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Hegel e Freud: entre Aufhebung e

Verneinung
Por Alenka Zupančič

Sobre a negação não ser uma inversão É claro, no entanto, que não estamos
lidando simplesmente com uma inversão:
se o outro diz não, isso só pode significar
sim. O que está em jogo é que,
considerando a maneira que ela é usada
aqui, a negação é irrelevante ao conteúdo
que ela acompanha: ela não nega seu
conteúdo, mas o transmite, o entrega.
Nesse sentido, a negação é tanto não
essencial como absolutamente essencial
(porque sem ela, isso nunca teria lugar ou
“sairia”).
Quanto ao desenvolvimento freudiano Apesar de que possa parecer ser o caso,
acerca da negação: Freud não dispensa Freud não procede aqui simplesmente
a negação dispensando a negação. Ele não diz: uma
vez nos foi dado o conteúdo, podemos
esquecer da negação, ela está lá apenas pela
forma, e é só o conteúdo que importa. O
que ele diz é algo diferente.
Nomeadamente: o “ ’não’ é o selo da
repressão, um certificado de origem –
como, digamos, ‘made in Germany’ ”.[4]
O status ontológico do conteúdo O ponto fundamental dessa afirmação –
reprimido/inconsciente - a negação é que é também o ponto fundamental da
uma maneira de tomar conhecimento do psicanálise, sua descoberta crucial –
que é reprimido, no entanto, não é a poderia ser formulada assim: o conteúdo
aceitação do reprimido reprimido/inconsciente não é apenas como
qualquer outro conteúdo (exceto que é
reprimido), ele não possui o mesmo status
ontológico. Para entendermos isso,
precisamos ter em mente o fato de que o
“reprimido” é reprimido mesmo antes de
sua (primeira) aparição (como algo).
Isso, por exemplo, é o que Lacan almeja em
seu seminário sobre Os Quatro Conceitos
Fundamentais da Psicanálise com uma
série de declarações, tais como: “o
inconsciente é manifestado a nós como
algo que se mantém em suspense na área …
do não-nascido”; “a lacuna do
inconsciente poderia ser dita como sendo
pré-ontológica”; “a emergência do
inconsciente … não se presta à ontologia”;
“o inconsciente … é nem ser, nem não
ser”.[5] Sempre que estivermos lidando
com um conteúdo inconsciente, estamos
lidando com algo que é constitutivamente
inconsciente, isso é dizer que só é
registrado na realidade na forma de
repressão, como repressão (e não como
algo que primeiro é, e então é reprimido). É
por isso que se simplesmente nos focarmos
no conteúdo perdemos essa especificidade
(perdemos essa dimensão do não-
inteiramente-ser como o próprio modo de
ser dessa coisa particular, que é
precisamente o modo da repressão). A
repressão não é algo que podemos
simplesmente suspender e ter acesso nesse
caminho ao conteúdo/representação
inconsciente “imaculado”. Se fazemos isso,
perdemos algo um tanto essencial. De fato,
Freud descreve isso como uma Aufhebung
“má”, inoperativa, que já está trabalhando
no próprio mecanismo da Verneinung: “A
negação é uma maneira de tomar
conhecimento do que é reprimido;
todavia ela já é uma suspensão
(Aufhebung) da repressão, apesar de
não, obviamente, uma aceitação
(Annahme) do que é reprimido.”[6] Em
outras palavras, “tomar conhecimento
do que é reprimido” não é realmente do
que se trata a análise.
A verdadeira Aufhebung não é algo Também seria equivocado assumir,
como uma aceitação consciente do entretanto, que a verdadeira Aufhebung
conteúdo reprimido (analítica) equivaleria (para Freud) a algo
como uma aceitação consciente do
conteúdo reprimido. Em apenas algumas
linhas adiante Freud complementa: “no
curso do trabalho analítico nós
[frequentemente] obtemos sucesso em
também conquistar a negação, e em
trazer uma completa aceitação
intelectual do reprimido; mas o processo
repressivo em si ainda não está removido
(aufgehoben) por isso”.[7]
A verdadeira Aufhebung - uma operação Seja o que o verdadeiro Aufhebung
que envolva ativamente a repressão (o freudiano (digamos, um bem sucedido
processo repressivo) em si resultado da análise) possa ser, é claro que
ele não pode ser simplesmente uma
operação realizada no conteúdo reprimido,
mas algo que envolva ativamente a
repressão (o processo repressivo) em si,
aproximando-a a um tipo de movimento
dialético, usando-a contra si mesma, por
assim dizer; sendo o movimento dialético,
nesse caso, um movimento que preserva e
trabalha com o que nem é nem não-é, com
algo que não conta (nem mesmo “para
nada”).[8]
Nota [8]
Nota [8] - O processo repressivo é algo [8] Se reduzirmos a noção Freudiana de
diferente do conteúdo reprimido inconsciente a diferença entre um conteúdo
que está presente ao consciente e um
conteúdo que está “reprimido dele”, se o
reduzirmos a oposição entre ser ou não ser
consciente de algo (ou entre aceitar
conscientemente ou não aceitar algo), nós o
perdemos inteiramente. O processo
repressivo é algo diferente do conteúdo
reprimido (e, diga-se de passagem, é
também uma lição crucial para mantermos
em mente nesses tempos politicamente
agitados. Poderíamos dizer que enquanto a
“esquerda liberal” tem estado, por um
longo tempo, preocupada em “suspender a
repressão”, e nos fazer aceitar o conteúdo
reprimido (aceitar e tolerar o Outro, as
diferenças…), o processo repressivo
continuou absolutamente intacto. No
máximo, intensificou.)
Sobre a Verneinung e a Aufhebung Agora, se considerarmos a repetitiva
insistência de Hegel de que a Aufhebung
significa ao mesmo tempo negar e
preservar, não é deveras impactante como
a própria Verneinung parece ser em um
primeiro momento uma encarnação quase
cômica (“mecânica”) dessa mesmíssima
definição? Definida como “uma maneira de
tomar conhecimento do que é reprimido”,
enquanto preservando “o que é essencial à
repressão”, a Verneinung de fato parece
funcionar como uma comédia da
Aufhebung (da repressão).
A Verneinung é uma falsa Aufhebung – Nesse sentido a Verneinung já é uma
o inconsciente é estruturado como uma Aufhebung (ainda que uma “falsa”), e não
falsa Aufhebung simplesmente uma negação abstrata.
Poderíamos também dizer: o inconsciente é
estruturado como uma falsa Aufhebung. A
outra coisa importante, contudo, é que se a
Verneinung aparece então como uma falsa
Aufhebung da repressão, enquanto que a
análise deveria revelar sua Aufhebung
adequada, não devemos nos esquecer que a
Verneinung é ao mesmo tempo a coisa
mesma a partir da qual a análise se
desenvolve em uma direção que vai
efetivamente fazer algo à e com a
repressão. Ou, em outras palavras: a
“verdadeira” Aufhebung necessariamente
começa como uma “falsa”, ela
necessariamente começa como uma
comédia de si mesma. A grande virada
prática e teórica de Freud foi encarar essa
comédia bem a sério. E algo similar poderia
talvez ser dito para Hegel: Não seria a
Fenomenologia da Espiritualidade uma
Comédia do Espírito, levada com toda a
seriedade filosófica?[9]
Sobre a distinção entre o conteúdo e a O que é preservado nela daquele conteúdo
qualidade/propriedade do conteúdo singular (“mãe”) é seu caráter específico
(“propriedade”) – aquele do reprimido. Em
outras palavras, o que Freud tira dessa
particular Verneinung não é: “Ah, mas na
verdade era a mãe” (como se isso fosse algo
profundamente significante em si mesmo)
mas, antes: “algo apareceu aqui, nesse
nexo, que é da ordem do reprimido” (“mãe”
torna-se interessante para a análise porque
é marcada pela repressão e não porque
“mãe” é supostamente sempre significante
na análise. Em outras palavras, o que Freud
tira desse episódio não é essa ou aquela
coisa (“mãe”), mas uma peculiar
qualidade/propriedade daquilo
(“reprimido”).
A negação e o preservado O que é preservado é, assim, algo que
somente vem à luz (ou, mais precisamente:
que somente vem a ser algo, ou parte de
algo) no processo mesmo de sua negação.
A repressão persiste não simplesmente Mas o que nos interessa aqui
apesar da aceitação do reprimido, mas primeiramente e no mais é a lógica do
com sua ajuda fenômeno da fausse reconaissance (que
inclui coisas como déjà vu, déjà éprouve,
déjà entendu, déjà raconté), pois essa
lógica é sem dúvida impressionantemente
similar a aquela involvida na Verneinung.
Assim é como podemos colocá-lo tão claro
quanto possível: como no caso da
Verneinung, a repressão persiste não
simplesmente apesar da aceitação do
reprimido, mas com sua ajuda. O que
acontece no caso da fausse reconnaisance
é que um “evento” presente,
contemporâneo do inconsciente (um
achado inesperado, surpreendente) aparece
na forma de uma memória de um fait
accompli (de algo que parece ter sido
“encontrado de novo”), quer dizer, na
forma de algo que não é de imediato
interesse (a nós). Algo que acabou de surgir
é, assim, visto como que pertencendo a
alguma outra época (ou temporalidade).
Estamos olhando diretamente para ele (está
bem ali, diante de nossos narizes), ainda
sim o vemos como que advindo de muito
distante, como estranho e indiferente. A
fausse reconnaissance paradoxalmente
mantém o caráter não-familiar (estranho,
estrangeiro, outro, indiferente) do que
apareceu graças a sensação mesma de
reconhecimento e familiaridade (a peculiar
forma da afirmação cumpre aqui a mesma
tarefa da negação no caso da Verneinung).
Poderíamos também dizer que ela a
mantém através do corte da coisa de sua
articulação possível como presença (no
tempo presente) na realidade: pois essa
articulação já aparece pela primeira vez
como sua própria memória. E o ponto de
Freud é, novamente, que o que nos chega
dessa maneira estranha, indiferente, é
geralmente algo essencial.
Diferença entre o inconsciente entendido Porém, aqui mais uma vez, não devemos
como o sujeito não estando a par de algo, cometer o erro de projetar tudo no conteúdo
e o inconsciente no sentido Freudiano (traumático), como se esse conteúdo fosse
mais forte, que ativamente cria diferentes um ser completo (um ser plenamente
formações do inconsciente constituído) contra o qual o sujeito está se
defendendo, pondo um escudo. Antes, nós
devemos tomar esse escudo mesmo como o
próprio modo de ser do “não-nascido” (que
é desse conteúdo específico), como sua
manifestação genuína. Não estamos
lidando com algo que é impedido, por
alguma outra agência, de se articular como
presença e no tempo presente; ele é
impedido de fazê-lo por seu próprio (não-
)status ontológico paradoxal. Esta é
precisamente a diferença entre o
inconsciente entendido como o sujeito não
estando a par de algo, e o inconsciente no
sentido Freudiano mais forte, que
ativamente cria diferentes formações do
inconsciente. É por isso também que o
inconsciente pode somente aparecer como
algo que interrompe, descontinua a
presença e o tempo presente, e não
simplesmente como um conteúdo
alternativo.
A única coisa que o inconsciente pede é Também, o inconsciente não é algo que é
dizer-se “sempre-já” reprimido – como que
reprimido em algum passado inalcançável,
ou no modo de uma “ constituição
transcendental”; o modo “sempre já” não
descreve propriamente seu status
ontológico: não é que ele não possa nunca
estar “presente”, “contemporâneo”,
“acontecendo de fato”, que nunca possa
aparecer como ser – ao contrário, ele
aparece o tempo todo, porém precisamente
como uma descontinuidade (do presente, e
do ser). Ele aparece como uma
complicação, uma torção do ser (presente)
enquanto tal.
Meio pelo qual o que é reprimido O que é então crucial enfatizar em relação
pertence a (é parte de) essa mesma a esse tipo de fausse reconnaissance é,
realidade (influenciando sua própria como no caso da Verneinung, o seguinte:
estrutura) ela não é simplesmente uma maneira de
manter algo para trás, mantendo-o
desligado da realidade apesar de (ou pela
via mesma de) seu reconhecimento; é
também um meio pelo qual o que é
reprimido pertence a (é parte de) essa
mesma realidade (influenciando sua
própria estrutura).
Imediata presença da essência do A fausse reconnaissance não é um meio
conhecimento traumático em si, do pelo qual algo (que seria por demais
traumatismo como tal traumático em sua presença imediata) é
mediado pela tela da falsa memória. O que
está em jogo é ante que a falsa memória É
a imediata presença (é a externalização
mesma, Entäu erung hegeliana) da essência
do conhecimento traumático em si, do
traumatismo como tal.
O crucial é nunca simplesmente Se a mera suspensão da repressão (a
reconstruir a outra história, reprimida, inscrição do conteúdo reprimido na
mas trabalhar na direção de realidade consciente) não muda muita
circunscrever o ponto na realidade coisa, é porque ela falha em localizar e em
presente onde a repressão (de algum nomear o ponto de repressão nessa
aspecto dessa realidade) está sendo realidade mesma (que é o ponto do
ativamente mantida inconsciente). Em outras palavras, o crucial
é nunca simplesmente reconstruir a outra
história, reprimida, mas trabalhar na
direção de circunscrever o ponto na
realidade presente onde a repressão (de
algum aspecto dessa realidade) está sendo
ativamente mantida. É somente aqui que
chegamos a algo como a verdade.

Síntese
Temos, portanto:
a. O que está em jogo na negação não é uma simples inversão;
b. A negação é uma maneira de tomar conhecimento do que é reprimido, no entanto,
não é a aceitação do reprimido;
c. Seria errôneo concluir que a verdadeira Aufhebung (analítica) equivaleria (para
Freud) a algo como uma aceitação consciente do conteúdo reprimido;
d. O processo repressivo é algo diferente do conteúdo reprimido;
e. A Verneinung é uma falsa Aufhebung – o inconsciente é estruturado como uma falsa
Aufhebung;
f. A repressão persiste não simplesmente apesar da aceitação do reprimido, mas
com sua ajuda;
g. Se a mera suspensão da repressão (a inscrição do conteúdo reprimido na realidade
consciente) não muda muita coisa, é porque ela falha em localizar e em nomear o
ponto de repressão nessa realidade mesma (que é o ponto do inconsciente). Em
outras palavras, o crucial é nunca simplesmente reconstruir a outra história,
reprimida, mas trabalhar na direção de circunscrever o ponto na realidade
presente onde a repressão (de algum aspecto dessa realidade) está sendo
ativamente mantida. É somente aqui que chegamos a algo como a verdade.

Em ‘Sobre a dinâmica da transferência’ (1912), Freud desdobra o que acontece na


transferência quando esta toma a forma de resistência.
Primeiramente:
“Visualizemos a situação psicológica do tratamento: um pré-requisito regular e
imprescindível de toda psiconeurose é o processo que Jung com precisão chamou de
introversão da libido. Isso significa o seguinte: a porção da libido capaz de chegar à
consciência e voltada à realidade é diminuída, e a porção apartada da realidade,
inconsciente, que, por exemplo, ainda alimenta as fantasias da pessoa, mas pertence ao
inconsciente, é aumentada proporcionalmente. A libido moveu-se (total ou parcialmente)
para a regressão, reanimando as imagines infantis.”
Segundo:
“É nessa direção que segue, então, o tratamento analítico, que quer resgatar a libido, torná-
la novamente acessível à consciência e, por fim, colocá-la a serviço da realidade. Nos
pontos em que a pesquisa analítica topa com a libido recolhida em seus esconderijos,
necessariamente eclode uma batalha; todas as forças que causaram a regressão da libido
irão se levantar como “resistências” contra o trabalho, para conservar esse novo
estado.”
Freud aqui explicita uma primeira fonte de resistência:
“É que se a introversão ou regressão da libido não tivesse se justificado por uma
determinada relação com o mundo externo (em sua forma mais geral: através do
impedimento [Versagung] da satisfação) e sido, ela própria, adequada para aquele
momento, ela nem poderia ter se formado.”
Logo em seguida afirma a existência de uma outra fonte/origem de resistência, esta
mais fundamental:
As resistências com essa origem, no entanto, não são as únicas, nem mesmo as mais fortes.
A libido disponível para a personalidade sempre esteve sob a atração dos complexos
inconscientes (ou, mais corretamente: as porções desses complexos pertencentes ao
inconsciente) e resvalou para a regressão, porque a atração da realidade tinha ficado
menos intensa. Para libertá-la, essa atração do inconsciente agora precisa ser
superada, ou seja, o recalque [Verdrängung] das pulsões inconscientes desde então
constituídas no indivíduo e suas produções precisam ser suspensos. Isso resulta na
parte de longe mais grandiosa da resistência, que tão frequentemente faz perdurar a
doença, mesmo quando o afastamento da realidade volta a perder a justificativa
provisória.
Assim, temos duas origens da resistência. A primeira se refere ao mundo externo, isto é, a
introversão ou regressão da libido diz respeito a uma determinada relação com o mundo
externo; ela foi adequada para aquele momento. Desse modo, as forças que causaram a
regressão da libido irão se levantar como “resistências” contra o trabalho. A segunda
origem, por sua vez, versa sobre a atração exercida pelas porções inconscientes de
complexos sobre a libido disponível para a personalidade (consciente). Freud coloca que
esta libido resvalou para a regressão porque a atração da realidade tinha ficado menos
intensa. Para libertá-la, prossegue, é necessário operar sobre o recalque, é necessário operar
sobre a atração exercida pelo inconsciente: “[…] o recalque das pulsões inconscientes
desde então constituídas no indivíduo e suas produções precisam ser suspensos”.
Conclui reafirmando que esta última origem é mais fundamental para o trabalho
analítico que a primeira.
Isso está em acordo com o que Alenka traz em seu texto sobre Freud e Hegel quando
apresenta a seguinte leitura?
Se a mera suspensão da repressão (a inscrição do conteúdo reprimido na realidade
consciente) não muda muita coisa, é porque ela falha em localizar e em nomear o ponto
de repressão nessa realidade mesma (que é o ponto do inconsciente). Em outras palavras,
o crucial é nunca simplesmente reconstruir a outra história, reprimida, mas trabalhar na
direção de circunscrever o ponto na realidade presente onde a repressão (de algum
aspecto dessa realidade) está sendo ativamente mantida. É somente aqui que chegamos
a algo como a verdade.

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