bin Laden

492
ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da constituição brasileira de 1988. In:
SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 48.
493
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 23.
494
NODARI, Alexandre. O que é o Terror? (Notas a partir de Giorgio Agamben). Revista Diálogos
Mediterrânicos, Curitiba, n. 14, jun. 2018. p. 109.
495
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
vol. 92/93, p. 69-82, jan./jun., 1988.
209

O fato é que, como adverte o narrador-protagonista de Festa no Covil, de Juan Pablo


Villalobos, “na verdade há muitos jeitos de fazer cadáveres”496. Orifícios abertos a balas,
cortes com faca, facões ou guilhotinas. Há modos mais ostensivos de exercício da violência,
excessivos, quase teatrais na exposição da crueldade, como se lembrassem que o uso da força
tende sempre à desmedida e ao desequilíbrio quando empregado contra adversários.
Mas, há também outros modos mais sutis, que se perpetuam no interior das instituições,
nos acessos barrados e na burocracia estatal que restringe e relativiza direitos fundamentais: a
exceção democrática, recoberta pelo invólucro do direito meramente formal. A exceção que,
nas bordas da lei, trans-borda nas leis não escritas, no intervalo entre o oficioso e o silêncio
tácito das abordagens criminalizantes. Pois, as bordas são simbolicamente produzidas como
espaços de conflito por excelência, entre a lei e anomia, entre o inacessível e o alvo mais
atingível, entre o abandono e a tutela violenta dos corpos que caem. Elas são lugares, por
excelência, onde a liminaridade se instaura na zona cinzenta do não-ser, definida por um
princípio de exterioridade, de onde os códigos não só extravasam, mas derramam pelos orifícios,
como o sangue vertido que corre a céu aberto por entre vielas, becos, guetos e favelas.
Nomear tal estado como normalidade democrática dá a ver como as práticas político-
administrativas características dos operadores de regimes de exceção foram incorporadas ao
cotidiano. A gestão da situação de anomia, as brechas e buracos cavados nas leis – passíveis de
serem suspensas ou flexibilizadas – demonstram manifestamente como os direitos
fundamentais de grandes parcelas das populações podem ser lançados na vala comum do
discurso securitário, quando a conveniência assim o solicita. No interior desse fosso discursivo
jazem aquelas e aqueles que nada valem. Ou melhor, que só valem para fundamentar as práticas
sistemáticas de violência estatal e de anulação das liberdades individuais e coletivas, como se
suas existências significassem de antemão um débito: a queda no subterrâneo da lei.
Ou, talvez, nos porões, subsolos e calabouços da história. Pois, esse débito é desde
sempre uma dívida, uma culpa original, fruto da queda degeneradora, que todo sujeito que se
contraponha à ordem vigente deve portar. Às vezes, porém, o mero fato de ser já configura uma
ofensa, quando a identidade e a infração se indeterminam na tipificação criminalizante de perfis
raciais estereotipados. Para esses, o juízo final antecede os ritos judiciais, sem o devido processo
legal, porque a distribuição desigual da violência tem pressupostos raciais bem conhecidos, a

496
VILLALOBOS, Juan Pablo. Festa no covil. Trad. Andreia Moroni. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.
16.
210

que poderíamos chamar de a exceção da exceção, ou exceção-obsessiva, que, como indica o


radical latino do verbo obsedere, tem em vista “sitiar um local”, ocupar, esquadrinhar e
multiplicar a situação de exceção497.
Mas, o radical obcaecare designa também o “tornar-se cego”. A cega violência,
repetitiva, insidiosa, que não cede enquanto não destrói o inimigo à sua frente:

[...] Nesse caminho, os novos “condenados da Terra” são aqueles a quem é


recusado o direito de ter direitos, aqueles a quem é recusado o direito de ter
direitos, aqueles que se avalia que não devam se mover, os que são condenados a
viver em todo tipo de estruturas de reclusão – os campos, os centros de triagem,
os milhares de locais de detenção que se espalham por nossos espaços jurídicos e
policiais. São os rejeitados, os deportados, os expulsos, os clandestinos e outros
“sem-documentos” – esses intrusos e essa escória da nossa humanidade que temos
pressa em despachar, porque achamos que, entre eles e nós, nada existe que valha
a pena ser salvo, visto que eles prejudicam imensamente a nossa vida, a nossa
saúde e o nosso bem-estar.498

Com o objetivo de neutralizar as resistências potenciais, as dissensões ideológicas e


governar as populações com recurso ao medo e aos dispositivos de terror vigentes nos estados
de emergência, os regimes autoritários não deixaram de operar uma intercessão insistente entre
política, polícia e terror de Estado. Esses estados de exceção tornariam explícitos os nexos entre
política e violência de Estado, mesmo quando utilizam dos recursos legais como justificação de
sua pretensa legitimidade jurídica, via ordenamentos expedidos por operadores do sistema
legal. É no invólucro das razões de segurança e da manutenção da ordem constitucional que se
intenta blindar as medidas mais arbitrárias em um mundo de territórios e fronteiras cada vez
mais militarizados. Na esteira de Arendt,

[...] Na justificação moral, o argumento do mal menor tem desempenhado papel


proeminente [...] é um dos mecanismos embutidos na maquinaria de terror e
criminalidade. A aceitação de males menores é conscientemente usada para
condicionar os funcionários do governo, bem como a população em geral, a
aceitar o mal em si mesmo.499

497
Fanon lembra o quanto isto afeta diretamente os corpos dos envolvidos nesse processo violento, vítimas e
algozes: “Não foi só o terreno que foi ocupado. [...] O colonialismo [...] se instalou no próprio âmago do indivíduo
[...] e ali realizou um árduo trabalho de pilhagem, de expulsão de si mesmo, de mutilação racionalmente praticada.
[...] Nessas condições, a respiração do indivíduo é uma respiração observada, ocupada. É uma respiração de
combate. FANON, 1959 apud MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São
Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 284-285 [nota de rodapé].
498
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
306.
499
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento: Escritos morais e éticos. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 98-99.
211

O que não significa propor uma leitura do dispositivo político do terror de Estado como
uma razão essencialmente repressiva ou que operasse apenas por meio da coerção, do
silenciamento e da persecução. Afinal, o poder exercido sobre a vida liga-se indissociavelmente
à ideia de humanidade e aos modos de vidas que ele pretende forjar. O efeito disciplinar da
violência de Estado é potencializado por criminalizar, pela via das engrenagens jurídicas, as
múltiplas lutas e resistências à dinâmica do poder soberano desempenhado pelos agentes
estatais. Trata-se, então, de questionar, no cruzamento de mecanismos violentos e efeitos de
discurso, as práticas e o pensamento político envolvidos nessa arte específica de governo que
engendra os “monstros” a serem combatidos como inimigos do Estado e da humanidade.
Eis que essa arte de governar pelo terror produz uma manifestação específica de
autolegitimidade, na forma dos procedimentos que engendram os jogos de verdade que são
característicos dos exercícios de poder dos terrorismos de Estado. E isso em um triplo
movimento. Cria-se o problema da insegurança e da ameaça iminente, face ao menor risco de
contestação das estruturas hegemônicas ou diante de uma ação de violência contra o Estado.
Depois, dissemina-se o medo associado à figura e aos traços daqueles que são potencialmente
mais perigosos. Apresenta-se, enfim, a solução final nos termos do óbvio ululante. Como se a
autoevidência do perigo encarnado na figura racializada do criminoso/terrorista/delinquente
exigisse técnicas de aniquilação à altura: execuções extrajudiciais, genocídios, torturas,
mutilações, enfim, respostas rápidas de violência exterminadora.500
“[...] óbito ululante: não há nenhuma linguagem inocente”501, nos alertaria o poeta Waly
Salomão. Porque, se a guerra contra os terrorismos transnacionais necessita da figura do
estrangeiro incivilizado para se sustentar, que atenta de modo bárbaro contra a segurança e a
soberania nacionais, os terrorismos de Estado tornam-se operatórios diante da figura
ficcionalizada do inimigo interno, forjado como seu radicalmente outro e inimigo de todos:

A quantidade do mal dependerá das circunstâncias políticas que outorguem mais


ou menos espaço ao soberano, que sempre, qualquer que seja o mal atribuído ao
inimigo, agirá invocando a necessidade de salvar a própria constituição e o próprio
Estado de direito. Quase todos os golpes de Estado latino-americanos emitiram

500
Ao analisar as formas de resistência negra durante a ditadura civil-militar brasileira, Thula Pires atenta para o
fato de que as práticas seculares de desumanização e de subjugação racial, para além do mito da democracia racial,
atingiram de modo ainda mais contundente nesse período os corpos não brancos. Segundo a pesquisadora, “[...] o
racismo como fonte política do Estado, orientando historicamente o controle e o extermínio das populações negra
e indígena é não apenas um problema da ditadura, como parte constitutiva de sua possibilidade de existência e dos
termos de sua atuação.” PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de
Janeiro. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 2, 2018. p. 1062.
501
SAILORMOON [SALOMÃO], Waly. Self-portrait. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio
de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. p. 183–184.
212

proclamações racionalizadoras de seu delito, invocando a necessidade de defender


a Constituição que eles mesmos violavam ou aniquilavam.502

As arbitrariedades do poder estatal e as graves violações aos direitos civis dos


governados são levadas a cabo, então, a partir da produção da percepção da alteridade
monstruosa que circula livre entre os demais cidadãos “de bem”. É nesse cenário em que o
subversivo ameaça a ordem e a segurança nacionais que as medidas de exceção são
implementadas de modo irrestrito, pois, segundo a justificativa político-institucional, trata-se
de salvaguardar a segurança dos cidadãos e da estrutura política do Estado contra aqueles que
colocariam em xeque a soberania estatal. Susta-se a lei, à vista disso, para garantir o bom
funcionamento... da lei.
A denúncia, a inquirição, o interrogatório e a espionagem, nesse sentido, são
procedimentos “emergenciais” de um exercício de poder que passa a operar no elemento mais
cotidiano da vida e que culmina na ameaça constante das represálias, do desaparecimento, da
tortura, do assassínio em caso de oposição, haja vista que, nesse cenário, opor-se ao Estado –
ainda que ilegal – converte-se no atestado de insurgência. Na lógica do terror soberano, a
oposição ao projeto de poder do Estado e a seu aparato de defesa – esse atentado per si –
equivale a uma declaração de guerra.
Veja-se, para citar um exemplo histórico recente, a multiplicação das Doutrinas de
Segurança Nacionais, sobretudo no período de Guerra Fria e, de modo mais intenso, na América
Latina entre 1960 e 1980. Ao definir os crimes contra a segurança nacional, essas doutrinas
conjugam “direito e violência, arrisca-os na indistinção”503. Isto porque essas medidas de
segurança, profundamente ancoradas em modelos e princípios biológico-científicos aplicados
ao campo social, partiam da ideia segundo a qual um corpo humano saudável requer que suas
partes funcionem de modo harmônico. Ou seja, para garantir a ordenação e a harmonia do
conjunto, seria necessário exterminar as partes “putrefatas”. Empregado na esfera social, é
evidente, esse princípio traduz-se em um programa voltado à redução dos conflitos e das
divergências, pois as dissensões poderiam contaminar o “organismo” irreversivelmente. Por
isso, o que obstaculiza o desenvolvimento integral deste todo harmônico deve ser tipificado
como subversivo, terminologia que aproxima a ameaça de destruição do corpo a uma

502
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 152.
503
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012. p. 38.
213

perturbação localizada – ao tumultus, cujo étimo, como nos lembra Agamben, remete a tumor,
inchaço, desordem504:

A ideia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que
nascem em seu próprio corpo e de seu próprio corpo; é, se vocês preferirem, a
grande reviravolta do histórico para o biológico, do constituinte para o médico no
pensamento da guerra social.505

A consequente militarização do Estado e sua política de expurgos visa justamente à


diminuição dos riscos de perturbação. A instauração dos estados de sítio não seriam mais do
que medidas de governo da emergência, com a deliberada identificação e eliminação dos
inimigos internos. Instaurar uma guerra contra a degradação moral e garantir a segurança506
nacional passam a ser os termos pelos quais se defende a “[...] consecução dos objetivos
nacionais contra antagonismos”507.
Sabe-se, de outro lado, que “[...] para ser duradoura, qualquer dominação precisa não
apenas se inscrever no corpo dos seus súditos, mas também deixar marcas no espaço que eles
habitam e traços indeléveis no seu imaginário.”508 Daí esses antagonismos figurarem de modo
tão indefinido, cabendo a ocupação desse lugar contrastivo tudo que pudesse provocar impasses
institucionais e todas as condutas infracionais seletivamente penalizáveis.
A flexibilidade e a indeterminação do conceito jurídico de “inimigo interno”
desempenham aqui um papel importante. A definição mínima e genérica dessa noção é o que
facilitará o enquadramento daqueles que se opuserem aos interesses da soberania nacional.

504
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 68.
505
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 258.
506
Sobre a relação entre segurança nacional e segurança interna, Ananda Fernandes revisita os conceitos
enunciados no manual básico da Escola Superior de Guerra, de 1976: “A Segurança Interna integra-se no quadro
da Segurança Nacional, tendo como campo de ação os antagonismos e pressões que se manifestem no âmbito
interno. Não importa considerar as origens dos antagonismos e pressões: externa, interna ou externo-interna. Não
importa a sua natureza: política, econômica, psicossocial ou militar; nem mesmo considerar as variadas formas
como se apresentem: violência, subversão, corrupção, tráfico de influência, infiltração ideológica, domínio
econômico, desagregação social ou quebra de soberania. Sempre que quaisquer antagonismos ou pressões
produzam efeitos dentro das fronteiras nacionais, a tarefa de superá-los, neutralizá-los e reduzi-los está
compreendida no complexo de ações planejadas e executadas, que se define como Política de Segurança Interna”.
BRASIL, 1976 apud FERNANDES, Ananda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. In: Antíteses, Porto Alegre/RS,
vol. 2, n. 4, p. 850, 2009. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/viewFile/2668/3937. Acesso em: 05 dez. 2018.
507
Câmara dos Deputados — Legislação Informatizada. Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Artigo 2º.
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 19 ago. 2017.
508
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
225.
214

Conforme afirmaria o chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro, Breno Borges Fortes, em


1973, na X Conferência Interamericana de Comandantes de Exércitos, em Caracas:

O inimigo é indefinido, serve-se do mimetismo e adapta-se a qualquer ambiente,


utilizando todos os meios, lícitos ou ilícitos, para atingir seus objetivos. Mascara-
se de padre ou professor, de aluno ou camponês, de vigilante defensor da
democracia ou de intelectual avançado509.

O mimetismo desse inimigo onipresente é o que animará a permanente guerra interna,


que se desenrola com o propósito de prevenir insurgências potenciais e de manter a
subalternidade de segmentos econômica, social e racialmente desiguais. A cultura de
dominação nutre-se da penalização e do assujeitamento das condutas que devem se manter em
exercício sob o olhar vigilante dos cidadãos-polícia. A lógica que passa a vigorar, nesse
cenário, é a da suspeita generalizada e da demanda pela coparticipação ativa dos cidadãos
“zelosos” pela segurança de todos. Segundo Maria Helena Moreira Alves:

Esta ênfase na constante ameaça à nação por parte de “inimigos internos” ocultos
e desconhecidos produz, no seio da população, um clima de suspeita, medo e
divisão que permite ao regime levar a cabo campanhas repressivas que de outro
modo não seriam toleradas. Dessa maneira, a dissensão e os antagonismos de
classe podem ser controlados pelo terror.510

Dividir para melhor controlar. A estratégia de polarizar o social entre os cordatos e os


outros tem por finalidade transformar cada indivíduo em agente de segurança pública. Da
segurança ostensiva e hostil, alicerçada no medo e no ódio de que os terrorismos de Estado
precisam para se manter em atividade. É o que ressalta Agamben, em artigo publicado no jornal
Le Monde, em 2015, sobre a instauração do estado de emergência na França:

O Estado de segurança tem interesse em que os cidadãos – de quem deve garantir


a proteção – permaneçam na dúvida acerca do que os ameaça, porque a incerteza
e o terror vão par a par. Reencontramos a mesma dúvida no texto da lei de 20 de
Novembro sobre o Estado de emergência que se refere a “qualquer pessoa de que
se suspeita existirem sérias razões para pensar que o seu comportamento constitui
uma ameaça para a ordem pública e a segurança”. É totalmente evidente que a
fórmula “ sérias razões para pensar” não tem qualquer significado jurídico e, dado
que remete para o arbitrário daquele que “pensa”, pode aplicar-se a qualquer
momento a qualquer pessoa. Ora, no Estado de segurança, estas fórmulas

509
FORTES, 1973 apud COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América
Latina. Trad. A. Veiga Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 48.
510
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru/SP: Edusc, 2005. p. 31-32.
215

indeterminadas, que sempre foram consideradas pelos juristas como contrárias ao


princípio da certeza do direito, tornam-se a norma.511

A violência de Estado encontra nesse “perigo” e no “medo” difusos a sua justificação.


Estendida a todo corpo social, a máxima os fins justificam a defesa dos mesmos encontra
reverberação nas ações preventivas de neutralização dos indivíduos considerados
“subversivos”, via múltiplas tecnologias de poder, monitoramento, controle e vigilância: “[...]
não existe antinomia, no que concerne ao Estado, pelo menos entre razão e violência. É possível
afirmar-se, inclusive, que a violência de Estado nada mais é do que a manifestação abrupta, de
certo modo, de sua própria razão”.512
Nesse horizonte, os aparatos policiais e militares passam a agir como ordem jurídica
soberana contra aqueles que foram “construídos como criminosos políticos”513. Avaliam,
julgam e executam as penas sem o devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e
da instauração de um tribunal independente:514

A instabilidade jurídica, a marca dos sistemas penais de terror, é também


realimentada por estes cortes nos direitos públicos subjetivos à disposição dos
acusados; neste sentido, nada impulsiona mais o terrorismo de Estado do que a
legislação adequadamente chamada de “combate” ao terrorismo de
contestação.515

A razão soberana estatal nomeia a violência. Enquanto gestor das vidas, dispor do nome
confere ao Estado a possibilidade de tipificar grupos, organizações e atos, segundo os critérios
estabelecidos pelos sistemas político-jurídicos, que refletem sua própria razão e revestem seus
mecanismos administrativos. As práticas reeditadas dessa política do nome justificam, por sua
vez, a manifestação da violência de Estado na guerra contra o inimigo, interno ou externo. A

511
AGAMBEN, Giorgio. De l’État de droit à l’État de sécurité. Le Monde, Paris, 23 dez. 2015a. Idées. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2015/12/23/de-l-etat-de-droit-a-l-etat-de-securite_4836816_3232.html
Acesso em: 05 nov. 2018. Tradução minha.
512
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 270. Tradução minha.
513
BATISTA, Nilo. Reflexões sobre terrorismos. In: PASSETTI, Edson; OLIVEIRA, Salete. (Org.). Terrorismos.
São Paulo: EDUC, 2006. p. 25.
514
Importante sublinhar que, segundo Rover, “Os encarregados da aplicação da lei são responsáveis pela busca de
fatos, ao passo que o Judiciário é o responsável pela apuração da verdade. O direito a um julgamento justo
[consiste] na determinação de qualquer acusação criminal contra si, ou de seus direitos e obrigações em um
processo legal; todas as pessoas terão o direito a um julgamento justo e público por um tribunal competente,
independente, imparcial e estabelecido por lei”. Cf. ROVER, Cees de. Para servir e proteger. Direitos humanos e
direito internacional humanitário para forças policiais e de segurança: manual para instrutores. Trad. Sílvia Backes
e Ernani S. Pilla. Genebra: Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Disponível igualmente em:
http://www.dhnet.org.br/dados/ manuais/dh/mundo/rover/index.html. Acesso em: 05 nov. 2018.
515
BATISTA, Op. cit., p. 27.
216

guerra ao terror, ao crime ou a guerra às drogas, assim, partilham de uma mesma economia
penal: reativam práticas de extermínio movidas por uma racionalidade bélica e binária.
Aniquilar os inimigos significa mirar em seus corpos concretos; enunciar padrões de
identificação e de aceitabilidade do fazer morrer; desumanizá-los lá onde a culpa se confunde
com a cor, com o pensamento contra-hegemônico, com a condição intolerável de quem transita
nas fronteiras do ser ou não-ser.
Ora, o terrorismo mais comum ao longo do século passado foi protagonizado justamente
pelos Estados. E não apenas na sequência de golpes ditatoriais e regimes autoritários, mas
igualmente por meio das guerras e ocupações neocoloniais, cujo contingente de vítimas civis é
inestimável. Porque se os Estados dispõem do poder de nomear, eles definem o problema do
terrorismo nos seus termos, exclusivamente no singular. O terrorismo, nesse prisma, refere-se
à “[...] prática violenta de grupos irregulares contraestatais”516.
Mas não nos enganemos. Os terrorismos de Estado são modalidades de violência
política bem mais constantes, abrangentes e indiscriminados que os atos delituosos designados
pelo significante “terrorismo”. O artefato explosivo do terror de Estado apresenta-se, desde
sempre, sem peias para imobilizar, intimidar ou neutralizar extensas camadas populacionais,
em inequívoco estado de polícia, enquanto, de outra via, favorece os fluxos móveis do capital
corporativo-financeiro.
Como sugere Derrida, a título de hipótese, numa interessante nota de rodapé de Filosofia
em Tempos de Terror:

Como estamos falando aqui de terrorismo e, assim, de terror, a mais irredutível


fonte de terror absoluto, aquela que por definição se encontra mais indefesa diante
da pior ameaça seria a que vem de ‘dentro’, dessa zona onde o pior ‘exterior’ vive
com ou dentro de ‘mim’. Minha vulnerabilidade é portanto – por definição e por
estrutura, por situação – sem limite. Daí o terror. O terror é sempre, ou sempre se
torna, pelo menos em parte, ‘interior’. E o terrorismo sempre tem alguma coisa
‘doméstica’, se não nacional, em si. O pior e mais eficaz terrorismo, ainda que
pareça externo e ‘internacional’, é aquele que instala ou relembra uma ameaça
anterior, at home – e relembra que o inimigo está também sempre alojado no
interior do sistema que ele viola e aterroriza.517

Alojado no interior, o terror antiterrorista é uma espécie de resposta autoimune, que


implica o Estado de modo visceral, na medida em que o terror se torna instrumento de

516
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 71.
517
DERRIDA, Jacques. Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos – Um diálogo com Jacques Derrida. In:
BORRADORI, Giovanna.; DERRIDA, Jacques.; HABERMAS, Jürguen. Filosofia em Tempo de Terror..., Op.
cit., p. 193 (nota 7).
217

governabilidade. Esquadrões da morte, polícia política, comandos de caça e milícias de


extermínio: múltiplas faces da cultura do medo e dos regimes de violência direta e irradiada,
que gravitam em torno da ameaça e do seu poder de morte.
Desse modo, atentam Negri e Hardt, “o ‘inimigo’, que tradicionalmente era enxergado
fora, e as ‘classes perigosas’, que tradicionalmente se encontravam dentro, tornam-se assim
cada vez mais difíceis de distinguir, servindo conjuntamente como objeto do esforço de
guerra.”518 Na contenção beligerante do inimigo interno-externo, a violência indiscriminada e
massiva irá funcionar, efetivamente, como mecanismo seletivo de controle social baseado na
expansão do discurso punitivo e das práticas criminalizantes. A máxima bandido bom é bandido
morto dá conta dessa metamorfose da segurança: ela deixa de figurar na boca do povo para se
transformar em política pública orientada pela pena de morte sumária. Esse necropoder estatal
se, de um lado, nomeia, não cessa de apagar, de outro, o nome dos dissidentes, lançados no
fundo dos cárceres, tombados nos buracos negros do asfalto, proscritos da humanidade como
existências objetificadas e sem rosto: corolário moral da violência de Estado.
O terrorismo de Estado fareja nos corpos os seus alvos. A morte, sim, iguala a todas e
todos. Mas a matabilidade potencial nos separa. Ela estratifica riscos e distribui desigualmente
a economia da violência com vistas à expulsão, à exclusão e à erradicação. E se as balas perdem-
se no meio do caminho, não encontram na poesia de Drummond a beleza a esmo do
acontecimento e da simplicidade do poema. Encontram corpos aterrorizados, marcados para
morrer. Aterrorizam outros tantos que desejam o fim do terror, o terror até o fim. O fim é que
a bala reencontre sua trajetória e, atirada de um drone pilotado de outro país ou saída de um
fuzil apontado na cabeça do varejista do tráfico, é preciso que elas se alojem no interior do mal
nomeado. Não uma, mas centenas de vezes. Perseguidos, abatidos, neutralizados: o game over
diário dos mortificados.

“No nível do músculo e do sangue”

O que os meus olhos viram às vezes tenho vontade de cegar.

Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento

518
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e democracia na era do Império. Trad. Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 36.
218

Mortificados, indignos de vida, objetiváveis: o inimigo vira de cima para baixo a ordem
estabelecida. Ele sub-verte um estado de coisas que tem a pretensão de se manter tal e qual no
imaginário autocrático. Por isso, será preciso contê-lo de algum modo. É preciso submergi-lo
sem piedade, como um objeto lançado ao mar do qual, sabe-se, não retornará. É preciso garantir
que não retorne. Garantir concretamente, como fizeram os militares envolvidos na Operação
Condor519, que atavam aos pés dos prisioneiros políticos blocos de concreto antes de jogá-los
ao mar. Antes de seu desaparecimento total: sem corpo, sem vestígio, sem nome – absorvidos
na imensidão oceânica de água e sal.
A partir de 1955, com o objetivo de desmantelar a luta de libertação nacional na Argélia,
as tropas francesas passaram a empregar a tortura na guerra que opunha a França à sua colônia.
As formas, paulatinamente profissionalizadas e instrumentalizadas nas técnicas e nos saberes
gestados no decurso da guerra, seriam formalizadas no discurso do método da tortura, alçada à
tecnologia de exportação. A escola francesa exportou para o Brasil todo um arsenal do
terrorismo de Estado, que incluía técnicas de tortura, a eliminação física de opositores, a
expansão dos serviços de informação, a vigilância das populações civis e os voos da morte (que
as ditaduras chilena e argentina empregaram mais usualmente). A doutrina francesa,
aperfeiçoada na Guerra da Argélia (1954-1962) e exportada para as ditaduras do Cone Sul,
previa o uso dessas técnicas como um método científico.
A ditadura militar brasileira de 1964 adotou inúmeras práticas violentas, nascidas no
bojo dessa guerra colonial, justificadas por aqui devido a uma espectral ameaça comunista. A
tortura, considerada um crime contra a humanidade pela Convenção de Genebra520, foi realizada
nos porões e nunca declarada pelo regime ditatorial, apesar das incontestáveis provas,
documentos e atestados de perícias médicas. De uma configuração colonial a outra, a
inventividade nacional somou às técnicas estrangeiras outras garimpadas diretamente da
herança patriarcal-escravocrata brasileira, o que garantiu “[...] a eficiência não somente como
método de interrogatório, mas como forma de controle político”.521

519
A Operação Condor mobilizou um mecanismo de inteligência supranacional, organizado pelos regimes
repressivos das ditaduras do Cone Sul, com a finalidade de unificar o combate aos chamados “subversivos
políticos” por meio da atuação clandestina de seus aparatos repressivos. Cf. DINGES, John. Os anos do Condor:
Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
520
A tortura é tipificada como crime pelo direito internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por meio
da Convenção de Genebra (1949) e seus protocolos adicionais (1977). Além disso, a Convenção contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes foi adotada pela resolução n. 39/46 da
Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984 e entrou em vigor em 26 de junho de 1987.
521
TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade e justiça”
no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 257.
219

Os terrorismos de Estado atuam segundo o imperativo categórico do terror alçado à lei


universal e com fim em si mesmo na manutenção de sua excepcionalidade. O legislador impõe
a sua vontade e submete os demais aos mandos e desmandos, usos e abusos de suas decisões,
burocraticamente justificadas e ratificadas por todas as instâncias administrativas. Como se o
combate ao terror potencial exigisse a experiência do terror real, antecipado e orientado,
principalmente, para os segmentos que colocam em xeque a definição de segurança adotada
pelos governos.
Nesse contexto, a tortura física, moral e psicológica é sistematicamente empregada para
obter informações e causar dor e sofrimento aos corpos não-alinhados aos regimes políticos.
Com referência contínua ao necropoder, a ideia da guerra permanente ao inimigo ficcionalizado
e o decreto do estado de exceção/emergência constituem as bases normativas do direito de
torturar, de assassinar e de encarcerar vidas radicalmente expostas às violências estatais e
violações de direitos.
O fato é que a tortura institucionalizada assume a face de modalidades “permitidas”,
reforçadas pelo argumento de que essas práticas constituem “[...] tratamentos excepcionais, mas
necessários, em vista da ‘excepcionalidade’ do inimigo terrorista”522. O recurso a técnicas
supostamente “leves”523 aplicadas nos interrogatórios e no tratamento de pessoas suspeitas ou
envolvidas, privadas de liberdade, de outro lado, nada tem de excepcionalidade. Esses métodos
funcionais constituem a norma do sistema de governamentalidade vigente, forjada no
laboratório experimental do corpo desumanizado do inimigo de Estado, instrumentalizado e
testado até o limite de sua possibilidade de resistência física e psicológica. É o que indica Renato
Lessa em artigo publicado em O Estado de São Paulo sobre a cultura de violência no Brasil
hoje, ao ressaltar:

[...] a vulnerabilidade de imensos contingentes da população brasileira à violência


policial. Se somarmos a isto a desproteção desses mesmos segmentos diante do
domínio de grupos paramilitares, nos quais a presença de ‘agentes da ordem’ não
é infrequente, temos um cenário de baixa concretização de direitos fundamentais.
A cultura policial no país [...] é no mínimo porosa a hábitos de pilhagem e
crueldade [...] que abrangem tanto a pequena extorsão de infratores como a prática

522
CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de
control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 145.
523
A modalidade de tortura “light” ou “aceitável”, como ficou conhecida, parte do pressuposto de que um
“terrorista” sob a custódia dos agentes da lei deve ser pressionado a revelar informações úteis capazes de salvar
vidas inocentes. Algumas destas práticas mais comuns consistem na privação do sono; manter os presos em
posições estressantes por longos períodos; tortura sonora pela via do “ruído branco” ou música muito alta;
exposição a temperaturas altas ou baixas; afogamento; isolamento prolongado, dentre outras. Decorrem do uso
deste método, alucinações, psicoses, desorientação temporal e perda do senso de realidade, frequentemente
sintetizadas pelas vítimas pela expressão: “não sei quanto tempo isso durou”.
220

de chacinas e assassinatos justificados por ‘autos de resistência’. [...] É o tema da


tortura que segue vigente. A presença renitente da tortura e da crueldade física
como prática das forças da ordem, apesar da Constituição que temos, resulta de
seu caráter ‘anistiável’524.

A tortura não se circunscreve às ditaduras e aos governos autocráticos. Ela se


dissemina no interior dos regimes democráticos, praticada cotidianamente pelas polícias
urbanas e pelas forças armadas, e tacitamente consentida pelas populações e governos quando
orientadas aos grupos periféricos. A tortura se legitima, assim, como arma de guerra por
excelência. Sobretudo, em contextos excepcionais, quando a urgência passa a ser a justificativa
do emprego da força, com vistas a obter informações, intimidar ou punir infratores. E não
deveríamos esperar pelos testemunhos das vítimas ou pelos relatórios das comissões
internacionais de direitos humanos para constatar que a “normalidade” de seu emprego como
prática repressiva é largamente conhecida e violentamente naturalizada pelos quatro cantos do
mundo.
Mas, há ainda territórios onde o emprego da tortura, para além de qualquer direito
fundamental dos civis, torna-se a opção privilegiada, oficial e autorizada de extorsão da palavra,
arrancada à força das vítimas. Angela Davis recorda que o processo oficialmente conhecido
como “rendição extraordinária” consiste na transferência de “[...] detentos propositadamente
para outros países cujos governos têm liberdade para interrogá-los e torturá-los sem
responsabilidade ou restrição”525. Veja-se, por exemplo, quando as 198 fotografias dos
prisioneiros iraquianos torturados na prisão de Abu Ghraib foram divulgadas, em 2004. Houve
comoção internacional e o escândalo exigiria uma resposta rápida. Apesar da obscena
obviedade de que se tratava de prática de tortura física, abuso e humilhação, o ex-secretário de
defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, se apressou em afirmar que sua impressão era de
que “[...] até agora, se trata de uma acusação de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente
diferente de tortura [...]. E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’”526.
A recusa de nomear o ato pelo nome atesta como a técnica de provocar dor ou
sofrimento é atenuada, quando voltada para corpos desumanizados, com o objetivo de alcançar
as finalidades políticas desejadas ou por crueldade retaliativa. Por isso, a imagem desses corpos

524
LESSA, Renato. Quanto vale a vida dos outros... São Paulo, O Estado de São Paulo, Caderno Aliás, 07 set.
2008.
525
DAVIS, Angela Y. A democracia da abolição: Para além do império, das prisões e da tortura. Trad. Artur
Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 83.
526
RUMSFELD, 2004 apud SONTAG, Susan. Sobre a tortura dos outros. In:___. Ao Mesmo Tempo: Ensaios e
Discursos. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. p. 142.
221

suspeitos funde-se às alegorias do inimigo da espécie, subjetivado, em oposição ao qual todos


devem permanecer vigilantes:

Os talibãs capturados no Afeganistão, além de não gozarem do estatuto de POW


[prisioneiro de guerra] de acordo com a Convenção de Genebra, tampouco gozam
daquele de acusado segundo as leis norte-americanas. Nem prisioneiros nem
acusados, mas apenas detainess, são objeto de uma pura dominação de fato, de
uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto à
sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário.527

Ora, como diferenciar tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes da tortura? A


distinção ensaiada pelo ex-secretário de defesa dos EUA aposta na mudança do significado da
tortura em relação aos alvos determinados. E ao relativismo que, uma vez mais, parece se
orientar pelos “graus de humanidade” das pessoas em questão, frequentemente exiladas na zona
do não-ser. A dupla violência, epistêmica e física, modula-se pela consideração de uma
humanidade já fraturada pela radical desidentificação com o outro (racial, cultural, étnica,
social).
Não surpreende que o governo dos Estados Unidos, em seus campos de detenção de
além-mar, fora de suas fronteiras, autorize o uso sistemático da tortura contra os “combatentes
inimigos”, marcados como cultural e racialmente inferiores. Ficção jurídica, a aparente
legalidade, uma vez mais, visa a induzir à compreensão do termo “combatentes inimigos” nos
marcos da lei. O que ocorre, entretanto, é a criação de uma categoria às margens da lei,
inspirada no direito penal do inimigo, com o objetivo de usar a tortura e a pena de morte,
indiscriminadamente, e – supostamente – de modo não criminal. Como analisa Zaffaroni,

A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que


o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto do
ente perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe
estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se
referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo
pelo qual deixaram de ser considerados pessoas.528

Combatentes inimigos, inimigos do Estado, soldados do crime: perigo público


triplamente qualificado. Posto que são racialmente inferiorizados, podem ser ritualmente
violados e violentados no interior do sistema de justiça criminal. Estes indivíduos,
humanamente desqualificados, emergem como o refugo da sociedade – a parte mais vil e

527
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.
528
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 18.
222

perigosa –, excedentes, a serem descartados pela construção da ordem ou depositados como


dejetos nos complexos carcerários. Afinal, em última instância, pode o torturado falar?529

Corpos vulneráveis, corpos violáveis

É preciso, porém, dar um passo atrás e lançar um olhar crítico para práticas largamente
empregadas e aperfeiçoadas na modernidade/colonialidade, quando se tratou de exercitar o
poder de domínio sobre populações subalternas. Pois, a tortura, nas configurações coloniais do
exercício do poder, é a regra nas sociedades estruturadas pelo racismo e pela dominação
autoritária. Fanon, citado por Mbembe, recorda que,

Tratando especificamente da tortura, [...] ela ‘não é um acidente nem um erro ou


uma falta. O colonialismo não se compreende sem a possibilidade de torturar, de
violar ou de massacrar. A tortura é uma modalidade das relações ocupante-
ocupado’530.

Fenômeno sistêmico, a tortura estabelece a dissimetria absoluta e implacável entre


dominador e dominado. Ela desapropria a agência da vítima, promove uma ruptura identitária
e destrói “a articulação primária entre o corpo e a linguagem”531. Testar os limites do sofrimento
ao dispor do corpo do outro supõe uma relação não apenas sádica, mas de conquista subjetiva
pela força, pela onipotência capaz de silenciar e de obrigar a falar. Para Hélio Pellegrino,

A tortura busca, à custa do sofrimento corporal insustentável, introduzir uma


cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isto: ela procura,
a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. [...] O projeto
da tortura implica numa negação total – e totalitária – da pessoa, enquanto ser
encarnado. [...] o discurso que ela busca, através da intimidação e da violência, é
a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em
objeto.532

529
Segundo Élio Gaspari: “O que torna a tortura atraente é o fato de que ela funciona. O preso não quer falar,
apanha e fala. É sobre esta simples constatação que se edifica a complexa justificativa da tortura pela
funcionalidade”. GASPARI, Élio. A Ditadura Escancarada. vol. 1. São Paulo: Companhia da Letras, 2002. p. 37.
530
FANON, 1980 apud MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-
1 Edições, 2018. p.193.
531
GUINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: SAFATLE, Vladimir & TELES, Edson (Org.). O que resta da
ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 141.
532
PELLEGRINO, 1996 apud Idem, p. 142.
223

Objeto despersonalizado, vida abjeta, a vítima da tortura atravessa a experiência-limite


da aniquilação subjetiva pelo terrorismo de Estado, cujo signo maior é a territorialização da
morte em um corpo tornado estrangeiro de si mesmo. O torturador é um patriota-nacionalista.
É a expressão mais bem acabada da razão instrumental de segurança nacional mobilizada para
fins de guerra e conquista. Na matriz colonial do pensamento securitário, a guerra é o que
justifica a ação dos agentes do Estado e o alto nível de violência da dominação policial, do
feitor e do carrasco.
Esse pensamento parece sugerir uma linha de continuidade entre “[...] a herança colonial
e escravista e os sistemas repressivos”533 mundiais, sustentada pela manutenção do racismo,
intrínseco às tecnologias necrobiopolíticas que operacionalizam a eliminação dos indesejáveis,
e pelo contrato racial que estrutura “[...] uma sociedade organizada racialmente, um Estado
racial e um sistema jurídico racial, onde o status de brancos e de não brancos é claramente
demarcado, quer pela lei, quer pelo costume”534.
Se “a tortura é inerente a toda configuração colonialista”535, como defende Fanon, é na
medida em que ela estabelece a relação mais brutal entre dois seres nos marcos da dominação
polarizada: de um lado, a superioridade soberana; de outro, a submissão redutora. O fato é que,
em que pese a questão ideológica e cultural, as relações raciais estruturam as relações sociais e
constituem-se como elemento primordial do sistema punitivo. O terror da rendição ao
desumano que só o humano pode praticar. Porque a base do direito de torturar se funda na não
identificação de uma humanidade que, distinta das identidades hegemônicas dos portadores
padrões dos direitos, nada mais é que sub-humana. Trata-se, então, de interpretar a tortura pelo
perfil das vítimas e de sua titularidade ou não de um direito que passa pelo reconhecimento de
sua humanidade.
Que não haja margem a dúvidas: “[...] o racismo tem desempenhado um papel decisivo
na produção ideológica do comunista, do criminoso e do terrorista”536. Essas três figuras
míticas, identificadas como criminosos/resistentes, são moldadas socialmente na condição
imaginária da periculosidade, que consiste em:

533
GUINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: SAFATLE, Vladimir & TELES, Edson (Org.). O que resta da
ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 136-137.
534
MILLS, Charles W., 1999 apud CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo:
Selo Negro, 2011. p. 91.
535
FANON, Frantz. Toward the african revolution: political essays. New York: Grove Press, 1994. p. 64.
536
DAVIS, Angela Y. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Trad. Artur
Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 141.
224

Alienar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a


identificação do inimigo da vez, [...] lançando mão do recurso que sempre se usou
para legitimar o poder punitivo ilimitado em qualquer emergência: a alucinação
de uma guerra.537

A lógica de violência e da nulificação encontra na ausência de empatia o terreno fértil


para se proliferar sem peias. A apropriação de vidas mais vulneráveis pelo terrorismo de Estado
está amparada na violabilidade originária de corpos encarados como imunes ou mais resistentes
à dor pelo imaginário hegemônico. O sofrimento do sub-humanizado não é legível, assim como
seu valor de humanidade não passa em branco. Por isso, infligir dor a quem se encontra sob a
linha da humanidade, não poderia significar, senão, um efeito colateral do projeto de uma vida
mais segura.
Gênero, classe e raça se interseccionam em múltiplas situações de precariedade e
violação de direito. A imagem do inimigo, arquitetada e edificada como alvo prioritário dos
processos de violência arbitrária, norteia a resposta intransigente própria a contextos de “guerra
sem fim”. O efeito da colonialidade do poder, do ser e do saber é a disposição desses corpos
colonizados, privados de toda autonomia e transformados em apêndices seletivamente
controlados e produzidos como mortos-vivos. Isto na medida em que os territórios existenciais
se convertem na extensão da excepcionalidade decretada nos territórios físicos e da
discricionariedade do poder soberano, brutalmente capturados pelas ações do terrorismo de
Estado.
Por essa razão, há a facilidade do extermínio racional, sistêmico e sistemático pelas
instituições e agentes estatais. A impunidade, de outro lado, é a autorização para que se prossiga
a limpeza racial, étnica, ideológica e social, negando qualquer legibilidade humana nos corpos
inimigos do Estado. A suspeita converte-se na associação imediata entre cor e crime; entre
condição social e conduta infratora; entre língua, cor de pele, traços fenotípicos e delinquência.
Soma-se a isso, o fato de caber às próprias corporações militares a investigação de crimes
cometidos por seus agentes, de modo que a impunidade legitima as práticas e condutas
autoritárias no trato de corpos silenciados, invisibilizados e marcados pelos processos de
apropriação material.
A intrusão violenta do corpo alheio, o encarceramento e o assassinato persistem como
a tônica da segurança pública dos governos da emergência. A suposta invisibilidade da tortura
e o apagamento da esfera do debate público explicitam a naturalidade com que as populações

537
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 57-58.
225

encaram o seu emprego. Sobretudo em sociedades marcadas pela razão colonial e pelo arranjo
estrutural da violência, no cerne do qual a tortura não é mera consequência, mas modo de
funcionamento constitutivo da política de extermínio dos inimigos. E que aponta, igualmente,
para o imaginário de violência que fundamenta subjetividade, agências e instituições
atravessadas pelo expediente civilizatório, racional e marginalizante: máscaras securitárias,
desejos coloniais.

In memoriam: o desaparecimento político

Amarildo Dias de Souza desapareceu em 14 de julho de 2013. Desapareceu após ter


sido detido por policiais militares e conduzido da porta de sua casa, na Favela da Rocinha, no
Rio de Janeiro, em direção à sede da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro. No dia anterior,
uma operação chamada de Paz Armada mobilizou 300 policiais com o objetivo de prender
envolvidos em um arrastão ocorrido próximo à comunidade. Liberado após a conclusão da
averiguação, o ajudante de pedreiro não regressaria a casa.
Ana Rosa Kucinski Silva538 era uma das mais jovens professoras da Universidade de
São Paulo. Em 22 de abril de 1974, após sair do Instituto de Química da USP, Ana dirigiu-se à
Praça da República, no Centro de São Paulo, onde encontraria seu marido, Wilson Silva, para
almoçar e comemorar os quatro anos de casamento do casal. Desde então, os dois não foram
mais vistos. As investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2012, apontam
para a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado dos corpos, executados na Casa da
Morte539, em Petrópolis, e provavelmente incinerados nos fornos da Usina Cambahyba, em
Campos (RJ). Em frente ao Instituto de Química, na USP, um pequeno monumento foi colocado
em 2014, com uma placa memorativa: “Que sua lembrança inspire as futuras gerações a lutar,
como ela, contra os que tentam sufocar a liberdade”.
Ambos os casos, apesar de figurarem em períodos históricos distintos do Brasil
contemporâneo, caracterizam-se pelo desaparecimento forçado, perpetrado por agentes estatais.

538
Para informações suplementares do caso, cf. http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/ana-rosa-kucinski-
silva/index.html. Acesso em: 20 nov. 2018.
539
A Casa da Morte é o nome pelo qual ficou conhecido o centro clandestino de tortura e execução de presos
políticos criado pelos órgãos de repressão da ditadura civil-militar brasileira. Situado em Petrópolis, no Rio de
Janeiro, e cedida ao exército por um empresário alemão entusiasta do regime, no centro foram cruelmente
assassinados, pelo menos, 22 militantes que se opunham ao regime, malgrado o número oficial ser desconhecido.
Em 21 de novembro de 2018, o Conselho Municipal votou pelo tombamento do imóvel. A decisão, a ser
sancionada pelo executivo municipal, prevê que a Casa seja transformada em um memorial.
226

Assinalam o entrelaçamento entre a violência e a situação limiar do poder arbitrário do sistema


de (in)justiça pública, sobretudo após o decreto do Ato Institucional n.º 5 (AI-5)540, em 13 de
dezembro de 1968, quando a repressão institucionaliza a prática de “fazer desaparecer” aqueles
que se contrapunham ao regime.
O fato é que a ditadura institucionalizou a persecução e a guerra ao inimigo interno, para
além de toda legalidade com o emprego da força. A doutrina da contra-insurgência foi a
justificativa oficial para o desaparecimento forçado em toda América Latina. No Chile, segundo
a Comissão de Verdade e Reconciliação, o número de desaparecidos totaliza 1.248 pessoas ao
longo da Ditadura de Pinochet (1973-1990); na Argentina, a Secretaria de Direitos Humanos e
a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas e (CONADEP) estima
aproximadamente nove mil casos entre 1966 e 1973; no Uruguai, 174 pessoas, segundo a
Comissão Especial da Lei de Reparação às Vítimas da Atuação Ilegítima do Estado, durante a
ditadura empresarial-militar uruguaia (1968-1985). No Brasil, são 169 desaparecidos em
virtude de ações dos órgãos de repressão política, de acordo com o Dossiê ditadura: mortos e
desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985541.
Se “[...] um morto é uma tristeza, um milhão de mortos é uma informação”542, como
afirmaria Todorov, os números friamente contabilizados são apenas cifras do potencial
devastador que as tecnologias racionais de governos da emergência pode alcançar. Mas, não
podem ser desprezados. Em tempos ditatoriais ou da democrática guerra ao terror, em suas
múltiplas faces, “tirar de circulação” com o fim de interrogar, torturar e coletar informações
passa a conformar a lógica paranoica do desmonte das redes clandestinas de resistência, muitas
vezes com o suporte de milícias, mercenários e grupos paramilitares. Essa desarticulação, no
entanto, encontra um paradoxo. Ela também só pode funcionar na clandestinidade, nos
subterrâneos da ordem simbólica e nas fronteiras da legalidade.
Como em K. – Relato de uma busca543, de Bernardo Kucinski, a muralha de silêncio
erguida em torno dos desaparecidos políticos, é a negação permanente do habeas corpus, do
direito ao corpo livre em caso de arbitrariedade injustificadas, evidenciada pela busca de K., o

540
De acordo com o historiador Carlos Fico, “O AI-5 não expressou uma mudança da natureza do regime militar,
que já havia se inaugurado durante o governo de Castelo [Branco], pois houve tortura e toda sorte de violência
institucional antes dele. Com ele, houve decerto, uma mudança de escala, mas não de natureza”. FICO, Carlos. O
golpe de 64: Momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 120.
541
ALMEIDA, Criméia Alice Schmidt de. & TELES, Janaína de Almeida et al. Dossiê ditadura: mortos e
desaparecidos políticos no Brasil, 1964-1985. São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009.
542
TODOROV, 1993 apud CALVEIRO, Pilar. Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el
crimen como medios de control global. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 29.
543
KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
227

pai de uma desaparecida política, para reencontrá-la. Procura kafkiana sempre barrada por
armadilhas burocráticas, descaso administrativo e falsas informações e que culminaria na
queima de arquivo realizada pelos agentes do Estado: “[...] agora é hora de limpar os arquivos,
não deixar prova. […] Entregar a moça, onde é que esses caras estão com a cabeça? Mesmo
que eles estivessem vivos, como é que eu ia entregar, depois de tudo o que aconteceu? Não é
para acabar com as provas? Pois nós acabamos.”544
A ordem é eliminar sem deixar vestígios. A acusação de crime contra a segurança
nacional ou de envolvimento com terrorismo, que pesa sobre os desaparecidos, funciona como
alegação da não garantia de salvaguarda pelo Estado e na sua conversão de vida torturável e
passível de ser desaparecida pelos esquadrões policiais da morte. Isto na medida em que “[...]
a forma de repressão que gera o desaparecido caracteriza-se pela supressão de todo elemento
que permita comprovar a detenção arbitrária e o destino das vítimas, cuja intenção é justamente
dissimular as provas”.545
O terror do desaparecimento possui ainda uma outra face lancinante. A ausência de
corpo ou restos mortais, a inexistência de informações e a manutenção do segredo torna-se um
modo de perpetuar a tortura. Pois, a angústia da morte anônima, presumida, mas não
confirmada, impede que se inscreva simbolicamente a existência das pessoas em um ciclo
fechado de vida. Ao lidar com a presença de uma ausência, de uma presença fantasmal, o que
se configura é uma suspensão temporal, uma interrogação diante do vazio que se coloca entre
a morte e a vida: o anacronismo de um luto sempre adiado.
Corpos insepultos, memórias assombradas, luto impossível546:

A não existência de um momento único de dor e de obrigações morais sobre o


morto, associada ao desconhecimento das formas de morte, constitui uma nova
figura: a da privação da morte. A categoria desaparecido representa esta tripla
condição: a falta de um corpo, a falta de um momento de luto e a falta de uma
sepultura.547

544
KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 77.
545
TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade e justiça”
no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 287.
546
Ao tratar do trabalho do luto em Espectros de Marx, Derrida faz uma consideração importante, que parece
apontar justamente nessa direção: “É preciso saber. É preciso sabê-lo. Ora, saber é saber quem e onde, saber de
quem é propriamente o corpo e onde este repousa – pois ele deve permanecer em seu lugar. Em lugar seguro. [...]
Nada seria pior para o trabalho do luto do que a confusão ou a dúvida: é preciso saber quem está enterrado onde
– e é preciso (saber – assegurar-se) que, nisso que resta dele, há resto.” DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx:
O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994. p. 25.
547
CATELA, Ludmila. Situação-limite e memória: A reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos na
Argentina. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 150.
228

Ora, a violência traumática do desaparecimento forçado, enquanto experiência absoluta


do terrorismo de Estado, impede a elaboração do trauma, metamorfoseado em uma espera vazia
e na luta judicial para o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas violações de
caráter permanente. Assim, a violência vitimiza, além da pessoa desaparecida, seu círculo
familiar, impondo um legado de dor e sofrimento a quem se transfigura em espectador de vidas
duplamente sequestradas – na condição fantasmática de uma memória fraturada e de uma
trajetória interrompida.
Opressão do silêncio produzido pelo dispositivo estatal do terror, a política de
desaparecimento forçado é ainda realidade em todo mundo. A despeito de, em âmbito
internacional, haver desde 2007 uma Convenção Internacional para Proteção de Todas as
Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados548, da qual o Brasil é um dos signatários, essa
prática não se restringe às “guerras sujas”. Crime contra a humanidade, tal como definido pelo
direito internacional, o desparecimento forçado e a tortura não são “meros acidentes” ou crimes
incidentais em períodos de emergência pública ou instabilidade política. São práticas
sistemáticas e generalizadas, perenes e polimorfas, que perduram nos estados democráticos de
direito, sob a chancela dos agentes públicos e das populações ciosas por sua segurança. Não à
toa, as necrobiopolíticas estatais continuam a se servir desses métodos no controle e na gestão
da segurança, institucionalmente mais violentos e pregnantes contra grupos racialmente
inferiorizados.
Em outubro de 1977, em resposta às cartas recebidas da Ação Cristã para a Abolição
das Torturas, organização francesa filiada à Anistia Internacional que acusava um dos agentes
de segurança do Estado brasileiro da prática de tortura, ele afirmaria: “[...] a verdadeira
democracia consiste em governar com mão de ferro as massas infantis e necessariamente
dependentes.”549 A asserção do delegado Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e

548
A convenção está disponível em: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2010/12/Carta-desaparecimentos-
PORTUGUES-FINAL.pdf. Acesso em: 25 nov. 2018. Acrescente-se também a definição da Convenção
Interamericana Sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, firmada pelo Brasil em 1994, em seu Artigo II:
“Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa
ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que
atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a
reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos
recursos legais e das garantias processuais pertinentes.” Esta Convenção foi promulgada pela Presidenta Dilma
Rousseff, por meio do Decreto Nº. 8.766, em 11 de maio de 2016.
549
CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio
Vargas. Verbete: Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/sergio-fernando-paranhos-fleury. Acesso em: 21
nov. 2018.
229

Social (DOPS-SP) de São Paulo, notório torturador, poderia ter sido feita por qualquer político
democrata do Atlântico Norte, por populistas reacionários do Atlântico Sul, ou mesmo por meu
tio, negro, que, em 1964, não hesitou em compor as fileiras da marcha comemorativa do Golpe
militar. Ela consiste em justificar o uso da força, em todas as suas formas e intensidades, em
virtude do perfil imaturo das massas, amorfas, sem o qual a desordem e a indisciplina reinariam
sem obstáculos. A imagem-guia da infância, uma vez mais, é mobilizada para afirmar a
incapacidade de autonomia e a consequente tutela necessária para o controle popular e para
“pôr ordem na casa”. Que todos se submetam sem dissensão à vontade de quem manda é a
regra, por excelência, dos estados autoritários:

Não esqueçamos a promessa do golpe de 1964: o restabelecimento da ordem [...].


Ao tomar o Estado, os militares passaram a representantes da sociedade,
identificando o governo com a vontade geral, expressa pelo signo da Doutrina de
Segurança Nacional e do Estado de exceção.550

Mas, os desaparecidos políticos não permitem o esquecimento. Eles se fazem presentes


na expressão espectral de sua ausência, como marcas de temporalidades geminadas: o passado
que não passa e o futuro negado no círculo trágico de um presente descontínuo. Pois, há também
uma dívida permanente dos sobreviventes em relação àqueles e àquelas que desaparecem.
Diante do inenarrável, é preciso verbalizar o testemunho do que não pode ser silenciado e
reivindicar a justiça que precisa ser restituída, para além dos nomes empilhados e quantificados
nas listas oficiais. Garantir o direito à verdade e à justiça significa nomear e responsabilizar os
agentes perpetradores dos atos de violência, conferindo uma dupla assinatura aos atestados: a
de óbito aos mortos e a de débito ao Estado.
É curioso que em um país com uma longa tradição autoritária-ditatorial, como o Brasil,
marechais, generais e manifestos torturadores diretamente implicados à história de opressão
nacional, figurem em nomes de ruas, avenidas e pontes, enquanto mortos e desaparecidos
políticos permanecem insepultos, encriptados no segredo de mortes indecifráveis e volatizados
nos “sumidouros de pessoas”, perenes e arbitrários. Anas e Amarildos continuam a ter os seus
corpos violados, enigmaticamente invizibilizados no clarão silencioso de seu desaparecimento
sem resíduos. Como tantas outras vítimas, distantes de qualquer produção monumental, cujos

550
TELES, Edson. Entre justiça e violência: Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul. In:
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 303.
230

nomes dificilmente seriam lembrados sem o exercício de responsabilidade infinita de uma


memória que não descansa.
Dos terrorismos de Estado resta uma ambígua fatura que aponta, simultaneamente, para
o passado e para as novas institucionalizações dos quadros de violência no presente. Agora, nas
molduras democráticas, sofisticadamente talhadas no suporte dos estados de emergência, em
que os jeitos de fazer cadáveres não cessam de se reinventar.

Golpes (extra)ordinários

Seja por meio de doutrinas de segurança nacional, seja pela via de atos patrióticos ou de
políticas emergenciais de combate ao inimigo multifacetado, se a violência de Estado não é a
mesma em todos momentos, o paradigma da violência excepcional, todavia, é similar: o
governo pelo terror. A implicação entre violência de Estado e governo da emergência resulta
no estado de exceção que, de formas tão diversas quanto o inimigo a que deseja conter, pode
ser declarado ora com finalidade política, ora econômica, quando se tratar de salvar a sociedade
do perigo do colapso iminente.
É importante reforçar a função dessa proximidade temporal da crise e do caos quando
estiver em jogo a intransigência de uma ordem soberana a ser executada para a proteção
coletiva. A exceção adquire, assim, a forma jurídica da gramática liberal e a forma política das
medidas de segurança em razão de periculosidade, que nada mais são do que modos de
fundamentar os apelos à prorrogação indeterminada da emergência – dilatada, capilarizada e
expandida, como a imagem difusa do inimigo.
Exercício de dever ou abuso de poder, estrutural ou factual, as fronteiras são
estrategicamente cada vez mais móveis. Porque, no interior dessa dobradura, entre a
legitimidade e seu excesso, há uma série de operações mobilizadas nos planos do direito de
intervenção para “melhor viver” – que vão da instauração dos estados de sítio e das ditaduras
até os estados de urgência. No limiar dos parâmetros legais, no ponto de tensão entre a lei e sua
negação, é em nome da segurança pública que se buscará justificar a atuação soberana:

O Estado se emancipa do direito e rompe sua identificação com ele, ganhando


densidade política; paralelamente, a soberania se vê à margem do exercício do
poder regrado, com o que se introduz um elemento personalista antes ausente; a
normalidade, entendida como acúmulo de condições para a validade das normas,
231

não se dá mais como dado pressuposto, adquirindo-se consciência da contingência


da ordem necessária para que o direito afirme sua vigência.551

A lógica do golpe de Estado insere-se nessa perspectiva. Pois, se o estado de exceção se


desvincula do estado de perigo concreto, factual, é no ponto onde ambos se estabelecem como
continuidade que governo e golpe criam uma vinculação material. Concupiscente, lasciva e
carnal: história de amor e violência antiga, se lembrarmos sua extensão por outros meios e
instituições, como já apontava Foucault em 1977: “[...] a polícia é um golpe de Estado
permanente”552.
Não é de admirar a força conferida ao poder de polícia, que atua nas fronteiras da
violência conservadora da ordem e fundadora, na medida em a polícia-política, como “espectro
do Estado”:

Se atribui o direito cada vez que esse é suficientemente indeterminado para lhe
dar essa possibilidade. Mesmo que ela não promulgue a lei, a polícia se comporta
como um legislador nos tempos modernos, para não dizer o legislador dos tempos
modernos.553

Golpe de Estado e exceção, essa luxúria excessiva do poder soberano, a romper as


fronteiras da distinção entre soberania, poder e governo, pois “[...] a segurança não conhece
nenhuma barreira: ela é constitucional ou anticonstitucional”554. Livre de barreiras, a segurança
transmuta-se no nome próprio do “[...] excesso do direito comum em favor do bem público”555.
Tecnologia de governo, não é fortuito que os golpes de Estado sejam tão frequentes em
sociedades de tradição autoritária e de matriz de poder ancorada na herança colonial. Dada a
vinculação entre a ordem normativa e a casuística, nessas sociedades está explicitamente
marcada a estrutura de exceção que integra o Estado de direito, com suas arbitrariedades
direcionadas à manutenção das oligarquias e da plutocracia que recorre aos golpes, de tempos

551
PRIETO, Evaristo. Poder, soberania e exceção: uma leitura de Carl Schmitt. Trad. Andityas Soares de Moura
Costa Matos e Pedro Savaget Nascimento. Revista brasileira de estudos políticos, Belo Horizonte, n.º 105, p. 101-
150, 2012. Disponível em: https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/P.0034-
7191.2012v105p101 Acesso em: 05 dez. 2018. p. 128.
552
FOUCAULT, Michel. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard/Seuil, 2004. p. 347. Na versão original:
“La police c‘est le coup d‘État permanent”. Tradução minha.
553
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. Trad. Leila Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 99.
554
COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: O poder militar na América Latina. Trad. A. Veiga
Fialho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 65.
555
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Nomos pantokrator: apocalipse, exceção e violência. In:
CARDOSO, Renato César; MATOS, Andityas Soares de Moura Costa (Org.). Estado de exceção e biopolítica.
Belo Horizonte: Initia Via, 2012, p. 11-66. p. 24.
232

em tempos, enquanto instrumento que assegura a colonização das instituições pelos grupos
hegemônicos nos contextos nacionais. Enquanto Estados administrativos historicamente
constituídos e pautados pela relação desigual entre cidadãos, a questão de classe interpõe-se
primordialmente quando se tratar de inserir a vida no jogo dos cálculos políticos.
Ora, notaria Schmitt, “[...] justamente porque ela [a exceção] serve a qualquer um, ela
não é neutra”556. A exceção declarada, em todos os seus estados, expressa o elo existente entre
os valores de ordem e pacificação de corte liberal e o esforço de dirimir os conflitos pela via da
eliminação de quem representa a dissenção de determinado projeto de Estado. De modo que,
longe de qualquer neutralidade, contrariamente ao que o discurso do Estado de exceção
pretende difundir e defender, “[...] a busca da estabilidade é uma ameaça para a vida política”557.
Sobretudo, quando estabilidade significa consenso, ausência de conflitos, conservação da
ordem desigual e inalteração do quadro de privilégios raciais, sociais, políticos e simbólicos
que servem para demarcar as diferenças entre classes historicamente dominantes e a massa
dominada.
Regulação e controle de fluxos, na lógica do contrato social e racial, a segurança é o que
fundamentará o exercício do poder soberano. Segurança que demanda a potencialização de um
modo de vida e a aniquilação de outros, identificados como hostis à ordem que precisa ser
preservada. Nesse sentido,

Pois ele [o inimigo político] é justamente o outro, o estrangeiro, de modo que,


bastando à sua essência que, num sentido particularmente intensivo, ele seja
existencialmente algo outro e estrangeiro, de modo que, no caso extremo, há
possibilidade de conflitos com ele, os quais não podem ser decididos mediante
uma normatização geral previamente estipulada, nem pelo veredicto de um
terceiro “desinteressado”, e, portanto, “imparcial”.558

Segurança e insegurança, assim, não se excluem. E se os golpes de Estado são


recorrentes na cena política é porque a (in)segurança demanda ultrapassagem de limites, na
tensão entre dever e direito que mantém indistintas as fronteiras entre legalidade e seu reverso.
Os golpes de Estado, impactantes e teatrais, são manifestações de uma razão de Estado
que não traz em si nada de extraordinário. Salvo o fato de que as razões de emergência

556
SCHMITT, Carl. Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. In: _____. A crise da
democracia parlamentar. Trad. Inês Lobbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 116.
557
BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt. In: Kriterion, Belo Horizonte, n.
118, p. 401-415, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
512X2008000200007. Acesso em: 5 dez. 2018. p. 414.
558
SCHMITT, Carl. Op. cit., p. 52.
233

necessitam ser publicizadas, de modo a criar um ambiente de temor coletivo que assegura a
efetividade política do golpe e a decisão da autoridade que define a que fins ele servirá. Pois,
ao apontar para as lacunas e para a impopularidade do governo atual, intenta-se mobilizar o
desejo de rejeição e canalizá-lo para aceitação de um estratagema que expõe, em seu sacrifício
fundador, a lógica da violência do direito estatal.
Daí a recorrência da grande demonstração de violência de Estado em períodos
subsequentes aos golpes e à transição de governo. Violência que se prolonga e se espetaculariza
como se afirmasse não como uma contradição ao sistema legal, mas como sua radicalização
legitimada por razões securitárias. Ao exceder a lei, o golpe manifesta a interface de exceção
suposta em todo regime político. Na encruzilhada do jurídico com o político, assentam-se
caminhos estreitos e perigosos, que conectam os mecanismos de funcionamento do poder que
não são meras suspensões temporais da lei, mas paradigma de governo contemporâneo.
Refeito o pacto mefistofélico, de missivas endereçadas contra o poder instituído, e das
letras da lei apagadas pelos atos de força, de golpe a golpe, permanece intacta a estrutura do
poder real: entre mortos e afogados, caçados, assassinados e depostos, a exceção soberana
alarga-se indefinidamente e com contornos cada vez mais indeterminados, movediços e
variados.
E que parece, por estranho traço genealógico, apontar para a linha de continuidade entre
a violência de Estado e as práticas patriarcais e patrimoniais da soberania, entendida como
poder de manifestação verdadeira de sua própria autoridade. Na cena do golpe de Estado e da
força ex machina do poder mobilizada para salvar a nação, ressoa ainda a velha máxima de
Quincas Borba – renovada pela roupagem diplomática e tecnocrática dos golpes gestados no
interior dos sistemas democráticos: “ – Ao vencedor, as batatas”.
234

7 ANTITERRORISMO À BRASILEIRA

- a convi-conivência (doença típica brasileira)


parece consumir a maior parte das idéias [...]
Assumir uma posição crítica: a aspirina ou a cura?
Ou a curra: ao paternalismo, à inibição, à culpa.

Hélio Oiticica, Brasil Diarreia.

Ao tentar adequar os ordenamentos jurídicos nacionais às legislações internacionais, a


Lei n.º 13.260/2016559 de autoria do poder executivo, que tipifica o crime de terrorismo no
Brasil, foi aprovada e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 16 de março de 2016. Ela
funcionou como tranquilizante às pressões de organismos internacionais por uma legislação
específica que, teoricamente, fosse capaz de responder de imediato às ações contra membros
de equipes desportivas à ocasião dos Jogos Olímpicos de 2016, realizados no Rio de Janeiro.
Ainda que o Brasil já fosse signatário de uma série de convenções contra o terrorismo,
como a Convenção para Prevenir e Punir Atos de Terrorismo Configurados em Delitos Contra
as Pessoas e a Extorsão Conexa560, de 1973, e a Convenção Interamericana contra o
Terrorismo561 (CICTE), de 2003.
Na Lei Antiterrorismo brasileira, as infrações referidas pelos dispositivos, no entanto,
já se encontram, separadamente, em crimes tipificados pelo código penal vigente. A
Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, XLIII, menciona inclusive o termo:

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia


a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo
e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Porém, a ampliação em termos genéricos e abertos dos tipos penais recobertos pelos
terrorismos dá margem para interpretações subjetivas e expansivas na categoria de “terrorista”,

559
Além de ser crime inafiançável, a Lei prevê reclusão de 12 a 30 anos em regime fechado para aqueles que forem
enquadrados em seus artigos.
560
O Decreto 3.018/99 foi promulgado pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e entrou
em vigor no Brasil em 6 de abril de 1999.
561
A Convenção entrou em vigor no Brasil em 26 de dezembro de 2005, promulgada pelo Decreto 5.639/05 do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
235

malgrado a caracterização segundo “o fundamento da ação, a forma praticada e o fim desejado


pelo agente”. Ora, como avaliar se as condutas têm ou não este perfil?
Segundo o art. 1º da Lei 13.260/16, que regula o art. 5º, XLIII, da CF:

Art. 1º: Esta Lei regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição
Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e
processuais e reformulando o conceito de organização terrorista.

A definição de terrorismo está presente no art. 2º da Lei e estabelece que o terrorismo


consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de
xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, e quando cometidos com
a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a pessoa, o patrimônio, a paz
pública ou a incolumidade pública ao perigo. O que significa que a compreensão do “perigo”
depende das agências penais, às quais caberia analisar e interpretar caso a caso, com vistas à
aplicação da norma.
Não parece, todavia, mera adequação da legislação nacional ao direito internacional.
A (in)definição atual é expandida, recobrindo outros tipos de organização, segundo a natureza
da ação, os meios utilizados e o fim a que se destinam. Economia em termos de definição que
possibilita interpretações ambivalentes e arbitrárias. Afinal, o que significa “expor a perigo a
paz pública”? Ou, ainda, nos termos da lei antiterror, como seria possível definir se um
movimento tem intento político ou social? Existe movimento social que não se organize em
torno de questões políticas?
Há, deste modo, sempre um risco à espreita: o de legitimar a penalização dos atos
daqueles que escapam aos enquadramentos desejados, ou ameaçam desestabilizar os jogos de
forças políticos, por meio de ações que coloquem em “risco” não o patrimônio ou a segurança
pública, mas os cálculos político-econômicos da ordem hegemônica. Como os movimentos
sociais, apesar de o art. 2º, §2º, da Lei 13.260/16 expressar que os atos de terrorismo ali citados
não são aplicados à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas,
movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados
por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com
o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais.
Alinhada à lógica do direito penal do inimigo e da guerra ao terror, a lei de emergência
opera na perspectiva da criminalização de determinadas condutas e na supressão de garantias
fundamentais e processuais. O que não seria novidade na terra brasilis senão pelo fato da
institucionalização de medidas autoritárias e da execução legal pelos agentes da segurança
236

pública, como as polícias militares e civis, cuja tradição de violência excessiva e violação dos
direitos humanos dão a ver os perigos latentes do recurso a estas normas incriminadoras.
Normas, aliás, que perpetuam a tradição vertical das proposições de leis no país, dado
que sua aprovação, em regime excepcional, prescindiu de discussões aprofundadas e amplas
com a sociedade civil. O que se evidencia na própria redação e na letra da lei, cuja proposta
modificada pelo Senado incluiu tanto com a tipificação do crime de “apologia à tortura”, o
“terrorismo contra a coisa” – orientado para depredações – o uso flutuável do termo
“extremismo político”, subjetivando expressamente sua interpretação. E se ambos foram
retirados posteriormente pelo veto presidencial, sem dúvidas, se deveu à reação de setores
organizados da sociedade civil e às críticas de especialistas atentos às manobras político-
jurídicas em curso no país.
Penalidades desproporcionais, categorização como organização criminosa, políticas
criminais expansivas, tipos penais vagamente delineados. Ora, o objetivo de enquadrar qualquer
possibilidade de resistência política em seus dispositivos é bastante evidente. E resistência
entendida desde associações de moradores que protestem contra atentados terroristas de Estado
ou mesmo movimentos organizados historicamente perseguidos ou deslegitimados, por serem
relacionados à violência e à ocupação de propriedades improdutivas e ociosas. Pois se cabe aos
operadores do direito a interpretação acerca dos enquadramentos, não surpreende que as
imagens de “vândalos” e “terroristas” sejam intercambiáveis quando se trata de criminalizar
ações reivindicatórias.
Não é de estranhar certos traços de aproximação entre este ordenamento jurídico e
alguns dispositivos da Doutrina de Segurança Nacional brasileira, em que pese os distintos
contextos. Familiaridade incômoda, é certo. Veja-se, por exemplo, o juízo de valor sobre o
cunho ideológico dos atos praticados. Competiria ao juiz a definição de pertenças ideológicas,
segundo os objetivos praticados pelos movimentos ou pessoas circunscritas no tipo penal da
lei. De outro lado, determinadas filiações ideológicas, como movimentos anarquistas ou de
esquerdas revolucionárias, por si só, se configurariam como desordeiros e criminosos, com o
reforço do discurso midiático, pronto para sentença condenatória mesmo sem fundamentação.
Ou, sobretudo sem fundamentação, pois a presunção de inocência é também negada quando se
trata de “extremistas”.
Terrorismo de classe organizado, na situação de guerra vale tudo. Porque é preciso se
adiantar ao crime, como em Minority Report, e suas visões do futuro. É preciso definir o
criminoso antes mesmo de cometido o crime. E será nas fileiras de indivíduos não-brancos e de
baixo poder aquisitivo que irá se recrutar os candidatos a potenciais criminosos e terroristas,
237

ora recobertos pela figura do estuprador ora daqueles que são capazes de tudo, pois não teriam
nada a perder.

As máscaras do poder

Após as Jornadas de Junho de 2013, as manifestação políticas no país passam a ser


vistas como o lugar de infiltrados desordeiros e criminosos comuns, que, poderiam assumir a
máscara de Black-Blocks, ou de oportunistas com “personalidade voltada para o crime”, como
o catador Rafael Braga562, único condenado em circunstância relacionada aos protestos de 2013.
A repressão policial para dispersar aglomerações, as prisões arbitrárias e a violência
desproporcional deram sinais da resposta à altura do Estado. As balas de borracha não
apagavam ideologias, mas marcavam os corpos insubmissos; as bombas lançadas provocavam
efeitos físicos e morais: o recado de terror e medo disseminado em reação à organização popular
não deixava margem a dúvidas: se as massas gritavam “amanhã vai ser maior”, os agentes da
segurança respondiam com suas ações virulentas: “amanhã vai ser pior”.
No ápice das manifestações, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro chegaria a
sitiar o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
intimidando estudantes e professores e reatualizando algumas das cenas mais características da
experiência ditatorial brasileira. Só que agora em mobilizações que fechavam as ruas e
cercavam as redes virtuais, com a proibição do uso de máscaras563 e detenções injustas,
baseadas na Lei das Organizações Criminosas564, e na perseguição de coletivos políticos565 e

562
Rafael Braga respondeu a dois casos que ficaram notórios pelos indícios de falha processual e abuso de
autoridade, um por “porte ilegal de artefato incendiário” e outro por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Os
critérios racial e social foram fatores determinantes em sua condenação, fundamentadas nos depoimentos de
policiais. Os dois frascos de desinfetante Pinho Sol encontrados com ele e, posteriormente, seis gramas de maconha
foram provas suficientes para condenação à pena privativa de liberdade por cinco anos, sem possibilidade de
recorrer em liberdade.
563
A Lei Estadual n.º 6.528, de 11 de setembro de 2013, ao regulamentar o artigo 23 da Constituição do Estado,
instituiu a proibição das formas de ocultação do rostos dos cidadãos com o propósito de impedir ou dificultar a
identificação pelos agentes estatais.
564
A Lei de Organizações Criminosas, n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013, regulamenta meios de obtenção de
provas não convencionais, a infiltração de agentes policiais, sanciona novos tipos penais de associação e
organização criminosas, dentre outras medidas inteiramente questionáveis, formalizadas no “calor da hora”.
565
Cabe citar, nesse sentido, o “processo dos 23”. Trata-se de processo criminal de 2014, contra 23 ativistas
acusados de integrarem organização criminosa e planejarem atos de violência direta nas manifestações. Com a
expedição dos mandados de prisão na véspera dos jogos finais da Copa do Mundo, realizada no Rio de Janeiro,
visava-se, evidentemente, dissuadir possíveis protestos pelo medo de pena semelhante. Em julho de 2018, dando
sequência à pressão criminalizante direcionada às lutas sociais, os ativistas foram condenados a penas entre cinco
e sete anos de prisão por crimes de formação de quadrilha, corrupção de menores, lesão corporal e dano
qualificado.
238

movimentos sociais. Tudo vira índice e indício de pertencimento ideológico a uma organização:
bandeiras, livros e cores adquirem a materialidade significante de artefatos a serem usados
como prova suficiente senão da participação direta, pelo menos da cumplicidade criminosa.
A disputa que se trava hoje para o veto do artigo566 que exclui os movimentos sociais
do rol do terror – incluído à ocasião de inúmeras contestações de movimentos sociais contra os
gastos exorbitantes em obras públicas que culminaram na gentrificação e na remoção forçada
de milhares de pessoas –, indica bem o que está em jogo. Pois se o objetivo é criminalizar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ou o Movimentos dos Trabalhadores
Sem-Teto (MTST), as medidas de repressão cotidianas e o urbanicídio indicam claramente a
que fins tem se direcionado os instrumentos penais do antiterror à brasileira.
As transformações acentuadas pela especulação imobiliária tem um custo elevado para
as populações mais pobres. E se favorece o capital das grandes empreiteiras, rentistas e
investidores imobiliários, de um lado, o urbanicídio aponta para a não efetivação dos próprios
instrumentos legais, elaborados para garantir o acesso e a permanência das pessoas em suas
casas, como o Estatuto da Cidade, Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece os
princípios básicos de planejamento participativo, uso e ocupação do solo, e a função social da
propriedade.
A gentrificação olímpica, assim, deu continuidade aos processos de valorização
periférica das cidades-sede e à intensificação dos terrorismos de Estado contra suas próprias
populações marginalizadas, expulsas de regiões em processo de “enobrecimento” e
indissociáveis da higienização social em curso. Note-se como a cidade se abre como campo de
batalha internamente, com seus territórios a serem conquistas e ocupados pelas forças da ordem.
Como se no mapa da pólis se encontrasse, desde o interior, aquilo que pode enfraquecê-la: a
massa amorfa dos pobres, quando não basta mais erguer muros de concreto e tapumes para
neutralizar os “desvios” da paisagem. Na margem da zona limite, primeiro se expede a ordem;
depois, se mobiliza a necropolitica estatal de gestão dos espaços urbanos racialmente
produzidos. Não necessariamente nesta ordem.
Pois os modelos “cívico-territoriais”567 ensejam territorialidades que não se dissociam
da gestão do modelo desigual da sociedade, como lembraria o geógrafo Milton Santos. Não se

566
Há ainda os Projetos de Lei do Senado – PLS 272/2016, proposto por Lasier Maciel, e o PL 5065/2016,
elaborado pelo Delegado Edson Moreira, com o objetivo de reinserir estas tipificações, penalizando-as, e a fim de
“disciplinar com mais precisão condutas consideradas como atos de terrorismo”. Disponível para consulta em:
http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?t=196641 Acesso em: 07 dez. 2018.
567
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. p. 150.
239

tratam mais do medo dos contágios e da disseminação dos miasmas, que serviram de razão para
criação das barreiras divisórias, físicas e simbólicas, entorno das áreas mais pobres. Em
topografias marcadas pela presença cada vez mais difusa, nas grandes metrópoles, os enclaves
raciais não parecem dar mais conta do movimento expansionista de áreas “glamourizadas”,
como determinadas regiões de favela ou bairros outrora vistos como distantes dos centros
urbanos, mas reconfigurados como segmentos de mercado rentáveis, voltados para classes
médias. A pressão atura uma vez mais no movimento centrífugo da expulsão. “Barreiras de
mobilidade espacial”568: linhas de cor, governamentalidade territorial de dominação sócio-
étnico-racial.
A lógica do estado de exceção à brasileira e a seletividade penal estigmatiza grupos
criminalizados, comumente vulneráveis economicamente, no exercício necrobiopolítico
cotidiano, com a finalidade de manutenção e reforço do controle social. Às instituições policiais
é conferida a tarefa da vigilância e da fiscalização repressiva, não raro, com função similar que,
no século XIX e XX, tinham os aparatos repressivos direcionados à esquerda, comunista ou
anarquista, identificada ao terrorismo revolucionário. E no Brasil mais recente, durante a
ditadura civil-militar brasileira, com a associação entre comunistas e terroristas internos –
inimigos e não cidadãos, a serem eliminados em nome da pacificação social.
Enquanto não se redefinem as bases para aplicação racialmente direcionada das leis
punitivas no Brasil, a ideia de uma democracia real permanece idealmente bela, mas
efetivamente distante. Sobretudo, com a tentativa de redução da polifonia das multidões às
vozes-em-uníssono do consenso oligárquico e punitivista em voga. Os ruídos da ordem
tensionada não foram capazes de colocar em cheque a hegemonia dos poderes e dos grupos
dominantes. E que, de modo insuspeito, teria por consequência a escalada vertiginosa da
extrema-direita, reacionária e conservadora, que não cessou de imputar a desordem à falta de
disciplina, às leis brandas e à necessidade de endurecer as penas e os castigos para “dar o que
merece” àqueles que fazem o que querem.
A Lei Antiterror responde aos anseios securitários destes segmentos sociais ciosos por
mecanismos de punição da desordem, da qual eles mesmos se figuram distantes, mas
estranhamente próximos, envoltos por ela: fora dos condomínios, no centro da cidade, nas
dependências de empregada. Até aí não é novidade o delírio do terror à brasileira, cujo

568
ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo.
Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, USP, vol. 22, p. 108-134, 2011. p. 114.
240

imaginário parece sempre prefigurar um outro terrível à espreita, quando as práticas e os


discursos revelam ainda mais próxima a figura temida: a violência endêmica, instanciada no
prolongamento natural do corpo-outro desumanizado.
241

8 CONCLUSÃO PARA UM COMEÇO

Pois paz sem voz | paz sem voz | não é paz, é medo.

Minha alma (a paz que eu não quero), O Rappa

A construção histórica é dedicada à memória dos sem nome.

Walter Benjamin

Temos medo do tempo presente. O medo é o afeto que nos paralisa. Mas também é
aquele que nos coloca em guarda, em riste e em permanente atenção ao que se passa ao redor.
O tempo é ainda de homens partidos, como escreveu Drummond. De homens, mulheres e
crianças que restam e resistem aos avanços acelerados de políticas que fazem da exceção – sob
todos os estados – a prerrogativa para o exercício de morte na guerra contra o inimigo
racial/biológico.
Resistir, por outro lado, significa manter a coragem, permanecer, ficar de pé, parar. Mas,
uma parada mais próxima à suspensão que da estagnação, atenta, ativa e em deslocamento
contra a força do terror. Nesta parada há contenção – de segurar junto e manter unido o que os
terrorismos de Estado desejam estancar: o movimento, o deslocamento, a diferença.
Estado de exceção, guerra ao terror, colonialidade: a tríplice aliança das estruturas
modernas/coloniais de poder que fundamentam o governo pelo terror, paradigma da gestão
contemporânea dos corpos, dos tempos e dos espaços, das arquiteturas do medo e das
engenharias de controle social. Estruturas que reconfiguram e reativam as hierarquias racistas,
sexistas, classistas e discriminatórias, por meio da prerrogativa legal da emergência, e que
instauram esquemas legados dos empreendimentos coloniais – a exceção, por excelência,
quando a vida é modulada pelas práticas de subjugação, de extração e de fabricação do
excedente, “[...] isto é, uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou dispendida sem
reservas”569.
Formas de genocídio atualizadas, as permanências violentas e autoritárias das estruturas
de poder da colonialidade se redimensionam no éthos beligerante e na multiplicação das
guerras: às drogas, ao crime e, finalmente, a guerra total ao terror. É essa guerra que tem sido
globalmente mobilizada como artifício geopolítico de manutenção da colonialidade, que não

569
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
73.
242

pode passar em branco, quando se trata de complexificar as políticas de rebalcanização do


mundo orientadas por um projeto de Estado necrobiopolítico. Levar isso a sério, como nota
Mbembe,

Implica continuar a perseguir na vida de hoje os sinais que indicam esses retornos
do colonialismo ou sua reprodução e sua repetição nas práticas contemporâneas –
sejam elas práticas de guerra, formas de menosprezo e de estigmatização das
diferenças ou, mais diretamente, formas de revisionismo, que, a pretexto do
fracasso dos regimes pós-coloniais, procuram justificar ex post aquilo que foi,
antes de tudo, como sugeriu Tocqueville, um governo grosseiro, venal e
arbitrário.570

A guerra supostamente justa contra o terror apaga os contornos de sua violência,


enquanto desfaz a evidência dos meios arbitrários de que lança mão. Essa operação consiste em
naturalizar os processos, ocultar as premissas e a base assimétrica das relações de poder,
recorrendo a uma atividade performativa da decisão política soberana: o decreto do estado de
exceção expandido para além das fronteiras nacionais. Pois, sua declaração implica a realização
de uma ação suspensiva, cujos efeitos imperativos do poder se estendem – desigualmente – a
todos os estados.
Ora, é preciso pensar um paradigma antirracista e decolonial que desloque o governo
da emergência para a emergência de um outro governo. Governo no qual os enunciados
políticos das periferias do capitalismo, do Sul geográfico e epistemológico, sejam efetivamente
orientadores das políticas públicas, de modo a reverter a regra do que sob nenhuma hipótese
poderá ser enquadrado como “dano colateral” da exceção.
“Vidas negras importam”, repetia a socióloga e vereadora negra Marielle Franco,
assassinada à queima-roupa em 2018, em uma das regiões centrais da cidade do Rio de Janeiro.
Marielle não foi exceção, apesar de ser uma das poucas mulheres negras a ter ocupado um cargo

570
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p.
275.
243

político no parlamento carioca571. De acordo com o Atlas da Violência572 de 2017, publicado


pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP), a cada cem pessoas executadas no Brasil, setenta e uma são afrodescendentes.
E a cada vinte e três minutos, em média, um jovem negro é assassinado no país. Esses números
têm rosto, corporalidade e nome. Como Marielle, enfrentam as disparidades abissais em um
país que institucionalizou a violência na gestão da segurança pública, refletida no aumento
contínuo e persistente da letalidade estatal no Estado democrático de emergência. Um nome
próprio para o terrorismo de Estado legalmente autorizado.
Com a prevalência do Direito Penal do Inimigo, e a coação empregada a fim de anular
seu potencial ofensivo, o status de “inimigo” passa a designar os adversários do Estado, aqueles
que podem ser aniquilados pelo poder soberano, porque a eles é negado o reconhecimento da
humanidade e as garantias jurídicas fundamentais da pessoa humana. A humanidade fabricada
a partir dos padrões privilegiados da ordem hegemônica extirpa a consideração de outras
existências, reiterando as políticas racialmente segregacionistas e socialmente estratificadoras.
Vê-se bem como a lógica da penalização seletiva opera, na medida em que busca entre as
“classes perigosas” e os segmentos estigmatizados, os inimigos a serem combatidos,
antecipadamente e desproporcionalmente punidos. Excluídos do estatuto da cidadania e
proscritos da humanidade, a arbitrariedade e o autoritarismo tornam-se a “lei”, quando se trata
de perseguir, criminalizar e exterminar grupamentos promovidos a “inimigos de todos e de cada
um”.
Os inimigos são, assim, enquadrados pelo que talvez seja a forma mais temerária do
terror, que tem como agente as instituições do Estado. A lógica do colonialismo consiste em
anular a agência573 do colonizado e naturalizar a zona de guerra permanente, na qual o

571
Agradeço à Malu Stanchi pela indicação do texto de Thula Pires, intitulado “Não solte a minha mão, que eu
não soltarei a de vocês”. Nele, a autora atenta para o fato de que: “O lugar de poder ocupado por Marielle a
aproximou de uma zona (a do ser) e abriu a porta para que seu sangue fosse sentido em outras cercanias. Mas, ela
nunca ocupou verdadeiramente esse lugar. E, foi a morte brutal e sem ameaças anteriores que fortalecem essa
hipótese. Estava-se diante de corpos que habitam a zona do não ser. Sobre eles, historicamente se pode dispor,
violentar e matar sem necessidade de aviso ou ameaças. São corpos sobre os quais, normalmente, não há luto. Não
que a zona do não ser não chore, não vele os seus e suas, não seja corroída a cada vida perdida. Mas, sua dor não
é reconhecida como dor válida. Como dor humana. Como dor política.” PIRES, Thula. “Não solte a minha mão,
que eu não soltarei a de vocês.” Empório do Direito, Florianópolis/SC. 19 mar. 2018. Disponível em:
http://emporiododireito.com.br/leitura/nao-solte-a-minha-mao-que-eu-nao-soltarei-a-de-voces. Acesso em: 21
dez. 2018.
572
CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato Sergio de; BUENO, Samira; VALENCIA, Luis Iván; HANASHIRO,
Olaya; MACHADO, Pedro Henrique G.; LIMA, Adriana dos Santos. Atlas da Violência 2017. Rio de Janeiro:
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada; FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública, jun. 2017.
Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em: 24 jun. 2018.
573
Segundo Asante: “Um agente, em nossos termos, é um ser humano capaz de agir de forma independente em
função de seus interesses. Já a agência é a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários
244

colonizador, “o bem” – polo hegemônico do poder e das forças da ordem –, pode exterminar o
colonizado/inimigo racial desumanizado, identificado com “o mal” – fonte de emanação de
toda negatividade:

[...] a espoliação colonial é legitimada por um imaginário que estabelece


diferenças incomensuráveis entre o colonizador e o colonizado. As noções de
“raça” e de “cultura” operam aqui como um dispositivo taxonômico que gera
identidades opostas. O colonizado aparece assim como o “outro da razão”, o que
justifica o exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade,
a barbárie e a incontinência são marcas “identitárias” do colonizado, enquanto que
a bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador.574

Por esse motivo, o governo da emergência, hoje, está na ordem do dia. Há capitalização
política e econômica do medo, ativamente mobilizado na bolsa de temores contemporânea, e
instrumentalizado para criação do indivíduo perigoso. Porque, se não há guerra sem inimigos,
é preciso recriá-los constantemente. É necessário reanimar a ameaça, difusa e esparsa, mas
sempre à espreita. E, finalmente, estabelecer o paradigma da guerra e da excepcionalidade como
operadores ativos do controle dos corpos, dos fluxos e das formas de vida, com a justificação
prévia do assassinato político e do extermínio perpetrados segundo a lógica da violência racial.
O fato é que “[...] alguns corpos e alguns territórios racializados recebem a preferência
na distribuição das chances de vida e morte”575. Espacializada, a política de morte e de
silenciamento é sustentada por um padrão mórbido das relações raciais e de
governamentalidade, que determina quais geografias e corpos serão alvos privilegiados da
intervenção violenta. Firma-se, então, a necessidade de contestar o modelo de guerra e o padrão
mórbido que ele faz funcionar:

De um ponto de vista antropológico, o que essas críticas contestam implicitamente


é uma definição do político como relação bélica por excelência. Também
desafiam a ideia de que, necessariamente, a racionalidade da vida passe pela morte

para o avanço da liberdade humana. Em uma situação de falta de liberdade, opressão e repressão racial, a ideia
ativa no interior do conceito de agente assume posição de destaque. [...] é importante observar o conceito de
agência em oposição ao de desagência.” ASANTE, Molefi K. Afrocentricidade: notas sobre uma posição
disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.) Afrocentricidade: Uma abordagem epistemológica
inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 93-94.
574
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In:
LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 83.
575
ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: necropoder e governamentalidade espacial em São Paulo.
Revista do Departamento de Geografia, São Paulo, USP, vol. 22, p. 108-134, 2011. p. 117-118.
245

do outro; ou que a soberania consiste na vontade e capacidade de matar a fim de


viver.576

De outro lado, para além da dimensão do extermínio físico, o dispositivo de racialidade,


forjado no seio do projeto colonial, justifica “[...] o genocídio em suas dimensões
epistemológicas, representativas, estéticas, materiais e simbólicas”577. A aliança genética entre
colonialidade do poder e colonialidade do saber revela a associação entre a dominação
justificada pela produção da inferioridade racial e a desabilitação epistêmica das formas de
conhecimento e do universo simbólico de grupos subalternizados. Por meio desse processo,
fabrica-se a “manifestação de subjetividades forjadas na diferença colonial”578. Diferença
subontológica, subjetividades estilhaçadas no espelho de imagens distorcidas da
modernidade/colonialidade, no qual o corte racial, o corte de gênero e de sexualidade se
interseccionam na cadeia de violência sistemática.
A tarefa da decolonização dos corpos, dos saberes e da linguagem política, portanto, não
é a da tolerância. Ao contrário, ela requer intolerar o pensamento-do-um alçado à universalidade
dominante, com seus repertórios monoculturais e a negação ontológica do outro. A
consequência da colonialidade do ser/saber/poder se reflete nas marés de sangue dos genocídios
normalizados. Segundo Castro-Gómez:

As teorias pós-coloniais demonstraram [...] que qualquer narrativa da


modernidade que não leve em conta o impacto da experiência colonial na
formação das relações propriamente modernas de poder é não apenas incompleto,
mas também ideológico. Pois foi precisamente a partir do colonialismo que se
gerou esse tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as
sociedades e as instituições modernas. 579

Reconhecer que a colonialidade supõe um padrão cognitivo universalizado é


compreender porque o não-europeu e o “inimigo racial” se confundem, historicamente, com o
primitivo e com o animal selvagem. Eis aí o terreno fértil para a vigência de relações de
dominação e de conflitos, redimensionada em novas bases institucionais, mas intocável em seu

576
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018b. p. 20.
577
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Prefácio. In: STREVA, Juliana Moreira. Corpo, raça, poder – Extermínio
negro no Brasil: uma leitura crítica, decolonial e foucaultiana. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018. p. 11.
578
MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da
modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 38.
579
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In:
LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 83.
246

cerne, já que a questão da raça está implicada na questão do Estado-nação e dos pactos em torno
da segurança nacional. Por vezes, ela se mescla tão inextrincavelmente às narrativas da defesa
que somente o corte racial permite um olhar mais acurado para seus enunciados e para as
práticas de objetificação e de desumanização predatória, de criminalização e de marginalização
de que se nutrem, historicamente, esses discursos racistas:

Isso quer dizer, definitivamente, que a classificação das pessoas não se realiza
somente num âmbito do poder, a economia, por exemplo, mas em todos e em cada
um dos âmbitos. A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz
instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o
classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos
da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade
pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno,
com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política.580

É o esforço de manter firmes as fronteiras – epistemológicas, culturais, religiosas,


políticas, geográficas, sexuais – que evidencia o não reconhecimento da legitimidade/validade
de outras existências, modos de organização da vida, saberes, performances, organizações
sociais e filosofias encarados como “desvio”. Esse desvio significa, na perspectiva hegemônica,
uma mudança da direção do que se considera normal; uma subtração fraudulenta, o furto do
que, não estando em adequação à norma, precisa ser corrigido à força – o desviante. De outro
lado, do ponto de vista das resistências, ele marca criticamente o distanciamento de uma matriz
única de pensamento, de outras formas de “[...] experienciar o tempo, o espaço e outras
coordenadas básicas da subjetividades e sociabilidade humana”581, críticas aos marcadores de
civilização – inclusos os sentidos normativos de classe, raça, gênero e sexualidade.
É aí que se busca refundar constantemente a colonialidade pela via do racismo/sexismo
epistêmico e de seus efeitos materiais e simbólicos. A criação das zonas de guerra permanentes
e a instituição da diferença subontológica reorganizam as relações assimetricamente,
justificadas pela reivindicação à universalidade, à objetividade e à verdade como sustentáculos
do projeto desumanizador/civilizatório. Sabe-se bem que a produção e a reprodução do
conhecimento canônico são privilégios daqueles que detêm o poder econômico para definir, por
meio de um sistema de representação referencial, a identidade, e, por oposição, a diferença.

580
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.).
A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005. p. 126.
581
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões
básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 29.
247

A pluriversalidade, em viés oposto, longe de encerrar perspectivas, aponta para outras


cosmovisões e cosmopercepções, descentrando o sistema-mundo moderno do padrão relacional
estabelecido entre centro e periferia, Sul e Norte, que tende à manutenção dos privilégios e das
subalternidades, como se a universalidade/universidade não fossem o lugar de reafirmação do
domínio. É da crítica a esse padrão civilizatório que emerge a desobediência epistêmica582,
pautada pela integração, pelo policentrismo e pela produção de conhecimento a partir de
localizações corpo-geopolíticas583 determinadas e contextualizadas.
Talvez, nesses desvios, possa-se extrair da diversidade epistêmica a força expansiva das
insurgências direcionada para o movimento de decolonização do pensamento e de seu repertório
conceitual racista/sexista/colonial. Em oposição à persistência do imaginário homogeneizador
e modernizante do colonialismo e da colonialidade, as formas de resistência levadas a cabo a
partir das lutas decoloniais inauguram espaços de abertura para que apareçam fissuras
epistemológicas e políticas insuspeitas. Elas são fundamentais para repensar os pressupostos
históricos, político-culturais e teórico-conceituais da teoria política e para a emergência de
outras narrativas e protagonismos, em “um mundo onde outros mundos sejam possíveis”584.
É no exercício dessa reflexão, atravessada pelo fragor da hora histórica, que se podem
produzir leituras mais densas e críticas das lutas e das estratégias políticas, de modo a tensionar
a oposição entre teoria e prática e a substantivar as discussões a partir da resistência produzida
pelos corpos políticos. Ensaiar uma escrita política, por outra via, é uma forma de intervenção,
porque alia a crítica teórica ao exercício efetivo de transformação crítica. Como recordaria
Foucault,

A crítica consiste em caçar esse pensamento e ensaiar a mudança: mostrar que as


coisas não são tão evidentes quanto se crê, fazer de forma que isso que se aceita
como vigente em si, não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os
gestos fáceis demais.585

582
Cf. MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em
política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324,
2008.
583
Como lembra Fanon, “[...] no mundo branco o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em
terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.” FANON, Frantz. Pele negra,
Máscaras Brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 104.
584
GROSFOGEL, Ramon. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
civilizada. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.) Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 65.
585
FOUCAULT, Michel. Est-il donc important de penser? [1981]. Entrevista com Didier Eribon. Libération, n°
15, 30-31 maio de 1981. In:_____. Dits et écrits II. Paris: Gallimard, 2001b. p. 999. Na versão original: “La critique
consiste à débusquer cette pensée et à essayer de la changer: montrer que les choses ne sont pas aussi evidentes
248

Trabalhar a própria escritura como corpo, no qual se inscrevem as linhas capazes de


potencializar as resistências e subverter os modos de produção acadêmicos pautados pelo
consenso e pelos cânones teóricos euro e anglocentrados, é atentar para a indissociabilidade
entre o quem/que se delimita como problema e os modos de enunciação. Tornar difíceis os
gestos mais evidentes significa problematizar os enquadramentos, lá onde as lentes analíticas
registram o mundo em sua “transparência” absoluta, como se a “caixa de ferramentas” do
vocabulário hegemônico não fosse fruto de uma criação interessada.
Ora, é certo que, em face da vastidão do panorama político, qualquer avaliação crítica
mais densa esbarra na multiplicidade de referenciais e distintas perspectivas historiográficas e
de regimes de representação, não raro, antitéticos. Penso, contudo, que é preciso produzir uma
escrita de resistência, em um momento no qual os autos de resistência nunca foram tão
numerosos; e de uma escrita de intervenção quando as intervenções militares e policiais em
todo o mundo se multiplicam diariamente, com salvo conduto para o emprego de toda espécie
de violência, execuções extrajurídicas, opressão e autoritarismo.
De nenhuma forma os apontamentos tecidos nesta tese exaurem os problemas e desafios
que estão em jogo no modo de governo pelo terror, apoiado nas razões de emergência,
amplamente disseminadas neste início de século. Tampouco têm a pretensão de desconsiderar
as complexidades envolvidas no tratamento de um tema em que economia, cultura e política se
entrecruzam, nos termos da segurança, e reconfiguram todas as esferas da vida social.
Este estudo teve por objetivo traçar continuidades e deslocamentos no que diz respeito
às permanências autoritárias e violentas das matrizes coloniais do poder na atualidade,
sobretudo, onde os estados de exceção – por vezes, não nomeados – e as guerras ao terror são
acionados para o combate do inimigo racializado.
Ademais, o corpo desta tese esboça uma questão metodológica, ela mesma filosófica,
diante de tantos caminhos: o que é permitido estar no interior e o que é suposto fora do campo,
quando se trata de traçar as fronteiras entre filosofia, direito e ciências sociais; entre segurança
pública, pensamento e teoria política. Ultrapassar essas barreiras, recusando a reivindicação
pela pureza dos discursos e por uma linha genealógica que privilegia determinados filósofos
“reconhecidos”, talvez, seja um modo de testar outras frequentações, de campos expandidos e
de prismas que refratam a pluralidade das contribuições transdisciplinares.

qu’on croit, faire em sorte que ce qu’on accepte comme allant de soi n’aille plus de soi. Faire la critique, c’est
rendre difficile les gestes trop faciles”. Tradução e grifos meus.
249

Tempos de emergência, tempos de insurgências.


Na direção da perplexidade de Adorno, quando afirma que escrever poesia depois de
Auschwitz tornou-se um ato bárbaro586, podemos igualmente perguntar-nos: como escrever
uma tese sobre terrorismos e não tratar do genocídio diário da juventude negra brasileira? Como
escrever sobre direitos humanos sem expor a Chacina de Costa Barros ou pensar os limites
materiais de sua efetivação no asilo negado aos refugiados de guerra que chegam em solo
europeu? Como debater a questão dos racismos de Estado sem o confronto direto e intransigente
com o complexo industrial-carcerário587, que prolonga práticas escravagistas e penais tão
bárbaras em nosso tempo? Isto que Benjamin exprimia com assombro similar, quando no início
de suas Teses sobre o conceito de história, de 1940, se perguntava: “Não existem, nas vozes a
que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram?”588.
Talvez, o problema não seja tanto o como escrever, mas o exercício de escritura “depois
de”. Tornou-se um ato bárbaro não escrever sobre essas questões tão prementes e tratadas ainda
com o desprezo por nossa filosofia política anglo-eurocentrada em seus departamentos
ultramarinos589. Como viver depois do fim?
Se a questão de nossos campos fosse um problema a ser debatido depois deles, a ênfase
– não menos importante e urgente – seria na nodulação entre memória histórica, justiça e
reparação. Todavia, a questão dos governos democráticos da emergência, hoje, legitimadores
da violência racializada, é que ela é um problema em curso. E, como o curso transposto de um
rio, de um rio tantas vezes ocupado, não chegará ao fim se a compressão das margens só aponta
para a velha foz de sempre: o leito de morte. Vazante e refluxos atualizados, de tempos em
tempos, mas com os mesmos alvos e sangue vertido.
“A carne mais barata do mercado.”
A carne marcada para morrer.
A carne putrefata.
A carne.

586
ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: _____. Prismas. Trad.: Augustin Wernet e Jorge
Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998. p. 26.
587
O termo é de Angela Y. Davis em seu “A democracia da abolição: Para além do império, das prisões e da
tortura”, op. cit.
588
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 242.
589
Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Um Departamento Francês de Ultramar: Estudos sobre a formação da cultura
filosófica uspiana. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1994.
250

ANEXO A
A.1

BULENT KILIC / AFP – Menina síria na fronteira entre Síria e Turquia

A.2

José Manuel Fernandes/PressMinho – Campo de Refugiados de Osmaniye/Turquia


251

ANEXO B

Acervo pessoal. Camillo Monteiro dos Santos na “Marcha da Vitória”, no Rio de Janeiro, em
1º. de abril de 1964
252

ANEXO C

Analítica da Colonialidade, de Nelson Maldonado-Torres590.

590
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões
básicas. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón.
(Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 27-53. O
referido esquema, de inspiração fanoniana, encontra-se na página 26.
253

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